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LE GOFF, Jacques. O nascimento do Purgatório

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NOVA HISTÓRIA

Jacques Le Goff

O NASCIMENTO ,

DO PURGATORIO


Jacques Le Goff

o NASCIMENTO ,

DO PURGATORIO

2~ edição

1995

EDITORIAL ESTAMPA



o Purgatório,

que grande coisa!'

SANTA CATARINA DE GÉNOVA

o Purgatório ultrapassa em poesia

o céu e o inferno, porquanto representa

um futuro que falta aos dois primeiros.

CHATEAUBRIAND

FICHA TÉCNICA:

Título do original: La Naissance du Purgatoire

Tradução: Maria Fernanda Gonçalves de Azevedo

Capa: José Antunes

Ilustração: A Ascensão para o Paraíso Celestial (pormenor),

de Hieronymus Bosch, Veneza, Palazzo DucaJe.

l~ edição: Editorial Estampa, 1993

Composição: Interouro, Lda,

Impressão e acabamento: Rolo & Filhos - Artes Gráficas, Lda.

Depósito legal n? 64058/93

ISBN 972-33-0884-3

Copyright: © Editions Gallimard, 1981

© Editorial Estampa, Lda., Lisboa,

para a língua portuguesa



ÍNDICE

o terceiro lugar............................................................................ 15

O Purgatório e o que ele põe em jogo..................................... 15

Antes do Purgatório 16

O espaço - é bom pensar nele................................................. 18

Lógica e génese do Purgatório 18

Pensar o intermédio................................................................ 20

As imagens penais: o fogo 21

Solidariedades: os vivos e os mortos 25

O processo do Purgatório............ 26

Teologia e cultura popular...................................... 27

Notas 29

PARTE I

O ALÉM ANTES DO PURGATÓRIO

I - Os imaginários antigos 35

As três vias hindus.................................................................. 36

No Irão: o fogo e a ponte.. 37

No Egipto: o imaginário infernal........ 37

A descida aos infernos na Grécia e em Roma......... 38

Uma filosofia da reencarnação: Platão.................................... 39

Um precursor: Eneias nos Infernos 41

Gilgamesh nos infernos........................................................... 43

Um além neutro e tenebroso: o shéo/ judaico.. 43

As visões apocalípticas judaico-cristãs..................................... 48

Uma fonte: o Apocalipse de Paulo................... 54

Os judeus descobrem um além intermédio............................... 57

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o Purgatório cristão estará contido em embrião na Sagrada

Escritura? .

A descida do Cristo aos Infernos .

Orações pelos mortos .

Um lugar de consolo: o «refrigerium» .

A primeira imaginação de um Purgatório: a visão de Perpétua

Notas .

11 - Os pais do Purgatório .

Em -:'.l~xa~dria: d?is gregos «fundadores» do Purgatório .

O cnsnamsmo latino: desenvolvimentos e indecisões do além.

O verdadeiro pai do Purgatório: Agostinho .

A morte de Mónica: orai por ela .

Depois de 413: duras penas purgatórias entre a morte e o Julgamento

para aqueles que não são inteiramente bons .

Agostinho e os espectros .

O fogo purgatório e a escatologia de Agostinho .

Um falso pai do Purgatório: Cesário de Arles .

Hist?~as do .Purgatório neste mundo: Gregório, o Grande,

último paI do Purgatório .

Notas ......................................................

111 - A.1It~ ~dade Média. Estagnacão doutrinária e empolamento

VlSlonarlO .

O além agostiniano de três espanhóis .

Outros Na Irlanda 'além' «bárbaros» .

.........................................................................

.

Na Gália .

Na Germânia .

Na Grã-Bretanha .

Indiferença e tradicionalismo carolíngios e pós-carolíngios ..

O além e a heresia .

A série visionária: as viagens pelo além .

Heranças .

O «fundador» das visões medievais do além: Bêde .

A visão de Drythelm: um lugar reservado à purgação .

Um sonho barroco e delirante com o além: a visão de Wetti ..

Politização do além: a visão de Carlos, o Gordo .

A liturgia: perto e longe do Purgatório .

A celebração dos mortos: Cluny .

Notas .....................................................................................

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PARTE 11

O SÉCULO XII: O NASCIMENTO

DO PURGATÓRIO

O século da grande explosão .

Notas .

IV - O fogo purgatório .

No início do século XII: aquisições e indecisões .

Um testemunho das hesitações: Honorius Augustodunensis .

O fogo: no meio monástico .

Entre os teólogos urbanos .

Na literatura vernácula .

Quatro grandes teólogos e o fogo: esboço de um tratado dos

tempos derradeiros .

Um cónego parisiense: Hugo de Saint-Victor .

Um cisterciense: S. Bernardo .

Um monge canonista: Graciano de Bolonha .

Um mestre secular parisiense: o bispo Pedro Lombardo .

Testemunhos menores ····· ·..·· ··

Elaborações parisienses .

Notas .

V - «Locus Purgatorius»: um lugar para a purgapão .

Entre 1170 e 1180: autores e datas .

Um falsário do Purgatório .

Os primeiros a passarem pelo Purgatório: S. Bernardo .

Os primeiros teólogos do Purgatório: Pedro, o Chantre, e

Simão de Tournai .

A Primavera parisiense e o Verão cisterciense .

O Purgatório e a luta contra a heresia .

O atraso dos canonistas .

Cerca de 1200: o Purgatório instala-se .

Uma carta e um sermão de Inocêncio Ill .

Purgatório e confissão: Thomas de Chobham .

O antigo e o novo vocabulário do além .

Notas .

VI - O Purgatório entre a Sicília e a Irlanda .

Visões monásticas: as aparições .

Quatro viagens monásticas ao outro mundo .

1. Uma mulher no além: a mãe de Guibert de Nogent .

2. No Monte Cassino: Alberico de Settefrati .

3. Na Irlanda: o além sem purgatório de Tnugdal .

4. Uma descoberta na Irlanda: o «Purgatório de S. Patrick»

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A tentativa siciliana .

A «infernização» do Purgatório e os seus limites .

Notas .

VII - A lógica do Purgatório .

O além e os progressos da justiça .

Novas concepções do pecado e da penitência .

Uma matéria para o Purgatório: os pecados veniais .

De duas (ou quatro) para três: três categorias de pecadores .

Esquema lógico e realidades sociais: um intermédio descentrado

.

Mutações nos quadros mentais: o número .

O espaço e o tempo .

A rendição ao mundo e ao momento da morte individual.. .

Notas .

PARTE III

O TRIUNFO DO PURGATÓRIO

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IX - O triunfo social: a pastoral e o Purgatório .

O tempo contado .

Novas viagens pelo além .

O Purgatório celebrado: os «exempla» .

Um precursor: Jacques de Vitry .

Dois grandes divulgadores do Purgatório .

1. O cisterciense Cesário de Heisterbach .

O usurário de Liêge: Purgatório e capitalismo .

O Purgatório é a esperança .

2. O dominicano Étienne de Bourbon e a «infernizapâo» do

Purgatório .

Dominicanos no Purgatório .

O Purgatório e as beguinas .

O Purgatório e a política .

O Purgatório na «lenda dourada» .

Uma santa do Purgatório: Lutgarda .

Os vivos e os mortos: testamentos e obituários .

O Purgatório em língua vulgar: o caso francês , .

As indulgências para o Purgatório: o Jubileu de 1300 .

A persistente hostilidade ao Purgatório .

Notas .

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VIII - O ordenamento escolástico .

Um triunfo atenuado ; .

O Purgatório, continuação da penitência terrena: Guillaume

d'Auvergne .

O Purgatório e os mestres mendicantes .

Entre os franciscanos .

1. Do comentário de Pedro Lombardo a uma ciência do além:

Alexandre de Hales. .

2B. oaventura e os fi' tns u'I' ttmos ao do bomem .

Entre os dominicanos .

1. A depurapão escolástica do Purgatório: Alberto, o Grande.

2. Um manual de vulgarização teológica .

3. O Purgatório no centro da intelectualidade: Tomás de

Aquino e o regresso do homem a Deus .

A recusa do Purgatório .

1. Os hereges .

2. Os Gregos .

A primeira definição pontifical do Purgatório (1254) .

O segundo concílio de Lyon e o Purgatório (1274) .

O Purgatório e as mentalidades: Oriente e Ocidente .

Notas .

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X - O triunfo poético: a «Divina Comédia» .

O sistema dantesco do Purgatório .

A montanha da purgação .

A lei do progresso .

O Purgatório e os pecados .

O antepurgatório .

O fogo .

Purgatório e Inferno: o arrependimento .

A esperança .

A ajuda dos vivos .

O tempo do Purgatório .

A caminho da luz .

Notas .

A razão do Purgatório .

Notas .

Apêndice I: Bibliografia do Purgatório .

Apêndice lI: «Purgatorium»: história de uma palavra .

Apêndice III: As primeiras imagens .

Apêndice IV: Trabalhos recentes .

Agradecimentos .

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o TERCEIRO

LUGAR

Nas acesas discussões entre protestantes e católicos do século XVI, os

primeiros reprovam vivamente aos seus adversários a crença no Purgatório,

a que Lutero chamava «o terceiro lugar»l. Esse além «inventado» não

estava nas Escrituras.

Proponho-me seguir a formação desse terceiro lugar desde a antiga fé

judaico-cristã, dar a conhecer o seu aparecimento no momento da explosão

do Ocidente medieval na segunda metade do século XII e o seu rápido

sucesso no decurso do século seguinte. Tentarei por fim explicar por que

razão ele está intimamente ligado a esse grande momento da história da

cristandade e como contribuiu de maneira decisiva para ser aceite - ou,

entre os hereges, recusado - no seio da nova sociedade saída do desenvolvimento

prodigioso dos dois séculos e meio que se seguiram ao ano

mil.

o Purgatório e o que ele põe em jogo

É raro poder seguir-se o desenvolvimento histórico de uma crença

mesmo se - e é o caso do Purgatório - ela inclui elementos emanados

dessa noite dos tempos onde a maioria das crenças parece ter a sua fonte.

E no entanto, não se trata de um apêndice secundário, de um acrescento

menor ao edificio primitivo da religião cristã, tal como evoluiu até à

Idade Média e depois sob a sua forma católica. O além é um dos grandes

horizontes das religiões e das sociedades. A vida do crente transforma-se

quando ele pensa que nem tudo fica perdido com a morte.

Esta emergência, esta construção secular da crença no Purgatório supõe

e provoca uma modificação substancial das perspectivas do espaço-

-tempo do imaginário cristão. Ora essas estruturas mentais do espaço e do

tempo são o esqueleto da maneira de pensar e de viver de uma sociedade.

Quando essa sociedade está totalmente impregnada de religião, como a

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cristandade da longa Idade Média que se prolongou da Antiguidade tardia

até à revolução industrial, mudar a geografia do além, do universo

portanto, modificar o tempo do após vida, portanto a ligação entre o

tempo terrestre, histórico e o tempo escatológico, o tempo de existência

e o tempo de espera, significa operar uma revolução mental lenta mas

essencial. À letra, é mudar a vida.

É evidente que o aparecimento de uma tal crença está ligado a alterações

profundas da sociedade em que se produz. Que relações mantém este

novo imaginário do além com as mudanças sociais, quais as suas funções

ideológicas? O controlo estrito que a Igreja exerce sobre ele, chegando

mesmo a uma partilha do poder sobre o além entre ela e Deus, prova

que o que estava em jogo era importante. Porque não deixar os mortos

vaguear ou dormir?

Antes do Purgatório

Foi como «terceiro lugar» que o Purgatório se impôs.

Das religiões e das civilizações anteriores, o cristianismo herdara uma

geografia do além; entre as concepções de um mundo dos mortos uniforme

- tal o shéo/ judaico - e as noções de um outro universo depois da

morte, um assustador e o outro venturoso, como o Hades e os Campos

Elísios dos Romanos, ele escolhera o modelo dualísta. Reforçara-o mesmo

singularmente. Em vez de relegar para debaixo da terra os dois espaços

dos mortos, o mau e o bom, durante o período que se estenderia desde

a Criação ao JuÍZo Final, ele situara no Céu, desde a entrada na morte, o

descanso dos justos - pelo menos dos melhores, entre eles, os mártires, e a

seguir os santos. Localizara mesmo na superficie da terra o Paraíso terrestre,

dando assim, até à consumação dos séculos, um espaço a essa terra

da Idade de Ouro à qual os Antigos apenas tinham concedido um tempo,

horizonte nostálgico da sua memória. Lá o vemos nos mapas medievais,

no Extremo Oriente, para lá da grande muralha e dos povos inquietantes

de Gog e Magog, com o seu rio de quatro braços criado por Yahvé «para

regar o jardim» (Génesis lI, 10). E sobretudo a oposição Inferno-Paraíso

foi levada ao cúmulo, baseada no antagonismo Terra-Céu. Embora subterrâneo,

o Inferno era a Terra e o mundo infernal opunha-se ao mundo

celestial como o mundo ctónico se opusera, entre os Gregos, ao mundo

astral. Apesar das belas aspirações ao Céu, os Antigos - Babilónios e

Egípcios, Judeus e Gregos, Romanos e Bárbaros pagãos - haviam temido

as profundezas da terra mais do que ansiado pelos infinitos celestes,

aliás muitas vezes habitados por deuses coléricos. O cristianismo, pelo

menos durante os primeiros séculos e a barbarização medieval, não chegou

a limitar ao Inferno a sua visão do além. Elevou a sociedade em

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direcção ao Céu. O próprio Jesus dera o exemplo: depois de ter descido

aos Infernos subira ao Céu. No sistema de orientação do espaço simbólico,

lá onde a Antiguidade greco-romana dera um lugar proeminente à

oposição direita-esquerda, o cristianismo, mesmo conservando um valor

importante a esse par antinómico presente, aliás, no Antigo e no Novo

Testamento/, privilegiara desde muito cedo o sistema alto-baixo. Na Idade

Média, este sistema irá orientar, através da «espacialização: do pensamento,

a dialéctica essencial dos valores cristãos.

Subir, elevar-se, ir mais alto, eis o aguilhão da vida espiritual e moral,

enquanto a norma social é ficar no seu lugar, lá onde Deus nos pôs na

terra, sem ambicionar escapar à nossa condição, tendo o cuidado de não

nos diminuirmos, de não descermos:'.

Quando, entre o segundo e o quarto séculos, o cristianismo, menos

fascinado pelos horizontes escatológicos, se pôs a reflectir na situação

das almas entre a morte individual e o Julgamento Final e quando os

cristãos pensaram - é, com os cambiantes que se verão, a opinião dos

grandes Padres da Igreja do século IV, Ambrósio, Jerónimo e Agostinho

- que as almas de certos pecadores poderiam talvez ser salvas durante esse

período, sofrendo provavelmente uma provação, a crença que assim surgia

e faria aparecer o Purgatório no século XII não conseguiu localizar

com precisão essa situação e essa provação. Na Idade Média este sistema

irá orientar, através da «espacialização» do pensamento, a dialéctica essencial

dos valores cristãos.

Até ao fim do século XII, a palavra purgatorium não existe como substantivo.

O Purgatório não existe".

É extraordinário que o aparecimento da palavra purgatorium que exprime

a tomada de consciência do Purgatório como lugar, o acto do

nascimento do purgatório, para falar com propriedade, tenha sido negligenciado

pelos historiadores, e primeiro pelos historiadores da teologia e

da espiritualidade". Sem dúvida, os historiadores não dão ainda a importância

suficiente às palavras. Fossem realistas ou nominalistas, os clérigos

da Idade Média sabiam bem que entre as palavras e as coisas existe uma

união tão estreita como entre o corpo e a alma. Para os historiadores das

ideias e das mentalidades, as palavras - certas palavras -, fenómenos a

longo prazo vindos lentamente das profundezas, têm a vantagem de aparecer,

de nascer e de trazer assim elementos cronológicos sem os quais não

há verdadeira história. É verdade que não se data uma crença como um

acontecimento, mas devemos afastar a ideia de que a história a longo

prazo é uma história sem datas. Um fenómeno lento como a crença no

Purgatório' estagna, palpita durante séculos, repousa nos ângulos mortos

da corrente da história e depois, repentinamente ou quase, é arrastado na

massa da onda não .para nela se perder mas, ao contrário, para emergir e

para dar testemunho. Quem fala do purgatório - nem que seja erudi.a-

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mente - desde o Império Romano até à cristandade do século XIII, de

Santo Agostinho a S. Tomás de Aquino, e assim situa o aparecimento

do substantivo entre 1150 e 1200, deixa escapar aspectos capitais dessa

história, se não o essencial. Deixa escapar, ao mesmo tempo que a possibilidade

de esclarecer uma época decisiva e uma profunda mutação da

sociedade, a oportunidade para descobrir, a propósito da crença no Pur-.

gatório, um fenómeno de grande importância na história das ideias e das

mentalidades: o processo de espacializacâo do pensamento.

o espaço - é bom pensar nele

Numerosos estudos acabam de mostrar no campo científico a importância

da noção de espaço. Ela rejuvenesce a tradição da história geográfica,

renova a geografia e o urbanismo. É sobretudo no plano simbólico

que ela manifesta a sua eficácia, A seguir aos zoólogos, os antropólogos

sublinharam o carácter fundamental do fenómeno de terrttôrio". Em La

Dimension cachée', Edward T. HaU demonstrou que o território é um

prolongamento do organismo animal e humano, que essa percepção do

espaço depende muito da cultura (talvez ele seja demasiado culturalista

sobre este ponto) e que o território é uma interiorização do espaço organizada

pelo pensamento. Existe nele uma dimensão fundamental dos indivíduos

e das sociedades. A organização dos diferentes espaços:

geográfico, económico, político, ideológico, etc., onde se movem as sociedades,

é um aspecto muito importante da sua história. Organizar o espaço

do seu além foi uma operação de grande alcance para a sociedade

cristã. Quando se aguarda a ressurreição dos mortos, a geografia do outro

mundo não é uma questão secundária. E pode esperar-se que exista

uma relação entre a maneira como essa sociedade organiza o seu espaço

aqui em baixo e o seu espaço no além, pois os dois espaços estão ligados

através das relações que unem a sociedade dos mortos e a sociedade dos

vivos. Entre 1150 e 1300, a cristandade entrega-se a uma grande remodelação

cartográfica, sobre a terra e no além: Para uma sociedade cristã

como a do Ocidente medieval, as coisas vivem e movem-se ao mesmo

tempo - ou quase - sobre a terra como no céu, aqui em baixo como no

além.

Lógica

e génese do Purgatório

Quando o Purgatório se instala na crença da cristandade ocidental,

entre 1150 e 1250, mais ou menos, de que se trata? É um além intermédio

onde certos mortos passam por uma provação que pode ser abreviada

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pe~ossu~rágios - a ajuda espiritual - dos vivos. Para se ter chegado aqui

f01 preciso um longo passado de ideias e de imagens, de crenças e de

actos, de debates teológicos e, provavelmente, de movimentos no interior

da sociedade, que dificilmente apreendemos.

A primeira parte deste livro será consagrada à formação secular dos

elementos que no século XII se estruturarão para se transformarem no

Purgatório. Podemos considerá-Ia uma reflexão sobre a originalidade

do pensamento religioso da cristandade latina, a partir das heranças,

das rupturas, dos conflitos externos e internos em cujo seio ele se formou.

A crença no Purgatório implica antes de mais a crença na imortalidade

e na ressurreição, em que algo de novo para u~ ser humano pode

acontecer entre a sua morte e a sua ressurreição. E um suplemento de

condições oferecidas a certos homens para que alcancem a vida eterna.

Uma imortalidade que se atinge através de uma única vida. As religiões -

como o hinduísmo ou o «catarismo» - que acreditam em reencarnações

sucessivas, na metempsicose, excluem portanto o Purgatório.

A existência de um Purgatório baseia-se também na concepção de um

julgamento dos mortos, ideia esta bastante difundida nos vários sistemas

religiosos, mas «as modalidades deste julgamento variavam muito de uma

civilização para outras". A variedade de julgamento que compreende a

existência de um Purgatório é muito original. Apoia-se, com efeito, na

crença de um julgamento duplo, o primeiro no momento da morte e o

segundo no fim dos tempos. Institui nesse intervalo do destino catológico

de cada ser humano um processo judicial complexo de mitigacão das

penas, de encurtamento dessas penas em função de factores diversos.

Supõe, pois, a projecção de um pensamento de justiça e de um sistema

penal muito sofisticados.

Está também ligada à ideia de responsabilidade individual, de livre

arbítrio do homem, culpado por natureza por causa do pecado original,

mas julgado segundo os pecados cometidos sob a sua responsabilidade.

Há uma estreita ligação entre o Purgatório, além intermédio, e um

tipo' de pecado intermédio entre a pureza dos santos e dos justos e a

imperdoável culpabilidade dos pecadores criminosos. A ideia durante

muito tempo vaga de pecados «ligeiros», «quotidianos», «habituais»,

bem captada por Agostinho e depois por Gregório, o Grande, só a longo

prazo conduzirá à categoria de pecado «venial» - quer dizer, perdoável-,

que precedeu de perto o crescimento do Purgatório e foi uma das condições

do seu aparecimento. Mesmo se as coisas foram um pouco mais

complicadas, como veremos, no essencial o Purgatório surgiu como o

lugar de purgação dos pecados veniais.

Crer no Purgatório - lugar de punição - supõe esclarecidas as relações

entre a alma e o corpo. Com efeito, desde muito cedo a doutrina da Igreja

disse que, no momento da morte, a alma imortal deixa o corpo e os dois

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só voltam a encontrar-se no fim dos tempos, quando da ressurreição dos

corpos. Mas a questão da corporalidade ou da incorporalidade da alma

não me parece ter constituído problema a propósito do Purgatório ou dos

seus começos. As almas separadas foram dotadas de uma materialidade

sui generis e as penas do Purgatório puderam assim atormentá-Ias como

que corporalmente",

Pensar o intermédio

Lugar intermédio, o Purgatório é-o em muitos aspectos. No tempo, no

intervalo entre a morte individual e o Julgamento Final. O Purgatório

não se fixará neste espaço temporal especial sem longas hesitações. Apesar

do papel decisivo que foi o seu neste contexto, Santo Agostinho não

amarrará definitivamente o futuro Purgatório a esta fresta do tempo. O

Purgatório oscilará entre o tempo terrestre e o tempo escatológico, entre

um começo de Purgatório aqui em baixo, que seria então preciso definir

em relação à penitência, e uma espera pela purificação definitiva, a qual

se situaria apenas no momento do Julgamento final. Encurtaria então o

tempo escatológico e o Dia do Julgamento passaria a ser não um momento

mas um espaço de tempo.

O Purgatório é também um intervalo propriamente espacial que se

insinua e se amplia entre o Paraíso e o Inferno. Mas a atracção dos dois

pólos actuou longamente também sobre ele. Para existir, o Purgatório

deverá substituir os pré-paraísos do refrigerium, lugar de refrigério imaginado

nos primeiros tempos do cristianismo, e do seio de Abraão, representado

pela história de Lázaro e do mau rico no Novo Testamento

(Lucas, XVI, 19-26). Deverá sobretudo destacar-se do Inferno do qual

será por muito tempo um departamento pouco diferenciado, o martírio

máximo. Neste conflito entre Paraíso e Inferno, adivinha-se que a aposta

do Purgatório não foi pequena para os cristãos. Antes de Dante dar à

geografia dos três reinos do além a sua mais alta expressão, a preparação

do Novo Mundo do além foi longa e dificil. Finalmente, o Purgatório não

será um verdadeiro, um perfeito ponto intermédio. Reservado para a

purificação completa dos futuros eleitos, inclinar-se-á para o Paraíso.

Ponto intermédio deslocado, não se situará no centro mas num intervalo,

exilado para o alto. Entra assim nesses sistemas de equilíbrio descentrado

tão característicos da mentalidade feudal: desigualdade na

igualdade, que se encontra nos modelos contemporâneos da vassalagem

e do casamento em que, num universo de iguais, o vassalo está mesmo

assim submetido ao senhor, a mulher ao marido. Falsa equidistância do

Purgatório entre um Inferno a que se escapou e um Céu a que já se está

amarrado. Falso ponto intermédio, enfim, porque o Purgatório, transitó-

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rio, efémero não tem a eternidade do Inferno ou do Paraíso. E, no entanto,

difere do tempo e do espaço de «cá de baixo», obedecendo a outras

regras que fazem dele um dos elementos desse imaginário a que na Idade

Média se chamava «maravilhoso».

O essencial está talvez na ordem da lógica. Para que o Purgatório

nasça é necessário que a noção de ponto intermédio ganhe consistência,

que os homens da Idade Média passem a gostar de pensar nele. O Purgatório

faz parte de um sistema, o dos lugares do além, e não tem existência

nem significado senão em relação a esses outros lugares. Peço ao

leitor que não o esqueça; mas como o Purgatório, entre os três lugares

principais do além, foi o que levou mais tempo a definir-se, e como o seu

papel foi o que pôs mais problemas, pareceu-me possível e desejável tratar

o Purgatório sem entrar no pormenor das coisas do Inferno e do

Paraíso.

Estrutura lógica, matemática, o conceito de ponto intermédio está

ligado a mutações profundas das realidades sociais e mentais da Idade

Média. Não deixar mais sozinhos cara a cara os poderosos e os pobres,

os religiosos e os laicos, mas antes procurar uma categoria mediana, classes

médias ou ordem terceira, é tudo a mesma tentativa e reporta-se a

uma sociedade transformada. Passar de esquemas binários para esquemas

ternários é dar aquele passo na organização do pensamento da sociedade,

cuja importância Claude Lévi-Strauss sublinhou'".

As imagens penais: o fogo

Ao contrário do shéo/ judaico - inquietante, triste, mas desprovido de

castigos - o Purgatório é um lugar onde os mortos sofrem uma (ou algumas)

provação(ões). Estas provações, como se verá, podem ser múltiplas

e assemelhar-se às sofridas pelos condenados, no Inferno. Mas duas delas

aparecem mais frequentemente, o ardente e o gelado; e uma delas, a do

fogo, desempenhou um papel de primeiro plano na história do Purgatório.

Antropólogos, folcloristas, historiadores das religiões conhecem bem

o fogo como símbolo sagrado. No Purgatório medieval e nos esboços que

o precederam, o fogo surge sob quase todas as formas apontadas pelos

especialistas da antropologia religiosa: círculos de fogo, lagos e mares de

fogo, anéis de chamas, muralhas e fossos de fogo, fauces de monstros

lançando chamas, carvões ígneos, almas com forma de labaredas, rios,

vales, e montanhas de fogo.

O que é, então, este fogo sagrado? «Nos rituais de iniciação», diz G.

Van der Leeuw, «é o fogo que apaga o periodo da existência já vivida e

que torna possível uma outra» 11. Ritual de mudança, pois, bem colocado

21



neste lugar transitório. O Purgatório faz parte daqueles rituais de margem,

como lhes chamava Van Gennep, cuja importância escapou por

vezes aos antropólogos demasiado ocupados com as fases de separação

e de agregação que abrem e fecham os rituais de transição.

Mas o significado desse fogo é ainda mais rico. Carl-Martin Edsman

bem mostrou, com contos, lendas e espectáculos populares das épocas

medievais e modernas, a presença de fogos regeneradores idênticos aos

que na Antiguidade se encontram entre os Romanos, os Gregos, e ainda

entre os Iranianos e os Indianos onde esta concepção de um fogo divino -

Ignis divinus - parece ter tido origem'f, Assim, o Purgatório manifestar-

-se-ia nesse ressurgimento da base indo-europeia da qual a cristandade dos

séculos XI a XIII parece ter sido o palco. O aparecimento (ou o reaparecimento?)

do esquema trifuncional recentemente assinalado por Georges

Duby e por outros investigadores é contemporâneo do nosso fenómeno.

Fogo do forno, fogo da forja, fogo da pira. Deve colocar-se ao lado

destes o fogo do Purgatório do qual, aliás, a cultura popular também

se assenhoreou.

Este fogo é um fogo que rejuvenesce e imortaliza. A lenda da Fénix é a

sua mais célebre encarnação que o cristianismo medieval retomou desde

Tertuliano. A Fénix torna-se o símbolo da humanidade chamada para a

ressurreição. Um texto erradamente atribuído a Santo Ambrósio aplica,

aliás, a essa lenda a frase de S. Paulo «o fogo porá à prova a obra de cada

um» (Coríntios, IH, 13) que é a base principal das Escrituras onde se

apoiou todo o cristianismo medieval para construir o Purgatório.

A luz desta herança ficam esclarecidas, parece-me, três características

importantes do fogo expurgador que teve um papel primordial na construção

do Purgatório na Idade Média.

A primeira é que o fogo que rejuvenesce e torna imortal é um fogo

«através do qual se passa». São Paulo interpretou bem este ritual quando,

na mesma passagem famosa da primeira epístola aos Corintios (IH, 15),

disse: «Ele será salvo mas através do fogo» (quasi per ignem). O Purgatório

é bem um lugar (ou um estado) transitório e as viagens imaginárias

dentro dele serão, repito-o, percursos simbólicos. Esta passagem pelo

fogo será tanto mais valorizada pelos homens da Idade Média quanto

o modelo do Purgatório se desenvolverá como um modelo judicial. A

prova do fogo é um ordálio. É-o para as almas do Purgatório e para os

vivos a quem foi permitido percorrer o Purgatório, não como simples

turistas mas com todos os riscos e perigos. Vê-se bem como este ritual

pôde seduzir homens que às tradições vindas de uma antiguidade longínqua,

passando pela Grécia e por Roma, herdeiras do fogo indo-europeu,

juntaram a herança das crenças e das práticas bárbaras.

Compreende-se também porque, nas tentativas de localização do Purgatório

na terra, ou pelo menos dos seus acessos, um elemento geográfico

22

natural atraiu especialmente a atenção: os vulcões. Tinham estes a vantagem

de r~unir, como montanhas providas de crateras, quer dizer de poços

que cuspiam fogo, três elementos essenciais da estrutura fisica e simbólica

do Purgatório. Veremos como os homens que procuravam uma cartografia

do Purgatório andaram à volta da Sicília, entre o Stromboli e o Etna.

Mas não houve na Sicília maneira de aproveitar esta oportunidade como

fizeram os Irlandeses, os seus vizinhos ingleses e' os Cistercienses com o

Purgatório de S. Patrick e a peregrinação bem organizada e controlada

que rapidamente passou a realizar-se. A Sicília de Frederico 11,entre um

soberano suspeito de heresia e monges gregos e muçulmanos, não pareceu

s~fi~ientemente «católica» para conter o Purgatório; ou um dos seus principais

acessos, o Etna, não conseguiu desembaraçar-se da sua imagem

propriamente infernal.

A segunda característica é que o fogo expurgatório medieval, mesmo

tendo ocupado um lugar proeminente e, por fim, exclusivo, fazia, no

entanto, parte de um par: o fogo e a água. Nos textos medievais que se

situam na pré-história da Idade Média, este par aparece a maioria das

ve.zessob a forma da justaposição de um lugar ígneo e de um lugar húrmdo,

de um lugar quente e de um lugar frio, de um elemento ardente e de

um elemento gelado. E a provação principal sofrida pelos mortos do

Purgatório não é a simples passagem pelo fogo, é a passagem alternada

pelo fogo e pela água, uma espécie de «duche escocês» probatório.

Carl-Martin Edsman recordou judiciosamente os textos da Antiguidade

romana clássica onde se vêem ascetas do Cáucaso que vivem nus tanto

nas chamas como no gelo. Cícero fala dos «sábios que vivem nus e suportam

sem dor as neves do Cáucaso e o rigor do Inverno e depois se

lançam no fogo e se deixam queimar sem queixumes»l3. Valere Maxime

evoca também «aqueles que passam toda a vida nus, ora exercitando os

corpos no !feIo rigoroso do Cáucaso, ora expondo-os às chamas sem

queixumes» 4.

O par fogo-água (fria) encontra-se num ritual evocado nos primeiros

tempos do cristianismo, e que deve ter desempenhado um certo papel na

pré-história do Purgatório: o baptismo pelo fogo. Para os cristãos este

ritual surge nos evangelhos de Mateus e de Lucas, a propósito de João-

-Baptista. Mateus atribui ao precursor estas palavras: «Por mim, baptizo-

-V?S ~om ~gua para que vos arrependais; mas aquele que vem a seguir a

m,l~ e mais forte do que eu, que nem sou digno de lhe descalçar as sandahas;

ele baptizar-vos-á no Espírito Santo e com o fogo» (Ma teus, 111,

11). Lucas (111, 16) põe o mesmo discurso na boca de João-Baptista.

Esta concepção do baptismo pelo fogo, oriunda das velhas mitologias

indo-europeias do fogo, concretizou-se na literatura apocalíptica judaico-

-cristã. Os primeiros teólogos cristãos, os gregos sobretudo, foram-lhe

sensíveis. Orígenes, comentando Lucas, 111,16, declara: «Deve-se bapti-

23



zar primeiro com água e pelo espírito para que, quando o baptizado

chegar ao rio de fogo, mostre que conservou os recipientes de água e

de espírito e que merece receber então também o baptismo de fogo em

Jesus Cristo» (in Lucam, homilia XXIV). Edsman reconhece na pérola

evocada por Mateus (XIII, 45-46: «O Reino dos Céus é semelhante a

um negociante em busca de pérolas finas; tendo encontrado uma de alto

preço, foi vender tudo o que possuía e comprou-a») o símbolo do Cristo

que reuniu a água e o fogo. No cristianismo «ortodoxo» o baptismo pelo

fogo foi metafórico. Mas o mesmo não aconteceu em certas seitas (baptistas,

messianistas, certos ascetas egípcios) e até entre os cátaros, a quem

um contraditor «ortodoxo» Ecbert reprovará ironicamente, no século

XII, não baptizarem verdadeiramente «no fogo» mas «ao lado» do fogo.

Nas mitologias e religiões antigas, o fogo tem uma natureza múltipla e

variada. É o que vemos no simbolismo judaico-cristão do fogo, e em

definitivo nas diferentes funções e significados do fogo do Purgatório.

Nestes diversos aspectos do fogo, «ao mesmo tempo deificado r e vivificador,

que castiga e destrói», Edsman vê «as diferentes faces do próprio

ser da divindade» e reconduz, pois, à unidade na pessoa divina a multiplicidade

dos rostos do fogo. Este modelo pode servir para explicar a

variedade das interpretações cristãs do fogo expurgatório, desde a Antiguidade

até ao século XIII. Pode ter-se a impressão de que não se fala do

mesmo fogo mas esta diversidade explica-se pela polissem ia do antigo

fogo divino. Ora aparece sobretudo como purificador, ora antes de tudo

como punitivo, ora ainda como probatório; parece por vezes actual e por

vezes futuro, a maioria das vezes real mas algumas vezes espiritual, interessa

a certos homens ou a toda a gente. Mas trata-se de facto sempre do

mesmo fogo, e o fogo do Purgatório, na sua complexidade, é o herdeiro

dos rostos múltiplos do fogo divino, do fogo sagrado das origens indo-

-europeias.

Agostinho parece ter captado a continuidade que, apesar das mudanças

de sentido fundamentais, liga ce.tas concepções antigas do fogo a

concepções cristãs: «Os estóicos, diz de em a Cidade de Deus (VIII, 5),

acreditavam que o fogo, quer dizer, um corpo, um dos quatro elementos

que compõem este mundo sensível, está vivo, é sábio e criador do próprio

mundo e de tudo o que ele contém; que, em resumo, esse fogo é Deus.»

De facto, no cristianismo, o fogo mais não é do que uma criatura, como

dirá magnificamente Francisco de Assis. Mas, segundo a fórmula exacta

de Edsman, «Toda a complexidade do fogo do além nas suas formas

gerais ou essenciais - por exemplo, o rio de fogo - explica-se como sendo

representativas das diversas funções de um mesmo fogo divino.» Isto

serve também para o fogo do Purgatório. Mas deste passado pleno de

sentido do fogo expurgatório, os homens da Idade Média não tinham

consciência; e nem as massas nem sequer os religiosos, com excepção

24

dos textos das Escrituras, tinham a garantia necessária e suficiente da

tradição sagrada. Pareceu-me, no entanto, necessário lançar alguma luz

sobre esta longa herança. Ela esclarece certos aspectos desconcertantes da

história medieval do Purgatório e permite que se compreenda melhor as

hesitações, os debates, as opções que se manifestaram nessa história, pois

uma herança propõe tanto quanto impõe. Sobretudo ela explica, parece-

-me, uma das razões do êxito do Purgatório - o facto de ter retomado

certas realidades simbólicas e muito antigas. Aquilo que se apoia numa

tradição tem mais probabilidades de êxito. O Purgatório é uma ideia nova

do cristianismo que tirou das religiões anteriores uma parte dos seus acessórios

principais. No sistema cristão, o fogo divino muda de sentido, e o

historiador tem, antes de mais, de ser sensível a essas transformações.

Mas a permanência de um certo material de longa duração sob a maior

ou menor rapidez das mudanças deve também prender a sua atenção.

As revoluções raramente são criações, são antes mudanças de sentido.

O cristianismo foi uma revolução ou o motor essencial de uma revolução.

Recolheu o fogo divino que rejuvenesce e imortaliza mas fez dele não

uma crença ligada a um ritual, mas um atributo de Deus, cujo uso é

determinado por uma dupla responsabilidade humana: a dos mortos

que devem, segundo o seu comportamento na terra, ser-lhe ou não submetidos;

a dos vivos, cujo maior ou menor zelo pode alterar-lhe a duração

de actividade. O fogo do Purgatório, continuando a ser um símbolo

portador de sentido, o da salvação pela purificação, tomou-se um instrumento

ao serviço de um sistema de justiça complexo, ligado a uma sociedade

completamente diferente daquelas que acreditavam no fogo

rcgenerador.

Solidariedades:

os vivos e os mortos

O Purgatório é pois um além intermédio ou a provação que se sofre,

talvez encurtada pelos sufrágios, as intervenções dos vivos. Foi, parece,

pela crença dos primeiros cristãos na eficácia das suas preces pelos mortos

- como testemunham as inscrições funerárias, as fórmulas litúrgicas, e

depois, no começo do século m, a Paixão de Perpétua, primeira das representações

espacializadas do futuro Purgatório - que começou um movimento

piedoso que deveria conduzir à criação do Purgatório. É

significativo o facto de Agostinho, nas Confissões, esboçar pela primeira

vez uma reflexão que o levará ao caminho do Purgatório, quando experimentou

determinados sentimentos após a morte de sua mãe Mónica.

Esta confiança dos cristãos na eficácia dos sufrágios só tardiamente se

uniu à crença na existência de uma purificação depois da morte. Joseph

Ntedika mostrou claramente que, em Agostinho por exemplo, as duas

25



crenças se formaram em separado, sem praticamente se encontrarem. Os

sufrágios pelos mortos supõem a formação de longas solidariedades de

um lado e de outro da morte, relações estreitas entre vivos e defuntos,

a existência, entre uns e outros, de instituições de ligação que pagam os

sufrágios - como os testamentos - ou fazem deles prática obrigatória -

como as confrarias. Também estes laços levaram tempo a estabelecer-se.

Que acréscimo de poder para os vivos, este domínio sobre a morte!

Mas também, aqui em baixo, que reforço da coerência das comunidades

- famílias carnais, famílias artificiais, religiosas ou confraternais - que

extensão, após a morte, de solidariedades eficazes! E para a Igreja, que

instrumento de poder! Ela afirma o seu direito (parcial) sobre as almas do

Purgatório como membros da Igreja militante, pondo à frente o foro

eclesiástico em detrimento do foro de Deus, o detentor da justiça no

além. Poder espiritual mas também muito simplesmente, como se verá,

lucro financeiro de que beneficiarão, mais do que os outros, os irmãos

das ordens mendicantes, propagandistas ardentes da nova crença. O

«infernal» sistema das indulgências encontrará nelas finalmente um alimento

revigorante.

o processo do Purgatório

26

Convido o leitor a abrir comigo o processo do Purgatório. Só este

gesto me parece susceptível de o convencer, pelo contacto com textos

de grandes teólogos ou de compiladores obscuros, por vezes anónimos,

de alto valor literário, ou meros instrumentos de comunicação, mas muitos

deles interpretados pela primeira vez e possuindo quase sempre em

graus diversos o encanto do imaginário, o calor do proselitismo, o frémito

da descoberta de um mundo interior e exterior. Sobretudo, é a melhor

maneira de ver construir-se lentamente, nem sempre seguramente mas em

toda a complexidade da história, a crença num lugar, e esse lugar em si

mesmo.

Estes textos são frequentemente repetitivos mas assim se constitui um

corpus, assim se constrói a história. O jogo de ecos que encontraremos

muitas vezes neste livro é a imagem da realidade. Eliminar essas repetições

da história seria deformá-Ia, falseá-Ia.

Veremos como fica a geografia do além e o que está em jogo nas fases

principais do dealbar da Idade Média onde foram elaboradas as bases do

nosso mundo ocidental moderno. Conhecemos hoje melhor e apreciamos

mais justamente a originalidade dessa longa mutação do século III ao VII,

a que se chamava dantes Baixo Império e Alta Idade Média e a que

chamamos hoje com mais propriedade Antiguidade tardia: as antigas

heranças aí se decantam, o cristianismo aí modela novos hábitos, a hu-

manidade luta pela sua sobrevivência fisica e espiritual. Entre o Paraíso e

o Inferno, na convicção em que se está da iminência do fim do mundo, o

Purgatório seria quase um luxo que mora nas profundezas. A génese do

feudalismo deixa em suspenso, num quase imobilismo da teologia e da

prática religiosa, os esboços de Purgatório entre os séculos VIII e XI;

mas o imaginário monástico explora, num claro-escuro com clareiras

de luz, os recantos do além. O grande século criador, o século XII, é

também o do aparecimento do Purgatório que só se explica no seio do

sistema feudal então já aperfeiçoado. Depois da época da explosão vem a

da ordem. O domínio sobre o além que o Purgatório proporciona acrescenta

os mortos ao quadro geral da sociedade. O suplemento de possibilidades

oferecido pelo Purgatório à nova sociedade integra-se no sistema

global.

Teologia e cultura popular

Devo ainda ao leitor dois esclarecimentos.

O primeiro diz respeito ao lugar dado à teologia neste estudo. Não sou

nem teólogo nem historiador de teologia. E evidente que, tratando-se de

uma crença que se tomou dogma, o papel da elaboração teológica nesta

história é importante. Espero fazer-lhe justiça. Mas penso que o Purgatório

como crença impôs-se também por outras vias, e essas vias interessam-me

particularmente porque informam mais sobre a relação entre

crença e sociedade, sobre as estruturas mentais, sobre o lugar do imaginário

na história. Não ignoro que, para a teologia católica moderna, o

Purgatório não é um lugar mas um estado. Os Padres do concílio de

Trento, ansiosos neste ponto como nos restantes, por evitar a contaminação

da religião pelas «superstições», deixaram de fora do dogma o

conteúdo da ideia de Purgatório. Assim, nem a localização do Purgatório

nem a natureza das penas que lá se sofrem foram definidas pelo dogma

e antes foram deixadas à liberdade das opiniões.

Mas espero mostrar neste livro que a concepção do Purgatório como

lugar e as imagens que lhe estão ligadas desempenharam um papel capital

no êxito desta crença'". Isto não se aplica somente à massa dos fiéis mas

também aos teólogos e às autoridades eclesiásticas dos séculos XII e XIII.

Quando entre os laicos apareceu um homem de génio que era também

muito sábio, esse exprimiu melhor do que os outros- a todos os níveis

o que foi para os homens da segunda Idade Média, depois de 1150, o

Purgatório. O melhor teólogo da história do Purgatório é Dante.

O segundo esclarecimento tem a ver com o lugar da cultura popular

no aparecimento do Purgatório. Esse lugar é seguramente importante e

será aqui evocado por várias vezes. Por trás de certos elementos essenciais

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do Purgatório em formação, a tradição popular - não no sentido vulgar

de cultura de massas mas no sentido eficaz de cultura folclórica específica

- está presente e actuante. Para dar três exemplos: o fogo expurgatório,

como demonstrou Carl-Martin Edsman, participa dos ritos e das crenças

que os contos, as lendas e os espectáculos populares deixam compreender;

as viagens no além pertencem a um género onde elementos eruditos e

elementos folclóricos estão intimamente misturados'"; os exempla sobre

o Purgatório são muitas vezes provenientes de contos populares ou são

aparentados com eles. Desde há vários anos, com alguns colegas e amigos

dedico-me, no quadro dos meus seminários na Escola dos Altos Estudos

em Ciências Sociais, a investigações sobre a relação entre cultura erudita

e cultura popular na Idade Média. Não procurei, porém, ir muito longe

nessa pista. Sobre um tema como este há demasiadas incertezas para que

se possa precisar, aprofundar e interpretar com facilidade o papel inegável

da cultura popular. Mas é preciso que se saiba que essa cultura teve a

sua função no nascimento do Purgatório. O século desse nascimento é

também aquele em que a pressão do folclore sobre a cultura erudita é

mais intensa, em que a Igreja mais se abre a tradições ~ue na Alta Idade

Média, ela mesma destruíra, escondera ou ignorara 1 • Este empurrão

também contribuiu para o aparecimento do Purgatório.

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NOTAS

I Sobre Lutero e o Purgatório ver P. ALTHAUS, «Luthers Gedanken über die

letzten Dinge» in Luther Jahrbuch, XXIII, 1941, pp. 22-28.

2 M. GOURGUES in À Ia Droite de Dieu - Réssurrection de Jésus et actualisation

du Psaume CX, 1, dans le Nouveau Testament, Paris, 1978, sustenta que os textos do

Novo Testamento só manifestam um interesse mínimo ao lugar do Cristo à direita do

Pai.

3 Ver C. GINZBURG, «High and Low: The Theme of forbidden Knowledge in the

XVIth and XVIIth c,» in Past and Present, nO73, 1976, pp. 28-41.

4 Os textos que até então evocam as situações que conduzirão à criação do Purgatório

apenas empregam o adjectivo purgatorius, purgatoria, que expurga, e unicamente

nas expressões consagradas: ignis purgatorius, o fogo purgatório, poena purgatoria, a

pena (o castigo) purgatório ou, no plural, poenae purgatoriae, as penas purgatórias e,

mais raramente,j1amma,forna, locus.flumen (chama, fomo, lugar, rio). No século XII

emprega-se por vezes em subentendido o substantivo, in purgatoriis (poenis), nas penas

purgatórias. Este uso favoreceu provavelmente o emprego da expressão in purgatorio

subentendendo-se igne, no fogo purgatório. É provável que o aparecimento

de purgatorium, substantivo neutro, o purgatório, muitas vezes empregado com a forma

in purgatorio, no Purgatório, tenha beneficiado da semelhança com in (igne) purgatorio,

No fim do século XII e no começo do século XIII quando se encontra

In purgatorio é por vezes dificil saber se se deve entender no purgatório ou na fogo

(subentendido) purgatório. Mas isso já não tem importãncia, porquanto daí em diante

o substantivo, quer dizer, o lugar, e tanto uma como a outra expressão é a ele que se

reportam.

5 Os raros autores de estudos sobre o Purgatório que se aperceberam do problema

levantam-no em geral em nota, resumidamente e de maneira errada. Joseph Ntedika,

autor de dois excelentes estudos fundamentais, diz de Hildebert du Mans: «Ele é talvez

o primeiro a empregar a palavra purgatorium (A evolupão da doutrina do purgatório em

Santo Agostinho, p. 11, n. 17). O sermão anteriormente atribuído a Hildebert du Mans

foi-lhe retirado há muito (ver Apêndice lI). A. Piolanti em «li dogma del Purgatório»

in Euntes Docete, 6, 1953, 287-311, notável, contenta-se com dizer (p. 300): «Neste

século (o XII) aparecem os primeiros esboços do tratado De purgatorio (daqui em

diante o adjectivo t.anforma-se em substantivo).» Quanto a Erich FLEISCHHAK,

Fegfeuer, Die christlichen Vorstellungen vom Geschick der Verstorbenen geschichtlich

dargestellt, 1969, escreve (p. 64): (<A palavra purgatorium será usada desde a época

29



carolingia tanto para a purificação como para o lugar de purificiação» sem dar referências

(pudera!. ..).

6 Ver, por exemplo, numa perspectiva geográfica: J. JAKLE e outros, Human

Spatial Behavior. A Social Geography, North Scituate, Mass., 1976. J. KOLARS e J.

NYSTUEN, Human Geography: Spatial Design in World Society, Nova lorque, 1974;

numa perspectiva zdológica, H. E. HOWARD, Territory in Bird Life, Londres, 1920;

numa perspectiva linguística B. L. WHORF, Language, Thought and Reality, Nova

lorque, 1956; de um ponto de vista interdisciplinar e. R. CARPENTER, Territoriality:

a Review ofConcepts and Problems in A. ROE e G. G. SIMPSON, Behavior and

Evolution, New Haven, 1958. H. HEDIGER, The Evolution of Territorial Behavior in

S. L. WASHBURN ed. Social Life of Early Man, Nova Iorque, 1961. A. BUTTIMER,

Social Space in lnterdisciplinary Perspective in E. JONES ed. Readings in Social

Geography, Oxford, 1975, sem esquecer A. JAMMER, Concepts of Space, Nova Iorque,

1960, com um prefácio de Albert Einstein.

7 E. T. HALL, The Hidden Dimension, Nova lorque, 1966, trad. francesa La Dimension

cachée, Paris, 1971.

8 Le Jugement des morts (Egipto, Assur, Babilónia, Israel, Irão, Islão, Índia, China

e Jafão). Col. «Sources orientales», IV, Paris, ed. du Seuil, 1961, p. 9.

Tomás de Aquino é especialmente sensível à dificuldade de fazer com que as

almas espirituais sintam o sofrimento de um fogo corporal. Baseia-se sobretudo na

autoridade das Escrituras (Mateus, XXV, 41) e na analogia entre almas separadas e

demónios para afirmar que «As almas separadas podem pois sofrer por motivos corporais»

(Somme théologique, supl. quest. 70, art. 3). A questão da corporalidade da

alma preocupou talvez João Scot Erígenes no século IX e o seu discípulo Honorius

Augustodunensis no século XII. cr. Cl. CAROZZI, «Estrutura e função da visão de

Tnugdal» in Faire Croire, actas do colóquio da Escola Francesa de Roma (1979).

A. VAUCHEZ, ed. Rome, 1980. Aqui não seguirei Claude Carozzi a quem agradeço

pela comunicação antecipada do seu texto.

10 Cl. LÉVI-STRAUSS, «Les organisations dualistes existent-elles?» in Anthropologie

structurale, I, Paris, especialmente p. 168.

11 G. VAN DER LEEUW, La religion dons son essence et ses manifestations, trad.

franc., Paris, p. 53.

12 e.-M. EDSMANN, Ignis Divinus. Le feu comme moyen de rajeunissement et

d'immortalité: contes, légendes, mythes et rites, Lund, 1949. Recordemos o estudo já

ultrapassado mas pioneiro e clássico de J. G. FRAZER, Myths of the Origin of Fire,

Londres, 1930, o belo ensaio de Gaston BACHELARD, Psychana/yse dufeu. Sobre o

fogo sagrado iraniano, K. ERDMANN, Das iranisehe Feuerheiligtum, Leipzig, 1941.

Os artigos «Feuer» (A. CLOSS) no Lexiconfür Theologie und Kirche, 4, 1960, 106-107

e sobretudo os artigos «Feu de l'Enfer», «Feu du Jugement» e «Feu du Purgatoire»

(A. MICHEL in Dictionnaire de théologie catholique, Vf2, Paris, 1939) e «Feu» de

J. GAILLARD in Dictionnaire de spiritualité, V, Paris, 1964, pouco elucidam sobre

as formas arcaicas da religião do fogo. Nos Evangelhos apócrifos encontra-se o baptismo

pelo fogo sob diversas formas. Em Deux livres du jeu proveniente de um original

grego (do Egipto) da primeira metade do século Hl, Jesus, depois da ressurreição, dá

aos seus apóstolos um baptismo triplo, pela água, pelo fogo e pelo Espírito Santo

(E. HENNECKE-W. SCHNEEMELCHER, Neutestamentliche Apokryphen, 3" ed.,

I, Tübingen, 1959, p. 185). Em L'Évangile de Philippe, que foi utilizado pelos gnósticos

e pelos maniqueístas e que é provavelmente originário do Egipto e do século Il,

encontra-se o baptismo pela água e pelo fogo (ibid., p. 198).

13 Tuscu/anes, V, 77.

14 Faetorum et dictorum memorabilium libri novem, IH, 3, ext. 6. Como observou

Edsman em La Flúte enchantée de Mozart, «Tamino e Pamina passam por duas grutas,

contendo a primeira uma queda de água e estando a segunda cheia de fogo».

15 Sobre uma visão teológica «apurada» mas restrita, cf. por exemplo, esta opinião:

«As necessidades da linguagem popular de Nosso Senhor, ao falar do dedo de Lázaro e

da língua do rico mau, podiam autorizar espíritos habituados a unir alma e corpo

como grupos inseparáveis a dotar as almas separadas com um corpo sui generis, como

a imaginação necessariamente lhas apresenta. Outros tantos obstáculos à verdadeira

filosofia do dogma» (1. BAINVEL, artigo «Âme» in Dictionnaire de théologie

catholique, I, Paris, 1909, p. 1001). Argumentar assim é fechar-se à compreensão da

história.

16 Heinrich GÜNTER escreveu: <<Avisão do além tornou-se um motivo popular

existente em todas as épocas e que é tão velho como a especulação mística» (Die

christliche Legende des Abendlandes, Heidelberg, 1910, p. 111).

17Ver J. Le GOFF, «Culture c1éricale et traditions folkloriques dans Ia civilisation

mêrovingiennes in Pous WI autre Moyen Âge, Paris, 1977, pp. 223-235, e «Culture

ecclésiastique et culture folklorique au Moyen Âge: Saint Marcel de Paris et ~e dragon»,

ibid., p. 236-279 e J.-CI. SCHMITT, «Religion populaire et culture folkloriques

in Annales, E.S.e., 1976, pp. 941-953.

30

31



PARTE I

O ALÉM ANTES DO PURGATÓRIO



I - OS IMAGINÁRIOS

ANTIGOS

O Purgatório medieval volta a utilizar motivos postos a circular

em tempos muito antigos: trevas, fogo, torturas, ponte da provação e

da passagem, montanha, rio, etc., e recusou finalmente elementos que

quase acolheu: pastos, vagabundagem; ou rejeitou logo de início: reencarnações,

metempsicose. Referirei, pois, primeiro esses farrapos vindos

de outro lugar e de longe, por vezes de muito longe no espaço e no

tempo.

Trazer estas religiões antigas para o processo do Purgatório é também

reintegrá-lo num conjunto de soluções para um mesmo problema: a estrutura

do outro mundo, o imaginário do além como demonstração da

sua função. Em certos casos esta referência a outras religiões porá em

presença heranças reais, históricas: da Índia antiga ao Ocidente cristão

o fogo, por exemplo, bem circulou; mas o fogo do Purgatório reuniu

múltiplos fogos acendidos aqui e ali no decorrer dos tempos. O modelo

egípcio parece ter pesado muito na «infernização» dos outros mundos

posteriores. Por vezes também a comparação com outros «além» religiosos

apenas terá um valor lógico e será somente uma manifestação dos

sistemas do além e das suas diversas soluções para o problema comum.

Quando se dá um encontro entre estas soluções e a solução cristã do

Purgatório, não será por identidade de resposta sem certeza de influência?

A angústia essencial do tempo do Inferno entre os gnósticos e a

atenção inquieta mas finalmente raiada de esperança dos cristãos no tempo

do Purgatório não virão de uma sensibilidade ao tempo, incluída nos

dois pensamentos mas de maneira independente?

Enfim, lançar luz sobre essas heranças e essas opções é mostrar que as

relações entre o Purgatório cristão e os anteriores imaginários do além

são as de uma história, não de uma genealogia. O Purgatório não foi

engendrado automaticamente por uma série de crenças e de imagens -

mesmo diacrónica -, é ainda o resultado de uma história onde se misturam

a necessidade e os acasos.

35



As três vias hiodus

Na antiga Índia, no fim dos tempos védicos quando aparecem os

primeiros Upanixades (século VI a.C.), os mortos têm três vias à sua

frente conforme o seu mérito mas sem que haja julgamento. A entrada

numa' destas vias faz-se através do fogo, pois os mortos são queimados

na pira. Os justos passam «das chamas para o dia, do dia para .a

quinzena luminosa (do mês lunar), da quinzena luminosa para os seis

meses do ano em que o sol sobe, desses meses para o mundo dos deuses,

do mundo dos deuses para o sol, do sol para o mundo do resplendor.

Deste mundo do resplendor, aqueles (que o merecem) são conduzidos

para os mundos do brâmane por um ser espiritual vindo (lá buscá-los),

Nestes mundos do brâmane eles habitam lonjuras insondáveis. Para eles

não há regresso».

Aqueles que têm méritos suficientes «entram no fumo, do fumo passam

para a noite, da noite para a quinzena sombria (do mês lunar), da

quinzena sombria para os seis meses em que o sol desce, desses meses

para o mundo dos manes, do mundo dos manes para a lua». Aí são

comidos pelos deuses, voltam à terra e inauguram um ciclo de reencarnações

e de renascimentos de perfeições, cada um dos quais é uma etapa

para o Paraíso. " N

Os irremediavelmente maus sofrem renascnnentos de pumçao,

sob a forma de «vermes, de insectos, de animais», até caírem no

inferno'.

A Isha Upanishad evoca esta estada infernal: «Esses mundos a que ~e

chama sem sol por estarem cobertos de negras trevas: entram neles depo~s

da morte aqueles que mataram a própria alma.» Mas outros textos deixam

supor que a sorte desses mortos não é decidida logo de início. E

conforme eles tenham ou não transposto o limiar da porta guardada

por dois cães. Se o transpuserem serão acolhidos num lugar agradável,

próximo dos Campos Elísios dos Romanos e do Wal~alla~germamc?, «os

pastos que não mais lhes serão tirados», onde partilharão do festim de

Yama, o primeiro homem, o Adão da tradição indo-iraniana, trasformado

em rei dos Infernos. Se forem rejeitados, ou irão para as trevas do

Inferno ou voltarão a errar miseravelmente pela terra, vagueando como

, 2

uma alma penada, sob a forma de fantasmas.

Estas diversas tradições apresentam elementos que iremos reencontrar

no Purgatório: a ideia de uma via intermédia de salvação~ a passagem

através do fogo, a dialéctica entre as trevas e a luz, melhonas de e~tado

entre a morte e a salvação definitiva, a função do além como receptaculo

de almas que de outro modo ficariam votadas ao vaguear dos fantasmas.

Mas a ausência de julgamento e o lugar especial da metempsicose estão

muito longe do sistema do além cristão.

36

No Irão:

o fogo e a ponte

No Irão, o que mais surpreende nas doutrinas e nas imagens do além é

a omnipresença do fogo. Mas certos aspectos da escatologia zoroástrica

apresentam características que, não tendo decerto tido qualquer influência

directa nas concepções cristãs que conduziram ao Purgatório, evocam-uas

'. É em primeiro lugar a hesitação entre uma interpretação

«paradisíaca» e "umainterpretação «infernal» da morada dos mortos antes

do julgamento. No Veda, essa morada, o reino de Yama, é ora um

paraíso de luz ora um sinistro mundo .subterrâneo, um abismo para onde

se desce por um caminho em declive. E também a presença de uma ponte

- como se encontra na Índia - que liga a terra ao céu e na qual o morto

entra para uma prova de força e de agilidade que também tem um certo

valor moral".

Enfim, para as almas, cujas acções boas têm o mesmo peso que as

más, existe um lugar intermédio; mas os especialistas avisam que não se

deve pensar que se trata de uma espécie de Purgatório, pois é antes o

inferno de Masda, que pode comparar-se com o Purgatório cristão, sen-

I ' . 5

do como e e temporano .

No Egipto: o imaginário infernal

A longa história do antigo Egipto também não permite resumir em

algumas ideias simples as crenças sobre o julgamento dos mortos e o

além, que evoluíram no decorrer dos séculos e parecem não ter sido idên:

ricas segundo os meios sociais. A ideia de um julgamento dos mortos fOI

muito antiga no Egipto. Como escreveu Jean Yoyotte: «invenções dos

antigos Egípcios, a ideia, o temor, a esperança do Julgamento iriam conhecer

depois deles um longo destino'».

O inferno egípcio era especialmente impressionante e sofisticado. Era

uma região imensa com muralhas e pórticos, pântanos lamacentos e lagos

de fogo rodeando salões misteriosos. Maspero fez notar que o morto

egípcio tinha de escalar uma montanha de vertentes escarpadas. A ~eografia

imaginária do além egípcio foi tão longe que, em alguns sarcofagos,

foram encontradas cartas do outro mundo. E os castigos eram

muitos e muito severos. Estas penas atingiam tanto o corpo como a alma.

Eram tanto fisicas como morais, marcadas pelo distanciamento dos

deuses. Uma sensação essencial era a de encerramento e de prisão. Lá as

penas eram sangrentas e os castigos pelo fogo numerosos e terríveis. Mas,

mesmo nas suas versões mais infernais, o Purgatório cristão não se aproximará

de certas torturas do inferno egípcio, como a perda dos órgãos

dos sentidos e os atentados contra a unidade da pessoa. A imaginação

37



topográfica foi levada muito longe pelos Egípcios nas suas visões do inferno.

Os «receptáculos» - casas, salas, alcovas, locais diversos - formavam

um complexo sistema de alojamentos", Mas para os antigos Egípcios

não havia Purgatório. Erik Hornung faz notar claramente que, apesar da

riqueza da terminologia egípcia para designar os humanos no além, ela

limita-se a duas categorias rigorosamente opostas: os «bem-aventurados»

e os «malditos». Não há nem «estados ou fases intermédios nem processos

de purificação no além».

É preciso esperar por um relato demótico (em língua vulgar), a viagem

de Osíris para o além escrito entre o século I a.c. e o século IIda nossa

era, para encontrar uma tripartição dos mortos: os que estão sobrecarregados

de más acções, os que o estão, mas de boas acções, e aqueles em

que as boas e as más acções se equilibram mas continua a haver qualquer

processo de purificação. As ligeiras diferenças dos destinos individuais

que se anunciam, como veremos, nos apocalipses cópticos - como os

de Pedro e de Paulo - desde o segundo século da era cristã, não têm

precedente no Egípto".

Era preciso, porém, evocar este plano de fundo egípcio, porque o

Egipto, anterior e posterior à era cristã foi, sobretudo em Alexandria

nos mosteiros cristãos, o local de elaboração de numerosos textos judaicos,

gregos e captas que desempenharam um grande papel no conjunto de

imagens do além, principalmente do inferno. E. A. W. Budge realçou as

características desta herança infernal: «Em todos os livros sobre o Outro

Mundo encontramos poços de fogo, abismos de trevas, machados assassinos,

correntes de água a ferver, exalações fétidas, serpentes de fogo,

monstros horríveis e criaturas com cabeças de animais, seres cruéis e assassinos

com aspectos diversos ... parecidos com os que nos são familiares

na antiga literatura medieval, e é quase indiscutível que as nações modernas

devem ao Egipto muitas das suas concepções do inferno".» O Purgatório

«infernizado» que iremos encontrar com frequência na cristandade

medieval sem dúvida alimentou-se em parte desta herança egípcia.

A descida aos infernos na Grécia e em Roma

Somente através do tema da descida aos infernos é que a Antiguidade

grega e romana trouxe alguma coisa às imagens cristãs do além. Este

tema - que encontraremos com Cristo - é frequente na Antiguidade grega:

Orfeu, Pólux, Teseu e HéracIes desceram à morada das trevas. Uma

das mais célebres destas descidas é a de Ulisses no livro XI da Odisseia.

Mas sabe-se que numerosas interpolações vieram acrescentar-se ao texto

primitivo que não incluía julgamento dos mortos, nem sanções morais,

nem tormentos punitivos. O inferno homérico parece nobre em relação

38

aos infernos orientais. Podemos reter alguns dos seus elementos geográficos

gerais, que iremos encontrar na génese do Purgatório: uma ilha (a de

Circe), uma montanha a pique sobre o mar, crivada de grutas, um episódio

de descida ao Averne numa atmosfera verdadeiramente infernal, a

evocação dos mortos que não encontraremos no cristianismo oficial,

uma vez que só Deus fará eventualmente aparecer certos mortos do Purgatório

a certos vivos!". Por sua vez, a evocação do Tártaro por Hesíodo

é rápida (Teogonia, 695-700, 726-733).

A contribuição da Grécia antiga para a ideia do além a longo prazo

parece residir sobretudo em duas construções intelectuais cuja influência

no pensamento cristão é dificil de avaliar.

Uma mosofia da reencarnação: Platão

Constitui uma aposta tentar resumir, na perspectiva de um além intermédio,

o pensamento de PIatão sobre a sorte das almas após a morte.

Victor Goldschmidt vai ser o meu guía!'. A doutrina platónica é dominada

pela convicção de que existe na culpa uma parte de vontade, portanto

de responsabilidade, e uma parte de ignorância que só pode ser

anulada por um processo complexo. A sorte das almas depende, pois,

simultaneamente da sua própria opção e de um julgamento dos deuses.

O destino dos mortos toma normalmente a forma de reencarnações

escolhidas mais ou menos livremente pelo defunto, mas pode ser alterado

ou interrompido por intervenções dos deuses. Os maus podem sofrer metamorfoses

degradantes, passando para o corpo de homens de vil condição

social ou para o de animais repugnantes, ou serem submetidos pelos

deuses aos castigos do inferno. Esses castigos são evocados no décimo

livro da República (615 e) onde vemos homens de fogo acorrentarem as

mãos, os pés e a cabeça dos tiranos, deitá-Ias por terra, esfolá-los e arrastá-Ias

de lado ao longo do caminho, o que evoca uma passagem do

apocalipse de Pedro (V, 30). Quanto aos que atingiram o ideal platónico,

quer dizer, a filosofia, e a praticaram «na pureza e na justiça», alcançam

a contemplação perfeita, a maioria das vezes nas «ilhas dos bem-

-aventurados», porque sempre esta necessidade de localização, de

«espacialização» do destino no além, se impõe.

Considerações diversas levaram Pia tão a procurar vias de estatutos

intermédios depois da morte, de acordo com a ideia de que a pena devia

ser proporcionada ao crime, conforme o exprime com vigor a República

(X, 615 a-b). Mas também a concepção de um destino especial para os

virtuosos medianos: continuam a atravessar o cicIo das reencarnações

mas nos intervalos saboreiam recompensas não especificadas «numa morada

pura e situada nas alturas da terra» (Fédon, 114 c, 1-2).

39



Tal como o Antigo Testamento, o pensamento platónico no que toca

ao além é fundamentalmente dualista. Na metempsicose as almas passam

quer para almas piores, quer para almas melhores. A sentença dos deuses

não esquecerá homem algum e previne o seu semelhante: «Ela nunca te

esquecerá, nem que sejas suficientemente pequeno para mergulhares nas

profundezas da terra ou suficientemente grande para voares até ao céu»

(Leis, X, 905 a), o que evoca o Salmo CXXXIX, 9:

Se subo aos céus, tu lá estás,

Se me deito no shêol, lá estás tu.

«Tu pagarás aos deuses, acrescenta Platão, a pena que deves, quer

fiques aqui mesmo, quer vás para o Hades ou te transportem .para qualquer

lugar ainda mais inacessível» (Leis, X, 905 a). No célebre mito de Er

só existem, para aqueles que se encontram num prado maravilhoso, dúas

direcções possíveis. Uns vêm do céu e os outros elevam-se do seio da terra

após uma viagem de mil anos. No entanto, movido pela ideia da proporcionalidade

das penas sem dúvida ligada à sua filosofia mas também ao

sistema judicial ateniense (encontra-se em todas as religiões em que existe

um julgamento dos mortos uma certa relação entre a justiça terrestre e a

justiça divina no além), Platão imagina para as almas dos homens um

destino móvel que pode comportar diversas situações: «Aqueles cujos

costumes apenas sofrem raras e ligeiras modificações só se deslocam horizontalmente

no espaço; se caem mais frequente e profundamente na

injustiça, são levados para as profundezas e para os lugares chamados

inferiores que, sob a designação de Hades, e outras semelhantes, povoam

os seus terrores e os seus pesadelos ... Quando a alma sofre modificações

mais profundas em vícios ou em virtudes ... se é à virtude divina que ela se

liga até se impregnar de divino, sofre então uma deslocação notável, sendo

transportada por um caminho santo para um lugar novo e melhor. Se

é ao contrário, então é para lugares opostos que ela transporta o centro

da sua vida ...» (Leis, 904 c-90S a).

É sobretudo a crença na metempsicose que permite escalonamentos

das penas, castigos intermédios. Reencontrar-se-á esta tendência na crença

órfica «que, desde a origem, parece ter admitido que as existências

terrestres sucessivas são separadas por expiações no Hades'?», A influência

da crença órfica no cristianismo tem sido frequentemente sublinhada.

Como no judaísmo antigo, não se encontra a crença num estado intermédio

entre a felicidade celestial e os tormentos infernais, e como a prefiguração

do Purgatório surgiu no cristianismo grego, avançou-se que a ideia

cristã de um «Purgatório», onde as almas que não são suficientemente

culpadas para merecer penas eternas acabam de se purificar, viria do

40

helenismo pagão e particularmente das doutrinas órficas 13. Se essa influência

existiu, impregnou primeiro, parece-me, os meios judaicos. É

nos escritos apocalípticos judaicos e sobretudo, próximo da era cristã,

nos ensinamentos dos rabinos, que se irá encontrar um verdadeiro esboço

do futuro Purgatório cristão. Mas, na Palestina e no Egipto, esses

meios judeus e depois cristãos mergulham com efeito num ambiente grego

onde as religiões de mistérios tiveram grande desenvolvimento.

Considera-se um testemunho dessa tendência Píndaro que, num fragmento

citado por Platão (Ménon, 81 b), avalia em oito anos a duração da

purificação no Inferno e que, numa ode onde se trata de uma religião de

mistérios siciliana do começo do século VI a.C., sem dúvida própria da

crença órfica, diz:

Ela (a opulência adornada de méritos) é o astro cintilante, o esplendor

autêntico de uma vida humana. Ah! sobretudo se aquele que a possui sabe

ver o futuro! se sabe que, quando a morte aqui os fere, os espíritos dos

culpados logo sofrem a sua pena; sob a terra, um juiz pronuncia, contra os

crimes neste reino de Zeus, sentenças ínexoráveis'".

l Jm precursor: Eneias nos Infernos

É necessário agora prestar uma especial atenção à descida de Eneias

aos Infernos, na Eneida de Virgílio.

Há neste episódio uma evocação topográfica do além que pretende

conseguir uma precisão maior do que a maioria das antigas evocações

dos infernos - se exceptuarmos algumas dos Egipcios. Brooks Otis, muito

recentemente, desenhou mesmo o respectivo mapa esquemático. Lá se

encontra a descida por um vestíbulo que iremos encontrar muitas vezes,

[untamente com o poço, no inferno-purgatório. Depois o campo dos

mortos sem sepultura, o rio Estige, os campos de prantos e as últimas

pradarias antes da bifurcação que, pelo caminho da esquerda, conduz

ao Tártaro (Inferno) e pelo da direita e após se ter transposto as muralhas

de Dis (Plutão, rei dos Infernos), leva aos Campos Elíseos, morada

vagamente paradisíaca, atrás da qual há o bosque sagrado cercado por

muros e por fim o rio do Esquecimento, o Letes+'.

Num comentário célebre, Eduard Norden'? chamou a atenção não só

para as reminiscências que encontraremos na Divina Comédia, tanto mais

normais quanto Dante, guiado por Virgílio, também o tomou por modelo

poético, mas também para os elementos presentes nas visões medievais

que demarcam o caminho do Purgatório em formação. Por exemplo,

quando Eneias está no vestíbulo:

41



De lá vem o som de gemidos e o som de cruéis

golpes de chicote: foi quando o ranger de correntes de ferro arrastadas

fizeram Eneias parar ficando aterrorizado com o barulho (versos 557-559)17,

o que irá reencontrar principalmente na Visio Wettino (século IX), na

Visio Tnugdali (meio do século XII, onde o Purgatório ainda não surge

nítido), mas também no Purgatório de S. Patrick (fim do século XII) onde

nasceu o Purgatório e, bem entendido, em Dante, em que o eco de Virgílio

se reencontra no Inferno (111,22-30), enquanto no Purgatório ainda se

suspira:

Oh! como estes caminhos por onde se vem são diferentes

dos do inferno, pois aqui é entre cânticos que

se entra, e lá é entre terríveis lamentos'",

Também Eneias, tendo descido aos Infernos, mostra de lá de baixo os

campos brilhantes de luz, em cimal". Atitude típica do olhar e do gesto

lançados das profundezas para a luz do alto, que encontraremos nos

apocalipses (Apocalipse de João XXI, 10, Apocalipse (apócrifo) de Pedro,

V, 4 e sgs.), nas visões medievais do prê-purgatório (Visto Fursei,

Visio Wettini, Visio Tnugdali) e sobretudo no episódio evangélico de Lázaro

e do mau rico ou «no Hades, presa de torturas, ergue os olhos e vê

ao longe Abraão, e Lázaro no seu seio» (Lucas, XVI, 23), texto este que

terá um papel importante na pré-história cristã do Purgatório.

Eduard Norden também observa judiciosamente que, se as notas sobre

o tempo são por vezes caprichosas neste episódio virgiliano como em

Dante, existe no entanto nos dois poetas a ideia de um tempo fixo para as

viagens no além, da ordem de um dia (vinte e quatro horas) e sobretudo

de uma noite. Na Eneida a subida deve terminar antes da meia-noite.fiora

a Que saem as verdadeiras sombras (verso 893 e sgs.); na Divina Comédia

a viagem deve durar vinte e quatro horas (Inferno, XXXIV, 68 e sgs.).

Nos Apocalipses e nas visões medievais a viagem para o além deve quase

sempre terminar antes da madrugada e do primeiro canto do galo. É o

caso do Purgatório de S. Patrick onde esta exigência referente ao tempo

faz parte do sistema do ordálico.

Para o futuro cristão e medieval a passagem essencial do canto VI da

Eneida é esta: «Desde então as almas conhecem os temores, os desejos, as

dores e as alegrias e, prisioneiras que são das suas trevas e da sua cegueira,

já não distinguem claramente a luz do céu. E mesmo no dia supremo,

quando a vida as deixou, as infelizes não estão ainda completamente

livres de todo o mal e de todas as máculas do corpo; os seus vícios, fortalecidos

pelos anos, devem ter-se enraizado até uma profundidade impressionante.

