Palavras fiadas
Trabalho de conclusão de curso do Bacharelado em Artes Visuais na UFMG, apresentado em 2018.
Trabalho de conclusão de curso do Bacharelado em Artes Visuais na UFMG, apresentado em 2018.
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Universidade Federal de Minas Gerais
Escola de Belas Artes
Bárbara Grillo Martins
Palavras fiadas.
Orientado pela Professora Patrícia Franca-Huchet
Co orientado pela Professora Joice Saturnino
Belo Horizonte
2018
Sumário
Poema
O corpo
Poemaimagem (monte – corpo bordado – serpenteia)
Amanhecer em mim.
A chegada
Caminhos de cobre, barro e linha
O gesto
O sentir da Linha
Sobre a linha, a risco, a dizer
Tramar palavra
Desconclusão.
Agradecimentos :
À minha mãe Maria Lucia, à minha avó Rosa Maria, por
serem flor, serem raiz, por permitirem minha existência, por me
apoiarem e ensinarem o significado de resistência.
À memória de meu avô Nayme, por possibilitar a minha formação,
por ensinar, provocar e construir bases sem as quais nada
disso faria sentido.
Aos meus irmãos por dividirem comigo todas essas histórias,
por serem presença.
À meu melhor amigo, companheiro de vida e artista Leonardo,
que por felicidade dos destinos, e de nossas escolhas segue
apoiando, trocando e misturando seu fio de vida ao meu.
Aos importântissimos professores Joice Saturnino, João
cristeli e Patricia Franca-Huchet por fomentar, orientar e não deixar
a chama da vontade apagar na chegada final deste ciclo, sem eles
esse projeto não seria possivel.
E a todas amigas, artistas mulheres que se reconheceram,
que se encontraram e que me encontraram, que me ispiram admiração
e força pra juntas seguirmos provocando e criando mundos
menos nocivos, mais natural, igualitário e sensivel, para assim sermos
o que quisermos.
Que os encontros sejam sempre possiveis.
“The word is silence and sound.
The thread, fullness and emptiness.
The weaver sees her fiber as the poet sees her word.
The thread feels the hand, as the word feels the tongue.
Structures feeling in the double sense
of sensing and signifying,
the word and the thread feel our passing.”
A palavra é silêncio e som.
O fio, plenitude e vazio.
A tecelã vê sua fibra como a poeta vê sua palavra.
O fio sente a mão, como a palavra sente a língua.
As estruturas sentem o duplo sentido
do sentir e significar,
a palavra e o fio sentem nossa passagem.
VICUÑA, Cecilia. PALABRA E HILO.
Na linha corre minha história
Nona teceu o fio da vida no útero de minha mãe,
A linha me puxou para fora
O cordão que quase me encontra com a outra dizia:
Urgente! Nasça!
E vim ao mundo sufocada,
Urgente de ar, de vida.
Nasci roxa,
Minha cor primeira,
Meio azul
Meio vermelho
Meio quente,
meio frio.
Alinhavada.
Começa com o corpo
Ele experimenta, através dos gestos percebe os limites, os deslimites.
Ele busca compreender o que são as coisas, o que é ser corpo, o que os
corpos podem ser, os corpos objetos, animais, plantas, casas,
O corpo do outro.
Esse percebe.
Recebe estímulos, ouve no som da chuva forte
o canto da mais velha voz, o vento.
Distingue o grave do trovão, do agudo do copo que quebra ao chão.
Ouve e sente no dentro, na alma.
Sente o cheiro do encontro da terra com a água,
o cheiro do encontro com as folhas de eucalipto.
Cheiro de carinho, de corpo que já foi casa.
O corpo também prova, sente com a língua, na boca o gosto doce
e amargo de manga rasgada com dente.
Provou a cor roxa avermelhada
da amora que lembrava em dedo e boca.
E apalpa tudo que há.
Mede a forma, o peso,
Afunda os dedos carinhosamente
na massa de lago fria e úmida,
O atrito do capim na pele
rasga o gesto,
de um corpo que ainda
repousa sobre ele.
Acaricia as tramas dos tecidos
que acariciam a superfície do corpo.
Vasculha papel, planta.
Desliza sobre a superfície do papel, que amplifica, ou corta.
O corpo apalpa a vida das coisas.
O caminho do tempo.
E vê,
que existe, que vibra, que reflete, que acontece.
Só acredito sendo.
Sendo quem fui me inspiro nos seres.
3.1
Passa um galho de pau movido a borboletas:
Com elas celebro meu órgão de ver.
Inclino a fala para uma oração.
Tem um cheiro de malva esta manhã.
Hão de nascer tomilhos em meus sinos.
(existe um tom de mim no anteceder?)
Não tenho mecanismos para santo.
Palavra que eu uso me inclui nela.
Esse horizonte usa um tom de paz.
Aqui a aranha não denigre o orvalho.
(BARROS, Manoel de. Livro das ignorãnças.)
Foi preciso querer ser mais para entender que já era tudo.
Voltar a sentir o mundo no corpo de uma criança.
o corpo ocupa um lugar pontual no espaço
e no tempo, mas, igualmente, ocupa uma região
ambígua, imprecisa e estendida entre
pontos de partida e pontos de chegada. Tal
como o olhar ondulado pela linha de horizonte:
sem começo, sem meio, sem fim, porem
sempre começando, sempre chegando
e inaugurando um lugar, em qualquer lugar.
O corpo, que se deseja criado, entrevê infindos
cruzamentos atualizando um começo,
um meio, um fim, presentificando uma nova
temporalidade assentada na matéria.
(DERDYK, Edith Linhas de horizonte: por
uma poética do ato criador,2001. pg. 80.)
Quando um corpo de desloca, quantas novas dimensões
esse apreende?
É como abrir uma teia. Criar conexões.
O encontro de pessoas que carregam experiências e vivências
diferentes das nossas é um dos motivos pelo qual acredito nessa
existência, o encontro de corpos, aquilo que aprendemos com o
outro, e deixamos para esses.
Acabo sendo um pouco de todos que já encontrei. Materializo
nos planos imagens compostas pelo entendimento e perspectiva
desses encontros no meu inconsciente.
Esses corpos que se tornam memórias vão sendo ligados,
por um fio principal, como um cordão umbilical, mediando todas as
superfícies utilizadas para a materialização dessa vontade interior
1
, como a superfície do papel, do metal, do barro, à superfície da linha.
Essas memórias de corpo, hoje investigam impressões desses
encontros no tempo, relembrando de um corpo infantil, que experimentava,
observava, apreendia, assim, localizando-se no agora,
esse corpo reivindica ser e estar num mundo que todos possam ser
e estar.
1 KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte.
Essas memórias, recortes de um passado presente, de experiencias
sensíveis de um corpo livre a natureza, um corpo observador,
pesquisador, de um corpo motivado para um descobrir,
de mundos, de lugares, de vida de morte, de um conhecer sincero e
igualitário, se misturam à memórias mais dispersas de um cotidiano
rotineiro, de uma cidade em pressa, de uma cidade imprensada por
prédios, que hora limita e hora possibilita relações mais profundas
consigo mesma, encontro necessário para ressignificação de certezas
e cânones, para que novas relações possam ser construídas; mas
amedrontam a ponto de acharmos que estamos sempre perdendo
algo ou alguém que viveu na memória de uma criança.
Percebo memórias como tramas enredadas pelo espirito com
fios formados de ideias e imagens, capturadas pelos sentidos de um
corpo em crescimento, em expansão. Essas tramas se expandem
em igual número e proporção ao desenvolvimento desse corpo, que
é também tramado, em camadas de extensão e forma que vão dando
sentidos as ações.
Essas memórias tramadas em corpo, produzidas por uma série
de gestos, passados e presentes, criam uma comunicação simbólica
com o self, que acionam transformações em nós, e que possibilitam
a materialização de algo perceptível pelos sentidos, que serão
recebidos e interpretados por outros corpos, que seguem tramando.
Os gestos dos sentidos formam nós, lugares de singularidade
em alto relevo neste múltiplo desenho
plano, especializações densas, montanhas ou vales,
ou poços nas planícies. Irrigam toda a pele de desejo,
de escuta de vista ou de odor, ela escoa como
água, confluência variável das qualidades sensíveis.
(SERRES, Michel. 1930- Os cinco sentidos – pg.47.)
Um corpo que experimenta estabelece valores e juízos de
gosto sobre esses objetos, situações e relações, que lhe podem ser
por direito, que são reivindicado para si, e que lhe são ofertadas.
Nossas consciências resgatam memórias de momentos e encontros
e enviam respostas sobre elas, sempre influenciada por memórias
anteriores, que já foram construídas na presença e sob influência da
família, da cultura, da sociedade, dos encontros.
Talvez essas respostas venham através do que nos propomos
a ser no mundo, para além do que desejamos ser, o que somos, que
é algo em constante transformação, e que depende diretamente dos
contextos históricos que os corpos já foram condicionados apenas
por serem como são.
Pela memória construímos corpo.
Corpo é memória.
Quando falo braço,
você pensa,
ou você braço?
o nosso corpo possui uma forma feita de volume
carnal, que se exibe publicamente, ostenta uma exterioridade
modelada historicamente, se é assim
que podemos nomear esses espaços-temporais. O
nosso corpo possui uma capacidade inimaginável
de armazenar internamente experiências vividas,
imaginadas, desejadas: poço sem fundo. E é entre o
publico e o privado que o ser do corpo, em acordo
com o corpo do ser, devolve ao mundo seus resíduos,
seus suores e dejetos, seus vestígios: os traços de
seu ser e fazer, as digitais de um destino tecido.
(DERDYK, Edith Linhas de horizonte: por uma poética
do ato criador,2001, pg. 81.)
Cada corpo é único, inigualável, e ainda assim, extremamente
parecido com outros corpos, com todos os outros corpos,
com tudo que tem vida, tudo que foi feito de estrela 2 , mas acaba se
parecendo mais com alguns tipos de corpos, como o corpo físico,
o corpo psicológico, o corpo espiritual, corpos coletivos, que serão
separado de alguma maneira, em alguma instância pela sociedade
em que estão inserido. Essa sociedade vai demandar padrões
comportamentais para cada tipo de corpo, criando lugares de privilégios
para os corpos mais parecidos com os de quem “comanda” a
sociedade historicamente.
Para os corpos que não foram contemplados em nenhum
momento, resistem, já que por vezes são marginalizados, criminalizados,
perseguidos, e mortos por sua cor, raça, gênero, orientação
sexual, etc.
É preciso existir duas vezes.
Já senti vontade de não morar mais no corpo.
Eu observava e sentia alguns desses controles, e uma sensação
de esvaziamento era profundamente refletida no meu trabalho,
expondo-a para mim mesma incialmente que conjecturava sobre
a presença de um fluxo emocional e criativo que vareia de intensidade,
e reverbera de diversas formas na maneira como percebemos
nossos corpos e os dos outros coexistindo no mundo.
O que leva ao esvaziamento? E de onde vem a força pra encher?
Um corpo feito de
Enchentes e vazantes,
Esvaziar é perder, liberar, expandir a forma contida.
Tirar algo de dentro para fora.
Essa ação pode ser realizada pelo próprio corpo, quando o
que te preenche não corresponde mais ao que você deseja.
2 SAGAN, Carl. “We are made of Star Stuff, we are the way for
cosmos to know itself”
Ou o que nos esvazia é externo, é a mão que tira o tampão do
ralo, a mesma que aniquila tudo aquilo que vive no outro, é também
a mão que aperta o gatilho, segura a serra. Pior é o espirito em falência.
Mas tem que todo corpo esvaziado, enche.
A força para encher vem da força do grito.
Un pueblo sin piernas, pero que camina 3
O que esvazia é o controle, a opressão, o que enche é a liberdade.
Mas o que é liberdade?
Liberdade é uma ação?
Um desejo?
Uma ilusão?
Um estado interno de plenitude com sua vontade, que vai se
estabelecer nos lugares em que sentir um controle externo que te
impossibilita intencionalmente de realiza-las. Ninguém nunca será
completamente livre. E dentro daquilo que é o nosso desejo é que
buscamos encontrá-la.
Liberdade é o que faço com o que existe dentro, a vontade do
espirito.
A vontade do corpo.
A liberdade depende do tipo de corpo.
Liberdade é a conquista de ser e estar no mundo.
A liberdade pode ser tudo isso existindo num mesmo lugar.
Pelo corpo que a sentimos,
O corpo é libertação.
3 Musica Latinoamerica, Calle 13.
Minha intenção é observar,
Como observo a borboleta pousar no azul.
evidenciar a passagem desses fluxos pela minha existência,
pelos meus questionamentos e inquietudes.
E tendo escolhido meu corpo ser artista, pratico minha liberdade
de conversar com/sobre/pelas linhas a quem se interessar.
Terra alta com arvores, montes.
Nasci no sul de Minas, nos pés da serra
da Mantiqueira, via corpos de montanhas.
Montes, costas, coxas, vales.
Montanha é corpo em estado de ente.
Montanha que chora,
Onde se originam as águas.
Filha de onça, nascida do ventre de um
peixe, feita do mel da lua.
Corpo bordado.
Um recorte,
De um corpo de confronto.
O meio, a frente, o encontro.
Um ciclo serpenteia a superfície da pele,
Vaza.
Serpenteia
O movimento da mão que marca o papel.
Serpenteio para ser outra, para ser nova.
Para seguir,
Para mover me firmo, aqui, ali, aqui, ali...
Nascentes ressurgem, perpassam,
Crio paisagens,
Passagens,
Memórias de montes
Crio corpo/planta.
Amanhecer em mim.
Piranguinho, sul de minas foi onde nasci e cresci.
Piranguinho quer dizer peixe pequeno.
Infância. Éramos cinco, por muito tempo fui a única menina. Depois
éramos 6.
Ganhei bonecas, mas também espadas, bolas e arco e flecha. Brincadeiras
eram brincadeiras.
Nossa casa era grande, o terreiro era grande, as mangueiras eram
grandes, e as possibilidades também.
Vivi cercada de plantas, dentro e fora de casa/corpo. Lembro da trepadeira
tomando conta do teto da sala. Lembro dos copos de lírios
brancos proibido de se tocar, lembro das roseiras e seus cachos tortos
de tão cheio, lembro da flor que parecia um peixinho barrigudinho,
e das flores que pareciam de cera. Haviam tantas. E a cada
violeta caída, já nos subia um frio na espinha... lá vem elas.
Goiaba no pé, manga no pé, amora no pé. E o pé descalço.
Qual era o nome da lagarta?
Taturana.
Ameixa, pera, jaca, pitanga
Pipa:
Enfeitar o céu de brinco.
Pasto:
Enfeitar de perna o mato.
Lago:
Enfeitar de corpo o barro.
Há muito tempo na casa que morava, havia um lago que eu vivi
secar.
Observar esse secamento de lago me marcou.
As margens começaram o processo, era lama, barro mole, e a perna
afundava até o joelho, e se arrastando e puxando uns aos outros
chegávamos à água.