E pois necessário submetê-Ias ao castigo, e que expiem em

42

suplícios esses males inveterados. Umas, suspensas no ar, ficam expostas

ao sopro ligeiro do ventos; outras, no fundo de um grande abismo, lavam

as suas nódoas; outras purificam-se no fogo» (versos 733-743)20.

Todo um conjunto de temas que terão um papel na formação do Purgatório

aí está: a mistura de dor e alegria, a apreensão velada da luz

celestial, o contexto prisional, a exposição a penas, a expiação misturada

com a purificação, purificação pelo fogo. Eis, em compensação, uma

sequência historicamente afirmada: da Babilónia ao judaico-cristianismo.

Gilgamesh

nos infernos

Entre os Babilónios a paisagem do além é mais movimentada, mais

obcecante, e aparece em relatos espantosos de viagens aos infernos. A

descida aos infernos de Ur-Nammu, príncipe de Ur, é o texto mais antigo

deste género no domínio dó Médio Oriente europeu (século VIII a.Ci),

Apenas um relato egípcio lhe é anterior. O herói é julgado pelo rei dos

infernos, Nergal, faz-se alusão a um fogo, há um rio perto de uma montanha

e o outro mundo está coberto de «trevass ".

Principalmente a célebre epopeia de Gilgamesh oferece-nos uma dupla

evocação dos infernos. A menos concisa é a que diz respeito ao

próprio Gilgamesh. Como o herói não obteve a imortalidade, os deuses

concedem-lhe um lugar especial no inferno, mas este favor não parece

resultar dos seus méritos, antes está ligado à sua condição social e apenas

depende de uma decisão arbitrária dos deuses+'. Em compensação Enkidu,

o amigo de Gilgamesh, visita o Inferno antes de morrer e faz dele

uma descrição mais concisa. E o reino do pó e das trevas, a «imensa

terra», «a terra sem regresso», «a terra de onde não se volta», uma terra

para onde se desce e de onde sobem, quando evocados, certos mortos.

Uma terra para onde se vai quando se é apanhado nas redes dos deuses,

uma prisão. Talvez o mais inquietante seja o facto de os vivos e os

mortos «normais» serem atormentados por mortos «exasperados». Estes,

os ekimmu, cuja sombra não recebeu sepultura nem cuidados da

parte dos vivos (reencontramos este apelo à solicitude dos vivos, cujo

papel será tão grande no sistema do Purgatório), regressam como fantasmas

para visitar os habitantes da terra, ou atormentam os outros

mortos no inferno.

Um além neutro e tenebroso: o shéol judaico

Realçou-se o parentesco entre algumas destas crenças e crenças judaicas

testemunhadas pelo Antigo Testamento, o que nada tem de surpreen-

43



dente se pensarmos nas relações ~ue uniram os Babilónios e os Hebreus

especialmente quando do Exílio/ . '

O arallü, o inferno assírio, está próximo do shéol hebreu, do Hades

g~~go, embora estes dois últimos pareçam mais simples. O parentesco é

visível sobretudo entre os dois primeiros. Assim, para a descida e a subida

do sh~o/, Jaco!" julgando José morto, declara: «é de luto que quero descer

ao sheolparajunto do meu filho» (Génesis, XXXVII, 35). Ana, a mãe de

Samuel, proclam~ no seu cântico «é Jeová quem faz morrer e viver, quem

faz descer ao sheol e subir nele» (I Samuel, lI, 6). Enfim, quando Saul

pede à feiticeira de En-Dor que evoque Samuel de entre os mortos ela

diz-lhe: «Vejo um espectro que sobe da terra» e ainda «é um velho que

sobe» (I Samuel, XVIII, l3-14). A imagem da armadilha encontra-se nos

Salmos XVIII (eas malhas do shéol prendiam-me, as armadilhas da morte

esperavam-me», XVIII, 6) e CXVI S«as armadilhas da morte apanham-

-me, ~s mat.has do sh~ol, CXVI, 3)2 . O mesmo com a imagem do poro:

«Jeová, tu tiraste a nunha alma do shéol, reanimando-me de entre aqueles

que descem à fossa (poço)» (Salmo XXX, 3), «puseste-me nas profundezas

da fossa (poço), nas trevas, nos abismos» (Salmo LXXXVIII, 7). No

Salmo XL (3), a imagem do pélago está associada à da lama: «Ele tirou-

-me do pélago tumultuoso, do lodo do lamaçal.» Segundo Nicholas J.

Tromp, a palavra bôr foi sucessivamente associada ao sentido de

cisterna, depois de prisão, por fim e simultaneamente a túmulo e a poro

do mundo subterrâneo, evolução semântica sugestiva. O poro do abismo

evocado pelo Salmo LV (24), foi equiparado ao poço, entrada do outro

~und~ no conto de Grimm: Frau Hõlle (Dame Baile, Hõlle) querendo

dizer !nferno e~ alemão). O pó, em geral associado aos vermes, aparece

também no Antigo Testamento. «Irão eles descer a meu lado até ao shéol

perder-se no mesmo pó?» (Job, XVII, 16) e ainda «Juntos eles deitam-se

no pó e os vermes cobrem-nos» (Job, XXI, 26).

A referência ao outro mundo infernal, o shéol, palavra especificament~

hebraic~, é freq':lente no Antigo Testamento'P. Alguns dos seus traços

sao propnamente infernais e não aparecerão no Purgatório cristão; por

ex~m~loi: equiparação com um monstro devorador, que vem talvez dos

Egípcios ,e a unagem do outro mundo como cidade, já apresentada nos

documentos da cidade de Ugarite, e que anuncia a «cidade triste» de

Dant~ (Inferno, III, I) .. Outros são muito característicos do pensamento

hebraico, como a estreita ligação entre a ideia do shéol e a simbólica do

caos, encarnado por um lado no oceano e por outro no deserto. Em todo

o cas?, talvez devês~emos investigar mais atentamente os laços eventuais,

na cnstandade medieval, entre o Purgatório e certos santos ou eremitas

vagabundos dos mares ou da solidão da floresta-deserto.

Ao Purgatório - como ao Inferno - o shéollegará a noção de trevas

(de onde as almas do Purgatório emergirão para a luz), trevas que envol-

44

vem todo o mundo subterrâneo dos mortos. Este tema é particularmente

obsessivo no livro de Job:

antes que eu me vá para não regressar

para o país das trevas e das sombras espessas,

onde reindm a escuridão e o caos

onde a própria claridade parece noite sombria.

(Job, X, 21-22i 7

Da paisagem do shéol é preciso reter dois elementos importantes que

reaparecerão no Purgatório como no Inferno cristão: a montanha e o rio.

Certas interpretações do Salmo XLII, 7, falam da «montanha dos tormentes»

e o livro de Job evoca por duas vezes o rio que se atravessa à

entrada do shéol:

Assim ele preserva a sua alma do fosso,

e a sua vida da passagem pelo Canal

(Job, XXXIII, 18).

Se não, eles passam pelo Canal

E morrem como loucos

(lob, XXXVI, 12).

Tromp sustenta de modo convincente, e contra os exageros do Antigo

Testamento, que os termos que descrevem o shéol se aplicam bem a um

local e não são metafóricos, mas pensa também que há uma evolução no

sentido de um emprego «literário» e «ético» do shéol, e que o Hades do

Novo Testamento que se lhe seguiu avançou nesse sentido.

Em todo o caso, o shéol do Velho Testamento surge essencialmente

num sistema dualista que opõe fortemente o Céu e o Inferno. Por exemplo,

o salmista do Salmo CXXXIX, 8, diz a Jeová:

Se subo aos céus, tu lá estás,

Se me deito no shéol, lá estás tu.

E Isaías (XLIV, 24) põe Jeová a dizer:

Fui eu, Jeová, quem fez todas as coisas,

quem, sozinho, estendeu os céus,

consolidou a terra, sem ninguém ajudar.

45



A terra é, na verdade, o conjunto do mundo dos vivos e do mundo dos

mortos misturados, e mais a morada subterrânea do que a estada à superficie.

Muito raramente é evocado um sistema tripartido (como o que, para o

além, e por-exemplo em Dante, agrupará o Inferno subterrâneo, o Purgatório

terrestre e o Paraíso celeste). No entanto Jeremias, recordando

aos Hebreus do Exílio o poder de Jeová, diz:

Os deuses que não fizeram o céu e a terra serão

exterminados da terra e de debaixo do céu;

Ele fez a terra com o seu poder

ordenou o'mundo com a sua sabedoria

e com a sua inteligência estendeu os céus.

o profeta distingue, pois, o céu, o mundo debaixo do céu e a terra

(debaixo do mundo) como dirá S. Paulo (Filipenses, 11, 10):

para que tudo, em nome de Jesus,

se ajoelhe, no mais alto dos céus,

sobre a terra e nos infernos.

Sendo o shéol temível, não aparece no entanto como lugar de torturas:

Em todo o caso, encontramos nele três tipos de castigos especiais: o

leito de vermes, que não encontraremos no Inferno e no Purgatório cristãos

a menos que se queira ver nele os antepassados das serpentes infernais,

o que não me parece ser o caso, a sede e o fogo. Voltarei a referir-

-me ao fogo que já evoquei. A sede, de que fala, por exemplo, Jeremias

(XVII, 13):

aqueles que se afastam de ti serão acusados na terra

porque abandonaram a fonte de águas vivas, Jeová...

encontra-se pelo menos em dois textos cristãos importantes para a pré-

-história do Purgatório. Primeiro a história do pobre Lázaro e do rico mau

que, do fundo do Hades, pede que Lázaro vá molhar na água a ponta do

dedo para lhe refrescar a língua (Lucas, XVI, 24). É sobretudo à primeira

visão que se pode de facto chamar visão de um lugar expurgatório, a de

Perpétua na Paixão de Perpétua (começo do século III), onde a sede será

um elemento essencial da visão.

Notou-se que, sendo o shéo/ evocado frequentemente no Antigo

Testamento, não são dados quaisquer pormenores precisos a seu respeito.

E porque, disse-se, Jeová é o Deus dos vivos, lembrando o Eclesiastes

(IX, 4):

46

Mas há esperança para aquele que está ligado

a todos os vivos,

e um cão vivo vale mais do que um leão morto.

o que Jesus dirá novamente de maneira esclarecedora:«Quanto à

ressurreição dos mortos, não lestes o oráculo no qual Deus vos diz: 'Eu

sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob'?» Não é dos

mortos mas dos vivos que ele é Deusl» (Mateus, XXII, 31-32). Jeová, cujo

enorme poder sobre o shéo/ é muitas vezes afirmado no Antigo Testamento,

nunca manifesta a intenção de fazer sair de lá um morto prematuramente,

de lhe perdoar após a sua descida ao shéo/ ou de lhe encurtar a

permanência.

Além das imagens infernais que também são válidas para o Purgatório,

não existe pois grande coisa no Antigo Testamento (se excluirmos

uma passagem muito especial do livro dos Macabeus de que falarei adiante)

que anuncie o Purgatório cristão.

Somente sob dois pontos de vista o Antigo Testamento deixa supor

que poderá haver diferenças de lugar no shéol e que de lá se possa ser

tirado por Deus.

Primeiro, o Antigo Testamento distingue no shéol as suas profundezas

máximas reservadas a mortos especialmente vergonhosos: os homens não

circuncisados, as vítimas de assassínios, os mortos por execução e os

mortos sem sepultura, mas trata-se mais de mortos impuros do que de

mortos culpados.

Certos textos dos Salmos, principalmente, sugerem uma possibilidade

de libertação.

Volta, Jeová, liberta a minha alma,

Salva-me, pelo teu amor.

Pois, na morte, não há memória de ti:

No shéol, quem te louvará?

(Salmo VI, 5-6).

Rebanho preso no shéol,

a Morte leva-os a pastar,

e os homens justos dominá-tos-ão.

De manhã a sua imagem desvanece-se,

o shéol, eis a sua residência!

Mas Deus resgatará a minha alma

das garras do shéol e levar-me-á consigo,

(Salmo XLIX, 15-16).

47



Porque Tu não podes abandonar a minha alma ao shêol,

não podes deixar o teu amigo ver o fosso

Tu me ensinarás o caminho da vida,

perante o Teu rosto, plenitude de alegria,

à tua direita, delícias eternas.

As visões apocalípticas judaico-cristãs

(Salmo XVI, 10-11).

Entre o século II a.C. e o século III da nossa era (e ainda durante

muito tempo, pois as versões gregas e sobretudo latinas de textos hebraicos,

sírios, captas, etíopes e árabes só viram a luz do dia mais tarde), um

conjunto de textos elaborados no Médio Oriente, principalmente na Palestina

e no Egipto, vieram enriquecer de maneira decisiva as concepções

e as representações do além. A maioria destes textos não foi incluída pelas

diversas igrejas oficiais entre os documentos ditos autênticos da doutrina

e da fé. Fazem parte desse conjunto de textos chamados apócrifos pela

Igreja cristã latina (os protestantes apelidarão de pseudo-epigráficos os

textos não canónicos do Antigo Testamento). Este carácter apócrifo,

aliás, só tardiamente foi imposto a alguns deles pelo concílio dominado

por Santo Agostinho em 397 e mesmo pelo concílio de Trento no século

XVI, no que respeita ao catolicismo. Assim, muitos deles tiveram durante

a Idade Média alguma influência, ou porque ainda não eram considerados

apócrifos e a sua utilização não provocava a reprovação da Igreja, ou

porque, afastados dos textos «canónicos», circulavam no entanto mais ou

menos clandestinamente por diversos canais. Um caso extraordinário foi

o do Apocalipse atribuído ao apóstolo João e que, após complicadas

discussões, foi aceite na Bíblia cristã latina canónica, quando não difere

substancialmente dos outros textos do mesmo género.

Desta literatura apócrifa judaico-cristã, o que me interessa são os textos

que, pelas versões latinas ou pela sua influência no cristianismo latino,

actuaram sobre as representações do além da cristandade latina medieval.

Mais do que os evangelhos apócrifos, foram os relatos de visões ou de

viagens imaginárias no além com ou sem o título de apocalipse - quer

dizer, de revelação - que tiveram um papel na génese do Purgatório.

Não irei aqui indagar em que contexto histórico geral, e social em particular,

eles foram elaborados e circularam. Não vou fazer uma análise

sociológica e histórica propriamente dita senão em relação às épocas

em que irá nascer e se propagará a concepção nítida de purgatório, quer

dizer, os séculos XII e XIII. Antes destes, contento-me com referenciar

heranças de ideias e de imagens. Nesta literatura apocalíptica, um elemen-

48

to desempenhou um papel importante - foi a crença numa descida de

Jesus aos Infernos, cujo brilho como que se reflectiu no conjunto apocalíptico.

É notável que a maioria destes apocalipses relatem mais uma

viagem ao céu do que uma descida aos infernos, traço característico do

clima de expectativa e de esperança dos séculos próximos do aparecimento

do cristianismo.

Dos apocalipses judaicos referirei o Livro de Henoch e o quarto Livro

de Esdras; dos cristãos o Apocalipse de Pedro, o Apocalipse de Esdras e

sobretudo o Apocalipse de Paulo.

Do Livro de Henoch apenas resta um pequeno fragmento na versão

latina abreviada por um único manuscrito do século VIII conservou. A

versão mais completa que se conhece é uma versão etíope feita a partir

do grego". O original foi escrito numa língua semítica,provavelmente 9

hebreu, foi composto do século 11ao I a.C. e sofreu a influência egípcia. E

um texto heterogéneo, cuja parte mais antiga remonta sem dúvida à época

do aparecimento da literatura apocalíptica, um pouco antes de 170

a.C.. É pois um dos testemunhos mais antigos dessa literatura.

Referências ao além encontram-se principalmente na primeira parte, o

Livro da Assunção de Henoch. Henoch, guiado por anjos, é levado para

«um lugar (uma casa) cujos habitantes são como fogo ardente» depois

para a morada das tempestades, do trovão e das águas da vida. «E cheguei

a um rio de fogo do qual o fogo corre como água e se derrama no

alto mar e atingi uma grande escuridão ... vi as montanhas de trevas do

Inverno e a boca do abismo» (Cap. XVII). Depois ele chega ao poço do

Inferno: «Depois vi um abismo profundo junto das colunas de fogo do

céu, e vi entre elas colunas de fogo que desciam e cuja altura e profundidade

eram incomensuráveis» (Cap. XVIII). Henoch pergunta então ao

IlOjORafael que o acompanha onde é a morada das almas dos mortos

untes do julgamento. É o capítulo XXII, onde aparece a ideia dos

lugares do além e das categorias de mortos que estão à espera. Contrariamente

aos Babilónios e aos Hebreus que localizavam o arallü e o shéol

no mundo subterrâneo, mas como quase sempre fizeram os Egípcios, o

uutor do livro parece situar esse além da espera num recanto distante da

superficie da terra. «De lá fui para uni outro lugar, e ele mostrou-me a

ocidente uma montanha grande e alta e rochedos duros. Havia neles quatro

cavidades muito profundas, muito largas e muito lisas, sendo três

delas escuras e uma luminosa, e no meio estava uma fonte de água ...»

Rafael explica a Henoch: «Estas cavidades são (feitas) para nelas se reunirem

os filhos das almas dos mortos ... para os deixar lá morar até ao dia

do seu julgamento e até ao momento que lhes foi fixado; e esse longo

tempo (durará) até ao grande julgamento (que Ihes farão).» Henoch

olha: «Vi os espíritos dos filhos dos homens que estavam mortos, e a

V01. deles chegava ao céu e lamentava-se.» As quatro cavidades abrigam

49



quatro categorias de mortos classificados segundo a inocência ou a culpa

das respectivas almas e segundo os sofrimentos que suportaram ou não

sobre a terra. A primeira acolhe os mártires justos, é a cavidade clara,

junto da fonte de água luminosa. A segunda recebe os outros justos

que ficam na sombra, mas que no julgamento fmal receberão as recompensas

eternas. A terceira abriga os pecadores que não sofreram qualquer

castigo nem provação sobre a terra e que no julgamento serão condenados

às penas eternas. Há por fim uma quarta categoria: a dos pecadores

que foram perseguidos cá em baixo e, em especial, os que foram assassinados

por outros pecadores. Esses serão menos castigados.

Continuando a sua viagem, Henoch encontra mais uma vez o Inferno,

mas sob outro aspecto: «Então eu disse: "Porque é esta terra abençoada e

está cheia de árvores enquanto esta garganta no meio (das montanhas) é

maldita?"» Uriel, que desta vez é o guia de Henoch, responde-lhe: «Este

vale maldito é (destinado) aos malditos para toda a eternidade» (Cap.

XXVII).

Encontramos pois no Livro de Henoch as imagens de um inferno

abismo ou vale estreito, de uma montanha terrestre como morada no

intervalo entre a morte e o julgamento, de uma gradação das penas,

que só parcialmente dependem do mérito dos homens.

Sendo a obra composta de pedaços provenientes de diversas épocas,

apresenta contradições principalmente a respeito do além. No capítulo

XXII da primeira parte, as almas dos mártires justos gritam vingança

enquanto na quinta parte todas as almas dos justos dormem um longo

sono veladas por anjos, à espera do julgamento final. Na segunda parte

(O Livro das Parábolas), Henoch tem uma visão completamente diferente

do lugar de espera: vê leitos para repouso dos justos na extremidade dos

céus, e mesmo, parece, no céu, no meio dos anjos e ao lado do Messias

(Cap. XXXV). Esta imagem da espera na posição de deitado encontrar-

-se-á em certas prefigurações do Purgatório medieval, por exemplo a propósito

de Artur no Etna. Enfim, no capítulo XXXIX vêem-se as almas

dos mortos intervir junto dos deuses a favor dos vivos: «Eles pedem, eles

intercedem, eles rezam pelos filhos dos homens.» Esta ideia da reversibilidade

dos méritos no além demorará muito tempo a impor-se na Idade

Média. Somente no fun desse período às almas do Purgatório será reconhecido

definitivamente este privilégio.

O quarto Livro de Esdras também é feito de vários pedaços cosidos

uns aos outros provavelmente por um judeu zelote cerca do ano 120 da

nossa era, quer dizer pelo fim do período do apocalipse judaico. Possuímos

versões dele em sírio, árabe e arménio. A versão grega original perdeu-se.

Vários manuscritos, dos quais os mais antigos remontam ao

seculo , IX, conservaram uma versao -1' atma, aqueI a que aqui. refi29E

tro . s-

dras pergunta ao Senhor: «Se em ti encontrei a graça, Senhor, mostra

50

também ao teu servo se depois da morte ou agora, quando cada um de

nós entrega a alma, seremos deixados em repouso até que chegue o dia em

que ressuscitarás a criatura ou se em seguida (depois da morte) seremos

castigados'".» É-lhe respondido que «aqueles que desprezaram o caminho

do Altíssimo, os que desprezaram a sua lei ou odiaram aqueles que temem

a Deus não entrarão nos habitáculos mas antes vaguearão e serão

em seguida castigados, sofredores e tristes segundo sete "vias" diferent08»31.A

quinta destas «vias» consistirá na «visão dos outros (mortos)

que serão mantidos pelos anjos nos habitáculos onde reinará um grande

!lilêncio»32.Reencontra-se aqui a ideia presente na quinta parte do Livro

de Henoch.

Em compensação, há sete «ordens» (ordines) prometidas aos habitáculos

da Salvação (da saúde e da tranquilidader' . Depois de terem sido

separadas dos seus corpos, estas almas «terão durante sete dias a liberdade

de ver a realidade que lhes foi profetizada e depois serão reunidas nos

Meusbabitáculosa". Só existem aqui, pois, dois grupos em tempo de espera;

os que são castigados e os que são deixados em paz.

O que é interessante é a evocação dos receptáculos do além chamados

habitationes ou habitacu/a. Concepção espacial que se encontra ainda reforçada

e alargada pela passagem que se segue. A «ordem» dos que respeitaram

as vias do Altíssimo repousará segundo sete «ordens»

diferentes. A quinta consistirá em «exultar ao ver que se retiraram do

(corpo) corruptível e que possuirão a herança que há-de vir, ao verem

também o mundo "fechado" e cheio de sofrimento de onde foram libertados,

e ao começarem a receber o universo cheio de espaço, felizes e

imortais»35.

Assim se exprime esse sentimento de libertação espacial, essa preocupação

com o espaço nas coisas do além que me parece fundamental no

nascimento do Purgatório. O Purgatório será um habitáculo ou um con-

Junto de habitáculos, um lugar de reclusão; mas também entre o Inferno e

() Purgatório, entre o Purgatório e o Paraíso, o território cresce, o espaço

dilata-se. Dante saberá exprimi-lo maravilhosamente.

O quarto Livro de Esdras despertou a atenção dos antigos autores

cristãos. É verdade que a primeira citação indubitável se encontra em

Clemente de Alexandria (Stromata, III, 16), um dos «pais» do Purgatório,

mas a passagem que acabo de citar foi objecto de um comentário de

Santo Ambrósio no século IV.

No seu tratado De bono mortis (Do bem da morte), Ambrósio quer

provar a imortalidade da alma e combater a pompa funerária dos Romanos.

«A nossa alma, diz ele, não fica fechada no túmulo com o corpo ... É

uma pura perda que os homens construam túmnlos sumptuosos como se

eles fossem os receptáculos (receptacula) da alma e não apenas do corpo.»

E acrescenta: «As almas, essas, têm receptáculos lá em cima".» Cita

51



então demoradamente o quarto Livro de Esdras e os seus habitacu/a que

são, diz ele, a mesma coisa que as habitações (habitationes) de que falou o

Senhor quando disse «na casa de meu pai há muitas moradas (mansiones)»

(João, XIV, 2). Pede desculpa por citar Esdras, que inclui no número

dos filósofos pagãos, mas pensa que isso impressionará talvez os

pagãos. Depois de se deter nos habitáculos das almas, e sempre citando

Esdras, retoma também a classificação das sete «ordens» de almas dos

justos. Misturando, por assim dizer, as «vias» e as «ordens», alude aos

habitáculos onde reina uma grande tranquilidade (in habitaculis suis cum

magna tranquil/itate). Faz notar que Esdras referiu que as almas dos justos

começam a entrar no espaço, na bem-aventurança e na imortalidade

37 • E Ambrósio conclui este longo comentário à passagem do quarto

Livro de Esdras, congratulando-se por este ter terminado evocando as

almas dos justos que, ao fim de sete dias, irão para os seus habitáculos,

porque mais vale falar mais demoradamente da bem-aventurança dos

justos do que da desgraça dos ímpios.

Os apocalipses cristãos situam-se ao mesmo tempo em continuidade e

em ruptura com os apocalipses judaicos. Em continuidade, porque se

inserem no mesmo contexto e porque, durante os dois primeiros séculos

da era cristã, é por vezes mais exacto falar de judaico-cristianismo do que

de duas religiões separadas. Mas também em ruptura porque a ausência

ou a presença de Jesus, as atitudes opostas em relação ao Messias, a

crescente diferencia~ão dos meios e das doutrinas acentuam progressivamente

as diferenças 8.

Aqui, eu opto pelo Apocalipse de Pedro, o mais antigo e, sem dúvida,

o que conheceu maior êxito nos primeiros séculos, pelo Apocalipse de

Esdras porque dele possuímos interessantes versões medievais, e pelo

Apocalipse de Paulo, enfim, porque foi o que teve maior influência durante

a Idade Média e constitui a referência fundamental do Purgatório

de S. Patrick, texto decisivo, no fim do século XII, para o nascimento do

Purgatório e para Dante.

O Apocalipse de Pedro foi sem dúvida composto no fim do século I ou

no princípio do século II na comunidade cristã de Alexandre .por ~m

judeu convertido e influenciado ao mesmo tempo pelos apocahpses JUdaicos

e pela escatologia popular grega. 39 No século lI, ele figura no

catálogo das obras canónicas adaptadas pela Igreja de Rom~, mas foi

excluído do cânone fixado pelo concílio de Cartago em 397. Insiste sobretudo

nos castigos infernais que retrata com grande vigor, valendo-se de

imagens vindas, na sua maioria, através do judaísmo e do helenis,mo, do

masdeismo iraniano. A literatura medieval do além conservara a sua

classificação das penas do inferno segundo as categorias de pecados e

de pecadores. Como, no século XIII, os usurários estão entre os primeiros

a beneficiar do Purgatório, contentar-me-ei com o seu exemplo no Apo-

52

calipse de Pedro: são engolidos por um lago de pus e de sangue em

ebulição.

Os temas são os da evocação tradicional dos infernos, da obscuridade

(cap. XXI): «Vi um outro lugar, completamente escuro e era o lugar do

castigo»; da omnipresença do fogo (cap. XXII): «E alguns estavam pendurados

pela língua, eram os caluniadores, e por baixo deles havia fogo

que flamejava e os torturava»; capo XXVII: «E outros homens e mulheres

estavam em pé, com chamas até ao meio do corpo»; capo XXIX: «E à

frente deles havia homens e mulheres que mordiam a língua e tinham

fogo na boca. Eram as falsas testemunhas ...))

O Apocalipse de Pedro apoia-se firmemente numa visão dualista e

compraz-se com a sua faceta infernal. Esta visão encontra-se em antigos

textos cristãos que influenciou como o De /aude martyrii (O Louvor do

Mártir) que foi atribuído a S. Cipriano e é provavelmente de Novaciano.

((O lugar cruel a que chamamos geena ressoa com um grande gemido de

queixumes, no meio de línguas de chamas, numa noite horrível de fumo

espesso vindo dos caminhos ardentes que emitem incêndios sempre renovados,

onde uma compacta bola de fogo forma a porta de saída e espalha-se

em diversas formas de tormentos ... Os que recusaram a voz do

Senhor e desprezaram as suas ordens são castigados com penas proporcionais;

e, segundo o mérito, Ele dá a salvação ou julga o crime ... Aqueles

que sempre procuraram e conheceram Deus recebem o lugar do Cristo,

onde habita a Graça, onde a terra luxuriante está coberta de relva em

pastos floridos'" ...))

Deste dualismo e destas cores sombrias emerge, no entanto, um apelo

II justiça:

Justa é a justiça de Deus

Boa é a sua justipa.

Em contraste, o Apocalipse de Esdras, texto muito lido e citado na

Idade Média, não apresenta qualquer prefiguração do Purgatório mas

oferece-nos alguns dos seus elementos. Lá encontramos o fogo e a ponte;

o acesso é por degraus. Lá encontramos principalmente os grandes

deste mundo, tal como os veremos no Purgatório nos textos da polémica

política que Dante evocará.

O Apocalipse de Esdras apresenta-se em três versões: o Apocalipse de

Esdras propriamente dito, o Apocalipse de Sedrach e a Visão do Bem-

-Aventurado Esdras. Esta última é a mais antiga; é a versão latina de um

original hebreu e foi conservada em dois manuscritos, um dos séculos X-

XI, outro do século xrr".

Esdras, guiado por sete anjos infernais, desce ao Inferno por setenta

degraus. Vê então portas de fogo em frente das quais estão sentados dois

53



leões que deitam pela boca, pelas narinas e pelos olhos chamas potentíssimas.

Vê passar homens vigorosos que atravessam as chamas sem que

elas lhes toquem. Os anjos explicam a Esdras que aqueles são os justos

cuja fama chegou ao céu. Outros vêm para passar as portas mas os cães

devoram-nos e o fogo consome-os. Esdras pede ao Senhor que perdoe os

pecadores, mas não é ouvido. Os anjos dizem-lhe que aqueles infelizes

renegaram Deus e pecaram com as suas mulheres ao domingo antes da

missa. Continuam a descer os degraus e ele vê homens de pé sofrendo

tormentos. Há uma marmita gigante cheia de um fogo sobre cujas labaredas

os justos passam sem dificuldade enquanto os pecadores, empurrados

por diabos, caem dentro dela. Vê a seguir um rio de fogo com uma

grande ponte de onde tombam os pecadores. Encontra Herodes sentado

num trono de fogo, cercado por conselheiros que estão de pé junto dele.

Apercebe-se de um grande caminho de fogo a oriente, para onde são

enviados muitos reis e príncipes deste mundo. Passa a seguir pelo Paraíso,

onde tudo é «Luz, alegria e salvação». Faz mais uma prece pelos

condenados mas o Senhor diz-lhe: «Esdras, modelei o homem à minha

imagem e ordenei-lhes que não pecassem e eles pecaram; é por isso que

são atormentados.»

Uma fonte: o Apocalipse de Paulo

De todos estes apocalipses aquele que teve maior influência na literatura

medieval do além em geral, e do Purgatório em particular, foi o

Apocalipse de Paulo. É um dos textos mais tardios deste conjunto

apocalíptico, pois foi sem dúvida elaborado em grego pelos meados do

século III da era cristã, no Egipto. O Apocalipse de Paulo, de que existem

versões em arménio, copta, grego, eslavo e sírio, conheceu oito redacções

diferentes em latim. A mais antiga data talvez do fim do século IV, de

qualquer modo do século VI ou mais tarde. É a mais longa. No século IX

fizeram-se redacções curtas. Delas, a chamada redacção IV, obterá o

maior êxito. Desta, conhecem-se trinta e sete manuscritos. Entre as novidades

que ela introduz na obra encontra-se a imagem da ponte que vem

de Gregório, o Grande, e a roda de fogo que vem do Apocalipse de Pedra

e dos oráculos sibilinos. De uma maneira geral é esta versão que na Baixa

Idade Média será traduzida para diversas línguas vulgares. A versão V

é a mais interessante para a história do Purgatório, pois é a primeira

a acolher a distinção entre um inferno superior e um inferno inferior,

introduzida por Santo Agostinho, retomada por Gregório, o

Grande, e que, entre os séculos VI e XII se tornou a base da localização

por cima do Inferno daquilo que será, no fim do século XII, o Purgatóri0

42 .

54

É extraordinário que o Apocalipse de Paulo tenha conhecido um tal

êxito na Idade Média, quando fora severamente condenado por Santo

Agostinho. A razão, além da sua repugnância pelas ideias apocalípticas,

é, sem dúvida, o facto de a obra concretizar a segunda epístola de

S. Paulo aos Corintios, na qual, no entanto, se baseia. Com efeito, Paulo

diz: «Conheço um homem em Cristo que, há catorze anos - seria no seu

corpo? não sei; seria fora do seu corpo? não sei; Deus sabe - ... esse

homem foi transportado até ao terceiro céu. E esse homem - seria no

seu corpo? seria sem o seu corpo? não sei, Deus sabe -, sei que ele foi

transportado até ao Paraíso e que ouviu palavras inefáveis que nenhum

homem está autorizado a repetir» (lI Coríntios, XII, 2-4). De onde o comentário

de Agostinho: «Gente presunçosa, na sua grande insensatez,

inventou o Apocalipse de Paulo que, a justo título, a Igreja não aceita,

e que está cheio nem sei de que fábulas. Dizem que é o relato do seu rapto

para o terceiro céu e a revelação das palavras inefáveis que ele escutou e

que não é permitido a qualquer homem repetir. Poder-se-á tolerar a sua

audácia? então se ele disse ter escutado o que nenhum homem é autorizado

a repetir, repetiu-o ele, aquilo que não é permitido a qualquer homem

repetir? Quem são então os que ousam referi-Ias com tamanho

descaramento e indecoro't 3 »

Evoco aqui a redacção V. Após uma breve introdução em que se trata

de dois infernos a que voltarei, S. Paulo alcança o Inferno superior, o

futuro Purgatório, do qual apenas diz que «lá viu as almas daqueles

que aguardavam a misericórdia de Deus».

A parte mais longa do breve relato é dedicada à descrição das penas

do Inferno e é dominada por duas preocupações: fornecer pormenores

mais precisos e identificar e classificar os condenados. S. Paulo vê árvores

de fogo de onde pendem os pecadores e depois um fomo ardente com

chamas de sete cores onde outros são torturados. Vê os sete castigos que

as almas dos condenados ali suportam diariamente, sem contar as inúmeras

penas específicas suplementares: a fome, a sede, o frio, o calor, os

vermes, o mau cheiro e o fumo. Vê (conservo a palavra latina vidit que

surge constantemente e exprime o próprio estilo do apocalipse, onde se

revela o que se viu e que é normalmente invisível) a roda de fogo onde

ardem ao mesmo tempo mil almas. Vê um rio horrível com a ponte onde

passam todas as almas e onde as dos condenados estão mergulhadas até

110 joelho, ou até ao umbigo, ou aos lábios, ou às sobrancelhas. Vê um

lugar tenebroso onde os usurários (homens e mulheres) comem as próprias

línguas. Vê um lugar onde, todas de negro, as raparigas que pecaram

contra a castidade e mataram os filhos são oferecidas a dragões e a

serpentes. Vê mulheres e homens nus, os perseguidores de viúvas e de

órfãos, num lugar gelado onde metade deles arde e a outra metade ge-

IH. Finalmente (abrevio), as almas dos condenados, ao verem passar a

55



alma de um justo levada pelo arcanjo Miguel para o Paraíso, suplicam-

-lhe que interceda por elas junto do Senhor. O arcanjo convida-as, juntamente

com Paulo e os anjos que o acompanham, a suplicar a Deus,

chorando, que lhes conceda um refrigério (refrigerium). O imenso coro

de prantos que se desencadeia faz descer do Céu o Filho de Deus que

recorda a sua Paixão e os pecados delas. Mas deixa-se comover pelos

rogos de S. Miguel e de S. Paulo e concede-lhes o repouso (requies ) desde

sábado à noite até segunda-feira de manhã (ab hora nona sabbati usque

in prima secunde ferie). O autor do Apocalipse faz o elogio do domingo.

Paulo pergunta ao anjo quantas penas' do Inferno existem e o anjo responde-lhe:

cento e quarenta e quatro mil; e acrescenta que, se desde a

criação do mundo cem homens com sete línguas de ferro cada um tivessem

falado sem parar, nem sequer teriam ainda chegado ao fim da enumeração

das penas do Inferno. O autor da Visão (Vision} convida os

ouvintes desta revelação a entoarem o Veni creator.

Tal é a estrutura, numa versão do século XII, da visão do além que

conheceu maior êxito na Idade Média, antes da existência do Purgatório.

Nela se encontra uma descrição das penas do Inferno que reaparecerá em

grande parte no Purgatório, quando este tiver sido definido como um

inferno temporário. Nela se sente, sobretudo pela distinção entre os dois

infernos e pela ideia de um repouso sabático no inferno'", a necessidade

de mitigação das penas no além, de uma justiça mais discreta e mais

clemente.

Não vou deter-me no maniqueísmo e na gnose que, apesar das complexas

conexões que tiveram com o cristianismo, me parecem ser religiões

e filosofias muito diferentes. Só os contactos entre religiões e povos que

existiram no Médio Oriente dos primeiros séculos da era cristã obrigam,

parece-me, à evocação das doutrinas que puderam ter alguma influência

no cristianismo grego em larga medida, e eventualmente latino.

Se na gnose se encontram concepções do Inferno como prisão, noite,

c/oaca, deserto, a tendência para a identificação do mundo com o Inferno

limita as semelhanças com o cristianismo onde, mesmo nos melhores

tempos do desprezo do mundo (contemptus mundi) no Ocidente medieval,

essa identificação não existiu. Também não me parece que a divisão

do Inferno por cinco religiões sobrepostas, perfilhada pelos mandeístas e

pelos maniqueístas, tenha ligações com a geografia cristã do além. Resta

a obsessão das trevas que pôde estender-se tanto num sentido infernal

como num sentido místico positivo. Mas essa constitui um aspecto tão

geral do sagrado que a aproximação entre maniqueístas, gnósticos e cristãos

à volta desta concepção não me parece significativa. Quanto à angústia

do tempo, encarada como um mal essencial que faz do tempo do

inferno uma encarnação aterradora do tempo genuíno, creio aue ela afasta

do cristianismo tanto os maniqueístas como os gnósticos" .

56

Esta viagem ao mesmo tempo longa e sumária aos antigos «além» não

era uma procura das origens. Os fenómenos históricos não saem do passado

como uma criança do ventre da mãe.

Nas suas heranças, as sociedades e as épocas fazem opções. Pretendi

simplesmente explicar a opção feita pelo cristianismo latino em dois períodos,

entre os séculos III e VII primeiro, mas sem ir até ao fim da lógica

do sistema; entre meados dos séculos XII e XIII depois, de maneira decisiva,

a favor de um além intermédio entre o Inferno e o Paraíso durante o

período compreendido entre a morte individual e o julgamento geral.

Um olhar sobre o passado proporciona um duplo esclarecimento.

Permite descobrir certos elementos, certas imagens que os cristãos escolherão

para os incluir no seu Purgatório; com eles, este adquirirá certos

traços, certas cores que se compreendem melhor - se bem que inseridos

num sistema novo e tendo mudado de sentido - quando se sabe de onde,

provavelmente, vêm. Por outro lado, esses esboços antigos de crenças e de

imagens, que poderiam transformar-se numa espécie de purgatórios, fornecem

informações sobre as condições históricas e lógicas que podem

conduzir à noção de Purgatório e que podem também abortar nestas

evoluções. A noção de justiça e de responsabilidade subjacente a todas

estas tentativas não chega a desenvolver-se - em relação às estruturas

sociais e mentais - numa escala de castigos que só a metempsicose parece

ter então satisfeito. Os deuses reservavam para outros problemas - por

exemplo, o dos sacrificios - a subtileza que não lhes faltava. Debruçar-se

sobre a sorte dos mais ou menos bons, dos mais ou menos maus, teria

sido um luxo numa época em que o essencial era proceder a triagens

grosseiras, em que o cambiante pertencia frequentemente ao domínio

do supérfluo. Tanto mais que os conceitos de tempo de que dispunham

essas sociedades - mesmo que, como demonstrou Pierre Vidal-Naquet, se

tenha exagerado a ideia de um tempo circular e de um regresso eterno -

permitiam mal situar esse tempo incerto entre a morte e o destino eterno

do homem. E também, como inserir um terceiro além entre o céu e a

terra, entendida como o mundo subterrâneo dos infernos, entre aquilo

que os Gregos chamavam o celeste e o ctónico? Em todo o caso, não

nesta terra, para sempre abandonada pelo imaginário da felicidade eterna

desde o fim da idade de ouro.

Os judeus descobrem um além intermédio

Nesta reviravolta da era cristã, rica em mudanças, parece-me ter sido

decisiva para o desenvolvimento da ideia de purgatório a evolução do

pensamento religioso judaico. Encontramo-Ia nos textos rabínicos dos

dois primeiros séculos da era cristã.

57



Manifesta-se primeiro por uma maior precisão da geografia do além.

Quanto ao fundo - na maioria dos textos - não há grandes modificações.

Depois da morte, as almas vão sempre ou para um lugar intermédio, o

shéol, ou directamente para o lugar do castigo eterno, a geena, ou de

recompensas, também eternas, o Eden. Os céus são essencialmente a morada

de Deus, mas certos rabinos situam neles também a morada das

almas dos justos. Neste caso, elas estão no sétimo céu, no mais alto

dos sete firmamentos. Mas interrogamo-nos sobre as dimensões do além

e sobre a sua localização em relação à terra. O shéol é sempre subterrâneo

e escuro, é o conjunto das covas e dos túmulos, o mundo dos mortos e da

morte.

A geena situa-se sob o abismo ou debaixo da terra que lhe serve de

tampão. É possível ir até lá pelo fundo do mar, e cavando o deserto, ou

por trás. de sombrias montanhas. Comunica com a terra por um pequeno

buraco por onde passa o fogo (da geena) que a aquece. Alguns imaginam

esse buraco próximo de Jerusalém, no vale de Hinnom, para onde dão as

respectivas portas - três ou sete - entre duas palmeiras.

É imensa, sessenta vezes maior do que o Éden, e para alguns é mesmo

incomensurável; pois, feita para receber duzentas a trezentas miríades de

ímpios, aumenta todos os dias para poder acolher novos hóspedes.

O jardim do Éden é o da criação; não existe diferença entre o paraíso

terrestre de Adão e o paraíso celeste dos justos. Fica em frente ou ao lado

da geena, muito próximo para uns, mais distante para outros, de qualquer

modo separado dela por um fosso intransponível. Alguns atribuem-

-lhe uma extensão sessenta vezes maior do que a do mundo, mas outros

declaram-no incomensurável. Tem portas, geralmente três. Certos rabinos

foram lá, mas Alexandre tentou em vão transpor uma das suas portas.

Entre os justos que lá se encontram está Abraão que recebe os seus

fílhos'".

Uma outra concepção, tripartida, do destino no além é a que aparece

principalmente em certas escolas rabínicas. Dois tratados do período entre

a destruição do segundo Templo (70) e a revolta de Bar. Kochba (132-

-135) atestam em especial este novo ensinamento.

O primeiro é um tratado sobre o começo do ano (Rãs Ha-Sana). Nele

se lê:

Ensina-se, segundo a escola de Sammay: no julgamento haverá três

grupos: o dos justos perfeitos, o dos ímpios perfeitos e o dos intermédios.

Os justos perfeitos são logo lançados e confirmados para a vida do século;

os ímpios perfeitos são logo lançados e confirmados para a geena, segundo

o que é dito (Daniel, XII, 2). Quanto aos intermédios, descem à geena, ficam

enc1ausurados e voltam a subir, segundo o que é dito (Zacarias, XIII, 9 e I,

Samuel, 11, 6). Mas os hilelitas dizem: aquele que abunda em misericórdia,

58

tende para a misericórdia, e é desses que fala David (Salmo CXVI, 1) ao

afirmar que Deus escuta e pronuncia em relação a eles todo este trecho ...

oecadores israelítas e estrangeiros que pecaram no seu corpo, punidos com

a geena durante doze meses e depois aniquilados ...

O segundo é um tratado sobre os tribunais (Sanhedrin). Diz mais ou

menos a mesma coisa:

Os da escola de Sammay dizem: há três grupos, um para a vida do século,

o outro para a vergonha e o desprezo eternos; são os ímpios perfeitos, dos

quais os casos menos graves descem à geena para lá serem punidos e voltam

a subir curados, segundo Zacarias, XIII, 9; é deles que se diz (I Samuel, Il, 6):

Deus dá a morte e vivifica. Os hilelitas dizem (Êxodo, XXXIV, 6) que Deus

abunda em misericórdia; tende para a misericórdia e deles David diz todo o

trecho do Salmo CXVI, I.

Os pecadores de Israel, culpados no seu corpo, e os pecadores das nações

do século, culpados no seu corpo, descem à geena para lá serem punidos

durante doze meses, depois as suas almas são destruídas e os seus corpos

queimados e a geena vomita-os, tomam-se cinza e o vento dispersa-os sob

os pés dos justos (Malaquias, 4, 3, 3, 21).

Enfim, o rabino Aqiba, um dos maiores doutores da Michna que

morreu ao ser torturado após o revés da revolta de Bar Kochba (135),

ensinava a mesma doutrina.

«Dizia também que cinco coisas duram doze meses; o julgamento da

geração do dilúvio, o julgamento de Job, o julgamento dos Egípcios, o

julgamento de Gog e Magog no futuro, e o julgamento dos ímpios na

geena, segundo o que é dito (Isaías, LXVI, 23): de mês a mês'".»

Existe, pois, uma categoria intermédia composta por homens nem

totalmente bons nem totalmente maus, que sofrerão um castigo temporário

após a morte e em seguida irão para o Éden. Mas esta expiação far-

-se-á depois do Julgamento Final e terá lugar não num sítio especial mas

na geena. Esta concepção levará, todavia, a diferenciar na geena uma

parte superior onde acontecerão estes castigos temporários.

Há, pois, uma tendência para acentuar a «espacialização» do além e

para criar uma categoria intermédia de condenados temporários. Poderemos

pensar que, assim como no século XII o aparecimento de uma nova

espécie de intelectuais, os mestres das escolas urbanas inventores da

escolástica, foi um dos elementos decisivos para o nascimento do

Purgatório propriamente dito, também nos dois primeiros séculos da

era cristã e ligado à estrutura sociale à evolução dos quadros mentais das

comunidades judaicas, o desenvolvimento dos ensinamentos dos rabinos,

da exegese rabínica, levou os judeus à beira da concepção do purgat6ri0

48 •

59



o Purgatório cristão estará contido em embrião na Sagrada Escritura?

A doutrina cristã relativa ao Purgatório só foi aperfeiçoada - na sua

forma católica, visto que os protestantes a recusaram - no século XVI,

pelo concílio de Trento. Depois deste, os doutrinadores católicos do Purgatório,

Bellarmin e Suarez, puseram em relevo vários textos da Escritura.

Referir-me-ei aqui apenas àqueles que desempenharam efectivamente

um papel no nascimento do Purgatório.

Apenas um texto do Antigo Testamento, tirado do Livro 11 dos Macabeus

- que os protestantes não consideram canónico - foi aproveitado

pela teologia cristã antiga e medieval, de Santo Agostinho a S. Tomás de

Aquino, como prova da existência de uma crença no Purgatório. Nesse

texto, após uma batalha onde os combatentes judeus que nela foram

mortos teriam cometido um misterioso delito, Judas Macabeu ordena

que se reze por eles.

Assim, tendo bendito a conduta do Senhor, juiz imparcial que torna

manifestas as coisas escondidas, todos se puseram a orar para pedir que o

pecado cometido fosse inteiramente apagado, depois o valoroso Judas

exortou a multidão a permanecer pura de todo o pecado, atentando no que

acontecera por causa do pecado daqueles que tinham tombado. Depois, tendo

feito uma colecta de cerca de dois mil dracmas, mandou-os para Jerusalém

para que fosse oferecido um sacrificio pelo pecado, agindo muito bem e

com nobreza com o pensamento na ressurreição. Como não esperava que

os soldados caídos tivessem de ressuscitar, era supérfluo e tolo rezar pelos

mortos e, se pensava que uma belíssima recompensa estava reservada àqueles

que se vão em graça, esse era um pensamento santo e piedoso. Eis porque ele

mandou fazer aquele sacrificio expiatório pelos mortos, a fim de que ficassem

livres do seu pecado (11 Macabeus, XII, 41-46).

Tanto os especialistas do judaísmo antigo como os exegetas da Bíblia

não estão de acordo sobre a interpretação deste texto dificil que faz alusão

a crenças e a práticas que não são mencionadas em qualquer outro

documento. Não me vou meter nessas discussões. Para o meu objectivo,

o essencial é que, segundo os Pais da Igreja, os cristãos da Idade Média

viram neste texto a afirmação de dois elementos fundamentais do futuro

Purgatório: a possibilidade de um resgate dos pecados depois da morte e

a eficácia das orações dos vivos pelos mortos remíveis. Eu acrescentarei:

texto necessário para os cristãos da Idade Média porque, para eles, toda

a realidade e, por maioria de razão, toda a verdade de fé, devia ter uma

base dupla nas Escrituras, conforme a doutrina do simbolismo tipo lógico

que descobre na Bíblia uma estrutura em eco: a cada verdade do

60

Novo Testamento corresponde um trecho do Antigo Testamento que a

anuncia.

O que se passa então no Novo Testamento quanto a isto? Três textos

desempenharam um papel especial.

O primeiro está no Evangelho de Mateus (XII, 31-32-):

Digo-vos que todo o pecado e blasfémia serão remidos aos homens, mas a

blasfémia contra o Espírito Santo não será remida. E se alguém disser uma

palavra contra o Filho do Homem isso ser-Ihe-á remido; mas se falar contra o

Espírito Santo, isso não lhe será remido, nem neste mundo nem no outro.

É capital. Indirectamente - mas a exegese, pondo em evidência pressupostos,

foi habitual no cristianismo e parece-me ter fundamento lógico

. supõe e portanto afirma a possibilidade de remissão dos pecados no

outro mundo.

Um segundo texto é a história 49 do pobre Lázaro e do rico mau, que

nos conta o Evangelho de Lucas:

Havia um homem rico que se vestia de púrpura e de linho fino e todos os

dias oferecia belas refeições. E um pobre, chamado Lázaro, jazia perto do seu

portal, todo coberto de feridas. Bem queria ele poder matar a fome com o que

caía da mesa do rico. Ainda por cima, os próprios cães vinham lamber-lhe as

feridas. Ora aconteceu o pobre morrer e ser levado pelos anjos para o seio de

Abraão. O rico também morreu e sepultaram-no.

No Hades, sofrendo torturas, ele ergue os olhos e vê ao longe Abraão, e

Lázaro no seu seio. Então gritou: «Pai Abraão, tem piedade de mim e manda

Lázaro molhar em água a ponta do seu dedo para me refrescar a língua, pois

estou aflito nestas chamas.» Mas Abraão diz: «Meu filho, lembra-te de que

recebeste os teus bens durante a vida, e Lázaro os seus males. Agora aqui ele é

confortado e tu és atormentado. E não é tudo: entre nós e vós foi cavado um

grande abismo, para que aqueles que quiserem passar daí para aqui não

possam, nem também daqui para aí» (Lucas, XVI, 19-26).

Texto este que, no ponto de vista do além, precisa três pontos: o Inlemo

(Hades) e o lugar de espera dos justos (seio de Abraão) são vizinhos,

uma vez que se pode ver de um para o outro, mas estão separados

ror um abismo intransponível; no Inferno reina aquela sede caracteristica

li que Mircea Eliade chamou «a sede do morto» e que encontraremos na

base da ideia de rejrigerium 50 ; enfim, o lugar de espera dos justos é de-

Idgnado como o seio de Abraão. O seio de Abraão foi a primeira encarnação

cristã do I urgatório.

O último texto foi o que suscitou mais comentários. É uma passagem

da primeira epístola de S. Paulo aos Coríntios:

61



Na verdade, como alicerce ninguém pode colocar outro senão aquele que

lá se encontra, isto é, Jesus Cristo. Pois se sobre este alicerce se construir com

ouro, com prata, com pedras preciosas, com madeira, com feno, com palha, a

obra de cada um tornar-se-á evidente. O Dia dá-la-á a conhecer, pois ele deve

revelar-se no fogo, e é esse fogo que porá à prova a qualidade da obra de cada

um. Se a obrá construída sobre o alicerce resistir, o seu autor receberá uma

recompensa; se a sua obra for consumida, ele sofrerá a sua perda; quanto a

ele, será salvo, mas como através do fogo (I Coríntios, lU, 11-15).

Texto muito difícil, é evidente, mas que foi essencial para a génese

do Purgatório na Idade Média - que quase ~odemos seguir exclusivamente

através da exegese deste texto de Paulo 1. Porém, rapidamente se

destacou de maneira geral a ideia essencial de que a sorte no além é

diferente segundo a qualidade de cada homem, e de que existe uma

certa proporcionalidade entre os méritos e os pecados por um lado,

as recompensas e os castigos por outro, e que a prova decisiva para o

destino último de cada um terá lugar no além. Mas o momento dessa

prova parece situar-se fora do Julgamento Final. O pensamento de Paulo

está aqui muito perto do judaísmo. O outro elemento do texto de

Paulo que terá uma influência considerável é a evocação do fogo. A

expressão como através do fogo legitimará certas interpretações metafóricas

do fogo de Paulo mas no todo esta passagem autenticará a crença

num fogo real.

O papel do fogo toma a encontrar-se aqui: o Purgatório, antes de ser

considerado um lugar foi primeiro concebido como um fogo, dificil de

localizar, mas que concentrou em si a doutrina de onde iria sair o Purgatório

e contribuiu muito para esse nascimento. É pois necessário dizer

mais uma palavra a esse respeito. Desde a época da patrística, opiniões

diversas interrogam-se sobre a natureza deste fogo: é punitivo, purificador

ou probatório? A teologia católica moderna distingue um fogo do

Inferno, punitivo, um fogo do Purgatório, expiatório e purificador e

um fogo de julgamento, probatório. É uma racionalização tardia. Na

Idade Média todos estes fogos se confundem mais ou menos: primeiro

o fogo do Purgatório é irmão do do Inferno, um irmão que não está

destinado a ser eterno mas que não é por isso menos ardente durante o

seu período de actividade; depois, como o fogo do julgamento se situa no

julgamento individual logo a seguir à morte, fogo do Purgatório e fogo

do julgamento serão praticamente confundidos a maioria das vezes. Os

teólogos insistem principalmente neste ou naquele aspecto do Purgatório,

os pregadores medievais fizeram o mesmo, e os simples fiéis tiveram de, à

sua maneira, assumir a mesma atitude. O fogo do Purgatório foi ao mesmo

tempo um castigo, uma purificação e um ordálio, o que está conforme

62

com o carácter ambivalente do fogo indo-europeu bem posto em evidência

por C.-M. Edsman.

Também do Novo Testamento foi tirado um episódio que desempenhou

um papel importante se não na história do Purgatório, pelo menos

indirectamente na concepção geral do além cristão: é a descida do Cristo

aos Infernos. Baseia-se ela em três textos do Novo Testamento. Primeiro,

no Evangelho de Mateus (XII, 40). «Com efeito, tal como Jonas esteve no

ventre do monstro marinho durante três dias e três noites, assim o Filho

do Homem estará no seio da terra durante três dias e três noites.» Os

Actos dos Apóstolos (11, 31) reportam o acontecimento ao passado:

«Ele (David) viu de antemão e anunciou a ressurreição do Cristo que,

na verdade, não foi abandonado no Hades e cuja carne não se corrompeu.»

Enfim, na Epístola aos Romanos (X, 7) Paulo, ao opor a justiça

nascida da fé à justiça nascida da antiga lei, faz falar assim a justiça

nascida da fé: «Não digas no teu coração: Quem subirá ao céu? ouve:

para lá fazer descer o Cristo, ou então: Quem descerá ao abismo? ouve:

para fazer subir o Cristo de entre os mortos.»

A descida do Cristo aos Infernos

Este episódio - para além, evidentemente, do seu sentido propriamente

cristão: prova da divindade do Cristo e promessa da ressurreição que

há-de vir - situa-se numa velha tradição oriental bem estudada por Joseph

Kro1l 52 . É o tema do combate de Deus-sol com as trevas, no qual o

reino onde o sol deve combater as forças hostis é equiparado ao mundo

dos mortos. Este tema conhecerá grande êxito na liturgia medieval: nas

fôrmulas de exorcismo, nos hinos, nas laudes, nos tropos, e finalmente

nos jogos dramáticos do fim da Idade Média. Mas é através dos esclarecimentos

dados por um evangelho apócrifo, o Evangelho de Nicodemo,

que o episódio se vulgariza na Idade Média. O Cristo, quando da sua

descida aos infernos, tira de lá uma parte daqueles que lá estavam enclausurados,

os justos não baptizados por serem anteriores à sua vinda à

lerra, quer dizer, essencialmente os patriarcas e os profetas. Mas aqueles

que ele lá deixou continuarão enclausurados até ao fim dos tempos. Porque

selou o Inferno para sempre com sete selos. Na perspectiva do Puraatório,

este episódio tem uma importância tripla: mostra que existe,

mesmo que só excepcionalmente, uma possibilidade de suavizar a situaçlo

de certos homens depois da morte, mas afasta o Inferno dessa possibilidade,

visto que foi fechado até ao fim dos tempos; enfim.cria um novo

lugar do além, os limbos, cujo aparecimento será mais ou menos contemporâneo

do do Purgatório, no seio da grande remodelação geográfica do

além no século XII.

63



Orações

pelos mortos

o mais importante é que os cristãos adquiriram, parece que muito

cedo, o hábito de rezar pelos seus mortos. Em relação à Antiguidade esta

atitude era uma novidade. Segundo uma fórmula feliz de Salomon Reinach,

«os pagãos pediam aos mortos, enquanto os cristãos pedem pelos

mortoss-", É claro que, como os fenómenos de crenças e mentalidades

não aparecem subitamente, a intervenção dos vivos a favor dos seus mortos

que sofrem no além encontra-se em certos meios pagãos, sobretudo ao

nível popular. Tal foi o caso do orfismo:

Orfeu diz: Os homens ... praticam acpões sagradas para obter a salvapâo dos

antepassados impios; tu, que tens poder sobre eles ... tu liberta-Ios das grandes

penas e da imensa torturà",

Estas práticas desenvolveram-se cerca da era cristã e mais uma vez se

trata de um fenómeno de época, particularmente sensível no Egipto, local

de encontro por excelência das nações e das religiões. Diodoro da Sicília,

que viajou para lá cerca de 50 a.C., ficou espantado com os costumes

fúnebres dos Egípcios: «No momento em que a caixa que contém o morto

é colocada sobre a barca, os sobreviventes invocam os deuses dos infernos

e suplicam-lhes que o admitam na morada reservada aos homens

piedosos. A multidão acrescenta a isto as suas aclamações acompanhadas

de votos ~or que o defunto goze no Hades da vida eterna, em companhia

dos bons 5.»

Deve-se, sem dúvida, recolocar neste contexto a passagem do Segundo

Livro dos Macabeus feito por um judeu de Alexandria durante o meio

século que precedeu a viagem de Diodoro ", Testemunha ele da ausência

do hábito de rezar pelos mortos na época de Judas Macabeu (cerca de

170 a.C.), cujas inovações surpeendem, e da realidade desta prática entre

certos judeus um século depois. Devemos, sem dúvida, ligar a crenças deste

género o estranho costume de que fala S. Paulo em I Coríntios (XV, 29-30)

onde'afírma a realidade da ressurreição: «Se assim não fosse, o que ganhariam

aqueles que se fazem baptizar em vez dos mortos? Se os mortos não

ressuscitam mesmo, porquê então fazerem-se baptizar em vez deles?» Este

baptismo para os mortos não era o baptismo cristão mas o baptismo que

recebiam os prosélitos gregos que se convertessem ao judaísmo.

O enorme processo epigráfico e litúrgico sobre as orações pelos mortos

foi muitas vezes explorado para provar a antiguidade da crença cristã

no Purgatório:". Estas interpretações parecem-me abusivas. As graças

que se suplica a Deus sejam concedidas aos mortos invocam essencialmente

a bem-aventurança paradisíaca, em todo o caso um estado definido

pela paz (pax) e pela luz (/ux). É preciso esperar pelo fim do século V

64

(ou princípio do VI) para encontrar uma inscrição que fale da redenção da

alma de um defunto. Trata-se de uma inscrição galo-romana de Briord,

cujo epitáfio contém a fórmula pro redemptionem animae suae", Por outro

lado, nestas inscrições e nestas preces, não se trata de um lugar de

redenção ou de espera que não o tradicional segundo o Evangelho, o

«seio de Abraão», Mas é essencial para a constituição do terreno onde

se desenvolverá mais tarde a crença no Purgatório que os vivos se preocupem

com a sorte dos mortos, que para além da sepultura mantenham

com eles laços que não sejam os da invocação da protecção dos defuntos

mas da utilidade das preces feitas em sua intenção.

Um lugar de consolo: o «refrígeruaa»

Alguns destes textos evocam, enfim, um lugar que, embora muito próximo

do seio de Abraão, nem sempre se confunde com ele: o refrigerium.

Várias inscrições funerárias contêm as palavras refrigerium ou

refrigerare, conforto, confortar, sozinhas ou associadas à pax (paz): in

pace et refrigerium, esto in refrigerio (que ele esteja no refrigerium), in

refrigerio anima tua (que a tua alma esteja no refri1erium), deus refrigeret

spiritum tuum (que Deus conforte o teu espíritor' .

Um excelente estudo filológico de Christine Mohrmann definiu bem a

evolução semântica de refrigerium do latim clássico para o latim cristão.

«Ao lado destes sentidos um tanto vagos e vacilantes, refrigerare e

refrigerium assumiram, no idioma dos cristãos, um sentido técnico bem

definido, a saber, o da bem-aventurança celestial. Este refrigerium encon-

Ira-se já em Tertuliano, onde designa tanto a felicidade provisória das

almas que aguardam, segundo uma concepção pessoal de Tertuliano, o

regresso do Cristo ao seio de Abraão, como a felicidade definitiva no

Paraiso, de que gozam, depois da morte, os mártires, e que é prometida

1I0S eleitos após o veredicto divino último ... Entre os autores cristãos

posteriores, refrigerium exprime de uma maneira Jeral as alegrias do

ulém-túmulo, prometidas por Deus aos seus eleitos .»

Na pré-história do Purgatório o refrigerium só ocupa um lugar especial

por causa da concepção pessoal de Tertuliano a que alude Christine

Mohrmann. Com efeito, o refrigerium designa, como se viu, um estado de

felicidade quase paradisíaca e não representa um lugar. Mas Tertuliano

imaginou uma variedade especial de refrigerium, o refrigerium interim,

conforto intermédio destinado aos mortos que, entre a morte individual

c () julgamento definitivo, são julgados por Deus dignos de um tratamen-

10 de espera privilegiado.

O africano Tertuliano (que morreu depois de 220) escrevera um pequeno

tratado hoje perdido onde sustentava que «toda a alma estava

65



fechada nos Infernos até ao dia (do julgamento) do Senhor» (De anima,

LV, 5). Era o retomar da concepção do Antigo Testamento sobre o shéo/.

Estes infernos são subterrâneos e foi lá que Cristo desceu durante três

dias (De anima, LIV, 4).

Na sua obra Contra Marcion e no seu tratado Sobre a Monogamia,

Tertuliano precisou o seu pensamento sobre o além e exprimiu a sua

concepção do refrigerium. Pretendia Marcion que não só os mártires

mas também os simples justos eram admitidos no céu, no paraíso, logo

após a morte. Tertuliano, baseando-se na história do pobre Lázaro e do

rico mau, pensa que a residência dos justos enquanto esperam a ressurreição

não é o céu mas um refrigerium interim, um consolo intermédio, o

seio de Abraão: «Esse lugar, quero dizer o seio de Abraão, ainda que não

seja celestial, mas superior aos infernos, oferece às almas dos justos um

refrigério intermédio até que a consumação das coisas suscite a ressurreição

geral e a concretização da recompensa ...» (Adversus Marcionem, IV,

34)61. Até lá, o seio de Abraão será «o receptáculo temporário das almas

fiéis 62 ».

De facto, o pensamento de Tertuliano é ainda muito dualista. Para ele

existem dois destinos opostos, um de castigo expresso pelos termos de

tormento (tormentum), suplício (supplicium) e tortura (cruciatus), o outro

de recompensa, designada pela palavra refrigério (refrigerium ), Dois

textos precisam mesmo que cada um destes destinos é eterno'".

Em compensação, Tertuliano insiste muito nas oferendas pelos defuntos,

feitas no aniversário da sua morte, e sublinha que uma prática piedosa

pode basear-se na tradição e na fé sem ter base nas Escrituras, o que

será (sob reserva de Mateus, XII, 32, e de Paulo, 1 Coríntios III; 10-15),

mais ou menos o caso do Purgatório: «As oblações pelos defuntos, fazemo-Ias

no dia do aniversário da morte ... Se procurares nas Escrituras

uma lei formal destas práticas e de outras semelhantes, não a encontrarás.

É a tradição que as assegura, o costume que as confirma e a fé que as

cumpre (De corona militis, 111,2_3)64.

A inovação do Tertuliano, se é que alguma existe, no que respeita à

pré-história do Purgatório, é o facto de os justos passarem por um refrigério

intermédio antes de conhecerem o refrigério eterno. Mas esse lugar

de refrigério não é verdadeiramente novo, é o seio de Abraão. Entre o

refrigerium interim de Tertuliano e o Purgatório existe uma diferença

não só de natureza - aqui uma espera repousante, ali uma provação purificadora

porque punitiva e expiatória - mas também de duração: o

refrigerium acolhe as almas até à ressurreição, o Purgatório apenas até

ao fim da expiação.

O refrigerium interim tem feito correr muita tinta. O debate mais esclarecedor

foi o que opôs o historiador da arte paleocristã, Alfred Stuiber,

a diversos críticos dos quais o principal é L. de Bruyne'". Este

66

resumiu assim as suas objecções: «Segundo esta teoria ... o que teria sido

deterrninante na escolha e elaboração dos temas da arte sepulcral primitiva

seriam as incertezas que alimentariam as primeiras gerações cristãs

sobre a sorte imediata das almas dos seus parentes mortos, obrigadas a

esperar a ressurreição final na solução provisória e incerta do Hades subterrâneo.

Não há ninguém que não veja o que existe de inverosímil em

semelhante pretensão, desde que a iluminemos com o optimismo e a alegria

que constituem uma das tendências mais fundamentais da arte das

catacumbas'".»

Claro que se deve desculpar a frase «não há ninguém que não veja o

que existe de inverosimil..», que exprime a ingenuidade do especialista ao

ulargar ao conjunto dos seus leitores a posição supostamente comum a

um pequeno grupo de peritos; e que, sobretudo, substitui por uma afirmação

de evidência gratuita a demonstração desejável.

Mas se procurarmos entendê-Ia, parece-me que L. de Bruyne tem ra-

I.tIoem dois pontos importantes: a análise da maioria das obras de arte

funerária em que se baseia Alfred Stuiber não permite que se afirme uma

crença incerta num refrigerium interim porque, como pensa com toda a

sua competência L. de Bruyne, a arte das catacumbas exprime mais certezas

do que inquietações, e sem dúvida também porque - conforme se

reencontrará na Idade Média em relação ao Purgatório - a representação

figurada de uma ideia subtil como o refrigerium interim foi muito difícil

de materializar. Mas em compensação esse «optimismo», sem dúvida reforçado,

se é que não imposto por autoridades eclesiásticas, já então muito

autoritárias, não deve disfarçar a incerteza muito provavelmente

••limentada pela maioria dos cristãos sobre a sorte no além, antes do

julgamento e da ressurreição. Incerteza que tinha, pelo menos, um duplo

Iundamento: um, doutrinal, porque as Escrituras e a teologia cristãs estuvam

então bem longe de possuirem concepções claras neste domínio; o

nutro, existencialista, porque, perante o optimismo militante, existia entre

IIH cristãos, como entre os pagãos da Antiguidade tardia, essa «ansiedade

profunda que Dodds tão bem analisou 67 .

A primeira imaginação de um Purgatório: a visão de Perpétua

Resta dizer que a ideia e a imagem do refrigério inspiraram - no meio

0111 que vivia Tertuliano - o mais antigo texto onde se perfila o imaginário

do Purgatório.

Trata-se de um texto extraordinário pela natureza e pelo conteúdo: é a

Paixâo de Perpétua e de Felícidade 68 . Quando da perseguição dos cristãos

.fricanos por Sétimo Severo em 203, um grupo de cinco cristãos, duas

mulheres, Perpétua e Felicidade, e três homens, Saturo, Saturnino e Re-

67



vocato foram condenados à morte próximo de Cartago. Durante a sua

permanência na prisão, nos dias que precederam o martírio, Perpétua,

ajudada por Saturo, escreveu ou conseguiu transmitir oralmente as suas

recordações a outros cristãos. Um destes redigiu o texto e acrescentou-lhe

um epílogo em que narra a morte dos mártires. Os críticos mais severos

não duvidam da autenticidade do texto quanto ao essencial da forma e do

conteúdo. As circunstâncias da elaboração deste opúsculo, a simplicidade

e a sinceridade do seu tom, fazem dele um dos mais como ventes testemunhos

da literatura cristã e da literatura simplesmente. No decurso da sua

detenção, Perpétua teve um sonho e viu o seu pequeno irmão Dinócrates

morto.

Alguns dias depois, quando estávamos todos em oração, chegou-me

subitamente aos ouvidos uma voz, e o nome de Dinócrates escapou-me.

Fiquei estupefacta porque nunca pensara nele antes desse momento;

penalizada, recordei a sua morte. Logo compreendi que era digna de pedir

qualquer coisa para ele e que devia fazâ-lo. Comecei uma longa prece,

dirigindo ao Senhor os meus lamentos. Na noite seguinte, eis o que me

apareceu: vejo Dinócrates a sair de um lugar de trevas onde se encontrava

com muitos outros, todo em brasa e cheio de sede, sujo e andrajoso, tendo

na face a chaga que tinha quando morreu. Dinócrates era o meu próprio

irmão; morreu de doença com a idade de sete anos, com o rosto devorado

por um cancro maligno e a sua morte revoltou toda a gente. Eu rezara por

ele: e entre mim e ele a distância era tão grande que não podíamos juntar-nos.

No local onde se encontrava Dinócrates havia um recipiente cheio de água,

com a parte de cima alta de mais para o tamanho de uma criança. E

Dinócrates punha-se na ponta dos pés como se quisesse beber. Eu sofria

por ver que havia água no recipiente, mas que ele não poderia beber por

causa da sua altura. Acordei e compreendi que o meu irmão estava a ser

posto à prova; mas não duvidei de que poderia socorrê-Io na sua provação.

Rezei por ele todos os dias até irmos para a prisão do Palácio imperial; com

efeito, tínhamos de ir combater nos jogos oferecidos pelo Palácio pelo

aniversário do César Geta. E eu rezava por ele noite e dia, lamentando-me

e chorando para ser ouvida."

Alguns dias depois Perpétua tem uma nova visão:

No dia em que nos puseram a ferros, eis o que me apareceu: vi o local que

já vira antes, e Dinócrates com o corpo limpo, bem vestido e confortado

(refrigerantem] e no sítio da chaga vi uma cicatriz; e o recipiente que eu vira

estava agora à altura do umbigo da criança; e a água corria sem parar. E por

cima do recipiente havia uma taça de ouro cheia de água. Dinócrates

aproximou-se e começou a beber, e a taça não ficava vazia. Depois,

dessedentado, começou a brincar alegremente com a água, como fazem as

crianças. Acordei e compreendi então que ele estava livre do seu tormento.I''

68

A palavra importante é refrigerantem. É mais do que evidente que ela

nos reconduz à noção de refrigerium.

Este texto excepcional não é absolutamente novo nem está completamente

isolado no começo do século III. Uma obra grega apócrifa que se

Julga datar do fim do século lI, os Actos de Paulo e de Tecla 7l , fala de

preces por uma jovem morta. A rainha pagã Trifena pede nesse documento

à filha adoptiva, a virgem cristã Tecla, que reze pela sua filha carnal

Falconila, que morrera. Tecla pede a Deus a salvação eterna para Palconila.

Tertuliano, em quem por vezes se quis ver - o que é certamente falso -

o redactor da Paixão de Perpétua e de Felicidade mas que vivia em Cartugo

na época do seu martírio, conhecia os Actos de Paulo e de Tecla, que

cita na sua obra De baptismo (XVII, 5), e afirma noutra obra que uma

viúva cristã deve rezar pelo seu esposo morto e pedir para ele o refriger/um

interim, o refrigério intermédio 72.

Não se deve exagerar nem minimizar a importância da Paixão de Per-

"flua e de Felicidade para a pré-história do Purgatório.

Não se trata aqui propriamente de Purgatório, e nenhuma das ima-

Mensnem dos mortos destas duas visões estarão presentes no Purgatório

medieval. O jardim onde se encontra Dinócrates é quase paradisíaco, pois

1140 é um vale, nem uma planície, nem uma montanha. A sede e a incapacidade

de que sofre são referidas como um mal mais psicológico do que

moral. Trata-se de tormento psicofisiológico, labor, e não tormento-punição,

poena, como em todos os textos respeitantes às prefigurações do

Purgatório e ao Purgatório em si mesmo. Aqui não existe julgamento

nem castigo.

A partir de Santo Agostinho, este texto será no entanto utilizado e

eomentado na perspectiva do pensamento que conduzirá ao Purgatório.

Truta-se primeiro de um lugar que não é o shéol, nem o Hades nem o seio

de Abraão. Nesse lugar um ser que, apesar da sua pouca idade devia ser

pecador, pois a chaga, o cancro (vulnus, facie cancerata) que tem no

mito quando da primeira visão e que desaparece na segunda, não pode

IIr, segundo o sistema cristão, senão o final visível do pecado, sofre de

lide, sofrimento característico dos castigados no além 73. E salvo graças às

preces de alguém que é digno de obter o seu perdão. Primeiro pelos laços

oarnais: Perpétua é a irmã carnal; mas também e sobretudo pelos seus

méritos: mártir num futuro próximo, alcançou o direito de intercessão

pelos seus parentes junto de Deus?'.

Não vou brincar aos fazedores de patronos numa altura em que a

I,reja católica revê tão severamente o seu calendário hagiográfico. Mas

• Impressionante que o Purgatório já balbucie neste texto admirável, sob

111 auspícios duma santa tão comovente.

69



NOTAS

1 Estes excertos são tirados do Chandogya Upanishad e são citados e interpretados

por Jean VARENNE, «Le jugement des morts dans l'Inde» in Le Jugement des morts

(Sources orientales, IV), Paris, 1961, pp. 225-226.

2 lbid. pp. 215-216. Ver também L. SCHERMANN, «Eine Art Visionãrer Hõltenschílderung

aus dem indischen Mittelalter. Nebst einigen Bemerkungen über die ãlteren

Vorstellungen der Inder von einer strafenden Vergeltung nach dem Tode» in

Festschrift Konrad HOFFMANN Romanische Forschungen, 5, 1890, pp. 539-582.