A vegetação era densa, do lado uma seringueira forte criava um
território misterioso.
Quando já tudo barro, construíamos casas, que eram abrigos de
guerras facilmente cessadas pelo grito: “almoço tá pronto!”
Também teve casa na arvore, Mangueira tinha galho grosso.
O chão era todo lugar. Telhado era chão, todo galho era chão,
E o chão do céu é pra quem vê deitado.
Nas noites sinfonias de besouros que batem janela.
Vagalume encontrava o escuro.
mistério de onde apaga
onde ascende.
De tantas peripécias teve osso quebrado, dente partido, joelho
arranhado. Todo mundo vivo.
Guardávamos muitas coisas.
o que havia sido difícil que conseguir, também poderia ser fácil de
perder, por isso, guardávamos.
Ganhei um celular quando adolescente, computador muito tempo
depois e a ser compartilhado, éramos 6.
O tempo sobrava,
O tempo permitia,
Inquietâncias.
Eu mergulhava em guarda roupas.
Minha mãe e minha avó guardavam coisas incríveis. E minha
função era experimentá-las, pelo ato de experimentar-me.
Junto com a bagunça, os bichos as plantas e os guardados, haviam
livros e desenhos. Muitas referências.
Meu avô era arquiteto e trabalhava em casa, para sua alegria e desventura.
O escritório era para ele, e muitos universos eram para
nós.
Dentre livros e pranchetas, esquadros e lápis de cores, do gosto
pelo desenho livre, às copias que fazíamos de suas plantas, em
nós florescia.
Florescência.
A chegada.
Passei de 9 mil para 2,5 milhões.
Quando deixei minha cidade vivi uma das experiências mais libertadoras
que um pássaro sente ao sair do ninho.
Como quando se desfaz um tecido, os pontos se soltavam lentamente,
para dar linha.
Pra esticar esse fio caminho.
E ele esticou bastante, uma parte do tecido se desfez, mas a raiz é
forte, segura firme.
Possibilita esse fio esticar o quanto achar que dá,
Não arrebenta.
Numa mala umas peças de roupas,
delas.
Uma coberta, como uma capota
Pra quando o frio chegar.
Me lembrei de quando meu tio chegou em casa com um filhote
de maritaca, ele não disse de onde vinha, mas cuidamos dela, era
recém-nascida.
Alimentamos com seringa até ela ficar forte e suas penas nasceram
lindas. De noite ia pra gaiola, de dia ficava de ombro em ombro.
Um dia a gente soltou ela,
Ela voou desorientada, e foi assim até entender onde estava, tudo
que podia ser dali pra frente, onde era seguro ou não. Ela ficou uns
dias aos arredores, e aí sumiu,
Foi pra mais longe,
Mas ela voltou, e assim ficou,
Meio de casa, meio do mundo.
Comecei a me sentir assim,
Maritaca.
Era ano de 2012, e acredito que iniciei minha formação assim
que coloquei os pés nesses espaços, sentia que havia encontrado
meu lugar, foi libertador, e como tudo que é novo, foi repleto de impulsos,
anseios, expectativas.
Me lembrei de um evento importante que aconteceu comigo,
foi em outubro de 2012, viajei para a Trigésima Bienal de Arte de
São Paulo – A Iminência das poéticas, era minha primeira bienal e
minha primeira viajem com alunos da EBA, eram colegas de vários
períodos, com várias histórias.
Comecei ali uma bela trama.
A Iminência das poéticas propunha uma reflexão sobre artistas
e obras que tratam das transições nas expressões poéticas e
artísticas, sua natureza múltipla e em permanente mutação;
Acredito que ali foi quando tive uma das primeiras imersões
poética e sensível enquanto artista, enquanto alguém que pode e
quer expressar sobre sua existência e experiência, e refletir sobre
ela nesse mundo, os lugares que nossos corpos habitam, sejam através
do vídeo, pintura, gravura, escultura, instalação, fotografia, tapeçaria,
dentre tantas outras.
Tudo isso pode ser suporte, pode ser possível.
Em meio a essa memória suscitei um recorte a respeito dessa
grande questão talvez eterna sobre o motivo de fazer arte, gostaria
de me lembrar sempre de Edith Derdyk:
Quando a linguagem se desdobra dela e nela mesma,
impondo uma vontade própria, algo dali gestado
nos complementa, e faz ausentarmo-nos de nós
mesmos quando estamos a serviço dela. Reconhecendo
o poder que a linguagem exerce sobre nós, e
não sabendo afirmar com total e absoluta precisão
quem criou quem – se a linguagem existe porque
existe consciência, se o pensamento existe porque
existe linguagem - , tocamos num ponto nevrálgico
de nosso senso de humanidade que convive com
uma angustia de finitude e incompletude. São estes
alguns dos motores que movimentam a formação
do ser através da invenção da linguagem, da construção
de instrumentos e artefatos que alonguem os
nossos sentidos, garantindo mais do que a sobrevivência,
a existência da vida em suas precisas inexatidões.
(DERDYK, Edith Linhas de horizonte: por uma poética
do ato criador,2001, pg.)
Foram muitas mudanças de lá pra cá, e observo o quanto que
perceber meus trabalhos enquanto linguagem, meu corpo enquanto
linguagem me fortaleceu;
a mudança é interna e externa.
o senhor... mire e veja: o mais importante e bonito no
mundo não é isto: que as pessoas não estão sempre
iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas
vão sempre mudando. Afinam e desafinam. Verdade
maior é o que a vida me ensinou.
(ROSA, Guimarães. Grande sertão veredas. São Paulo:
círculo do livro, 1984. P. 19.)
A dimensão do meu corpo na multidão, do meu corpo como parte de
obra.
Experenciei isso na exposição Lygia Clark : Uma retrospectiva,
no Itaú Cultural na mesma viajem à São Paulo. A exposição trazia
um panorama da produção da artista, desde pinturas, as esculturas
os Bichos, e suas obras sensoriais como Proposições. Haviam também
algumas obras que não tinham sido realizadas ainda, a artista
deixou registros escritos de propostas que foram finalizadas e realizadas
nessa montagem.
Participei de uma dessas que eram inéditas, e me marcou
bastante, a pesar de não me lembrar do nome, era assim:
Havia uma roupa de lona cinza, um colete/corpo, tronco e
barriga, onde tinha um zíper na horizontal.
Vendados.
Tocar o corpo, sentir um corpo, pernas, joelhos, barriga, braço.
Dentro dessa barriga haviam frutas, diversas, maduras.
Alguém se propôs a vestir o colete e ser o corpo do corpo.
A pessoa se deitou no chão, eu e mais 9 em torno dela.
Abre-se a barriga,
peguem uma fruta, morde, devolve,
Pega outra, morde, devolve...
Pensei: “Será essa aquela história de antropofagia?”
corpo bicho.
Um instante de troca, de estranheza, reconhecimento e intimidade.
O gesto marca essa experiência, pegar, levar a boca, devolver.
Compartilhar.
E foi um pouco sobre o que absorvi desses momentos que comecei
a pensar e questionar o lugar da arte na vida,
E como base essas memórias de viagens construí minhas redes.
O meu lugar na arte.
Através dela perspectivei minha produção e meu pensar sobre
arte,
Que conclui, assim como questiona, desenvolve e contradiz,
Para que tudo possa ser repensado, redesenhado,
Quando a hora chegar.
Caminho de cobre, barro e linha.
Meu percurso pela universidade foi, assim como é para muitos
um período de experimentações sobre os planos, as matérias, as
cores, as pessoas, as relações, as instituições, à política, à presença
e a falta.
Meu ser é inquieto, e com um seríssimo problema em tomar
decisões, as dualidades, sempre me trouxeram uma angustia, sentida
como um nó entre o pescoço e o coração.
Minhas indecisões durante a graduação também se refletiram
nas minhas escolhas acadêmicas, talvez por isso não acredite
ter um único suporte para a minha expressão, prefiro continuar essa
experimentação, para que a linguagem se torne suporte de uma necessidade
interior. Assim, passei pelas habilitações de artes gráficas,
desenho, gravura, e nesse caminho encontrei também a cerâmica, e
artes da fibra, que tem extrema importância nesse percurso.
Quando optei pela habilitação de artes gráficas , assim como
muitos não sabia muito bem o que aquela área possibilitava, já que
havíamos tido apenas uma breve experiencia com todas as habilitações,
então à escolhi pois gostava da ideia de criar uma arte digital, e
havia espaço pra fotografia que me interessa muito, segui satisfeita
com isso por apenas por dois semestres, me questionei a respeito
dessa busca ilusória de estabilidade que acreditava que aquela
área me traria e também mantinha um enorme interesse ainda que
inconsciente sobre as materialidades das coisas, dos objetos, dos
corpos.
Mudei minha habilitação para o desenho no intuito de que
a linha me ligasse as coisas, corpos objetos, e que nos planos do
desenho meu trabalho me satisfizesse interiormente, mas nesse
momento o desenho não me bastou, a pesar de ter sido chave para
criar a base, o esqueleto para o viria preencher a minha produção, à
mim.
Novamente,
mudei,
Porque o que não muda não é planta.
Gravura, a mesma técnica que neguei por muito tempo, mas
que me apaixonei pelo caminho da linha, do risco na matéria, que
recusei por algum tempo, que me estagnou, que gerou mudança, por
tudo isso se faz tão importante e necessária.
Desde início tive a pretensão em seguir pela gravura, isso
devido a uma forte e fantástica influência de meu tio Rubem Grillo
e suas xilogravuras, imagens tão presentes na minha vida, personagens
de inúmeras histórias, teorias, e viagens infantis. Pano de
fundo da minha construção como indivíduo. Porém, no início eu
fugi dessa técnica, preferi trilhar meu próprio caminho, desenvolver
meu traço, minhas poéticas, sem expectativas.
Mas a vibração da goiva abrindo o veio, na veia, me pulsou.
o risco, os riscos que corri, no metal me gravaram,
O óleo, na pedra salta e me absorve pelos seus poros,
a gravura, a matriz, faz-me viva.
Assim sucumbi-me aos processos da gravura, escolhendo o
metal por suas inúmeras técnicas, que me atraíram e direcionaram
minha produção em primeiro momento durante os ateliês. Em vários
momentos no fazer artístico da gravura me questionava sobre a
prática, estudo, pesquisa e desenvolvimento de métodos de fazeres,
as materialidades das formas, o tempo de ação, a liberdade criativa,
que me deram algumas respostas, ou me propuseram novas perguntas.
Separava materiais,
preparava as matrizes,
As placas de metal que podiam ser ferro, latão ou cobre, precisavam
ser lixadas, e ao que me parecia um movimento interminável,
um objetivo inalcançável, de buscar meu reflexo na matéria, exigi
do braço, da mão. Era necessário que estivessem presentes, sob os
comandos, dispostos, e quando Henri Focillon em Elogio à mão diz,
[...] este par não apenas serviu os propósitos do ser
humano, como os ajudou a nascer, os definiu, lhes
conferiu forma e rosto. O homem fez a mão, isto é,
resgatou-a pouco a pouco do mundo animal, libertou-a
de uma escravidão antiga e natural, mas a
mão fez o homem. Permitiu-lhes estabelecer certos
contactos com o universo que os seus outros órgãos
e partes do corpo não conseguiam. Erguida contra o
vento, aberta e ramificada, estimulava-o para a absorção
de fluidos, multiplicava as superfícies delicadamente
sensíveis à percepção do ar, à percepção
das águas.[...] (FOCILLON, Henri. A vida das formas
seguido de Elogio à mão.1943. Pg. 110.)
Sentia que cumprira com um acordo, entre a mão e a matéria.
A percepção do metal era vivido e sentido, fisgadas, energia que ali
corria, que em breve pulsaria, diante de novos desafios.
Na placa espelhada,
Meu reflexo,
Eu,
Nela
por inteiro.
A minha presença naquele momento era inegável, por completo,
minha vontade de chegar aquele ponto, a intenção dada ao
fazer, a energia despendida para tal, eu estava ali.
E depois desse exercício, havia um grande desafio, o que fazer
com aquela matéria? Correr o risco de escolher mal, e perder
todo aquele trabalho?
Essa foi uma questão sobre algo que de fato nunca chegou a
acontecer,
Nunca perdi um trabalho,
Toda proposta artística se gerou, e se desenvolveu a medida
que o gesto se tornava mais seguro; percebi que os processos, as etapas,
as receitas, as escolhas dos ingredientes, não eram algo alheio
ao ato da criação, essas escolhas fazem parte do ato de criar.
Criar é como que urgente.
Algumas vezes produzia vários trabalhos ao mesmo tempo,
E talvez por em alguns momentos ser demais,
Outros são de menos.
No caminho fui entendendo meus processos de criação,
As vezes uma espécie de vazio criativo me abraça,
Todo ócio é apreciado.
Me permitia fazer bobagens
Sem uma imagem já construída interiormente, as técnicas e
os materiais me indicavam os caminhos, as possibilidades.
Comecei experimentando o riscar da ponta seca, onde o risco
era direto na matriz polida, e para a minha mão era algo mais leve,
delicado.
Riscava criando formas de plantas e pedras.
Enquanto pensava em pedra me expandiram percepções, a
pedra, o mineral, de onde ele vem?
A terra
A Terra
Montanha, pico, fosso, vala, vale, relevo.
Revê-lo.
Geografia, geologia.
O tema me ocorria quando pensava sobre a composição do
material que trabalhava, que eram metais, e que eram esses? Elementos
da composição da terra, a materialização de uma ligação entre
elementos químicos com afinidades que se formaram no interior
da terra, sob determinadas condições.
Conhecer sobre de onde vinham aqueles materiais que utilizava
e toda história que carregam, me sensibilizava o olhar para a
natureza, e para nós como parte dela, e como responsáveis pela sua
preservação e permanência.
É impossível não cairmos em questões políticas, sobre como,
quanto e por quem esses bens de consumo não renováveis vêm sendo
consumidos. É certo que vivendo como temos escolhido, e seguido
as regras desse sistema de consumo, a exploração desses bens
vê-se necessária, entretanto há questões éticas que envolvem essas
relações, sobre qual o limite? Como reciclar? Consumir menos? É
importante que pesemos sobre nossas responsabilidades nessa esfera
doméstica, porém, é certo que os maiores vilões, são as grandes
indústrias, empresas, e políticos interessados em beneficiamentos
próprios, e utilizam das leis, e até as mudam para manterem-se den-
tro da “legalidade”, são capazes de matar até um rio.
O caso do rompimento da barragem de rejeitos da empresa
Samarco no distrito de Bento Rodrigues em Mariana é um caso que
marcou, e chocou as pessoas, uma tragédia anunciada pela ganância.
Todos os habitantes perderam suas casas, suas roupas, suas memórias,
suas vidas. Essas pessoas ainda não foram minimamente
ressarcidas pela perda.
Quando morre um rio, morre um mundo.
Quando morre um rio, morre.
Como não pensar sobre isso quando tenho nas minhas mãos
algo que veio de lá?!