3 Cf. J. D. C. PAVRY, The Zoroastrian doctrine of a future life, Nova Iorque, 1926;

J. DUCHESNE-GUILLEMIN, La Reiigion de l'Iran ancien, Paris, 1962.

4 Ver. o artigo «Bridge» de G. A. Frank KNIGHT em «ERE», t. 2.

S J. DUCHESNE-GUILLEMIN, La Religion de l'Iran ancien, p. 335.

6 J. YOYOITE, «Le Jugemnet des morts dans I'«Egypte ancien» in Le Jugement

des morts, p. 69. .

1 E. HORNUNG, Alãtãgyptische Hõllenvorstellungen. Anhandlungen der SChS1Schen

Akademie der Wissenschaften zu Leipzig, Philologish-historische Klasse, Fig. 59,

T. 3, Berlim, 1968.

8 Ibid.; pp. 9-10. .

9 E. A. W. BUDGE, The Egyptian Heaven and Hell, t. III, Londres, 1906, introd, p.

XII, citado e traduzido por C. M. EDSMAN, Le Baptême de feu, p. 73.

\O Ver, por exemplo, Victor BÉRARD, Les Navigations d'Ulysse, IV, Circé et les

morts, Paris" 1929, pp. 281-372, que põe demasiado empenho na procura de lugares

geográficos reais. Este realismo geográfico mascara por vezes o essencial que é a combinação

de uma estrutura do imaginário com uma tradição cultural. Pois não se pretendeu

repartir as evocações do quente e do frio nas visões do Purgatório entre autores

mediterrânicos e autores nórdicos? Na origem está um binário frio-quente como se viu,

e a sua origem é provavelmente indo-europeia. Não é razão para nele ver o reflexo do

clima do Tibete ou do Cáucaso.

li V. GOLDSHMIDT, La Re/igion de Platon, Paris, 1949, em especial o capitulo

«Châtiments et rêcornpenses», pp. 75-84.

12A. BOULANGER, Orphée. Rapports de l'orphisme et du çhristianisme, Paris, 1925.

\3 Ibid., p. 128.

14PÍNDARO, t. I, Col. G. Budé, Les Belles Lettres, trad. Aimé Puech, Paris, 1922,

p.45.

15Brooks, OTIS, Virgil. A Study in Civilized Poetry, Oxford, 1964.

16E. NORDEN, P. Virgilius Maro, AEneis Buch VI, 4" ed., Darmstadt, 1957, pp.

207-349. Sobre as reacções cristãs ver P. COURCELLE, «Les Pêres de l'Église devant

lcs enfers virgiliens» in Archives d'histoire doctrinale e/ /ittéraire du Moyen Âge, 22,

1955.

11 Hinc exaudiri gemitus, e/ saeva sonare

verbere, tam stridor ferri tractae catenae

constitit AEneas, strepituque exterritus haesit (versos 557-9).

18Ahi quanto son diverse quelle foei

dall'infernali! ché quivi per canti

s'entra, e là giu per lamenti feroce (Purgatório, XII, 112-114).

19 .•. camposque nitentis

desuper ostentat ... (Eneida, VI, 677-678).

20Trad. A. Bellessort. Col. Budé, pp. 191-192.

21Cf. E. EBELING, Tod und Leben nach den Vorstellungen der Babylonier, Berlim-

-Leipzig, 1931. Sobre o valor «sagrado», ambíguo, das trevas entre os antigos gregos,

ver Maja REEMDA SVILAR, Denn das Dunkel ist heilig. Ein Streifzug duch die

l'syche der archaischen Griechen, Berna-Francfort, 1976.

22Cf. J.-M. AYNARD, «Le Jugement des morts chez les Assyro-Babyloniens» in

IA! Jugement des morts (Soursces orientales, IV), pp. 83-102.

23 Cf. P. DHORME, «Le Séjour des mots chez les Babyloniens et les Hêbreux» in

Revue Biblique, 1907, pp. 59-78.

24Os meandros do shéol encontram-se em II Samuel, XXII, 6; Job, XVIII, 710; o

lema encontra-se também entre os Egípcios. Cf. M. ELIADE, Images et Symboles.

Essai sur le symbolisme magico-religieux, Paris, 1952, pp. 124, 152.

25Além da leitura do Antigo Testamento consultei J. PEDERSEN, Israel, its life

und culture, I-lI, Londres-Copenhague, 1926, p. 460 e ss.; R. MARTIN-ACHARD, De

ItI mort à Ia Réssurrection d'aprês l'Ancien Testament, Neuchâte1-Paris, 1956; N. J.

TROMP, Primitive Conceptions of Death and the Other World in the Old Testament

(Bíblia e Orientalia, 21), Roma, 1969. Este último estudo explica o Antigo Testamento

pelos textos ugariticos encontrados em Ras Shamra.

26 Cf. ZNADEE, Death as an Enemy according to Ancient Egyptian Conceptions,

J.eyde, 1960.

27 E ainda Job, XII, 22; XV, 22; XVII, 13; XVIII, 18; XIX, 8; XXVIII, 3;

XXXVIII, 16-17.

28 Sigo esta versão na tradução e o comentário de François MARTIN Le Livre

d'lténocn traduit sur le texte éthiopien, Paris, 1906.

29 The Fourth Book of Esra. The latin version. Ed. R. L. Bensly com uma introdu-

<"110 de M. R. James, Cambridge, 1895.

30 Si inveni gratiam coram te, domine, demonstra et hoc servo tuo, si post mortem vel

nunc quando reddimus unusquisque animam suam, si conservati conservabimur in requie,

donec veniant tempora iIla in quibus incipies creaturam renovare aut amodo crueiamur

(VII, 75).

31 ... in habitationes non ingredientur, sed vagantes errent amodo in cruciamentis,

dolentes semper et tristes per septem vias (VII, 79-80).

12 Quinta via, videntes aliorum habitacula ab angelis conservari cum silentio mango

I VII, 82).

33 Habitacula sanita tis et securitatis (VII, 121).

34 Septem diebus erit libertas earum ut videant septem diebus qui predicti sunt sermimes,

et postea conjugabuntur in habitaculis suis (VII, 199-201).

70

71



3S Quintus ordo, exultantes quomodo eorruptibile effugerint nunc etfuturum quomodo

hereditatem possidebunt, adhue autem videntes et (labore ) plenum, a quo liberati sunt,

et spatiosum incipient recipere, fruniscentes et immortales (VII, 96).

se Animarum autem superiora esse habitacula (De bono mortis, X, 44, MIGNE,

Patrologie latine, t. 14, col. 560).

37 Eo quod spatium, inquit (Esdras ) incipiunt recipere fruentes et immortales (Ibid.,

col. 562).

38 Sobre o apocalipse judaico-cristão ver J. DANIÉLOU, Théologie du judéo-

-christianisme, I, Paris-Tournai, 1958, pp. 131-164.

39 Existe um texto etíope e um texto grego. Foram objecto de uma excelente tradução

para alemão: E. HENNECKE-W. SCHNEEMELCHER Neutestamentliche

Apokryphen in deutscher Ubersetzung, 3° vol., lI, Tübingen, 1964, pp. 468-483.

40 A. HARNACK, «Die Petrusapokalypse in der alten abendlãndischen Kirche» in

Texte und Untersuchungen zur Gesehiehte der altehristliehen Literatur, XIII, 1895, pp.

71-73.

41 Ver Apoealypsis Esdrae. Apoealypsis Sedraeh. Visio Beati Esdrae, ed. O. Wahl,

Leyde, 1977.

42 A redacção longa foi publicada por M. R. JAMES in Apoerypha anecdota

(Texts and Studies, 11, 3, 1893, pp. 11-42). A redacção curta mais conhecida, a redacção

IV, foi publicada por H. BRANDES in Visio S. Pauli: Ein Beitrag zur Visionlitteratur,

mit einem deutschen und zwei lateinischen Texten, Halle, 1885, pp. 75-80. Foi

publicada uma versão em francês antigo por P. MEYER, «La descente de saint Paul

en Enfer» in Romania, XXIV (1895), pp. 365-375. As outras versões curtas foram

publicadas por Theodore SILVERSTEIN, Visio Saneti Pau/i. The History ofthe Apoealypse

in Latin together with nine Texts, Londres, 1935, com uma notável introdução

fundamental.

43 AGOSTINHO, Traetatus in Joannem, XCVIII, 8.

44 A ideia do repouso sabático foi tirada dos judeus, entre os quais fazia parte das

crenças populares. Cf. Israel LEVI, «Le repos sabbatique des ãmes damnêes», in Revue

des Études juives l892, pp. I a 13. Ver também a introdução de Theodore SIL VERS-

TEIN, Visio Sane ti Pau/i, pp. 79-81: «The sunday Respite».

45 Li sobretudo as obras de H.-Ch. PUECH, «La Ténêbre mystique chez le pseudo-

-Denys l'Aréopagite et dans Ia tradition patristique» (1938), retomadas em En quête de

Ia Gnose, I, Paris, 1978, pp. 119-141 e «Le Prince des Ténêbres en son royaume» in

Études carmélitaines, 1948, pp. 136-174 (volume consagrado a Satanás). Sobre a angústia

do tempo do Inferno ver En quête de Ia Gnose, I, p. 247 e ss.

46 Ver J. BONSIRVEN, Esehatologie rabbinique d'aprés les Targums, Talmuds,

Midrasehs. Les éléments communs avec le Nouveau Testament, Roma, 1910.

47 J. BONSIRVEN, Textes Rabbiniques des deux premiers siêcles chrétiens pour

servir à l'intelligence du Nouveau Testament, Roma, 1955, pp. 272 e 524. René Gutman

faz-me notar que «o tratado talmúdico, "Principes de Rabbi Nathan", afirma que as

almas dos ímpios erram pelo mundo, murmurando sem descanso. Um anjo está numa

extremidade do mundo e outro na outra extremidade e juntos lançam as almas para a

frente e para trás. Os rabinos imaginavam um verdadeiro Purgatório aéreo onde as

almas pecadoras eram lançadas e reboladas em turbilhões fortíssimos que tinham por

missão purificá-Ias e permitir-Ihes o acesso ao céu».

48 Sobre o contexto destes textos rabínicos ver o livro clássico de P. VOLZ,

Die Eschatologie der jüdisches Gemeinde im neutestamentlicher Zeitalter, Tübingen,

1934.

72

49 Emprego este termo e não parábola intencionalmente, seguindo nisto Pierre le

Man~eur que explica no século XII que não se trata de parábola mas de um exemplum.

5 M. ELIADE, Traité d'histoire des religions, Paris, 1953, pp. 175-177.

51 Os comentários patrísticos e medievais deste texto foram excelentemente analisados

em dois estudos. A. LANDGRAF, «I Cor. III, 10-17, hei den lateinischen Vãtem

und in der Frühscholastik» in Biblica, 5, 1924, pp. 140-172 e J. GNILKA, 1st 1

Kor, 3, 10-15 ein Schriftzeugnis für das Fegfeuer? Eine exegetisch-historische Untersuchung,

Dusseldorf, 1955. C.-D. EDSMAN, Ignis Divinus, citado p. 19, nO2.

52 J. KROLL, Gott und H61le. Der Mythos vom Descensuskampfe, Leipzig-Berlin,

1932. W. BIEDER, Die Vorstel/ung von der Hõllenfahrt Jesu Christi, Zurich, 1949.

53 S. REINACH, «De l'origine des priêres pour les morts» in Revue des Études

luives, 41 (1900), p. 164.

54 Orphicorum Fragmenta, ed. O. Kern, Berlim, 1922, p. 245, citado por J. NTE-

D1KA, L'Évoeation de l'au-delà dons Ia priêre pour les morts. Étude de patristique et de

litur~ie Iatines (IV- VIII' siêcles) Louvain-Paris, 1971, p. 11.

5 DIODORO DE SICILIA, 1,91, citado por S. Reinach, p. 169.

56 Ver supra, p. 64.

57 Por exemplo, H. LECLERCQ, artigo «Défunts», in Dictionnaire d'Histoire et

d'Archéologie eec/ésiastiques, t. IV, col. 427-456 e artigo «Purgatoire», ibid., t. XIVj2,

1948, col. 1978-1981. F. BRACHA, De existentia Purgatorii in antiquitate christiana,

Cracóvia, 1946.

58 Dictionnaire d'Histoire et d'Archéologie ecclésiastiques, t. XIVj2, col. 1980-1981.

59 lbid., t. IV, 447.

60 C. MOHRMANN, Locus refrigerii in B. BOTTE-C. MOHRMANN,

l.Urdinaire de Ia messe. Texte critique, traduction et études, Paris-Louvain, 1953, p.

127. De C. MOHRMANN também, «Locus refrigerii, lucis et pacis» in Questions

fltur~iques et paroissiales, 39 (1958), pp. 196-214.

I «Eam itaque regionem, sinum dico Abrahae, etsi non caelestem, sub/imiorem tamen

inferis, interim refrigerium praebere animabus iustorum, donec consummatio rerum ressurrectionem

omnium plenitudine mereedis expungat ...»

62 « ... Temporale a/iquos animarum fide/ium receptaculum ...»

63 «Herodis tormenta et Iohannis refrigeria: mercedem ... sive tormenti sive refrigerii

i Adv, Mare., 34), per sententiam aeternam tam sup/icii quam refrigerii (De anima,

XXXIII, 11); supp/icia iam illic et refrigeria (De anima, LVIII, 1); metu aetemi supplidi

et spe aetemi refrigerii (Apologeticum, XLIX, 2); aut cruciatui destinari aut refrigerio,

utroque sempiterno. Cf. H. FINE, Die Terminologie der Jenseitsvorstellungen bis

Tenullian, Bona, 1958.

64 Trad. de J. GOUBERT e L. CRISTIANI: Les plus beaux textes sur l'au-delà,

Paris, 1950, p. 183 e ss.

65 A. STUIBER, Refrigerium interim. Die Vorstellungen vom Zwischenzustand UM

di.' frühchristliche Grabekunst, Bona, 1957. De BRUYNE, «Refrigerium interim» in

Rivista di archeologia cristiana, 34, 1958, p. 87-118 e ibid., 35, 1959, pp. 183-186.

66 De BRUYNE, 1959, p. 183.

67 E. R. DODDS, Pagan and Christian in an Age of Anxiety, Cambridge, 1965.

68 Passio sanctarum Perpetuae et Fe/icitatis, ed. C. van Beek, Nimêgue, 1936. O

nrtigo de F. J. DOLGER «Antike Parallelen zum leidenden Dinocrates in der Passio

l'erpetuae» in Antike und Christentum, 2, 1930, 1974, pp. 1-40, sublinhando um clima

Kcralà volta deste texto, não acrescenta grande coisa ao seu significado que continua a

Hcr profundamente original. E. R. OODDS, Pagan and Christian in an Age of Anxiety,

73



pp. 47-53, faz um comentário interessante à Passio Perpetuae, mas numa perspectiva

diferente da da prefiguração do Purgatório.

69 Ed. Van Beek, p. 20.

70 lbid., p. 22.

71 L. VOUAUX, Les Apocryphes du Nouveau Testament, Les Actes de Paul et ses

lettres apocryphes, Paris, 1913.

72 Enimvero et pro anima eius orat, et refrigerium interim adpostulat ei (De monogamia,

X, 4).

73 Sobre «a sede do morto» ver Mircea ELIADE, Traité d'Histoire des religions,

Paris, 1953, pp. 175-177. Não acredito numa correlação «climática» entre sede e fogo

por um lado e as concepções «asiáticas» do Inferno e «temperatura diminuída» (frio,

gelo, e pântanos gelados e as concepções «nórdicas» por outro lado. E. R. DODDS

(Pagan and Christian in an Age of Anxiety, pp. 47-53) faz notar a justo título que a

piscina da Paixão de Perpétua evoca o baptismo. O problema de saber se Dinócrates

era ou não baptizado interessou os autores cristãos antigos, especialmente Santo Agostinho.

74H .-1. M AR' ROU, citando P.-A. FEVRIER ' (cl,e culte des martyrs en Afrique et

ses plus anciens monuments», in Corsi di cultura sull'arte ravennate e bizantina, Ravena,

1970, p. 199), chamou a atenção, pouco antes da sua morte, para uma inscrição

africana, interessante para a noção de refrigerium: «Um detalhe curioso - e novo _

encontra-se nos túmulos de Tipasa: é a presença destas cisternas e poços e a importância

atribuída à água. Esta não surge apenas como um dos elementos da refeição

mas também aspergida sobre o túmulo; podemos perguntar-nos se ela não será necessária

ao refrigerium de que falam os textos. Sabe-se, com efeito que, a partir da sua

primeira acepção, este termo refrigerium é uma das imagens mais dominantes das que

serviram aos Antigos, pagãos primeiro e depois cristãos (Actos, III; 20) para evocar a

felicidade de além-túmulo. A palavra, por extensão, designava essa refeição fúnebre

que um simbolismo mais ou menos directo relacionava com a felicidade esperada. Em

presença de um monumento como o nosso, é lícito imaginar que um lençol de água

estendido por cima de um cenário de animais marinhos permitia entender de alguma

maneira concreta essa noção de «refrigério», refrigerium, ligada ao banquete fúnebre.»

(<<Umainscrição cristã de Tipasa e o refrigerium» in Antiquités africaines, t. 14, 1979,

p.269).

74

11- OS PAIS DO PURGATÓRIO

Em Alexandria: dois gregos «fundadores» do Purgatório

A verdadeira história do Purgatório começa por um paradoxo, um

duplo paradoxo.

Aqueles a quem se chamou, a justo título, os «fundadores» da doutrina

do Purgatório são os teólogos gregos. Mas se as suas concepções tiverarn

repercussões no cristianismo grego, este não chegou à ideia de

Purgatório propriamente dito e o Purgatório foi mesmo, na Idade Média,

um dos principais pomos de discórdia entre cristãos gregos e cristãos

latinos. E a teoria de onde sai o esboço do Purgatório que esses teólogos

llregos elaboraram é francamente herética aos olhos do cristianismo, não

MÓ latino mas também grego. A doutrina do Purgatório estreia-se, assim,

Nobreuma ironia da história.

Não me ocuparei neste livro das concepções gregas do além, a não ser

para as ver oporem-se às opiniões dos latinos a respeito do Purgatório em

1274, no segundo concílio de Lyon, e depois, já fora dos limites cronológicos

deste estudo, no concílio de Florença, em 1438-1439. A divergência

entre as duas Igrejas, entre os dois mundos, anunciada desde a Antiguidade

tardia, faz da história do Purgatório uma questão ocidental e latina.

Mas importa, no início da génese do Purgatório, caracterizar os dois

«inventores» do Purgatório, Clemente de Alexandria (que morreu antes

de 215) e Origenes (que morreu em 253/254), os dois maiores representantes

da teologia cristã em Alexandria, num momento em que o grande

porto é «o pólo da cultura cristã» (H.-J. Marrou) e, em especial, o cadinho

de uma certa fusão entre helenismo e cristianismo.

Os fundamentos da sua doutrina vêm, por um lado, da herança de

certas correntes filosóficas e religiosas gregas pagãs e, por outro, de

uma reflexão original sobre a Bíblia e sobre a escatologia judaico-

-cristã'. Na Grécia antiga os dois teólogos deviam ter a ideia de que os

castigos infligidos pelos deuses não são punições mas meios de educação e

75



de salvação, um processo de purificação. Para Platão o castigo é uma

benesse dos deuses/. Clemente e Orígenes daí extraem a ideia de que

«punir» e «educar» são sinónimos ' e de que todo o castigo de Deus serve

para a salvação do homem".

A ideia platónica foi vulgarizada pelo orfismo e veiculada pelo pitagorismo,

e reencontra-se a noção das penas infernais como purificação no

quarto livro de Eneida, de Virgílio (versos 741-42, 745-47):

... Outros, no fundo de um grande abismo,

lavam as suas nódoas; outros depuram-se pelo fogo.

... Só passados longos dias o correr dos tempos apagou

os antigos estigmas de vergonha e deixa entregue à sua

pureza o princípio etéreo da alma... 5 .

Da Bíblia, Clemente e Orígenes retêm, do Antigo Testamento, o fogo

como instrumento divino; e do Novo a concepção evangélica do baptismo

pelo fogo e a ideia de Paulo de uma purificação depois da morte.

A primeira concepção vem da interpretação de textos do Antigo Testamento

por vezes muito solicitados. A visão platónica que Clemente e

Orígenes têm do cristianismo leva-os a posições tranquilizadoras. Para

Clemente, por exemplo, Deus não pode ser vingativo: «Deus não exerce

vingança, pois a vingança é pagar o mal com o mal, e Ele só castiga tendo

em vista o bem» (Stromata, VII, 26). Esta concepção leva os dois teólogos

a interpretar num sentido lenitivo passagens do Antigo Testamento onde

Deus se serve explicitamente do fogo como instrumento da sua cólera.

Por exemplo, quando faz devorar pelo fogo os filhos de Aarão: «os filhos

de Aarão, Nadab e Abihu, tomaram cada um o seu turíbulo. Deitaram-

-lhes fogo, sobre o qual puseram incenso e apresentaram a Jeová um fogo

irregular que ele não lhes havia pedido. De Jeová saiu então uma chama

que os devorou, e eles morreram na presença de Jeová» (Levítico, X, 1-2).

Ou ainda esta passagem do Deuteronómio, XXXII, 22: «Sim, um fogo

brotou da minha cólera, e ele queimará até às profundezas do shéol: ele

devorará a terra e o que ela produz ...» É notório que no seu Comen;ário

sobre o Levítico, Orígenes vê nestes textos a imagem da solicitude de Deus

que castiga o homem para bem deste. Orígenes interpreta também as

passagens do Antigo Testamento onde Deus se apresenta a si próprio

como um fogo que não é a expressão de um Deus de cólera mas de um

Deus que se faz a si mesmo purificador, ao devorar e ao consumir. Assim,

na homilia XVI do seu Comentário sobre Jeremias onde comenta Jeremias,

XV, 14: «pois o meu furor ateou um fogo que vai arder sobre

vós» ou no seu tratado Contra Celso, IV, 13.

A segunda concepção teve origem numa reflexão sobre o texto de

Lucas, 111, 16, respeitante à prédica de João Baptista: «João tomou a

76

palavra e disse a todos: "Por mim, baptizo-vos com água, mas vem um

mais forte do que eu...; esse baptizar-vos-á no Espírito Santo e pelo fogo."»

O que Orígenes (na homilia XXIV do seu Comentário sobre Lucas)

comenta assim: «Assim como João, perto do Jordão, de entre os que

vinham para se baptizar, acolhia os que confessavam os seus vícios e os

seus pecados e expulsava os outros dizendo-Ihes: "Raça de víboras, etc.",

também o Senhor Jesus Cristo estará no rio de fogo (in igneo flumine)

junto de uma lança de fogo (flammea rompea) para baptizar naquele rio

todos aqueles que depois da morte devem ir para o paraíso mas lhes falta

a purgação (purgatione indiget ), e fazê-Ias passar para os lugares desejados;

mas aqueles que não tiverem o sinal do primeiro baptismo, ele não os

baptizará no banho de fogo. Com efeito, é preciso ter-se já sido baptizado

na água e no espírito para que, ao chegar ao rio de fogo, se possa mostrar

que se conservam os sinais dos banhos de água e de espírito e que se

merece receber então o baptismo de fogo em Jesus Cristo.»

Enfim, Orígenes comenta assim, na sua terceira homilia sobre o Salmo

XXXVI que evoca a sorte do ímpio, vítima da cólera de Deus, e ado

justo, beneficiário da sua protecção, a passagem da epístola de Paulo

aos Coríntios, onde este evoca a purificação final pelo fogo: «Penso

que devemos todos, necessariamente, passar por esse fogo. Sejamos Paulo

ou Pedro, passamos por esse fogo ... como diante do Mar Vermelho, se

somos os Egípcios, seremos tragados por esse rio ou esse lago de fogo

porque terão encontrado em nós pecados ... ou então entraremos também

no rio de fogo, mas assim como, para os Hebreus, a água formou

uma parede à direita e à esquerda, assim o fogo formará uma parede para

nós... e nós seguiremos a coluna de fogo e a coluna de fumo.»

Clemente de Alexandria é o primeiro a distinguir duas categorias de

pecadores e duas categorias de castigos nesta vída e na vida futura. Nesta

vida, para os pecadores que podem corrigir-se, o castigo é «educativo»

(ôtôaO'1CaÀtlCóç), para os incorrigíveis é «punitivo» (lCOÀCXO ..ttlCÓÇ)6.Na

outra vída haverá dois fogos: para os incorrigíveis um fogo «devorador

e destruidor», para os outros um fogo que «santifica», que não «consome

como o fogo da forja», mas um fogo «prudente», «inteligente»

(q>PÓVtIlOV) «que penetra a alma e passa através dela'».

As concepções de Orígenes são as mais precisas e vão mais longe. Para

ele, como vimos, todos os homens têm de passar pelo fogo, mesmo os

justos, porque não há homem absolutamente puro. Pelo simples facto

da sua união com o corpo, toda a alma está manchada. Na homilia

VIII do seu Comentário sobre o Levítico, Orígenes baseia-se num versícu-

10 do Livro de Job, XIV, 4: «Mas então quem separará o puro do

impuro?» Porém, para os justos, esta passagem pelo fogo é um baptismo.

Funde e transforma o chumbo que pesava sobre a alma em ouro

puro".

77



Para Orígenes como para Clemente, há duas espécies de pecadores ou,

mais exactamente, há os justos que apenas estão carregados das máculas

inerentes à natureza humana (pÚ1tOçque se traduzirá em latim por sordes)

e os pecadores propriamente ditos, carregados de pecados, em princípio

mortais (xpôç 9wcx'tou cXJ.lcxp'tícx, ou peccata em latim).

A concepção particular de Orígenes - que faz dele um herético - é que

não existe pecador tão mau, tão inveterado, tão incorrigível em princípio,

que finalmente não se purifique completamente e não vá para o Paraíso.

Também o Inferno é temporário. Como bem disse G. Anrich: «Orígenes

concebe o Inferno como um Purgatório.» Com efeito, Orígenes leva até

ao limite a teoria da purificação, KcXaCXpcrtÇ, que lhe vem de Platão, dos

órficos e dos pitagóricos. Como não pode admitir a ideia grega pagã da

metempsicose, de reencarnações sucessivas demasiado incompatíveis com

o cristianismo, crê numa variante, que julga poder ser cristã, dessa teoria;

a noção de um progresso contínuo, de um aperfeiçoamento ininterrupto

da alma depois da morte, que lhe permite, por mais pecadora que tenha

sido à partida, regressar à eterna contemplação de Deus: é a apocatástase

(cX1tOKcx'tcXcncxO"lç).

Às duas categorias de defuntos, aos pecadores simplesmente maculados

e aos pecadores propriamente ditos, aplicam-se dois tipos diferentes

de fogos purificadores. Para os primeiros, é o espírito de julgamento, que

apenas atravessam e que só dura um instante. Os segundos, em compensação,

ficam durante mais ou menos tempo no espírito de combustão. Este

castigo é muito penoso mas não é incompatível com o optimismo de

Orígenes, pois quanto mais severo é um castigo mais está assegurada a

salvação; há em Orígenes um sentimento do valor redentor do sofrimento

que só no fim, no século xv, a Idade Média reencontrará.

Para Clemente de Alexandria, o fogo «inteligente» que atravessa a

alma dos pecadores remíveis não é, como bem viu A. Michel, um fogo

material, mas também não é um fogo «metafórico»; é um fogo «espiritual»

(Stromata, VII, 6 e V, 14). Pretendeu-se opor, em Orígenes, o fogo

de julgamento atravessado pelas almas simplesmente maculadas e que

seria um fogo real, ao fogo de combustão que suportariam os pecadores

e que, esse sim, seria um fogo «metafórico», uma vez que os pecadores

que por fim devem ser salvos não podem ser por ele consumidos. Os

textos invocados (De principiis, 11, 10: Contra Celso, IV, 13, VI, 71,

etc.) não parecem justificar esta interpretação. Nos dois casos, trata-se

de um fogo purificador que, sem ser material, não é metafórico; é real

mas espiritual, subtil. Quando têm lugar estas purificações pelo fogo?

Orígenes é bem claro a esse respeito: após a ressurreição, no momento

do Julgamento Final", Este fogo mais não é, em definitivo, do que o fogo

do fim do mundo, vindo das velhas crenças indo-europeias, iranianas e

egípcias e que os estóicos haviam retomado com a noção de ÉK1tÚproO"tç.

78

No apocalipse judaico o texto mais significativo sobre o fogo do fim

do mundo era a Visão do Velho no Sonho de Daniel (VII, 9-12):

o seu trono eram chamas de fogo

com rodas de fogo ardente.

Nascido à sua frente,

corria um rio de fogo

a besta foi morta, o seu corpo destruído e entregue à chama do fogo.

Mas Orígenes tem concepções muito pessoais do tempo escatológico

do fim do mundo. Por um lado, pensa que os justos, atravessando instantaneamente

o fogo, alcançarão o paraíso a partir do oitavo dia; no dia

do julgamento, em compensação, o fogo dos pecadores queimá-los-á para

além do último dia, e eventualmente durante os séculos dos séculos - o que

não significa a eternidade, visto que, cedo ou tarde, todos irão para o

Paraíso, mas uma longa sequência de períodos (In Lucam, homilia 24).

Noutra obra Orígenes precisa, segundo uma curiosa aritmética, que, assim

como a vida no mundo dura uma semana antes do oitavo dia, também

a puríficação dos pecadores no fogo de combustão durará uma ou

duas semanas, quer dizer, muito tempo, e que só no começo da terceira

semana eles serão purificados (homilia VIII do Comentário sobre o

Levitico). Este cálculo é simbólico visto que, como se verá, no século

XIII os cálculos respeitantes ao Purgatório serão feitos a partir de períodos

de tempo reais. Mas um cômputo do Purgatório está já a esboçar-se.

Sobre a sorte dos mortos, das almas, entre a morte individual e o

Julgamento Final, Orígenes é muito vago. Afirma que os justos vão para

() Paraíso logo a seguir à morte, mas esse paraíso é diferente do verdadeiro

Paraíso de delícias onde a alma só chegará depois do Julgamento Final

c da prova - curta ou longa - do fogo'". E comparável ao seio de Abraão,

se bem que, se não me engano, Orígenes nunca alude a ele. Em compensação,

Orígenes não fala da sorte dos pecadores no intervalo entre a morte

individual e o Julgamento Final. É que, como muitos dos seus

contemporâneos e sem dúvida ainda mais do que a maioria deles, Orígenes

acredita na iminência do fim do mundo: «A consumação do mundo

pelo fogo está iminente ... a terra e todos os elementos vão ser consumidos

no ardor do fogo no fim deste século» (homilia VI, do Comentário sobre a

Génese, PG, 12, 191). E ainda: «O Cristo veio nos últimos tempos, agora

que o fim do mundo está já próximo» (De principiis, Hl, 5, 6). O tempo

que medeia entre a morte individual e o Julgamento Final, entre hoje e o

lim do mundo, é de tal modo breve que não vale a pena pensar nele. A

prova do fogo «é como uma prova que nos espera ao sair da vida» (cf. In

Lucam, homilia 24).

79



Assim o futuro Purgatório entrevisto por Origenes desvanece-se, esmagado

entre a sua escatologia e a sua concepção de um inferno temporário.

No entanto a ideia, precisa, de uma purificação no além, após a

morte, é expressa pela primeira vez. Aparece a distinção entre pecados

ligeiros e pecados mortais. Há mesmo o esboço de três categorias: os

justos que só atravessam o fogo de julgamento e vão directamente para

o Paraíso, os pecadores ligeiros que apenas fazem uma estada no fogo de

combustão e os pecadores «mortais» que lá ficam durante muito tempo.

De facto, Orígenes desenvolve a metáfora de I Coríntios, Hl, 10-15. Dos

materiais citados por S. Paulo faz ele duas categorias: o ouro, a prata, as

pedras preciosas para os justos, a madeira, o feno, a palha para os pecadores

«leves». Ejuntou-lhes uma terceira categoria: o ferro, o chumbo e o

bronze para os pecadores «pesados».

Também se esboça uma aritmética da purgação no além. Sublinha-se

um laço estreito entre a penitência e a sorte no além: para Clemente de

Alexandria a categoria dos pecadores corrigíveis era constituída pelos

pecadores que se tinham arrependido, se tinham reconciliado com Deus

no momento de morrer, mas que não tinham tido tempo de fazer penitência.

Para Orígenes a apocatástase é, no fundo, um processo positivo e

progressivo de penitência 11.

Mas à concepção de um verdadeiro Purgatório faltam vários elementos

essenciais. O tempo do Purgatório é mal definido visto que se confunde

com o tempo do Julgamento Final, confusão esta tão pouco

satisfatória que Orígenes tem de concentrar e dilatar ao mesmo tempo

o fim do mundo e de o aproximar ao máximo. Nenhum Purgatório se

distingue do Inferno, e o carácter temporário, provisório, que constituirá

a sua originalidade, não se destaca. Só os mortos, com a sua bagagem de

culpas mais ou menos leve ou pesada, e Deus na sua benevolência de jugo

salutar, têm alguma responsabilidade nesta purificação depois da morte.

Os vivos não intervêm nela. Enfim, não existe lugar purgatório. E ao

fazer do fogo purificador um fogo não só «espiritual» mas também «invisível»,

Orígenes bloqueou o imaginário do Purgatório.

o cristianismo latino: desenvolvimentos e indecisões do além

Foi necessário esperar pelo fim do século IV e princípio do século V

para que, com Santo Agostinho e portanto entre os cristãos latinos desta

vez, a pré-história do Purgatório se enriquecesse de maneira decisiva.

A S. Cipriano, em meados do século III, creditou-se uma importante

contribuição para a doutrina do futuro Purgatório. Na sua Carta a

Antoniano, ele estabelece uma distinção entre duas espécies de cristãos:

«Uma coisa é aguardar o perdão, outra coisa é alcançar a glória; outra

80

coisa ainda é ser mandado para a prisão (in carcere) para só sair depois

de pago o último óbolo, e mais outra coisa é receber imediatamente a

recompensa da fé e da virtude; ainda outra coisa é ser libertado e purificado

dos pecados por um longo sofrimento no fogo, e mais outra coisa é

ter apagado todas as culpas pelo martírio; outra coisa, enfim, é ficar

suspenso, no dia do julgamento, da senten~a do Senhor, e outra coisa

ainda é ser imediatamente coroado por ele' . Ficou escrito: «Este sofrimento

purificador, este fogo de além-túmulo, só podem ser o Purgatório.

Sem atingir a clareza de expressão que encontraremos nas épocas seguintes,

Cipriano já representa um progresso em relação a Tertuliano".» Esta

interpretação significa uma concepção evolucionista do Purgatório, que

vê na teoria do cristianismo um avanço lento mas seguro no sentido da

explicação de uma crença que, desde a origem, teria existido em embrião

no dogma cristão. Nada me parece menos conforme com a realidade

histórica. Perante os acessos de milenarismo, de crença num apocalipse

fulminante que salvaria ou destruiria mais ou menos arbitrariamente, a

Igreja, em função das condições históricas, da estrutura da sociedade e de

uma tradição que ela transformaria pouco a pouco em ortodoxia, criou

um certo número de elementos que, no século XII, vieram a resultar num

sistema do além de que o Purgatório foi uma peça fundamental; mas que

poderia muito bem abortar, que conheceu acelerações no começo do século

v, entre o fim do século VI e o começo do século VIII, e finalmente no

século XII, mas com grandes paralizações que poderiam ter sido definitivas.

Considero pertinente a opinião de P. Jay que refutou a pseudodoutrina

do Purgatório de S. Cipriano. Do que se trata na carta a Antoniano

é de uma comparação entre os cristãos que renegaram durante as perseguições

(os lapsi e os apóstatas) e os mártires. Não se trata de «purgatório»

no além mas de penitência cá em baixo. A prisão mencionada não

é a de um purgatório, aliás ainda inexistente, mas a disciplina penitencial

eclesiástica 14.

Entre os Padres e outros eclesiásticos do século IV que, apesar da sua

diversidade, constituem um conjunto bastante coerente, no momento em

que o cristianismo deixa de ser perseguido e depois se torna religião oficial

no mundo romano, a reflexão sobre a sorte dos homens após a morte

desenvolve-se sobretudo a partir do sonho de Daniel (VII, 9, 1), do texto

de Paulo aos Coríntios, III, 10-15, mais raramente da concepção origeniana

do fogo purificador ou do refrigerium de Tertuliano. As opiniões de

Orígenes influenciam notoriamente a parte cristã dos Oráculos sibiltnos

que lhes assegurarão uma certa posteridade.

Lactâncio (que morreu depois de 317) pensa que todos os mortos,

incluindo os justos, sofrerão a prova do fogo, mas situa esta prova no

momento do Julgamento Final: «Quando Deus julgar os justos, fá-lo-á

lambém por meio do fogo. Aqueles em que os pecados prevaleçam pelo

81



seu número ou o seu peso, serão envolvidos pelo fogo e purificados; pelo

contrário, aqueles que uma justiça perfeita ou a maturidade da virtude

tenha sublimado não sentirão essa chama; têm de facto em si qualquer

coisa que repele e rejeita esse fogos (Institutiones, VII, 21, PL, VI, 8(0).

Hilário de Poitiers (que morreu em 367), Ambrósio (em 397), Jerónimo

(em 419/420) e o desconhecido chamado Ambrosiaster, que viveu na

segunda metade do século IV, têm sobre a sorte dos homens depois da

morte ideias que pertencem à linha de Origenes.

Para Hilário de Poitiers, enquanto esperam o Julgamento Final, os

justos vão repousar no seio de Abraão enquanto que os pecadores são

atormentados pelo fogo. No Julgamento Final os justos vão directamente

para o Paraíso, os infiéis e os ímpios para o Inferno e todos os outros, o

conjunto dos pecadores, serão julgados e os pecadores impenitentes sofrerão

pesadas penas no Inferno. No seu Comentário do Salmo LIV,

Hilário fala da «purificação que nos queima pelo fogo do julgamentO»15,mas

esse fogo purifica todos os pecadores ou somente alguns deles?

Hilário não nos dá uma resposta concisa.

Santo Ambrósio é ainda mais ambíguo, embora mais preciso sobre

certos pontos. Primeiro pensa, como se viu, que as almas aguardam o

julgamento em habitáculos diferentes segundo a concepção do quarto

Livro de Esdras. Depois imagina que na ressurreição os justos irão directamente

para o Paraíso e os ímpios directamente para o Inferno. Só os

pecadores serão examinados, julgados. Sê-lo-ão através da passagem pelo

fogo definida como o baptismo de fogo anunciado por João Baptista,

segundo o Evangelho de Mateus (11, 11): «Diante dos ressuscitados está

um fogo que todos, absolutamente todos, devem atravessar. E o baptismo

de fogo anunciado por João Baptista, no Espírito Santo e no fogo, é a

espada ardente do querubim que guarda o Paraíso e através do qual é

preciso passar: todos serão experimentados pelo fogo; pois todos aqueles

que querem regressar ao Paraíso têm de ser postos à prova pelo fogo!".»

Ambrósio afirma que mesmo Jesus, os apóstolos e os santos só entraram

no Paraíso depois de terem passado pelo fogo. Como conciliar esta afirmação

com a outra segundo a qual os justos vão para o Paraíso sem

julgamento? Ambrósio tergiversou mas não tinha ideias muito claras.

Parece também que para ele havia três espécies de fogo. Para os justos,

que são prata pura, esse fogo será um refrigério, como o orvalho que

refresca (reencontra-se aqui a ideia da pérola, síntese do frio e do quente

e símbolo do Cristo); para os ímpios, os apóstatas, os sacrilegos, que são

apenas chumbo, esse fogo será um castigo e uma tortura, para os pecadores

que são uma mistura de prata e chumbo será um fogo purificador

cujo efeito doloroso durará um tempo proporcional ao peso das suas

culpas e à quantidade de chumbo que for preciso fundir. E quanto à

natureza deste fogo? É «espiritual» ou «real»? Ambrósio, ainda que mui-

82

to influenciado por Orígenes também hesitou e tergiversou. Em definitivo

Ambrósio, ainda mais adepto de Paulo do que de Origenes, pensa que

todos os pecadores serão salvos através do fogo porque, apesar das suas

culpas, terão tido fé: «E se o Senhor salva os seus servos, nós seremos

salvos pela fé mas sê-lo-emos como através do fogo!".» Mas Ambrósio

afirmou claramente a possível eficácia das orações dos vivos para alívio

dos defuntos após a sua morte, o valor dos sufrágios para a mitigação das

penas. Em especial a propósito do imperador Teodósio, com quem tivera

as relações estreitas que se sabe: «Concede, Senhor, o repouso ao teu

NervoTeodósio, esse repouso que preparaste para os teus santos ... Eu

amava-o e por isso quero acompanhá-I o ainda em vida minha: não o

deixarei enquanto, pelas minhas preces e os meus lamentos, ele não for

recebido lá no alto, sobre a montanha santa do Senhor, onde o chamam

aqueles que ele perdeu 18.»

Quando da morte do seu irmão Sátiro, espera que as lágrimas e as

preces dos infelizes que ele socorreu em vida lhe valerão o perdão de

Deus e a salvação eterna 19.

Estas duas referências ambrosianas à sorte dos mortos no além são

interessantes também por uma outra razão que veremos em acção na

história do Purgatório. A visão dos grandes laicos - imperadores e reis

. no além foi uma arma política da Igreja. Vê-Io-emos em relação a Teodorico,

Carlos Martel e Carlos Magno. Dante recordá-lo-á. Que melhor

meio tinha a Igreja, para tornar receptivos às suas instruções - espirituais

e temporais - os soberanos, do que evocar os castigos que os esperam no

ulém em caso de desobediência, e o peso dos sufrágios eclesiásticos para a

sua libertação e salvação? Sabendo-se o que foram as relações entre Ambrósio

e Teodósio, impõe-se a referência a este pano de fundo. No caso de

NeU irmão Sátiro, vemos perfilar-se um outro aspecto das relações entre os

vivos e os mortos. Ambrósio reza por seu irmão: é a rede familiar de

salvamento no além. Tornar-se-á ainda mais poderosa na Idade Média

e na perspectiva do Purgatório. Mas Ambrósio fala sobretudo dos sufrá-

J(iosdaqueles que Sátiro socorreu. Vemos aqui um fenómeno social histórico:

a clientela romana transposta para o plano cristão. Outras

.olidariedades, aristocráticas, monásticas, laico-monásticas, confraternais,

tomarão o lugar, no tempo do Purgatório, desta assistência recíprol:1I

(mais ou menos obrigatória) post mortem do patrono pelos seus

clientes,

Enfim, Ambrósio, como adiante se verá, adere à ideia de uma primeira

e de uma segunda ressurreição.

S. Jerónimo, embora inimigo de Orígenes, é, no que respeita à salva-

'.=110, o mais «origenista». Excepto Satanás, os que negam Deus e os impios,

todos os seres mortais, todos os pecadores serão salvos: «Assim

corno cremos que os tormentos do Diabo, de todos os que negam e de

83



-~-~._-~-------------------~

todos os ímpios que dizem no seu coração "não há Deus" serão eternos,

assim, em compensação, pensamos que a sentença do juiz para os pecadores

cristãos, cujas obras são postas à prova e expurgadas no fogo, será

moderada e impregnada de clemência'?». E ainda: «Aquele que de todo o

coração pôs a sua fé no Cristo, mesmo que morra como homem culpado

de pecados, pela sua fé terá a vida eterna 21 .»

O Ambrosiaster, embora não traga grande coisa de novo em comparação

com Ambrósio, tem de especial e de importante o facto de ser o

autor da primeira autêntica exegese do texto de Paulo de I Coríntios,

IH, 10-15. A este título, teve grande influência nos comentadores medievais

deste texto essencial para a génese do Purgatório, em especial nos

primeiros escolásticos do século XII. Como Hilário e Ambrósio, ele distingue

três categorias: os santos e os justos que irão directamente para o

Paraíso quando da ressurreição; os ímpios, os apóstatas, os infiéis e os

ateus que irão directamente para os tormentos do fogo do Inferno; e os

simples cristãos que, embora pecadores, depois de terem sido purificados

durante um certo tempo pelo fogo e de terem pago a sua dívida, irão para

o Paraíso porque tiveram fé. Comentando S. Paulo, escreve: «Ele (Paulo)

disse: "mas como através do fogo" porque esta salvação não existe sem

sofrimento; e não disse: "Será salvo pelo fogo"; mas quando ele disse:

"como através do fogo" quis mostrar que essa salvação há-de vir, mas

que tem de sofrer as penas do fogo; para que, expurgado pelo fogo, seja

salvo, e não como os infiéis (perfidi), atormentados pelo fogo eterno para

sempre; se, por algum pedaço da sua obra, ele tem algum valor, é porque

acreditou em Crist0 22 .»

Paulino de Nola (que morreu em 431) também fala numa carta do

fogo sábio, inteligente (sapiens) pelo qual todos passaremos para sermos

examinados, e que provém de Orígenes. Numa fórmula sintética onde

surgem o calor e o frio, o fogo e a água, e a ideia de refrigerium, escreve

ele: «Passámos através do fogo e da água e ele conduziu-nos ao

refrigêrio'".» Num poema evoca ainda o «fogo exterminador» (ignis arbiter)

que percorrerá todas as obras de cada um, «a chama que não queimará,

mas que cada um experimentará», a recompensa eterna, a

combustão da parte má e a salvação do homem que, com o corpo conid

'&' '

SUmI o, escapara ao rogo e voara para a VIida eterna 24...

o verdadeiro pai do Purgatório: Agostinho

Contribuir para o processo do futuro Purgatório com elementos capitais

foi o papel de Agostinho, que deixou uma marca tão profunda no

cristianismo e que foi provavelmente a maior «autoridade» da Idade

Média.

84

No seu excelente estudo sobre a Evolução da doutrina do Purgatório

em Santo Agostinho (Évoiution de Ia doetrine du Purga to ire ehez saint

Augustin), de 1966, Joseph Ntedika recenseou o conjunto dos numerosos

textos agostinianos que constituem o processo do problema. Destacou, a

maioria das vezes com acerto, o lugar de Agostinho na pré-história do

Purgatório, e mostrou o facto fundamental: a posição de Agostinho

não só evoluiu, o que é normal, mas também se modificou consideravelmente

a partir de determinado momento que Ntedika situa em 413 e a

que ele atribui a causa da luta contra os laxistas do além, os «misericordiosos»

(miserieordes), luta a que Agostinho se entrega apaixonadamente

a partir dessa data. Contentar-me-ei com citar, situar e comentar os principais

textos agostinianos respeitantes ao Purgatório. Fá-lo-ei numa dupla

perspectiva: o conjunto do pensamento e da acção agostinianos e a

génese do Purgatório a longo prazo.

Desejo, já de início, sublinhar um paradoxo. Insistiu-se a justo título

na importância considerável de Santo Agostinho para a formação da

doutrina do Purgatório. Isto é verdadeiro não só do ponto de vista dos

historiadores e dos teólogos modernos que reconstituem a história do

Purgatório, mas também do clero da Idade Média que criou o Purgatório.

E, no entanto, parece-me evidente que esta questão não apaixonou

Agostinho e que, se ele tantas vezes alude a ela, é porque ela interessava,

em compensação, muitos dos seus contemporâneos e porque tocava - ia

dizer envenenava aos seus olhos - em problemas que, esses sim, eram

para ele fundamentais: a fé e as obras, o lugar do homem no plano divino,

as relações entre os vivos e os mortos, a preocupação com a ordem

numa série escalonada desde a ordem social terrena até à ordem sobrenatural,

a distinção entre o essencial e o acessório, o esforço necessário ao

homem para atingir o progresso espiritual e a salvação eterna.

Parece-me que as indecisões de Agostinho vêm, em parte, deste relativo

desinteresse pela sorte dos homens entre a morte e o Julgamento

Final; mas explicam-se também por razões mais profundas.

As mais importantes são as inerentes à época. A sociedade romana

tinha de fazer face aos enormes problemas da grande crise do mundo

romano, do repto dos bárbaros, do aparecimento de uma nova ideologia

predominante, cuja grande afirmação a respeito do além era a ressurreilido

e a escolha a fazer entre a condenação e a salvação eternas. Impregnada

de milenarismo e pensando mais ou menos confusamente que o

Julgamento Final estava para amanhã, essa sociedade estava pouco inclinada

a insistir no requinte de pensamento que a reflexão sobre o intervalo

entre a morte e eternidade pressupõe. Certamente, para esses homens e

essas mulheres da Antiguidade tardia, cuja esperança no além se baseava,

julgo eu, - porque sempre assim foi, e Paul Veyne bem o demonstrou em

relação aos antigos evérgetas - menos na ideia confusa de salvação do

85



que na de uma compensação, numa outra vida, das injustiças do mundo,

estas reivindicações de equidade podiam achar-se satisfeitas pela sofisticação

de justiça proporcionada pela redenção após a morte. Mas isso era

um luxo. Foi porque no século XII a sociedade mudou de tal maneira que

esse luxo se tomou necessidade, que o Purgatório pôde aparecer.

Mas outras razões pessoais parece terem também incitado Agostinho

a manifestar a sua incerteza a respeito de certos aspectos deste problema

então marginal. Vê-las-emos nos textos que vou citar.

Primeiro, a verificação das imprecisões, até das contradições dos textos

das Escrituras neste domínio. Agostinho é um axegeta admirável mas

não oculta a falta de clareza, as dificuldades do Livro. Não tem sido.

suficientemente sublinhado o facto de no século XII Abelardo, no Sic et

Non: ao empregar um método julgado revolucionário, mais não ter feito

do que regressar a Agostinho. Na sua qualidade de padre, bispo e intelectual

cristão, Agostinho está convencido de que o fundamento (palavra

que tanto lhe agrada e que irá reencontrar em Coríntios Hl, 10-15) da

religião, dos ensinamentos que deve ministrar, é a Escritura. Quando se

tenta esclarecer o mais possível os pontos onde ela não é clara (o que é

também uma das suas tendências profundas), é preciso reconhecer que

nada de preciso se pode afirmar. Tanto mais que - é a sua segunda motivação

- em questões de salvação, se deve respeitar o segredo, o mistério

que envolve certos aspectos ou, ainda melhor, deixar a Deus o cuidado de

tomar decisões dentro de um contexto, cujas grandes linhas Ele indicou

através da Bíblia e dos ensinamentos de Jesus, mas onde reservou para si

- mesmo fora do milagre - um espaço de livre decisão.

Aqui, a importância de Agostinho reside primeiro no seu vocabulário

que irá impôr-se durante muito tempo na Idade Média. Três palavras são

essenciais: os adjectivos purgatorius, temporarius ou temporalis e transitorius.

Purgatorius, que prefiro traduzir por purgatório (adjectivo) em vez de

purificador, demasiado preciso para o pensamento de Agostinho, encontra-se

ligado a poenae purgatoriae: as penas purgatórias (Cidade de Deus,

XXI, XIII e XVI), tormenta purgatoria, tormentos purgatórios (Cidade de

Deus, XXI e XVI) e sobretudo ignis purgatorius: fogo purgatório (Enchiridion.

69)25. Temporarius encontra-se por exemplo na expressão poenae

temporariae, penas temporárias, opostas às poenae sempiternae, penas

eternas (Cidade de Deus, XXI, XIII). Poenae temporales encontra-se na

edição de Erasmo da Cidade de Deus (XXI, XXIV)26.

A morte de MóDica: orai por ela

Agostinho foi o primeiro a afirmar a eficácia dos sufrágios pelos mortos.

Fê-lo pela primeira vez num momento de emoção, na oração que

86

escreveu em 397-398 nas Confissões,

de sua mãe Mónica.

IX, XIII, 34-37, depois da morte

Quanto a mim, com o coração finalmente curado daquela ferida em que se

poderia censurar uma fraqueza da carne, derramo perante ti, ó nosso Deus,

por aquela que foi tua serva, lágrimas de um outro género: elas brotam de um

espírito fortemente abalado perante o espectáculo dos perigos de toda a alma

que morre em Adão.

Sem dúvida, uma vez vivificada em Cristo, mesmo antes de ser liberta dos

laços da carne, ela viveu de maneira a fazer louvar o teu nome na sua fé e na

sua conduta; e no entanto, não ouso dizer que a partir do momento em que a

regeneraste pelo baptismo nenhuma palavra contrária aos teus preceitos saiu

da sua boca. Foi dito pela Verdade, pelo teu filho: «Se alguém disser ao seu

irmão" Louco", esse será passível da geena do fogo.»

Pobre da vida do homem, embora ela seja louvável, se ao passá-Ia pelo

crivo, tu pões de parte a tua misericórdia! Mas, porque não procuras as culpas

encarniçadamente, é com confiança que esperamos um lugar junto de ti. Aliás,

quem quer que te enumere os seus verdadeiros méritos, o que te enumera ele

senão os teus próprios dons? Oh! Se eles se reconhecessem homens, os homens!

e se aquele que se glorifica, se glorificasse no Senhor!

Pois por mim, oh meu louvado e minha vida, oh Deus do meu coração,

deixando por um instante de lado as suas boas acções, pelas quais te rendo

graças em alegria, agora é pelos pecados de minha mãe que te imploro.

Atende-me, por aquele que, suspenso do madeiro, foi o remédio para as

nossas feridas e que, sentado à tua direita, intercede por nós!

Eu sei que ela praticou a misericórdia e que de todo o coração perdoou as

dívidas aos seus devedores. Perdoa-lhe tu também as suas dívidas, que ela

própria contraiu durante tantos anos depois da ablução da salvação! Perdoa,

Senhor, perdoa-lhas, suplico-te! Não a julgues! Que a misericórdia passe

por cima da justiça, pois as tuas palavras são verdadeiras e tu prometeste

misericórdia aos misericordiosos! Se eles o foram é a ti que o deveram, a ti

que terás piedade de quem quiseres ter piedade, que concederás misericórdia a

quem quiseres conceder misericórdia.

Mas, creio, já terás feito o que te peço. No entanto, estes votos espontâneos

que vêm da minha boca, aceita-os, Senhor! E é verdade que, ao aproximar-se o

dia da sua libertação, ela não teve nenhuma ideia de envolver sumptuosamente

o seu corpo ou de o mandar embalsamar com aromas, nem o desejo de um

monumento especial, nem a preocupação de um túmulo na sua terra. Não,

não foi isso que ela nos recomendou, mas apenas que invocássemos a sua

memória no teu altar; foi este o seu desejo. Pois, sem falhar um só dia, ela

serviu esse altar, sabendo que nele se dita a sorte da vítima santa que afastou a

sentença a que fomos condenados e triunfou do inimigo, aquele que avalia os

nossos pecados ao procurar com que nos inculpar, mas nada encontra

n'Aquele em quem somos vencedores. Quem lhe resgatará o seu sangue inocente?

Do preço por que ele nos comprou, quem o reembolsará para nos

arrancar a ele? A esse mistério do preço da nossa compra, a tua serva ligou

87



a sua alma pelo laço da fé. Que ninguém a arranque à tua protecção! Que

ninguém se interponha nem pela violência nem pelas manhas de Leão e Dragão!

Pois ela não responderá que nada deve, com medo de que o acusador

capcioso a perturbe e a obtenha; mas responderá que as suas dívidas lhe foram

perdoadas por Aquele a quem ninguém restituirá aquilo que, em vez de nós,

ele restituiu sem estar em dívida.

Que ela esteja, pois, em paz juntamente com o seu marido: antes dele

ninguém e depois dele ninguém a teve como esposa; ela serviu-o oferecendo-te

o fruto da sua paciência, para o levar para ti, a ele também!

E depois inspira, meu Senhor, meu Deus, inspira os teus servos meus

irmãos, os teus filhos meus pais, a cujo serviço ponho o meu coração, a minha

voz e os meus escritos, todos de entre eles que lerem estas linhas, inspira-

-os para que no teu altar se recordem de Mônica, tua serva, e de Patricio que

foi seu esposo, aqueles por cuja carne tu me puseste nesta vida, sem que eu

saiba como. Que, num sentimento de piedade, se recordem deles, meus pais

nesta luz passageira, meus irmãos em ti, nosso Pai e na Igreja católica nossa

Mãe, meus concidadãos na Jerusalém eterna pela qual suspira o teu povo em

peregrinação, desde o ponto de partida ao ponto de chegada! Assim, o voto

supremo que ela me dirigiu será mais abundantemente cumprido pelas preces

de muitos, graças a estas confissões, do que somente pelas minhas preces.

Este texto admirável não é uma exposição doutrinal, mas é possível

extrair dele alguns dados importantes para a eficácia dos sufrágios pelos

mortos.

A decisão de colocar ou não Mónica no Paraíso, na Jerusalém eterna,

só pertence a Deus. Apesar de tudo, Agostinho está convencido de que as

suas preces podem comover Deus e influenciar a sua decisão. Mas o julgamento

de Deus não será arbitrário, e a sua prece não será absurda nem

absolutamente temerária. É porque Mónica, apesar dos seus pecados -

pois todo o ser humano é pecador - mereceu em vida a salvação, que a

misericórdia de Deus poderá exercer-se e a prece do seu filho ser eficaz.

Sem que seja dito, o que se pressente é que a misericórdia de Deus e os

sufrágios dos vivos podem apressar a entrada dos mortos no Paraíso e

não fazê-los transpor as suas portas, se foram grandes pecadores cá em

baixo. O que também não é dito, mas é verosímiI é que, como não existe

Purgatório (nem existe em qualquer texto de Agostinho uma única frase

que estabeleça ligação entre os sufrágios e o fogo purgatório), este empurrão

no sentido da salvação dos mortos pecadores mas merecedores

terá lugar logo a seguir à morte ou, em todo o caso, sem que tenha decorrido

tempo suficiente para ser necessário definir um prazo e ainda

menos um lugar onde passar essa espera.

O mérito de Mónica afirmado por Agostinho é significativo: supõe o

baptismo, engloba tanto a fé como as obras. As suas boas acções foram,

segundo o preceito, o perdão das dívidas aos seus devedores (para esta

88

aristocrata rica, deve-se, sem dúvida, entender a coisa no sentido material

e no sentido mora~~, a monogamia e a renúncia desta viúva a qualquer

casamento, e sobre~udo a piedade eucarística. Outras garantias sobre o

além que encontraremos não só na perspectiva do Paraíso mas também

nos horizontes do Purgatório: as obras de misericórdia, a devoção eucarística,

o respeito pelo estatuto matrimonial dos laicos, eis o que contará

fortemente para escapar ao Inferno e porá em boa posição se não para o

ingresso no Paraíso, pelo menos no Purgatório, graças à misericórdia de

Deus e aos sufrágios dos vivos. Estes vivos são aqui o mais próximo da

morta pela carne, o seu filho. Mas também, através deste filho, as duas

comunidades que podem ser incitadas a orar eficazmente pela mãe são a

do bispo e a do escritor: as suas ovelhas e os seus leitores.

Uns anos mais tarde, no seu comentário do Salmo XXXVII, Agostinho

pede a Deus por si próprio, que o corrija nesta vida para que não

tenha de suportar, depois da morte, o fogo correctivo (ignis emendatorius},

Trata-se aqui, aliás, não só da sua ideia já evidente na prece por

Mónica de que a salvação no além se merece primeiro cá em baixo, mas

também da noção que acalentará até ao fim dos seus dias, parece, segundo

a qual as atribulações desta vida serão uma forma de «purgatório».

Enfim, em 426-427 na Cidade de Deus (XXI, XXIV), Agostinho volta

à eficácia das orações pelos mortos, mas para precisar com mais clareza

os seus limites. Os sufrágios são inúteis pelos demónios, pelos infiéis e os

impios, portanto pelos condenados ao inferno. Só podem ser válidos para

uma certa categoria de pecadores não nitidamente definida mas em todo

o caso caracterizada de maneira especial: aqueles cuja vida não foi muito

boa nem muito má. Agostinho baseia-se no versículo de Mateus, XII, 31-

-32: «Também vos digo que todo o pecado e blasfémia serão perdoados

aos homens, mas a blasfémia contra o Espírito não será perdoada. E

quem disser uma palavra contra o filho do homem, isso ser-lhe-á perdoado,

mas quem falar contra o Espírito Santo, isso não lhe será perdoado

nem neste mundo nem no outro.» A qualidade daqueles que podem rezar

com eficácia pelos mortos remíveis também é precisada: é a instituição

eclesiástica, a própria Igreja, ou «alguns homens piedosos» (guidam pii}.

A razão pela qual não se rezará pelos homens votados ao fogo eterno é a

mesma razão pela qual, nem agora nem nunca, não se reza pelos maus anjos, e

é ainda pela mesma razão que a partir de agora não se reza já pelos infiéis e

ímpios defuntos, ainda que se reze pelos homens. Pois, a favor de certos defuntos,

a prece da própria Igreja e de alguns homens piedosos é atendida, mas

por aqueles que estão regenerados em Cristo, e cuja vida no seu corpo não foi

tão má que sejam julgados indignos de tal misericórdia, nem tão boa que se

suponha que uma tal misericórdia não lhes será necessáriaê": também depois

da ressurreição dos mortos haverá aqueles a quem, após as penas que sofrerão

89



as almas dos mortos, será concedida essa misericórdia que lhes evitará serem

lançados no fogo eterno. Com efeito, a respeito de alguns não se poderá dizer

com verdade que não lhes é perdoado nem no século presente nem no século

futuro, pois existem aqueles a quem o perdão, se não Ihes é concedido neste

século sê-lo-á no século futuro. Mas quando o juiz dos vivos e dos mortos

disser: Vinde, os abenpoados por meu Pai, possuí o reino que está preparado

para vós desde a criapão do mundo, e aos outros pelo contrário: [de para longe

de mim, malditos, para ofogo eterno que foi preparado pelo diabo e pelos seus

anjos e eles tiverem ido, estes para o suplício eterno, mas osjustos para a vida

eterna'", é presunção excessiva dizer que o suplício eterno não terá lugar para

algum daqueles a quem Deus declara que irão para o suplício eterno e, graças

à convicção de uma tal conjuntura, fazer com que se desespere mesmo desta

vida ou que se duvide da vida eterna.

Até 413, Agostinho contenta-se com acrescentar algumas notas pessoais

aos ensinamentos dos Padres dos séculos III e IV, sobre o fogo do

julgamento e sobre os aceitáveis após a morte, em especial o seio de

Abraão para os justos, essencialmente baseado na exegese da história

do mau rico e do pobre Lázaro (Lucas, XVI, 19-31) e na primeira epístola

de Paulo aos Coríntios (IH, 10, 15). No Comentário ao Génesis contra

os Maniqueistas, de 398, ele distingue o fogo da expurgação do da condenação

eterna: «e depois desta vida haverá ou o fogo da expurgação ou

da pena eterna.»29 Nas Questões sobre os Evangelhos, em 399, opõe aos

mortos irremíveis como o mau rico aqueles que souberam fazer amigos

com as suas obras de misericórdia, e que, portanto, prepararam os seus

sufrágios. Mas confessa não saber se a recepção nos tabernáculos eternos

evocada por Lucas (XVI, 9) se fará imediatamente após esta vida, quer

dizer depois da morte, ou no fim dos séculos, no momento da ressurreição

e do Julgamento Final 3o .

Nos seus comentários aos Salmos, escritos talvez entre 400 e 414, insiste

sobretudo nas dificuldades levantadas pela existência de um fogo

expurgatório depois da morte: é uma «questão obscura» (obscura quaestio),

declara ele. No entanto, no seu Comentário ao Salmo XXXVII, avança

com uma afirmação que conhecerá grande repercussão na Idade

Média, a propósito do Purgatório: «Se bem que alguns sejam salvos pelo

fogo, esse fogo será mais terrível do que tudo o que um homem pode

suportar nesta vida!'.»

Depois de 413: duras penas purgatórias entre a morte e o Julgamento para

aqueles que não são inteiramente bons

A partir de 413 as convicções de Agostinho sobre a sorte dos mortos e

em particular sobre a possibilidade de redenção depois da morte tornam-

90

-se mais precisas e evoluem para posições restritivas. A maioria dos especialistas

do pensamento agostiniano, e especialmente Joseph Ntedika, viu

a justo título neste endurecimento uma reacção às ideias dos laxistas

«misericordiosos» que Agostinho considerava muito perigosos, e nele se

viu também a influência das concepções milenaristas que teriam movido

Agostinho por intermédio dos cristãos espanhóis. Creio que também aí se

deve ver o reflexo do grande acontecimento do ano de 410: a tomada de

Roma por Alarico e os Ostrogodos que parece marcar o fim não só do

Império Romano e da invulnerabilidade de Roma, mas também anunciar

o fim do mundo para certos cristãos, enquanto grande parte da aristocracia

romana culta e ainda pagã acusava os cristãos de terem minado a

força de Roma e de serem responsáveis por uma catástrofe sentida como,

se não o fim do mundo, pelo menos o fim da ordem e da civilização.

Foi para responder a esta situação, a estas conjecturas e a estas

acusações que Agostinho escreveu a Cidade de Deus.

O que diziam esses tais «misericordiosos» de quem nada sabemos a

d

• 32? A . h A

não ser o que Agostinho lhes reprovou . gostm o ve-os como escendentes

de Orígenes, que pensava que no fim do processo de

paracatástase todos seriam salvos, incluindo Satanás e os anjos maus.

Faz notar, todavia, que os misericordiosos apenas se ocupam do~ homens.

Mas se bem que existam neles certos cambiantes, todos mais ou

menos acreditam que os pecadores inveterados serão salvos na totalidade

ou em parte. Segundo Agostinho, professam seis opiniões diversas

mas próximas. De acordo com a primeira, todos os homens serão salvos,

mas depois de uma estada mais ou menos longa no Inferno. De

acordo com a segunda, as preces dos santos obterão para todos, no

Julgamento Final, a salvação sem nenhuma passagem pelo Inferno. A

terceira consiste em conceder a salvação a todos os cristãos, mesmo os

cismáticos ou os heréticos, que tenham recebido a eucaristia. A quarta

restringe esta benesse somente aos católicos, com excepção dos cismáticos

e dos heréticos. Uma quinta opinião salva aqueles que conservam a

fé até ao fim, mesmo que tenham vivido em pecado. A sexta e última

variedade de misericordiosos é a que crê na salvação daqueles que deram

esmolas, ainda que pudessem fazer mais. Sem entrar em pormenores,

contentemo-nos com notar que, se a sua inspiração era mais ou menos

origeniana, estas seitas ou estes cristãos isolados se apoiavam fu~damentalmente

num texto das Escrituras separado do seu contexto e ínterpretado

à letra.

Reagindo, Agostinho vai afirmar que existem mesmo dois fogos, um

fogo eterno destinado aos condenados para os quais qualquer sufrágio é

inútil, e no qual insiste com veemência; e um fogo purgatório em re~ação

ao qual tem mais hesitações. O que interessa pois a Agostinho, se aSSImse

pode dizer, não é o futuro Purgatório mas sim o Inferno.

91



Foi para instituir o Inferno que ele definiu certas categorias de pecadores

e de pecados. Joseph Ntedika distinguiu três espécies de homens,

três espécies de pecados e três espécies de destinos. Parece-me que o pensamento

de Agostinho é mais complexo (a trindade será obra dos clérigos

dos séculos XII e XIII). Existem quatro espécies de homens: os ímpios

(infiéis ou autores de pecados criminais) que, sem recurso nem escapatória

possíveis, vão directamente para o Inferno; no outro extremo, os mártires,

os santos e os justos que, mesmo que tenham cometido pecados

«ligeiros», irão para o Paraíso directamente ou muito em breve. Entre

os dois extremos há aqueles que não são inteiramente bons nem inteiramente

maus. Estes últimos são, de facto, destinados ao Inferno; quando

muito poderão ter esperança, e será talvez possível obter para eles, por

meio de sufrágios como adiante se verá, um Inferno «mais tolerável».

Resta a categoria daqueles que não foram inteiramente bons. Esses podem

(talvez) salvar-se por meio de um fogo purgatório. Não é, em definitivo,

uma categoria muito numerosa. Mas se este fogo e esta categoria

existem, Agostinho tem ideias mais precisas sobre determinadas condições

da sua existência. Além de ser muito doloroso, este fogo não é eterno,

contrariamente ao fogo da geena, e não actuará no momento do

Julgamento Final mas entre a morte e a ressurreição. Por outro lado, é

possível obter uma mitigação das penas graças aos sufrágios dos vivos

habilitados a intervir junto de Deus e na condição de, finalmente e apesar

dos pecados, se ter merecido a salvação. Estes méritos adquirem-se

com uma vida geralmente boa e um esforço constante por a melhorar,

com a realização de obras de misericórdia e com a prática da

penitência. Este relacionamento da penitência com o «purgatório», que

será tão importante nos séculos XII e XIII, aparece pela primeira vez nitidamente

em Agostinho. Em definitivo, se Agostinho situou explicitamente

o tempo da purgação do Julgamento Final no período

intermédio entre a morte e a ressurreição, a sua tendência é para colocar

ainda mais atrás, quer dizer aqui em baixo, essa purgação. No fundo

desta existência existe a ideia de que as «atribuições» terrenas são a principal

forma de «purgatório». Daí as suas hesitações sobre a natureza do

fogo purgatório. Se ele actua depois da morte, não há objecção a que seja

«real»; mas se existe nesta terra, então deve ser essencialmente «moral».

No que toca aos pecados, Agostinho distinguiu pecados muito graves

a que, aliás, chama «crimes» (crimina, facinora, flagitia, scelera) em vez

de pecados, e que conduzem para o Inferno aqueles que os cometem; e

pecados sem grande importância a que chamou «ligeiros», «miúdos»,

«pequenos» e sobretudo «quotidianos» (levia, minuta, minuttisima, minora,

mínima, modica, parva, brevia, quotidiana) dos quais deu como exemplo

o apego excessivo à família, o amor conjugal exagerado (Cidade de

Deus, XXI, XXVI). Joseph Ntedika fez notar que Agostinho não referiu,

92

nem no todo nem nos pormenores, os pecados «intermédios», aqueles que

devem desaparecer no fogo purgatório, e avançou a hipótese de que receava

que o seu pensamento fosse explorado pelos laxistas «misericordiosos».

O que é possível. Mas não se deve esquecer que Agostinho era

mais sensível à globalidade da vida espiritual, à personalidade de conjunto

dos homens do que a um inventário de objectivos da vida moral que

coisificaria a vida da alma. Estes «crimes» são mais hábitos de criminosos

do que delitos precisos. Os pecados «quotidianos» são os únicos que podem

ser nomeados porque são os «trocos» da existência. Citá-los não é

grave para a qualidade da vida espiritual; são excrescências, escória, bagatelas

fáceis de fazer desaparecer desde que não se acumulem e não

invadam o espírito.

A oposição de Agostinho aos «misericordiosos» e a evolução do seu

pensamento sobre a sorte dos mortos surgem no seu tratado Sobre a fé e

as obras (De fide et operibus) de 413, mas exprimem-se sobretudo no seu

Manual, o Enchiridion, em 421, e no livro XXI da Cidade de Deus, em

426-427.

Entretanto fizera certas precisões a pedido de amigos. Na Carta a

Dardanus, em 417, esboçava uma geografia do além na qual não havia

lugar para o Purgatório. Voltando à história do pobre Lázaro e do rico

mau distinguia, com efeito, uma região de tormentos e uma região de

repouso mas não as situava às duas nos Infernos, como alguns, porque

a Escritura diz que Jesus desceu aos Infernos mas não que visitou o seio

de Abraão. Este não é senão o paraíso, nome genérico que não designa o

Paraíso terrestre onde Deus colocara Adão antes do pecado'".

Em 419, um certo Vincentius Victor de Cesareia, da Mauritânia, interroga

Agostinho acerca da necessidade de se baptizar para ser salvo. No

tratado Sobre a natureza e a origem da alma com o qual Agostinho lhe

responde e onde toma o exemplo de Dinócrates na Paixão de Perpétua e

Felicidade, o bispo de Hipona nega que as crianças não baptizadas possam

entrar no Paraíso e nem sequer ir, como pensavam os pelagianos,

para um lugar intermédio de repouso e de felicidade (Agostinho nega

portanto aqui o que será no século XIII o limbo das crianças). Para ir

para o Paraíso é preciso ser baptizado: Dinócrates fora-o, mas deve ter

pecado depois, talvez apostatado por influência do pai, mas fora salvo

finalmente por intercessão da irmã.

Eis os grandes textos do Enchiridion'" e do livro XXI da Cidade de

Deus.

Se é verdade que um homem carregado de crimes será salvo através do

fogo unicamente em nome da sua fé e se é assim que deve entender-se a palavra

de S. Paulo: «Ele será salvo, mas corno através do fogo» (I Corintios, III,

15), segue-se que a fé poderá salvar sem as obras, e que será falso o que disse

93



Tiago seu companheiro de apostolado. Falso também o que dizia o próprio S.

Paulo: «Não vos enganeis: nem os fornicadores, nem os idólatras, nem os

adúlteros, nem os efeminados, nem os invertidos, nem os ladrões, nem os

avaros, nem os bêbedos, nem os maldizentes, nem os açambarcadores possuirão

o reino de Deus» (I Corintios, VI, 9-11). Se, com efeito, até aqueles que

persistem nestes crimes serão no entanto salvos mercê da sua fé em Cristo,

como não o seriam no reino de Deus!

Mas, visto que testemunhos apostólicos tão claros e tão evidentes não

podem ser falsos, a passagem obscura onde se trata dos que constroem, sobre

o alicerce que é o Cristo, não com ouro, não com prata ou com pedras preciosas,

mas com madeira, com erva ou com palha - pois é desses que se diz que

serão salvos através do fogo porque não morrerão por causa do alicerce - deve

ser entendida de maneira a não entrar em contradição com os textos compreensíveis.

Madeira, erva e palha podem efectivamente entender-se como um tal apego

aos bens mais legítimos deste mundo, que não é possível perdê-los sem dor.

Quando essa dor acaba por queimar (alguém), se o Cristo desempenha no seu

coração o papel de alicerce, quer dizer que ninguém é preferido em detrimento

d'Ele, e se, sob o golpe da dor que queima, esse homem prefere ficar privado

desses bens caros ao seu coração do que do Cristo, ele é salvo através do fogo.

Mas se, no momento da tentação, lhe acontecesse preferir a posse desses bens

temporais e profanos à posse do Cristo, é porque não o tinha como alicerce,

uma vez que dava àqueles a primazia: pois, num edifício, nada precede o

alicerce.