Enquanto estudava e pesquisava sobre isso, ficava para mim
muito forte a imagem da mina de ferro aberta, com degraus,
topografias da destruição.
Pensando em mapas topográficos busquei novas texturas, e
profundidades para essas imagens.
A técnica da água tinta me interessou pois poderia trabalhar
com sombras, contrastes, e com a presença do breu, que polvilhado
sobre a placa como uma fina camada de poeira, pó, eu descobria
sobre a natureza das ceras e vernizes,
o véu sobre o latão, cobre, ferro.
Com as ceras o gesto rasga o véu, tira-o, abre na sombra, já o
verniz é colocado delimitando a forma do véu, que é a luz.
Pensava no tempo de exploração, o tempo que um monte,
montanha ou pico fica aberto enquanto a mineração rasga a pele da
terra, e é muito mais tempo que aquele em que a matéria, o metal,
aquilo que veio dela era exposta a um agente corrosivo,
e consumiam-se.
O ácido nítrico agia rapidamente sobre a chapa de latão, era
fulgaz, comia, corroía, uma reação química, que dependia do oxigênio,
e era bolha, era gás, era ação destrutiva.
Ainda interessada no breu, trabalhei com o grão grosso e descobri
novos caminhos para as imagens, começava a ver os relevos
não só em camadas, mas com mais profundidades, como penhascos,
vazios profundos.
O percloreto de ferro, que trabalhou vagarosamente, exigiu do
tempo, mas que foi à fundo nessa história.
O resultado foi profundo, e devido a observação dessa possibilidade,
entendi mais o tempo e os materiais, a duração da ação
do ácido e a cor, observada na impressão colorida, observei mais o
volume da corrosão, das profundidades, no relevo seco observei a
matéria que não estava mais ali presente.
Paulo Herkenhoff fala sobre os trabalhos de gravura de Fayga
Ostrower:
[...] a imagem gravada é a concentração no
tempo e no espaço do longo processo em
que o artista se relaciona com as matérias
para atingir a materialidade final. É a cicatriz
do que é (e não será?) sobre o que não é
(e virá a ser)[...].
Herkenhoff, Paulo.
Esses aprofundamentos eram registro desse meu caminho
até o fundo.
Seguia até onde dava. Meu corpo e espirito eram muito exigidos
para esse fazer. Construir algo sobre e através da destruição é
complexo, e é preciso dar conta de uma energia muito forte.
Material duro, em que a ação destrutiva é também o que possibilita
a criação.
Meu corpo pedia tempo, a matéria queria tempo.
Mas ainda assim, insistia,
nada era gerado,
encontros vazios com a matéria.
Os materiais que vem da natureza, nos exigem, eles nos indicam
quando retornar-lhes tempo, respirar, redescobrir, reencontrar.
Em algum momento outros sentimentos se juntaram a esse
tempo, esse esvaziamento.
Me sentia desamparada, isolada, desestimulada e sozinha,
devido a falta ou a falha de comunicação entre escola e aluna, a estrutura
física da gravura separada dos demais fazeres era desanimadora,
não só pela localização, mas como pela desconexão à contextos
políticos e culturais importantes para uma conscientização
social e artística do nosso fazer na contemporaneidade.
Era como estar bem no centro de uma encruzilhada, com vários
caminhos gastos, sua intuição não te leva a nenhum. Resolvi
não seguir por nenhum daqueles, segui pelos caminhos/não caminhos,
o meio,
o entre.
É preciso aprender e reaprender sempre a acreditar mais em
nós mesmas, é preciso ouvir a nossa intuição.
É seguindo ela que trilho meus caminhos, que construo minhas
histórias, minhas imagens.
Me encontrei cerâmica.
Presente que foi encontrar essa superfície, esse fazer.
Acalento foi o reencontro com o feminino. A energia da criação.
Gerar.
consciência do corpo gerador
energia
Sensível.
No barro me reencontrei com ela,
Com todas elas.
Cheguei no ateliê de cerâmica, já com uma bela bagagem, trazia
comigo boas experiências com o espaço e com a matéria quando
passei pelos estudos de tridimensionalidade, porem dessa vez, mais
consciente, e mais objetiva quanto as minhas vontades e necessidades
de experimentações.
Foi um reencontro verdadeiro com algo profundo.
Me sentia autônoma, confiante na minha vontade para criar,
materializar imagens, sonhos que existem dentro.
Essa energia feminina era uma sensação, um estado de confiança,
de carinho, de acolhimento que encontrei quando me entreguei
a cerâmica, talvez também tenham vindo de memórias de infância,
mas também apareceram para mim quando encontrei o livro
Mulheres que correm com os lobos da Clarissa Pinkola Estés, na citação
ela comenta as características do arquétipo da mulher selvagem,
tratando da nossa relação com a terra, senti que encontrava
[...]essa velha La Loba é a quintessência da mulher
de dois milhões de anos. Ela é a Mulher Selvagem
original que vive debaixo da terra e, no
entanto, sobre o seu solo. Ela vive dentro de nós
e nos transcende; nós somos cercadas por ela. Os
desertos, os bosques e a terra debaixo das nossas
casas têm pelo menos dois milhões de anos.
Sempre me intrigou como as mulheres gostam de
cavar a terra. Elas plantam bulbos para a primavera.
Elas enfiam os dedos enegrecidos no solo estercado
para transplantar mudas perfumadas de tomateiros.
Acho que estão cavando para encontrar a mulher de
dois milhões de anos. Estão procurando seus dedos
e suas patas. Querem encontra-la como um presente
para sí mesmas, pois com ela sentem-se inteiras
e em paz. (ESTÉS, Clarissa Pinkola – Mulheres que
correm com os lobos. 1992. Pág. 52.)
À medida que apalpava o barro, moldava com as sensações
das trocas que iam acontecendo de maneira espontânea, criava caminhos.
Todo meu corpo trabalhava, e meu espirito estava totalmente
presente, e assim percebi que não era preciso negá-lo. eu precisava
desse corpo, precisava aceitá-lo e amá-lo de vez.
Quando levo minha consciência para a intenção do fazer cerâmico,
quando pratíco e observo as suas mudanças de estados,
do barro mole, ao couro, ao osso, o biscoito no fogo, talvez
vidrado,
penso o quanto isso não é também muito de dentro,
uma constante transmutação,
mas a gente ainda pode repetir o ciclo,
amolecer.
A cerâmica quebra, e foi quando e muitas as vezes eu as perdia,
e me sentia culpada por não cumprir uma expectativa minha
sobre a forma, mas e a expectativa da coisa, em ser o que é? e é isso.
Possiblidade de quebra, sua matéria é assim, já nasce correndo
pra ser outras coisas.
Aprendi a aceitar.
As coisas vão para além de qualquer controle, basta observá-
-las, elas já são.
Me lembrei de uma técnica ancestral japonesa chamada Kintsugi,
que consiste em transformar essa “perda” em possibilidade de
quase voltar a ser o que era, colado por linhas de ouro, ainda mais
bela.
A marca, como uma cicatriz, registra no corpo sua experiência
no mundo.
Um rio de ouro.
Uma vez levei uma peça de cerâmica que havia feito para
conversar com crianças de 6 anos de idade num museu que trabalhei
como educadora, a intenção era conversar sobre arte e inspiração,
a pergunta era:
o que nos motiva a materializar, produzir, e expor sentimentos,
e ideias que existem dentro da gente? De onde vem essa vontade?
Minha peça era a materialização de uma ideia sobre esvaziamento.
A peça passa de mão em mão, e ouço:
“- olha, um passarinho, e o esqueleto dele!”