Com efeito, o fogo de que falava o Apóstolo nesta passagem deve ser

entendido de tal maneira que os dois devem atravessá-lo: «aquele que sobre

este alicerce constrói com ouro, com prata ou com pedras preciosas, e aquele

que constrói com madeira, com erva ou com palha». Dito isto, Paulo acrescenta

com efeito: «O que é a obra de cada um, o fogo pô-lo-á à prova. Se a

obra de um resiste bem, esse receberá a sua recompensa. Mas se ela, pelo

contrário, é consumida, então sossobra; quanto a ele, será salvo, mas como

através do fogo» (I Corintios, m, 13-15). Não é pois só um deles, mas um e

outro, que verão a sua obra posta à prova pelo fogo.

Estes excertos dos capítulos 67 e 68 do Enchiridion testemunham em

muitos aspectos o pensamento agostiniano. Primeiro, o seu métouo exegético.

Ao texto de S. Paulo (I Coríntios, 111, 13-15), cujo carácter obscuro

reconhece, Agostinho opõe textos claros do mesmo S. Paulo. Deve

interpretar-se o texto dificil à luz dos textos exactos. Por outro lado, distingue

cuidadosamente os homens que cometeram crimes (homo sceleratus,

criminat dos que só cometeram delitos muito ligeiros, cujo protótipo

é sempre, para Agostinho, um apego exagerado aos bens terrenos no

entanto legítimos. Uns e outros, no dia do Julgamento, suportarão a

prova do fogo, mas uns perecerão, serão consumidos, enquanto os outros

serão salvos.

94

Que algo semelhante aconteça igualmente depois desta vida, não é impossível.

Será de facto assim? É lícito investigá-Io, seja ou não para o descobrir.

Alguns fiéis (neste caso) poderiam, mais cedo ou mais tarde, ser salvos por um

fogo purgatório, conforme tenham amado mais ou menos os bens transitórios.

Porém, nunca o serão aqueles de que se diz que «não possuirão o reino de

DeUS»(I Corintios, VI, li) se, por uma penitência adequada, não obtiverem

a remissão dos seus pecados (crimina), Adequada, disse eu, que não sejam

avaros em esmolas, visto que a Santa Escritura atribui a estas um valor tal,

que o Senhor anuncia (Mateus, XXV, 34-35) dever contentar-se unicamente

com esta colheita para colocar (os homens) à sua direita ou unicamente com a

ausência dela para os pôr à esquerda, e dirá a uns: «Vinde, os abençoados por

meu Pai, recebei o reinos e aos outros: «Ide para o fogo eterno.»

Livremo-nos de pensar, apesar de tudo, que estes crimes infames de que ele

diz que aqueles que deles são culpados «não possuirão o reino de Deus» podem

ser cometidos todos os dias e todos os dias resgatados por meio de esmo-

Ias. O que é preciso é mudar a vida para melhor e, por meio de esmolas,

aplacar Deus pelas culpas passadas, e não comprá-lo, por assim dizer, de

maneira a poder sempre cometê-Ias impunemente. «Com efeito, a ninguém

Deus dá licença de pecar (Eclesiastes, XV, 21), se bem que, na sua misericórdia,

apague os pecados cometidos, se não for negligenciada a satisfação adequada.

Na passagem precedente, Agostinho sublinhara que, para se ser salvo

pelo fogo, era preciso ter reunido, na vida terrena, a fé e as obras. Aqui

(Enchiridton, 69-70) é ainda mais conciso. Não se deve apenas ter dado

esmolas, é preciso «mudar a vida para melhor» (in me/ius quippe est vila

mutanda) e, em especial, é preciso entregar-se a uma penitência conveniente

e dar satisfação, isto é, cumprir uma penitência canónica. Neste

caso a remissão poderá ser conseguida após esta vida (post hanc vitam)

graças a «um certo fogo purgatório» (per ignem quemdam purgatorium )

sobre o qual Agostinho parece não ter certezas mas que é diferente do

fogo eterno, do fogo do Inferno. Retomará a distinção entre os dois fogos,

aquele que atormenta eternamente e aquele que expurga e salva, no

capítulo XVI do livro XXI da Cidade de Deus. A penitência, em todo o

caso, pode ser tão eficaz que, com excepção dos crimes infames, possa até

resgatar os pecados que, sem serem infames (infanda), são no entanto

designados como «crimes» (crimina). O fogo expurgatório é destinado

quer aos fiéis não submetidos à penitência canónica quer àqueles que

lhe são submetidos mas não a concluíram. Em compensação aqueles

que, estando sujeitos à penitência, não lhe foram submetidos, não pode

ser purificados pelo fogo.

Nos capítulos 109 e 110 do Enchiridion, Agostinho evoca os receptáculos

que acolherão as almas entre a morte individual e a ressurreição

final. Há lugares de repouso (o seio de Abraão, ainda que não seja refe-

95



rido) e os lugares de tormento (a geena igualmente não mencionada) -

como no quarto Livro de Esdras, explicitamente citado por Ambrósio.

As almas dos defuntos podem ser ajudadas pelos sufrágios dos vivos:

sacrificio eucarístico, esmolas. É aqui que Agostinho expõe melhor a

sua concepção das quatro espécies de homens. Os bons não têm necessidade

de sufrágios que, por sua vez, não podem ser úteis aos maus. Restam

os que não são inteiramente bons e os que não são inteiramente maus.

Esses têm necessidade de sufrágios. Os quase inteiramente bons tirarão

deles beneficios. Quanto aos quase inteiramente maus, parece que o melhor

que podem esperar é uma «condenação ao Inferno mais suportável»

(to/erabilio damnatio). Agostinho não se explicou a este respeito. Pode

supor-se que sonhava ou com o repouso sabático no Inferno, ou com

tormentos menos cruéis no Inferno também. A ideia de mitigação das

penas parece aqui exceder o «purgatório».

No intervalo entre a morte do homem e a ressurreição suprema, as almas

são retidas em depósitos secretos onde conhecem ou o repouso ou a pena de

que são dignas, segundo a sorte que talharam para si enquanto viviam na

carne.

Não se pode porém negar que as almas dos defuntos sejam aliviadas pelas

preces dos seus próximos ainda vivos, quando por elas é oferecido o sacrifício

do Mediador ou na Igreja são distribuídas esmolas. Mas estas obras servem

apenas para aqueles que, enquanto viviam, mereceram que elas pudessem

servir-lhes mais tarde.

Com efeito, existem homens cuja vida não é sufícientemente boa para não

terem necessidade desses sufrágios póstumos, nem suficientemente má para

que eles não possam ajudá-Ios. Ao contrário, há-os que viveram suficientemente

bem para os dispensar e outros suficientemente mal para não poderem

tirar deles proveito depois da morte. Pelo que é sempre aqui em baixo que se

adquirem os méritos que podem assegurar a cada um, depois desta vida, alívio

ou infortúnio. Aquilo que foi desprezado neste mundo, que ninguém espere

obter de Deus após a morte.

Assim, as práticas observadas pela Igreja tendo em vista recomendar a

Deus as almas dos defuntos não são contrárias à doutrina do Apóstolo, que

dizia: «Todos nós compareceremos perante o tribunal do Cristo» (Romanos,

XIV, 10),para lá recebermos, «cada um segundo o que fez durante a vida, seja

para o bem, seja para o mal» (11Coríntios, V, 10). Pois é durante a sua vida

terrena que cada um se torna merecedor do beneficio eventual das preces em

questão. Nem todos tiram dele vantagem; e porque será que o proveito que

dele advém não é o mesmo para todos, se não por causa da vida diferente que

tiveram cá em baixo?

Os sacrifícios do altar ou da esmola que são oferecidos em intenção de

todos os defuntos baptizados, para aqueles que foram inteiramente bons,

são acções de graças; para aqueles que não foram inteiramente maus, são

meios de propiciação; para aqueles cuja maldade foi total, por não terem

96

aliviado os mortos, servem para consolar, mesmo assim, os vivos. O que eles

asseguram àqueles que deles aproveitam é ou a amnistia completa ou, pelo

menos, uma forma mais suportável de condenação aos Infernos.

O livro XXI da Cidade de Deus (426-427) é de facto consagrado ao

Inferno e às suas penas. O objectivo principal de Agostinho é insistir na

eternidade destas. Para além do capítulo XXIV que já citei a propósito da

categoria de defuntos a quem os sufrágios podem ser úteis, examinarei o

capítulo XIII e a maior parte do capítulo XXVI.

No capítulo XIII, Agostinho reporta-se àqueles que pensam que todas

as penas desta vida ou do além são expurgatórias, portanto temporárias.

Retoma a distinção entre penas eternas e penas expurgatórias ou temporárias,

mas desta vez concede mais nitidamente a existência das penas

expurgatórias e dá mais pormenores a seu respeito.

XIII. Os platónicos, é evidente, desejariam que nenhum pecado ficasse

impune; pensam, no entanto, que todas as penas são aplicadas com fins correctivos,

sejam elas infligidas pelas leis humanas ou pelas leis divinas, quer

nesta vida quer depois da morte, conforme se foi poupado cá em baixo ou

se foi atingido sem conseguir emenda cá em baixo. Daí este pensamento de

Virgilio: depois de ter falado dos corpos terrenos e dos corpos votados à

morte, diz ele das almas: «Por isso elas temem e desejam, sofrem e rejubilam

e não sentem as brisas, envoltas como estão em trevas e encerradas como estão

na prisão escura.» Prossegue e acrescenta estas palavras: «E mais: quando no

dia supremo a vida as abandona (quer dizer, quando no último dia esta vida

as abandona), todavia o mal não deixa essas infelizes, nem todas as máculas

corporais as abandonam completamente; é necessário que os numerosos males,

que com o tempo criaram raízes, se desenvolvam de maneiras espantosas.

São, pois, atormentadas com penas e expiam em suplícios os crimes passados;

umas balançam inertes suspensas dos ventos; noutras, a mácula do crime é

lavada no fundo do grande abismo, ou queimada no fogo.» Aqueles que assim

pensam só admitem penas purgatórias depois da morte: e porque a água,

o fogo e o ar são elementos superiores à terra, deve-se ser lavado por um deles,

por meio de penas expiatórias, de tudo o que o contacto com a terra faz contrair;

de facto, o ar é designado pelas palavras «suspensas dos ventos», a água

por estas: «no grande abismo»; mas o fogo é expresso pelo seu próprio nome,

quando ele diz: «ou queimada no fogo». Quanto a nós, confessamos que,

mesmo nesta vida mortal, há penas purgatórias; não são atormentados por elas

aqueles cuja vida não melhora ou até se torna pior, mas são purgatórias para

aqueles que, castigados por elas, se corrigem. Todas as outras penas, quer

temporárias quer eternas, conforme a maneira como cada um deve ser tratado

pela divina Providência, são aplicadas pelos pecados quer passados quer

actuais, nos quais ainda vive aquele que é por elas atingido, seja para exercer

ou pôr em evidência as virtudes, e isto por intermédio ou dos homens ou dos

anjos bons e maus. Pois se alguém sofre qualquer mal por maldade ou em de

97



------------------------- - -

outrem, este homem peca, na verdade, pois faz mal a outro por ignorância ou

por injustiça; mas Deus, esse, não peca quando permite isso por um julgamento

justo, mesmo que seja secreto. Mas uns sofrem as penas temporárias apenas

nesta vida, outros depois da morte, outro tanto durante como depois desta

vida: de qualquer modo, antes desse julgamento muito severo e o último de

todos. Mas não caem nas penas eternas que virão depois desse julgamento

aqueles que suportaram as penas depois da morte. Pois para uns aquilo que

não é remido neste século será remido o século futuro, quer dizer evitar-lhes-á

serem punidos pelo suplício eterno desse século futuro: já o dissemos atrás.

Aqui não são visados os cristãos mas os autores pagãos, aqueles que

Agostinho chama os «platônicos» e entre os quais inclui Virgílio, reconhecendo

assim nos versos do primeiro canto da Eneida que citei uma

prefiguração do além cristão. Insiste na existência de penas purgatórias

a que também chama expiatórias. Admite que elas podem ser sofridas

quer nesta terra quer depois da morte. São temporárias porque acabarão

no dia do Julgamento Final e, nesse momento, os que as tiverem sofrido

vão para o Paraíso. Esta última afirmação é muito importante: constituirá

um elemento essencial do sistema do Purgatório medieval. Agostinho

repete, enfim, que só poderão beneficiar destas penas purgatórias aqueles

que se corrigiram durante a vida terrena.

No capítulo XXVI deste livro XXI da Cidade de Deus, Agostinho

retoma, de forma mais aprofundada e subtil, a exegese da primeira epístola

de Paulo aos Coríntios, III, l3-15.

Vede nas palavras do Apóstolo o homem que constrói sobre o alicerce

com ouro, prata e pedras preciosas: Aquele que não tem esposa, diz ele, pensa

nas coisas de Deus, de que maneira agradar a Deus. Vede o outro que constrói

com madeira, com feno, com palha: Mas aquele que está amarrado pelo casamento,

pensa nas coisas que são do mundo, de que maneira agradar à sua esposa.

A obra de cada um tornar-se-á manifesta, o dia dá-la-â a conhecer (é o dia da

atribulação), pois deve revelar-se no fogo, diz ele. (A esta atribulação chama ele

fogo, como se lerá noutra passagem: O forno põe à prova os vasos do oleiro,

como a atribulapão faz com os homens justos.) A obra de cada um, o fogo

provará qual é o seu valor. Se a obra de um resiste, (resiste, com efeito, a de

quem pensa nas coisas de Deus e como agradar a Deus), pelo que ele tiver

construído por cima, esse receberá uma recompensa (quer dizer, receberá aquilo

em que pensou); mas aquele cuja obra é consumida sofrerá um desgosto

(porque já não terá o que amou); quanto a ele, será salvo (pois nenhuma

atribulação o fez desviar-se da estabilidade do alicerce); mas como através

do fogo (com efeito, aquilo que ele possuiu apenas por amor enganador,

não o perderá sem dor). E encontrá-mo-lo, parece-me, esse fogo que não

condenará nenhum dos dois, mas enriquece um, prejudica outro, e põe à

prova os dois.

98

Distingue bem duas espécies de salvos através do fogo, prova comum

âquelescuja obra resistirá e àqueles cuja obra será consumida. Os primeiros

receberão uma recompensa, quer dizer irão directamente para o Paraíso;

os outros começarão por sofrer um desgosto, quer dizer uma

expiação, mas também eles serão finalmente salvos.

Agostinho retoma, finalmente, no fim do capítulo XXVI, a exegese do

mesmo texto de S. Paulo e presta dois esclarecimentos. Primeiro, a conlirmação

nítida de que o fogo purgatório se exercerá entre a morte corporal

e a ressurreição dos corpos «nesse intervalo de tempo» (hoc

temporis interval/o). Depois uma definição das atitudes humanas que levam

ou à condenação aos Infernos ou ao beneficio do fogo purgatório. O

critério é a natureza do alicerce sobre o qual o homem construiu a sua

vida. O único alicerce salutar é o Cristo. Se se preferir para alicerces as

volúpias carnais em vez do Cristo, corre-se para a condenação aos Infernos.

Se, pelo contrário, se sacrificou de mais a essas volúpias mas sem as

colocar no lugar do Cristo, corno alicerce, ser-se-á salvo «por essa espécie

de fogo».

Após a morte deste corpo, até que chegue o dia que se seguirá à ressurreição

dos corpos e que será o dia supremo da condenação e da remuneração, se

se afirma que, neste intervalo de tempo, as almas dos defuntos suportam esta

espécie de fogo, não o sentem aqueles que nos seus corpos não tiveram durante

a vida costumes e amores tais que o seu feno, a sua madeira e a sua palha

sejam consumidos; mas os outros sentem-no, aqueles que trouxeram consigo

construções de materiais semelhantes; encontram o fogo de uma atribulação

passageira que queimará completamente essas construções que vêm do século,

seja apenas aqui, seja aqui e lá em baixo, ou mesmo lá em baixo e não aqui e

que não são, aliás, passíveis de condenação aos Infernos; pois bem, não repilo

esta opinião, pois talvez seja verdadeira. De facto, dessas atribulações pode

fazer parte a própria morte da carne, que foi concebida pela perpetração do

primeiro pecado; de tal modo que o tempo que se segue à morte é sentido por

cada um segundo a sua própria construção. Também as perseguições que

coroam todos os mártires e as que sofrem todos os cristãos põem à prova

os dois géneros de construções, como o fogo; consomem umas juntamente

com os construtores, se não encontram nelas o Cristo como alicerce; outras

sem os construtores se o encontram, pois são salvos mas não sem dor; mas não

consomem outras porque vêem que elas podem subsistir para sempre. Haverá

também no fim do século, na época do Anticristo, uma atribulação tal que

nunca houve outra igual antes. Como serão então numerosas as construções

quer de ouro quer de feno edificadas sobre o mais sólido alicerce que é Jesus

Cristo; umas e outras, esse fogo pô-Ias-à à prova, a umas dará alegria, a outras

prejuízo; não destruirá, no entanto, nem uns nem outros daqueles em que

encontrar essas construções, em virtude do estável alicerce. Mas quem quer

que coloque antes do Cristo, já nem digo a esposa com quem estabelece a

união recíproca da carne por causa da volúpia carnal, mas os outros laços

99



de afeição habituais entre os homens, mas estranhos àquelas volúpias, amando-os

de uma maneira carnal; esse não tem o Cristo como alicerce; por consequência,

não será salvo pelo fogo; não será mesmo salvo simplesmente,

porque não poderá estar com o Salvador que diz muito claramente ao falar

nisso: Aquele que ama o seu pai ou sua mãe mais do que a mim, não é digno de

mim; e aquele que ama o seu filho ou sua filha de preferência a mim, não é digno

de mim. Mas aquele que ama os seus próximos de uma maneira carnal mas

sem no entanto os colocar antes de Cristo Senhor, de modo a preferir ser

privado deles a ser privado do Cristo, se a provação o levar a esse extremo,

esse será salvo pelo fogo, pois é necessário que, pela perda dos seus próximos,

a dor o queime em proporção com a força do seu amor. Além disto, aquele

que amar o pai, a mãe, o filho ou a filha segundo Cristo, de tal modo que se

ocupa deles para os fazer atingir o seu reino e ficar unidos a Ele, ou que amar

neles o facto de serem membros do Cristo: queira Deus que esse amor não seja

de molde a ser classificado entre as tais construções de madeira, de feno e de

palha, para ser queimado! então será reconhecido como uma co~strução de

ouro, de prata e de pedras preciosas. Como pode ele amar mais do que o

Cristo aqueles que ama, de facto, em intenção do Cristo?

Agostinho e os espectros

Não me parece possível abandonar as concepções de Agostinho tão

importantes para a génese do Purgatório, sem ter mencionado dois problemas

a elas ligados. O primeiro encontra-se no opúsculo Sobre os cuidados

a ter com os mortos, dedicado a Paulino de Nola entre 421 e 423.

Nele Agostinho retoma um dos seus temas favoritos já evocado na prece

por sua mãe Mónica, no livro IX das Confissões. Opõe-se fortemente ao

luxo funerário a que cedem certos cristãos, copiando os costumes dos

pagãos ricos. Um mínimo de cuidados basta aos mortos, e se Agostinho

admite um certo decoro nas exéquias e nos cemitérios, é por mero respeito

humano. As famílias ficam parcialmente consoladas com isso. Pode-se

deixar-Ihes essa satisfação. Mas na segunda parte do De cura pro mortuis

gerenda Agostinho aborda o problema dos espectros. Afirma primeiro a

sua realidade dando exemplos pessoais.

Descrevem-se certas aparições que me parecem acrescentar a este debate

um problema não despiciendo. Diz-se que certos mortos se mostraram, quer

durante o sono, quer de outra maneira, a pessoas vivas. Essas pessoas ignoravam

o local onde o seu cadáver jazia sem sepultura. Eles indicaram-lho e

pediram que lhes arranjassem o túmulo que lhes faltava. Responder que estas

visões são falsas é contradizer com atrevimento os testemunhos escritos de

autores cristãos e a convicção das pessoas que afirmam tê-Ias tido. A resposta

verdadeira é a seguinte. Não se deve pensar que os mortos agem como seres

conscientes e reais, quando parecem dizer, mostrar ou pedir em sonhos o que

100

nos é relatado. Pois também os vivos aparecem aos vivos em sonhos, e sem

que o saibam. Vêm a saber pelas pessoas que os viram, enquanto dormiam, o

que disseram e fizeram durante a visão. Qualquer um pode, pois, ver-me em

sonhos anunciando-lhe um acontecimento passado ou predizendo-lhe um

acontecimento futuro. E no entanto eu ignoro totalmente o facto, e nada

tenho a ver não só com o sonho dele mas também se está acordado quando

eu durmo, se dorme quando eu estou acordado, se estamos acordados ou

dormimos os dois no mesmo momento, quando ele tem o sonho onde me

vê. O que há então de extraordinário no facto de os mortos, sem nada saberem

nem sentirem, serem vistos em sonhos pelos vivos, dizendo coisas das

quais, ao acordar, se verifica a veracidade?

Seria levado a crer, em relação a estas aparições, numa intervenção dos

anjos que, com permissão de Deus e por sua ordem, fazem saber a quem

sonha que tais mortos estão por sepultar, e isto com o desconhecimento dos

próprios mortos.

Acontece também de tempos a tempos que visões falsas façam cair em

erros graves homens que merecem, aliás, cair neles. Alguém, por exemplo,

vê em sonhos o que Eneias viu nos Infernos, como uma ficção poética e falaciosa

nos conta (Eneida, VI), quer dizer a imagem de um homem privado de

sepultura. Esse homem diz-lhe as coisas que o poeta põe na boca de Palinuro.

E eis que ao acordar encontra o corpo do defunto exactamente no local onde

no sonho, com pedidos e rogos para que o sepultasse, soubera que ele jazia.

Como a realidade é igual ao sonho, ele será tentado a acreditar que é preciso

inumar os mortos para permitir às almas alcançarem aquelas moradas de

onde as leis do Inferno as afastam enquanto o corpo não tiver recebido sepultura,

conforme lhe fora dito no sonho. Ora, se se tiver esta convicção, não se

será levado bem longe, para fora do caminho da verdade?

Tal é pois a ignorância humana que, se se vê um morto durante o sono,

julga-se ver a sua alma, enquanto se sonha com um vivo fica-se perfeitamente

convencido de que não se viu o seu corpo nem a sua alma, mas a sua imagem.

Como se os mortos não pudessem aparecer da mesma maneira que os vivos,

não sob a forma de uma alma, mas sob uma figura que reproduz os seus

traços.

Eis um facto que posso garantir. Estando eu em Milão, ouvi contar que

um credor, para conseguir ser reembolsado de uma dívida, se apresentou ao

filho do devedor com a promissória assinada por este, que acabava de morrer.

Ora a dívida já fora paga. Mas o filho ignorava-o e ficou numa grande tristeza

admirando-se de que o pai, que aliás fizera testamento, nada lhe tivesse dito

ao morrer.

Mas eis que na sua imensa ansiedade vê o pai aparecer-lhe em sonhos e

mostrar-lhe o sítio onde se encontra o recibo que anulara aquela promissória.

Ele encontra-o, mostra-o ao credor e não só nega a sua reclamação mentirosa

mas também entra na posse do papel que não fora restituído ao pai no momento

do reembolso. Eis, pois, um caso em que a alma do defunto pode

passar por ter tido pena do filho e ter vindo junto dele durante o sono para

o informar do que ele ignorava, e o tirar da sua grande preocupação.

101



Mais ou menos na época em que nos relataram este caso e quando eu

ainda estava estabelecido em Milão, aconteceu a Eulogius, professor de eloquência

em Cartago e meu discípulo nessa arte, como eleme recordou, o facto

seguinte que ele próprio me relatou, quando regressei a Africa: Dizendo o seu

curso respeito às obras de retórica de Cícero, ele preparava a lição para o dia

seguinte; deparou-se-lhe uma passagem obscura que não conseguia compreender.

Preocupado, fez todos os esforços para adormecer. E eis que eu lhe apareci

durante o sono e lhe expliquei as frases que haviam resistido à sua

inteligência. Não era eu, evidentemente, mas a minha imagem, sem eu saber.

Estava eu então bem longe, do outro lado do mar, ocupado com outro

trabalho ou sonhando outra coisa, e nada tinha a ver com as suas preocupações.

Como se produziram estes dois factores? Ignoro-o. Mas seja como for que

eles tenham acontecido, porque não acreditarmos que os mortos nos aparecem

em sonhos na forma de uma imagem, exactamente como os vivos? Nem

uns nem outros sabem disso nem com isso se preocupam.

Depois de ter falado das visões que podem surgir durante o delírio ou

em letargia, Agostinho conclui, aconselhando a não se tentar entender

estes mistérios:

Se alguém por acaso me tivesse respondido com estas palavras da Escritura:

«Não procures o que está alto de mais para ti, não perscrutes o que é

forte de mais para ti, contenta-te com meditar constantemente nos mandamentos

do Senhor» (Eclesiastes, IH, 22), eu acolheria este conselho com gratidão.

Não é, com efeito, pequena vantagem, quando se trata de pontos

obscuros e incertos que escapam à nossa compreensão, ter pelo menos a certeza

nítida de que não se deve estudá-los; e, quando queremos instruir-nos na

intenção de saber qualquer coisa de útil, que não é nocivo ignorá-Ia.

A conclusão geral do opúsculo insiste na utilidade dos sufrágios pelos

mortos, com a restrição de que só aqueles que mereceram a salvação

podem beneficiar com eles. Mas na incerteza da ,sorte que Deus Ihes reserva,

mais vale fazer de mais do que de menos. E a reafirmação da triologia

auxiliar dos mortos que reencontraremos com o Purgatório: as

missas, as orações, as esmolas:

Estando o problema no seu conjunto assim resolvido, fiquemos convencidos

de que os mortos para os quais vão os nossos cuidados apenas beneficiam

das súplicas solenes por eles feitas no sacrificio oferecido no altar e no das

nossas preces e das nossas esmolas. Façamos todavia a reserva de que essas

súplicas não são úteis a todos, mas só àqueles que durante a vida mereceram

beneficiar delas. Mas como não podemos distinguir aqueles que adquiriram

este mérito, devemos suplicar por todos os regenerados para não esquecermos

nenhum dos que podem e devem aproveitar com elas. Mais vale, com efeito,

102

que as nossas boas obras sejam feitas em vão por aqueles a quem elas não são

úteis nem prejudiciais, do que faltarem aos que podem delas tirar beneficio.

Todavia, cada um põe mais zelo em fazê-Ias pelos seus parentes, na esperança

de que estes lhes paguem na mesma moeda.

Se citei longamente estes textos espantosos, é porque o Purgatório terá

grande importância para os espectros: será a sua prisão, mas ser-lhes-á

permitido escapar dele para as breves aparições aos vivos, cujo zelo em

seu beneficio seja insuficiente. É importante que também aqui Agostinho

surja como uma autoridade. Com efeito, este intelectual cristão sempre

pronto para denunciar as superstições populares, partilha aqui uma mentalidade

comum. Por outro lado, vemo-lo isolado perante a interpretação

dos sonhos e das visões. O cristianismo destruiu a sábia oniromancia

antiga e reprime ou recusa as práticas populares de adivinhação. O caminho

dos sonhos está bloqueado, os pesadelos vão nascer. Os homens da

Idade Média levarão muito tempo a recuperar um universo onírico'".

() fogo purgatório e a escatologia de Agostinho

Por outro lado, não se deve separar, mesmo que Agostinho não as

tenha ligado explicitamente, as suas concepções do fogo purgatório e a

Nuadoutrina escatológica geral, em especial a sua atitude no que respeita

110 milenarismo ".

O milenarismo é a crença de certos cristãos herdada do judaísmo na

vinda à terra, numa primeira fase do fim dos tempos, de um período de

felicidade e de paz de mil anos, quer dizer, um tempo muito longo, o

Millenium. Os cristãos milenaristas, numerosos sobretudo entre os gregos

e daí o nome do «chiliasme» - do grego XtÀícx que significa mil -

que foi a primeira designação da doutrina, baseavam-se sobretudo numa

. passagem do Apocalipse de João que certos cristãos que se opunham ao

milenarismo tinham em vão tentado afastar da compilação canónica das

Escrituras:

Depois vi tronos onde eles se sentaram e adiaram-lhes o julgamento; e

também as almas dos que foram decapitados pelo testemunho de Jesus e a

Palavra de Deus, e todos aqueles que recusaram adorar a Besta e a sua imagem

e deixar-se marcar na testa ou na mão; eles readquiriram vida e reinaram

com o Cristo mil anos. Os outros mortos não puderam retomar vida antes de

terminarem os mil anos. É a primeira ressurreição. Feliz e santo o que participa

da primeira ressurreição! A segunda morte não tem poder sobre esses, e

eles serão padres de Deus e do Cristo, com quem reinarão mil anos (Apocalipse,

XX, 4-6).

103



A voga do milenarismo entre os cristãos parece ter conhecido o seu

apogeu no século lI, e depois ter decrescido. Mas esta crença não desaparecerá

e conhecerá na Idade Média surtos mais ou menos intensos,

mais ou menos longos, dos quais o principal foi sem dúvida a repercussão

das ideias milenaristas do abade Joachim de Fiore (que morreu em

1202) na Calábria, no século XIII.

Agostinho dedicou o livro XX da Cidade de Deus à escatologia dos

últimos tempos. Nele apresenta uma crítica vigorosa do milenarismo,

depois de confessar que foi milenarista durante a juventude. O

Millenium, diz ele, começou com a vinda do Cristo e prosseguiu com o

baptismo que representa para os homens a primeira ressurreição, a das

almas. Acreditar num Millenium futuro é, no fundo, cometer o mesmo

erro que os judeus que continuam à espera do Messias quando ele já

veio. Do Millenium Agostinho dá, aliás, uma interpretação alegórica.

Mil, que é um número perfeito, dez ao cubo, significa a plenitude dos

tempos. Por outro lado, Agostinho minimiza um episódio anunciado pelo

Apocalipse, o da vinda do Anticristo, personagem demoníaca que deve

dominar a terra justamente antes do começo do Millenium, quando Satanás,

ele próprio acorrentado durante mil anos, se tiver libertado. Agostinho

afirma que o reinado do Anticristo será muito breve e que mesmo

durante tal reinado nem o Cristo nem a Igreja - que não desaparecerá -

abandonarão os homens. Esta negação de uma primeira ressurreição dos

justos que virá com o Julgamento Final articula-se com a afirmação de

um fogo purgatório pelo qual passarão certos defuntos entre a morte e a

ressurreição, sem que possa existir nesse período outro acontecimento

escatológico. Pelo contrário, Santo Ambrósio, seguindo Orígenes que

condenara severamente o «chiliasme» mas que, segundo a sua teoria da

apocatástase, previa para as almas etapas de purificação, afirmara a

existência de várias ressurreições futuras e formulara a hipótese de que

o fogo purgatório se exerceria sobretudo entre a primeira e a segunda

ressurreição (Comentário ao Salmo I, nl! 54)37.

Nota-se assim, a partir de Agostinho, uma espécie de incompatibilidade

entre o milenarismo e o Purgatório. A construção do Purgatório

poderá mesmo aparecer como resposta da Igreja a surtos de milenarismo.

Mas podemos perguntar-nos se um vestígio, mesmo que residual,

do pensamento milenarista em Santo Agostinho não terá contribuído

para a imprecisão das suas ideias sobre o fogo purgatório. Como vimos

no texto do capítulo XXVI do livro XXI da Cidade de Deus, Agostinho,

ao evocar o tempo do Anticristo, vê nele uma recrudescência da actividade

do fogo purgatório. A sua concepção do Millenium já existente e das

atribulações terrenas como início da prova purgatória contribuiu para o

impedir de conceber um lugar especial para a provação do fogo purgatório.

Julgo que Joseph Ntedika caracterizou muito bem a contribuição de

Agostinho para a doutrina do futuro Purgatório: «São sobretudo, escreveu

ele, estas duas vertentes do pensamento agostiniano que a posteridade

vai reter e desenvolver; quer dizer, a tendência para limitar a eficácia

do fogo purificador aos pecados ligeiros, e também a transferência desse

fogo para o período entre a morte e a ressurreição».

São estas, com efeito, as duas principais contribuições de Agostinho.

Por um lado, uma definição muito rigorosa do fogo purgatório num ponto

de vista triplo. Aplicar-se-á a um pequeno número de pecadores, será

muito penoso, será uma espécie de inferno temporário (Agostinho é um

dos grandes responsáveis pela «infernização do Purgatório»); provocará

sofrimentos superiores a qualquer dor terrena. Por outro lado, a definição

do tempo do Purgatório: entre a morte individual e o julgamento

geral. Mas Agostinho deixou na sombra dois elementos essenciais do

sistema do Purgatório. Primeiro, a definição não só dos pecadores

(nem inteiramente bons nem inteiramente maus) mas também dos

pecados que conduzem ao Purgatório. Em Agostinho não existe doutrina

dos pecados «veniais». Depois a caracterização do Purgatório como

lugar. Vemos aqui uma das razões essenciais da recusa de Agostinho de

ir tão longe. Ele define o tempo em oposição aos milenaristas e aos misericordiosos.

Não define o lugar e conteúdo concreto porque para isso lhe

seria necessário adoptar algumas das crenças «populares» - trazidas precisamente

pela tradição apocalíptica e apócrifa que ele recusa. A este

intelectual aristocrata, o «popular» que identifica com o «vulgar- e

com o «materialista» causa horror. Quando os Padres conciliares de

l.yon 11 (1274), de Florença (1438) e de Trento (1563) institucionalizaram

o Purgatório, a sua tendência foi também para excluir dos dogmas

c das verdades da fé - num clima visível de desconfiança, pelo menos no

que toca aos de Trento - todo o imaginário do Purgatório.

Agostinho, apesar das suas incertezas e das suas reticências, admitira

o fogo purgatório: o que é também uma das suas contribuições importantes

para a pré-história do Purgatório, pois esse fogo purgatório constitui,

sob a autoridade de Santo Agostinho, a realidade pré-purgatório até ao

fim do século XII, e continuará a ser um elemento essencial do novo lugar.

Foi porque a desconfiança em relação às crenças e às imagens populares

regrediu em certa medida entre 1150 e 1250 que o Purgatório pôde nascer

como lugar. Negativa como positivamente, a posição de Agostinho é

muito esclarecedora para toda esta história ".

Sobre a doutrina, a teologia cristã começa a afirmar-se: existe a possibilidade

de resgate, para certos pecadores, depois da morte. Para o tempo,

a luta contra o milenarismo facilita a individualização de um espaço

de tempo, cujos limites são a morte individual e o julgamento geral.

Quanto à aplicação, a hierarquia eclesiástica é, no seu conjunto, prudente:

não se deve alargar a via do além a ponto de se correr o risco de

104

105



esvaziar o Inferno. Mas sobretudo ela sente-se inquieta a respeito da

materialização desta situação. Procurar localizar com precisão esse Purgatório,

definir muito concretamente as provações em que ele consiste é

trilhar um caminho perigoso. É verdade que, visto que Paulo falou do

fogo ou da passagem por qualquer coisa que se lhe assemelha (quasi

per ignem ), se pode utilizar essa imagem, visto que o fogo pode ser mais

ou menos imaterial e pode eventualmente reduzir-se a uma metáfora. Mas

ceder mais àquela a que Malebranche chamará «a louca da casa» - a

imaginação - seria correr o risco de ser presa do diabo e das suas ilusões,

e vítima das imaginações pagãs, judaicas, heréticas e, em definitivo,

«populares». E esta mistura de certeza e de desconfiança que

Agostinho propõe e lega à Idade Média.

Atribuía-se a Cesário de Arles (que morreu em 542) uma achega importante

para a prê-história do Purgatório. Pierre Jay desfez esta má

interpretação de dois sermões do bispo de Arles e ajustou com grande

precisão as várias peças nos autos do Purgatório ".

Um falso pai do Purgatório: Cesário de Arles

Cesário de Arles fala do foto purgatório (ignis purgatorius ) em dois

sermões, os sermões 167 e 179. . Deste último, que é o mais importante,

eis a tradução parcial de A. Michel no Dicionário de Teologia Católica

(Dictionnaire de théologie catho/ique). É um comentário de S. Paulo, I

Coríntios, m, 10-15:

Aqueles que compreendem mal este texto deixam-seenganar por uma

falsa segurança.Crêem que, se se construir sobre o alicercedo Cristo crimes

capitais, essespecados poderão ser purificadospassando através do fogo (per

ignem transitorium ) e assimalcançar-sea seguir a vida eterna. Corrigi, meus

irmãos, esta maneira de entender:gabar-sede semelhantecoisa é enganar-se

rotundamente. Nessefogo de passagem(transitorio igne ), de que o Apóstolo

disse: esse mesmo será salvo mas como através do fogo, não são os pecados

capitais mas sim os pecados insignificantesque serão purificados... Se bem

que essespecados, segundo a nossa crença, não matem a alma, desfiguram-

-na... e não fi deixam unir-seao esposo celestesenão a troco de uma grande

confusão... E por meio de precesconstantese de jejuns frequentesque conseguimosremi-los...

e o que não foi remidopor nós deveráser purificadonesse

fogo de que o Apóstolodiz:(a obra de cada um) será revelada pelo fogo; assim

ofogo porá à prova a obra de cada um. I Coríntios,III, 13... Por isso,enquanto

vivermosneste mundo, mortifiquemo-nos... e essespecadosserão purificados

nesta vida de modo que, na outra, essefogo do purgatório ou não encontre

nada ou só encontre em nós pouca coisa para devorar. Mas se não dermos

graças a Deus nas nossas afliçõese se não resgatarmosas nossas culpas com

106

boas obras, teremosde permanecerno fogodo purgatório tanto tempo quanto

os nossospecadosinsignificantesexigirem,para sermosconsumidos"Como

madeira. feno ou palha.

Que ninguém diga: Que me importa ficar no purgatório se em seguida

alcanço a vida eterna! Ah! não faleis assim, irmãos carissimos,porque esse

fogo do purgatório será mais penoso do que todas as dores que pudermos

conceber,experimentare sentir neste mundo...

Mas o texto latino original de Cesário diz outra coisa. Onde está traduzido

fogo do Purgatório, o que está é ignis pur~atorius, fogo purgatório;

e onde se diz «no Purgatório» não está nada 1.

De facto, Cesário reproduz o que foi escrito antes dele pelos Pais da

Igreja e sobretudo por Santo Agostinho. Em relação a este último está até

atrasado, pois o fogo purgatório é para ele apenas o fogo do julgamento.

Não se trata do intervalo entre a morte e a ressurreição. Como diz judiciosamente

Pierre Jay: «Não sacrifiquemos, pois, em demasia à ideia de

um progresso contínuo em teologia. Mas Cesário tem sempre o seu lugar

na pré-história do Purgatório, porque os textos mal interpretados têm

tanta importância em história como os outros. Ora os de Cesário retiveram

tanto mais a atenção do clero da Idade Média quanto foram atribuídos

a Santo Agostinho: autoridades agostinianas, as expressões do bispo

de Arles atravessarão os séculos e poderão ser um dia exploradas de maneira

sistemática por teólogos com preocupações completamente diferentes.

Nelas se procurará respostas às questões do lugar e da duração do

purgatório» (P. Jay).

Para bem dizer, Cesárío trazia, em relação aos textos agostinianos

autênticos, confirmações sobre dois pontos e sobre um deles uma precisão.

No seu comentário ao Salmo XXXVII, Agostinho dissera que «o

fogo purgatório será mais terrível do que tudo o que um homem possa

sofrer nesta vida». Cesário, como vimos, repete esta opinião e contribuirá

para dar aos homens da Idade Média uma imagem aterradora do fogo do

Purgatório. Agostinho distinguira pecados muito graves a que chamava

crimina e que levavam normalmente ao Inferno, e pecados ligeiros, insignificantes,

com os quais não eram precisas grandes preocupações. Cesário

retoma esta distinção e precisa-a. Chama aos primeiros crimina capitalia:

estamos aqui na fonte dos pecados capitais, cuja doutrina Gregório, o

Grande, vai consagrar. Em compensação, continua a chamar aos pecados

ligeiros parva (pequenos), quotidiana (quotidianos), minuta (insignificantes),

mas sublinha que são eles os que se expiam no fogo purgatório,

precisão que não fora feita por Agostinho.

Com Cesário, enfim, a atmosfera em que se fala da sorte dos defuntos

e do além muda. O Julgamento Final era um dos temas favoritos das

prédicas de Cesário, que dissertava de melhor vontade sobre o Inferno

107



do que sobre a ressurreição e o Paraíso. Ele próprio confessa num sermão

que os seus ouvintes o censuram por falar constantemente de temas assustadores

(tam dura). Ainda mais do que em Agostinho, a sua preocupação

é convencer os fiéis da realidade do fogo eterno, e da duração do

fogo temporário. Está obcecado, escreveu-se, pela «imagem das suas ovelhas

perante o juízo eterno». A sua preocupação é essencialmente pastoral.

Pretende munir os fiéis de ideias simples, de receitas, de uma bagagem

sumária. E assim que organiza listas de pecados «capitais» e «insignificantes»,

o que Agostinho não tinha feito. Tem-se explicado em larga

medida esta atitude pela barbarízação da sociedade e da religião. Mas

este fenómeno inegável que marca a entrada na Idade Média propriamente

dita é mais complexo do que se tem pensado.

Primeiro, não se deve atribuir apenas aos «bárbaros» a «responsabilidade»

por esta descida do nível cultural e espiritual. O acesso à religião

cristã das massas camponesas, dos «bárbaros» do interior, é um fenómeno

pelo menos tão importante como o da instalação de invasores e imigrantes

vindos do exterior do mundo romano. Uma faceta desta

«barbarizaçãox é a democratização. Aqui as coisas complicam-se ainda

mais. Os chefes da Igreja pregam uma religião igualitária, querem estar

ao alcance das suas ovelhas, fazem um esforço na direcção do «pOVO)).

Mas ~les são, em grande maioria, aristocratas urbanos imbuídos dos preconceitos

da sua classe e estreitamente ligados aos seus interesses terrenos.

O desprezo pelo rústico e o ódio ao paganismo, a sua incompreensão

perante comportamentos culturais exóticos, rapidamente alcunhados de

superstições, levam-nos a pregar uma religião de terror, que se volta mais

facilmente para o Inferno do que para um processo de mitigação das

penas. O fogo purgatório, discretamente aceso pelos Padres, em especial

por Agostinho, vai manter-se latente durante muito tempo, sem encontrar,

neste mundo de insegurança, lutas elementares iluminadas pelo fogo

mais poderoso do julgamento (mais ou menos confundido com o clarão

sinistro do fogo da geena) que o reacendam.

Histórias do Purgatório neste mundo: Gregório, o Grande, último pai do

Purgatório

E, no entanto, é nestas perspectivas escatológicas, movido por um zelo

pastoral ardente num contexto terreno dramático, que um pontífice vai

reanimar a chama purgatória. Depois de Clemente de Alexandria e de

Orígenes, depois de Agostinho, o último «fundador» do Purgatório é

Gregório, o Grande.

Gregório pertence a uma grande família aristocrata romana. Antes

e depois da sua «conversão», ao tomar o hábíto monástico no mosteiro

108

urbano - que cria sobre o Caelius numa da mansões familiares atribui-

-se altas funções. É, assim, prefeito da cidade, encarregado dos problemas

de abastecimento numa Itália presa dos Bízantinos, dos Godos, dos Lombardos,

da peste; e depois apocrisiário, quer dizer embaixador do Papa

junto do imperador de Constantinopla. Em 590 é chamado ao trono de

S. Pedro em circunstâncias dramáticas: o Tibre está numa das suas terríveis

enchentes e inunda a cidade no meio de prodígios angustiantes; principalmente

uma terrível epidemia de peste (um dos surtos mais intensos

da grande pandemia, a primeira peste negra, chamada de Justiniano, que

desde há um século devastava o Médio Oriente, o mundo bizantino, a

Africa do Norte, e a Europa mediterrânica) dizimava a população. Como

Cesário e, mais do que ele, dada a sua função, a sua personalidade e o

momento histórico, Gregório vai ser um pastor escatológico. Persuadido

da proximidade do fim do mundo, lança-se apaixonadamente num grande

empreendimento de salvação do povo cristão do qual deverá dentro

em breve prestar contas diante de Deus. Aos cristãos do interior multiplica

as instruções salutares, comentando a Escritura, sobretudo os profetas,

apoiando os frades com meditações sobre o Livro de Job,

ensinando o clero secular por um Manual de pastoral, chamando os laicos

a uma vida toda virada para a salvação pelo enquadramento litúrgico

(é um grande organizador de procissões e de cerimónias) e pelos ensinamentos

morais. Aos povos de fora, dá missionários: os Ingleses haviam

regressado ao paganismo e ele envia para Canterbury uma missão que

inicia a reconquista cristã da Grã-Bretanha. Aos italianos dá uma hagiografia

e, entre os padres italianos, distingue um monge recentemente desaparecido,

Benedito do Monte-Cassino, de quem faz um dos grandes

santos da cristandade. Entre aqueles cristãos a salvar, porque não haveria

mortos recuperáveis? A paixão escatológica de Gregório vai exercer-se

para lá da sua morte 42 •

A contribuição de Gregório, o Grande, para a doutrina do Purgatório

é tripla. Nas Mora/ia in Job, dá alguns esclarecimentos sobre a geografia

do além. Nos Dia/ogi, ao mesmo tempo que fornece algumas indicações

doutrinárias, conta sobretudo pequenas histórias onde põe em cena os

mortos, enquanto expiam os pecados, antes do Julgamento Final. Enfim,

a história do rei godo Teodorico levado para o Inferno, se bem

que não refira um lugar «purgatório», poderá ser mais tarde considerada

uma peça antiga do processo da localização terrestre do Purgatório. Nas

Mora/ia in Job (XII-13), Gregório comenta o versículo do Livro de Job,

14-13: Quis mihi tribuat ut in inferno protegas me? (Que a Bíblia de Jerusalém

traduz por Oh! se tu me abrigasses no shéo/ pois é bem deste inferno

judaico que se trata). Gregório tenta resolver o seguinte problema: antes

da vinda do Cristo era normal que todos os homens caíssem no Inferno,

pois era necessária a vinda do Cristo para reabrir o caminho do Paraíso,

109



mas os justos não deviam cair naquela parte do Inferno onde se é torturado.

Com efeito, existem no Inferno duas zonas, uma superior para o

repouso do justo, outra inferior para os tormento do não justo.

«Quem me conseguirá a graça de que me protejas no Inferno?» Que antes

da vinda do Mediador entre Deus e o homem, todos os homens, por mais

puras e seguras que fossem as suas vidas, tenham de descer às masmorras

do Inferno, eis o que já não oferece dúvidas, visto que o homem que caiu

por si próprio não poderia voltar ao repouso do Paraíso se não tivesse vindo

aquele que, pelo mistério da sua encarnação, iria também abrir-nos o caminho

do Paraíso. Eis porque, depois do pecado do primeiro homem, segundo as

palavras da Escritura, uma espada fulgurante foi colocada à porta do Paraíso;

mas também ficou dito que essa espada era rodopiante, porque viria o dia

em que também ela podia ser afastada de nós. Porém, não queremos dizer com

isto que as almas dos justos tenham descido aos infernos para ficarem retidas

nos campos de suplício. Existe no Inferno um campo superior e há também

um campo inferior, assim deve ser a nossa fé; o campo do alto está prometido

ao repouso do justo e o de baixo aos tormentos do não justo. De lá vêm

também estas palavras do salmista quando a graça de Deus surge na sua

frente: «Tu arrancaste a minha alma ao Inferno inferior.» Assim, sabendo

que antes da vinda do Mediador, desceria aos Infernos, o bem-aventurado

Job espera encontrar lá a protecção do seu criador para se manter estranho

ao campo dos suplícios, num lugar onde, no caminho do repouso, a vista dos

suplícios lhe fosse poupada 43.

Um pouco mais adiante (Moralia in Job, XIII, 53) Gregório retoma e

aprofunda o problema a propósito de um outro versículo do Livro de

Job, 17-16: In profundissimum infernum descendent omnia mea:

«Tudo o que é meu descera às profundezas do Inferno.» É certo que nos

Infernos os justos ficavam retidos não nos campos dos suplícios mas no lugar

superior do repouso: assim nos surge um grande problema sobre o sentido

desta afirmação de Job: «Tudo o que é meu descerá às profundezas do Inferno.»

Pois, se antes da vinda do Mediador entre Deus e os homens ele tinha de

descer ao Inferno, é no entanto evidente que não teria de descer às profundezas

do Inferno. Não será o caso de ele dar justamente à zona superior o nome

de profundeza do Inferno? Pois, bem o sabemos, do ponto de vista das abóbadas

do céu, a região da nossa atmosfera pode ser correctamente chamada

um inferno. Daí que, quando os anjos apóstatas foram precipitados da morada

celestial para esta atmosfera sombria, o apóstolo Pedro diga: «Ele não

poupou os anjos que haviam pecado; levou-os acorrentados com as grilhetas

do Inferno para os entregar ao Tártaro e os reservar para os suplícios do

julgamento.» Se, pois, do ponto de vista do cimo do céu, essa atmosfera sombria

é um inferno, também do ponto de vista dessa atmosfera, a terra, que é

para o céu uma zona inferior, pode ser chamada um inferno profundo; mas

110

então, também do ponto do alto desta terra, a região do inferno que está por

cima das outras moradas do inferno pode receber com propriedade o nome de

profundezas do inferno, pois o que o ar é para o céu e a terra para o ar, esse

lugar superior do inferno também o é para a terra'".

Homem do concreto, Gregório interessa-se pela geografia do além. O

Inferno superior de que fala será o limbo dos Padres; mas no século XIII,

quando o Purgatório já existe, ao procurar-se referências a ele os textos

do Antigo Testamento falando de profundezas do Inferno serão interpretados

à luz da exegese de Gregório, o Grande.

No livro IV dos Diálogos, Gregório, o Grande, ensina algumas verdades

fundamentais do cristianismo e, em especial, a eternidade da alma, a

sorte no além, a eucaristia, com a ajuda de historietas - muitas vezes

visões - a que chama exempla e que anunciam os exempla do século

XIII que vulgarizarão a crença no Purgatório. A sorte de certos defuntos

depois da morte é evocada com o auxílio de três histórias repartidas por

dois capítulos. Estas histórias são respostas a duas questões doutrinárias,

uma respeitante ao fogo purgatório e outra à eficácia dos sufrágios pelos

mortos.

O diácono Pedro, interlocutor e admirador de Gregório, pergunta-lhe:

«Quero saber se devo acreditar que depois da morte existe um fogo

purgatório'".» Gregório responde em primeiro lugar com uma exposição

dogmática baseada em textos das Escrituras'", dos quais o mais imporlante

é a passagem da primeira epístola de Paulo aos Corintios sobre a

sorte dos diferentes materiais das obras humanas. As primeiras referências

parecem provar que os homens se reencontrarão no Julgamento Final

no estado em que estavam no momento da morte. Mas o texto de

Paulo parece significar «que se deve acreditar que para certos pecados

ligeiros haverá um fogo purgatório antes do julgamento». E Gregório

dá exemplos desta categoria dos «pecados pequenos e mínimos»: a tagarelice

constante, o riso excessivo, o apego aos bens particulares, todos

pecados que, cometidos consciente ou inconscientemente pelos seus autores,

embora ligeiros, pesam sobre eles depois da morte, se não foram

expurgados nesta vida 47 • Quanto ao que Paulo quis dizer, é que se se

construiu com ferro, com bronze ou com chumbo, quer dizer, se se cometeram

«os pecados máximos e portanto mais duros», esses pecados não

podem ser desfeitos pelo fogo; mas sê-lo-ão em compensação aqueles que

são de madeira, ou de palha, quer dizer «os pecados mínimos e muito

ligeiros». Mas esta destruição pelo fogo dos pecados pequenos só poderá

ser obtida depois da morte se foi merecida, durante esta vida, por meio de

boas acções.

Gregório opta, pois, por uma concepção muito agostiniana, mas põe

em evidência os pecados «ligeiros, pequenos, mínimos» que define, e situa

111



a acção do fogo nitidamente depois da morte, não incluindo nela as atribulações

terrenas como Agostinho tinha tendência para fazer.

A novidade vem sobretudo da ilustração pela anedota. «Quando eu

era ainda muito jovem e no estado laico ouvi contar (uma história) por

pessoas mais velhas e mais entendidas.» Pascase, diácono do tribunal

apostólico, autor de uma bela obra sobre o Espírito Santo, foi um homem

com uma vida santa que gostava de dar esmolas e tinha desprezo

por si mesmo. Mas no cisma que opôs durante dez anos e mais a partir de

498, dois papas, Símaco e Lourenço, Pascase foi obstinadamente partidário

do «falso» papa Lourenço: Quando Pascase morreu, um exorcista

tocou a sua dalmática colocada sobre o caixão e ele imediatamente foi

salvo. Bastante tempo depois da sua morte, Germano, bispo de Cápua

provavelmente entre 515 e 541, foi tratar-se com as águas dumas termas

nos Abruzos, próximo da actual Città San Angelo. Qual não foi a sua

surpresa ao encontrar ali Pascase como empregado dos banhos. Perguntou-lhe

o que fazia ali e Pascase respondeu: «A única razão por que fui

mandado para este lugar de punição (in hoc poena/o loco) foi ter tomado

o partido de Lourenço contra Símaco, mas peço-te que rogues ao Senhor

por mim e saberás que foste atendido se ao voltares aqui já não me encontrares.»

Germano fez ardentes preces e alguns dias depois voltou lá e

não encontrou Pascase. Mas Gregório acrescenta que se Pascase foi expurgado

do seu pecado depois da morte, foi porque só pecara por ignorância

e porque as grandes esmolas que fizera enquanto vivia lhe

mereceram o perdão.

A segunda questão teórica que Pedro põe a Gregório diz respeito aos

sufrágios pelos mortos:

«PEDRO: Qual é a maneira de ajudar as almas dos mortos?

GREGÓRIO: Se os pecados não são irremíveis depois da morte, a

oferenda sagrada da hóstia salutar é geralmente de grande ajuda para

as almas, mesmo depois da morte, e por vezes vêem-se almas de defuntos

que as reclamam.

Eis o que o bispo Felix me afirmou saber dum padre que morreu há

dois anos, depois de uma vida santa. Habitava ele na diocese de Centum

Cellae e ministrava a igreja de São João em Taurina. Este padre tinha o

hábito de se lavar, sempre que o corpo lho exigia, naquele local onde

abundantes vapores emanam das fontes quentes e era ajudado nisto

com grande cuidado. Como tal se repetisse com frequência, o padre, ao

voltar aos banhos, disse um dia para consigo: "Não devo parecer ingrato

para com aquele homem que me ajuda a lavar com tanta dedicação; tenho

de lhe dar um presente." E trouxe duas coroas de presente. Logo que

chegou, encontrou o homem que lhe prestou todos os serviços, como era

costume. O padre lavou-se e, já vestido e pronto para se ir embora, à

guisa de bênção, ofereceu o que trouxera ao homem que o servia, pedin-

112

do-lhe que aceitasse o que lhe oferecia com afecto. Mas este respondeu

ltistemente: "Pai, porque me dás isto? Este pão é santo e eu não posso

comer dele. Tal como me vês, fui outrora o dono deste lugar, mas por

Ccusa dos meus pecados fui mandado para aqui depois de morrer. Se

quiseres ser-me útil, oferece este pão a Deus Todo-Poderoso, para interceder

pelos meus pecados. Saberás que foste atendido quando já não me

encontrares aqui." Com estas palavras desapareceu, revelando assim que

eta na realidade um espírito sob aparência humana. Durante toda a semana

o padre verteu lágrimas por aquele homem, todos os dias ofereceu a

hóstia salutar; depois voltou aos banhos e já não o encontrou. Eis bem a

prova da utilidade para as almas do sacrifício da oferenda sagrada» 48,

pois os próprios espíritos dos mortos o pedem aos vivos e indicam com

que sinais se reconhecerá que foram absolvidos.

A esta história Gregório acrescenta logo outra. Aconteceu no seu próprio

mosteiro três anos antes. Vivia lá um monge chamado Justo, especitalista

em medicina. Justo caiu doente sem esperança de cura e foi

a~sistido pelo seu irmão carnal Copioso, também ele médico. Justo cont~ssou

ao irmão que escondera três moedas de ouro e este mais não pôde

ti\zer do que informar os monges.

Encontraram as moedas de ouro escondidas com os medicamentos.

Contaram isto a Gregório que reagiu vivamente, pois a regra do moste:iro

estipulava que os monges tivessem tudo em comum. Gregório,

pcerturbado, perguntou-se o que poderia fazer de útil ao mesmo tempo

plitra a «purgação» do moribundo e para edificação dos monges. Proibiu

IICtlsmonges que respondessem aos apelos do moribundo se este os

deesejasse junto de si e ordenou a Copioso que dissesse ao irmão que

0% monges, sabendo do seu acto, sentiam por ele repulsa, até que se

IIl'rrependesse no momento de morrer. E quando o seu corpo estivesse

mrorto não seria enterrado no cemitério dos monges mas lançado para

urm buraco do lixo e os monges atirariam para sobre o seu corpo as três

mioedas de ouro, gritando: «Que o teu dinheiro fique contigo, para tua

~rdição.»

Tudo se passou e foi feito como previsto. Os monges, aterrados, evitll.ram

todos os actos repreensíveis. Trinta dias depois da morte de Justo,

o,regório pôs-se a pensar com tristeza nos suplícios que devia estar a

l'ÜI)frero monge defunto e ordenou que, durante os trinta dias seguintes,

fOlssecelebrada diariamente uma missa em sua intenção. Ao fim de trinta

dil.as, o morto apareceu ao irmão, de noite, e disse-lhe que até àquele dia

tirnha sofrido, mas que acabava de ser admitido à comunhão (dos eleitos).

F<oi evidente que o morto escapara aos tormentos graças à hóstia

IIUI(utar 49 .

No seu zelo de pastor, Gregório, o Grande, compreendeu duas exigênci~usda

psicologia colectiva dos fiéis: a necessidade de testemunhos autên-

113



ticos, prestados por testemunhas dignas de crédito; a necessidade de ter

indicações sobre a localização das penas purgatórias.

Sobre o primeiro ponto as histórias de Gregório são tanto mais importantes

quanto virão a ser o modelo das histórias com cuja ajuda a

Igreja difundirá, no século XIII, a crença no Purgatório finalmente criado

em definitivo. Implicam elas a possibilidade de controlo da verdade da

história: a designação de um informador digno de crédito, as precisões

de tempo e lugar. Comportam também um esquema susceptível de levar

a crença para dois outros planos: os atractivos de um relato com as seduções

da narração, uma intriga, pormenores picantes, um «suspense»,

um desenlace surpreendente; as evidências de um sobrenatural palpável:

visionamento e verificação da realização da acção eficaz dos vivos. Tudo

isto se encontrará na crença do verdadeiro Purgatório, incluindo a natureza

dos laços entre vivos e mortos que funciona na subtracção dos defuntos

às provações purgatórias. Os vivos solicitados e eficazes devem ser

parentes, por parentesco carnal ou espiritual, dos defuntos a expurgar.

Enfim, a trilogia dos sufrágios é afirmada nestas anedotas: preces, esmolas

e, acima de todos, o sacrificio eucarístico.

A segunda originalidade de Gregório é, em duas das suas três histórias,

ter situado cá em baixo o local de expiação. Lugar espantoso, na

verdade. Trata-se de termas. Por um golpe de génio, Gregório designa

um lugar particularmente digno da sua escolha: este aristocrata romano

escolheu um dos edificios mais essenciais à civilização romana sobrevivente,

o lugar por excelência da higiene e da sociabilidade antigas. Este

pontífice cristão escolhe a seguir um lugar onde a alternância dos cuidados

quentes e dos cuidados frios corresponde à estrutura dos lugares

purgatórios desde as mais antigas religiões de que o cristianismo herdou;

enfim, nesta mistura de sobrenatural e de quotidiano onde os empregados

dos banhos são espectros e os vapores termais eflúvios do além,

um grande temperamento imaginativo se revela.

Paradoxalmente, a contribuição mais importante de Gregório para a

génese do Purgatório será, no século XIII, a mais sacrificada pela nova

crença. Gregório perfilhou a ideia de que o Purgatório podia ser sofrido

cá nesta terra, em locais onde se tinham cometido pecados e que se tornavam

locais de punição: era-se punido lá onde se havia pecado, como o

director das termas surgido em espectro no local não dos seus crimes, mas

dos seus pecadilhos, transformado em «lugar penal» (in hoc loco poenali).

A autoridade de Gregório fará com que a ideia de um Purgatório na terra

seja ainda evocada após o nascimento do «verdadeiro» Purgatório, mas

como uma hipótese pouco verosímil, como uma espécie de curiosidade do

passado. Tomás de Aquino ou Jacopo da Varazze na Lenda dourada

ainda a mencionam. Mas no século XIII os dados do Purgatório estão

lançados e não têm por palco os lugares quotidianos da terra mas um

114

espaço especial, uma região do além. Quanto aos mortos do Purgatório,

já não Ihes será permitido virem solicitar os vivos mesmo que por

alguns instantes. Ter uma actividade cá em baixo ser-lhes-á severamente

recusado. O Purgatório ter-se-á transformado num lugar de detenção dos

espectros.

Último fundador do Purgatório, Gregório, no entanto, apenas consagra

a essa crença um interesse muito secundário. O essencial, para ele,

continua a ser o facto de no dia do Julgamento só existirem duas categorias:

os eleitos e os condenados. Cada categoria abordará de duas maneiras

possíveis a sua sorte eterna, directa ou indirectamente após o

Julgamento, no momento da ressurreição. «Uns são julgados e perecem,

os outros não são julgados mas perecem (também imediatamente).

Uns são julgados e reinam, os outros não são julgados mas reinam (tamhém

imediatamente).»

Num grande capítulo, o XXXVII do livro IV dos Diálogos, Gregório,

o Grande, faz uma descrição já não do Purgatório terreno mas do além.

Um certo Estêvão morre inopinadamente em Constantinopla e, à espera

de ser embalsamado, o seu corpo fica sem sepultura durante uma noite e a

Nua alma será levada para os Infernos onde visita numerosos lugares;

mas, quando a apresentam a Satanás, este diz que se enganaram no morto.

E um outro Estêvão, o ferreiro, que ele espera, e o primeiro Estêvão

volta à vida enquanto o ferreiro morre. Estêvão morreu durante a epidemia

de peste, em 590. Um soldado ferido que esteve morto durante um

instante e depois se reanimou visita, por seu lado, os Infernos durante

esse breve instante e faz deles uma descrição pormenorizada que foi transmitida

a Gregório. Viu «uma ponte por baixo da qual corria um rio negro

c sombrio que exalava vapores com um cheiro insuportável»; depois de se

utravessar a ponte encontravam-se prados encantadores, flores e homens

vestidos de branco deambulando por entre odores suaves, casas cheias de

luz, algumas de ouro. Nas margens do rio havia alguns habitáculos, uns

envoltos numa nuvem fétida, outros ao abrigo do mau cheiro. A ponte

era uma provação: se um não justo queria atravessá-Ia, caía no rio tenebroso

e fétido, mas os justos passavam-se sem entraves e alcançavam

aqueles lugares amenos. Estêvão também falara desta ponte e contara

que, quando quisera atravessá-Ia, escorregou-lhe um pé e ele ficou caído

por metade. Horríveis homens negros que saíram do rio puxavam-no

para baixo pelas coxas, enquanto de cima homens brancos muito belos

o puxavam pelos braços. Durante esta luta, acordou. Compreendeu o

sentido da sua visão, pois de um lado sucumbia às tentações da carne,

mas do outro dava grandes esmolas; a lascívia atraía-o para baixo, a

caridade para cima. Depois ele corrigiu perfeitamente a sua vida.

Ultima peça do processo (ou quase, como veremos ...), Gregório, no

capitulo XXXI do livro IV dos Diálogos, conta uma história que tem a

115

11

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ver com o Inferno mas que mais tarde desempenhará um papel na história

do Purgatório. Conta-nos ele o que lhe foi relatado por um certo Julião,

benévolo «defensor» da Igreja Romana que morreu sete anos antes. Na

época do rei Teodorico (que morreu em 526), um parente de Julião que

tinha ido à Sicília recolher os impostos, naufragou no regresso junto da

ilha Lipari e foi recomendar-se às preces de um eremita famoso que lá

vivia. Este disse ao náufrago: «Sabeis que o rei Teodorico morreu?» e,

perante a incredulidade do outro, acrescentou: «Ontem, às três horas

da tarde, em camisa e descalço, com as mãos atadas e entre o Papa João

e o patrício Símaco, ele foi levado para a vizinha ilha de Vulcano e foi

lançado na boca da sua cratera.» De volta a Itália, o parente de Julião

soube da morte de Teodorico e, como ele tinha injustamente condenado à

morte o Papa João e o patrício Símaco, pareceu-lhe normal que tivesse

sido enviado para o fogo (eterno) por aqueles que perseguira.

O castigo lendário de Teodorico é uma das peças a incluir no processo

da utilização política do além.

Ameaçar com as penas do além um dirigente laico tem sido um instrumento

poderoso nas mãos da Igreja. Mostrar no fogo do castigo um

morto ilustre confere a essa ameaça um valor de prova e um relevo incomparável.

O imaginário do além foi uma arma política. Mas Gregório,

o Grande, só ainda dispõe do Inferno. Recorrer a esta arma suprema só

pode fazer-se em casos extremos. O Purgatório permitirá modular a

ameaça.

Outro sinal precursor nesta visão: aquela entrega do rei perseguidor

de cristãos ao fogo do Inferno faz-se num vulcão e na Sicília. A Idade

Média lembrar-se-á desta boca de fogo em que procurará ver uma das

bocas do Purgatório.

NOTAS

I Sobre Clemente de Alexandria e Origenes na perspectiva da génese do Purgatório,

o estudo essencial continua a ser G. ANRICH, «Clemens und Origines ais Begründer

der Lehre vom Fegfeuer» in Theologische Abhandlungen, Festgabe für H. H.

Holtzmann, Tübingen, Leipzig, 1902, pp. 95-120. Boa exposição, de um ponto de

vista católico, por A. MICHEL «Origêne et le dogme du Purgatoire» in Questions

rcclésiastiques, Lille, 1913, resumido pelo autor no seu artigo «Purgatoire» do Dictlonnaire

de Théologie catholique, col. 1192-1196. Observações breves mas judiciosas,

do ponto de vista da pré-história do Purgatório, mas de A. PIOLANTI, «Il Dogma dei

Purgatório» in Euntes Docete, 6, 1953; do ponto de vista do baptismo pelo fogo, de c.-

M. EDSMAN, Le Baptême de feu, pp.3-4; do ponto de vista da exegese da primeira

epístola de Paulo aos Corintios, in J. GNILKA, 1st 1 Kor. 3, 10-15, ein Schrlftzeugnis

fur das Fegfeuer? especialmente p. 115.

2 Os principais textos citados por G. ANRICH, p. 99, n. 7 e p. 100, n. 1, são

(tI/tas 34, 478 e 81, 525, Phédon, 62, l13d, Protagoras, 13, 324b, Lois, V, 728c.

CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stromata, V, 14 e VII, 12.

4 ORÍGENES, De principiis, lI, 10, 6 e De oratione, 29.

5 aliis sub gurgite vasto

infectum eluitur scelus, aut exuritur igni

donec longa dies perfecto temporis orbe

concretam exemit labem, purumque relinquit

aetherium sensum ...

6 CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stromata, IV, 24.

7 Id., Stromata, VII, 6.

8 ORÍGENES, In Exodum, homilia 6, in Patrologie Grecque, XIII, 334-335; In

l eviticum, homilia 9, PG, 12,519.

Y Por exemplo, In Jeremiam, homilia 2; In Leviticum, homilia 8; In Exodum, homilia

6; In Lucam, homilia 14, ete.

10 De principiis, lI, n. 6; In Ezechielem, homilia 13, n. 2; In Numeros, homilia 26.

11 Cf. K. RAHNER, «La doctrine d'Origêne sur Ia pénitence» in Recherches de

."dence religieuse, 37, 1950.

12 «Aliud pro peccatis longo dolore cruciatum emundari et purgari diu igne, aliud

",ccala omnia passione purgase, aliud denique pendere in die judicii ad sententiam Dom/n/,

aliud statim a Domino coronari.»

116

117



13 A. MICHEL, artigo «Purgatoire» in Diclionnaire de théologie catholique, col. 1214.

14 P. JA Y, «Saint Cyprien et Ia doctrine du Purgatoire» in Recherches de théologie

ancienne et médiévale, 27, 1960, pp. 133-6.

15 «emundatio puritatis ... qua iudicii igni nos decoquat» (PL, IX, 519 A).

16 In In Psalmum CXVIII, sermo 20, PL, 15, 1487-1488. Ver também sobre a prova

do fogo In Psalmum CXVIII, sermo 3, PL, 15, 1227-1228 e In Psalmum XXVI, 26, PL,

14, 980-981.

17 «et si salvos faciet Dominus servos suos, salvi erimus per fidem, sic tamen salvi

quasi per ignum» (Explanatio -Psalmi XXXVI, n. 26, Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum

Latinorum, 64, p. 92).

18 De obitu Theodosi, 25, CSEL. 73, 383-384.

19 De excessu Satyri, I, 29, CSEL. 73, 225.

20 «Et sicut diaboli et omnium negatorum atque temptorum qui dixerunt in corde suo:

Non est Deus, credimus aeterna tormenta; sic peccatorum el tamen christianorum, quorum

opera in igne probanda sunt atque purganda, moderatam arbitramur et mixtam

c1ementiae sententiam sudicis» (In Isaiam, LXVI, 24, PL, L4, 704 B).

21 «Qui enim tota mente in Christo confidit, etiam si ut homo lapsus mortuusfuerit in

peccato, fide sua vivit in perpetuum.»

22 «Ideo autem dixit: sic tamen quasi per ignem, ut salus haec non sine poena sit; quia

non dixit: sa/vus erit per ignem; sed cum dicit: sic tamen quasi per ignem, ostendit salvum

illum quidem futurum, sed poenas ignis passurum; ut per ignem purgatus fiat salvus, et

non sicut perfidi aeterno igne in perpetuum torqueati ut ex aliqua parte operae pretium

sit, credidisse in Christum» (PL, 17,211).

23 «Transivimus per ignem et aquam et induxisti nos in refrigerium.»

24 Epist., 28 (CSEL, 29, 242-244) e Carmen, 7, 32-43 (CSEL, 30, 19-20).

25 Encontra-se também ignis purgationis, o fogo da purgação (De Genesi contra

Manicheos, Il, XX, 30) e ignis emendatorius fogo corrector (Enarrationes in Psa/mos

XXXVII, 3). Na passagem da Cidade de Deus, XXI, XIII, onde se encontra por três

veres em doze linhas a expressão poenae purgatoriae, Agostinho emprega também

como sinónimo a expressão poenae expiatoriae, penas expurgatórias, o que, entre outras

razões, leva a que não se traduza purgatoriae por purificadoras.

26 Ver Bibliothéque augustinienne, t. 37, pp. 817-818.

27 «nec usque adeo vista in corpore male gesta est, ut tali misericordia iudicentur digni

non esse, nec usque adeo bene, ut talem misericordiam reperiantur necessariam non ha-

"bere.»

28 Mateus, XXV, 34; XXV, 41-46.

29 «et post hanc vitam habebit ve/ ignem purgationis vel poenam aeternam.»

30 «Quanquam ilIa receptio, utrum statim post istam vitam fiat, an infine saeculi in

ressurrectione mortuorum atque ultima retributtone judicii, non mínima quaestio est sed

quandolibet fiat, certe de talibus qualis ille dives insinuatur, nulla scriptura fieri pollicetur.»

31 «Ira plane quamuis salui per ignem, gravior tamen erit iIIe ignis, quam quidquid

potest homo pati in hac vita» (Enarratio in Ps. XXXVII, 3 CCL, 38, p. 384).

32 Ver a nota 45 «Les misêricordieux» de G. Bardy em Bibliothéque augustinienne,

vol. 37, pp. 806-809.

33 «Porro si utraque regia et dolentium et requiscentium, id est et ubi dives ilIe torquebatur

et ubi pauper ilIe laetabatur, in inferno esse credenda est, quis audeat dicere

dominum Iesum ad poenales inferni partes venisse tantum modo nec fuisse apud eos qui

in Abrahae sinum requiescunt? ubi si fuit, ipse est intellegendus paradisus, quem /atronis

118

animae il/o die dignatus est polliceri. Quae si ita sunt, genera/e paradisi nomen est, ubi

[cliciter vivitur. Negue enim quia paradisus est appelatus, ubi Adam fuit ante peccatum,

propterea scriptura prohilita est etiam ecc/esiam vocare paradisum cum fructu pomorum.»

34 Palavra grega que significa «manual», termo que, a partir do século XVI, terá a

voga que se conhece.

35 Esbocei as linhas de uma pesquisa sobre os sonhos e sua interpretação no ocidente

medieval em «Les rêves dans Ia culture et Ia psychologie

collective de I'Occident

médiêval» in Scolies, 1,1971, pp. 123-130, retomadas em Pour un autre Moyen Âge, pp.

J.1J9-306.

36 So b re o rm'1 enansmo . ver a nota de G. BARDY em Santo Agostinho, a Cidade de

Deus, XIX-XXII, Bibliothêque augustintenne. t. 37, Paris, 1960, pp. 768-771 e J. Le

(iOft, artigo «Milena~i~mo» in Encyclopaedia Universalis, vol. n, 1971, pp. 30-32.

. O texto de Ambrósio encontra-se em Patrologie latine, t. 14, col. 950-951. Et ideo

quoniam et Savaltor duo genera resurrectionis posuit, et Joannes in Apoca/ypsi dixit:

lIeatus qui habet partem in prima resurrectione (Apocalypse, XX, 6) isti enim sine

judicia veniunt ad gratiam, qui autem non veniunt ad primam resurrectionem, sed ad

secundam reservantur, isti urentur, donec impleant tempora inter primam et secundam

rrsurrectionem, aut si non impleverint , diutius in supplicio permanebunt. Ideo ergo rogemus

ut in prima resurrectione partem habere mereamur.

38 As traduções das Confissões, do Enchiridion, da Cidade de Deus e do De cura

/l1'rendapro mortuis são tiradas dos respectivos volumes da Bibliothéque augustinienne.

l.imitei-me a corrigir alguns termos que me pareceram mal traduzidos: por exemplo,

purgatário em vez de purificador na expressão ignis purgatorius; e temporárias em vez

de temporais na expressão poenae temporariae.

W P. JAY, «Le Purgatoire dans Ia prédication de saint Césaire d'Arles» in Recherrhes

de théologie ancienne et médiévale 24 (1957) pp 5-14

40 • " ,. .

CESARIO DE ARLES, Sermones, ed. G. Morin e C. Lambot, Corpus Christianorum,

Turnhout, 1953, t. 104, pp. 682-687 e 723-729.

41 «non pertinet ad me quamdiu moras habeam, si tamen ad vitam aeternam perrevrro»:

«pouco me importa o tempo que esperarei se depois alcançar a vida eterna.» O

texto não diz onde se esperará mas é evidente, segundo a frase precedente, que se trata

do fogo purgatório (in i/Io purgatorio igne). Pierre Jay faz notar judiciosamente que

Tomás de Aquino, retomando também ele o comentário ao salmo 37 de Santo Agostinho,

escreve iIIe ignis purgatorii, este fogo do purgatório. Mas está-se no século XIII!

42 Sobre Gregório, o Grande, C. DAGENS, Saint Grégoire /e Grand. Cu/ture et

rxpérience chrétiennes, Paris, 1977, 3" parte, «Eschatologie», pp. 345-429. Sobre a

escatologia de Gregório ver também N. HILL, Die Eschatologie Gregors des Gros-

I/'n, Fribourg-en-Brisgau, 1942. R. MANSELLI, «L'eschatologia di S. Gregorio Magno»

in Ricerche di storia religiosa, I, 1954, pp. 72-83.

43 GREGóRIO, O GRANDE, Moralia in Job, ed. A. Bocognano, 3" parte, Paris,

Sources chrétiennes, 1974, p.167.

44 Ibid., pp. 315-317.

45 «Discere vellim, si post mortem purgatorius ignis esse credendus est» Neste estudo

servi-me da edição de U. Moricca. GREGÓRIO, O GRANDE, Dia/ogi. Roma, 1924,

r Iraduzi os textos citados. Depois apareceu o tomo 111 da excelente edição e tradução

de A. de Vogüé, P. Autin, Paris, ed. du Cerf, Sources chrétiennes, 1980. A passagem

IIqlll comentada (IV, 41) encontra-se nas páginas 146 a 151. A história de Paschase (IV,

42) encontra-se ibid., nas páginas 150 a 155.

119



46 João, XII, 55; Isaías, XLIX, 8; Paulo, 11 Coríntios VI, 2; Eclesiastes, IX, 10;

Salmo CXVII, 1; Mateus, XII, 32.

47 «sed tamen de quibusdam levis culpis esse ante judicium purgatorius ignis credenbus

est», «hoc de parvis minimisque peccatis fieri posse credendum est, sicut est assiduus

otiosus sermo, immoderatus risu, vel peccatum curae rei familiaris,» No fim do capítulo

Gregório fala do fogo da futura purgação «de igne futurae purgationis», da possibilidade

de se ser salvo pelo fogo «per ignem posse salvari» e de novo dos «peccata minima

atque levissima quae ignis facile consumat» (Dialogt, IV, 41).

48 GREGÓRIO, °GRANDE, Dialogi, IV, 57, 1-7, de Vogüé-Antin, t. III, p. 184-

-189.

49 GREGÓRIO, ° GRANDE, Dialogi, IV, 57, 8, 17, de Vogüé-Antin, pp. 188-

-195. Nesta história o fogo não é mencionado.

III - A ALTA IDADE MÉDIA. ESTAGNAÇÃO DOUTRINÁRIA

E EMPOLAMENTO VISIONÁRIO

Entre Gregório, o Grande, e o século XII - ou seja, durante cinco

séculos - o projecto do Purgatório não avança nada. Mas o fogo lá continua

e se, no plano teórico, não existe qualquer novidade teológica, no

quadro das visões e das viagens imaginárias no além, no domínio litúrgico,

esboça-se um espaço para o fogo purgatório e as relações entre os

vivos e os mortos tornam-se mais estreitas.

Porquê, então, interessarmo-nos por esta época onde não se passa

grande coisa em relação às concepções do além?

Não é para sacrificar à tradição da exposição cronológica. Pelo contrário,

desejaria mostrar aqui que o tempo da história não é nem uniformemente

acelerado nem programado. Estes cinco séculos são, no nosso

domínio, um longo período de aparente estagnação da reflexão sobre o

nlém.

Daqui podem resultar para o leitor dois mal-entendidos.

O primeiro poderia surgir da aparente desordem dos textos citados.

Evocarei também alguns grandes nomes do pensamento cristão de então

Alcuíno, João Escoto, Raban Maur, Rathier de Verona, Lanfranco --

que não disseram grande coisa sobre o nosso tema mas cujo laconismo

é significativo; e textos de segunda ou terceira ordem que, esses sim, evidenciarão

melhor o que continua a viver e que, por vezes, até se anima e

agita um pouco. Uns e outros testemunham à sua maneira o estado do

pensamento do além.

O leitor poderá assim ter a impressão de que sacrifico a um defeito que

denuncio: reter, deste conjunto heterogéneo de textos, apenas o que parece

prefigurar o Purgatório, como se a sua génese estivesse irrevoga velmente

em actividade debaixo dessa aparência de imobilismo. Não é

porque não julguei dever deter-me nesses textos, salvo qualquer excepção

sem grande importância; é porque era preciso fazer notar aquilo que evocava

o futuro Purgatório - fosse para lhe voltar as coisas fosse para o

anunciar -: que os «além» deste período seriam somente os precursores

J20

J21



do Purgatório. Quando um texto espantoso como a visão de Wetti faz

surgir um outro mundo cheio de furor e de ruído mas onde o futuro

Purgatório não se anuncia, não deixei de o relatar com alguns pormenores

pois se trata, antes de mais, de ver como funcionava o imaginário do

além na Alta Idade Média.

E, para servir o meu propósito, este grande episódio não tem apenas

virtudes negativas.

Nele se pode seguir a constituição de um material imaginário, vê-lo

enriquecer-se ou decantar-se. Mesmo num texto de algumas linhas como

a visão de Sunniulf em Gregório de Tours, vemos incrustar-se na memória

a imagem da imersão dos mortos postos à prova até diversas alturas

do corpo, a da ponte estreita. Em compensação surge uma imagem que

não terá êxito: a de um além-colmeia - onde as almas dos mortos rodopiam

e comprimem-se como abelhas.

Também nele se nota a promessa da constituição de um sistema entre

as unidades imaginárias. Segundo Bede, Fursy traz da sua viagem ao além

marcas fisicas que serão mais tarde a prova da existência de um Purgatório

de onde é possível voltar - crença que presidiu à reunião, no fim do século

XIX, dos objectos que ainda hoje podem ser vistos no Museo dei

Purgatorio em Roma. Também segundo Bede, na visão de Drythelm os

elementos da geografia do além organizam-se num itinerário, uma sequência

de lugares logicamente orientada, uma passagem construída.

Enfim, as pré-definições teológicas ou morais aparecem aqui e ali, por

exemplo no que diz respeito à tipologia dos pecados.

Sobretudo, desenvolve-se de maneira quase ininterrupta uma série,

alimentada por reminiscências apocalípticas, mas marcada pelo selo monástico,

destinada a um novo auditório com mais apetência por pitoresco

do que por esclarecimentos, por visões e por viagens ao além. É no meio

destas paisagens que se imprimem na memória dos clérigos e dos fiéis, que

o Purgatório terá de criar o seu lugar.

O período carolíngio, no sentido lato, é também o momento de uma

grande renovação litúrgica. Será que a liturgia dos mortos sofre, durante

ele, transformações ligadas a novas concepções do além e da sorte dos

defuntos?

o além agostiniano de três espanhóis

Nas obras exegéticas e dogmáticas onde as alusões ao futuro Purgatório

surgem quer a propósito dos últimos tempos e do fogo purgatório

quer a propósito dos sufrágios pelos mortos, apontarei primeiro três bispos

espanhóis dos séculos VI-VII: Tajon de Saragoça, o célebre Isidoro de

Sevilha, um dos pais da cultura medieval, e Julião de Toledo.

122

No capítulo XXI do livro V das suas Sententiae (PL, 80, 975), Tajon

de Saragoça ao comentar o texto de Paulo da primeira epístola aos Coríntios

retoma em algumas linhas, sem os referir, os ensinamentos de

Agostinho e de Gregório, o Grande: «Se bem que se possa compreender

o que escreveu o grande pregador ao referir-se ao fogo das atribulações

nesta vida, é no entanto possível aplicá-lo ao fogo da futura expurgação,

reflectindo bem no facto de ele ter dito que se podia ser salvo pelo fogo,

não se sobre este alicerce se construiu com ferro, com bronze e com chumbo,

quer dizer com pecados máximos (peccata majora), mas sim com

madeiras, com feno ou com palha, quer dizer com pecados mínimos

(mínima) e muito leves (Ievissima) que o fogo consome facilmente.

Mas é preciso que se saiba que, mesmo para os pecados mínimos, não

se obterá a expurgação se ela não foi merecida nesta vida por meio de

boas acções.»

Isidoro de Sevilha abordou o problema sobretudo no tratado Dos

oficios eclesiásticos (De ecclesiasticis officiis ) a propósito dos sufrágios.

Citando o versículo de Mateus sobre a remissão dos pecados no século

futuro (Mateus, XII, 32) e o texto de Santo Agostinho sobre os quatro

destinos dos homens (Cidade de Deus, XXI, 24) afirma que, para alguns,

os respectivos pecados ser-lhes-ão remidos e «purgados por um fogo purgatório»

1 •

Julião de Toledo é o mais interessante destes três prelados para o

nosso objectivo. Primeiro, é um verdadeiro teólogo; depois, o seu

Prognosticon é um autêntico e pormenorizado tratado de escatologia.

Todo o segundo livro é consagrado ao estado das almas dos defuntos

antes da ressurreição dos corpos. Todavia, o seu pensamento não é de

lodo inovador. Baseia-se essencialmente em Agostinho.

Distingue dois paraísos e dois infernos. Os dois paraísos são o terrestre

e o celeste e este último, tal como pensaram Ambrósio, Agostinho e

Gregório, é a mesma coisa que o seio de Abraão. Há também dois infernos,

como ensinou Santo Agostinho, mas este hesitou na sua doutrina

(Julião revela o seu sentído crítíco e histórico). Primeiro pensou que havia

um inferno sobre a terra e um interno debaixo da terra e depois, ao

comentar a história do pobre Lázaro e do mau rico, apercebeu-se de que

os dois infernos eram debaixo da terra, um por cima do outro. «Portanto,

conclui Julião, há talvez dois infernos; num repousam as almas dos santos,

no outro são torturadas as almas dos impios.» Depois, sempre com a

ajuda de Santo Agostinho, explica mesmo por razões filológicas porque

se supõe que os infernos são subterrâneos.

Expõe depois diversas opiniões sobre a questão de saber se, depois da

morte, as almas dos santos (justos perfeitos) vão directamente para o céu

ou se ficam em certos «receptáculos». Desde a descida do Cristo aos

Infernos, estes foram fechados e os justos vão imediatamente para o

123



céu. Da mesma maneira as almas dos iníquos vão logo para o Inferno, e

do Inferno não se sai nunca. Indo mais longe, precisa que, depois da

morte do corpo, a alma não fica privada de sentidos e, ainda com a ajuda

de Santo Agostinho (De Genesi ad litteram, XII, 33), Julião afirma que a

alma tem uma «imitação de corpo» (similitudo corpo ris) que lhe permite

sentir o repotls~ ou os tormentos. Assim, a alma pode ser torturada pelo

fogo corporal. E o que se passa no Inferno, mas nem todos os condenados

sofrem da mesma maneira: o seu tormento é proporcional à gravidade

do pecado, assim como nesta terra os vivos sofrem mais ou menos com

o ardor do sol. Enfim, deve-se acreditar, como ensinaram Paulo, Agostinho

e Gregório, que existe um fogo purgatório depois da morte. Retomando

as palavras de Gregório, o Grande, Julião explica que esse fogo

expurga os pecados pequenos e mínimos como a tagarelice constante, o

riso excessivo, o apego imoderado aos bens pessoais. Este fogo é mais

terrível do que qualquer dor terrena e não se pode beneficiar dele a

não ser que tenha sido merecedor por meio de boas acções. Este fogo

expurgatório é diferente do fogo eterno da geena e actua antes do Julgamento

Final e não depois - e Agostinho pensa mesmo que ele começa

com as atribulações terrenas. Tal como os condenados são torturados

proporcionalmente à gravidade dos seus pecados, também os expurgados

apenas se demoram no fogo o tempo correspondente à importância

da sua imperfeição. A escala de equivalência exprime-se aqui não em

intensidade mas em duração de pena «segundo eles tenham amado mais

ou menos os bens perecíveis, serão salvos com maior ou menor rapidez».

Na base dos textos das Escrituras - sobretudo o Novo Testamento - e

patrísticos, é a exposição mais clara e mais completa da Alta Idade Média

sobre o futuro Purgatôrio/.

Outros

«além» «bárbaros»

Testemunhos vindos das diversas regiões cristãs «bárbaras» e provenientes

tanto da hierarquia episcopal como do mundo monástico manifestam

o interesse das novas cristandades pelo além sem nada lhe

acrescentarem de original.

Na Irlanda

Pensou-se durante muito tempo que o autor do Livro sobre a ordem

das criaturas (Liber de ordine creaturarum) era Isidoro de Sevilha. Manuel

Diaz y Diaz mostrou recentemente que se trata de um anónimo

irlandês do século VII. É um tratado que se baseia no Génesis e que fala

124

de Deus, das criaturas espirituais e das criaturas corporais. Os quatro

últimos capítulos são dedicados à natureza dos homens (cap. XII), à diversidade

dos pecadores e lugar das penas (cap. XIII), ao fogo purgatório

(cap. XIV) e à vida futura (cap. XV).

Pode parecer que o autor do tratado tem uma perspectiva tripla do

além: inferno, «purgatório», paraíso. Mas esta divisão não existe senão

em certos manuscritos, e na continuidade do texto a divisão não é tão

marcada '. Sobretudo, a concepção arcaica do autor do tratado exclui

praticamente a ideia de um além triplo. Desde o começo do capítulo

sobre as diferenças das condições dos pecadores, ele expõe as suas

ideias. Há duas grandes categorias de pecadores; aqueles cujos pecados

(crimina) podem ser expurgados pelo fogo do julgamento e aqueles que

serão atingidos pela pena do fogo eterno. Entre estes últimos alguns serão

condenados imediatamente e sem julgamento, outros após o julgamento.

O fogo é pois o do julgamento, não tem lugar antes do julgamento. Esta

opinião é confirmada no capítulo XIV.

Aqueles que terão o «refrigério eterno» (refrigerium aeternum) depois

da expurgação são os que tiverem realizado aquilo a que se chamará mais

tarde obras de misericórdia. Serão baptizados pelo fogo, enquanto os

outros serão consumidos pelo fogo inextinguível. A exegese da primeira

epístola de Paulo aos Coríntios leva o autor do Liber a indicar o género

de pecados que apenas menciona negativamente «os que não são muito

prejudiciais, ainda que não construam grande coisa»: «o uso inútil do

casamento legítimo, o excesso de comida, o prazer exagerado com futilidades,

a cólera levada aos excessos de linguagem, o interesse exagerado

pelas coisas pessoais, a assistência negligente às orações, o levantar tarde,

115 gargalhadas exageradas, o excessivo abandono ao sono, a retenção da

verdade, a tagarelice, a obstinação no erro, tomar o falso por verdadeiro

em coisas que não dizem respeito à fé, esquecer o dever a cumprir, ter as

roupas em desordemx", pecados de que não se pode negar a possibilidade

de serem expurgados pelo fogo. Última observação: este fogo purgatório

e mais duradouro e terrível do que qualquer tormento imaginável cá deste

mundo.

No começo do século VII o irlandês S. Columbano (que morreu em

615), missionário do monaquismo no continente, compusera uma descrição

resumida da existência humana desde o nascimento até à eternidade

onde atribuía um lugar ao fogo mas um fogo que, sem ser mencionado,

era um fogo se não purgatório pelo menos probatório pois situava-se

antes do julgamento, parece que entre a ressurreição e o julgamento.

«Eis o desenrolar desta miserável vida humana: da terra, sobre a terra,

para a terra, da te rra para ofogo, do fogo para o julgamento, do julgamento

ou para a geena ou para a vida (eterna); com efeito, foste criado a

partir da terra, pisas a terra, irás para a terra, erguer-te-ás da terra, serás

125



posto à prova no fogo, esperarás o julgamento e em seguida terás ou o

suplício eterno ou o reino etemo.» E fala ainda de nós, os homens, que,

«criados da terra, passando brevemente por ela, reentrando nela quase

imediatamente, e depois uma segunda vez, a uma ordem de Deus, entregues

e projectados por ela, seremos, no fim dos tempos, postos à prova

através do fogo que de certa maneira dissolverá a terra e a sujidade; e, se

houver ouro ou prata ou outro material terrestre útil, depois da moeda

falsa ter sido fundida ele o mostrará".»

Na Gália

Numa homilia, o famoso Santo Eloi, bispo de Noyon (que morreu em

659), depois de ter relembrado a diferença entre pecados mortais (crimina

capitalia) e pecados insignificantes (minuta peccata) e calculado que

existem poucas probabilidades de as esmolas, mesmo grandes, mesmo

diárias, serem suficientes para resgatar os pecados mortais, recorda os

dois julgamentos e o fogo purgatório:

«Lê-se, com efeito, na Sagrada Escritura, que há dois julgamentos: um

pela água do dilúvio (Génesis, VII) que prefigurou o baptismo pelo qual

fomos lavados de todos os pecados (I Pedro, Ill); e o outro, que há-de vir,

pelo fogo, quando Deus vier para o Julgamento, do qual o salmista diz:

"Ele vem, o nosso Deus, e não se calará. A sua frente um fogo devora, à

sua volta, borrasca violenta" (Salmo L, 3); é como uma borrasca que ele

julga aqueles que o fogo consome. Lavemo-nos de todas as máculas da

carne e do espírito, e que não sejamos queimados pelo fogo eterno nem

por este fogo transitório; deste fogo do julgamento de Deus, o Apóstolo

diz: "É este fogo que porá à prova a obra de cada um" (I Coríntios, lU,

13). Não há dúvida de que ele falou aqui do fogo purgatório. Esse fogo,

os ímpios, os santos e os justos senti-lo-ão de maneira diferente. Do tormento

deste fogo os ímpios serão precipitados nas chamas do fogo perpétuo;

os santos que ressuscitarão no seu corpo sem terem marca de

nenhum pecado porque terão construído sobre o alicerce que é o Cristo,

com ouro, com prata e com pedras preciosas, quer dizer o sentido

fulgurante da fé, a palavra esplendorosa da salvação e as obras preciosas,

triunfarão deste fogo com tanta facilidade como a que puseram, nessa

vida de pureza, na fé e no amor com que observaram os mandamentos

do Cristo. Restarão então os justos culpados de pecados ínfimos que

construíram sobre o alicerce que é o Cristo com feno, com madeira e

com palha, o que designa a diversidade dos pecados Ínfimos de que

não estarão ainda dignamente expurgados e não serão portanto considerados

dignos da glória da cidade celestial. Depois de ter passado por este

fogo, quando o dia do Julgamento Final tiver sido inteiramente cumpri-

126

do. cada um segundo os seus méritos será ou condenado ou coroado. É

pois nesse dia, caríssimos irmãos, que devemos pensar intensamente" ...»

Texto notável pela divisão que faz da humanidade em três categorias

não em quatro, na tradição agostiniana. Mas o texto retém principalmente

a nossa atenção quando exprime uma concepção «arcaica» do fogo

purgatório que situa na época do Julgamento Final, prolongado por

um longo dia. Mais ainda, Eloi parece deixar ao fogo o cuidado de fazer

1\ triagem entre santos, ímpios e justos e a esta última categoria não garante

o Paraíso depois de ter sido posto à prova. O «suspense» durará até

110 fim.

Na Germânia

É interessante ver as instruções dadas, por volta de 732, pelo Papa

Gregório Hl a S. Bonifácio que o interrogava sobre a conduta a seguir

em relação aos Germanos ainda pagãos ou recentemente convertidos:

«Perguntas-me também se se podem fazer oferendas pelos mortos. Eis

1\ posição da Santa Igreja: cada um pode fazer oferendas pelos seus mortos

se são verdadeiros cristãos e o padre pode celebrar em sua memória. E

embora estejamos todos sujeitos ao passado, convém que o padre só ce-

Ichre e só interceda pelos mortos católicos, pois pelos impios, mesmo se

foram cristãos, não será permitido agir assim 7 .»

Se bem que não se trate aqui explicitamente dos sufrágios e que não

seja feita alusão ao fogo purgatório, é significativo ver afirmada com

veemência no coração de um país e dum período de missão, a distinção

entre a utilidade (e portanto o dever) das oferendas pelos mortos «verdadeiros

cristãos» e a inutilidade (e portanto a proibição) das oferendas

pelos mortos «ímpios», mesmo cristãos.

Na Grã-Bretanha

Na mesma época na Grã-Bretanha um monge célebre, Bede que, como

veremos, ocupa um lugar fundamental na elaboração da geografia do

ulém, através de visões e de viagens imaginárias, sublinha nas suas

Homilias (entre 730 e 735) a importância das dores pelos mortos e menciona,

este explicitamente, o fogo purgatório. Os apóstolos, os mártires,

os confessores, ete., vão, diz ele, entre a morte e a ressurreição para o

seio do Pai, que devemos entender como o «segredo do Pai» (secretum

Patris }, esse sinus Patris que equipara à casa do Pai (domus Patris )

do Evangelho de João (XIV, 2) , sem aludir ao seio de Abraão. E prossegue:

127



«Também os numerosos justos que pertencem à Igreja, depois da destruição

da carne são imediatamente recebidos no repouso bem-aventurado

do Paraíso onde esperam com grande alegria, em grandes coros de

almas jubilosas, o momento em que recuperarão o corpo e aparecerão

diante da face de Deus. Mas alguns que, por causa das suas boas

obras, estão predestinados para a sorte dos eleitos, por causa de certas

obras más de que saíram com o corpo conspurcado, são apanhados depois

da morte pelas chamas do fogo purgatório para serem severamente

castigados. Ou, até ao dia do Julgamento, eles são limpos da mácula dos

seus vícios pela longa provação (longa examinatione) desse fogo ou então,

graças às preces, às esmolas, aos jejuns, aos prantos, às oferendas

eucarísticas dos seus amigos fiéis, são libertos das penas e, também

eles, alcançam o repouso dos bem-aventurados".»

Bede define bem, pois, os condenados ao fogo purgatório, afirma com

veemência o poder dos sufrágios dos vivos e da rede de amigos fiéis, mas

sobretudo mostra claramente o mecanismo do tempo do «Purgatório»:

dentro de um intervalo máximo entre a morte e a ressurreição, a possibilidade

de reduções devidas aos sufrágios. Em compensação, não menciona

a localização do fogo e das penas purgatórias.

Indiferença e tradicionalismo carolíngios e pós-carolíngios

A Igreja carolíngia interessa-se pouco pelo fogo purgatório e não faz

inovações.

Alcuíno (que morreu em 804), o grande mestre anglo-saxónico inspirador

da política cultural de Carlos Magno, no seu tratado Sobre a Fé na

Santa Trindade (De fide Sanctae Trinitatis ), ao comentar a primeira epístola

de Paulo aos Coríntios (Hl, 13), equipara o fogo do julgamento

(ignis diei judicii ) ao fogo purgatório (ignis purgatorius ), Este fogo, segundo

ele, é sentido de maneira diferente pelos ímpios, pelos santos e

pelos justos. Os ímpios serão eternamente queimados pelo fogo; os santos,

os que construíram com ouro, prata e pedras preciosas, passarão sem

danos através do fogo como os três jovens hebreus (Daniel, lU). Há por

fim «certos justos culpados de certos pecados mínimos que, sobre o alicerce

que é o Cristo, construíram com feno, com madeira e com palha;

esses serão expurgados pelo ardor desse fogo e, purificados daqueles pecados,

tornar-se-ão dignos da glória da felicidade eterna». Tendo todos

passado por esse fogo transitório (ignis transitorius ), uns irão para a

condenação outros para a coroação, e os primeiros serão mais ou menos

atormentados segundo o seu grau de malvadez, enquanto os segundos

serão mais ou menos recompensados segundo o seu grau de santidade.

Sobre este último ponto Alcuíno é vago e parece embaraçado".

128

Outra grande figura da Igreja e da cultura carolíngias, Raban Maur,

abade de Fulda e arcebispo de Mainz (que morreu em 856), e chefe intelectual

da Germânia, entrega-se, no seu comentário às epístolas de Paulo,

u uma grande reflexão teológica sobre o fogo. Também para ele o fogo

que é tratado na primeira epístola aos Corintios é o fogo do julgamento.

Faz desaparecer as fugas à regra (illicita, coisas ilícitas) que se podem

cometer sem deixar de tomar o Cristo como alicerce, por exemplo, a

complacência para com as delícias deste mundo, os amores terrenos

que, no caso das relações conjugais, não são condenáveis. Tudo isto o

fogo das atribulações (tribulationis ignis) faz desaparecer queimando-o.

Mas para aqueles que construíram com madeira, feno e palha, «não é

impossível que isso se passe depois desta vida e podemos perguntar-nos

Menão será o caso; de maneira aberta ou escondida, certos fiéis podem ser

salvos através de um fogo purgatório com maior ou menor rapidez, conforme

tiverem . ama doo mais ou menos os bens perecrveis oerecí . 10».

Aparece aqui, como em Bede, um elemento importante do sistema do

futuro Purgatório: a situação da expurgação entre a morte e o julgamento,

e a possibilidade de uma maior ou menor duração dessa expurgação

que não durará obrigatoriamente todo o tempo do intervalo.

Paschase Radbert, abade de Corbie (que morreu em 860), partindo da

passagem do Evangelho de Mateus sobre o baptismo pelo fogo, expõe

uma teoria do fogo ainda mais desenvolvida; examina os seus diferentes

aspectos e funções e culmina numa evocação do fogo do amor (ignis charitatis),

do fogo do amor divino (ignis divini amoris). Admite vários significados

possíveis desse fogo:

«Talvez se deva, como querem alguns, compreender (a frase): ele próprio

vos baptizará no Espírito Santo e no fogo como representando a identidade

do Espírito Santo e do fogo, o que nós reconhecemos, pois Deus é

um fogo que consome. Mas como há uma conjunção coordenada não me

parece que se fale de uma mesma e única coisa. Daí a opinião de alguns

de que se trata do fogo purgatório que agora nos purifica pelo Espírito

Santo e depois, se alguma mancha pecaminosa ainda resiste, nos torna

puros por combustão através do fogo da conflagração (quer dizer, do

julgamento). Mas se assim é, deve acreditar-se que se trata de pecados

mais leves e mínimos, pois é impensável que todos escapem aos castigos.

De onde a frase do apóstolo: «o que é a obra de cada um, o fogo

o porá à prova 11.»

Atribuiu-se a Haymon de Halberstadt (que morreu em 853) o discurso

mais articulado sobre o fogo purgatório na época carolíngia. Abordou ele

() assunto por duas vezes, no tratado Sobre a Diversidade dos Livros (Sur

Ia diversité des livres - De varietate librorum) e num comentário às epístolas

de S. Paulo que alguns atribuem a Remi d' Auxerre. As opiniões de

Haymon são de facto uma mistura ecléctica do que foi escrito antes dele,

129



são muito marcadas pelas ideias de Agostinho e de Gregório, o Grande

(que nunca são referidas) - e retomam, muitas vezes palavra por palavra,

a síntese de Julião de Toledo, dois séculos antes. Deve acreditar-se, segundo

Haymon, num fogo purgatório antes do julgamento, que actua sobre

os pecados leves, pequenos ou mínimos. Há dois fogos, um purgatório (e

temporário) o outro eterno (e punitivo). A duração da expiação pelo fogo

pode ser maior ou menor em proporção com a importância do apego aos

laços transitórios. Alguns sofrem as penas purgatórias depois da morte,

outros nesta vida. É falso que possamos salvar-nos através do fogo purgatório

se nesta vida apenas tivemos fé sem realizarmos boas obras. A

Igreja pode suplicar eficazmente por aqueles que sofrem as penas purgatórias.

Há duas categorias de justos, os que gozam imediatamente depois

da morte do repouso paradisíaco e os que devem ser castigados pelas

chamas do fogo purgatório e lá ficam até ao dia do julgamento ou que

podem ser de lá tirados mais cedo pelas preces, as esmolas, os jejuns, as

lágrimas e as oferendas de missas dos fiéis seus amígos'ê. Esta nota de

solidariedade entre mortos e vivos, herdada sem dúvida de Bede, é a

única originalidade - quanto à forma, não no fundo, que é tradicional

- de Haymon de Halberstadt.

Atton de Verceil (que morreu em 961) dá, no seu comentário às epístolas

de S. Paulo, uma interpretação muito tradicional, muito agostiniana

(cita, aliás, Agostinho por várias vezes), da primeira epístola aos Coríntios.

Mas nele há uma particularidade e uma novidade. A particularidade

é supor que o que será posto à prova e julgado (pelo fogo purgatório e,

mais genericamente, quando do julgamento) é essencialmente a ortodoxia

doutrinária, a doctrina, mais do que os costumes e os sentimentos. Por

outro lado, o epíteto venialia, veniais, aparece ao lado dos pecados leves e

opõe-se aos pecados capitais, mas faz parte de um conjunto; e o sistema

de oposição pecados veniais-pecados mortais (ou capitais) só será elaborado

no século X1I 13 •

Mesmo o original Rathier de Verona, imbuído de cultura clássica e

formado nas escolas de Lorena, não teve grande coisa a dizer sobre o

fogo purgatório. O pouco que disse é uma mensagem de rigor: depois

da morte já não se pode adquirir mérito. Quanto à existência de penas

purgatórias depois da morte, ninguém deve iludir-se com elas, pois não

valem para os pecados criminosos mas apenas para os pecados mais leves,

aqueles que são designados como madeira, feno e palha'",

Mesmo o grande Lanfranc que confere um brilho incomparável ao

fim do século XI na escola da abadia de Bec-Hellouin na Normandia,

de que é abade, antes de se tornar arcebispo de Canterbury, não se mostra

inspirado no seu comentário sobre a primeira epístola aos Coríntios

na passagem respeitante à prova pelo fogo. Para ele o fogo purgatório é

de facto o fogo do julgamento e dá a entender que, nessas condições, o

130

fogo do julgamento durará até estarem expurgados aqueles que devem ser

salvos",

Apesar das suas funções oficiais na escola do palácio no reinado de

Carlos o Calvo, o irlandês João Escoto Erígenes foi um espírito isolado

quase ignorado pelos teólogos medievais, mesmo antes de ter sido condenado,

mais de dois séculos depois de ter morrido, pelo concílio de Paris

(1210). Hoje é muito considerado pelos historiadores de teologia e de

filosofia. Também ele não se detém no fogo purgatório. A história do

pobre Lázaro e do mau rico inspira-lhe a reflexão de que essa história

leva a crer que as almas, não só quando vivem num corpo mas também

quando estão privadas da carne, podem pedir o auxílio dos santos, quer

para ficarem totalmente libertas de penas, quer para serem menos

utormentadas'". Noutro local diz do fogo eterno do Inferno que ele é

corporal se bem que, por causa da subtileza da sua natureza, se diga

que é incorporal'",

() além e a heresia

Dou um lugar especial a dois textos do século XI, não porque em si

mesmos tragam quaisquer novidades mas porque foram produzidos em

contextos ricos de significado para o futuro.

O primeiro é uma longa passagem do que se chama o Decreto (Dérret

) de Burchard de Worms (que morreu em 1025). E uma recolha de

textos que faz lei sobre questões de dogma e de disciplina - uma norma

Nobrea via do Corpus de Direito canónico. Burchard contenta-se com

reproduzir passagens dos Diálogos de Gregório, o Grande, e uma passagernde

Santo Agostinho (Enchiridion 110) respeitante aos sufrágios pelos

mortos. Faz preceder o texto agostiniano da frase «há quatro espécies de

oferendas» (quator genera sunt oblationis ); o texto será retomado um

seculo depois no Decreto de Graciano e o seu carácter quadripartido

levantará problemas aos escolásticos. Uma autoridade sobre as Escrituras

ali citada conhecerá, em parte graças a este reforço, um grande êxito.

i~o versículo de João, XIV, 2: «Na casa de meu Pai há muitas moradas'".»

Em 1025, o bispo Gérard de Cambrai, num sínodo em Arras, reconciliou

com a Igreja os heréticos que, entre outros «erros», negavam a

eficácia dos sufrágios pelos mortos. O bispo impõe-Ihes que reconheçam,

a este respeito, as verdades seguintes:

«É verdade, para que ninguém julgue que a penitência não é útil senão

nos vivos e não aos mortos, que muitos defuntos foram arrancados às

penas pela piedade dos vivos, segundo testemunho da Escritura, por

meio da oferenda do sacrificio do Mediador (a missa), ou de esmolas,

ou pela penitência assumida por um vivo em favor de um amigo defun-

131



to, no caso de o doente, ultrapassado pela morte, não ter podido assumi-

-Ia, ou quando um amigo vivo suplica por ele. Vós não sais, ao contrário

do que afirmais, verdadeiros seguidores do Evangelho. Pois a Verdade

nele diz: Se alguém proferiu uma blasfémia contra o Espírito Santo, ela

não lhe será perdoada nem neste século nem no século futuro (Mateus,

12). Nesta frase, como disse S. Gregório no seu Diálogo, deve entender-

-se que certas faltas podem ser apagadas neste mundo e outras no mundo

futuro ... E é preciso acreditar nisto a propósito de pecados pequenos e

mínimos como a tagarelice contínua, o riso imoderado, a preocupação

exagerada com o património, etc., coisas inevitáveis em vida mas que

pesam depois da morte se não foram apagadas durante esta vida; estes

pecados, como ele diz, podem ser expurgados depois da morte pelo fogo

I,lUrgatório, se durante esta vida se mereceu isso por meio de boas acções.

E, pois, lícito que os santos doutores digam que existe um fogo purgatório

pelo qual alguns pecados são expurgados, desde que os vivos obtenham

esse direito por meio de esmolas, de missas ou, como já disse,

por uma penitência de substituição. E evidente que, pelo preço destas

obras, os mortos podem ser absolvidos dos pecados, senão não se compreenderia

o apóstolo Paulo (sobre o qual vós mentistes ao dizer que sois

seus seguidores) que diz que os pecados mínimos e muitos leves são facilmente

consumidos pelo fogo purgatório, enquanto acarretariam suplícios

não purgatórios mas eternos se, por essas oferendas da hóstia, não

tivessem merecido ser apagados pelo fogo purgatório!".»

Nada de novo neste concentrado doutrinário. No entanto, este texto

terá, juntamente com o Decreto de Burchard, um sucesso singular: constituem

o processo a partir do qual se criará no século XII a noção de

Purgatório, em oposição àqueles que o negam. Nesses tempos de heresia,

como são os séculos XII e XIII, S. Bernardo, depois outros clérigos

ortodoxos, prepararão o Purgatório que será assim parcialmente o fruto

da resistência à contestação herética que começa cerca do ano mil.

A série visionária:

as viagens pelo além

A par com este imobilismo doutrinário uma outra série, sem ser revolucionária,

prepara com mais segurança o futuro Purgatório: são as visões

do além, as viagens imaginárias ao outro mundo.

Heranças

o género é tradicional. Explodiu, como vimos, no quadro da literatura

apocalíptica judaico-cristã que o marca fortemente. Tem - se bem que

se trate de um filão menor que dificilmente encontrou saída na literatura

132

.rudita - os seus testemunhos antigos, gregos especialmente. Plutarco,

n08 se~s Moralia, conta a visão de Tespêsio, Este, depois de ter levado

uma VIdade deboche, segundo todas as aparências, morre e quando pas-

~dos três dias. volta à vida, leva daí em diante uma vida perfeitamente

virtuosa. Pressionado com perguntas, revela que o seu espírito deixou o

corpo e viajou no espaço entre as almas que andavam pelo ar das quais

conh~u algumas, que emitiam terríveis lamentos, enquanto outras, mais

em ctma,. pareciam tranquilas e felizes. Algumas destas almas são puramente

bnlhantes, outras têm manchas e outras são completamente escuras.

As que estão carregadas com poucos pecados só sofrem um castigo

lileiro, mas as ímpias são entregues à Justiça que, se as acha incuráveis as

.ban~ona às Fúrias que as lançam num abismo sem fundo. Tespêsio é

depol~ le~ado para uma grande planície cheia de flores e de perfumes

',Iradavels onde algumas almas voam alegremente como pássaros. E vi-

.Ua por fim o lugar dos condenados onde assiste às suas torturas. Há

notoriamente três lagos, um de ouro fervente, outro de chumbo gelado

CI u~ terceiro de ferro agitado por ondas. Demónios mergulham e tomam

• tirar as almas de um lago para outro. Por fim, noutro local, ferreiros

modelam sem cerimónias as almas chamadas a uma segunda exístência'"

dando-lhes as mais diversas formas.

'

As descrições do Purgatório conservarão desta visão as diferenças de

cor das almas e a passagem de um lago para outro.

Plutarco descreve também a visão de Timarco. Este desceu a uma

,ruta dedicada a Trofónio e aí celebrou as cerimónias necessárias para

conseguir um oráculo. Lá ficou duas noites e um dia numa escuridão

Impenetrável, sem saber se estava acordado ou se sonhava. Recebeu

um golpe na cabeça e a sua alma voou. Toda feliz no ar, avistou ilhas

Ilrdendo com um fogo agradável e que mudavam de cor. As ilhas eram

banhadas por um mar multicolor onde flutuavam as almas. No mar lançavam-se

dois rios e por baixo havia um precipício redondo e sombrio de

onde saíam gemidos. Algumas almas eram aspiradas pelo buraco outras

eram para lá lançadas, Também aqui a descrição anuncia a da obra onde

lerá criada a verdadeira visão do Purgatório, o Purgatório de S. Patrick,

tio fim do século XII.

,Esta,lite~atura. visionária é muito influenciada pelos tratados do Apocaíipse

JUd~lco-cnstão de que falei, em especial pelo Apocalipse de Pedro

CI () ~pocahpse de Paulo, mas tem também a marca de duas tradições que

'UIU1 apenas evocarei: as viagens pelo além das velhas culturas pagãs celta

CI germânica'". '

Se em grande parte deixo de lado estas duas componentes da cultura

medieval que certamente desempenharam um papel no imaginário do

Purgatório, é porque a importância das pesquisas a empreender, para

NC poder falar delas com pertinência, não me parece proporcionada

133



com o fruto que delas se pode esperar. A apreciação da contribuição

destas culturas - apesar de estudos de grande qualidade - supõe resolvidos

problemas muito dificeis. Em primeiro lugar, problemas de datação.

Como é normal, os textos escritos datam da época em que as línguas

dessas culturas são passadas à escrita, o mais cedo no século XII. O

que as primeiras obras escritas nessas línguas exprimem é certamente e

em grande parte anterior a elas, mas de quanto tempo?

Mais importante ainda a meus olhos é o facto de esta literatura antiga

ser um produto complexo, dificil de caracterizar. A distinção entre erudito

e popular não tem aqui grande sentido. As fontes orais próximas

parecem-me essencialmente «eruditas». A oralidade não se confunde

com o popular. As obras escritas a partir do século XII são elaborações

de artistas orais eruditos. Na época em que se recita, se canta e se escreve

as obras «vulgares», as culturas «bárbaras» já estão há mais ou menos

tempo em contacto com a cultura eclesiástica, erudita, cristã, de expressão

latina. A contaminação vem juntar-se à dificuldade de distinguir a

verdadeira herança «bárbara». Longe de mim rejeitar essa herança:

creio, pelo contrário, que ela muito pesou na cultura medieval mas não

me parece que já estejamos suficientemente preparados para a isolar, a

caracterizar, a avaliar. Penso em compensação que nas regiões onde o

latim se impusera há muito tempo como língua erudita, a cultura latina

erudita acolheu, de melhor ou pior vontade, mais ou menos conscientemente,

elementos mais ou menos importantes de cultura tradicional «popular»,

quer dizer, no que respeita a esta época, em grande parte rural e

quase bem definida pelo termo folclórica - o que a Igreja classificou de

«pagão» pré-cristã e rural ao mesmo tempo. Para referenciar esta herança

dispomos de um método decerto delicado de manejar: fazer remontar

pelo método regressivo, com prudência e confrontando-o com os

documentos medievais datados ou datáveis, o corpus estabelecido pelos

folcloristas dos séculos XIX e XX. Apesar das suas incertezas, sinto-me

mais seguro utilizando os dados recolhidos pelos irmãos Grimm, Pitre,

Frazer, Van Gennep, para explicar o imaginário medieval, do que especulando

sobre os imrama (relatos de viagens pelas ilhas do além) célticos

ou as sagas escandinavas.

Dessas culturas «bárbaras» presentes e dificeis de enquadrar, apenas

reterei, para as épocas anteriores ao século XII, alguns traços significativos

para a génese do Purgatório.

Entre os Celtas predomina o tema da viagem pelas ilhas venturosas da

qual o testemunho mais antigo parece ser a viagem de Bran cuja versão

primitiva remontaria ao século vnr".

O outro mundo está situado numa ilha, muitas vezes acessível por um

poço, mas desprovida de montanha santa. A imagem da ponte depara-se-

-nos frequentemente.

134

Entre os escandinavos e os germanos, a mitologia do além, quando

começamos a apreendê-Ia, parece mais coerente. Depois da morte existem

essencialmente dois lugares: um mundo subterrâneo onde reina a

deusa HeI, bastante próxima do shéol judeu, sombrio, angustiante mas

Nemtorturas, cercado por um rio que se atravessa por uma ponte; e do

outro lado um lugar celestial de repouso e de descontracção, o Valhalla,

reservado aos mortos merecedores, e em especial aos heróis mortos no

campo de batalha. É possível que, antes de se situar no céu, o Valhalla

também tenha sido subterrâneo e comparável aos Campos EJísios romanos.

Enquanto o além céltico só excepcionalmente comporta uma montanha

(elemento geográfico que será essencial para o Purgatório), a

mitologia germânica inclui o monte Hecla na Islândia, montanha vulcânica

penetrada por um poço e que contém um reino de tortura='.

Talvez ainda mais do que o céltico, o além imaginário germânico,

quando começamos a apreendê-lo, surge já fortemente imbuído da influência

cristã erudita e latina. É o caso das viagens pelo além que, no

século XII, Saxo Grammaticus relata na sua História dos Dinamarqueses.

Os Diálogos de Gregório, o Grande, foram bem cedo traduzidos para

escandinavo antigo e legaram talvez o tema da ponte à mitologia escandinava,

se bem que ele talvez já ali tivesse chegado antes, vindo do oriente.

O mais importante sem dúvida é que, sob a influência cristã, o além

risonho das mitologias céltica e germânica primitivas toma-se sombrio,

subterrâneo, «inferniza-se», No momento em que nasce o Purgatório,

ver-se-á a concepção céltica (e talvez germânica) optimista de um lugar

de espera e de purificação já próximo do Paraíso apagar-se perante a

imagem de um Purgatório temporariamente cruel como o Inferno, vindo

da apocalíptica oriental e da tradição cristã oficial. Essa imagem não

desaparecerá completamente e será recuperada nas visões do Paraíso.

Esses «além» «folclóricos» ambivalentes ficarão divididos entre um pólo

positivo e um pólo negativo e o Purgatório hesitará à volta da linha de

separação,

Da literatura latina cristã das visões do além, do começo do século

VIII até ao fim do século X, destacam-se três textos. O primeiro é de

um dos grandes espíritos da alta Idade Média, o monge anglo-saxão

8ede. E a Visão de Drythelm. Distingue pela primeira vez um lugar de

expurgação no outro mundo que o herói percorre. A Visão de Wetti,

monge do Sul da Germânia, é uma descrição infernal e delirante de um

além em parte utilizado para fins políticos, à custa de Carlos Magno. Este

desvio político dos relatos de viagens além-túmulo exprime-se plenamente

numa descrição anónima do fim do século IX, a Visão de Carlos, o Gordo.

panfleto ao serviço de um pretendente carolíngio.

Estes três textos essenciais serão precedidos por duas breves visões,

uma do fim do século VI e outra do começo do século VIII, relatadas

135



por dois grandes personagens da Igreja, os arcebispos Gregório de Tours

e Bonifácio (em anglo-saxão Winfrith) de Mainz. Evocam o além mais ou

menos banal dos meios monásticos da época.

Dois poemas influenciados pela tradição literária clássica romana enquadrá-los-ão

nos dois extremos cronológicos do período, o começo do

século VI para o primeiro e o começo do século XI para o segundo. Mostrarão

um imaginário muito tradicional ao qual o Purgatório pouco ficará

a dever.

As duas visões que primeiro se nos oferecem têm mais valor pela personalidade

dos seus autores, poderosas personagens eclesiásticas, do que

pelo conteúdo, pois este é fortemente tributário do Apocalipse de Paulo

no que respeita à maioria das imagens e das ideias.

Na sua História dos Francos (IV, 33), no fim do século VI, Gregório de

Tours relata a visão de Sunniulf, abade de Randau: «Viu-se transportado

para um rio de fogo, sobre cuja margem se aglomeravam pessoas como

abelhas à volta da colmeia; uns estavam submersos até à cintura, outros

até às axilas, outros até ao queixo e lamentavam-se chorando por serem

tão atrozmente queimados. Por cima do rio havia uma ponte muito estreita,

mal medindo a largura de um pé. Na outra margem via-se uma

grande casa toda branca. Os monges que desprezavam a disciplina da

sua comunidade caíam da ponte enquanto os que a respeitavam passavam

e eram recebidos na casa.»

No início do século VIII S. Bonifácio, o apóstolo dos Germanos, escreveu

(Epístola 10) a Eadburge, abadessa de Thanet, contando que um

monge de Wenlock tivera uma visão. Foi levado pelos ares por anjos, e

viu o mundo inteiro cercado de fogo. Viu uma multidão de demônios e

um coro de anjos representando os seus vícios e as suas virtudes. Reparou

em poços de fogo que vomitavam chamas e almas com a forma de pássaros

negros que choravam e gemiam e davam gritos com voz humana.

Vil! um rio de fogo fervente por cima do qual havia uma tábua que fazia

de ponte. As almas passavam sobre essa ponte mas algumas escorregavam

e caíam no Tártaro. Algumas eram completamente submersas pelas

ondas, outras até aos joelhos, outras até ao meio do corpo e outras ainda

até aos cotovelos. Todas saíam do fogo brilhantes e limpas. No outro

lado do rio havia grandes muros altos e resplandecentes. Era a Jerusalém

celeste. Os espíritos maus eram mergulhados nos poços de fogo.

Coloco aqui um poema da Antiguidade latina tardia que, ao contrário

por exemplo dos textos de Plutarco, não tem qualquer parentesco com as

visões propriamente apocalípticas e com as viagens mais ou menos «folclóricas»

do período posterior mas que, por esta diferença, tem o seu

lugar no processo.

O Carmen ad Flavium Felicem foi escrito por volta de 500 por um

cristão de África e trata da ressurreição dos mortos e do julgamento de

136

Deus 24 • O objectivo é descrever o Paraíso e o Inferno (geena), a om,nipotência

de Deus e a queda de Adão que leva à morte. Deus conserva em

diversas regiões (diversis partibus] as almas depois da morte, à espera do

Julgamento Final. Vêm a seguir as provas da ressurreição dos mortos, a

evocação dessa ressurreição e do julgamento de Deus. Uma longa descrição

evoca o Paraíso com as suas flores, as suas pedras preciosas, as suas

Árvores, o seu ouro, o mel, o leite, os quatro rios jorrando de uma nascente

tranquila, numa eterna Primavera, com uma temperatura amena,

uma luz eterna onde os eleitos não têm preocupações, nem pecados,

nem doenças, mas sim a eterna paz. O poema termina com uma breve

evocação da destruição do mundo pelo fogo, do rio de fogo, dos lamentos

dos condenados e da necessidade de arrependimento antes da morte,

pois no Inferno já é tarde de mais para o fazer e lá se vêem os condenados

chamar por Deus em vão.

Deste texto onde, à excepção de uma vaga alusão às diversas moradas

dos mortos, nada existe que diga respeito ao futuro Purgatório, podemos

no entanto reter dois elementos. Primeiro, insiste-se muito mais no Paraí-

I() do que no Inferno. O poema voga ainda no optimismo dos séculos IV e

V. Por outro lado, mesmo excluindo a sua eficácia, evocam-se as preces

dos condenados; mas no fim da Idade Média distinguir-se-ão as almas do

Purgatório das do Inferno pelo facto de elas ainda se entregarem a orações

enquanto as outras já renunciaram às súplicas inúteis.

() «fundador» das visões medievais do além: Rede

O grande anglo-saxão Bede, pouco antes de morrer em 735 no mosteiro

de Yarrow onde passou cinquenta anos interrompidos por viagens

das quais muitas a Roma, relata na História Eclesiástica de Inglaterra

muitas visões 25 . Estas descrições têm um fim edificante, pretendem provar

a realidade do além e inspirar aos vivos temor suficiente para que

queiram escapar aos tormentos depois da morte e reformar a sua vida.

Mas não têm um carácter tão didáctico como os exempla de Gregório, o

Grande. O seu grande interesse para a nossa história é que numa destas

visões aparece pela primeira vez, para as almas que sofrem uma expurgação

depois da morte, um lugar especial do além que será mais do que um

dos receptáculos evocados até então por referência ao Evangelho de João.

Passemos rapidamente pela primeira visão, a de Santo Fursy, monge

irlandês que veio para o continente e foi enterrado cerca de 650 em Peronne

onde Erchinold, administrador do palácio de Clóvis 11,mandou

construir um santuário sobre o seu túmulo.· Bede retoma uma vida de

Fursy escrita em Peronne pouco depois da sua morte. Quando vivia na

Ânglia oriental, no mosteiro de Cnoberesborough que fundara, caiu

137



doente e teve uma visão pois a sua alma saiu do corpo «desde a noite até

ao canto do galo». Do céu viu por baixo de si quatro fogos, o da mentira,

o da cupidez, da dissensão e da impiedade, que logo se juntaram num só.

Através desse fogo voavam demónios que disputavam com os anjos bons

as almas dos defuntos. Três anjos protegiam Fursy do fogo e dos demónios:

um abria-lhe passagem e os outros dois guardavam-lhe os flancos.

No entanto um demónio conseguiu apanhá-lo e fazê-lo lamber pelo fogo

antes de os anjos intervirem. Fursy ficou queimado num ombro e no

queixo. Essas queimaduras eram ainda visíveis quando voltou à terra e

ele mostrava-as. Um anjo explicou-lhe: «O que tu acendeste ardeu em ti»

e fez-lhe uma exposição sobre a penitência e a salvação. A alma de Fursy

voltou à terra e o monge guardou da sua viagem imaginária um tal medo

que, quando pensava nela, nos dias glaciais do Inverno, ficava a suar de

terror como se estivesse em pleno Verão.

A ideia purgatória é vaga nesta história. A natureza do fogo não é

definida e o carácter da queimadura de Fursy mostra-se bastante ambíguo:

ordálio, punição dos pecados, purificação? Mas esta ambiguidade

faz parte da definição do fogo purgatório que, todavia, não é aqui

mencionado-".

A visão de Drytbelm: um lugar reservado à purgação

A visão de Drythelm, no capítulo XII do livro V da Historia

ecclesiastica, é muito mais importante para o nosso propósito. Trata-se

de um devoto laico, um pai de família, o seu herói. Este habitante da

região de Cunningham (ou Chester-le-Street), próxima da fronteira escocesa

ficou gravemente doente e certa noite morreu. Ao amanhecer voltou

à vida afugentando os que velavam o seu cadáver, à excepção da esposa,

aterrorizada mas feliz. Drythelm dividiu os seus bens em três partes, um

terço para a mulher, um terço para os filhos e um terço para os pobres, e

retirou-se para um eremitério do isolado mosteiro de Mailros, num recanto

do Tweed. Aí viveu em penitência e, quando tinha oportunidade, contava

a sua aventura.

Um personagem resplandecente vestido de branco conduzira-o para

leste, para um vale muito extenso, muito profundo e infinitamente comprido,

cercado à esquerda por chamas medonhas e à direita por terriveis

rajadas de granizo e de neve. Estas duas vertentes estavam cheias de almas

humanas que o vento fazia passar de um lado para o outro, sem

cessar. Drythelm pensou que se tratava do Inferno. «Não, disse-lhe o

companheiro que adivinhara o seu pensamento, não é aqui o Inferno

que tu imaginas.» Passou em seguida para lugares cada vez mais escuros

onde nada via além da mancha clara do seu guia. E, de repente, surgiram

138

bolas de fogo saltando de um grande poço e voltando a cair nele.

Drythelm viu-se sozinho. Naquelas chamas subiam e desciam como faúlhas

almas humanas. Este espectáculo era acompanhado por choros desumanos,

por risotas e por um cheiro fétido. Drythelm reparou mais nas

iorturas que demónios infligiam a cinco almas, uma de um padre reconhecível

pela tonsura, outra de um laico, uma terceira de uma mulher

(estamos num grupo de contrastes binários: padre/laico, homem/mulher,

estes três personagens representam o conjunto da sociedade huma-

11I1, ficando as outras duas numa penumbra misteriosa). Quando, rodeado

por diabos que ameaçam agarrá-l o com pinças de fogo, Drythelm se julga

perdido, aparece de repente uma luz que aumenta como a de uma estrela

hrilhante, e os diabos dispersam-se e fogem. O companheiro voltou c,

mudando de direcção, leva-o para lugares luminosos. Chegam 8 um muro

de um comprimento e de uma altura que os seus olhos não podem

ulcançar , mas atravessam-no de uma maneira incompreensível c

I>rythelm vê-se num prado grande e verde, cheio de flores, colorido c

perfumado. Homens vestidos de branco estavam ali alegremente reunidos.

Drythelm pensou ter chegado ao reino dos céus, mas o companheiro,

lendo-lhe o pensamento, disse-lhe: «Não, não é aqui o reino dos céus,

como tu supões.» Drythelm atravessou o prado, uma luz ainda maior

aumentou pouco a pouco, elevaram-se cânticos muito suaves, envolveu-

-o um perfume junto do qual o outro que sentira no prado não passava de

um cheirinho, e a luz tornara-se tão brilhante que a do prado já somente

lhe parecia um pálido clarão. Esperava ele entrar naquele lugar maravilhoso

quando o seu guia o obrigou a arrepiar caminho. Quando chegarum

ao sítio risonho das almas vestidas de branco, o companheiro de

L>rythelmdisse-lhe: «Sabes o que é tudo o que vimos? _. Não. O vale

horrível cheio de chamas ardentes e de frios glaciais é o lugar onde são

examinadas e castigadas as almas daqueles que demoraram a confessar e

11 corrigir os pecados criminosos (scelera) que cometeram, que não se

urrependeram senão em artigo de morte e saíram do corpo nesse estado;

mas como, pelo menos no momento de morrer, se confessaram c

üzeram penitência, todas no dia do Julgamento (final) alcançarão o

reino dos céus. Muitas são ajudadas pelas preces dos vivos, pelas esmo-

Ias, pelos jejuns e sobretudo pela celebração de missas a fim de serem

libertadas mesmo antes do dia do Julgamento'".» O guia prosseguiu:

«A seguir, o poço fétido que vomita chamas é a boca da geena de onde

aquele que lá cair uma vez nunca mais será libertado, por toda a eternidade.

O lugar florido onde viste aquela mocidade encantadora e alegre

divertindo-se, é onde são acolhidas as almas daqueles que saem do seu

corpo no meio de boas obras mas que não são suficientemente perfeitas

para merecerem ser imediatamente introduzidas no reino dos céus; mas

lodos no dia do Julgamento entrarão na visão de Cristo e nas alegrias do

139



reino celestial. Pois aquelas que foram perfeitas em todas as suas palavras

as suas obras e os seus pensamentos, logo que saem dos corpos

alcançam o reino celestial; o lugar onde ouviste aquela doce canção por

entre aquele perfume suave e aquela luz esplêndida já lá está perto. E tu,

que deves agora voltar ao teu corpo e viver de novo entre os homens, se te

esforçares por bem reflectir no que fazes e por observar nos teus cost':lmes

e nas tuas falas a rectidão e a simplicidade, também tu terás depois da

morte uma morada entre esses grupos alegres de espíritos felizes que viste.

Pois, durante o espaço de tempo em que te deixei sozinho, fui in~ormar-

-me do que te iria acontecer.» Com estas palavras, Drythelm fica tnste por

ter de regressar ao corpo e contempla avidamente a beleza e o enc~nto do

lugar onde se encontra e das pessoas que lá vê. ~as enquanto se mt~rrogava,

sobre como fazer uma pergunta ao seu gula, sem se atrever a ISSO,

viu-se vivo entre os homens/ .

Este texto seria essencial para o caminho do Purgatório se não contivesse

lacunas fundamentais em relação ao futuro sistema e se não tivesse

sido escrito no dealbar de uma época que irá desviar-se dos problemas da

expurgação no além. ., N'

O que nele está presente é o lugar reservado especla~ent,e a purgaçaoi e

a definição rigorosa da natureza desse lugar: nele, nao so as almas sao

torturadas indo do quente para o frio e vice-versa, a ponto de Drythelm

julgar que se trata do Inferno, mas ta~bé~ é ~m lugar. d~ exame e de

castigo, e não, para bem dizer, de punficaçao; e a defiDl~aoNdasc~lpas

que a ele conduzem, os pecados graves, scelera; é a caractenzaçao da Situação

que a ele leva: a confissão e ao arrependiment~ in extremis; é .a afi~ação

de que a presença nesse lugar garante a salv.açao~ara a ~termdade; e a

indicação do valor dos sufrágios com a sua lista hierarquizada: prec;s,

esmolas, jejuns e, sobretudo, sacrificios eucarísticos, com a sua consequencia

eventual: encurtar o tempo de purgação, o que confirma que esse tempo

está situado entre a morte e a ressurreição, durante um período mais ou

menos longo, sendo o castigo máximo até ao dia do Julgamento Final.

O que nele falta é a palavra purgação e mais genericamente qualquer

palavra da família de purgar. Bede, sem dúvida, ao sacrific~r .aqui a um

género literário, omite cuidadosamente todos os termos ca~o~cos e me~mo

todas as referências a uma autoridade, se bem que a Bíblia e Agostinho

estejam bem perto por trás deste texto. Mas um lugar sem nome não

existe totalmente.

Sobretudo talvez em conformidade com os pontos de vista agostinianos

acerca dos non v~lde mali e dos non valde boni, os que não são inteiramente

maus e os que não são inteiramente bons, não existe apenas um

lugar intermédio mas sim dois, o da correcção dura e o da espera jubilosa,

quase colados um ao Inferno, o outro ao Paraíso. Pois o sistema da visão

de Drythelm continua a ser um sistema binário; um muro aparentemente

140

impenetrável separa um inferno e um inferno temporário de um paraíso

de eternidade e de um paraíso de espera. Para que nele exista Purgatório

será necessária a instalação de um sistema ternário; e mesmo que o Purgatório

fique geograficamente inclinado para o Inferno, será preciso ':1m

sistema melhor de comunicação entre Purgatório e Paraíso. Será preCISO

abater o muro.

Um século depois, mais ou menos na Germânia Meridional, um monge

de Reichenau, Wetti, morre em 4 de Novembro de 824 depois de, na

vêspera de morrer, ter contado uma visão sua. Mais tarde o relato foi

posto por escrito pelo abade do mosteiro, Heito. Pouco depois, o poeta

Walahfrid Strabo, abade de Saint-Gall, comporá uma versão dela em

vers0 29 .

l1m sonho barroco e delirante com o além: a visão de Wetti

Doente, Wetti repousava na sua cela, com os olhos fechados m~s não

dormia. Satanás, com aparência de clérigo, com a face negra tão feia que

nem se distinguiam os olhos, apareceu-lhe ameaçando-o com instrumentos

de tortura; e uma multidão de demónios preparava-se para o prender

numa espécie de câmara de torturas. Mas a misericórdia divina enviou-

-lhe um grupo de homens magnífica e decentemente vestidos com hábitos

monásticos e falando latim, que expulsou os demónios. Um anjo de uma

beleza incrível, vestido de púrpura, aproximou-se da sua ca~ceira e ~alou-lhe

afectuosamente. A primeira parte da visão acabou assim. O pnor

do mosteiro e outro irmão vieram tratar do doente. Este contou-lhes o

que acabava de se passar e pediu-Ihes que intercedessem pelos seus pecados,

enquanto

ele próprio, numa atitude de penitência monástica bem

conhecida, se prostrava com os braços em cruz. Os dois irmãos cant~ram

os sete salmos da penitência, o doente deitou-se novamente e pediu os

Diálogos de Gregório, o Grande. Depois de ter lido nove ou dez páginas,

pediu aos visitantes que fossem descansar e preparou-se para fazer

() mesmo. O anjo que já vira vestido de púrpura apareceu de novo, desta

vez todo vestido de branco e resplandecente e felicitou o doente pelo que

acabava de fazer. Recomendou-lhe em especial que lesse e relesse o salmo

cxvnr=.

O anjo leva-o então por uma caminho agradável até umas montanhas

imensamente altas e de uma beleza incrível que pareciam feitas de mármore

e eram cercadas por um grande rio onde uma enorme multidão de

condenados estava retida para ser punida. Reconheceu muitos deles.

Noutros locais assistiu a muitas e diversas torturas infligidas a numero-

NOS padres e às mulheres que eles haviam seduzido e que esta~am ~ergu-

Ihadas no fogo até ao sexo. O anjo disse-lhe que no terceiro dia elas

141



seriam chicoteadas sobre o sexo. Numa espécie de castelo de madeira e

pedra muito esquisito de onde saía fumo, viu monges que, segundo o que

lhe disse o anjo, tinham sido ali reunidos para expurgação (ad purga tionem

suam). Viu também uma montanha em cujo cume estava um abade

que morrera há uma dezena de anos e que ali fora colocado não para sua

eterna condenação mas para ser expurgado. Um bispo que deveria ter

rezado por esse abade sofria penas infernais no outro lado da montanha.

Também lá viu um príncipe que reinara em Itália sobre o povo

romano ao qual um animal rasgava as partes sexuais, enquanto o resto

do corpo nada sofria. Estupefacto por ver aquela personagem que fora o

defensor da fé católica e da Igreja (trata-se de Carlos Magno, que Walahfrid

Strabon refere no seu poema) assim castigado, soube pelo anjo que,

apesar de muitas acções louváveis e admiráveis, aquela personagem entregara-se

a amores ilícitos. Mas, por fim, estaria entre os eleitos. Viu também,

ora em glória ora em sofrimento, juízes, laicos, monges. Foi em

seguida para lugares de uma grande beleza onde se erguiam arcos de

ouro e de prata. O Rei dos Reis, o Senhor dos Senhores, avançou com

uma multidão de santos e os olhos humanos não podiam suportar o seu

esplendor. O anjo convidou os santos a interceder por Wetti, o que eles

fizeram. Uma voz vinda do trono respondeu-Ihes: «Esse deveria ter tido

uma conduta exemplar e não teve.» Viu em seguida a glória dos bem-

-aventurados mártires que também pediram a Deus o perdão dos pecados

de Wetti. A voz vinda do trono declarou que ele devia primeiro pedir

perdão a todos aqueles que influenciara para o mal pelo seu mau exemplo.

Foram depois para um lugar onde estava uma multidão de virgens

santas que também intercederam por ele e a majestade do Senhor declarou

que, se ele ensinasse uma boa doutrina, se desse bons exemplos e

corrigisse aqueles que induzira ao mal, então o pedido delas seria atendido.

O anjo explicou-lhe então que, entre todos os horríveis vícios dos

homens, havia um que ofendia especialmente a Deus: o pecado contra

a natureza, a sodomia. O anjo fez-lhe ainda longos discursos sobre os

vícios a evitar, exortou-o a convidar em especial os germanos e os gauleses

a respeitarem a humildade e a pobreza voluntária. Fez uma digressão

sobre os pecados das congregações femininas, voltou ao vício sodomítico

e alargou-se muito sobre este assunto, explicou que as epidemias atingiam

os homens por causa dos seus pecados e recomendou-lhe em particular

que cumprisse sem desfalecimentos o serviço de Deus, a opus Dei. Fez-lhe

notar de passagem que um certo conde Géraud, que governara a Baviera

em nome de Carlos Magno e mostrara grande zelo na defesa da Igreja,

fora admitido na vida eterna. Depois de muitas outras falas, o anjo deixou

Wetti e este acordou com a aproximação da aurora e ditou a sua

visão. Uma descrição muito realista dos seus últimos momentos finaliza

este relato.

142

Dever-se-ia analisar em si mesma esta extraordinária visão. Dela tratarei

apenas três elementos que interessam ao futuro Purgatório: a insis-

I~ncia posta na purgação no além, o papel desempenhado por uma

montanha como local dessas penas temporárias (teremos, no fim da nos-

.11 história, a montanha do Purgatório de Dante), a presença, nesses lulures

de castigo, de, Carlos Magno sendo punido por ter cedido às

tentações da carne. E uma das mais antigas aparições desta lenda que

leve êxito na Idade Média: o imperador teria mantido relações culposas

com a irmã e seria assim pai de Rolando. Mais tarde ver-se-á por sua vez

Carlos Martel, avô de Carlos Magno, torturado no além por ter despo-

[ado a Igreja dos seus bens. Mas Carlos Martel será condenado ao Inferno

como Teodorico, ao passo que Carlos Magno é «finalmente salvo"'».

Se Carlos Magno e o seu pecado aparecem na visão de Wetti, é toda a

dinastia carolíngia que iremos encontrar numa outra visão espantosa datada

do fim do século IX, e que é sem dúvida o melhor testemunho de um

omprendimento que teve êxito na Idade Média: a politízação da literatura

.pocaIíptica 32 .

A politização do além: a visão de Carlos, o Gordo

Dou na íntegra o texto desta visão escrito sem dúvida pouco depois da

morte do imperador Carlos, o Gordo (888). É destinada a servir a causa

(te Luís, filho de Luís, o Bonacheirão, e de Hermengarda, filha única do

Imperador Luís 11, o Jovem, filho de Lotário e sobrinho de Carlos, o

(Inrdo. Luís Hl, chamado o Cego, foi com efeito proclamado rei em

MI}(). Foi destronado pelo seu concorrente Berengário que, segundo o coslume

bizantino, lhe mandou arrancar os olhos. O texto foi composto

pelos próximos do arcebispo de Reims, e nele se afirma o poder de interressão

de S. Remígio patrono da cúria arquiepiscopal.

Relato de uma visão do imperador Carlos feito segundo as suas próprias

declarações:

Em nome de Deus, soberano rei dos reis, eu Carlos, pela graça de Deus rei

dos Germanos, patricio dos Romanos e imperador dos Francos, quando durante

a santa noite de um domingo, depois de ter celebrado o oficio divino

noctumo me fui deitar, para repousar e queria dormir, uma voz dirigiu-se a

mim e disse-me num tom terrível: «Carlos, o teu espírito vai deixar-te já e uma

visão revelar-te-á o justo julgamento de Deus e alguns presságios a ele respeilantes;

mas o teu espírito regressará em seguida, dentro de uma hora bem

medida.»

Logo a seguir fui arrebatado em espírito e aquele que me levava era de

uma grande brancura e tinha na mão um novelo de lã que emitia um raio

luminoso extremamente brilhante como costumam fazer os cometas quando

143



aparecem, depois pôs-se a desenrolar o novelo e disse-me: «Toma um fio do

novelo brilhante, ata-o solidamente ao teu polegar da mão direita porque elo

te conduzirá ao labirinto das penas infernais.» Dizendo isto pôs-se rapidamente

à minha frente, desenrolando o novelo brilhante, e conduziu-me para vales

em brasa e profundos, cheios de poços onde ardiam pez, enxofre, chumbo,

cera e fuligem. Encontrei ali os prelados de meu pai e dos meus tios. Como

lhes perguntasse aterrorizado porque sofriam aqueles duros tormentos, eles

responderam-me: «Fomos os bispos do teu pai e dos teus tios; mas em vez

de Ihes darmos, assim como ao seu povo, conselhos de paz e de concórdia,

semeámos a discórdia e fomos os instigadores de muitos males. É por isso que

agora ardemos e sofremos estes suplícios infernais, assim como os outros

apreciadores de homicídios e de pilhagens. É para aqui que virão também

os teus bispos e a multidão dos teus satélites que hoje se divertem, agindo

de modo semelhante.»

Enquanto escutava, tremendo, estas palavras, eis que demónios todos negros

que voavam, trataram de apanhar com ganchos de ferro o fio do novelo

que eu tinha na mão e de me puxar para eles, mas o reverbero dos raios não

lhes permitiu atingir o fio. Depois correram sobre mim e quiseram agarrar-mo

com o gancho e lançar-me nos poços de enxofre; mas o meu guia que segurava

o novelo atirou-me sobre os ombros um fio do novelo e mais outro, depois

puxou-me com força atrás de si e assim trepámos as altas montanhas de fogo

de onde corriam pântanos e rios ardentes onde ferviam todas as espécies de

metais. Lá encontrei inúmeras almas de homens e de pessoas importantes do

meu pai e dos meus irmãos que para lá haviam sido lançadas e estavam mergulhadas

umas até aos cabelos, outras até ao queixo, outras até ao umbigo e

gritavam-me lamentando-se: «Durante a vida gostámos, contigo e com o teu

pai, os teus irmãos e os teus tios, de armar lutas e de cometer homicídios e

fazer pilhagens por cupidez terrena; é por isso que sofremos tormentos nestes

rios ferventes entre todas as espécies de metais.»

Como eu timidamente prestasse atenção às suas palavras, ouvi atrás do

mim almas que gritavam: «Os grandes suportam num rio fervente fornalhas

de pez e de enxofre, cheias de enormes dragões, de escorpiões e de serpentes do

diversas espécies»; também lá vi alguns grandes de meu pai, dos meus tios O

dos meus irmãos, assim como meus, que me disseram: «Pobres de nós! Carlos,

bem vês os horríveis tormentos que suportamos pela nossa maldade e o nosso

orgulho assim como pelos maus conselhos que demos por cupidez ao rei e a ti

próprio.» Enquanto me faziam, gemendo, estas queixas, dragões correram ao

meu encontro com as bocarras abertas e cheias de fogo, de enxofre e de pez, e

queriam engolir-me. Mas o meu guia pôs-me por cima um terceiro fio ainda

com mais empenho, e os seus raios luminosos venceram as goelas em fogo e ele

puxou-me para a frente ainda com mais força.

Descemos então para um vale que de um lado era escuro, mas flamejava

como o fogo de uma fornalha; do outro lado era de um encanto e de uma paz

inexprimíveis. Voltei-me para o lado que estava nas trevas e que vomitava

chamas e lá vi vários reis da minha família que sofriam grandes suplícios e

então fui presa de uma profunda angústia, pois imaginei logo que eu próprio

estava .entregue àqueles suplícios, que me infligiam gigantes todos negros que

incendiavam o vale com toda a espécie de fogos. E todo trémulo, iluminado

pelo fio do novelo, vi sobre a vertente do vale um clarão que me apareceu

durante um momento, e havia duas fontes que escorriam. Uma fervia mas a

outra era clara e morna e havia duas taças. Quando eu me dirigia para esta

guiado pelo fio do novelo, o meu olhar fixou-se na taça onde havia água a

ferver e ali vi Luís, meu pae 3 , em pé e mergulhado até às coxas.

Sofria dores extremas que agravavam a sua angústia e disse-me: «Monsenhor

CarIos, não tenhas receio, eu sei que a tua alma voltará ao corpo. Se

Deus te permitiu vir aqui foi para veres por que pecados sofro tais tormen-

~os,assim como todos aqueles que viste. De facto, um dia estou nesta taça de

ag~a a ferver, mas no dia seguinte sou levado para aquela outra onde a água é

muito fresca; devo isso às preces de S. Pedra e de S. Remígio sob cuja égide a

nossa raça real reinou até agora. Mas se vierdes depressa em meu socorro tu e

os meus fiéis, bispos, abades e membros do clero, por meio de missas, of~rendas,

salmo dias, vigílias e esmolas, rapidamente serei liberto desta taça de água

a ferver, pois o meu irmão Lotário e seu filho Luís já foram subtraídos a esta

pena.graças às preces de S. Pedro e S. Remígio e já foram conduzidos para ~

alegna ~o p~ra~so de Deus.» Depois disse-me: «Olha para o lado esquerdo.»

Eu olhei e Ia VI duas taças muito fundas. «Aquelas, acrescentou ele, foram

preparadas para ti se não te emendares e não fizeres penitência pelos teus

crimes abomináveis.»

Comecei então a ter terríveis arrepios. Apercebendo-se do terror em que

estava o meu espírito, o meu companheiro disse-me: «Segue-me para a direita

onde está o vale magnífico do Paraiso.» Avançámos e vi o meu tio Lotário

sentado ao ,l~do de reis gloriosos num grande clarão e sobre uma pedra que

era um topazio de um tamanho extraordinário. Estava coroado com um diadema

precioso e tinha junto de si o filho Luís ornado com uma coroa semelhante.

Ao ver-me aproximar dele, interpelou-me amavelmente e disse-me com

voz ,f~rte: «Carlos, meu sucessor, tu que agora reinas em segurança sobre o

irnpeno dos Romanos, vem até mim; sei que chegaste tendo atravessado um

lugar de ex~iação, onde teu pai que é meu irmão foi posto numa estufa que lhe

estava destinada, Mas a misericórdia de Deus depressa o libertou dessas penas,

assim como nós fomos libertos pelos méritos de S. Pedro e as preces de S.

Remígio a quem Deus confiou um apostolado supremo sobre os reis e toda a

raça dos Francos. Se este santo não tivesse socorrido e ajudado os sobreviventes

da nossa posteridade, a nossa família já teria deixado de reinar e de exercer

()poder imperial. Sabe pois que este poder imperial te será em breve arrancado

das mãos e que em seguida só viverás muito pouco tempo.» Voltando-se então

para mim, Luís disse-me: «O império dos Romanos que possuíste até agora a

título hereditário, deve caber a Luís, o filho da minha filha.» Com estas palavras

pareceu-me que Luís menino estava na nossa frente.

O avô, olhando-o fixamente, disse-me: «Esta criança é semelhante àquela

que o Senhor colocou no meio dos seus discípulos quando disse: "O reino dos

céus pertence a esta criança; digo-vos que os seus anjos contemplam sempre a

face de me" Pai que está nos céus." Quanto a ti, entrega-lhe o poder por esse

.1

.i

144

145



fio do novelo que tens na mão.» Desatando um fio do polegar da mão direita,

dei-lhe, através do dito fio, toda a monarquia imperial. Logo o novelo brilhante

se meteu inteiramente dentro da sua mão como se fosse um sol deslumbrante.