“-uau, parece uma torre!”
”- Uma concha.”
” - um mundo avesso.”
As crianças ensinaram inspiração.
E a inspiração vem do mundo, da vida.
Enquanto trabalhava satisfeita com a cerâmica encontrei outro
suporte que me mostrou caminhos importantes para minha formação
a serem percorridos.
Comecei a trabalhar com artes da fibra,
Primeiro a tapeçaria,
Senti um conforto tão grande trabalhando com linhas, lãs,
fibras, que me parecia já pertencer aquele lugar, me era familiar.
Também pela fantástica influência e referência da professora Joice,
fundamental para que esse encanto acontecesse.
Quando pegava na linha me sentia em casa, como se minha
mão já soubesse exatamente o que fazer. Pegava rápido o caminho
do ponto, e depois que aprendia e desenvolvia o gesto, a vontade de
extrapolar a receita era imediata, e inventava, media, testava.
Dessa vez experimentava já sabendo que esse material também
me pediria tempo.
Aguardava que os fios me contassem de seus tempos.
Durante o fazer, quando me ocorria algum pensamento ou
sentimento, a prática acabava por me exigir uma energia maior,
para que pudesse pensar e tratar dessas questões interna e externamente.
Como uma engrenagem, com varias coisas funcionando juntas,
meu corpo trabalhava.
Nesses momentos o ato de tramar ou me auxiliava a desenvolver
questões e trazê-las a superfície, a luz da compreensão, ou
então o ato desatava, como se dissesse para parar, pensar;
Se não ouvia o ponto, o gesto, a mão me confundia, desmanchava
o caminho da linha, voltava atrás.
Tapeçaria é como um encontro espiritual.
É ritual.
Um lugar onde me encontro para me permitir digerir e discernir
os fluxos internos, que a vida, em suas situações nos colocam.
Aprendi cesta,
Um novo mundo de possibilidades se abriu, a tridimensionalidade
já me empolgava, mas esse material possibilitava outras
experiências, mais leve, mais dinâmico, possibilitava a criação com
o espaço, nesse momento em mim a possibilidade de relações entre
os suportes era intensa, muito projetos começaram a ser gestados
ali.
Em um dado momento, após todas essas experiências fica
claro para mim que minha produção acontece de forma fluida, precisa
em suas imprecisões.
A vejo como rizoma 4 , que se abre como teia, raiz superficial,
criando conexões, experimentando diversos lugares.
Observo essas mudanças de planos, linguagem, superfície e
suporte sem culpa, não sinto que abandonei uma técnica, apenas
recebo seu tempo, sei que em breve reencontro-a, ao mesmo tempo
que me debruço sobre novas vontades.
Como o ar, que toca tudo, dentro e fora.
4 Gilleuse, Guatarri –Mil platôs, vol.4 – capitalismo e esquizofrenia.
A linha amarra esses trabalhos, uns aos outros e a mim.
Ela sempre esteve presente, porem hoje eu a reconheço e afirmo
seu lugar nesses trabalhos.
A linha me leva para longe, mas também me traz de volta,
E voltei desenho, construí uma narrativa sobre os trabalhos,
que não é a única, mas a perspectiva que no momento mais se faz
relevante.
Na volta à bidimensionalidade, após ter flanado soprada pelo
desejo a materialidades corpóreas de meus trabalhos, redesenhei
bases mais flexíveis a fundações insólidas, para poder ser toda e
qualquer coisa.
Reflito sobre um desejo e uma presença constante da linha
em meus trabalhos, e reconheço um lugar ou uma presença particular
comum as mulheres.
A minha linha vinha de casa, de ensinamentos de mulheres,
passado por gerações.
Muitas mulheres artistas investigam, ou utilizam-se dessa
passagem da linha por gerações e a imediata conexão de práticas
têxteis com a figura feminina, para questionar e talvez ressignificar
valores.
A verdade é que nossa sociedade foi fundada em bases patriarcais
e cristãs, que atribuíam um ideal feminino, o que se esperava
das mulheres vistas como propriedades dos homens. Eles negaram
o espírito, o desejo criativo.
O Homem era o criador, e a mulher musa 5 .
Ainda hoje, vemos mais homens, ou mais mulheres artistas
nas galerias e grandes museus?
O feminismo busca essa igualdade entre gêneros, mais algumas
barreiras são tão bem fixadas, que pra derrubar, só com muita
força, muita persistência, de milhares de mulheres que já despenderam
energia para tal, das que hoje despendem, e das que ainda
despenderão.
Seguiremos!
5 Valdés ,Adriana. - Arte, mujer, imagen. Pg 51. No livro Saber de
ellas: entre lo público y lo privado.
[imagem fio na boca]
Muitas mulheres que viveram nessas sociedades trabalhavam
em casa e dentre os afazes domésticos a linha tinha forte presença,
nos teares, nos bordados, nos crochês.
Fora desse espectro de herança eurocêntrica, várias sociedades
tinham como tradição os fazeres têxteis, em algumas comunidades
indígenas por exemplo, as tarefas eram dividas por gênero,
com outras relações e fundamentações sociais as mulheres eram
encarregadas das tramas.
Considerando todas as diferenças, especificidades e contextos,
algo em comum me é de interesse ressaltar, que eram os encontros,
para todas essas mulheres de alguma maneira esse fazer se
relacionava com o trabalho em conjunto, os encontros e as trocas,
nas produções de tecidos,
teciam conversas a fio.
Falavam, trocavam, ouviam, reconheciam, confortavam,
aconselhavam, pontos, técnicas, saberes.
Seguras, acolhidas.
Em casa,
Casa é corpo de mulher.
A presença da mulher, em lugares importantes, em diversas
sociedades foi negada durante muito tempo, e todas as conquistas
se deram a partir de encontros, e do apoio que demos umas as outras.
Todas as liberdades que conquistaram para que eu possa exercer
a minha aqui, agora. Devo a elas todas.
A presença da mulher artista é de extrema importância, tendo
em vista que a arte é um dos eixos importantes para o desenvolvimento
humano sensível. Onde nos propomos a questionar toda
forma de pensar e agir na sociedade.
Algo interessante por entre esses panos, véus e linhas, encontros
e histórias se desenrolavam, criamos códigos, estilos, iconologias,
narrativas paralelas e conexões, a agulha, como para Louise
Bougeois é “como instrumento de reparação. Reivindicação ao
perdão” a agulha tornava-se arma de resistência às limitações da
feminilidade 6 .
Com o avanço das lutas e conquistas das mulheres ao logo
dos séculos, imagens, objetos e técnicas do cotidiano tornavam-se
suportes para questionar essas relações, para expor essas opressões.
Essas narrativas subversivas ressoam nos meus trabalhos, a
partir do momento que trato das percepções do meu corpo, feminino,
sobre o ser, sobre o mundo, dessa maneira exponho através do
meu olhar como ressoam os enfrentamentos e interlocuções, desse
corpo diante de opressões, e dos lugares que se espera que a mulher
ocupe, impostos sutilmente e diariamente por esta sociedade.
Retomo pensamentos sobre liberdades, penso na luta de todas
as mulheres ao longo da história para que possamos ocupar os
lugares que desejamos, na arte, na vida. Isso passa por criar rupturas,
nas antigas formas de pensamento, a criação e ressignificação
de praticas e fazeres.
6 . Parker, Rozsika. 1984, 1996, 2010 - The Subversive Embroidery.
Que nossos caminhos,
rios,
continuem e se cruzar,
Que estejam abertos aos encontros,
Que os encontros libertem!
O gesto me aproxima de casa,
O gesto que me leva para um mergulho no rio que corre dentro.
Ele é uma ponte entre o criador e a criação.
O mensageiro, ativa a matéria e recebe respostas.
É a conversa entre a mão e a coisa.
E qual seria a mediação – a ponte – entre o sujeito e
o objeto, o criador e a criatura, o caçador e a presa? O
ato criador amalgama estas passagens fronteiriças
tornando possível uma conexão sujeito – objeto assentado
na presença de um corpo que atua sobre as
matérias do mundo.
(DERDYK, Edith Linhas de horizonte: por uma poética
do ato criador,2001, Pg. 76.)
Através dos gestos se prepara, escolhe, colhe, corta, lixa,
amassa, dobra, risca, trama, torce monta, escreve.
o corpo é a mais completa ferramenta:
[...]não será a mão, aliás, a ordenadora dos números,
que é número ela mesma. Órgão dos cálculos e
senhora das cadências? Sobretudo, toca o universo,
sente-o, conquista-o, transforma-o. Conjuga espantosos
acasos da matéria. Não lhe chega agarrar
o que existe, tem que trabalhar o que não existe e
acrescentar aos reinos da natureza um reino novo.
Durante longo tempo, contentou-se em levantar
troncos de arvore não trabalhados, com toda a sua
cobertura de casca, para suportar os telhados das
casas e dos templos; durante longo tempo empilhou
ou levantou pedras em bruto para homenagear os
mortos ou para homenagear as divindades. Ao servir-se
de sucos vegetais para decorar a monotonia
do objeto, respeitava ainda as dadivas da terra. Mas
no dia em que desnuda a arvore do seu manto rugoso
para lhe revelar a carne, polindo a superfície até
tornar lisa e perfeita, inventa uma epiderme, suave
para a vista e pra o tacto, e os veios, destinados a
permanecer profundamente ocultos, apresentam
à claridade misteriosas combinações. As massas
amorfas do mármore, soterradas no caos das montanhas,
logo que são talhadas em blocos, em placas,
em simulacros de homens, parecem mudar de essências
e de substância, como se a forma que recebem
as trabalhasse até o fundo do seu ser cego e
nas suas partículas elementares. O mesmo acontece
com os minerais, extraídos da sua ganga, ligados
uns aos outros, amalgamados, fundidos para integrarem
na série dos metais alguns compostos originais.
Igualmente como a argila, endurecida ao fogo,
brilhante de esmalte, e com a areia, poeira fluida e
obscura, de que a chama obtém uma aparência sólida.
A arte começa pela transmutação e prossegue
pela metamorfose. [...]
(FOCILLON, Henri. A vida das formas seguido de
Elogio à mão.1943. Pg. 116/117.)
Agora mesmo, sentada na frente do caderno, sem saber por
onde começar, e começo assim, dando sentido a ação da mão que
desenha símbolos*, riscos, caminho de movimento, que são códigos
que serão recebidos e entendidos (ou não) assim que forem lidos,
inconscientemente, em uma fração de segundos.
fora.
Em seguida uma pausa, um suspiro. Como se doesse por pra
O gesto me encontra com esse pulso, essa vontade interior,
esse canal por onde se dá o ato da criação. O que não existia, passa
a existir.
o ato da criação não vem de nada homogêneo e absoluto,
mesmo firmando-se sob um véu de névoas; o
ato da criação não vem de um todo, unido e global,
mesmo firmando-se sob uma chuva de referências.
O ato criador são recortes, são incisões, são reuniões
do heterogêneo, são pinceladas de singularidades,
são afirmações, são negações. O ato criador são.
(DERDYK, Edith Linhas de horizonte: por uma poética
do ato criador,2001. pg., 32.)
A forma que voluntariosamente deseja se impor
impulsionar o ato de construir, de produzir,
de criar algo de algo que vem de algo para algo
que vai. O denominador comum que atravessa
essa vontade quase que anônima de capturar
uma forma é a positividade protagonizada pela
presença incondicional de um sujeito que não
existe sem corpo, que não existe sem espirito,
que não existe sem pensamento, que não existe
sem nervo, que não existe sem linguagem,
que não existe sem consciência, que não existe
sem história, que não existe sem mateia, que
não existe sem percepção, que não existe sem
afeto, que não existe sem desejo. [...]
As formas construídas pelas mãos do espirito
humano são índices de modos de ser e fazer.
Não somente a mão, mas o corpo inteiro toca
a matéria inerte transformando-a em poços de
sentidos. Toque vital: forma que parece ter sido
formada por si mesma espelhando e projetando
concomitantemente a visão de muitos emoldurando
um corpo de valores em formação. Ainda
assim a forma conquistada será sempre o fruto
de um ato único.
(DERDYK, Edith Linhas de horizonte: por uma
poética do ato criador,2001, pg. 33.)
O sentir da linha
Fio faz formas, figuras do inconsciente
Como a linha da pipa, que hora afrouxa, hora estica, levando
um ser flutuante para diversas direções, mas sempre conduzido,
ligado à vontade, e a qualidade do vento.
É a imagem de um condensado de matéria,
Delimitado em largura, e comprimento, podendo ser esse
infinito se assim quiser.
Um caminho,
um rastro,
um vazio, ou um cheio.
Conformação
de uma energia
de um movimento
da mão, do braço
do corpo que escolhe criar o registro dessa passagem
A linha que forma a forma.
A linha de um rio
O rastro de um caminho
De ida ou volta
De um corpo que desenha
Sua passagem pelo mundo
Pelas superfícies
Sobre a linha
a risco
a dizer.
A linha é uma divisória incerta. Mede e potencializa
a sutileza do limite, prevê um ponto de partida e
um ponto de chegada que as vezes pode nunca mais
chegar. E quando isso acontece a linha se estende
infinitamente, a não ser que apareça algum obstáculo.
A linha ocupa um espaço entre. A linha não
é pertinente. Desvenda a relação dos objetos sem
ser totalmente algum deles. A linha do horizonte a
quem pertence: ao céu, ao mar à terra? Cadê a linha
de encontro entre as coisas do mundo? A linha é
fruto abstrato deste encontro concreto.”
(DERDYK, Edith. Linhas de costura. 1997. )
Desde casa a linha me presente,
Tive oportunidade de ter material para me expressar livremente,
nos desenhos arquitetônicos, retilíneos, nas costuras, crochês
e tricôs que as mulheres dominavam, o cipó que desce e racha
o concreto, os caminhos dos rios, as linhas de horizontes.
Vareio
De linhas precisa, decididas,
às indecisas, de vai e vem,
as que se reforçam, que desaparecem.
Investigo e experimento a linha enquanto rastro no papel,
enquanto o risco, sulco no metal, enquanto vazio rasgo em argila,
como cicatriz de objeto, de corpo, sobre a linha quando fio, como
condensado de matéria, observo ainda a linha quando agrupadas,
dispostas paralelamente ou longitudinalmente criando massas,
criando corpos, conexões, entre o ser que as propõem, e os seres que
a recebem.
A dimensão do risco pertence ao vocabulário do
deslocamento. Materializado numa linha capaz de,
simultaneamente, perfazer uma medida e mover-se
no espaço como um sopro livre, o risco torna-se um
instrumento da “passagem”, situado entre a contenção
e a expansão.
(LAGNADO, Lisette – entre o desenho e a escultura.
Pag.4.)
Apreendo a linha em seu sentido de elemento básico da comunicação
visual, que não é o único elemento, mas sim o principal,
outras questões como textura, cor, forma dimensão, ponto, se
desenrolam a partir dela.