Foi assim que, depois de ter tido esta visão milagrosa, o meu espírito

reentrou no meu corpo, mas eu estava muito fatigado e cheio de terror. Por

fim, saibam todos, quer queiram quer não, que todo o império dos Romanos

voltará para a sua mão conforme a vontade de Deus. Mas eu não tenho

maneira de agir por ele, impedido como estou pela aproximação do momento

em que o Senhor me chamará. Deus que domina os vivos e os mortos levará a

cabo e confirmará esta obra, pois o seu reino eterno e o seu império universal

durarão sem fim pelos séculos dos séculos".

Este texto, que constituirá uma das leituras de Dante, mostra como,

sem qualquer reflexão teórica, existe implicitamente a necessidade de distinguir

no Inferno (onde estão em princípio as grandes personagens desta

visão) um lugar de onde se pode sair. Também os elementos de pormenor

são aqui directivas preciosas. O tema folclórico do novelo brilhante que

serve de fio de Ariadne encontrar-se-á em Gervásio de Tilbury a propósito

de uma história de feitiçaria em Reims, no fim do século XII. OS

temas do quente e do frio, da mitigação das penas, lá estão fortemente

sublinhados. Lá se vê perfilar um dos usos da evocação dos pecados do

além: a chantagem sobre os vivos.

Remato este exame das visões que entre os séculos VII e XI fornecem

alguns elementos ao imaginário do Purgatório com um poema de Egbert

de Liêge, a Fecunda Ratis, composto entre lOlO e 1024, que reconduz à

velha concepção dos dois fogos, o fogo purgatório e o fogo eterno, e à

forma literária antiga. A propósito do fogo purgatório (versos 231-240)

são mencionados os rios de fogo, os pecados leves; e as fontes são João Il,

3, Daniel, VII, 10 e Ezequiel, XXIV, 11. Os versos sobre o fogo eterno

(241 a 248) evocam o lago, o poço e o abismo infernais ".

A Iiturgia: perto e longe do Purgatório

A terceira via a explorar do caminho do Purgatório é a da liturgia. É,

ao mesmo tempo, a mais decepcionante e talvez a mais rica de preparação

para a nova crença. Por um lado, não há nada ou quase nada que faça

alusão à remissão dos pecados depois da morte; mas, por outro lado, a

evolução do fervor posto pelos vivos nas suas preces pelos mortos cria

estruturas de acolhimento em relação ao Purgatório.

Vimos na epigrafia funerária a preocupação dos cristãos com os seus

mortos. Reencontramos esta preocupação na liturgia, mas o que se pede

para os defuntos é, se não o Paraíso logo de seguida, pelo menos a espera

tranquila e a promessa da vida futura. As noções que melhor correspon-

146

dem a estes anseios são as do refrigerium (refrigério) e do seio de Abraão.

A fórmula mais corrente será a do «lugar de refrigério, de luz e de paz».

Em relação à Alta Idade Média, distinguimos três versões de oração

relu morte: a oração do «velho gelasiano» (segundo um sacramentário

dito de Gelásio) ou oração romana, a oração de Alcuíno, que a partir

do século IX será a mais conhecida e que ainda se encontra no pontifical

romano, e a oração galicana que se encontra num sacramentário de São

I)inis do século IX e da qual existem testemunhos até ao século XVI.

Eis a oração de Alcuíno: «Deus por quem tudo vive e por quem os

nONSOS corpos não morrem ao morrerem, mas são transformados em algo

de melhor, rogamos-te em súplicas que ordenes que a alma do teu servo

leja recolhida pelas mãos dos teus santos anjos para ser conduzida ao seio

do leu amigo e patriarca Abraão e para ser ressuscitada no último dia do

.runde julgamento; e tudo o que ele tenha contraído de vicioso pelas

.rlimanhas do diabo, na tua piedade, na tua misericórdia e na tua indul-

.~ncia, apaga-o. Pelos séculos dos sêculos'".»

De um modo geral, duas características limitam o alcance dos textos

litúrgicos para o estudo da formação do Purgatório.

A primeira é a ausência deliberada de qualquer alusão a um castigo ou

11 lima expiação além-túmulo. Quando se fala de alma expurgada (anima

purgata), como no sacramento de Adriano, trata-se da remissão dos peeados.

A oferta eucarística faz com que se espere «a redenção definitiva e

11 salvação eterna da alma». Segundo certos sacramentários, «a oferta

'lIcarística quebra as cadeias do império da morte e conduz a alma à

morada da vida e da luz 37 ». A liturgia é deliberadamente eufémica, optimista.

E significativo que um prefácio do Missel de Bobbio, por exemplo,

retome os próprios termos da prece de Agostinho por sua mãe. Joseph

Ntedika observou judiciosmente que Gregório, o Grande, foi «o primeiro

Il explicar a oração pelos mortos com a doutrina do Purgatório» e foi

seguido por Isidoro de Sevilha, Bede e outros, mas que esta opinião

não teve «qualquer influência sobre os formulários litúrgicos». Esta reia-

Uvaautonomia dos diferentes domínios da história é um tema de reflexão

para o historiador que tem de se resignar a que, em matéria de história,

nem tudo avance ao mesmo ritmo.

A segunda característica é o conservantismo natural, por função, da

liturgia. Por exemplo, a introdução do Memento dos Mortos no cânone da

missa data sem dúvida pelo menos de Gregório, o Grande, mas o conjunto

em que se inseriu não mais se alterou até ao Vaticano 11: «Desde o

começo do século V a parte do nosso cânone romano que vai do Te

lgitur às palavras da Instituição era já substancialmente o que é

hoje 38 .» Se esse Memento dos Mortos é omisso no sacramentário gregoriano

(Hadrianum) enviado por Adriano I a Carlos Magno, isso deve-se

.implesmente ao facto de, em Roma, ele ser sempre omisso nas missas de

147



domingo e nos oficios solenes. Esta invocação, .consider~da u~ ,si.mpl

gesto para com os mortos conhecidos, so era f~lta nas ~lssas diárias,

Aqui tornam-se necessárias duas observaç.o~s. Convidam-nos elas &

recolocar a génese do Purgatório no clima rel~glOs~geral da Alta Id

Média. A primeira é que, como fez notar I?am!en Slcard: percebe-se

certa evolução na época carolíngia. Nos ntual~, «De~s ~ agora volunta

riamente representado como o juiz. Apela-se. a s~a Justiça, quase ~nt

quanto à sua misericórdia». O Julgamento Final e evocado, o monbu

do «deve ser purificado, lavado dos seus pecados e dos s~us e.rros»'. O

sentimento dos pecados do defunto que não aparecia .na, h.turgla ano

exprime-se agora por expressões de temor e por «um .pnn~plo de r;fl~

sobre o além». Mas esse além apenas tem duas direcções possiveis:

Inferno ou o Paraíso. O que a liturgia carolíngia introduz ~ão ,é .um

esperança de Purgatório: é, juntamente com a esperança mais frágil

Paraíso, o medo crescente do Inferno. Já no século VIII o Missel

Bobbio propõe uma oração por um defunto «p,ara que el~ ~scape a~ lug

do castigo, ao fogo da geena, às chamas do Tartaro e atinja a regiao d

vivos». Um outro ritual diz: «Liberta-o, Senhor, dos pnncipes ~as trev

e dos lugares do castigo, de todos os perigos dos infernos e das ciladas d

penas ...» ,. . .,

Segunda observação: durante toda a Alta Idade Media a liturgia

siste na ideia de uma primeira ressurreição e coloca portanto as pr.

pelos mortos num quadro milenarista. Esta id~i~, basead~ n~ Apocalip

de João, XX, 6: «Feliz e santo aquele que participa na primeira ress~rre1

ção!» foi propagada principalment~ por Orígenes e por ~a~to Agostinhe

A maioria dos rituais apresenta a formula: «Que ele participe na pnme

ressurreição» (Habeat partem in prima ressurrectione). .

Damien Sicard baseando-se num estudo de Dom Botte, definiu

os problemas lev~ntados por esta crença nu~a p~imeira ressurrei~

«Esta velha fórmula litúrgica tem um sabor milenarista e leva a suspei

que, nas épocas em que eram utilizados os nossos ~tuais ~a~canos ~

lasianos, não se estava longe de imaginar um lugar lIlte~edlo ~epo~~

morte em relação à primeira ressurreição, onde era desejável e mveja

reinar mil anos com o Cristo ... Mas gostaríamos de que os noss~s text

litúrgicos nos definissem melhor o que entende~ ~?r esse lugar mterm

dio. Tal como os livros de orações romanos pnmttlV~S, designam-D;o

gundo o Evangelho de Lucas, pelas expressões e~ulvalentes de seio

Abraão de Paraíso ou de Reino. Está-se a caminho da «crença n

lugar intermédio de repouso, num paraíso ameno onde,. na doçura .

luz, a alma resgatada de todos os seus pecados, espera ~ dia ~daressurrei

ção. Mas nada nesta concepção deixa en~rever es~a punfi~aç~o, essa pe

devida aos pecados já perdoados que hgamos a actual ideia do Pur

tóri0 39 .»

148

Parece-me que este lugar intermédio de repouso é bem o seio de

Ahraão ou ainda o prado habitado pelas almas vestidas de branco da

JlI.vão de Drythelm de Bede. É também o sabat das almas à espera do

oitavo dia, ou seja, da ressurreição, evocado especialmente por muitos

documentos monásticos'". Mas assim como a noção de Purgatórío exigi-

,. o desaparecimento da categoria agostiniana dos não valde boni, os que

nlu são completamente bons, para apenas conservar a dos não valde mali

ou dos mediocriter boni et mali, os que não são inteiramente maus ou

medianamente bons e maus, também o lugar purgatório reclamará a eliminação

desse lugar de espera quase paradisíaco, e em definitivo o desaparecimento

do seio de Abraão.

A celebração dos mortos: Cluny

A liturgia cristã interessou-se pelos mortos para além do Memento dos

Morlos do cânone da missa e da oração pelos defuntos. Os sacramentárlol

romanos atestam o uso de missas pelos defuntos que, em vez de

.rem celebradas no dia do funeral, sê-lo-ão num dia qualquer, como

••• Itação. Mas sobretudo os obituários nas suas diversas formas são o

meíhor testemunho desta memória dos mortos. Na época carolíngia, em

.rtos mosteiros inscrevia-se nos registos dos vivos e dos mortos quem

devia ser recomendado no cânone da missa. Ocupavam o lugar dos anti-

101 dípticos, placas de cera onde figuravam os nomes dos dadores de

"rertas. São os Livros de Vida (Iibri vitae li. Depois os mortos separim-se

dos vivos. As comunidades monásticas - desde o século VII na

Irlllnda - anotam sobre rolos o nome dos seus mortos, e fazem-nos circular

para informar os mosteiros da comunídade'v. Aparecem a seguir os

"'crológicos, listas de defuntos na margem de um calendário que se lia

IIrlllmente no oficio de prima, quer no coro quer no capítulo; e os obi-

ItMIrios.que não são normalmente destinados à leitura, mas que recordam

01 serviços de aniversários fundados por certos defuntos e as obras de

Misericórdia (distribuição de esmolas a maioria das vezes) que lhes estão

lIaadas. K. Schmid e J. Wollash sublinharam a evolução a que se assistiu,

di época carolíngia (séculos IX-X) para os tempos da reforma gregoriana

(11mdo século XI). Em particular, passou-se das menções globais para as

menções individuais. Os libri memoriales carolíngios contêm de 15 000 a

40 000 nomes. Os necrológicos de Cluny só mencionam entre 50 e 60

numes por dia de calendário. Daqui em diante «a recordação litúrgica

.t' garantida por muito tempo para os mortos individualmente inseriaol».

O tempo da morte individual'f impõe-se a partir de então nos realltos

mortuários. K. Schmid e J. Wollash insistiram também no papel da

149



ordem de Cluny nesta evolução. Como dissera W. Jorden, «existe uma

originalidade cluniacense no cuidado com os mortos"?».

Cluny, com efeito, obedecendo ao carácter elitista destas uniões entre

mortos e vivos que dizem respeito aos grupos dirigentes, estende ao conjunto

dos defuntos, de maneira solene e uma vez por ano, a atenção da

liturgia. De facto, no meio do século XI, provavelmente entre 1024 e 1033,

Cluny institui a celebração dos defuntos no dia 2 de ~ovembro, logoa

seguir à festa de Todos-os-Santos que tem lugar na vespera. O presugío

da ordem entre a cristandade é tal que a «festa dos Mortos» em breve'

celebrada por toda a parte. Este laço suplementar e solene entre os vivos.

os mortos prepara o terreno onde vai nascer o Purgatório. Mas Cluny

preparou o Purgatório de maneira ainda mais precisa. Pouco depois da

morte do abade Odilon (1049), o monge Jotsuald, na vida do santo abade

que escreveu, relata o seguinte facto:

o senhor abade Ricardo contou-me esta visão de que eu já ouvira fal

mas de que não guardei qualquer recordação. Um dia, disse-me ele, um mon

de Rouergue regressava de Jerusalém. Mesmo no meio do mar que se esten

da Sicília a Tessalonica, deparou com um vento muito violento, que empurro

o seu barco para um ilhéu rochoso onde vivia um eremita, servo de De.

Quando o nosso homem viu o mar acalmar-se, conversou com o. ere~

sobre isto e aquilo. O homem de Deus perguntou-lhe qual a sua nacionali

de e ele respondeu .que era da Aqunânia. Então o homem de Deus quis sa

se ele conhecia um mosteiro que tinha o nome de Cluny e o abade desse lu

chamava-se Odilon. Ele respondeu: «Conheci-o e até muito bem, mas gos

de saber porque me fazes essa pergunta.» E o outro: «Vou dizer-to e intimoa

que te recordes do que vais ouvir. Não longe de nós encontram-se luga

que, pela manifesta vontade de Deus, cospem com a maior violência um fo

ardente. As almas dos pecadores ali se purgam em suplícios vários durante

determinado tempo. Uma multidão de demónios está encarregada de renov

incessantemente os seus tormentos: reanimando as penas dia a dia, toman

as dores cada vez mais insuportáveis. Muitas vezes ouvi os lamentos d

homens que se queixam com veemência: a misericórdia de Deus permite,

efeito, que as almas desses condenados sejam libertadas das suas penas pe

preces dos monges e pelas esmolas dadas aos pobres em lugares santos. N

suas lamentações eles dirigem-se, principalmente, à comunidade de Clunye

seu abade. Assim, eu te conjuro por Deus, se tiveres a felicidade de voltar

junto dos teus, a dares a conhecer a essa comunidade tudo o que ouviste

minha boca, e a exortares os monges a multiplicarem as suas preces, as vigi

e as esmolas para o repouso das almas mergulhadas em penas, para que a

haja mais alegria no céu, e o diabo seja vencido e humilhado.»

De regresso ao seu país, o nosso homem transmitiu fielmente a sua m

sagem ao santo padre abade e aos irmãos. Ao ouvi-lo estes, com o cora

transbordante de alegria, deram graças a Deus, juntaram preces a outras

ces, esmolas a outras esmolas e trabalharam obstinadamente para o repo

150

dos defuntos. O santo padre abade propôs a todos os mosteiros que no dia a

seguir à festa de Todos-os-Santos, no primeiro dia das calendas de Novembro,

se celebrasse por toda a parte a memória de todos os fiéis para assegurar o

repouso das suas almas; que fossem celebradas missas com salmos e esmolas

em público e em privado; que fossem distribuídas esmolas sem limite a todos

pobres: assim o inimigo diabólico receberia golpes duríssimos e, padecendo

naquela geena, o cristão acalentaria a esperança da misericórdia divina.

Alguns anos mais tarde o célebre monge e cardeal italiano Pedro Damião

escreveu por sua vez uma vida de Odilon quase inteiramente copiada

da de Jorsuald, através da qual este episódio se celebrizou+". Jacopo da

Varazze dele se fez eco na Lenda Dourada, no século XIII: «S. Pedro Damião

conta que S. Odilon, abade de Cluny, tendo descoberto que junto de

um vulcão na Sicília se ouviam frequentemente gritos e lamentos de demónios

queixando-se de que as almas dos defuntos eram arrancadas das

luas mãos pelas esmolas e as preces, ordenou que nos mosteiros se fizesse,

• seguir à festa de Todos-os-Santos, a celebração dos mortos. O que depois

foi aprovado por toda a Igreja.» Jacopo da Varazze escreveu em

meados do século XIII: ele interpreta, pois, a história em função do Pu r-

altlório que, daía em diante, já existe. Mas quando Jotsuald e Pedro Damião

redigem a Vida de Odilon, o Purgatório está ainda para nascer.

Cluny dá uma indicação essencial; eis um lugar bem definido: uma montanha

que cospe fogo, e está criada uma prática litúrgica fundamental: os

mortos, e especialmente aqueles que têm necessidade de sufrágios, passam

•• ler o seu dia no calendário da Igreja.

151



NOTAS

1 «et quodam purgatorio igne purganda» (PL, 83, 757).

2 JULIÃO DE TOLEDO, Prognosticon, livro 11, PL, 96, 475-498. L'ignis

purgatorius ocupa as colunas 483-486. A importância de Julião de Toledo por ter

aperfeiçoado a doutrina do Purgatório no século XII, especialmente em Pierre Lombard,

foi estudada por N. WICKI, Das «Prognosticon futuri saeculi»; Julians VOII

Toledo ais Quellenwerk der Sentenzen des Petrus Lombardus.

3 Liber de ordine creaturarum. Un anonimo irlandés dei siglo VII. ed. M. C. Diaz y.

Diaz, S. Tiago de Compostela, 1972. Um único reparo: a excelente edição de Diaz y

Diaz tem tendência para apresentar a obra de uma maneira um pouco anacrónica. No

estudo da estrutura, p. 29, é forçar o texto dizer: inflemo (cap. XIII), purgatorio (cap.

XIV) y gloria (cap. XV-XVI). Também a tradução do capítulo XIV cujo título nOI,

manuscritos que o apresentam é de igne purgatorio, «do fogo purgatório», está traduzido

em espanhol por del purgatorio, do purgatório, título duplamente erróneo, prímeiro

porque será preciso esperar cinco séculos para que o Purgatório exista, e depois

porque este tratado é um nítido retrocesso quanto à evolucação geral da doutrina que

conduzirá ao Purgatório.

4 Como observa judiciosamente Diaz y Diaz estes «pecados» têm sobretudo sentido

nos meios monásticos.

5 SÃO COLUMBANO, Instructiones, Instruetio IX. De extremo judicio, PL, 246·

-247. Videte ordinem miseriae humanae vitae de terra, super terram, in ferram, a terra /11

ignem, de igne injudicium, de judicio aut in geliennam, aut in vitam: de terra enim creatus

es, terram calcas, in terram ibis, a terra surges, in igne probaberis, judicium expectabis,

aeternum autem post haee supplicium aut regnum possidebis, qui de ferra creati, paululum

super eam stantes, in eamdem paulo post intraturi, eadem nos iterum, jussu Dei, reddent

ae projiciente, novissime per ignem probabimur, ut quadam arte terram et lutum ignl

dissolvat, et si quid auri aut argenti habuerit , aut eaeterorum terrae uti/ium paracarassi«

mo (paraeaximo) liquefaeto demonstret.

6 PL, 87, col. 618-619.

7 PL, 89, col. 577.

8 PL, 94, col. 30.

9 De fide Sanetae Trinitatis, Ill, PL, 101, 52.

10 Enarrationes in epistolas Pau/i, PL, 112, 35-39.

II Expositio in Mattheum, II, 3, PL, 120, 162-166.

12 De varietate /ibrorum, Ill, 1-8 in PL, 118, 933-936. O comentário de S. Paulo l,

Coríntíos, rn, 1013 encontra-se em PL, 117,525-527.

152

13 Expositio in epistolas Pauli, PL, 134,319-321. A passagem que trata dos pecados

opostos é a seguinte: «attamen sciendum quia si per ligna, fenum et stipulam, ut beatus

Augustinus dicit, mundanae cogitationes, et rerum saecularium cupiditates, apte etiam per

uedem designantur levia, et venalia, et quaedam minuta peccata, sine quibus homo in hac

vila esse non potest. Unde notandum quia, cum dixisset aurum, argentem, lapides pretio-

.IfIS, non intulit ferrum, aes et plumbum, per quae capitalía et criminalia peccata

designantur (col. 321).

14 RATHIER DE VÉRONE, Sermo II, De Quadragesima, PL, 136,701-702. Morlu!

enim nihil omnino faciemus, sed quodfecimus recipiemus. Quod et si aliquis pro nobis

uliquit fecerit boni, et si non proderit nobis, proderit illi. De ilIis vero purgatoriís post obi

um poenis, nemo sibi blandiatur, monemus, quia non sunt statutae criminibus, sed peccatis

Irvioribus, quae utique per ligna, ferum et stipula indesignatur. Sobre este espantoso

personagem e autor, natural mais de Liêge do que de Verona, ver Raterio di Verona,

tonvegni dei Centro di Studi sulIa spiritualità pedievale, X, Todi, 1973.

15 PL, 150, 165-166.

16 Periphyseon, V, PL, 122,977.

17 De praedestinatione, capo XIX, De igni aeterno ... , PL, 122,436.

18 BURCHARD DE WORMS, Decretorum libri XX, 68-74, PL. 140, 1042-1045.

19 Acta synodi Atrebatensis Gerardi I Cameracensis Episcopi, capo IX, PL, 142,

1298-1299.

20 Resumo a visão de Tespésio segundo E. J. BECKER. A contribution to the

romparative study of the Medieval Visions 01 Heaven and Hell, with special Reference

IfI lhe Middle English Versions, Baltimore, 1899, pp. 27-29 e a visão de Timarco segundo

H. R. PATCH, The other World according to descriptions in medieval literature,

ClImbridge, Mass., 1950, pp. 82-83.

21 P. DINZELBACHER, «Die Visionen des Mittelalters» in Zeitschrift lür Reli-

./ons und Geistesgischichte, 30, 1978, pp. 116-18 (resumo de um Habilitation Schrift

IIIMito, Vision und Visionsliteratur im Mittelalter, Estugarda, 1978). Do mesmo autor,

wKlassen und Hierarchien irn Jenseits» in Miseellanea Medievalia, vol. 12/1. Soziale

Urdnungen im Selbsverstãndnis des Mittelalters, Berlim-Nova Iorque, 1979, pp. 20-

040. Claude Carozzi prepara uma tese sobre as «Viagens do Além na Alta Idade Média».

12 Ver Kuno MEYER, edição e tradução em inglês. The voyage of Bran son of

""'/w/ 10 the land of the living ..., 2 vol., Londres, 1895-1897. A obra inclui um estudo

11" Alfred NUTT, The happy other-world in the mythico-romantic literature of lhe Irish.

'1".,. celtie doctrine of re-birth, que mostra as raizes celtas de um eventual purgatório

Mflllradisíaco».

II Cf. MAURER, «Die H61le auf Island» in Zeitschrift des Vereins für Volkskunde,

IV 1894, p. 256 e ss. Ver também H. R. ELLIS, The Road to Hell. A study of the

fI'lIIC'l'ptionof the Dead in Old Norse Literature, Cambridge, 1943. Sobre o «Valhõle»

CVlllhalla)ver G. DUMÉZIL, Les Dieux des Germains, n. ed., 1959, p. 45. Do ponto de

vlltu da cultura popular gerrnânica moderna, cf. H. SIUTS, Jenseitsmotive deutschen

Volhmiirchen, Leipzig, 1911.

14 Carmen ad Flavium Fe/icem de resurrectione mortuorum et de iudicio Domini, ed.

J 11. Waszink, Bona, 1937.

l~ Sobre Bede historiador ver os artigos de P. H. BLAIR, «The Historical writings

til Béde» e de Ch. N. L. BROOKE, «Historical Writing in England between 850 e

11,o» na compilação La Storiografia altomedievale, Spoleto (1969), 1970, pp. 197-

.lll c 224-247. E também J. M. WALLACE-MADRILL, Early Germanic Kingship

//1 ":nJÇ/andand on lhe continent , Oxford, 1971, capo IV, «Bêde», pp. 72-97.

153



--------------_ ..~----------_ -._._ _._._.

26 Historia ecc/esiastica gentis Anglorum, 111, 19. A primeira Vila Fursei, quase

copiada por Bêde, foi publicada por B. KRUSCH em Monumenta Germaniae Historica.

Scriptores rerum merowingicarum, t. IV, 1902, pp. 423-451.

27 «Vallis ilIa quam aspexist! flammis ferventibus et frigoribus horrenda rigidis, ipse

est locus in quo examinandae et castigandae sunt animae illorum, qui differentes confiten

et emendare scelera quae fecerunt, in ipso tandem articulo ad poenitentiam confugiunt, et

sic de corpore exeunt: qui tamen quia confessionem et poenitentiam vel in morte haJJuerunt,

omnes in die iudicii ahd regnum cae/orum perveniunt. MuItos autem preces viventium

et ellemosynae et jejunia et maxime celebratio missarum, ut etiam ante diem judicil

liberentur, adjuvant »

28 A visão de Drythelm será retomada nos séculos Xl e XII por autores importantíssimos:

Alfric nas suas homilias (ed. B. Thorpe, vol. lI, 1846, p. 348 e ss.), Otloh de

Saint-Emmeran no seu Liber Visionum (PL, 146,380 e ss.) e o cisterciense Hélinand de

Froimont na passagem do século XlI para o século XIII (PL, 212, 1059-1060).

29 Visio Guetini in PL" 105, 711-780 e também em Monumenta Germaniae Historica

Poetae latini, t. 11. A versão poética de Walahfrid Strabo foi editada, traduzida 11

comentada num excelente estudo de David A. TRAILL, Walahfrid Strabo's Visto

Wettini: text, translation and commentary, Francfort si Main, 1974.

30 O Salmo CXVIII na numeração da Bíblia grega e da Vulgata (que era a Bíblia de

que se servia na Idade Média) é, segundo a numeração hebraica hoje habitualmente

utilizada, o Salmo CXIX, do qual os editores da Bíblia de Jerusalém dizem: «litanía da

realidade, ardente e incansável... todos os anseios do coração dele se exprimem; Deus,

que fala, que dá a sua lei meditada, amada e guardada, é a fonte da vida, da segurança,

da felicidade verdadeira e total,»

31 B. de GAIFFIER, «La légende de Charlemagne. Le péché de l'empereur et SOB

pardon» in Études critiques d'hagiographie et d'iconoíogie, Bruxelas, 1967, pp. 260-275 .:

32 Ver W. LEVISON, «Die Politik in den Jenseitsvisionen des frühen Mittelalters»,

Aus rheinischer undfrãnkischer Frühzeit, Dusselford, 1948.

Este texto foi incluído por Hariulf, cerca de 110, na sua Chronique de saint Riquier

(ed. F. Lot, Paris, 1901, pp. 144-148); por Guilherme de Malmesbury no século XlI no

seu De Gestis regnum Anglorum (ed. W. Stubbs I, pp. 112-116) e por Vincent de Beauvais

no seu Speculum no século XIII. Encontramo-lo isolado em muitos manuscritos.

Os monges de Saint-Denis atribuíram-no ao seu benfeitor Carlos, o Calvo. É uma daa

numerosas falsificações executadas naquela abadia. A que diz respeito ao pseudo-Dionísio,

convertido por S. Paulo e suposto fundador do mosteiro, foi denunciada no

princípio do século XII por Abelardo, o que contribuiu para os seus dissabores.

33 O imperador Luís lI, o Germânico.

34 A tradução é a de R. LATOUCHE in Textes d'histoire médiévale du V' ou xr

siêcle, Paris, 1951, p. 144 e ss. Sobre Luís, o Cego, consultar R: POUPARDIN, LI

Royaume de Provence sous les Carolingiens, Paris, 1901, Apêndice VI, La Visio /(aroU.

Crassi, pp. 324-332. Na «Vision de Rotcharius» que, tal como a «Vision de Wetti»,

data do começo do século IX (ed. W. Wattenbach in Auzeigen für Kundeder deutschen

Vorzeit, XXII, 1875, col. 72-74) e quando os pecadores são expurgados dos seus pecados

mergulhando-os no fogo até ao peito enquanto Ihes deitam água a ferver sobre •

cabeça, Carlos Magno está entre os eleitos porque as preces dos fiéis o arrancaram ao

castigo.

3S Fecunda Ratis, de EGBERT DE LlEGE, ed. Voigt, Halle, 1889.

36 Cf. D. SICARD, La Liturgie de Ia mort dans I'Église latine des origines à Ia

réforme carolingienne, Liturgiewissenschaftliche Quellen und Forschungen. Verõffen-

154

llichungen des Abt-Herwegen - Instituts der Abtei Maria Laach, vol. 63, Munique,

1978. O texto latino das três orações encontra-se nas páginas 89-91. A oração galicana

tala dos três patriarcas e não apenas de Abraão. Ao «Teu amigo Abraham» são acrescentados

«o eleito Isaac» e «o teu amado Jacob». Também no sacramentário gelasiano

Nãoreferidos nos seios (in sinibus) dos três patriarcas.

37 Ver o excelente estudo de J. NTEDIKA, L'Évocation de l'au-delà dans Ia priêre

pour les morts. Étude de patristique et de liturgie latines (IV'- Vlll" siécle), Lovaina-

-Paris, 1971, principalmente pp. 118-120.

38 São os termos de B. CAPELLE, «L'intercession dans Ia messe romaine» in

Revue bénédictine, 1955, pp. 181-191. Retomados in Travaux liturgiques, tomo 2,

1962, pp. 248-257.

39 D. SICARD, La Liturgie de Ia mort ..., p. 412. Sobre a primeira ressurreição, ver

D. B. BOTTE, «Prima ressurectio. Un vestige de millénarisme dans le liturgies occidentales»

in Recherches de théologie ancienne et médiévale, 15, 1948, pp. 5-17. A noção

durará, apoiada no Apocalipse. Encontramo-Ia, por exemplo, num opúsculo sobre a

confissão de Guy de Southwick do fim do século XII publicado por Dom. A. WIL-

MART in Recherches de Théologie ancienne et médiévale, 7, 1935, p. 343.

40 J. LECLERCQ, «Documents surla mort des moines», in Revue Mabillon, XLV,

1955, p. 167.

41 Cf. N. HUYGHEBAERT, Les documents nécrologiques, in Typologie des Sources

du Moyen Âge occidental, fase, 4, Turnhout, 1972, J.-L. LEMA~TRE, «Les obituaires

français, Perspectives nouvelles», in Revue d'Histoire de l'Eglise de France,

I.XIV, 1978, pp. 69-81. Só restam 7 libri vitae. Um deles, o de Remiremont, foi objecto

de uma edição exemplar de E. HLADWITSCHKA, K. SCHMID e G. TELLEN-

RACH, Liber Memorialis von Remiremont, Dublin e Zurique, 1970. Cf. G. TELLEN-

DACH «Der liber memorialis von Remiremont. Zur kritischen Erforschung und zum

Quellenwert liturgischer Gedenkbücher» in Deutscher Archiv für Erforschung des Mittrlalters,

35, 1969, pp. 64-110.

42 Uma bibliografia sobre os rolos dos mortos encontra-se nos artigos de J. DU-

"OUR, «Le rouleau mortuaire de Bosson, abbé de Suse (c. 1130)) in Journal des

savants, pp. 237-254, e «Les rouleaux et encycliques mortuaires de Catalogne (1008-

·1112)>>in Cahiers de civi/isation médiévale, XX, 1977, pp. 13-48.

43 K. SCHMID e J. WOLLASCH, «Die Gemeinschaft des Lebenden und Verstorbenen

in Zeugnissen des Mittelalters» in Frühmittelaltareliche Studien, I, 1967, pp. 365-

·405.

44 W. JORDEN, Das cluniazensische Totengedâchtniswesen, Munique, 1930. J.-L.

LEMAiTRE, «L'inscription dans les nécrologes clunisiens» in La Mort du Moyen Âge

(colóquio da Sociedade dos historiadores medievistas do ensino superior público,

1975), Estrasburgo, 1977, pp. 153-167.

4S O texto de Jotsuald encontra-se em Patrologie latine, tomo 142, colunas 888-891,

c o de Pedro Damião no tomo 144, colunas 925-944.

155



PARTE 11

O SÉCULO XII: O NASCIMENTO

DO PURGATÓRIO



o SÉCULO DA GRANDE

EXPLOSÃO

O século XII é o século da explosão da cristandade latina. O sistema

das relações sociais modificou-se, após uma lenta maturação. A escravatura

desapareceu definitivamente, o enorme domínio da Antiguidade

tardia e da Alta Idade Média transformou-se profundamente. Instalou-

-IC o sistema senhorial, organizando uma dupla hierarquia, um duplo

domínio. Uma primeira clivagem, fundamental, separa os dominadores,

011 senhores, da massa dos camponeses submetidos ao direito de comando

sobre o território senhorial. Em função deste direito, os senhores

retiram aos camponeses uma parte importante do produto do seu trabalho,

sob a forma de rendas em géneros e, cada vez mais, em dinheiro

(também em prestações de mão-de-obra, mas as corveias começam a

diminuir): é a renda feudal. Dominam a massa dos camponeses (os

aldeões, os que ficam no feudo, os vilões, os homens do antigo domínio.

que são também, moralmente, criaturas desprezíveis) por meio de

tudo um conjunto de direitos dos quais os mais significativos, juntamente

com as cobranças económicas, decorrem do seu poder de justiça. No

interior da classe dominante estabelece-se uma segunda clivagem.

 aristocracia dos possuidores dos principais castelos subjuga a pequenll

e média nobreza dos cavaleiros pelos laços de vassalagem. Em troca

de um conjunto de serviços, sobretudo militares mas também de assisltncia

e de conselho, o senhor concede ao vassalo a sua protecção e

rurnece-Ihe frequentemente meios de subsistência, no geral uma terra,

n [eudo.

O conjunto deste sistema constitui a feudalidade. Sendo juridicamente

bem definida apenas para a camada superior, feudo-cvassálica»; ela só

IxiKtee funciona através das relações que ligam senhores e camponeses,

prlllmente definidas de uma maneira um tanto vaga como costume.

Esta feudalidade é uma das encarnações históricas de um tipo de sis-

"ma mais vasto, o feudalismo, que existiu (ou ainda existe) em diversas

rtlliões do mundo e em épocas diferentes. Este sistema, muito duro para a

159



massa dos dominados, permitiu no entanto no conjunto da sociedade

uma explosão excepcional. Esta manifesta-se, em primeiro lugar, pelo

número de pessoas: entre o começo do século XI e meados do século

XIII, a população da cristandade latina duplica quase completamente.

Manifesta-se também no campo: extensão das superficies, melhores rendimentos

ligados à multiplicação dos processos e aos progressos tecnológicos.

É espectacular, com o desenvolvimento urbano apoiado na

exploração do excedente agrícola, a mão-de-obra artesanal, a renovação

do comércio com a criação de um meio urbano ligado às estruturas feudais

e que nelas introduz um elemento novo parcialmente negador: as

classes médias livres: artesãos, comerciantes, de onde sai a burguesia

com um sistema de novos valores ligados ao trabalho, ao planeamento,

à paz, a uma certa igualdade, um hierarquia horizontal e não vertical

onde os mais poderosos ultrapassam os outros sem os dominar.

Surgem novos sistemas descritivos e normativos da sociedade, oriundos

da velha ideologia tripartida indo-europeia reforçada pela evolução

histórica. O clero está empenhado nas estruturas feudais como parte integrante

do domínio senhorial (os feudos eclesiásticos contam-se entre os

mais poderosos) e passa a ser o garante ideológico do sistema social, mas

escapa a ele pela dimensão religiosa. O seu sentimento de superioridade é

exaltado pela reforma gregoriana segundo a qual os clérigos formam uma

sociedade de celibatários que se furtam à mácula sexual, e estão em contacto

directo com uma sacralidade que administram de acordo com a

nova teoria dos sete sacramentos. A evocação da igualdade dos fiéis e

da superioridade dos valores éticos e religiosos em relação às formas sociais

e laicas também permite ao clero afirmar-se como a primeira ordem,

aquela que ora. Os nobres, cuja função específica é a guerreira num momento

em que o armamento e a arte militar também mudam (armamento

pesado para o homem e para o cavalo, campanhas organizadas à volta da

rede dos castelos fortificados) formam a segunda ordem, aquela que

combate. Enfim, novidade significativa, aparece uma terceira ordem,

aquela que trabalha, quer se trate de uma elite rural cujo papel foi impor-"

tante no arroteamento e conquista do solo, quer da massa laboriosa, rural

e depois também urbana. Reconhece-se aqui o sistema da sociedade tripartida

definida no começo do século XI e que se desenvolve no século

XII: oratores, bellatores, laboratores 1 •

Explosão social, pois, sancionada por um novo sistema de representações.

Mas a explosão do século XII é um movimento de expansão geográfica

e ideológica: é o grande século das Cruzadas. E é também, dentro da

própria cristandade, espiritual e intelectual, com a renovação monástica

de que foram expressão os cartuxos, os agostinianos e sobretudo os eistercienses,

com as escolas urbanas onde nascem simultaneamente uma

nova concepção do saber e novos métodos intelectuais: a escolástica.

160

O Purgatório é um elemento desta expansão no imaginário social, na

geografia do além, na certeza religiosa. Uma peça do sistema. É uma

conquista do século XII.

VOU agora restringir e aprofundar pouco a pouco a minha investigação.

Vou examinar de mais perto, e à medida que ela se constitui, a lógica

do Purgatório. Adoptarei uma forma sistemática segundo duas orientações.

Uma, teológica, seguirá os desenvolvimentos do sistema da redenção

e estará estreitamente ligada ao desenvolvimento das concepções do

pecado e da penitência, e de uma doutrina articulada dos objectivos últimos.

A outra, imaginária, precisará a natureza e as funções do fogo, e

depois construirá o lugar da purgação no além.

A minha pesquisa de geografia e de sociologia culturais, que até agora

procurou abarcar o conjunto das expressões do além em toda a cristandade,

concentrar-se-á, sem desprezar qualquer testemunho importante,

nos lugares e nos meios onde se tomará a decisão, onde nascerá o Purgatório.

Referenciarei e definirei os centros da elaboração teológica e doutrinária

final, e as regiões onde a geografia imaginária do além se firmará

nas realidades geográficas cá de baixo. Por fim, como o fenómeno me

parece exprimir uma grande mutação da sociedade, analisarei a maneira

como o Purgatório acontece, neste parto de uma sociedade nova. Será

esta a tentativa quádrupla da parte central deste livro.

161



NOTAS

IV - O FOGO PURGATÓRIO

1 Ver o grande livro de G. DUBY, Les Trois Ordres ou l'imaginaire du féodalisme,

Paris, 1979 [tradução portuguesa de Editorial Estampa, Lisboa, 1982]. A ideologia

tripartida indo-europeia foi revelada pela obra magistral de Georges Dumézil. _ .

Descrição do estado das questões e dos problemas por J. Le GOFF, «Les trois

fonctions indo-europêennes, I'historien et I'Europe fêodale», in Annales, E.S.C.

1970, pp. 1187-1215.

/62

No início do século XII: aquisições e indecisões

No início do século XII a atitude para com os mortos, tal como podemos

conhecê-Ia através dos documentos emanados do clero, da Igreja,

~ a seguinte: depois do Julgamento Final haverá dois grupos de homens

pura a eternidade: os eleitos e os condenados ao Inferno. A sua sorte será

essencialmente determinada pela sua conduta em vida: a fé e as boas

obras decidirão da salvação, a impiedade e os pecados criminais conduzirão

ao Inferno. Entre a morte e a ressurreição a doutrina não se define

bem. Segundo alguns, depois da morte os defuntos esperam nos túmulos

ou numa região sombria e neutra parecida com o túmulo como o shéo/ do

Antigo Testamento, o Julgamento que decidirá da sua sorte definitiva.

Para outros, mais numerosos, as almas serão recebidas em diversos receptáculos.

Entre estes receptáculos há um que se distingue: é o seio de

Abraão que recolhe as almas dos justos as quais, enquanto esperam pelo

Paraíso propriamente dito, vão para um lugar de refrigério e de paz. Para

" maioria - e esta opinião parece ter a preferência das autoridades ecle-

.iásticas - existe, imediatamente depois da morte, uma decisão definitiva

para duas categorias de defuntos; os que são inteiramente bons, os mártires,

os santos, os justos integrais, que vão logo para o Paraíso e gozam

da presença de Deus, recompensa suprema, a visão beatífica; os que são

Inteiramente maus vão logo para o Inferno. Entre os dois, pode haver

uma ou duas categorias intermédias. Segundo Santo Agostinho, aqueles

que não são inteiramente bons serão sujeitos a uma prova antes de irem

para o Paraíso, e os que não são inteiramente maus irão para o Inferno

mas aí beneficiarão talvez de uma condenação mais tolerável. Segundo a

maioria daqueles que acreditam na existência de uma categoria intermêdia,

esses mortos que aguardam o Paraíso serão submetidos a uma pur-

Illção. Aqui as opiniões divergem. Para uns essa purgação terá lugar no

momento do Julgamento Final. Mas entre os que perfilham esta opinião,

163



as posições são diferentes. Uns acham que todos os mortos - incluindo os

justos, os santos, os mártires, os apóstolos e até mesmo Jesus - serão

sujeitos a essa prova. Para os justos será uma formalidade sem consequências;

para os ímpios será a condenação; para os q~ase perfe~tos,

uma purgação. Outros pensam que apenas aqueles que nao forem Imediatamente

para o Paraíso ou para o Inferno sofrerão este exame.

Em que consistirá essa purgação? A imensa maioria calcula que será

uma espécie de fogo - baseando-se sobretudo na primeira epístola de

Paulo aos Coríntios (lJI, 10-15). Mas alguns pensam que os instrumentos

dessa purgação são diversificados e falam de «penas purgatórias» (poenae

purgatoriae). Quem merecerá submeter-se a este exame que, por muito

penoso que seja, é uma garantia de salvação? A partir de Agostinho e

de Gregório, o Grande, sabe-se que só os mortos que apenas têm a expiar

pecados leves ou que antes de morrer se arrependeram sem terem

tido tempo de fazer penitência na terra e que, de qualquer modo, tiveram

uma vida bastante digna e suficientemente marcada por boas obras, merecerão

essa «repescagem». Quando terá lugar essa purgação? Segundo

Agostinho pensava-se, de um modo geral, que ela terá lugar entre a morte

e a ressurreição. Mas o tempo de purgação podia ultrapassar esse tempo

intermédio a montante ou a jusante. Para o próprio Agostinho, as

provações suportadas cá em baixo, as penas terrenas, podiam ser o começo

da purgação. Para outros esta purgação continuava a fixar-se no

momento do Julgamento Final e, neste caso, calculava-se em geral que o

«dia» do julgamento duraria um certo tempo para permitir que a purgação

fosse algo mais do que uma formalidade.

Onde aconteceria essa purgação? Quanto a isto estava-se no vácuo,

mais ainda do que na diversidade de opiniões. A maioria nada precisava

a este respeito. Alguns supunham que havia um receptáculo das almas

para esse efeito; Gregório, o Grande, nas suas historietas sugerira que.

a purgação se fazia nos locais do pecado. Os autores de viagens imaginárias

pelo além não sabiam bem onde situar o local onde se sofria esse fogo

purgatório. A sua localização era empurrada, se assim se pode dizer,

entre a concepção de uma parte superior do Inferno, mas no entanto

subterrânea, materializada por um vale, e a ideia - lançada por Bede -

de uma montanha.

Em suma, a maior indecisão reina sobre o caso desta categoria intermédia,

e se a noção do fogo - bem distinto do fogo eterno da geena - 6

largamente aceite, a localização desse fogo tem sido silenciada ou evocada

de maneira muito vaga. Dos Pais da Igreja aos últimos representantes da

Igreja carolíngia o problema do além é essencialmente o da escolha entre

a salvação que conduzirá ao Paraíso e a condenação que levará ao Inferno.

Em definitivo, a crença que mais se enraizou entre os séculos IV e XI •

que criou o terreno mais favorável ao aparecimento do Purgatório, foi a

164

prática das orações e, mais ainda, dos sufrágios pelos mortos. O conjunto

dos fiéis encontra nela com que satisfazer ao mesmo tempo a sua solidariedade

para com os parentes e os próximos além da morte e a esperança

de, por sua vez, beneficiar depois da morte dessa mesma assistência.

Agostinho, fino psicólogo e pastor atento, bem o disse em De Cura pro

mortuis gerenda. Esta fé e estas práticas que exigem a intervenção da

Igreja no sacrificio eucarístico designadamente - e com a qual ela beneficia,

entre outras coisas, através das esmolas - asseguram-lhe um melhor

domínio sobre os vivos pelo desvio do seu suposto poder a favor dos

mortos.

Como em muitos outros campos, o século XII vai acelerar as coisas; o

Purgatório como lugar só nascerá no fim. Enquanto se espera, é o fogo

purgatório o atiçado.

Aqui pode ser necessária uma observação prévia.

A utilização de um conjunto de textos do século XII é coisa delicada.

A explosão geral desta época patenteia-se na produção escrita. Os textos

multiplicam-se. Desde o século XVI e sobretudo nos séculos XIX e XX, os

eruditos esforçaram-se por editar o maior número deles possível. Muitos

continuam inéditos. A esta proliferação vieram acrescentar-se traços característicos

do período. Para assegurar o êxito de uma obra, muitos

clérigos dessa época não hesitam em lhe atribuir um autor ilustre ou conhecido.

A literatura do século XII está inundada de apócrifos. Em muitos

casos, os problemas de atribuição e de autenticidade não foram

solucionados. A escolástica incipiente multiplicou, ainda por cima, tex-

1011 bem difíceis de atribuir a um autor, seé que esta palavra tem aqui

Illgum sentido: quaestiones, determinationes, reportationes, muitas vezes

oriundas de notas tomadas por um aluno num curso de um mestre.

Com frequência, o escriba misturou palavras autênticas do mestre com

•• suas próprias formulações ou as de outros autores contemporâneos.

Bnfim, é raro possuirmos o original. Os manuscritos de que dispomos

foram escritos numa época posterior, entre os séculos XIII e XV. Num

certo número de casos, os escribas substituíram, inconscientemente ou

pensando agir bem (pois na Idade Média o que inspira os homens é a

husca da verdade eterna e não da verdade histórica), determinada palavrn

do texto original por uma outra ou por uma expressão do seu tempo".

N40 foi possível neste estudo eliminar algumas incertezas que têm a ver

110m o facto de a ciência da Idade Média estar ainda hoje inacabada, mas

sobretudo e em definitivo, com a literatura religiosa do século XII, cuja

múltipla expansão continua a ser difícil de apreender nas malhas da ciênol.

actual (justamente) obcecada com a identificação de autores e de da-

'Ições concisas. A convergência das minhas pesquisas e das minhas

In.lises parece-me conclusiva: antes de 1170, no mínimo, não existe Purplorio.

165



Mas os textos multiplicam-se, o interesse pelo que se passa entre a

morte e o Julgamento Final manifesta-se cada vez mais, a desordem

das exposições é também testemunho de pesquisa, a preocupação com

a localização é cada vez mais visível.

Um testemunho das hesitações: Honorius Augustodunensis

Um bom testemunho é o do misterioso Honorius Augustodunensis,

provavelmente um irlandês que passou a maior parte da sua vida religiosa

em Ratisbonne. Decerto Honorius, de quem M. Cappuyns disse que

foi sem dúvida o único discípulo medieval de João Scoto Erigeno, tem

ideias originais sobre o além. Para ele, os lugares do além não existem

materialmente. São «lugares espirituais». O termo «espiritual» é ambíguo,

pode ocultar uma certa corporalidade ou designar uma realidade

puramente simbólica, metafórica. Honorius hesitou entre duas tendências.

Na Scala coeli major, onde parece inclinar-se para o sentido completamente

imaterial, tempera no entanto esta opinião com uma teoria de

sete infernos (dos quais o mundo terreno é o segundo), mais ou menos

materiais ou imateriais", O que me interessa em Honorius são dois elementos

da sua obra. O primeiro é precisamente a sua viva critica à visão

espacial da vida espiritual. Em Scala coeli major, interpreta como puramente

metafórica a localização dos infernos debaixo da terra - inter-relacionando

a inferioridade, o peso e a tristeza. E conclui: «todos os

lugares têm um comprimento, uma largura e uma altura, mas a alma,

como é desprovida de todos estes atributos, não pode ser encerrada em

lugar algum!». Ideia esta que reaparece no seu Liber de cognitione verae

vitae: «Mas parece-me o cúmulo do absurdo fechar em lugares corpóreos

as almas e os espíritos, uma vez que eles são incorpóreos, sobretudo pelo

facto de todo o lugar poder ser medido em altura, comprimento e largura,

enquanto o espírito, é bem sabido, é desprovido de todos estes

atributos?». Pode supor-se que, se um pensamento como o de Honorius

tivesse triunfado, o Purgatório, essencialmente ligado à sua localização,

não teria nascido, ou teria permanecido uma crença secundária e atrofiada.

Mas paradoxalmente, numa outra obra, um tratado das principais

verdades cristãs sumariamente expostas, uma espécie de catecismo, o Elucidarium,

Honorius fala do fogo purgatório e essa passagem ocupa um

lugar importante no processo da gestação do Purgatório. No terceiro

livro do Elucidarium, que é um diálogo, Honorius responde a perguntas

sobre a vida futura. Num interrogatório sobre o Paraíso, ele precisa que

não se trata de um lugar corporal mas da morada espiritual dos bem-

-aventurados situada no céu intelectual onde podem contemplar Deus

166

cara a cara. Então é para lá, perguntam-lhe, que são conduzidas as almas

dos justos? E para lá que são conduzidas, ao abandonarem os corpos, as

almas dos perfeitos, responde ele. E esses perfeitos, o que são? pergunta-

-se. Aqueles que não se contentaram com fazer durante a vida o que está

prescrito, mas fizeram ainda mais: os mártires, os monges, as virgens, por

exemplo. Os justos estão noutras moradas. E os justos, quem são? Aqueles

que simplesmente cumpriram de bom grado o que está prescrito. A

seguir à morte a sua alma é levada pelos anjos para o paraíso terrestre,

ou antes para um júbilo espiritual, pois os espíritos não habitam lugares

corporais. Existe ainda outra categoria de justos que se chamam imperfeitos,

mas que estão inscritos no livro de Deus, como por exemplo os

esposos que, por causa dos seus méritos, são acolhidos em habitáculos

muito agradáveis. Muitos deles, graças às preces dos santos e às esmolas

dos vivos antes do Dia do Julgamento, são admitidos numa glória maior;

após o Julgamento, todos irão reunir-se aos anjos. Existem também entre

(lS eleitos defuntos que estão longe da perfeição e que não chegaram a

fazer penitência pelos seus pecados; estes, tal como o filho culpado que

é entregue ao escravo para ser chicoteado, são entregues aos demónios,

com permissão dos anjos, para serem expurgados. Mas os demónios não

podem atormentá-los mais do que eles merecem ou do que os anjos permitem.

O problema que se segue diz respeito aos meios de libertação desses

imperfeitos. O mestre, quer dizer Honorius, responde que eles consistem

nas missas, nas esmolas e nas orações e outras obras piedosas sobretudo

Me,em vida, eles as praticaram em intenção de outros. São libertos dessas

penas uns no sétimo dia, outros no nono, outros passado um ano e outros

Ilinda mais tarde. Honorius explica então - segundo uma misteriosa aritmética

simbólica - a razão da duração destes periodos.

Fazem-lhe por fim a pergunta que de mais perto toca o nosso estudo:

o DISCÍPULO: O que é o fogo purgatório?

O MESTRE: Alguns sofrem a purgação nesta vida: ou por dores fisicas

que os males lhes provocam, ou provações fisicas que impõem a si mesmos por

meio de jejuns, de vigílias ou outras; ou é a perda de pessoas queridas ou de

bens a que estão apegados, ou dores e doenças, ou privações de alimento ou de

vestuário, ou, enfim, a crueldade da sua morte. Mas depois desta, a purgação

torna a forma quer do calor excessivo do fogo quer do grande rigor do frio,

quer de toda a espécie de provações, sendo a mais leve superior à maior que se

possa imaginar nesta vida. Enquanto estão nisto, aparecem-Ihes de vez em

quando os anjos ou os santos que eles honraram por alguma acção em vida,

e estes trazem-lhes ar ou um perfume suave ou outra forma de alívio,

até que, libertos, eles entrem nessa corte que não acolhe qualquer mácula.

O DISCÍPULO: Sob que forma vivem eles lá?

167



o MESTRE: Sob a forma dos corpos que tiveram aqui em baixo. E diz-se

que os demónios lhes dão corpos feitos de ar para que neles sintam os seus

tormentos.

Após algumas explicações pouco esclarecedoras sobre a relação entre

o corpo e a alma, Honorius fala do Inferno, ou antes, dos infernos, pois

segundo ele existem dois. O inferno superior é a parte inferior do mundo

terrestre que está cheia de penas: um calor insuportável, muito frio, a

fome, a sede, dores diversas, quer corporais, como as que provêm de

contusões, quer espirituais, como as que decorrem do medo ou da vergonha.

O inferno inferior é um lugar espiritual onde há um fogo inextinguível

e onde se sofrem nove espécies de penas especiais: um fogo que

queima e não alumia e um frio insuportável, vermes imortais, especialmente

serpentes e dragões, um cheiro horrível, ruídos inquietantes como

martelos batendo em ferro, trevas espessas, uma mistura confusa de todos

os pecadores, a visão horrível dos demónios e dos dragões visíveis por

entre as cintilações do fogo, o clamor lastimoso dos choros e dos insultos

e por fim anéis de fogo apertando os corpos dos condenados '.

Este texto limita-se a retomar as ideias agostinianas, incluindo o começo

da purgação ainda na terra, somente com um pouco mais de insistência

no carácter metafórico de um além sobre o qual também

Agostinho se interrogara por vezes se ele não seria mais simbólico do

que material. E no entanto Honorius, alimentado sem dúvida por leituras

e descrições visionárias, deixa passar uma imaginação que contradiz

as suas ideias. Mais ainda do que o realismo destas evocações, parece-me

que é o papel atribuído aos anjos e aos demónios, mais «medieval» do que

agostiniano na linha de Gregório, o Grande, que constitui a eficácia deste

texto na pré-história do Purgatório.

o fogo: no meio monástico

Até ao meio do século XII, e quase sempre a propósito do comentário

à primeira epístola de Paulo aos Coríntios, a reflexão sobre a purgação

dos pecados limita-se a uma evocação tradicional do fogo purgatório.

Temos primeiro Bruno de Chartreux (que morreu em 1101) que alguns

consideram um dos pais da escolástica, ao lado do grande Anselmo de

Canterbury (que morreu em 1109). É o primeiro a ter uma escola propriamente

dita e a propor um comentário escolar que conhecerá numerosas

alterações, precisamente um Comentário sobre As Epístolas de S. Paulo.

Alguns atribuem esta obra a um autor próximo de Bruno, geralmente a

Roul de Laona (que morreu em 1136), irmão de Anselmo e o mais conhecido

dos representantes da escola de Laona, a mais brilhante escola

168

teológica do início do século XII. No comentário à primeira epístola de

Paulo aos Coríntios diz-se, na linha do pensamento agostiniano, que

uqueles que amaram o mundo mas sem o preferir a Deus serão salvos,

mas depois de terem sido punidos pelo fogo. Aqueles cuja obra foi de

madeira serão punidos durante muito tempo pois a madeira arde lentamente;

aqueles cuja obra foi de feno, que o fogo consome depressa, escaparão

mais depressa à provação ígnea; por fim, aqueles cuja obra foi de

palha que o fogo consome ainda mais depressa, passarão mais rapidamente

através do fogo".

Nascido em Tournai cerca de 1187, Guerric, atraído por S. Bernardo,

entrou em Clairvaux por volta de 1125 e em 1138 tornou-se o segundo

abade da abadia cisterciense de Igny, fundada em 1128 por S. Bernardo

entre Reims e Soissons, e lá morreu «cheio de dias», quer dizer muito

idoso, em 1158. Dele se conservaram 54 sermões" destinados aos mon-

Iles. No quarto e quinto sermões, onde trata da purificação da Virgem

Maria, fala também do fogo purgatório. Guerric, que parece ter sofrido

11 influência de Orígenes, pensa que a purificação deve começar cá em

baixo, e tem tendência para identificar o fogo purgatório do além com

li fogo do julgamento. Declara, por exemplo, no quarto sermão para a

purificação:

«Pois é mais seguro, meus irmãos, e é mais suave ser-se purgado pela

fonte do que pelo fogo! Decerto, aqueles que não foram purgados pela

fonte deverão sê-lo pelo fogo, se merecerem ser purgados, no dia em que

11 juiz em pessoa, tal como um fogo pronto a fundir, estará ocupado a

fundir e a depurar a prata e purgará os filhos de Levi (Malaquias, III,

2·3)... O que afirmo sem hesitação é que se o fogo que o Senhor Jesus

enviou à terra vier a arder em nós com o ardor desejado por aquele que o

enviou, o fogo purgatório que purgará, quando do julgamento, os filhos

de: Levi não encontrará em nós nem madeira, nem feno, nem palha para

consumir. É certo que cada um deles é fogo purgatório, mas de maneira

bem diferente. Um purifica pela sua unção, o outro pela sua queimadura.

Aqui um orvalho refrescante; ali um sopro vingador (spiritus judicii), um

sopro que queima ...» E ainda: «E se essa caridade não é suficientemente

perfeita para cobrir tantos e tais pecados, esse fundidor que purga os

IlIhos de Levi emprega então o seu fogo: todo o que resta de fuligem é

consumido pelo fogo da atribulaçâo presente ou futura, para que possam

tlnalmente cantar: "Passámos pela água e pelo fogo e tu conduziste-nos

.0 refrigério" (Salmo LXV, 12). Assim se passa neste mundo: primeiro

baptizado pela água do dilúvio, purgado a seguir no fogo do julgamento,

ele passará a um novo estado, incorruptivel.»

O tema, com toques agostinianos, reaparece no quinto sermão para a

purificação: «Desgraçados de nós se esses dias (cá em baixo) terminarem

sem a purgação estar terminada, e se a seguir tivermos de ser purgados

169



por esse fogo mais cruel (poenalius), mais vivo e mais violento do que

podemos imaginar nesta vida! E quem, ao sair desta vida, é suficientemente

perfeito e suficientemente santo para nada dever a esse fogo? .. É

verdade que existem poucos eleitos, mas entre esses poucos existem mesmo

poucos, penso eu, suficientemente perfeitos para terem realizado a

purgação de que fala o sábio: "Purga-te da tua negligência para com o

pequeno número"» (Eclesiastes, VII, 34).

Na linha de Agostinho, Guerric não atribui muitas pessoas ao futuro

purgatório.

As Deflorationes sanetorum Patrum, a Anthologie des Péres, de Wemer

lI, abade de Saint-Blaise falecido em 1174, muito influenciadas por Hugo

de Saint-Victor", fazem alusão ao fogo purgatório num sermão sobre a

queda de Adão: «Também depois da morte, diz-se, há um fogo purgatório

(ignis quidam purgatorius) onde são purgados e lavados aqueles que

começaram a sê-Ia cá em baixo e não terminaram ... É duro sofrer essas

torturas, mesmo se forem num pequeno grau. Assim, mais vale começar e-

acabar cá em baixo o que devemos fazer. Mas se não se consegue acabá-

-Ia, desde que se tenha começado não se deve desesperar pois «tu serás '

salvo mas como através do fogo» (primeira epístola de Paulo aos Coríntios,

lU, 10-15). O que tens em ti de criminoso arderá até ser consumido.

Mas tu serás salvo, pois o amor de Deus ficou em ti como alicerce".»

Entre os teólogos urbanos

Vou falar de novo da escola desse teólogo original que foi Gilberto

Porreta, dito Gilbert de Ia Porrée, bispo de Poitiers, falecido em 1154 que,

como o seu contemporâneo Abelardo, teve contas a ajustar com a Igreja.

O seu comentário sobre S. Paulo é inédito, mas um fragmento do comentário

sobre a primeira epístola aos Corintios que interpreta, sem lhe ser

sempre fiel, o texto de Gilbert, e que data mais ou menos de 1150, retoma

também a ideia de uma purgação aqui em baixo a ser terminada depois

da morte, «pelo fogo». Precisa que esse fogo purgatório deve preceder o

Julgamento Final lO •

Também se fala no fogo purgatório na célebre abadia dos cónegos

regulares de Saint- Victor, às portas de Paris, na base do monte Sainte-

-Geneviêve. Além do grande Hugo de Saint- Victor, cuja obra é uma das

mais importantes para a prefiguração do Purgatório em vésperas do seu

aparecimento, temos também, por exemplo, o testemunho de Achard,

abade de Saint-Victor entre 1115 e 1161, bispo de Avranches desde

1161 até à morte em 1170 ou 1I71, no seu segundo sermão para a festa

da consagração da Igreja. Ao tratar o simbolismo do martelo e do escopro

de que se servem para construir a igreja, diz ele que se pode interpre-

170

tar o primeiro como o «terror do fogo eterno» e o segundo como «terror

I

" ,. 11

{O lOgO purgatono» .

Na literatura

vernácula

Percebe-se que as interrogações sobre a sorte dos defuntos depois da

morte e os problemas do fogo purgatório ultrapassam os limites do meio

eclesiástico. Não só são discutidos nas escolas abertas nas periferias urbanas,

não só se fala deles nas prédicas monásticas, mas também se difunde

o seu conhecimento nos sermões dos quais apenas temos, salvo

raras excepções, a versão escrita em latim e que eram pronunciados em

linguagem vulgar quando os padres se dirigiam aos laicos'f. E precisamente

a dois desses textos em francês antigo que irei buscar dois testemunhos

da «popularidade» do fogo purgatório no século XII.

O primeiro não é senão a tradução dos Diálogos de Gregório, o Grande.

em francês: Li Dialoge Gregoire 10 Pape, escrito no dialecto da região

de Liêge. Nos capítulos XL e XLI principalmente do livro IV de que falei

1II rás encontram-se as expressões lifous purgatoires ou /0 fou purgatoire (o

fogo purgatório), (10) fou de Ia tribulation (o fogo da atribulação), (10)

I/lU de Ia purgation (o fogo da purgação). A questão posta por Pedro no

lim do capítulo XL é: Ge voldroie ke l'om moi enseniast, se li fous purgatoires

aprês Ia mort doit estre crue estre (queria que me ensinassem se o

fogo purgatório depois da morte deve ser acreditado, quer dizer se se deve

acreditar que o fogo purgatório depois da morte existe).

O título do capítulo XLI em que Gregório responde, é: se li fous pur-

Ilfl/oires est aprês Ia mort (se o fogo purgatório existe depois da morte)\3.

Numa versão em verso onde aparece a palavra purgatório (purgação,

purgatório) recorda-se a opinião de Gregório segundo a qual não havia

«lugar determinado» para a purgação mas todas as almas eram purgadas

depois da morte nos locais onde havia pecado em vida:

Par ces countes de seint Gregorie

DeU houme entendre qi purgatorie

N'est pas en une lieu determinez

Ou les almes seint touz peinez.

(Por estas palavras de S. Gregório deve entender-se que a purgação não é

um lugar determinado onde todas as almas sofrem as suas penas em

conjunto 14.)

O outro texto é a tradução para francês do começo do século XIII -

mas reproduzindo o original do século XII - da História dos cruzados na

Terra Santa (Histoire des croisés en Terre sainte - Historia rerum in par-

171



tibus transmarinis gestarum) escrita por Guilherme de Tiro, falecido entre

1180 e 1184. No capítulo XVI do livro descreve-se como o povo humilde

que partiu para a cruzada (Comment li menuz peuples se croisa pour aler

outremer): «Tant avoit de pecheours el monde qui avoient eslongnie Ia grace

de Nostre Seigneur, que bien covenoit que Dex leur mostrat un adrepoer par

ou il alassent en paradis, et leur donast un travail qui fust aussiut comme

feus purgatoires devant Ia mort.» Quer dizer: «Havia tantos pecadores no

mundo que tinham afastado (de si) a graça de Nosso Senhor, que era

conveniente que Deus lhes mostrasse um caminho recto para irem para

o Paraíso e lhes desse uma provação que fosse como fogo purgatório

antes da morte.» Este texto faz lembrar a ideia de cruzada como penitência,

diferente do espírito inicial da cruzada como expedição escatológica.

Faz também alusão ao conceito de purgação dos pecados sobre a terra,

antes da morte e não depois. Trata-se de «curto-circuitar» um eventual

«purgatórios depois da morte quando se merece ir directamente para o

Paraíso. Além do mais, está-se no caminho da evolução que levará a um

sentido puramente metafórico do «purgatório na terra», como se verá no

século xm".

Quatro grandes teólogos e o fogo: esboço de um tratado dos tempos

derradeiros

Desejaria deter-me em quatro grandes clérigos de meados do século

XII, cuja obra representa ao mesmo tempo o resultado de uma longa

tradição e o ponto de partida para novos desenvolvimentos - e isto também

é verdadeiro para o Purgatório.

Um cónego parisiense: Hugo de Saint-Victor

o primeiro é um cónego parisiense, Hugo de Saint-Victor, falecido em

1141; o segundo é um monge italiano, sábio canonista em Bolonha onde

cOI?pila, cerca de 1140, uma recolha de textos de direito eclesiástico e que

tera o seu nome, o Decreto de Graciano, que inaugurará o Corpus de

direito canónico medieval. O terceiro é um cisterciense já célebre no seu

tempo, Bernardo de Clairvaux, S. Bernardo, falecido em 1153. O quarto é

um italiano que veio a ser bispo de Paris, Pedro Lombardo falecido em

1159-1160, cujas Máximas serão no século XIII o grande manual universitário.

É a época em que, segundo Jean Longêre, «se organiza um primeiro

esboço do De novissimis» (quer dizer, de um sistema dos tempos derradeiros)

com Hugo de Saint-Victor e Pedro Lombardo. Reagrupam-se as

172

observações ou exposições sobre o fim do mundo, a ressurreição dos

corpos, o Julgamento Final, o destino eterno dos homens. Tem-se naturalmente

a tendência para ligar a estes o que se passa no além entre a

morte individual e os derradeiros dias.

Hugo de Saint-Victor foi talvez o primeiro a ministrar um curso de

teologia sistemática não directamente relacionado com uma lectio da Escritura,

quer dizer, com o comentário sobre as Escrituras'".

Duas passagens da sua obra são mais especialmente consagradas ao

fogo purgatório. A primeira é uma pergunta «sobre o fogo purgatório

dos justos» que tem corno ponto de partida a primeira epístola de Paulo

aos Coríntios. O fogo purgatório, diz Hugo, destina-se àqueles que serão

salvos, aos eleitos. Mesmo os santos, aqueles que constroem com ouro,

prata e pedras preciosas, terão de passar através do fogo mas sem prejuízos,

antes pelo contrário. Sairão dele confortados, como a argila que ao

passar pelo fogo dele recebe uma grande solidez. Pode dizer-se que para

eles«a passagem pelo fogo é uma parte de ressurreição». Alguns, segundo

Hugo, pretendem que esse fogo é um lugar de punição (quemdam poenalem

/ocum) onde as almas daqueles que construíram com madeira, feno

ou palha são entregues à morte para acabarem a penitência que começaram

cá em baixo. Cumprida a penitência, vão para um lugar de repouso

onde aguardam o dia do Julgamento em que passarão sem dano através

do fogo, tanto mais que esse fogo não se chama purgatório em relação

I&OS homens, mas no que toca ao céu e à terra que serão purgados e renovados

por um dilúvio de fogo como foram pela água do primeiro dilúvio.

Mas Hugo é contrário a esta opinião e pensa que o fogo do

Julgamento Final durará o tempo necessário à purgação dos eleitos. Ou-

Iros pensam que o fogo purgatório é a atribulação terrena. Quanto ao

fogo do Julgamento, os ímpios não o atravessarão, antes serão arrastados

com ele para o abismo (infernal)!".

Na sua grande obra, a Súmula sobre Os Sacramentos da Fé Cristã

(Summa de sacramentis christianae fidei), O primeiro grande tratado destil

teologia dos sacramentos elaborada no século XII (trata-se de um contexto

que não deve ser esquecido para o nascimento do Purgatório, como

IC verá a propósito da penitência), Hugo aborda os problemas do além. A

••trutura do De Sacramentis é histórica, no sentido de uma história da

salvação. A primeira parte vai «do começo do mundo até à Encarnaçâo

do Verbo». A segunda estende-se da Encarnação do Verbo até ao fim e

consumação de tudo. É no capítulo XVI desta segunda parte que Hugo

fllla das penas purgatórias ao tratar «os moribundos ou o fim do homem».

Este capítulo situa-se entre um capítulo sobre «a confissão, a penitência

e a remissão dos pecados» e um capítulo muito curto sobre a

.xtrema-unção por um lado, e por outro lado os dois últimos capítulos

do tratado, o que se refere ao fim do mundo e o que trata «o século que

173



há-de vir». É pois no interior de uma história individual e colectiva da

salvação, em estreita ligação com a confissão e a penitência, que surge o

desenvolvimento sobre as penas purgatórias. No capítulo IV da parte

XVI do segundo livro, Hugo examina os «lugares das penas» (loca poenarum),

depois de ter precisado que as almas, após abandonarem os corpos,

podem muito bem sofrer penas corporais. «Assim como, diz ele,

Deus preparou penas corporais para os pecadores que devem ser atormentados,

também separou lugares corporais para essas penas corporais.

O Inferno é o lugar dos tormentos, o Céu é o lugar das alegrias. É

justo que o lugar dos tormentos seja em baixo e o lugar das alegrias no

alto, pois a culpa pesa e leva para baixo enquanto a justiça eleva para o

alto.» Hugo acrescenta que este lugar inferior, o Inferno, se situa por

baixo da terra, mas que não há certezas a esse respeito. No Inferno,

diz-se, reina um fogo inextinguível. Em compensação, aqueles que saem

desta vida purgados vão imediatamente para o Céu.

Hugo aborda então a pena purgatória. «Enfim, há um outro castigo

depois da morte que se chama pena purgatória. Aqueles que deixam esta

vida com alguns pecados, embora sejam justos e destinados à vida eterna,

são ali torturados durante algum tempo, a fim de ficarem purgados. O

lugar onde se sofre esta pena não é determinado, se bem que numerosas

aparições de almas sujeitas a esta pena façam pensar que ela é sofrida cá

em baixo, provavelmente nos locais onde se pecou, como provaram muitos

testemunhos. Se estas penas são aplicadas noutros locais, é dificil de

saber.»

Hugo de Saint-Victor interroga-se ainda se, por um lado, os maus

inferiores em maldade, aos ímpios e aos grandes criminosos, não esperarão

em lugares de punição antes de serem enviados para os grandes tormentos

da geena e se, por outro lado, os bons que no entanto estão

sobrecarregados com algumas culpas não esperarão em determinadas

moradas antes de serem promovidos às alegrias do Céu. Hugo calcula

que os bons perfeitos (boni perfecti) vão sem dúvida imediatamente para

o Céu e que os muito maus (va/de mali) descem imeditamente aos infernos.

Para os bons imperfeitos (boni imperfecti) é certo que no intervalo

(entre a morte e o Julgamento) sofrem certas penas antes de conhecerem

as alegrias que hão-de vir. Quanto aos maus imperfeitos ou menos maus

(imperfecti sive minus mali) não há certezas quanto ao lugar onde poderão

estar enquanto esperam pela descida aos tormentos eternos no dia da

ressurreição.

Existem por fim penas purgatórias neste mundo para os aflitos que

não se tomam piores com as provações mas sim melhores, e que delas

tiram proveito para se corrigirem. Quanto aos sufrágios pelos mortos,

Hugo supõe, citando Gregório, o Grande, que se as faltas cometidas

por um defunto não são indissolúveis e se ele mereceu pela sua vida justa

174

ser ajudado depois da morte, o sacrificio eucarístico pode ser de grande

ujuda 18.

No fundo, Hugo de Saint-Victor não faz avançar o problema em

relação a Agostinho e a Gregório, o Grande, e insiste como eles na

realidade dos espectros. Mas testemunha a forte tendência da sua época

para encontrar um lugar ou lugares (locus ou local) para a pena purgatória.

Apesar de expressar a sua ignorância ou o seu cepticismo sobre a

existência de tais lugares, e de escolher, como Gregório, o Grande, a

solução que não vingará, a de uma purgação nos lugares terrenos onde

Me pecou, Hugo interroga-se e reconhece que outros optaram pela existência

de determinados lugares purgatórios no além, entre a morte e o

Julgamento.

lJm cisterciense:

São Bernardo

O problema da purgação dos pecados no além segundo S. Bernardo

"urge-me de maneira diferente do que se supunha, pois estou convencido

e julgo que este estudo provará o bem-fundado da minha convicção -

que o texto principal que lhe era atribuído sobre este assunto não é dele, e

c sensivelmente posterior (pelo menos em vinte anos) à sua morte ocorrida

em 1153 19 •

São Bernardo expõe com muita clareza a sua posição, em dois sermões:

existem lugares de purgação dos homens (loca purgatoria) no

nlém.

Num sermão para o dia de Santo André sobre a tripla espécie de bens,

de declara: «E a justo título que se diz que aquelas almas que sofrem nos

lugares purgatórios (in locis purgatoriis) vão de cá para lá, atravessando

lugares tenebrosos e lamacentos, visto que nesta vida não receavam ha-

IlIliu esses lugares em pensamento.» E ainda: «Confirmamos não só compudecer-nos

dos mortos e rezar por eles mas também felicitá-los em

esperança; pois se devemos afligir-nos com as suas dores nos lugares pur-

IIlIlórios (in locis purgatoriis) devemos ainda mais alegrar-nos pela aproximação

do momento em que Deus enxugará todas as lágrimas dos olhos

deles; morte, não haverá mais; prantos, gritos c penas, não haverá mais,

porque o antigo mundo desapareceu» (Apocalipse, XXI, 4)20.

Noutro sermão pronunciado nas cerimónias fúnebres de Humberto,

monge de Clairvaux, em 1148, menos de cinco anos antes da sua morte e

onde ele não emprega a palavra purgatório que ainda não existia e que ele

Iltllorou, São Bernardo previne: «Sabei, com efeito, que depois desta vida,

11 que se deixou de pagar aqui em baixo terá de ser pago por cem vezes

II1l1is,até ao último tostão (Mateus, V, 26), nos lugares de purgação (in

pU1?abilibuslocis /1.»

175



Num terceiro sermão, para o Advento, São Bernardo fornece precisões

algo complicadas sobre «o triplo inferno». Compreendo esse texto

assim: «o primeiro inferno é obrigatório (obligatorius ) porque nele nos é

exigido até ao último tostão, e assim a pena não tem fim. O segundo é

purgatório. O terceiro é remissivo, pois, sendo voluntário (volontarius),

muitas vezes a pena e a culpa (et poena et culpa) lá são ambas remidas.

No segundo (o purgatório), ainda que a pena nele seja por vezes remida, a

culpa nunca o é, mas é purgada. Bem-aventurado inferno, o da pobreza,

onde o Cristo nasceu, onde foi criado e onde viveu, enquanto esteve encarnado!

A esse inferno ele não desceu só uma vez para de lá arrancar os

seus, mas também «se entregou a fim de nos arrancar a este mundo presente

e mau (Epístola aos Gálatas I, 4), para nos afastar da massa dOI.

condenados e nos reunir à espera de nos tirar de lá. Neste inferno há

meninas novas, quer dizer, esboços de almas, adolescentes com timbales

precedidas de anjos que tocam címbalos e seguidas de outros que tocam

os címbalos do júbilo. Em dois infernos são os homens que são atormentados,

mas neste são os demónios. Vão para lugares sem água e áridos,

procurando repouso, mas não o encontram. Giram à volta dos espíritos

dos fiéis mas são escorraçados por pensamentos santos e por orações. Po

isso gritam com razão: «Jesus, porque vieste atormentar-nos antes do

tempo?» (Mateus, VIII, 29)22.

Parece-me que São Bernardo distingue um inferno (inferior), a gee

propriamente dita, um inferno (intermédio) onde tem lugar a purgação

um (inferno) superior sobre a terra, equivalente aos futuros limbos e a

tradicional seio de Abraão onde as almas inocentes já estão em paz, enquanto

os demónios que esperam uma trégua até ao Julgamento Final já

são atormentados.

Há pois em São Bernardo a busca de uma espacializacão do além e •

afirmação da existência quer de um inferno purgatório quer de lugare

purgatórios (loca purgatoria ou purgabilia), mas esse espaço não é nomea

do e a geografia do além continua muito vaga.

Um monge canonista: Graciano de Bolonha

o caso do Decreto de Graciano (cerca de 1140) é especial. Esta recolh

de textos não apresentaria qualquer originalidade se a sua coordenação,

escolha dos textos e o seu ajustamento em tratado articulado não cons .

tuíssem de facto uma importante novidade. A importância que o direi

canónico vai assumir no fim do século XII e no século XIII impõe

qualquer modo que se examine esta peça mestra que inaugura o Corp

de direito canónico da Idade Média, e que se faça pelo menos uma so

dagem tendo como objectívo esse centro intelectual tão activo no sécul

176

XII: Bolonha, transformada em capital dos estudos jurídicos e onde se

desenvolve a primeira corpo ração universitária da Idade Média.

Na perspectiva que nos interessa, são importantes dois capítulos do

Decreto de Graciano. São os capítulos XXII e XXIII da questão 11 da

causa XIII da segunda parte ". O primeiro é constituído pela leitura da

(ou) de uma carta do Papa Gregório 11 a Bonifácio, o apóstolo germânico

(cerca de 732) que já apontei. Retoma ela a lista dos sufrágios estabelecida

entre Agostinho e Gregório, o Grande: «As almas dos defuntos são libertas

de quatro maneiras: pelos sacrifícios dos padres (as missas), pelas preces

dos santos, pelas esmolas dos entes queridos e pelo jejum dos parentes.»

Incluído no Decreto, este texto tem muito peso, legitima a acção dos

vivos a favor dos mortos, evoca o primado do sacrificio eucarístico, sublinha

a necessidade de passar pelo intermediário da Igreja (os padres),

ulimenta o culto dos santos, fomenta a circulação dos bens (ou a sua

drenagem a favor da Igreja) através da esmola, valoriza o papel dos próximos

- famílias e amigos, carnais ou espirituais.

O capítulo XXIII reproduz, sob o título «Antes do dia do Julgamento

08 mortos são ajudados pelos sacrificios (= as missas) e pelas esmolas»,

os capítulos CIX e CX (à excepção de uma única passagem sem signifieado

para o nosso caso) do Enchiridion de Santo Agostinho. Recordo

aqui esse texto essencial:

No intervalo que decorre entre a morte do homem e a ressurreição suprema,

as almas são mantidas em depósitos secretos, onde conhecem quer o

repouso quer a pena de que são dignas, conforme o destino que talharam

para si mesmas enquanto viviam na carne.

Não se pode portanto negar que as almas dos defuntos sejam socorridas

pelas preces dos seus próximos ainda vivos, quando em intenção delas é oferecido

o sacrificio do Mediador ou são distribuídas esmolas na Igreja. Mas

estas obras servem unicamente àqueles que, enquanto vivos, mereceram que

elas pudessem ajudá-Ios mais tarde.

Com efeito, existem homens cuja vida não é suficientemente boa para não

terem necessidade desses sufrágios póstumos, nem suficientemente má para

que eles não possam servir-Ihes. Pelo contrário, há aqueles que viveram suficientemente

bem para poder dispensá-los e outros suficientemente mal para

não poder tirar deles beneficio depois da morte. Assim, é sempre cá em baixo

que se adquirem os méritos que podem assegurar a cada um, depois desta

vida, conforto ou infortúnio. Quando os sacrificios do altar ou da esmola

são oferecidos em intenção de todos os defuntos baptizados, para aqueles

que foram inteiramente bons, eles são acções de graças; para aqueles que

não foram inteiramente maus, são meios de propiciação; para aqueles cuja

maldade foi total, já que não ajudam os mortos, servem para confortar os

vivos. Aquilo que eles asseguram àqueles que deles tiram proveito é ou a

urnnistia completa ou, pelo menos, uma forma mais suportável de condenação.

177



Neste texto, como podemos ver, existem dois elementos importantes

que põem obstáculos ao nascimento do Purgatório. O primeiro é que, se

Agostinho fala de lugares para as almas entre a morte e a ressurreição,

esses tais lugares são uma espécie de buracos, de esconderijos, os receptáculos

(receptacula), e não um espaço autêntico e, além do mais, são

escondidos (abdita), o que é interpretado em sentido material e espiritual.

No sentido material escapam à investigação, são dificeis se não impossíveis

de encontrar e, no sentido espiritual, representam um mistério

que é talvez - é a opinião de alguns - lícito, se não sacrílego, pretender

penetrar. Estes conceitos constituem pois um obstáculo no caminho da

geografia do Purgatório.

O segundo ponto é a referência às quatro categorias de defuntos segundo

Agostinho: os totalmente bons (valde boni), os totalmente maus

(valde mali), os não totalmente maus (non valde mali) e, implicitamente,

os não totalmente bons (non valde boni), Ora o Purgatório ou será destinado

a esta última categoria que o sistema de Agostinho implica mas que

não é explicitamente mencionada neste texto, ou então - e sobretudo - ele

exigirá a fusão numa só categoria das duas categorias dos que não são

totalmente maus e dos que não são totalmente bons.

Assim este texto, que constituirá uma das bases do Purgatório, será

ainda durante algum tempo um seu retardador. Este «bloqueio autoritário»

é sem dúvida uma das razões do papel insignificante do direito canónico

no nascimento do Purgatório.

Um mestre secular parisiense: o bispo Pedro Lombardo

Sobre o problema do Purgatório como sobre muitos outros, o pensamento

de Pedro Lombardo, mestre parisiense de origem italiana que veio

a ser bispo de Paris em 1159 e morreu pouco depois, em 1160, é aquele

que, em meados do século, apresenta de maneira mais nítida uma vertente

virada para o passado e uma vertente virada para o futuro. Nos seus

Quatro Livros de Máximas compostos entre 1155 e 1157, Lombardo resume

com vivacidade, clareza e espírito sintético as opiniões dos que o

precederam, desde os Pais aos teólogos e canonistas Abelardo, Gilbert

de Ia Porrée, Graciano, etc. Mas, por outro lado, a obra deste pensador

sem grande originalidade vai tornar-se «clássica para os séculos seguintes».

J. de Ghellinck disse também que as Máximas de Pedro Lombardo

foram «o centro de perspectiva» do movimento teológico do século XII.

O essencial das suas opiniões sobre a purgação dos pecados no além

encontra-se em dois sítios diferentes da sua obra, os destaques XXI e

XLV do Livro IV das Máximas.

178

O destaque XXI insere-se numa exposição sobre os sacramentos. Depois

do baptismo, da confirmação e da eucaristia, vem um longo desenvolvimento

sobre a penitência que termina com um capítulo sobre a

penitência final e a diferenciação dos «pecados que são remidos depois

desta vidro>.Depois, mesmo no fim da obra, o destaque XLV sobre «os

diferentes receptáculos das almas» ocorre no desenrolar dos tempos derradeiros:

entre a ressurreição e o Julgamento Final. É quase paradoxal

que estes textos, cujo comentário constituirá o essencial da doutrina

dos grandes escolásticos do século XIII, não formem um conjunto coerente.

O futuro Purgatório está divido entre a penitência e a morte individual

por um lado e os novissima por outro. O Purgatório irá precisamente

ocupar, temporal e espacialmente, o intervalo. Lombardo como que sublinhou

pela negativa a localização do futuro Purgatório.

No destaque XXI, Pedro Lombardo interroga-se se certos pecados são

remidos depois da morte. Baseando-se em Mateus, XII, 32 e na primeira

epístola de Paulo aos Corintios, III, 10-15, e depois de ter recordado a

opinião hesitante de Agostinho sobre a interpretação do texto de Paulo

(Cidade de Deus, XXI, XXVI), dá o seu parecer que é claro. A passagem

de S. Paulo «insinua abertamente que aqueles que constroem com madeira,

feno e palha levam consigo edifícios combustíveis, quer dizer pecados

veniais, que deverão ser consumidos no fogo purgatório». Há uma hierarquia

entre a madeira, o feno e a palha; segundo a importância dos

pecados veniais que representam, as almas dos mortos serão purgadas e

libertadas com maior ou menor rapidez. Sem nada trazer de novo, Lombardo

clarifica as coisas: existência de uma purgação de certos pecados

entre a morte e o julgamento, identificação dos pecados purgáveis com os

pecados veniais, duração mais ou menos longa das penas purgatórias

(fogo).

O destaque XLV é ainda mais importante. Trata dos receptáculos das

almas e dos sufrágios pelos defuntos. Para os receptáculos, contenta-se

com citações de textos de Agostinho, principalmente do Enchiridion, sobre

os receptáculos escondidos. No que respeita aos sufrágios, retoma

também as opiniões de Agostinho. As missas e as esmolas da Igreja são

úteis aos defuntos mas estes precisam de ter merecido pela sua vida e as

luas obras a eficácia destes sufrágios. Retoma as três categorias agostinianas

dos inteiramente bons (valde boni), dos não inteiramente maus

[non valde mali), e dos inteiramente maus (valde mali ) para quem os

.ufrágios da Igreja correspondem respectivamente a acpões de graças, a

propiciacões e a simples consolações para os parentes vivos. Mas Lombardo

acrescenta e relaciona duas categorias provenientes da classificação

allostiniana: os medianamente bons (mediocriter boni) para quem os su-

[rágios levam à absolvição plena da pena, e os medianamente maus

(mediocriter mali) para quem eles levam a uma mitigação da pena. E,

179



pegando em dois casos, Pedro Lombardo escolhe exemplos de «medianamente

bons» (capítulos IV e V do destaque XLV). Enfim, para os inteiramente

maus Lombardo, tal como sugerira Agostinho, pensa que

Deus pode, apesar de tudo, distinguir entre eles graus de malvadez e,

embora mantendo-os no Inferno por toda a eternidade, pode também

mitigar um pouco a sua pena/". Lombardo operou um movimento significativo:

os não inteiramente maus foram separados dos inteiramente

maus e sem se misturarem com os não inteiramente bons, próximos deles.

Esboça, se assim se pode dizer, um reagrupamento ao centro cujo

alcance em breve se verá.

Testemunhos

menores

Outras obras, algumas mesmo para além do período entre 1170 e

1200, onde a palavra purgatório - e portanto o lugar - nasceu, manifestam

sem o mencionar, o esforço do pensamento religioso na segunda

metade do século XII, para atribuir à purgação depois da morte um local,

e individualizar espacialmente o processo de purgação no além. Eis

alguns exemplos.

Robert Pullus (ou Pullney), cardeal em 1134 e chanceler da Igreja

romana em 1145, falecido cerca de 1146, no Livro IV das suas

Máximas interroga-se, também ele, sobre a geografia do além. Depois

de ter afirmado que o Inferno é um lugar (infemus ... locus est), pensa

onde terão lugar as penas purgatórias. Os antigos iam expurgar-se

durante um tempo aos infernos, depois iam para o seio de Abraão,

«quer dizer para uma região superior onde reinava a tranquilidade»,

Na nossa época, isto é depois da vinda de Cristo, os defuntos, nos quais

ainda existe algo para queimar, são julgados depois da morte por penas

purgatórias (purgatoriis poenis ) e a seguir vão para junto de Cristo, ou

seja, para o Paraíso. Essas penas consistem especialmente num fogo, O

fogo purgatório (ignis purgatorius), cuja violência é o ponto intermédio

entre as atribulações terrenas e os tormentos infernais (inter nostras til

inferorum poenas medias). Mas aqui, a perplexidade de Robert Pullus •

grande:

«Mas essa correcção, onde é feita? Será no Céu? Será no Inferno? Mas

o Céu não parece convir às atribulações, nem a tortura à correcção, sobretudo

na nossa época. Pois se o Céu não convém senão aos bons, não.

convirá o Inferno apenas aos maus? E se o Céu exclui todo o mal, como'

que o Inferno pode acolher qualquer bem? Assim como Deus destinou O

Céu apenas aos perfeitos, também a geena parece reservada apenas ao,

ímpios, a fim de que esta seja a prisão dos culpados e aquele o reino dai

180

almas. Então onde estão aqueles que devem fazer penitência depois da

morte? - Nos lugares purgatórios. Onde são esses lugares? - Ainda não

llei 25 . Quanto tempo ficam eles nesses lugares? Até à satisfação (a expiação

das suas culpas).»

Robert Pullus imagina em seguida que, no nosso tempo, as almas

expurgadas deixam os lugares purgatórios, que são exteriores ao Inferno,

para irem para o Céu, assim como os antigos expurgados deixavam

os seus lugares ~urgatórios que eram no Inferno para irem refrescar-se no

!leiode Abraão 6. E termina com o significado da descida do Cristo aos

lnfernos/".

Exposição notável que procura estabelecer uma coerência neste sistema

geográfico e que introduz uma dimensão histórica e analógica na

escatologia. Exposição obcecada pela preocupação de localizar, introdulindo

o tema: Ubi sunt? Mas onde são ...? e que tem como resultado a

comprovação da ignorância respeitosa do segredo que rodeia esses lugares

misteriosos. Mas que destaca e valoriza a expressão in purgatoriis,

subeatendendo-se locis: nos (lugares subentendidos) purgatórios. BastarA

passar do plural para o singular e do adjectivo para o substantivo para

que o Purgatório apareça.

O italiano Hugo Ehterien (Hugo de Pisa), no seu livro Sobre a

Álma Saída do Corpo (Liber de anima corpore exuta), pouco depois de

1150, não vai tão longe. Cita Gregório, o Grande e a história do bispo

Felix que encontra um espectro nas termas, mas não tira dela conclusões

para a localização da purgação. Numa passagem que lembra muito

Hugo de Saint-Victor evoca o Julgamento Final e o rio de fogo - comparável

com a enchente do dilúvio - que irá submergir a terra e o céu e

também os homens, dos quais os maus serão consumidos e os bons

stravessarâo o fogo da purgação sem danos. Testemunho de um pensamento

arcaico onde vemos também, a propósito dos sufrágios, Hugo

corroborar a ajuda que a oferta da hóstia consagrada traz aos que

dormem'".

Robert de Melun, falecido em 1167, sucessor de Abelardo na escola de

a.inte-Genevieve em Paris, nas suas Questões sobre As Epístolas de

~. Paulo elaboradas entre 1145 e 1155, lembra simplesmente, de acordo

GOmAgostinho, que as penas purgatórias serão mais terríveis do que qualquer

pena deste mundo e sublinha que essas;enas purgatórias acontecerio

no futuro, quer dizer depois desta vida 2 •

Pedro de Celle, em compensação, está bem próximo do Purgatório.

Abade de Saint-Pierre de Celle, perto de Troyes, depois de São Remígio

de Reims e por fim, segundo João de Salisbury, bispo de Chartres onde

morreu em 1182, compôs em 1179 um tratado sobre a vida monástica,

 Escola do Claustro (De disciplina c/australiJ onde põe a questão dos

locaisde habitação da alma depois da morte. «O alma separada do corpo,

181



onde moras tu? É no Céu? É no Paraíso? É no fogo purgatório?

É no Inferno? Se é no Céu estás na bem-aventurança com os anjos. Se

é no Paraíso estás em segurança, longe das misérias de cá de baixo. Se é

no fogo purgatório estás atormentada com penas, mas todavia esperas a

libertação. Se é no Inferno, tendo perdido toda a esperança, esperas não a

misericórdia mas a verdade e a severidade '?». Vê-se, neste texto, a evolução

que rapidamente vai conduzir à invenção do Purgatório. O fogo

purgatório é encarado como um lugar, à semelhança do Céu, do Paraíso

e do Inferno.

Mas a expressão in purgatoriis: nos purgatórios (subentendendo

lugares) reaparece muito frequentemente no fim do século ou talvez até

mesmo no início do século seguinte para testemunhar desta busca da

localização que não consegue encontrar a forma e a palavra justa.

Num curioso diálogo de entre 1180 e 1195, o Conflito He/vético sobre o

Limbo dos Pais (Conflictus Helveticus de Iimbo Patrum), uma troca decartas

entre Burchard de Saint-Johann, primeiro abade do mosteiro beneditino

de St. Johann im Thurtale e Hugo, abade do mosteiro (igualmente

beneditino) de Todos-os-Santos em Schaffouse, os dois

adversários discutem o destino das almas antes da descida do Cristo

aos infernos. Burchard sustenta que muitas almas foram para o Céu mesmo

antes da descida do Cristo aos infernos, conforme testemunha a alusão

do Novo Testamento ao seio de Abraão (Lucas, XVI, 22) identificado

com a paz (Sabedoria, IH, 3), o repouso (Agostinho) e o repouso secreto do

Pai (Gregôrio, o Grande). Hugo, apoiado pela maioria dos que tomam

parte na discussão, afirma que nenhuma alma pôde ir para o seio de

Abraão ou para o Paraíso antes da descida de Cristo aos infernos, por

causa do pecado original.

No decurso do diálogo Burchard dá urna boa definição do Purgatório,

ainda designado pelo plural in purgatoriis: «Há três espécies de Igrejas;

uma milita na terra, outra aguarda a recompensa no(s) purgatório(s),

outra triunfa com os anjos nos céUS 31 .» Evocação notável, face ao inferno

esquecido, de uma tripla igreja onde a igreja dos expurgados, definida

como a igreja da espera, está situada entre a terra e o céu. Texto que

apresenta um duplo testemunho: o dos progressos do Purgatório e da

sua concepção espacial, e também a existênca no momento decisivo de

uma concepção diferente da que triunfou, mas que também poderia ter

triunfado: um Purgatório possível, menos infernal. Concepção próxima

da de Raoul Ardent, autor ainda pouco conhecido no século XII e cuja

cronologia é incerta, que nas suas Homilias, sem dúvida do fim do século,

fala assim das almas que estão no(s) purgatório(s): «Se elas são castigadas

durante um tempo limitado no(s) purgatório(s), no entanto descansam jAl

numa esperança segura de repouso ".» Concepção que reencontraremos

do Purgatório como esperança.

182

~]aborações parisienses

Concluamos com dois eminentes mestres e chanceleres parisienses.

Nos Cinco Livros de Máximas escritos antes de 1170, Pedro de Poitiers

(falecido em 1205) discute uma questão: «Se alguém argumentar assim: de

estes dois, um é culpado ao mesmo tempo de um pecado mortal e de um

pecado venial, e o outro apenas de um pecado venial igual ao pecado

venial do primeiro; e os dois serão punidos por penas desiguais, porque

uquele sê-lo-á para sempre e este somente no(s) purgatório(s) (in purgatoriis),

e qualquer pena purgatória (pena purgatoria) será inferior a qualquer

pena eterna e este não merece ser mais punido por este pecado venial

do que aquele pelo outro: assim, agir-se-á injustamente com este. É falso.

Estes dois que são culpados de um pecado venial igual merecem ser punidos

igualmente por esses pecados, mas um será punido nesta vida e o

outro no fogo purgatório (in igne purgatorio) e qualquer pena aqui em

baixo é inferior a qualquer pena do fogo purgatório (ignis purgatorii);

portanto agir-se-á injustamente para com ele 33 .»

Análise notável que, em vésperas do aparecimento do Purgatório,

reúne todo o vocabulário sobre o domínio purgatório, sublinha a ligação

entre purgatório e pecado venial, emprega a expressão «espacializante» in

purgatoriis e manifesta aquela preocupação, já então quase maniaca, da

contabilidade da penitência e da purgação, que irá caracterizar a prática

do Purgatório no século XIII.

Num sermão sem data para o dia de finados, Prévostin de Cremona,

tumbém ele chanceler de Paris falecido em 1210, usa igualmente a expres-

Não in purgatoriis: «Visto que alguns são lavados no(s) purgatório(s), devemos

então ocupar-nos deles que são mais indignos hoje, rezando por

eles, fazendo oferendas e dando esmolas ".» Eis fixado o laço entre a

comemoração do 2 de Novembro, instituída no século anterior por

('Iuny, e o Purgatório nascente, a cadeia litúrgica à volta do Purgatório,

entre os vivos e os mortos.

183



NOTAS

I Ver o Apêndice II sobre purgatorium.

2 Ver o artigo de Claude CAROZZI, «Structure et Fonction de Ia Vision de Tnugdai»

no volume colectivo Faire croire, a aparecer brevemente nas publicações da Escola

francesa de Roma. Parece-me que Claude Carozzi exagerou a importância de uma

eventual querela entre «materialistas» e «imaterialistas» no século XII e antecipou a

existência do Purgatório, mas o seu texto é muito estimulante. Se, como crê Claude

Carozzi, houve no século XII uma tendência (por exemplo, em Honorius Augustodunensis)

para ver nas coisas do além apenas spiritualia, fenómenos espirituais, essa

tendência não teve qualquer influência sobre a génese do Purgatório, ainda vaga

mas que ela poderia ter bloqueado. Quando Honorius Augustodunensis é levado,

no Elucidarium, a evocar os lugares onde se encontram as almas do outro mundo,

tem de conceder-Ihes uma certa materialidade, como se verá. O debate sobre o carácter

real ou metafórico do fogo que constituía o castigo mais frequentemente indicado

para a purgação dos pecados não durou muito para além dos primeiros séculos do

cristianismo. A ideia de que as almas não tinham corpo e não podiam, por consequência,

encontrar-se em qualquer lugar material, professada por João Scoto Erigeno no

século IX, não teve maior eco do que a maioria das doutrinas deste pensador isolado.

Ver M. CAPPUYNS, Jean Scot Érigêne. Sa vie, son oeuvre, sa pensée, Lovaina-Paris,

1933. Na primeira metade do século XIII, Alexandre de Halês exprimirá a opinião

geral dos teólogos que consagra a convicção comum: «O pecado não é remido sem

uma dupla pena: a remissão não tem valor se não houver nenhuma pena da parte do

corpo» (Non ergo dimittitur peccatum sine duplici poena; non ergo valet relaxati cum

nu/la sit poena ex parte corporis, Glossa in IV Libros Sententiarum, IV, dist. XX). O

essencial é sem dúvida darmo-nos conta de que «espiritual» não quer dizer «desencamado».

3 PL, 172, 1237-1238. Claude Carozzi tem sem dúvida razões para desconfiar desta

edição.

4 PL, 40, 1029.

5 Ver Y. LEFEVRE, L'Elucidarium et les Lucidaires, Paris, 1954.

6 PL, 153, 139.

7 Os Sermões de Guerric d'lgny foram publicados (tomo I) por J. Morson e H.

Costello, com uma tradução de P. DeseilJe, nas Fontes cristãs (Sources chrétinnes, vol.

166, 1970). Dou essa tradução, substituindo simplesmente, conforme meu hábito, purificar,

purificação, purificador, por purgar, purgação, purgatório. onde aparece no

184

texto purgare, purgatio, purgatorius. Com efeito, Guerric emprega também purificare,

Mas devemos reconhecer que os dois termos são para ele quase sinónimos. Aliás,

u Escritura convida a isso. O tema do IV Sermão é o versículo de Lucas, 11, 22: Postiquam

impleti sunt dies purgationis eius (Mariae). Os dois sermões de que extraí os

trechos que cito encontram-se no tomo I das Fontes cristãs (vol. 166), pp. 356-385.

Sobre Guerric d'lgny e o «purgatório» ver D. De WILDE, De beato Guerrico abbate

lgniacensi ejusque doctrina deformatione Christi in nobis, Westmalle, 1935, pp. 117-118.

8 Ver mais adiante, p. 193 e ss.

9 PL, 157, 1035-1036. Ver P. GLORIEUX, «Les Deflorationes de Wemer de Saint-

-Blaise» in Mélanges Joseph de Ghellinck, 11, Gembloux, 1951, pp. 699-721.

IO Editado por A. M. LANDGRAF, Commentarius Porretanus in primam episto-

Iam ad Corinthios (Estudos e Testes, 177), Cidade do Vaticano, 1945.

11 ACHARD DE SAINT-VICTOR, Sermons, Ed. J. Châtillon, Paris, 1970, p. 156.

12 Ver J. LONGERE, Oeuvres oratoires de maitres parisiens au XI!' siêcle, Paris,

1975.Indicações com interesse sobre o mundo do além, t. I, pp. 190-191 e t. lI, 144-145

se bem que «o aparecimento do Purgatório não tenha sido mencionado. Sobre os

começos da literatura das homilias em língua francesa ver M. ZINK, La Prédication

en langue romalle avant 1300, Paris, 1976.

13 Li Dialogue Gregoire 10 Pape, «Os diálogos do Papa Gregório» traduzidos para

francês do século XII e acompanhados do texto latino ..., ed. W. Foerster, Halle, Paris,

1876. Notar-se-ão as expressões ofogo purgatório, o fogo da purgacão. Recordo que foi

assim que traduzi sistematicamente os textos anteriores, sempre que apareceu o substantivo

purgatorium e afastando a palavra purificapâo que não tem exactamente o

mesmo sentido. Vou assim ao encontro do vocabulário da Idade Média, mas não

foi por coquetismo arcaizante que empreguei estas expressões, mas por preocupação

de exactidão. • .

14 Citado por Ch.-V. LANGLOIS, La vie en France au Moyen Age, 1. IV, Pans,

1928, p. 114.

15 Recuei! des historiens des croisades, 1/1, 1884, p. 44.

16 Sobre Hugo de Saint-Victor ver R. BARON, Science et sagesse chez Hugues de

Sant-Victor, Paris, 1957, e a bibliografia da edição francesa, revista e completada por

A.-M. Landry e P. Boglioni da Introduction à I'histoire de Ia littérature théologique de Ia

scolastique naissante, de A.-M. LANDGRAF, Montreal-Paris, 1973, pp. 93~.97.Ver

lambém tbid., pp. 43-44, do ponto de vista da doutrina da salvação, H. KOSTER,

Die Heilslehre des Hugo von St. Victor, Grundlage und Grundzüge, Emsdetten, 1940.

17 O. LOTTIN, «Questions inédites de Hugues Saint-Victor» in Recherches de

théologie ancienne et médiévale, 1960, pp. 59-60.

18 PL, 176, 586-596. A passagem citada literalmente em tradução encontra-se na

coluna 586 CD.

19 Ver o Apêndice lI: Purgatorium.

Deixo provisoriamente de lado um texto importante mas que nada acrescenta à

posição de S. Bemardo. Em compensação, como ele expõe a opinião de hereges hostis

li purgação após a morte, falarei desse texto a propósito da relação entre heresia e

Pur~atório.

oS. BERNARDO, sermão XVI, De diversis: in Opera, ed. J. Lec1ercq e H. Rochais,

t. VIII, pp. 144 e 147.

21 O sermão in obitu Domni Humberti, monachi Clarae-Vallensis encontra-se na

edição Lec1ercq-Rochais, t. V, p. 447.

22 Opera, ed, Leclercq-Rochais, t. VIII, pp. 11-12.

185



23 Decretum Magistri Gratiani, ed. A. Friedberg, Leipzig, 1879, t. I, col. 728.

24 Ibid., p. 1006 e ss.

25 «Ergo ubi sunt poenitentes post mortem? in purgatoriis. Ubi sunt ea? nondum seio.»

26 «Unde peracta purgatione poenitentes, tam nostri, ex purgatoriis (quae extra

infernum ) ad coe/os, quam veteres ex purgatoriis (quae in inferno) ad sinum Abrahae

refrigerandi, jugiter conscendere videntur »

27 Este texto encontra em PL, 186, col. 823-830, os textos citados nas colunas 826 e

827.

28 PL, 202 col. 201-202 e 224-226.

29 R. M. MARTIN, Oeuvres de Robert de Me/un, t. Il, Questiones (theologia) de

Epistolis Pau/i, Lovaina, 1938, pp. 174 e 308.

30 PIERRE DE CELLE, L'École du c1oitre, ed. G. Martel (Fontes cristãs, 240),

1977, pp. 268-269. Na tradução substituí fogo do purgatório por fogo purgatório de

acordo com o texto latino, in igne purgatorio.

31 Conflictus Helveticus De Limbo Patrum, ed. F. Stegmüller in Mélanges Joseph de

Ghellinck, 11, Gembloux, 1951, pp. 723-724. A frase citada está na página 737.

32 Homiliae de tempore, I, 43, PL, 155, 1484. Em vez de lugares (loca) pode subentender-se

penas (poenae). Como a expressão loca purgatoria existe também na mesma

época, prefiro interpretar assim in purgatoriis que, de qualquer modo, exprime uma

vontade de localização.

33 PL, 21I, 1064.

34«Quia vero sunt quidam qui in purgatoriis poliantur, ideo de eis tanquam de indignioribus

hodierna die agimus, pro eis orantes, oblationes et elemosinas facientes» (ver

J. LONGERE, Oeuvres oratoires de maitres parisiens ao XIr siêcle, t. Il, Paris,

1975, pp. 144, n. 16).

v - «LOCUS PURGATORIUS»:

UM LUGAR PARA A PURGAÇÃO

No meio do século XII o fogo tinha tendência não só para evocar um

lugar mas também para encarnar espacialmente a fase de purgação

por que passavam certos defuntos. Era todavia insuficiente para i~dividualizar

um espaço definido do além. E aqui tenho de levar comigo o

leitor sem no entanto o fatigar com pormenores a mais, a participar

num; pesquisa técnica necessária em virtude da concentraç~o da ~v:stigação

sobre certos lugares e meios de elaboração da doutnna cnsta no

século XII.

Tendo o substantivo purgatorium (o purgatório) chegado ao momento

em que vai aparecer o Purgatório como lugar determinado e gramaticalmente,

devo evocar um problema de autenticidade de textos! e um problema

de datas.

Entre 1170 e 1180: autores e datas

No passado e por vezes até hoje, os eruditos foram com efeito enganados

por textos atribuídos falsamente a autores eclesiásticos falecidos

antes de 1170, o que levou a acreditar num nascimento prematuro do

Purgatório. Mais adiante falarei de dois textos, um atribuído a S. Pedro

Damião falecido em 1072 e outro a S. Bernardo, falecido em 1153. Começarei

'por um excerto de um sermão que até ao fim do século XIX foi

considerado da autoria de Hildebert de Lavardin, bispo de Mans, um dos

principais representantes do «renascimento poético» das regiões do Loire

no século XII, e que morreu em 1133.

Trata-se de um sermão dedicado à Igreja, sobre o tema de um versiculo

do Salmo CXXII, 3 (121) «Jerusalém, construída como uma cidade

onde todo o conjunto é homogêneo». Numa comparação onde se sente a

extraordinária explosão da construção arquitectónica nos séculos XI e

XII, o autor do sermão diz:

186

187



«Na edificação de uma cidade, concorrem três elementos; primeiro,

arranca-se violentamente as pedras da pedreira com martelos e barras

de ferro, com muito trabalho e suor dos homens; a seguir com o buril,

a bipene e a régua elas são polidas, desbastadas, talhadas a esquadro; em

terceiro lugar, são colocadas nos seus lugares pela mão do artista. Da

mesma maneira, na construção da Jerusalém celeste devemos distinguir

três fases: a separação, a limpeza e a «posição». A separação é violenta, a

limpeza purgatória e a posição eterna. Na primeira fase o homem está na

angústia e na aflição; na segunda, na paciência e na expectativa; na terceira,

na glória e na exultação. Na primeira fase o homem é joeirado

como o cereal, na segunda é examinado como a prata, na terceira é colocado

dentro do tesouro/ ...»

O seguimento do sermão explicita esta imagem, aliás bastante clara,

com a ajuda de um certo número de textos das Escrituras, entre os quais a

primeira epístola de Paulo aos Corintios, lI, 10-15. A primeira fase é a

morte, a separação da alma do corpo, a segunda é a passagem pelo Purgatório,

a terceira é a entrada no Paraíso. Em relação à segunda fase, ele

precisa que só aqueles que passam com madeira, feno e palha são lavados

no Purgatório (in purgatorio). Desta vez a palavra purgatório como substantivo

está presente no texto. O purgatório existe, é o primeiro dos lugares

para onde vão (transitoriamente) os eleitos antes do Paraíso, ao

qual estão prometidos. O autor do sermão apenas evoca o trajecto dos

eleitos, e os condenados, que vão directamente para o inferno, são deixados

de lado. Desenvolve a seguir uma ideia de enorme importância. Segundo

ele, o tríduo litúrgico Vigília de Todos-os-Santos, Dia de Todos-

-os-Santos e Dia dos Mortos, corresponde às três fases do trajecto dos

defuntos eleitos. À custa, para falar verdade, de uma pequena acrobacia

cronológica. Na verdade a vigília, dia de jejum, corresponde à primeira

fase, a da separação, mas é necessário inverter a ordem dos dois dias

seguintes para que o simbolismo seja pertinente. É a terceira, o Dia dos

Mortos, que corresponde ao Purgatório: «Ao terceiro dia, trata-se do Dia

dos Mortos, para que aqueles que são lavados no Purgatório obtenham

ou uma absolvição completa ou uma mitigação da sua pena '.» A expressão

surge de novo: no Purgatório (in purgatorio). Enfim, é O segundo dia

«o dia solene, símbolo da superplenitude de júbilo».

Este sermão, atribuído a Hildebert de Lavardin, fora em 1888 restituído

ao seu verdadeiro autor Pedra, o Devorador, e investigações recentes

confirmaram esta atribuição", Pedro, o Comestor, ou Manducador, ou

seja Devorador, porque era um grande devorador de livros segundo os

seus contemporâneos, é discípulo de Pedro Lombardo. Sendo chanceler

da Igreja de Paris, ensinou na escola de Notre-Dame depois da elevação

de Lombardo ao episcopado em 1159 e morreu provavelmente em 1178

ou 1179. É um dos primeiros, se não o primeiro, a glosar ou comentar as

188

Máximas de Lombardo. Deixou obra abundante, e é dificil datar os seus

sermões. Mas foi possível datar entre 1165 e 1170 um tratado Sobre os

Sacramentos (De sacramentis) cujo tema é também o Purgatório.

A propósito da penitência, Pedro, o Devorador, nele afirma primeiro

que a purgação dos eleitos se faz no fogo purgatório com maior ou menor

rapidez em função da diferença dos pecados e da penitência, e invoca

Agostinho (Enchiridion, 69). Responde a seguir à questão de saber se a

penitência que não pôde ser cumprida nesta vida pode ser completada n?

outro mundo. Sendo Deus misericordioso e justo, em virtude da sua rmsericórdia

perdoa aos pecadores que não devem ser punidos por uma

pena demasiado severa, quer dizer a pena eterna. Mas no que toca à

justiça, não deixa o pecado impune. Este deve ser punido quer pelo homem

quer por Deus. Mas a contrição do coração pode ser tão grande

que, mesmo se a penitência não foi terminada cá em baixo, um morto

pode ser poupado ao fogo purgatório (immnunis erit ab igne purgato-

';0). Em compensação, aquele que morre impenitente é punido para a

eternidade. Outra pergunta: se por negligência ou ignorância do padre

um homem recebe uma penitência insuficiente em relação à gravidade

das suas culpas, bastar-Ihe-á cumprir essa penitência ou poderá ser-lhe

infligido, depois da morte, um complemento da pena no fogo purgatório

(in igne purgatorio)? Segundo o Devorador, isso também depende da

contrição. Se esta for suficientemente grande poderá dispensar um suplemento

de pena, o que depende da apreciação de Deus. A pergunta segumte

diz mais directamente respeito ao Purgatório: «O que é o fogo

purgatório e quem deve passar através dele?» (Quid est ignis purga torius,

et qui sint transituri per eum?) Pedra, o Devorador, responde que

alguns dizem que é um fogo «material» e não um fogo «element~n>

nem um fogo a que a madeira sirva de alimento, mas um fogo que existe

no sublunar e que, depois do dia do Julgamento, desaparecerá com as

coisas transitórias. Para outros, o fogo não é senão a própria pena. Se

lhe chama fogo é porque é dura e queima, tal como o fogo. E havendo

uma pena destruidora e eterna, como não se trata dessa, chamou-se a e.sse

fogo purgatório, quer dizer não destruidor mas depurado r por castigo

temporário, sem que se seja punido por toda a eternidade. Em todo o

caso, acrescenta Pedro, o Devorador, qualquer que seja esse fogo deve

acreditar-se que os fiéis, embora nem todos, passam através dele. Trata-se

daqueles que não concluíram a sua penitência nesta vida. Mas alguns

sofrem mais do que outros e alguns ficam livres desse fogo mais

rapidamente do que outros, em função da quantidade de pecados e da

penitência, e segundo a intensidade da contrição. Só os p~rfeit,amente

hons escapam, suiõe-se, ao fogo da purgação, pois embora mnguem pos-

Naestar isento de pecados veniais, no entanto o fervor do amor (fervor

caritatis ) pode consumir dentro deles os pecados veniais".

189



Perante estes textos, podemos encontrar para eles duas explicações.

Ou o texto do primeiro sermão foi retocado depois da morte do Devorador

pelos escribas que redigiram os manuscritos, ou o Devorador não

falou de todo do purgatório e terá usado a expressão tradicional no fogo

purgatório: in igne purgatorio. Bastará acrescentar (e ter suprimido) a

palavrinha igne (ver o apêndice lI). Neste caso o autor mais não seria

do que um testemunho a mais da iminência do aparecimento de um purgatório,

e restar-lhe-ia a importância de ter posto em relação directa o

purgatório próximo e a liturgia do princípio de Novembro. Mas parece-me

mais provável que Pedro, o Devorador, tenha realmente usado o

substantivo purgatorium e tenha sido portanto, se não o inventor, pelo

menos um dos primeiros utilizadores do neologismo ligado a um desenvolvimento

da geografia do além que considero revolucionário. Dois elementos

- além da antiguidade dos manuscritos - podem dar crédito a esta

hipótese. No fim da vida, Pedro, o Devorador, ocupou uma posição primordial

entre os intelectuais parisienses. Ora eu não tenho dúvidas de que

foi nesse meio que nasceu o Purgatório - e mais precisamente na escola de

Notre-Dame de Paris. Por outro lado, o Comestor foi classificado como

«um dos espíritos mais originais» do seu tempo (Hauréau). Este intelectual

pouco estudado e mal conhecido pode ter desempenhado um papel

inovador num domínio onde o seu mestre Pedro Lombardo apresentara

os problemas em termos que permitiam novos desenvolvimentos. Nesta

hipótese ele teria, antes de 1170, usado a expressão então corrente de fogo

purgatório; e, tendo as suas ideias evoluído entre 1170e a sua morte, teria

utilizado cerca de 1178-1179 o neologismo purgatorium cujo aparecimento

se poderá situar durante o decênio 1170-1180. O que estaria de acordo

com outros testemunhos que, sem serem também absolutamente concludentes,

apontam no mesmo sentido. Antes de os examinar, gostaria de

completar o processo das ideias do Comestor sobre o tempo intermédio

entre a morte e a ressurreição, citando um texto onde se trata, desta vez,

do seio de Abraão.

Este texto é extraído da obra mais célebre de Pedro, o Devorador,

aquela a que ele deve, em vida sua e durante o resto da Idade Média, a

celebridade: A História escolásticas. No capítulo cm da Historia Scholastica,

ele narra e comenta a história do pobre Lázaro e do rico mau

(Lucas, XVI). «Lázaro, diz ele, foi colocado no seio de Abraão. Estava

com efeito na zona superior do lugar infernal (in superiori margine infemi

loeus), onde há um pouco de luz e nenhuma pena material. Era aí que

estavam as almas dos predestinados, antes da descida do Cristo aos

infernos. A esse lugar, por causa da tranquilidade que nele reina, chamou-se

seio de Abraão, como chamamos o seio materno. Deu-se-lhe o

nome de Abraão porque ele foi a primeira via da fé... (prima credendi

via}".»

190

Definição «histórica» do seio de Abraão, situado entre o tempo dos

patriarcas e a descida do Cristo aos infernos. Assim como o Cristo encerrara

esses infernos, os homens da Idade Média preparam-se para fechar o

seio de Abraão que sobrevivera ao Novo Testamento. De facto, daí em

diante o espaço e o tempo intermédios vão ser ocupados só pelo Purgatório

e, como se sente a necessidade de algo semelhante ao seio de Abraão

para os justos anteriores ao Cristo e para as crianças mortas sem baptismo,

recorrer-se-á daí em diante a dois lugares anexos ao além: o limbo

dos padres e o limbo das criancinhas.

O segundo teólogo (ou, por ordem cronológica, talvez o primeiro) a

falar do purgatório propriamente dito foi Odon d'Ourscamp (também

chamado Eudes de Soissons)", que foi um dos mestres mais importantes

desta época. Na senda de Lombardo de quem foi discípulo ou, como

julgam outros, adversário, teve uma escola muito activa e que continuou

a sê-lo depois dele. Deu um impulso decisivo à questão (questio), género

escolástico caracteristico que encontra com ele a sua forma definitiva: a

de «uma verdadeira disputa onde os géneros estavam divididos entre dois

personagens distintos» (Landgraf). Odon d'Ourscamp, depois de ter sido

professor de teologia na escola de Notre-Dame de Paris, retirou-se no fim

da vida para a abadia cisterciense de Ourscamp (no Aisne) onde morr~u

em 1171. Os seus alunos publicaram as Questões como obras separadas.

É numa destas recolhas a que foi dado o título de Odon d'Ourscamp

que reencontramos o Purgatório numa questão sobre a Alma no Purgatório

(De anima in Purgatorio).

«A alma separada do corpo entra logo no purgatório (intrat purgatorium

statim); aí ela é purgada, portanto tira proveito. Opinião contrária:

ela suporta essa pena contra a sua vontade, portanto não tira proveito.»

Segue-se um certo número de argumentos a respeito dos méritos eventualmente

adquiridos ao sofrer-se essa pena. Depois vem a solução:

«É verdade que certas almas, quando se separam dos corpos, entram

logo num fogo purgatório (statim intrant purgatorium quemdam ignem),

mas nem todas ali são purgadas, apenas algumas. Todas que lá entram

são punidas. Assim, valeria mais chamar esse fogo de punitivo (punitorius)

em vez de purgatório (purgatorius); mas recebeu a designação mais

nobre. De entre as almas que nele entram, umas serão purgadas e punidas,

outras somente punidas.

São purgadas e punidas aquelas que trouxeram consigo madeira, feno

c palha; as outras são as que, voluntária ou involuntariamente, não se

arrependeram por fim dos seus pecados ou que, surpreendidas pela morte,

não se confessaram deles. São apenas punidas aquelas que, depois de

se terem confessado e arrependido de todos os seus pecados, morreram

sem terem cumprido a penitência que o padre lhes atribuíra; não são

purgadas porque nenhum pecado lhes é remido, a menos que se tome

191



«ser remido» no sentido lato em que «purgado» seja sinónimo de «liberto»

da pena devida. No sentido próprio, ser purgado diz-se de alguém a

quem é remido um pecado; portanto, aqueles que são medianamente bons

entram imediatamente no Purgatório (hi ergo qui sunt mediocriter boni,

statim intrant purgatorium).

O interlocutor reacende a discussão ao perguntar: «Se a um moribundo

que se arrepende de todos os seus pecados o padre diz: absolvo-te de

todas as penas que te são devidas, até daquela que deverias sofrer no

Purgatório (in purgatorio), será ele, mesmo assim, punido nesse Purgatório?»

Resposta do mestre: «Eis o género de pergunta a que Deus melhor vos

responderia (do que eu). Tudo o que posso dizer é que o padre deve agir

com discernimento.» Mas acrescenta, todavia, uma frase muito revelado- .

ra: «Como esse fogo é uma pena material, está num lugar. Mas onde se

encontra esse lugar, quando a isso deixo a questão em suspensoi.r

O que impressiona neste texto é o aspecto heteróclito do vocabulário, .

se não das ideias. Ora se refere o purgatório ora o fogo purgatório. Afirma-se

o carácter espacial, localizado, do Purgatório, quer mencionando-

-o, quer reduzindo-o ao lugar onde deve encontrar-se o fogo. E tudo

termina com uma confissão de ignorância sobre a localização desse lugar.

Tudo isto que se verifica confirma bem as opiniões de A. M. Landgraf:

as Questões desta época e especialmente as atribuídas a Odon

d'Ourscamp reúnem Questões de vários autores «com atribuições geralmeD;tefantasistas»

e dificilmente verificáveis".

E possível aceitar como razoável a seguinte explicação: as Questões

atribuídas a Odon d'Ourscamp foram elaboradas a partir de notas tomadas

nos cursos desse mestre, mas a forma (e o vocabulário) foram revistos

e algumas ideias que não são de Odon foram introduzi das na redacção

que, sem dúvida, foi composta entre 1171, data da morte de Odon, e cerca

de 1190, talvez mesmo no decénio 1171-1181. Onde Odon fala ainda de

fogo purgatório, os seus alunos falam já de Purgatório. O espaço do lugar

é tido como facto consumado, mas a localização é incerta. A expressão

mediocriter boni (medianamente bons), oriunda sem dúvida de Pedro

Lombardo, deixa transparecer uma outra face do sistema.

Um falsário do Purgatório

Vamos agora examinar os dois textos que, sem dúvida, mais problemas

põem, sobretudo o segundo. O primeiro foi atribuído ao santo Pedro

Damião, o célebre eremita e cardeal italiano da primeira metade do século

XI, mas esta atribuição indefensável foi reconhecida como falsa pelos

historiadores recentes de Pedro Damião'". O segundo é um sermão que

192

foi atribuído a S. Bemardo, falecido em 1153, e os recentes editores das

obras completas de S. Bemardo, Dom Jean Leclercq e Henri Rochais,

mantiveram esta atribuição, fazendo notar que os problemas levantados

pela colecção dos Sermones de diversis, em que aquele se inclui, não permitiam

afirmar a sua autenticidade com tanta certeza como para as

outras colecções dos sermões de S. Bernardo. Eu estou convencido de

que esse sermão não é de S. Bernardo!'. Supondo que o fundo é autêntico,

então sofreu modificações de forma, sem dúvida muito importantes.

Não só me parece impossível falar de Purgatório como de um lugar

designado por um substantivo antes de 1153; e também a expressão perfeita

do sistema do além tripartido e espacializado que se encontra neste

texto: «Há três lugares que as almas dos mortos, conforme os respectivos

méritos, recebem como destino: o inferno, o purgatório e o céu»,

me parece ainda mais improvável na primeira metade do século XII

quando reina, como já se viu, uma enorme incerteza quanto à estrutura

do além.

Antes de formularmos hipóteses, vejamos os textos. O tema destes

dois sermões é a existência de cinco regiões no universo natural e sobrenatural.

A primeira é a da dissimilitudo, da dissemelhança com Deus que havia

feito o homem à sua imagem e semalhança, das quais o homem se afastou

pelo pecado original. Esta região é o mundo terrestre.

A segunda região é o paraíso do claustro. «Na verdade, o claustro é

um paraíso» é uma das numerosas frases que encontramos textualmente

nos dois sermões. Esta exaltação da vida monástica faz do claustro um

lugar de vida nesta terra.

A terceira região é a da expiação. Ela mesma comporta três lugares

diferentes em função dos méritos dos defuntos. A designação desses lugares

não é a mesma nos dois sermões, se bem que se trata dos mesmos

locais. No sermão do pseudo-Pedro Damião, trata-se do céu, dos lugares

infernais e dos lugares purgatórios (caelum, loca gehennalia, loca purgatoria).

No sermão do pseudo-Bernardo, como se viu, trata-se do inferno,

do purgatório e do céu (infemus, purgatorium, caelum) mencionados por

ordem diferente.

A quarta região é a região da geena. Podemos perguntar-nos em que é

que esta região difere da parte infernal da terceira região, o que não está

bem explicado em nenhum dos dois sermões. Parece todavia que a explicação

seja inversa num e noutro. No sermão do pseudo-Pedro Damião,

os lugares infernais da terceira região parecem destinados aos pecadores

que morreram em pecado mortal e a quarta região infernal é mais a residência

dos ímpios. No sermão do pseudo-Bernardo, pelo contrário, o

inferno da terceira região é reservado aos ímpios, o que se afirma com

clareza, enquanto a quarta região infernal se destina ao diabo e aos seus

193



anjos (maus) e aos homens que se lhes assemelham, quer dizer aos criminosos

e os viciosos (scelerati et vitiosi ),

A quinta região, por fim, é a do paraíso supraceleste onde os bem-

-aventurados vêem a Santíssima Trindade cara a cara, como diz o pseudo-Bernardo;

é a cidade do Grande Rei, como diz o pseudo-Pedro

Damião.

Sobre um fundo com grandes analogias, cada um dos dois textos apresenta

variantes. Para não fatigar o leitor, apenas recorro ao exemplo de

uma única região, a terceira, aquela onde se encontra o nosso Purgatório.

Pseudo-Pedro

Damião

Tendo pois deixado o mundo e a

forma de vida escolhia (o claustro),

passa à terceira região que é a região

da expiação. Nesta região o Pai benevolente

examina os seus filhos manchados

de ferrugem, como se

examina a prata; conduz através do

fogo e da água para levar ao refrigério

(refrigerium, Salmo LXV). Devemos

distinguir três lugares por onde

as almas são distribuídas em função

da diferença dos seus méritos. Para

o céu voam imediatamente aquelas

que usaram a morada do corpo como

uma prisão, que conservaram a

substância humana pura e sem máculas.

Pelo contrário aqueles que, até à

morte, praticaram actos dignos da

morte, são enviados para os lugares

infernais sem misericórdia. Aqueles

que não são nem uns nem outros e

estão entre ambos, que cometeram

pecados mortais mas que, quando

da aproximação da morte, fizeram

penitência sem a terminarem, indignos

de entrar logo no júbilo mas

não dignos de arder eternamente, recebem

por sua vez os lugares purgatórios

onde são flagelados, mas não até

à inconsciência (?insipientia) para de

lá saírem e serem transferidos para o

reino. Por aqueles que estão no céu

não há necessidade de rezar, pois é a

194

Pseudo- Bernardo

A terceira região é a região da expiação.

Há três lugares por onde as

almas dos mortos são distribuídas

em função dos seus diferentes méritos:

o inferno, o purgatório e o céu.

Aqueles que estão no inferno não podem

ser resgatados porque no inferno

não existe redenção alguma. Aqueles

que estão no purgatório esperam a

redenção, mas têm de ser primeiro

torturados, quer pelo calor do fogo

quer pelo rigor do frio ou por qualquer

outra pena severa. Aqueles que

estão no céu rejubilam com a alegria

da visão de Deus, irmãos do Cristo

em sua natureza, co-herdeiros na glória,

semelhantes na eterna bem-aventurança.

Como os primeiros não

merecem ser resgatados e os terceiros

não precisam de redenção, resta-nos

passar por entre os intermédios por

compaixão, depois de termos estado

unidos a eles por humanidade. Irei

para essa região e terei essa grande

visão (Êxodo, Ill, 3) pela qual o Pai

piedoso, para glorificar os seus filhos,

os abandona nas mãos do tentador,

não para serem mortos mas purgados;

não por cólera mas por misericórdia;

não para sua destruição mas

para sua instrução, para que daí em

diante eles não sejam vasos de cólera

bons para perecer (Romanos, IX, 22-

eles que rezamos e não por eles. Para

aqueles que estão no inferno as preces

.ilo inúteis porque a porta da misericórdia

está fechada para eles e a esperança

de salvação é-lhes interdita. Em

compensação, por aqueles que são

corrigidos nos lugares purgatórios é

preciso ter o cuidado de rezar, de os

ajudar pelo sacrificio (da missa) (sacrificio

singulari ), para que o Pai benevolente

transforme depressa a sua

penitência em satisfação, a sua satisfação

em glorificação. Corre por entre

eles com um íntimo sentimento

de piedade e leva como bagagem a

compaixão.

-23), mas vasos de misericórdia preparados

para o reino. Levantar-me-ei,

pois, para os ajudar: interpelarei

com os meus lamentos, implorarei

com os meus suspiros, intercederei

com as minhas preces, satisfarei pelo

sacrificio (da missa) (sacrificio singulari)

para que, se por acaso o Senhor

vir e julgar (Êxodo, V, 21), converta

os trabalhos em repouso, a miséria

em glória, os golpes em coroas. Por

estes deveres e outros semelhantes a

sua penitência pode ser abreviada,

os seus trabalhos terminados, a sua

pena eliminada. Percorre pois, alma

fiel, a região da expiação e vê o que

lá se passa e nesta convivência faz

da compaixão a tua bagagem.

Apesar das diferenças entre estes dois textos, a analogia de estrutura e

de pensamento é o que mais impressiona, reforçada por algumas expressões

idênticas. Uma das principais diferenças é a utilização de loca

purg atoria (lugares purgatórios) pelo pseudo-Pedro Damião e de

purgatorium pelo pseudo-Bernado.

Poderia pois pensar-se que estes textos têm dois autores diferentes que

ou se inspiraram na mesma fonte ou um deles, provavelmente o pseudo-

-Bernardo, conheceu o outro e foi por ele fortemente influenciado. Não é a

hipótese que adoptarei. Os especialistas de Pedro Damião lançaram a

ideia de que o autor do falso sermão de Pedro Damíão poderia ser Nicolau

de Clairvaux conhecido como «falsário hábil» (egerissen Fãlscher»,

diz F. Dressler). Ora Nicolau foi secretário de S. Bernardo e sabe-se

que forjou textos falsos de S. Bernardo. Os dezanove sermões falsamente

atribuídos a Pedro Damião encontram-se originariamente num manuscrito

da Biblioteca do Vaticano onde emparceiram com sermões de S. Bernardo

(ou atribuídos a S. Bernardo). E verdade que o sermão 42 não se

encontra lá, mas a coexistência destes dois conjuntos de sermões é perturbadora,

Suspeito de que Nicolau de Clairvaux é o autor dos dois sermões

e, com o seu génio de falsário, fez de um uma imitação de Pedro Damião

e do outro uma imitação de S. Bemardo'".

Se os dois sermões não são obra dos ilustres santos a quem são atribuídos,

constituem em compensação testemunhos excelentes - verídicos

desta vez - do nascimento do Purgatório e da formação do sistema de um

triplo além: Céu, Purgatório, Inferno. Ou o pseudo-Pedro Damião é anterior

e a expressão loca purgatoria se explica assim, enquanto o pseudo-

195



-Bernardo foi composto quando o Purgatório (purgatorium) já existe: ou

então, se os dois textos são obra de um mesmo falsário que se inspirou

decerto em obras autênticas talvez mesmo num esboço bernardino deste

sermão, ele atribuiu, consciente ou inconscientemente, a cada pseudo-autor

o vocabulário que parecia convir-lhe, ainda que loca purgatoria não se

encontre na primeira metade do século XI, nem purgatorium na primeira

metade do século XII. Que esse falsário seja Nicolau de Clairvaux é, cronologicamente,

perfeitamente possível. Os dois manuscritos mais antigos

onde se encontram o sermão do pseudo-Bernardo e a palavra

purgatorium foram muito provavelmente copiados no fim do terceiro

quarto do século xn!'. Ora Nicolau de Clairvaux morreu depois de

1176. Seríamos assim reconduzidos ao decénio 1170-1180.

O autor do sermão atribuído a S. Bernardo, mesmo que só tenha sido

um retocado r ou um falsário integral, compôs um texto que ia no mesmo

sentido do grande cisterciense. Este tinha, com efeito, uma percepção do

além muito especial. No quarto sermão para a consagração da Igreja

Sobre a Casa Tripla permite-se, a propósito do Paraíso, esta efusão: «Ó

Casa maravilhosa, preferível às amadas tendas, aos templos desejáveis!...

Sob as tendas, geme-se em penitência; nos templos, experimenta-se a alegria;

em ti saciamo-nos de glória 14.•. »

Os primeiros a passar pelo Purgatório: S. Bernardo

Por ironia da história, S. Bemardo, pai putativo do Purgatório mas a

quem devemos renunciar atribuir «essa invenção», aparece como o primeiro

beneficiário individual conhecido da crença desse novo lugar. Uma

carta de Nicolau de Saint-Alban a Pierre de Celle, portanto anterior à

morte deste em 1181 e provavelmente de 1180-1181, afirma que S. Bernardo

fez uma breve passagem pelo Purgatório antes de entrar no Paraiso.

Porquê esta purgação do santo? S. Bernardo era hostil à ideia da

lmaculada Conceição da Virgem, ainda que muito devoto de Maria. O.

partidários desta crença pretenderam, para abalar as imaginações e desconsiderar

os seus adversários, que o abade de Clairvaux fora, por este

ligeiro erro, (benignamente) sancionado. O tema da passagem dos homens

célebres pelo Purgatório expandir-se-á no século XIII. Parece que

S. Bernardo terá inaugurado a série. Filipe Augusto, que reinou entre

1180 e 1223, terá sido o primeiro rei de França a passar pelo Purgatório.

Reencontramos S. Bernardo, decididamente ligado ao nascimento do

Purgatório, num interessante manuscrito cisterciense do fim do século XII

que é uma das primeiras recolhas de exempla, essas historietas introduzidas

subrepticiamente pelos pregadores nos seus sermões e que desempenharam,

como se verá, um grande papel na difusão do Purgatório no

196

século xnr". O capítulo XXXIV é dedicado à ilustração das penas das

almas depois da morte (De penis animarum post mortem} e começa por

11m excerto da visão do santo Fursy, e Bede. Apresenta a seguir várias

outras visões depois de ter declarado que «penas muito pesadas são innig~das

no Purgatório (in purgatorio) por excessos que consideramos

muito leves». E outro testemunho da existência do Purgatório, palavra

c crença. Entre estas visões, uma é apresentada como tendo sido extraída

da vida de S. Bernardo. Eis a historieta:

«Um irmão animado de boas intenções mas tendo para com os outros

irmãos um comportamento excessivamente severo e menos compassivo

do que deveria, morreu no mosteiro de Clairvaux. Poucos dias depois

de ter morrido, apareceu ao homem de Deus (S. Bernardo) com um ar

lugubre e um aspecto lamentável, mostrando bem que nem tudo se passava

segundo os seus desejos. Bernardo perguntou-lhe o que lhe tinha

acontecido e ele queixou-se de ter sido entregue às quatro torturas. A

estas palavras, foi empurrado por trás e levado precipitadamente perante

() olhar do homem de Deus. Este, com grandes lamentos, gritou-lhe nas

costas: "Peço-te em nome do Senhor que me dês a conhecer em breve a

tua situação." Pôs-se a rezar e pediu a alguns irmãos cuja grande santidade

bem conhecia que oferecessem por aquele irmão o sacrifício eucarlstico

e que o ajudassem também eles. E não desistiu até, alguns dias

depois, ser informado por uma outra revelação, conforme pedira, de

que o irmão merecera alcançar o conforto da libertação.»

Esta pequena história - bem como as outras que lhe fazem companhia

no manscrito - é o mais antigo testemunho que conheço de histórias de

aparições de almas do Purgatório expressamente mencionado, as quais

irão popularizar a crença no novo lugar do além do século XIII. Desde

jil faço simplesmente notar que se trata de um espectro muito especial,

muito vigiado, sujeito a um duplo controlo, o dos seus carrascos no

além, que limitam ao mínimo as suas aparições, e o dos que o ajudam

câ em baixo e lhe pedem que Ihes preste contas com exactidão.

Surge agora um conjunto de testemunhos irrefutáveis sobre a palavra

purgatório que provam a sua existência nos últimos anos do século XII e

nos primeiros do século XIII. Provêm sobretudo de teólogos.

Os primeiros teólogos do Purgatório: Pedro, o Chantre, e Simão de Tournai

Julgo que quem integrou o Purgatório no sistema e no ensino da teologia

foi Pedro, o Chantre, cuja importância na construção da escolástica

é cada vez mais reconhecida. Este mestre da escola de Notre-Dame de

Paris, falecido em 1197, foi sem dúvida a pessoa que, lançando o olhar

sobre o mundo que à sua volta se transformava nos comportamentos

197



económicos, nas estruturas sociais e políticas, e nas mentalidades, melhor

teorizou e captou no encadeamento da casuística as novidades de um

mundo urbano e monárquico'",

É ainda a propósito da penitência que encontramos o purgatório na

sua Súmula sobre os sacramentos e os conselhos da alma (Summa de sacramentis

et animae consiliis), Ao falar do pecado venial, Pedro, o Chantre,

chega a afirmar que por sua causa é infligida no Purgatório (in

purgatorio ) uma determinada pena. Ataca em seguida aqueles que julgam

que os condenados passam também pelo Purgatório (per purgatorium

) antes de irem para o Inferno, e que lá são purgados e perdoados. É

absurdo, argumenta o Chantre, pois nesse caso a situação dos eleitos não

seria melhor do que a dos condenados. Pedro, o Chantre, toca então no

ponto essencial: «É preciso distinguir os lugares dos bons e os lugares dos

maus depois desta vida. Para os bons, é ou o Paraíso (patria) imediatamente

se não levam consigo nada para queimar, ou primeiro o Purgatório

(purgatorium ) e depois o Paraíso, por exemplo, no caso daqueles que

levam consigo pecados veniais. Para os maus não se refere receptáculo

e diz-se que vão imediatamente para o Inferno». O Chantre afirma a

seguir que o Purgatório apenas acolhe os predestinados (eleitos) e enumera

de novo diversas opiniões. Há, por exemplo, quem diga que os maus

passam realmente pelo Purgatório, mas que este não é para eles um

Purgatório verdadeiro mas simplesmente um veículo que os conduz para

o fogo eterno. Outros dizem que o pecado venial é punido pela pena

eterna por causa da impenitência final no momento da morte. Mas,

diz o Chantre, a impenitência é a causa sem a qual não haveria condenação

eterna mas não é a causa dela. Nestes poucos parágrafos o substantivo

purgatorium surge frequentemente, nove vezes exactamente. Em

Paris pelo menos, a palavra e a ideia são já visivelmente correntes no

fim do século e o sistema Inferno-Purgatório-Paraíso parece estar instalado'

Numa outra passagem do De sacramentis onde se trata da remissão

dos pecados veniais, Pedro, o Chantre, recorda que «os nossos mestres

dizem que o pecado venial é remido pela pena do Purgatório (per penam

purgatorli] e não pela penitência. Mas o Chantre não é dessa o~inião. O

substantivo Purgatório é usado duas vezes em poucas linhas 8. Numa

terceira parte, recolha de casos de consciência, Pedro, o Chantre, responde

à pergunta: poderá a esmola resgatar os pecados veniais? «Há dois

purgatórios, um no futuro depois da morte, que pode ser encurtado principalmente

por meio da celebração de missas e secundariamente por outras

boas obras. O outro purgatório é a penitência imposta, que pode

igualmente ser mitigada pelas mesmas coisas.» Vê-se por aqui que o

Chantre, mesmo considerando o Purgatório um dado adquirido, não

tem dele, em todo o caso, uma visão puramente espacial; nesta última

198

passagem, ele não é um lugar mas sim um estado!". Noutra das suas

obras, talvez a mais conhecida, o Verbum abbreviatum, que alguns datam

de 1192, Pedro, o Chantre, interroga-se sobre qual a quantidade e a intensidade

de penitência que podem igualar o fogo purgatório. Emprega

igualmente os termos fogo purgatório e purgatório, comportamento habitual

nesta época e que voltaremos a encontrar no século xnr".

Outro célebre professor parisiense falecido em 1201, Simon de Tournai,

aluno de Odon d'Ourscamp, deixou as Disputas (Disputes - Disputationes),

género lançado por Abelardo e que, apesar da hostilidade dos

conservadores (S. Bernardo, Hugo de Saint- Victor que nem nele fala,

João de Salisbury, Estêvão de Tournai), entra no ensino da teologia na

segunda metade do século XIII e é introduzido por Pedro, o Chantre, na

exegese bíblica. Simão de Tournai fala do Purgatório em três disputas'",

Na disputa XL, responde à pergunta: é possível adquirir-se ainda méritos

depois da morte? Alguns avançam que se adquirem méritos pelos sofrimentos

suportados no Purgatório. A expressão usada é not s) purgatório(s)

(in purgatoriis) que vimos atrás. Mas na sua resposta Simão,

que é hostil a esta concepção, depois de ter afirmado que depois desta

vida não há qualquer lugar onde se possa adquirir méritos, emprega quatro

vezes a palavra purgatório, duas vezes para evocar o sofrimento do

Purgatório (passio purgatorii), uma vez para falar da pena do Purgatório

(pena purgatorii) e uma vez ao fazer alusão à travessia do Purgatório

(transeundo purgatorium). Na disputa LV há duas perguntas referentes

ao Purgatório. Uma é para saber se o fogo purgatório pode ser uma pena

eterna, a outra se graças aos sufrágios da Igreja se pode ser inteiramente

isento do Purgatório. À primeira pergunta Simão responde um pouco a

contragosto, sublinhando que o problema não reside em saber se se cometeu

um pecado venial ou mortal, mas sim se se morreu impenitente ou

não; à segunda responde pela afirmativa, referindo que um morto pode,

enquanto vivo, ter merecido ser completamente liberto do Purgatório

pelos sufrágios da Igreja, e que pode mesmo ter merecido nem sequer

entrar no Purgatório (ne intraret purgatorium). Como se vê nesta disputa,

Simão de Tournai emprega com grande discernimento purgatorium,

subtantivo que designa um lugar, e fogo purgatório (ignis purgatorius)

para descrever a pena que lá se sofre.

Na disputa LXXIII, enfim, Simão responde à pergunta sobre se as

almas são punidas por um fogo material no Purgatório ou no Inferno.

Designa o Purgatório quer pelo substantivo purgatorium quer pela fórmula

mais antiga in purgatoriis (no(s) purgatório(s), subentendendo-se lugares).

A sua resposta é que no Inferno existirá um fogo corporal mas que

no Purgatório deve tratar-se de um fogo espiritual, metafórico, de uma

pena muito severa, pois o fogo representa a mais severa de todas as penas

corporais.

199



Faço ainda notar que um outro professor parisiense célebre, Pedro de

Poitiers falecido em 1205, que num texto das suas Máximas utilizou todo

o arsenal das expressões antigas que precederam a palavra purgatório,

empregou também o substantivo na mesma obra, se é que o copista

não omitiu a palavra fogo {ignem): «Eles passarão pelo purgatório»

(transibunt per purgatorium ) 2.

Último testemunho do aparecimento do substantivo purgatorium mesmo

no fim do século XII: a sua presença num texto já não teológico mas

hagiográfico. Trata-se de uma passagem de uma vida do santo Victor,

mártir de Mouzon, que define o Purgatório (pur~atorium) como um lugar

de combustão, como a prisão da purgação 3. Antes de apresentar

alguns textos e alguns problemas que me parecem importantes para esclarecer

o significado do nascimento do Purgatório no fim do século XII e

no princípio do século XIII, pode ser útil fazer agora o ponto da situação

no que toca a esse nascimento.

A Primavera parisiense e o Verão cisterciense

Consultei o maior número possível de documentos emanados das diversas

regiões da cristandade e estudei especialmente as obras emanadas

dos principais centros de produção intelectual e cultural na viragem do

século XII para o século XIII. Creio poder afirmar com bases sólidas que

dois meios firmaram a crença e lançaram a palavra de purgatório. O

primeiro, o mais activo, foi o meio intelectual parisiense e, em particular,

a escola catedrática, a escola do capítulo de Notre-Dame da qual

nunca se elogiará suficientemente o papel capital que desempenhou antes

da animação intelectual passar para a margem esquerda e para os ensinamentos

da nova universidade, especialmente à volta dos mestres mendigos,

os dominicanos e os franciscanos.

Um movimento teológico importante já instalado na margem esquerda

precedeu e alimentou no século XII, e principalmente na sua primeira

metade, este ímpeto. As abadias de Saint-Victor e de Sainte-Geneviêve

foram as suas principais animadoras. Será necessário relembrar os nomes

e a relevância das escolas de Hugo de Saint-Victor, de Abelardo e

dos seus discípulos?

Mas é a partir da docência e das obras de Pedro Lombardo, ao redor

dos mestres e chanceleres da escola de Notre-Dame, com especial menção

para Odon d'Ourscamp, Pedro, o Devorador e Pedro, o Chantre, que

irrompe a explosão intelectual. No coração do Paris de Luís VII e do

jovem Filipe Augusto, no contacto com os cambistas nas cobertas dos

barcos, com os empresários da navegação no Sena, com os artesãos e

os operários - mercadoria humana já explorada no mercado de mão-

200

-de-obra da praça de Greve - as grandes verdades do cristianismo são

repensadas e remodeladas com fervor e criatividade, Mundo onde as

ideias fervem, o debate irrompe, as opiniões chocam-se pacificamente.

Os mestres e os estudantes tomam notas, redigem febrilmente as recolhas

de perguntas, de disputas, de referências onde, apesar da autoridade de

alguns mestres eminentes, já não se sabe bem quem é o autor desta ou

daquela ideia, e onde se confrontam as posições mais diversas, por vezes

levadas até ao absurdo: «uns dizem ...», «outros pensam ...», «outros ainda

supõem ... ». É o belo tempo da irrupção escolástica. Mas não vai durar. A

partir de 1210 o domínio da Igreja e da monarquia afirma-se. Acendem-se

as fogueiras onde se queimam os livros e os homens. Simples aviso. A

escolástica vai conhecer grandes dias, as suas maiores glórias, no século

XIII. Mas essas catedrais intelectuais, as grandes colectâneas do século de

s. Luís, são monumentos bem ordenados de que foram banidas as divagações

e as efusões. O que, aliás, não será bastante para os censores do

século uma vez que, em 1270 e 1277, o bispo de Paris, Étienne Tempier,

vai virar a sua artilharia para tudo o que parecer original e novo, para um

Siger de Brabant a quem censuram aquilo que não disse, para um Tomás

de Aquino, menos audacioso do que se julga. O Purgatório nasce com a

Primavera da escolástica, nesse momento de criatividade excepcional que

assiste à confluência efémera do intelectualismo urbano e do ideal monástico.

O segundo meio de aparecimento do Purgatório é na verdade Cister.

Pouco importa que S. Bernardo não tenha inventado o Purgatório. A

atenção especial que os cistercienses prestam às relações entre os vivos

e os mortos, o novo impulso que depois de Cluny - que discutem mas

que continuam - dão à liturgia do princípio de Novembro, associando

os santos e os mortos, leva-os até às fronteiras do Purgatório. Os laços

que mantêm com os meios intelectuais urbanos fizeram, sem dúvida, o

resto. Muitos mestres universitários, parisienses principalmente, Odon

d'Ourscamp, Pedro, o Devorador, Pedro, o Chantre, Alain de LiIle, acabam

os seus dias em mosteiros cistercienses. É na encruzilhada dos dois

meios, entre 1170 e 1200, talvez no decénio 1170-1180 mas com certeza

nos dez últimos anos do século, que aparece o Purgatório.

o Purgatório e a luta contra a heresia

É preciso ter em conta uma terceira frente: a luta anti-herética. Na

viragem do século XII para o século XIII, um certo número de autores

eclesiásticos contribuíram grandemente para o nascimento do Purgatório.

Esses autores têm em comum o facto de terem lutado contra os hereges

e terem utilizado de novo o Purgatório como instrumento de

201



combate. O Purgatório, como muitas crenças, não nasceu somente de

tendências positivas, da reflexão dos intelectuais e da pressão das massas,

mas também de anseios negativos, da luta contra os que não acreditavam

nele. Esta luta indica que o Purgatório tem então implicações

importantes. É contra os hereges nos séculos XII e XIII, contra os gregos

entre os séculos XIII e XV e contra os protestantes nos séculos XVI e XVII

que a Igreja romana põe em funcionamento a doutrina do Purgatório. A

continuidade dos ataques contra o Purgatório da parte dos adversários

da Igreja romana oficial é impressionante. Todos pensam que o destino

dos homens no além só pode depender dos seus méritos e da vontade de

Deus. Tudo é decidido, pois, quando se morre. Os defuntos vão directamente

(ou depois do Julgamento Final) pau o Paraíso ou para o Inferno,

mas não existe qualquer resgate entre a morte e a ressurreição: portanto

não existe Purgatório, e é inútil rezar pelos mortos. Para estes hereges que

não gostam da Igreja, é também a oportunidade para lhe negar qualquer

papel depois da morte, para lhe recusar esse prolongamento do seu poder

sobre os homens.

Já vimos o processo dos hereges de Arras, combatidos por Gerardo de

Cambrai no princípio do século Xl. Reencontramos o problema no princípio

do século XII entre os hereges, quer individualizados quer anónimos

no seio de um grupo. É o caso de Pierre de Bruys, contra quem o célebre

abade de Cluny, Pedro, o Venerável, escreveu um tratado. E é ainda mais

o do seu discípulo mais radical, o monge e depois vagabundo Henrique

que, em Lausanne e em Mans cerca de 1116 e noutros locais desconhecidos,

prega ideias na linha das de Arras, o que lhe vale ser preso em 1134 e

levado perante o concilio de Pisa. Um tratado anónimo escrito na primeira

metade do século XII esforça-se por refutar Henrique e os seus partidários.