Gravava com ponta seca e observava com encantamento a
beleza daquilo que criava quando riscava, o brilho daquela pequena
e fina linha aberta na carne do metal.
A linha é contorno, é carne, é ossatura. Qual é o corpo
da linha? A linha empresta o contorno ao mundo,
caminha pela superfície das coisas. Sismógrafo
neuromotor, remarcando os territórios. A linha
sugere proximidade e afastamento, tônus afetivo.
Unidade dupla: portadora do sensível e do mental.
A linha positivisa a ausência, é sempre afirmativa.”
(DERDYK, Edith. Linhas de costura. 1997.)
A ausência da matéria significava a presença da linha na matriz.
criavam texturas, e sentia aquelas estruturas de linhas sobrepostas,
quase como as de um veludo.
Sentir o veludo no olho.
É possível que uma textura não possua qualidade
táteis, mas apenas óticas, como nos casos das linhas
de uma página impressa, dos padrões de um
determinado tecido ou dos traços superpostos de
um esboço. Onde há uma textura real, as qualidades
táteis e óticas coexistem, [...] de uma forma única e
especifica, que permite a mão e ao olho uma sensação
individual, ainda que projetemos sobre ambos
um forte significado associativo. [...].
(Donis A. Dondis. Sintaxe da linguagem visual.
Pag.70.)
A visão, que parece pensar ser dona do sentir,
para mim, vidente,
rapidamente lança sua mensagem,
uma resposta.
Era tudo que precisava, mas só que...
toco,
porque a mão não se aquieta.
“vê com os dedos”.
O gesto do riscar se repete na argila, retirava massa para criar valas,
Vazava barro pro barro vazar.
O fio que amarra o vazo
Conecta o cheio e o vazio
De um corpo no mundo.
Linha é caos,
Linha é desordem,
Linha é riso
Cecilia Vicuña, artista chilena fia sua história.
Certa vez seu corpo caminhou com linhas enroladas aos dedos,
penas nas ponta, aprontando para crianças, por volta de vinte,
separados em duas filas, meninos . meninas,
A observam atentos, estranham, de inicio rejeitam, mas as
mãos, os dedos, dançam, ao som do assopro chiado, dos diferentes
sons da escapada do ar pela boca, pelo dente, pela língua.
Una bruja!
Desconfigurando as filas, reconectando, cruzando os caminhos,
as linhas criam novas configurações.
E liberta o riso.
As crianças de Caleu no Chile, com o trabalho de Cecilia passaram
a ter ‘Una Mano Para Oir Pensamientos’ 7 .
Com o corpo, a linha, a palavra e o som
Cecilia entrelaça corpos,
Experiências e vivências,
Resgata tramas passadas,
Dessa mão que desenrola fio,
Resgata a educação como gesto,
Resgata o sonho.
Criando uma mão de ouvir pensamentos
Elas escutam o som do mundo,
Dentro e fora.
“Para romper el silencio, trago una mano,
La hebra del sueño.”
7 VICUÑA, Cecilia. - Manual - Registro del taller “Una Mano Para
Oír Pensamientos” (Caleu Está Soñando) Escuela Capilla de Caleu GN
349 Til Til, Chile Octubre - noviembre 1995.
A mão que escuta pensamentos é a mesma mão que cria,
É o gesto, o ato da criação.
A mão escuta um pensar em registrar pensares.
E as mãos ainda fazem um caderno de registrar pensares.
Para não perder esse tempo presente passado.
Escrever agora marca-se futuro.
Penso através de Cecilia Vicuña e das crianças de Caleu que,
Para acordar os que dormem, porém não sonham,
precisa-se de pelo menos um corpo desperto.
Que esse corpo alarde os que o cercam,
Que se estranhem.
Que esse corpo atravesse narrativas enrijecidas,
É preciso que esse corpo trame sonhos
ao redor dos que dormem.
Esses corpos precisam ser despertos,
De volta ao mundo dos sonhos.
O som desperta.
O som de um corpo que sonha
Sonhos que são pensamentos
Ouvidos pela mão,
Que já desperta
Conta seus próprios sonhos.
Escrever texto é tramar palavra.
Tramo planos, formas.
Enquanto tramo, tramo.
tempo que a partir de um gesto
que de instante possibilita
espaço para tramar,
ligar ideias, entrelaça-las,
materializa-las por um fio,
que é real e irreal.
O ponto começa
e dele, que parecia estar sempre ali
o fio desenha
envolve, conecta a experiência da mão no tempo, no espaço.
Fio que é fibra, é o resultado da energia criativa da natureza.
Onipotente como a natureza é, me agrada com sua presença, me
solta
me empresta gentilmente sua criação,
me empresta um pouco de mim mesma
para continuar o ciclo,
para gerar.
Ela freia, como quem diz: “ c a l m a ”
C om a l m a
quando o gesto me automatiza e me esvazia : c a l m a
quando a pressa me sujeita : c a l m a
quando nem a mão nem a mente me abrigam: c a l m a.
Mantra man t r a m a
Quando aprendo a ouvi-la,
me libero da culpa
Me desobrigo.
de gesto, de corpo, de fala
Possibilito-me
Expando.
Observo o tempo que a coisa precisa para ser
registro no tempo o que preciso para sentir.
Não me lembro onde começou,
mesmo sabendo
a trama é como um mapa
que mostra os caminhos já descobertos, percorridos
para conseguir voltar, se preciso.
Cartogra fios.
Desconcluo que:
1.
Uma linguagem não é suficiente para expressar as tantas formas
de um ser.
Ser múltipla
Superficial
Superfície que se expande,
que se estende,
que se aprofunda
superfícies do papel, da linha, do barro, do metal
da pele.
2.
Desconheço o que tem dentro,
O interior de mim é tão misterioso e incógnito como o universo,
como os oceanos.
Superfícies internas,
Camadas e mais camadas, físicas e biológicas, abstratas, reais, intangíveis,
espirituais e também sociais, sociáveis,
Máscaras, capas, mantos, véus.
3.
Sempre irei preferir dois voando
O vazio volta, a pele seca, perde o brilho.
Quando na primeira vez era confuso, era apavorante.
Hoje passo a vê-la com mais carinho. Acolho a dor, a dúvida.
Sei que me reencontrarei muito em breve com a velha,
estarei novamente no rio dentro do rio,
com a mulher que mais amo.
O que ela veio buscar? O que vai deixar?
Ela busca liberdade, plenitude, permanência.
Ela deixa um mapa, incompleto, e sempre estará.
Por mais que descubra caminhos, por mais que me encontre e me
perca, sempre terá mais espaço para escrever, desenhar.
Um mapa de idas e vindas da alma.
Estarei sempre aberta a encontros,
O corpo é a camada mais profunda da alma.
Dividir corpo é multiplicar camadas.
4.
Gostaria de ter dito como elas disseram.
Como pode a palavra do outro ressoar tanto no dentro?
Os corpos misturados
Diferentes e ainda parecidos,
Famílias espirituais
Rios que correm seus cursos, e que hora ou outra se encontram
com o nosso.
E se misturam, tornam-se um.
Confunde ou esclarece,
Fica um pouco ou muito de cada um que passa por esses encontros
5.
Repara um rio visto do alto,
rastros de um caminho que não é mais caminho,
Por onde passou quando estava cheio.
Diminuindo o fluxo, ele se recolhe, corre manso, ocupa o menor caminho
possível para se salvar, para que chegue até ao mar,
Talvez antes desague noutro rio, mais generoso, pra se tornar força
maior.
Rio é corpo de muita água.
E o maior corpo é a mar.
6.
Poemaginar
Atravesso um rio pela margem.
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acessado em 04/10/18