Atribui aos adversários a ideia de que «nada pode ir em socorro

dos mortos que, logo que morrem, são condenados ou salvos», o que lhe

parece «abertamente herético». Baseando-se no conjunto do processo

tradicional da Igreja (11Macabeus XII, 41-45 ... , Mateus XII, 31, I Coríntios,

lU, 10-15, o De cura pro mortuis gerenda de Santo Agostinho), afirma

a existência de dois fogos, o fogo purgatório e o fogo eterno. «Há,

sustenta ele, pecados que serão apagados no futuro (no além) pelas esmo-

Ias dos amigos e pelas preces dos fiéis ou pelo fogo purgatório ".»

Reencontramos aqui S. Bernardo. Num sermão sobre o Cântico dos

Cânticos, escrito em 1135 e escrito de novo em 1143-1145, Bernardo ataca

os hereges que «não crêem que o fogo purgatório existe depois da morte e

julgam que a alma, quando se separa do corpo, vai ou para o repouso ou

para a condenação». A estes hereges, Bernardo, conforme a atitude habitual

da Igreja, trata-os de animais pérfidos e declara, com o desprezo do

clérigo nobre, que «são boçais, iletrados, totalmente desprezíveis». Tenta

dar-lhes nomes, segundo o que é hábito, de acordo com o nome do seu

202

chefe, mas eles não têm chefe e chamam-se a si próprios, frontalmente,

Apostólicos. São hostis ao matrimónio, ao baptismo, às orações pelos

mortos e ao culto dos santos; são vegetarianos (não comem nada que

provenha do coito, portanto dos animais). S. Bernardo, apoiando-se

em Matias, XII, 32, opõe-lhes a existência não do Purgatório ainda ignorado,

mas do fogo purgatório, e afirma a eficácia dos sufrágios pelos

rnortos'".

A linha de Arras é clara, mesmo sem ter tido continuidade e filiação

directa. A recusa do Purgatório vai reencontrar-se no fim do século XII e

no começo do século XIII entre novos hereges: os Valdenses e os Cátaros.

Entre eles a hostilidade ao Purgatório faz parte de sistemas religiosos

diferentes, apesar da presença de elementos heréticos tradicionais.

Mas sobre este ponto a posição de todos estes novos hereges é praticamente

a mesma: os vivos nada podem pelos mortos, os sufrágios são

inúteis. Entre os cátaros, a doutrina da metempsicose exclui sem dúvida

o Purgatório porque tem a mesma função de purificação «temporária».

O primeiro texto desta querela é certamente o do abade agostiniano Bernardo

de Fontcaude que entre 1190 e 1192 escreve um Livro Contra os

Valdenses (Liber contra Waldenses). A palavra purgatório não aparece

mas o sistema dos três lugares do além é descrito com um clareza toda

nova 26 •

No capítulo X Bemardo de Fontcaude combate os «que negam o fogo

purgatório e dizem que a alma, ao separar-se do corpo, vai para o Céu ou

para o Inferno». Opõe-Ihes três autoridades: a primeira epístola de Paulo

aos Corintios, Agostinho no Enchiridion e o capítulo XIV de Ezequiel

onde Javé declara que as preces dos justos não poderão libertar o povo

infiel e que este terá de se libertar a si mesmo. Comenta S. Paulo dizendo

que estas palavras aplicam-se «ao fogo da purgação futura»; comenta

Agostinho declarando que Deus expurga os pecados quer pelo baptismo

e pelo fogo da atribuI ação temporária (cá em baixo), quer no fogo da

purgação; comenta Ezequiel, concluindo que Javé ordena que o povo

infiel seja colocado no fogo purgatório.

É no capítulo XI que se situa a passagem mais interessante. Certos

hereges pretendem que os espíritos dos defuntos, antes do Julgamento

Final, não entram nem no Céu nem no Inferno e são recebidos noutros

receptáculos. Bernardo afirma que eles se enganam: «Há de facto três

lugares que recebem os espíritos libertos da carne. O Paraíso recebe os

espíritos dos perfeitos, o Inferno os inteiramente maus, o fogo purgatório

aqueles que não são inteiramente bons nem inteiramente maus. Assim

um lugar inteiramente bom recebe os inteiramente bons; um lugar extremamente

mau recebe os inteiramente maus; um lugar medianamente mau

recebe os medianamente maus, e é menos duro do que o Inferno mas pior

do que o mundo''?»,

203



Bernardo de Fontcaude não conhece pois o Purgatório mas apenas o

fogo purgatório. Mas este tomou-se um lugar, o além entre a morte e o Julgamento

Final é triplo e, pela primeira, vez o (Purgatório) é definido como

um lugar duplamente intermédio, médio: topográfica e judicialmente.

Conhece-se mal Ermangaud de Béziers (também existem vários personagens

com este nome) mas o seu tratado contra os Valdenses (Contra

Wa/denses) data muito provavelmente dos últimos anos do século XII ou

logo dos primeiros do século XIII. No capítulo XVII ele ataca as opiniões

perversas de certos hereges que asseguram que as preces dos santos não

ajudam os vivos e que os defuntos não são confortados pelas oferendas e

as orações dos vivos. Contra eles, Ermengaud afirma que há três espécies

de defuntos: os inteiramente bons que não precisam de ajuda, os inteiramente

maus pelos quais nada se pode fazer porque no Inferno não existe

redenção, e uma terceira categoria, os que não são inteiramente bons nem

inteiramente maus, que se confessaram mas que não terminaram a sua

penitência. Ermengaud não só não pronuncia a palavra purgatório como

também não emprega qualquer palavra da família de purgare. Diz ele que

esses mortos «não são nem condenados nem imediatamente salvos, mas

que sao - puni idos enquanto esperam a sa Ivaçao» - 28.

Uma Súmula contra os Hereges, do início do século XIII, erradamente

atribuída a Prévostin de Cremona, chanceler de Paris falecido em 1210,

acusa alguns hereges chamados «Passagins» de se recusarem a orar pelos

mortos. Depois de ter refutado a interpretação que eles fazem da história

do pobre Lázaro e do mau rico, relegando para o passado, anteriormente

à descida do Cristo aos infernos, a existência do seio de Abraão ou

«limbo do inferno» que ocupa o inferno superior em relação ao inferno

médio e ao inferno inferior, o pseudo-Prêvostin apresenta a sua solução

para o problema das preces pelos mortos. Deve-se rezar «pelos medianamente

bons que estão no Purgatório, não para que se tornem melhores

mas para que sejam libertados mais cedo, e pelos medianamente maus

não para que sejam salvos mas para que sejam menos punidos.» O pseudo-Prêvostin

revela-se pois muito agostiniano e distingue entre a purgação

no Purgatório, que existe, e a «condenação mais tolerável» que tem

provavelmente lugar no Inferno. A doutrina católica sobre os sufrágios

apoia-se para ele nas seguintes autoridades: o segundo livro dos Macabeus,

12, o versículo dos Provérbios, XI, 7: «Quando o justo morre, a sua

esperança não morre», comentado por Bede (cf. PL, 91, 971) e sobretudo

Mateus XII 32 «onde se demonstra claramente que certos pecados são

, '.' . 29

remidos na Vida futura». Deve-se pOIS rezar pelos mortos .

O caso de Alain de Lille é diferente. Trata-se, antes de mais, de um

mestre de primeiro plano?". Professor na incipiente universidade de

Montpellier, falecido em 1203, empenha-se na luta contra os hereges valdenses

e cátaros, mas no seu tratado Contra os Hereges (Contra Haere-

204

.. 31

ticos ) «deixou cair a questão do Purgatório» .

E

m compensaçao,

-

abordou o problema nos seus tratados sobre a penitência e a prédi~a.

Na sua Súmu/a sobre a Arte da Pregação (Summa de arte praedicatoria),

declara a propósito da penitência: «Existe um fogo triplo: purgatório,

probatório e decisivo. O purgatório é a reparação dos pecados, o

probatório o exame (tentatio ) e o decisivo a c~ndena?ão eter~a. "», O

fogo purgatório é duplo: um tem lugar no caminho (ca em baixo), e a

penitência; outro depois da vida, é a pena purgató~a. Se n~s expurgamos

no primeiro, ficamos isentos do segun~o e .do terceiro; s~ ~ao sofr~rmos o

primeiro sofreremos o segundo ... O pnmeiro, o Purgatono, exclui os outros

dois ... o fogo purgatório não é senão a sombra e o retrato do segundo

e assim como a sombra e o retrato do fogo material não provoca

qualquer dor ... também o fogo penitência não é amargo em comparação

com o segundo fogo purgatório»; e cita Agostinho ". O q~e ~n~eressa p~is

u Alain de Lille é a penitência, e nessa época de extraordinária ~~oluçao

da penitência, ele identifica o fogo da atribulação terrena admitido por

Agostinho com a penitência cá neste mundo. . .

No seu tratado sobre a penitência, o Liber poenitentia/is, redigido depois

de 1191 e de que existem várias versões entre as quai~ uma ~onga

escrita entre 1199 e 1203, Alain interroga-se sobre se a Igreja, por mtermédio

do' bispo ou do padre, pode perdoar a penitência na absolvição. ~s

ideias de Alain podem parecer desconcertantes: para ele, o fogo purgatorio

propriamente dito é o da penitência aqui e~ baixo; e li~ita o pod~r Ado

bispo ou do padre ao perdão da pe?a purgatona, quer d~zer d~ pemtencia;

mas a Igreja nada pode para alem da morte, o que nao sera o entendimento

do clero do século XIII 33 .

Nestes textos Alain de Lille, que dispõe de um vocabulário simultaneamente

tradicional e novo fala tanto do fogo purgatório (ignis purgatorius)

e da pena purgatoria (poena purgatoria ) como do Pu~gatóri?

propriamente dito. Usa notoriamente o substantivo numa questao particularmente

interessante que comentarei adiante a propósito do «tempo

do purgatório»: «Pergunta-se se aquele que d~via cuo:prir (uma penitência

aqui em baixo) de sete anos e não a cu~pn?, ficar~ ~urante sete anos

no Purgatório. Respondemos nós: ele terminara sem dúvida esse dever no

Purgatório, mas ~uanto tempo lá ficará isso só o sabe aquele que pes~ as

penas na balança 4,» O que significa pôr o pr?~lema da p~oporclOnahdade

das penas do Purgatório e abrir a contabilidade do alem.

o atraso

dos canonistas

Contemporâneo da expansão teológica de que Paris é o centro, ou-

Iro movimento intelectual agita a cristandade da segunda metade do

205



século XII - a efervescência do direito canónico, cujo centro intelectual,

institucional e político é Bolonha. Já o mencionei a propósito desse texto

essencial que é o Decreto de Graciano (cerca de 1140). Ora, quando do

nascimento do Purgatório, o movimento canonista parece estranhamente

ausente. Monsenhor Landgraf já o notara de um modo mais genérico:

«Não podemos no entanto esconder, escrevia ele em 1948, que em geral

os canonistas, longe de promoverem o progresso sistemático em teologia,

contentam-se a maior parte das vezes com entravar-lhe o passo ".» Um

canonista autor de um dos primeiros comentários ao Decreto de Graciano,

a Suma cotoniensis, de 1169, ao referir-se aos sufrágios pelos mortos e

portanto ao Purgatório, confessa-o: «Não tratei esta questão por ela dizer

respeito mais aos teólogos do que aos canonistas"'.» Não é pois de estranhar

que o grande canonista do fim do século XII Uguccione (ou Hugucio)

de Pisa, na sua Súmu/a dos Decretos (Summa Decretorum) terminada

entre 1188 e 1192, afirme que o tempo da purgação vai do momento da

morte até ao do Julgamento Final; no que toca ao lugar dessa purgação,

recorda que Agostinho falou de lugares secretos, escondidos (é o texto

reproduzido no Decreto de Graciano) e confessa que também ele o ignora

«Ignoro et ego ... 37 »

Todavia este silêncio não durará muito pois os canonistas apercebem-se

rapidamente de que a questão é actual e importante e também

lhes diz respeito, Nos primeiros anos do século XIII Sicard de Crémone,

falecido em 1215, escreve ao comentar Graciano (quer dizer Agostinho):

«É preciso entender que se trata daqueles que estão no Purgatório, mas

alguns pensam que se trata dos que são atormentados no Purgatório e

cujas penas podem, todas elas, ser mitigadas".» É interessante notar

que, no manuscrito da Summa Coloniensis de que falei atrás, uma

mão do século XIII anotou o esquema de Sicard de Cremona, corrigindo

assim a confissão de indiferença do autor da Summa. O Purgatório e

respectivo sistema estão também presentes, por exemplo, nas notas explicativas

que João, o Teutónico, falecido em 1245, redigiu pouco depois

de 1215 sobre o Decreto de Graciano. João retoma o texto de

Santo Agostinho e do Decreto sobre os lugares secretos que nos são

escondidos, e afirma a utilidade, para os medianamente bons, dos sufrágios

graças aos quais eles serão libertados mais rapidamente do fogo

do Purgatório'".

Cerca de 1200: o Purgatório

instala-se

Suponho que três autores resumem, no começo do século XIII, o novo

sistema do além resultante do aparecimento do Purgatório:

206

Uma carta e um sermão de Inocência

o primeiro é, aliás, o Papa Inocêncio 111(1198-1216). É notável que o

pontífice tenha aceitado tão depressa as novas concepções. Numa carta

ao arcebispo de Lyon, em 1202, o Papa mostra-se circunspecto. Sobre as

conclusões a tirar da diferenciação agostiniana (retomada no Decreto de

Graciano) entre as quatro categorias de defuntos: os inteiramente bons,

os inteiramente maus, os medianamente bons e os medianamente maus, e

da eficácia dos sufrágios dos vivos por intermédio da Igreja, em acções de

graça para os inteiramente bons, em consolações para os vivos para os

inteiramente maus, em expiações para os medianamente bons e em propiciações

para os medianamente maus, ele remete-se ao discernimento do

prelado'". Mas num sermão para o Dia de Todos-os-Santos sobre os dois

serafins, os três exércitos e os cinco lugares onde estão os espíritos dos

mortos, é muito mais conciso.

Os dois serafins são os dois Testamentos. Os três exércitos são a Igreja

triunfante no Céu, a Igreja militante na terra e a Igreja «que está no

Purgatório». A primeira age no louvor, a segunda na luta e a terceira

no fogo. Na primeira epístola aos Coríntios, Paulo faz alusão à terceira.

E há ainda os cinco lugares onde se encontram os espíritos humanos.

O lugar supremo é o dos supremamente bons, o lugar ínfimo o

dos supremamente maus; o lugar do meio é para os que são bons e

maus: entre o lugar supremo e o lugar do meio existe um lugar para os

medianamente bons; entre o lugar dos meio e o lugar ínfimo há um lugar

para os medianamente maus. O lugar supremo é o Céu, onde estão os

bem-aventurados. O ínfimo é o Inferno, onde estão os eternamente condenados,

o do meio é o mundo onde existem justos e pecadores. Entre o

supremo e o médio está o paraíso (terreno) onde ainda vivem Énoch e

Elias que morrerão. Entre o médio e o Ínfimo (há o Purgatório) onde

Miíocastigados os que não fizeram penitência cá em baixo ou que levaram

consigo na morte algum pecado venial. Se bem que haja cinco lugares,

apenas existem três exércitos. Os que estão no Paraíso, ainda que pertençarn

ao exército de Deus, não formam por si só um exército pois são

apenas dois. O exército do meio rende hoje homenagens ao exército

que triunfa no céu, e amanhã ergue preces pelos que estão no purgatório.

Inocêncio 111 acrescenta aqui uma observação de ordem psicológica:

«Com efeito, quem não louvará de boa vontade a indivisível Trindade

pelos santos, por meio de preces e dos méritos com que julgamos ser

ajudados para também um dia estarmos lá onde eles estão? Quem não

elevará de boa vontade preces à indivisível Trindade pelos mortos, quando

ele próprio terá de morrer, quem não fará nesta vida por outrem o que

deseja que façam por ele depois de morto?» E o Papa termina exaltando a

solenidade da Festa de Todos-os-Santos".

207

III



Texto admirável onde se fala por várias vezes do Purgatório e onde

Inocêncio lU dá, sob uma forma simbólica tradicional, a expressão mais

completa, mais clara, mais elaborada - encerrando a humanidade inteira

desde o aparecimento até ao fim dos tempos num plano perfeito, cuja

parte terrena se desenrola sob o estrito controlo da Igreja. A Igreja torna-se

ela própria tripla. Agostinho distinguira Igreja «peregrinante» e

Igreja «celeste»; o século XII impusera os novos termos de Igreja «militante»

- expressão lançada por Pedro, o Devorador'f - e a Igreja «triunfante».

Inocêncio 11I acrescenta-lhe a Igreja do Purgatório, enunciando

um terceiro termo, que sob o nome de Igreja «sofredora» completará

mais tarde a triade eclesiástica. É o triunfo da racionalização dos cinco

lugares apontados pelo pseudo-Pedro Damião e pelo pseudo-Bernardo, O

pontífice, de resto, maravilha-se com este belo arranjo: «Oh! como a instituição

desta prática é conveniente e salutar!»43

Purgatório e confissão: Thomas de Chobham

O segundo texto é extraído da Súmula dos confessores, do inglês Thomas

de Chobham, formado em Paris no círculo de Pedro, o Chantre.

Terei oportunidade de voltar a referir-me à confissão, à sua ligação

com o aparecimento do Purgatório, à influência das decisões do quarto

concílio de Latrão (1215) e à redacção daqueles manuais para confessores

que testemunham da subversão da vida espiritual, dos novos problemas

das consciências dos homens, da multiplicação das suas dúvidas sobre o

mundo cá de baixo e do além, e dos esforços da Igreja para manter o

controlo sobre a nova sociedade.

A Súmula confessorum, de Thomas de Chobham, foi escrita pouco

antes de Latrão IV e terminada a seguir ao concílio. O Purgatório é mencionado

a propósito das missas pelos defuntos. «A missa, diz a Súmula, é

celebrada pelos vivos e pelos defuntos, mas por estes duplamente, pois os

sacramentos do altar são petições para os vivos, acções de graça para os

santos e propiciações para os que estão no Purgatório, e têm como resultado

a remissão da sua pena. E é para simbolizar esta crença que a hóstia

no altar é dividida em três partes, e uma parte é para os santos, outra

parte para os que vão ser santificados. Aquela tem uma acção de graça,

esta é uma súplica'".»

A Súmula responde em seguida à questão de saber se a missa pelos

defuntos tem alguma eficácia para os condenados que estão no Inferno

- baseando-se no capítulo CX do Enchiridion de Agostinho quando fala

de «condenação mais tolerável». Thomas de Chobham é de opinião de

que por «condenação eterna» se deve entender «a pena do Purgatório,

pois nada se pode fazer pelos condenados ao Infernon'".

Vê-se aqui o Purgatório referido como um facto consumado, adquirido

e aquele Purgatório integrado simultaneamente na liturgia e na disciplina

penitencial. Os laços entre os vivos e os mortos estreitam-se.

() antigo e o novo vocabulário do além

Finalmente, torna-se necessário adaptar a velha terminologia do além

ü nova geografia do outro mundo. Alguns interrogam-se sobre o que

significam, em relação ao Purgatório, as expressões bíblicas, «a goela

do leão», «a mão do inferno», «o lago do inferno», «os lugares das trevas»

e «tártaro». Numa obra composta cerca de 1200 (nela são mencionados

Pedro, o Chantre, e Prévostin), o autor que é talvez Paganus de

Corbeil declara que na prece «liberta as suas almas da goela do leão,

da mão do Inferno, do lago do Inferno» deve entender-se que se trata

do fOfO purgatório em sim mesmo, conforme seja mais ou menos

forte" . Na sua Súmula, Geoffroy de Poitiers, falecido em 1231, dará outra

explicação: «Mais vale dizer, escreve ele, que há diversas moradas no

Purgatório: a umas chama-se lugares obscuros das trevas, a outras mãos

do Inferno, a outras ainda goela do leão e finalmente a outras tártaro. E

destas penas, a Igreja pede que as almas dos mortos sejam libertadas'".»

Eis o lugar purgatório por sua vez dividido. A frase de João, XIV, 2:

«Na casa do meu Pai há numerosas moradas», válida para todo o além, é

por sua vez aplicada a este novo espaço do além. Assiste-se já, por assim

dizer, ao loteamento do Purgatório.

208

209



NOTAS

I Para pormenores, ver o Apêndice 11: Purgatorium.

2 PL, 171, Col. 739 e ss. A parte mais interessante desta passagem lê-se assim no

original latino: «Ad hunc modum in aedificatione coelestis Jerusalem tria considerantur,

separatio, politio, positio. Separatio est violenta; politio purgatoria, positio aeterna.

Primum est in angustia et afflictione; secundum, in patientia et exspectatione; tertium

in gloria et exsultatione. Per primum (cribratur) homo sicut triticum; in secundo examinatur

homo sicut argentum; in tertio reponitur in thesaurum» (col. 740).

3 «Tertio, memoria mortuorum agitur, ut hi qui in purgatorio poliuntur, plenam

consequantur absolutionem, vel poenae mitigationem» (PL, 171, col. 741).

4 HAUREAU, «Notice sur les sermons attribués à Hildebert de Lavardin» in

Notices et Extraits des manuscrits de Ia Bibliothêque nationale et autres bibliothéques,

XXXII, 2, 1888, p. 143. R. M. MARTIN, «Notes sur I'oeuvre littéraire de Pierre le

Mangeur» in Recherches dethéologie ancienne et médiévale, Hl, 1932, pp. 54-66. A.

LANDGRAF, «Recherches sur les écrits de Pierre le Mangeur» in Recherches de théologie

ancienne et médiévale, IlI, 1932, pp. 292-306 e 341-372. A. WILMART, «Les

sermons d'Hildebert» in Revue bénédictine, 47, 1935, pp. 12-51. M. M. LEBRE-

TON, «Recherches sur les manuscrits contenant des sermons de Pierre de Mangeur»

in Bulletin d'information de l'Institut de Recherche et d'Histoire des Textes, 2 (1953), pp.

25-44. J. B. SCHNEYER no tomo IV, p. 641 (1972) do Repertorium der lateinischen

sermones des Mittelalters flir die Zeit von 1150-1350 aceita a atribuição de Pedro, o

Devorador, do sermão 85 (Jesuralem quae aedificatur ) da velha edição de Beaugendre

(1708) - atribuição a Hildebert - retomada por Migne (PL, 171, col. 739 e ss.). F.

Dolbeau fez o favor de examinar por nós os dois mais antigos manuscritos conhecidos

até hoje. Confirma a atribuição a Pedro, o Devorador, e a lição in purgatorio (Ms.

Angers 312 (303), f. 122 v' e Angers 247 (238) f. 67 v', ambos do fim do século

XII). Mas descobriu um manuscrito mais antigo (Valenciennes, Biblioteca municipal

227 (218) 9. 49) no qual falta o fragmento da frase in purgatorio poliuntur. É surpreendente

que Joseph Ntedika, geralmente muito bem informado, tenha escrito a respeito

de Hildebert «ele é provavelmente o primeiro a empregar a palavra purg atorium»

(L 'Évolution de Ia doctrine du purgatoire chez saint Augustin, Paris, 1966, 11, n' 17).

Sobre Pedro, o Devorador, deve também consultar-se I. BRADY, «Peter Manducator

and the Oral Teachings of Peter Lombard» in Antonianum, XLI, 1966, pp. 454-490.

5 PEDRO, O DEVORADOR, De Sacramentis. De penitentia, capo 25-31 ed. R. M.

Martin in Spicilegium sacrum Lovaniense, XVII, apêndice, Lovaina, 1937, pp. 81-82.

6 PL, 198, 1589-1590.

7 O que não contribui para tomar as coisas mais claras é o facto de, na segunda

metade do século XII, haver em Paris vários Odon ou mestre Odon, tendo um deles

sido chanceler de 1164 a 1168. Ver M. M. LEBRETON, «Recherches sur les manuscrits

des sermons de différents personnagens du Xll" siêcle nommés Odon» in Bulletin

rir l'Institut de Recherche et d'Histoire des Textes, 3, 1955, pp. 33-54.

8 IICum materialis poena si/ ille ignis, in loco est. Ubi ergo sit, quaerendum relinquo».

Estas Quaestiones magistri Odonis foram publicadas por J. B. PITRA, Analecta no vissima

spieilegíi Solesmensis altera continuatio, t. 11, Tusculum, 1888, pp. 137-138.

9 A. M. LANDGRAF, «Quelques collections de Questiones de Ia seconde moitié

du XII e siêcle» in Recherches de théologie ancienne et médiévale, 6, 1934, pp. 368-393

e 7, 1935, pp. 113-128. É na página 117 do volume 7 que Landgraf exprime reservas

sobre as questões editadas por Pitra e cita os trabalhos de M. CHOSSAT,

«La Somme des Sentences» in Spicilegium Sacrum Lovaniense, 5, Lovaina, 1923,

pp. 49-50 e de J. WARICHEZ, Les disputationes de Simon de Tournai, ibid., 12, tovaina,

1932.

10 O. J. BLUM, SI. Peter Damien: Bis Teaching on the Spiritual Life, Washington,

1947. J. RYAN, «Saint Peter Damiani and the sermons of Nicolas of Clairvaux» in

Medieval Studies, 9, 1947, pp. 151-161 e sobretudo F. DRESSLER, Petrus Damiani.

ieben und Werk (Studia Anselmiana, XXXIV), Roma 1954 e especialmente Anihang,

J. pp. 234-235.

I Já a Patrologia latina atribui este sermão a Nicolau de Clairvaux (PL, 184, 1055-

-1060), mas encontramo-lo sob o nome de Pedro Damião nesta patrologia, no tomo

144, 835-840. Este sermão foi para a festa de Saint Nicolas, que foi um dos «patronos

do Purgatório». O sermão atribuído a S. Bemardo encontra-se nas obras completas

editadas por J. Leclercq e H. M. Rochais, Opera, VI/I, pp. 255-261. Sobre os sermões

De diversis atribuídos a S. Bemardo e especialmente sobre o sermão 42, ver H.-M.

ROCHAIS, «Enquête sur les sermons divers et les sentences de saint Bernard» in

Analecta SOC, 1962, pp. 16-17 e Revue bénédictine, 72, 1962.

12 Sobre Nicolas de Clairvaux, além do artigo de J. Ryan, ver A. STEIGER,

«Nikolaus Mõnch in Clairvaux, Sekretâr des heiligen Bernhards in Studien und Mitteilungen

zur Geschichte des Benediktinerordens und seiner Zweige, N. F. 7, 1917, pp.

41-50. J. LECLERCQ, «Les collections de sermons de Nicolas de Clairvaux» in Revue

bénédictine, 66, 1956 e especialmente p. 275, n. 39.

13 Mme M.-C. GARAND examinou dois manuscritos entre os três mais antigos,

Paris, Biblioteca Nacional, ms.Iatino 2571 e Cambrai 169. Escreve-me ela que «o facto

de a santidade de S. Bemardo não figurar no título e ser objecto de correcção no ex-

-libris situa sem dúvida o manuscrito antes da sua canonização, em 1174. Mas talvez

não muito antes, pois a escrita é já bastante perfeita e poderia bem situar-se no terceiro

quarto do século XII. Quanto ao manuscrito de Cambraí a sua escrita e as suas características

específicas sugerem, também eles, a segunda metade do século».

14 S. BERNARDO, Opera, ed. J. Leclercq-H, Rochais, V, 383-388 e especialmente

386. O sermão LXXVIII De diversis sobre o mesmo tema parece-me mais um plágio

forçado e simplificado de S. Bemardo do que um texto totalmente autêntico. ~as é

apenas uma impressão. Não fiz qualquer pesquisa a este respeito. Ver B. de VREGIL-

LE, «L'attente des saints d'aprês saint Bemard» in Nouvelle Revue théologique, 1948,

pp. 225-244.

15 Trata-se do manuscrito latino 15912 da Biblioteca nacional de París. Mme

Georgette Lagarde transcreveu dele as passagens que resumo aqui. A expressão in

210

211



purgatorio encontra-se no fólio 64b, e o exemplum tirado da vida de S. Bemardo nos

fólios 65c-66a.

\6 Ver J. BALDWIN, Masters, Princes and Merchants. The Social Views of Peter

the Chanter and his Cire/e, 2, vol., Princeton, 1970.

\7 PEDRO, O CHANTRE, Summa de Sacramentis et Animae Consiliis, ed. J. A.

Dugauquier in Analecta Mediaevalia Namurcensia, 7, 1957, pp. 103-104.

\8 Ibid., pp. 125-126.

\9 PEDRO, O CHANTRE, Summa de Sacramentis ... , 3 8 parte, Ill, 2 a. Liber

casuum conscientiae, ed. J. A. Dugauquier ín Ana/eeta Mediaevalia Namurcensia, 16,

1963, p. 264.

20 PL, 205, col. 350-351. A data de 1192 foi proposta por D. VAN DEN EYNDE,

«Prêcisions chronologiques sur quelques ouvrages thêologiques du XII e siêcle» in

Antonianum, XXVI, 1951, pp. 237-239.

2\ J. WARlCHEZ, Les Disputationes de Simon de Tournai. Texto inédito, Lovaina,

1932. As disputas XL, LVe LXXIII encontram-se nas páginas 118-120, 157-158 e'

208-211.

22 PL, 211, col. 1054. Ver Ph. S. MOORE, The Works of Peter of Poitiers, Master

in Theology and Chanceller of Paris (J193-1205), Publicações in Medieval Studies,

Notre-Dame, (Ind.), I, 1936.

23 «Vie de saint Victor, martyr de Mouzon», ed. F. Dolbeau, Revue historique

ardennaise, t. IX, p. 61.

24 R. MANSELLI, «Il monaco Enrico e Ia sua eresia» in Bolletino de//'Istituto

Storico Italiano per iI Medio Evo e Archivio Muratoriano, 65, 1953, pp. 62-63. Sobre

as heresias do século XII ver a obra fundamental de R. MANSELLI, Studi sul/e eresie

dei secolo Xll, Roma, 1953.

25 S. BERNARDO, Opera, ed. J. Leclercq e H. Rochais, vol. lI, p. 185. Ver a

introdução dos editores, vol. I, p. IX.

26 PL, 204, 795-840 (os capítulos 10 e Ii estão nas colunas 833-835). Cf. A. PASo

CHOWSKY e K. V. SELGE, Quellen zur Geschiehte der Waldenses, Gõttingen, 1973 e

L. VERREES, «Le traité de l'abbê Bemard de Fontcaude contre les vaudois et lee

ariens» in Analecta praemonstratensia, 1955, pp. 5-35. G. GONNET pensa que estas

ideias «foram professadas, pelo menos originariamente, mais por outras seitas do que

pelos valdenses» (xd,e cheminement des vaudois vers le schisme et I'hérésie (1174-

-1218)>>in Cahiers de civi/isation médiévale, 1976, pp. 309-345).

27 Tria quippe sunt /oea quae spiritus a carne so/utos recipiunt . Paradisus recipit

spiritus perfectorum. Infernus valde maios. Ignis purgatorionis eos, qui nec valde bonl

sunt nec valdemali.Elsic.va/de bonos suscepit locus valde bonus; valde maios loCUI

summe malus; mediocriter ma/os loeus mediocriter malus, id est /evior inferno, sec pejor .

mundo» (PL, 204, col. 834-835).

28 «Et hi non damnantur, nec statim salvantur, sed puniuntur sub exspectatione percipiendae

saiu tis» (PL, 204, 1268).

29 The Summa contra haereticos ascribed to Praepositiuus of Cremona, ed. J. N.

Garvin e J. A. Corbett, Notre-Dame (lnd.), 1958, principalmente pp. 210-211.

30 Ver o estudo fundamental de M.-T. d'ALVERNY, Alain de Li/le. Textes inédus

avec une introduction sur sa vie et ses oeuvres, Paris, 1965.

3\ G. GONNET in Cahiers de civilisation médiévale, 1976, p. 323.

32 Summa de arte praedicatoria, PL, 210,174-175.

33 Liber poenitentialis, ed. J. Longêre, t. 2, Lovaina- Lille, 1965, pp. 174-177.

34 Ibid., p. 177: «l/em quaeritur si iste debebat implere septem annos et non implevit,

212

utrum per septem annos sit in purgatorio? Respondemus: procu/ dubio implebit illam

satisfactionem in purgatorio, sed quamdiu ibi sit, il/e novit qui est librator poenarum.»

35 A. M. LANDGRAF, Einführung in die Gesehichte der theologischen Literatur der

Frühscholastik , Ratisbonne, 1948, trad. francesa completa e actualizada, Paris, 1973, p.

~8.

36 Citado por A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte der Frühscholastik, IV/2,

Ratisbonne, 1956, p. 260, n. 3.

37 Segundo o manuscrito Paris, Biblioteca nacional, ms latino 3891, fól. 183 v·

(informações amavelmente prestadas pelo Padre P. M. Gy).

38 Citado por A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte ... , IVj2, p. 261, n. 6.

39 Johannes Teutonicus, fól. CCCXXXV V, CCCXXXVI.

40 PL, 214, 001. 1123.

4\ PL, 217, col. 578-590. Eis a passagem essencial:

Deus enim trinus et unus, tres tribus /ocis habet exercitus. Unum, qui triumphat in

coe/o; alterum, qui pugnat in mundo; tertium, qui jacet in purgatorio. De his tribus

rxercitibus inquit Apostolus: «In nomine Jesu omne genu flectatur, coelestium, terrestrlum

et infernorum (Filipinas 11).» Hi tres exercitus distincte clamam cum seraphim,

Sanctus Pater, sanctus Filius, sanctus Spiritus. Patri namque attribuitur potentia, quae

convenit exercitui, qui pugnat in via; Filio sapientia, quae competit exercitui, qui triumphat

in patria; Spiritui sancto misericordia, quae congruit exercitui, qui jacet in poena.

Primus exercitus in laude, secundus in agone, tertius autem in igne. De primo /egitur:

liBeati qui habitant in domo lua, Domine, in saecula saeculorum laudabunt te (Salmos,

LXXXIII);» de secundo dicitur: «Militia est vila hominis super terram; et sicut dies

mercenarii, -dies ejus (Job, VII).» De ter tio vero inquit Aposto/us: «Uniuscujusque opus

quale sit, ignis probabit (I Corintios, III).» Sane quinque loca sunt, in quibus humani

spiritus commorantur. Supremus qui est summe bonorum; infimus, qui est summe malorum;

medius, qui est bonorum et maforum; et inter supremum et medium unus, qui est

mediocriter bonorum; et inter medium et infimum alter, qui est mediocriter ma/orum.

Supremus, qui est summe bonorum, est coelum, in quo sunt beati. lnfimus, qui est summe

malorum, est infernus, in quo sunt damnati. Medius, qui est bonorum et malorum, est

mundus, in quo justi et peccatores. Et inter suprem um et medium, qui est mediocriter

bonorum, est paradisus; in quo sunt Enoch et Elias, vivi quidem, sed adhuc morituri.

1\1 inter medium et infimum, qui est mediocriter malorum, in quo puniuntur qui poenitenliam

non egerunt in via, vel aliquam maculam venia/em portaverunt in morte.

42 Ch. THOUZELLIER, «Ecclesia milítans» in Études d'histoire du droit canonique

dedicados a Gabriel Le Bras, tomo II, Paris, 1965, pp. 1407-1424.

43 «O quam rationabilis et salubris est hujus observantiae institutio», PL, 217, col.

WO.

44 THOMAS DE CHOBHAM, Summa Confessorum, ed. F. Broomfield, Lovaina-

-Paris, 1968, pp. 125-126.

45 Ibid., p. 127.

46 Manuscrito Paris, Biblioteca nacional, ms latino 14883, fólio 114, citado por A.

M. LANDGRAF, Dogmengeschichte ..., IV/2, p. 281, n. 61.

47 «Melius eSI, ut dicatur, quod diverse mansiones sunt in purgatorio: alia appelantur

obscura tenebrarum Ioga, alia manus inferni, alia os leonis, afia tartarus. E/ ab istis penis

petit Ecclesia animas mortuorum liberari» (Ibid., p. 281, n. 61).

213



VI - O PURGATÓRIO

ENTRE A SICÍLIA E A IRLANDA

Da visão de Drythelm à de Carlos, o Gordo, as viagens imaginárias

pelo além - consideradas «reais» pelos homens da Idade Média, se bem

que sejam apresentadas como «sonhos» (somnia) - são viagens de vivos

cujo corpo permanece enquanto a alma volta à terra. Estas visões prosseguem

ao longo do século XIII e a última, o Purgatório de S. Patrick,

marcará uma etapa decisiva no nascimento do Purgatório numa dupla

geografia, a geografia terrena e a geografia do além.

Mas assiste-se também ao esboçar de um outro tipo de narrativa que

no século XIII acolherá - e difundirá - largamente o Purgatório. São os

relatos de aparições a vivos de defuntos que sofrem as penas purgatórias e

vêm pedir os sufrágios desses vivos ou aconselhá-los a emendar-se se

quiserem evitar as penas purgatórias. É no fundo o retomar das histórias

do Livro IV dos Diálogos de Gregório, o Grande, mas esses espectros não

estão na terra a expurgar-se dos seus restantes pecados mas em permissão

excepcional de curta demora, o tempo de um sonho.

Visões monásticas:

as aparições

Estas aparições são principalmente notadas no meio monástico, o que

nada tem de espantoso pois a leitura de Gregório, o Grande - nos seus

Moralia mas também nos Diálogos cujo segundo livro «lançou» São Bento

- é assídua sobretudo nos mosteiros, e os monges, nesses tempos em

que se desconfia dos sonhos (Gregório, o Grande, dissera-o e Pedro Damião

repete-o no século XI), são os seus beneficiários privilegiados, bem

como das visões e das aparições, porque são mais aptos do que os outros

para resistir às ilusões diabólicas como fez Santo Agostinho, e mais dignos

de receber as mensagens autênticas e edificantes de Deus.

É assim que no opúsculo XXXIV, segunda parte, Sobre diversas aparicões

e milagres (De diversis apparitionibus et miraculis) escrito entre

215



1063e 1072, Pedro Damião, natural de Ravena e uma das maiores figuras

de entre os eremitas italianos, que veio a ser cardeal cerca de 1060 e era

muito sensível à recordação dos mortos na devoção dos grupos eremitas

como «comunidades de oração» 1, relata duas aparições de almas que

sofriam as penas purgatórias/. A primeira história passou-se em Roma,

segundo o seu informador, o padre João, poucos anos antes de ele escrever.

Na noite da Festa da Assunção de Maria, quando os Romanos

oravam e cantavam litanias nas igrejas, uma mulher que se encontrava

na basílica de Santa Maria in Campitello «viu uma comadre sua que

estava morta havia cerca de um ano. Como não conseguia dirigir-lhe a

palavra por causa da multidão que se comprimia, arranjou maneira de a

esperar numa esquina de uma ruela, de maneira a não a perder quando

ela saísse da basílica. Quando ela passou, interrogou-a logo: "Não és a

minha comadre Marozia, que morreu? .." A outra respondeu: "Sou eu,

sim. - E como podes tu estar aqui?" Ela disse: "Até hoje eu estive retida

por uma pena que não era leve, porque quando ainda era muito nova

entreguei-me à sedução de uma lascívia impudente, pratiquei actos vergonhosos

com raparigas da minha idade e, ai de mim!, tendo-me esquecido

disso embora me tivesse confessado a um padre, não o submeti ao julgamento

(da penitência). Mas hoje a rainha do mundo ergueu preces por

nós e libertou-me dos lugares das penas (de /ocis poenalibus), e por sua

intervenção foi hoje arrancada aos tormentos uma multidão tão grande

que ultrapassa toda a população de Roma: Assim, visitamos os lugares

sagrados dedicados à nossa gloriosa senhora para lhe agradecer tão grande

benesse." Como a comadre duvidasse da veracidade desta história, ela

acrescentou: "Para verificares a realidade do que digo, fica sabendo que

dentro de um ano, no dia desta mesma festa, tu morrerás sem dúvida

alguma. Se, o que não acontecerá, viveres mais, poderás estão acusar-

-me de mentir." E com estas palavras desapareceu. A outra, preocupada

com a predição da sua morte, levou daí em diante um vida mais prudente.

Passado um ano, na véspera da festa, caiu doente e, tal como lhe fora

predito, morreu. O que se deve reter e é bem assustador é que, pela falta

de que se esquecera, aquela mulher foi supliciada até à intervenção da

lmaculada Mãe de Deus.»

Relato espantoso pelo seu poder evocatório, e que marca a entrada da

Virgem Maria nos lugares purgatórios. Naquele fim do século XI, quando

o culto mariano, que irá conhecer um êxito estrondoso, explode tardiamente

no Ocidente, a Virgem afirma-se já como principal auxiliar dos

defuntos do futuro Purgatório.

A outra história edificante diz Pedro Damião tê-Ia ouvido ao bispo de

Cumes, Rainaud que, por sua vez, a recebera do venerando bispo Hurnbert

de Sainte-Ruffine, então já falecido. Contou ele que «um padre que

dormia no silêncio da noite teve uma visão em que um compadre seu que

216

já morrera chamava por ele: "Vem ver um espectáculo que não poderá

deixar-te indiferente." E conduziu-o à basilica de Santa Cecília em cujo

átrio viram as santas Inês, Ágata e a própria Cecília, e um coro de muitas

e resplandecentes virgens santas. Preparavam estas um trono magnífico,

mais alto do que os que o cercavam, e eis que a Santa Virgem Maria, com

Pedro, Paulo e David, veio sentar-se no trono que fora preparado, rodeada

por uma multidão luzente de mártires e santos. Quando o silêncio

reinava naquela assembleia tão santa e todos estavam respeitosamente

de pé, uma pobre vestindo, no entanto, um casaco de peles, prosternou-se

aos pés da Virgem Imaculada e implorou-lhe piedade pelo defunto

patrício João. Como repetisse por três vezes a sua prece e não obtivesse

resposta, acrescentou: "Sabes, minha senhora, rainha do mundo, eu sou

aquela infeliz que jazia nua e trémula no átrio da tua basília principal

(Santa Maria Maior). Aquele (o patrício João), logo que me viu teve

dó de mim e cobriu-me com esta pele com que estava vestido." Então a

bem-aventurada Maria de Deus disse: "O homem por quem imploras foi

esmagado por grande quantidade de crimes. Mas teve dois pontos bons: a

caridade para com os pobres e devoção, com toda a humildade, nos lugares

santos. Com efeito, muitas vezes transportou aos ombros óleo e

pedaços de madeira para as luzes da minha Igreja." Os outros santos

testemunharam que ele fazia o mesmo para as suas igrejas. A rainha do

mundo ordenou que o patrício fosse conduzido ao meio da assembleia.

Logo uma multidão de demónios arrastou João amarrado com

correntes.'. Então Nossa Senhora ordenou que ele fosse liberto e viesse

engrossar as hostes dos santos (eleitos). Mas ordenou também que os

laços de que ele fora solto ficassem guardados para um outro homem

ainda vivo.» Após uma cerimónia presidida por S. Pedro na sua igreja,

«o padre que continuava a ter esta visão acordou e o sonho terminou»,

Que nesta história como na anterior, os lugares de castigo e os instrumentos

de tortura (loca poenalia, lora poenalia) sejam o futuro Purgatório,

visto que do Inferno não se regressa, isso não oferece dúvidas. Mas

esses lugares e essas penas têm um carácter totalmente infernal sublinhado

pela presença de demónios e não de anjos.

Numa das suas cartas, Pedro Damião conta esta outra história de

aparições que lhe foi relatada por um tal Martinho, personagem muito

religioso retirado no eremitério de Camaldules: havia no mosteiro ad

Pinum, junto do mar, um monge muito carregado de pecados que recebera

uma penitência longa e dura. Pediu a um irmão com quem tinha

estreitas relações de amizade que o ajudasse, partilhando o seu fardo

penitencial. Este, cuja vida era irrepreensível, aceitou e, quando pensava

ler ainda muito tempo à sua frente para cumprir esta promessa, morreu.

Alguns dias depois apareceu em sonhos ao monge penitente que se informou

do seu estado. O morto disse-lhe que por causa dele a sua sorte era

217



má e dura pois, liberto dos seus próprios pecados, estava ainda sobrecarregado

com os do companheiro. Pediu a ajuda do irmão vivo e de todo o

convento. Todos os monges se puseram em penitência e o morto reapareceu,

exibindo desta vez um ar sereno e mesmo feliz. Declarou ele que,

graças às preces dos irmãos, não só fora arrancado à pena dos castigos

mas também, por uma maravilhosa decisão da direita do Altíssimo, fora

recentemente levado para entre os eleitos. Pedro Damião conclui que «a

clemência divina ensina os vivos por intermédio dos mortos 4».

Quase um século mais tarde o abade de Cluny Pedro, o Venerável, no

seu tratado De miraculis (entre 1145 e 1156), relata «as visões ou revelações

de defuntos» que recolheu e se esforça por explicar. Supõe que na

sua época há uma recrudescência dessas aparições e, segundo ele, aquilo

que elas anunciam, verifica-se. Foi, em todo o caso, o que ouviu dizer a

muitas pessoas dignas de crédito".

Entre estas aparições que assustam e intrigam há aquela do cavaleiro

morto que aparece ao padre Estêvão para lhe pedir que repare duas más

acções que se esquecera de confessar, e que reaparece para agradecer ter

sido assim libertado das penas que estava a sofrer". Pedro, o Venerável,

leitor fiel de Gregório, o Grande, não vai procurar localizar num lugar

diferente do designado por este a purgação dos pecados depois da morte.

É aos lugares do pecado que um morto volta para terminar a sua

penitência enquanto outro, culpado de pecados mais graves, fica no

Inferno".

Quando no fim do século o Purgatório passar a existir, estas visões

evocarão o novo lugar do além, principalmente no meio cisterciense, o

que nada tem de estranho se pensarmos no papel desempenhado por

Cister no nascimento do Purgatório. Assim, um manuscrito de origem

cisterciense, uma das primeiras recolhas dessas historietas edificantes,

os exempla, que em breve se expandirão, relata um certo número de visões

referentes às penas sofridas pelas almas depois da morte. Depois da

visão do santo Fursy extraída da Historia ecclesiastica Anglorum de Bede,

a «visão de um monge» relata o suplício de um cavaleiro que, excessivamente

apaixonado. pelas aves de caça durante a vida, suportara depois da

morte e durante dez anos um suplício terrível: trazia no punho um falcão

que, sem descanso, o dilacerava com o bico e com as garras. E, no entanto,

parecia ter levado uma vida muito virtuosa, mas as penas mais duras

são infligidas no Purgatório (in purgatorio ) por excessos que julgamos

como indulgência. O nosso monge vê assim mortos que, em vida, usaram

ervas e bagas não como medicamentos mas como droga e afrodisíacos,

condenados a rolarem na boca sem parar carvões incandescentes, outros

que se haviam entregado a excessos de riso serem açoitados por esse mau

hábito, outros ainda, excessivamente faladores, serem esbofeteados constantemente

e, os culpados de gestos obscenos, serem amarrados com cor-

218

rentes de fogo, etc.". Mesmo os santos, por algumas faltas aparentemente

ligeiras, fazem breves estadas no Purgatório. Um dos primeiros a pagar o

seu ouinhão à nova crença não é outro senão o grande santo cisterciense

S. Bernardo, que, como já se viu, passa brevemente pelo Purgatório por

não ter acreditado na Imaculada Conceição",

Quatro viagens monásticas

ao outro mundo

Dos relatos de viagens ao além do século XII escolhi os quatro que me

parecem mais importantes, o primeiro porque se trata de uma visão de

uma mulher laica e de uma experiência muito pessoal- é o sonho da mãe

de Guibert de Nogent -, o segundo e o terceiro, a visão de Alberico de

Settefrati e a de Tnugdal, porque são os mais ricos de pormenores em

vésperas do nascimento do Purgatório, e porque os seus autores pertenciam

a regiões significativas para o imaginário do além: a Itália meridional

e a Irlanda; o quarto, enfim - o Purgatório de S. Patrick - porque

constitui de certo modo o acto do nascimento literário do Purgatório.

Para o nosso propósito, o interesse destas visões é mostrar-nos como,

dentro de um género muito tradicional, se esboça por tentativas e depois

existe numa imagem nítida, embora de contornos vagos, um território

especial no além, para o Purgatório. Permitem apreciar o papel do imaginário

monástico na génese do lugar do Purgatório.

1. Uma mulher no além: a mãe de Guibert de Nogent

A primeira visão é relatada por um monge que no começo do século

XII deixou uma obra original, principalmente por dois dos seus volumes,

um tratado Das relíquias dos santos (Des reliques des saints - De pignoribus

sanctorum) onde se tem pretendido ver o despertar do espírito crítico,

e uma autobiografia, História da sua vida (Histoire de sa vie - De vit~

sua), também ela, sobretudo ela, iniciadora de um género que conhecera

um êxito singular, principalmente depois da Idade Mêdia'". O De vila sua

de Guibert de Nogent forneceu dois tipos de informação que muito interessaram

os historiadores. Contém primeiro um relato e uma evocação

dos acontecimentos políticos e sociais no Nordeste de França, os começos

do movimento comunal, com a descrição dos dramáticos acontecimentos

da comuna de Laon em 1116. Lá se encontra toda uma série de

anotações de natureza psicológica que incitaram os historiadores a voltar-se

para o psicanalista ou a tornar-se eles próprios psicanalistas 11.

Eis a visão de sua mãe, no relato de Guibert de Nogent:

219



Numa noite de Verão, num domingo depois das matinas, quando estava

estendida num banco muito estreito, rapidamente caiu no sono; pareceu-lhe,

sem que perdesse os sentidos, que a alma lhe saía do corpo. Depois de ter sido

conduzida como que através de uma galeria, quando dela saiu aproximou-se

da boca de um poço. Quando já estava muito perto, eis que homens com

aspecto de fantasmas saem do abismo daquele buraco. Os seus cabelos pareciam

ter sido devorados por vermes e procuravam agarrá-Ia com as mãos e

arrastá-Ia para dentro. De repente, nas suas costas, uma voz de mulher aterrorizada

e arquejante sob aquele ataque, gritou-lhes: «Não me toqueis.» Perante

a pressão desta defesa, eles voltaram a descer para o poço. Esqueci-me

de dizer que quando ela atravessou o pórtico sentindo que saía do seu estado

humano, apenas pediu a Deus uma coisa, que lhe permitisse regressar ao seu

corpo. Liberta dos habitantes do poço, ela parara à sua beira e de repente viu

a seu lado o meu pai, com o aspecto que tinha na juventude. Olhou-o intensamente

e perguntou-lhe várias vezes se era ele realmente Evrard (era o seu

nome). Ele negou. Nada de estranho em que um espírito recusasse ser chamado

pelo nome que usava quando era homem, pois as realidades espirituais só

podem ser expressas em termos espirituais (I Corintios, 11, 12-15). Acreditar

que os espíritos se reconhecem pelos homens seria ridículo, senão no outro

mundo só se conheceriam os respectivos parentes. É claro que os espíritos

não precisam de nomes, pois toda a sua visão, ou antes, o seu conhecimento

da visão, é interno.

Se bem que ele negasse chamar-se assim, como ela tinha a certeza de que

era ele, perguntou-lhe onde morava. Ele dá a entender que é num local situado

não longe dali. Ela pergunta-lhe então como está. Ele destapa o braço e o

fianco e mostra que estão de tal maneira dilacerados e de tal maneira golpeados

com inúmeros ferimentos, que à sua vista se fica tomado de horror e de

uma emoção visceral. A isto juntava-se a presença de uma criança que gritava

tanto que, mesmo só por a ver, ela ficou muito incomodada. E disse-lhe:

«Senhor como podes suportar os lamentos dessa criança?» «Quer queira quer

não, respondeu ele, tenho de os suportar!» E eis o significado dos choros da

criança e das feridas no braço e no flanco. Quando o meu pai era muito novo

fora desviado da sua relação lícita com a minha mãe por maleficios e maus

conselheiros que abusavam da sua falta de maturidade de espírito, convencendo-o

maldosamente a tentar ter relações sexuais com outras mulheres. Com

um comportamento de jovem, ele deixou-se persuadir e, das suas desprezíveis

relações com uma qualquer má mulher, teve um filho que nasceu morto sem

ter sido baptizado. A chaga no fianco era a ruptura da fidelidade conjugal, os

gritos daquela voz insuportável eram a condenação ao inferno daquela criança

procriada no mal...

A minha mãe perguntou-lhe se as preces, as esmolas e as missas lhe levariam

algum socorro (pois ele sabia que ela as fazia por ele frequentemente).

Ele disse que sim e acrescentou: «Mas entre vós vive uma certa Liégearde» A

minha mãe compreendeu porque ele a mencionava e que devia perguntar-lhe

que recordação guardava dele. Esta Liégearde é uma mulher muito pobre de

espírito que só vivia para Deus, longe dos costumes deste mundo.

220

Como a conversa com o meu pai terminasse, ela olhou para o poço que

tinha por cima uma pintura na qual reconheceu Rainaud, um cavaleiro de

grande renome entre os seus. Nesse mesmo dia que era, como já disse, um

domingo, este Rainaud foi traiçoeiramente assassinado pelos seus próximos

em Beauvais, depois de uma refeição. Naquela pintura ele estava ajoelhado

com a cabeça inclinada e as bochechas inchadas, soprando para acender um

lume. Esta visão aconteceu de manhã e ele morreu ao meio-dia, lançado para

esse fogo que ele póprio acendera.

Na mesma pintura ela viu também uma mulher velha que vivia com ela no

princípio da sua conversão e que, exteriormente, mostrava no corpo numerosas

feridas das suas mortificações, mas que, na realidade, não se furtara ao

desejo de vã glória. Viu-a em forma de sombra levada por dois espíritos todos

negros. Quando esta velha ainda vivia e ambas habitavam juntas e falavam do

estado das suas almas quando a morte viesse, prometeram-se mutuamente que

aquela que morresse primeiro, apareceria, se Deus o permitisse, à sobrevivente

para lhe explicar o seu estado, bom ou mau ... A velha, no momento de morrer,

vira-se a si própria numa visão despojada do corpo, dirigindo-se com

outras semelhantes a ela para um templo, e parecia-lhe que levava uma cruz

às costas. Quando chegou ao templo impediram-na de entrar e as portas fecharam-se

à sua frente. Enfim, depois de morrer apareceu cercada de mau

cheiro a outra pessoa a quem agradeceu vivamente por a ter arrancado ao

meu cheiro e à dor com as suas preces. No momento de morrer, vira aos

pés da cama um diabo horrível de olhos negros e enormes. Com os sacramentos

divinos conjurara-o a retirar-se na confusão e a nada reclamar dela, e com

este terrivel esconjuro pusera-o em fuga.

Convenci da da veracidade da sua visão e comparando o que vira com

o que sabia, a mãe de Guibert decidiu dedicar-se inteiramente a ajudar o

marido. Compreendera de facto que vira os lugares das penas nos infernos

(poenales locos apud inferos) aos quais estava condenado o cavaleiro

cuja imagem vira pouco antes de ele morrer.

Adoptou uma criança órfã cujos gritos e choros nocturnos a torturaram

assim como às suas criadas. Mas resistiu, apesar dos esforços do

Diabo que tornou os gritos da criança insuportáveis e das súplicas dos

que a rodeavam e a incitavam a desistir. Sabia que esses sofrimentos eram

purgatórios dos do marido, os quais vira na sua visão.

Deixemos de lado - com pena - os problemas de relações familiares e

pessoais, a digressão sobre o nome - esse emblema dos homens da Idade

Média -, a fusão nesta história de vários temas habitualmente distintos: o

da visão dos lugares das penas no além, do pacto entre dois vivos em que

se comprometem a que o primeiro a morrer regresse para contar a sua

experiência ao sobrevivente, o da criança que impede de dormir'", o clima

onírico, de pesadelo, muito «moderno», deste relato. Reparemos nos elementos

que se reencontrarão nas relações de viagem ou de permanência

no Purgatório - e que farão parte do «sistema» do Purgatório.

221



É antes de mais o carácter infernal do lugar onde se encontra o pai de

Guibert e para o qual a mãe se arriscou - na sua visão - a ser arrastada.

Trata-se de um local situado junto de um popa e, noutra visão, de um

templo de onde saem seres de aspecto diabólico, diabos negros 13 , larvas

com cabelos cheios de vermes, monstros de enormes olhos negros, um

mundo onde o horror da vista, do ouvido e do olfacto, visões monstruosas,

barulhos insuportáveis, odores fétidos, se misturam com dores fisicas.

Mundo de torturas, universo de penas e de castigos onde se distingue o

fogo. Mundo de espíritos despojados de nome mas que expiam em torturas

do corpo. Mundo de sofrimentos a que os vivos podem arrancar os

seus mortos pela oração, pela esmola, pelo sacrificio da missa, segundo a

teoria tradicional dos sufrágios, mas também pela partilha de provações

cuja natureza está ligada à do pecado cometido. E, acima de tudo, dois

traços dominantes: a afirmação, a busca de um lugar ainda mal destacado

do conjunto dos infernos (local, poço, templo, lugares penais - poenarum

locos, poenales locos - a visionária pergunta ao espectro do marido ubi

commaneret, onde morava), a expressão de uma estreita solidariedade

entre os vivos e os mortos, solidariedade que é primeiro a da família,

família carnal e sobretudo casal conjugal, nesse tempo em que a Igreja

recorda com veemência a palavra de Paulo, segundo a qual o esposo e a

esposa mais não são do que uma e mesma carne e depois família espiritual

como a formada pela convertida e aquela mulher velha que a ajuda na

sua conversação. Enfim, nó do sistema, a expiação comum dos pecados

por meio de penas que são simultaneamente castigo e purgação. Estes

sofrimentos são purgativos dos sofrimentos do homem (mo/estias istas

mo/estiarum haminis ... purgatrices).

As duas visões de Alberico e Tnugdal são mais literárias, mais tradicionais,

mais servidas por uma grande força imaginativa.

2. No Monte Cassino: Alberico de Settefrati

Alberico de Settefrati, nascido cerca de 1100, tivera uma visão durante

uma doença que o deixara nove dias e nove noites em coma quando tinha

dez anos. Tendo ingressado no célebre mosteiro beneditino quando era

abade Gerardo (1111-1123), contou a sua visão ao monge Guidone que a

transcreveu. Mas ao passar de mão em mão e de boca em boca esse relato

foi alterado e o abade Senioretto (1127-1137) aconselhou Alberico a escrevê-lo

de novo com a ajuda de Pietro Diacono. Foi este relato que

conservamos". Tem a marca das visões que eram conhecidas em Monte

Cassino - a Paixão de Perpétua e Felicidade, a Visão de Wetti, a Visão do

Santo Fursy, a Vida do Santo Brandan. Pretendeu-se ver nele também

influências muçulmanas mas estas foram com certeza limitadas pois a

222

cscatologia muçulmana reserva o Inferno para os infiéis e politeístas e

parece não conhecer o Purgatório ".

S. Pedro acompanhado de dois anjos, Emmanuel e Elói, apareceram

ao jovem Alberico elevado nos ares por uma pomba branca, e levaram-no

IIOS lugares das penas e do Inferno (loca paenarum et inferni) para lhos

mostrarem.

O relato desta visão parece interminável'". Apenas posso resumi-lo e

esforcei-me por me manter tão próximo quanto possível do texto original

para conservar a nitidez das imagens que vão ser impressas no nosso

reservatório do imaginário, e preservar a impressão de passeio vagabundo

que a viagem do monge nos deixa, apesar de ser guiada por S. Pedro.

Esta caminhada errática permitirá que se aprecie melhor o contexto em

cujo seio aparecerá dentro em breve o Purgatório.

Alberico vê primeiro um lugar incandescente com bolas de fogo e

vapores em chamas onde são purgadas as almas das crianças mortas

no primeiro ano de existência. As suas penas são leves porque não tiveram

tempo para pecar muito. A curva dos pecados é, com efeito, à imagem

das épocas da vida. Sobe e acumula pecados na juventude e na

maturidade; depois desce, com a velhice. O tempo passado nestes lugares

de purgação é proporcional à quantidade de pecados e portanto à idade

com que morreram os defuntos que sofrem estas penas. As crianças de

um ano ficam nesses lugares sete dias, as de dois catorze dias e assim por

diante (Alberico não precisa mais porque o prosseguimento da progressão

proporcional levantaria sem dúvida problemas delicados).

Depois vê um vale de gelo onde são torturados os adúlteros, os incestuosos

e outros fornicadores e libidinosos. Segue-se outro vale cheio

de arbustos com espinhos onde estão suspensas pelos seios sugados por

serpentes as mulheres que se recusaram a amamentar os bebés e onde

ardem, suspensas pelos cabelos, as mulheres adúlteras. Vem depois uma

escada de ferro com degraus de fogo ao fundo da qual está um recipientc

cheio de pez a ferver: por ela sobem e descem os homens que tiveram

relações sexuais com as suas mulheres durante os dias (festas e domingos)

em que o acto sexual é proibido. Segue-se um forno com chamas

sulfurosas onde se consomem os chefes que trataram os seus súbditos

não como chefes mas como tiranos, e as mulheres que praticaram o

infanticídio e o aborto. Depois deste forno surge um lago de fogo semelhante

a sangue. Os homicidas que morreram impenitentes são nele precipitados

depois de passarem três anos com a imagem da sua vítima

pendurada ao pescoço. Num enorme recipiente ao lado, cheio de bronze,

estanho, chumbo, enxofre e resina a ferver, ardem por períodos que

vão de três a oitenta anos os bispos e outros responsáveis por igrejas que

deixaram padres perjuros, adúlteros ou excomungados nelas cumprirem

o seu ministério.

223



Alberico é depois levado perto do Inferno, um poço cheio de horríveis

trevas de onde saem odores fétidos, gritos e gemidos. Junto do Inferno

está um dragão enorme e acorrentado, cuja goela de fogo engolia multidões

de almas semelhantes a moscas. A espessura das trevas impede que

se distinga se as almas vão para as trevas ou para o próprio Inferno. Os

guias dizem a Alberico que entre aquelas se encontravam as de Judas,

Ana, Caifaz, Herodes e os pecadores condenados sem julgamento.

Noutro vale os sacrílegos são queimados num lago de fogo, os burlões

num poço onde as chamas sobem e descem. Noutro lugar horrível, tenebroso

e fétido, cheio de chamas crepitantes, de serpentes, de dragões, de

gritos estridentes e gemidos terríveis, são purgadas as almas daqueles que

deixaram o estado eclesiástico ou monástico, que não fizeram penitência,

os que cometeram o perjúrio, o adultério, o sacrílego, o falso testemunho

e outros crimes. Aí são purgados na proporção dos seus pecados, como

ouro, chumbo, estanho ou outras matérias, tal como disse Paulo na sua

primeira epístola aos Coríntios.

Num grande lago negro cheio de água sulfurosa, serpentes, dragões e

demónios batiam com serpentes na cara, na boca e na cabeça de uma

multidão de testemunhas falsas. Próximo daqui dois demónios com formas

de cão e de leão exalavam das bocarras um sopro ardente que fazia

mergulhar numa espécie de tortura todas as almas que passavam ao seu

alcance.

Surge um grande pássaro levando nas asas um monge velhinho que

deixa cair dentro das trevas do poço do Inferno onde logo é rodeado por

demónios; mas o pássaro volta para o arrancar a eles.

Neste momento S. Pedra anuncia a Alberico que o deixa com os dois

anjos: Alberico, morto de medo, é por sua vez atacado por um demónio

horrível que tenta arrastá-lo para o Inferno, mas S. Pedro vem libertá-lo e

projecta-o para um lugar paradisíaco.

Antes de passar à descrição do Paraíso, Alberico fornece ainda alguns

pormenores sobre o que viu nos lugares do castigo.

Viu ladrões e violadores acorrentados nus e sem poderem pôr-se de pé

com correntes de fogo presas no pescoço, nas mãos e nos pés. Viu um

grande rio de fogo saindo do Inferno, e por cima deste rio uma ponte

de ferro que alargava quando nela passavam, fácil e rapidamente, as almas

dos justos, e que encolhia até só ter a largura de um fio quando nela

passavam pecadores que caíam no rio e aí ficavam até poderem atravessar

a ponte, purgados e assados como pedaços de carne. S. Pedro revelou-lhe

que aquele rio e aquela ponte eram qualificados de purgatórios'?

S. Pedro diz a seguir a Alberico que um homem nunca deve desesperar

seja qual for a grandeza dos seus crimes, pois tudo pode ser expiado em

penitência. Por fim, o apóstolo mostra a Alberico um campo tão extenso

que seriam precisos três dias e três noites para o atravessar; um campo

1. Julgamento e salvamento do Purgatório (Breviário de Filipe, o Belo). ye~ o

Apêndice III. Bibl. Nat., Paris, 10845, Latino 1023, foI. 49. Fotografia © Blbhothêque

Nationale.

224



t- t

2. O além: sistema dos receptáculos (catedral v I

de Salamanca); saída do receptáculo do Purgatório

o Apêndice Ill. Fotografia © «Los Angeles», Saiam 11

~__MM"~~"__'.'~~. •



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~ :~íUtammtftl~ft:A!tJf,Ot

4

3. A saída do Purgatório

(Breviário dito

de Carlos V). Ver o

Apêndice IIl. Bibl.

Nat., Paris, 2928, Latino

1052, foI. 556v.

Fotografia © Bibliothêque

Nationale.

4. O Purgatório de S. Patrick nos dias de hoje: crença e peregrinação a longo

prazo (Station Island, Lough Derg, condado de Donegal, Eire).

cheio de espinhos tão densos que apenas seria possível caminhar sobre

eles. Neste campo estava um dragão gigantesco montado por um diabo

com aspecto de cavaleiro que segurava na mão uma grande serpente.

Este diabo perseguia todas as almas que caíssem naquele campo e batia-lhes

com a sua serpente. Quando a alma já tinha corrido o suficiente

para ser liberta dos seus pecados, a corrida tornava-se mais fácil e ela

podia fugir.

De lugares purgatórios Alberico passa para lugares risonhos.

As almas tornadas dignas de alcançar o refrigerium entram num campo

cheio de encanto e de alegria, com perfume de lírios e de rosas. No

meio deste campo fica o Paraíso onde as almas só entrarão depois do

Julgamento Final, excepto os anjos e os santos que são recebidos sem

julgamento no sexto céu. O santo mais glorioso que lá se encontra é S.

Bento e os mais gloriosos de todos que se encontram no campo são os

monges. Os guias de Alberico fazem o elogio dos monges e descrevem o

programa de vida que eles têm de seguir para merecerem a glória. Devem

conservar sempre o amor de Deus e do próximo, mas o seu programa é

sobretudo negativo: devem suportar as injúrias e as perseguições, resistir

às tentações diabólicas, trabalhar com as mãos sem desejar riquezas, resistir

aos vícios, guardar sempre temor. A seguir S. Pedro, depois de ter

indicado que os três pecados mais perigosos são a gula (gula), a cupidez

(cupidas ) e o orgulho (superbia), leva Alberico a visitar os sete céus sobre

os quais fornece poucos pormenores, excepto em relação ao sexto que é a

morada dos anjos, dos arcanjos e dos santos, e ao sétimo onde se encontra

o trono de Deus. A pomba condu-Io a seguir para um lugar cercado

por uma alta muralha por cima da qual ele pode aperceber-se do que

existe no interior, mas é-lhe interdito, como a qualquer homem, revelar

o que lá viu'".

Deixemos de lado neste relato o mosaico de fontes literárias que o

inspiram e o patriotismo beneditino que o anima. O seu interesse para

a génese do Purgatório é limitado mas não despiciendo, até nos seus

limites e nos seus silêncios.

É verdade que o relato é extremamente confuso e dá da geografia do

além uma imagem ainda mais confusa. Alberico está longe da concepção

de um terceiro reino do além. O seu além é extraordinariamente com partimentado

e, segundo a vontade de S. Pedro, passa-se dos lugares de

penas para os poços do Inferno ou para o Paraíso, ou ainda para regiões

terrenas. Mas a importância dos «lugares penais» de onde se sai finalmente

para a salvação é considerável. Um cálculo aproximativo (pois é grande

a confusão do relato) permite-nos reconhecer em cinquenta

«capítulos» dezasseis dedicados ao que será o Purgatório contra doze

consagrados ao Paraíso e lugares vizinhos e um só ao Inferno propriamente

dito.

225



Sobre a «teoria» dos lugares purgatórios, a visão é praticamente muda

ou não propõe melhor do que uma teologia muito gasta. Todos os pecados

conduzem a estes lugares e todos podem lá ser expiados. O papel da

penitência é exaltado mas não se vê bem a parte que cabe à penitência

terrena e à mesma forma de expiação nos lugares das penas. Não se faz

qualquer distinção entre pecados graves e pecados insignificantes (a clivagem

entre pecado mortal e pecado venial ainda não existe); e são os

scelera, os crimes (que, segundo Santo Agostinho, levam directamente

ao Inferno), que aqui parecem de preferência ser expiados com castigos

temporários mas infernais. Enfim, não existe passagem directa, após a

expiação, dos lugares penais para o Paraíso, mas uma antecâmara situada

num vestíbulo paradisíaco: é o campo da felicidade.

Todavia, a purgação post mortem ocupa um lugar importante e, a

propósito do rio e da ponte, Alberico emprega o termo purgatório de

uma maneira em que o epíteto parece bem próximo do substantivo e,

embora na confusão de um simbolismo numérico, é nítida a tendência

para uma contabilidade do além e para uma relação proporcional entre

o pecado cometido na terra e o tempo de expiação no outro mundo.

Numa palavra, tem-se a impressão de que o ou os autores desta visão

pertencem a um meio monástico arcaico que através da sua cultura

tradicional - incluindo a velha noção de refrigerium - não consegue ordenar

a tendência a favor de um além de purgação que o vai pressionando.

Reencontramos a mesma impressão noutro pólo geográfico do monarquismo

beneditino com a visão de Tnugdal'".

3. Na Irlanda: o além sem purgatório de Tnugdal

O além de Tnugdal - a sua viagem não inclui qualquer episódio terreno

- é um pouco mais ordenado do que o de Alberico. Como o futuro

monge de Monte Cassino, Tnugdal passa primeiro por uma série de lugares

onde são atormentados pecadores de diversas categorias: homicidas,

traidores, avaros, ladrões, raptores, glutões e fornicadores. Os

lugares onde são punidos têm um tamanho extraordinário: vales profundos,

uma montanha muito alta, um lago enorme, uma casa imensa. Por

intermédio de Dante, a montanha terá um destino especial. Nela as almas

são submetidas alternadamente a um calor tórrido e a um frio glacial. As

trevas e o mau cheiro reinam. Animais monstruosos aumentam o horror.

Um destes animais, sentado sobre um lago gelado, devora com a sua

goela de fogo almas que digere e depois vomita (velha herança indo-europeia)

e estas almas reencarnadas têm bicos muito aguçados com que di-

226

laceram os próprios corpos. As vítimas deste animal são os fornicadores

e, principalmente, os fornicadores monásticos. Em imagens à Piraneso,

Tnugdal vê as almas dos glutões a cozer como pães num fomo enorme

c as que acumularam pecado sobre pecado suportar, num vale cheio de

forjas ruidosas, os tratos de um ferreiro torcionário chamado Vulcano.

Assim se põe em evidência, a par com a especificidade dos pecados e dos

vícios, a noção de quantidade de pecado e - sinal dos tempos nesse século

XII amante de justiça -, o anjo faz notar a Tnugdal horrorizado que Deus

nem por isto é menos misericordioso e sobretudo justo: «Aqui, diz ele,

cada um sofre em proporção com os seus méritos e segundo o veredicto

da justiça.»

A seguir, ao longo de um princípio profundo, é a descida ao Inferno

inferior que se anuncia por um horror, um frio, um mau cheiro e trevas

incomparavelmente superiores a tudo o que Tnugdal experimentara até

aí. Vê uma fossa rectangular como uma cisterna de onde sai uma chama

fuliginosa e fétida cheia de demónios, e as almas semelhantes a faúlhas

que sobem são reduzidas a nada e voltam a cair nas profundezas. Chega

mesmo à porta do Inferno e tem o privilégio, estando vivo, de ver o que

os condenados nas trevas não vêem mais do que o vêem a ele próprio. E

vê o príncipe das trevas em pessoa, um animal maior do que todos que

tinha avistado.

Depois o mau cheiro e as trevas desvanecem-se e Tnugdal e o seu anjo

descobrem, junto de um grande muro, uma multidão de homens e mulheres

tristes, à chuva e ao vento. O anjo explica a Tnugdal que são os não

inteiramente maus que tentaram viver com honra mas não deram aos

pobres bens temporais, e que têm de esperar alguns anos à chuva até

serem conduzidos a um repouso bom (requies bona). Atravessando o

muro por uma porta, Tnugdal e o seu companheiro descobrem um campo

lindo, perfumado, cheio de flores, luminoso e agradável onde folgam

alegremente muitos homens e mulheres. São os não inteiramente bons

que mereceram ser arrancados às torturas do Inferno mas ainda não juntar-se

à corte dos santos. No meio do campo está a fonte da juventude,

cuja água dá a vida eterna.

Aqui coloca-se uma evocação muito curiosa de reis irlandeses legendários

- mas, evidentemente, considerados históricos por Tnugdal - dos

quais os maus arrependeram-se e os bons cometeram, apesar de tudo,

alguns pecados. Estão aqui em curso ou em fim de expiação. Exactamente

como o patriotismo beneditino inspirou a visão de Alberico, o «nacionalismo»

irlandês surge aqui, bem como a tradição da admoestação

aos reis e a utilização política do além já encontrada na visão de Car-

10s,o Gordo. A existência de um lugar purgatório (a palavra não é aqui

pronunciada) permite uma crítica moderada à monarquia, ao mesmo

tempo venerada e censurada.

227



Eis pois os reis Domachus e Conchober, muito cruéis e inimigos fe.rozes

um do outro, voltando a ser pacíficos e amigos e tendo-se arrependido

antes de morrerem. Dever-se-á ver aqui um apelo à unidade dos clãs

irlandeses? Eis sobretudo o rei Cormarchus sentado num trono num lindíssimo

palácio com paredes de O\}roe prata, sem portas nem janelas .e

onde se entra conforme se quiser. E servido pelos pobres e pelos peregnnos

pelos quais distribuiu os seus bens em vida '.Mas pou~o tempo depois

o palácio escurece, todos os moradores estão tnstes, o rei chora, levanta-

-se e sai. Todas as almas erguem as mãos ao céu e suplicam a Deus: «Tem

piedade do teu servo.» Com efeito, eis o rei mergulhado n~ ,f~go até ~o

umbigo e com a parte de cima do corpo coberta por um cilicio, O ~nJo

explica: em cada dia o rei sofre durante três horas e repousa durante v~nte

e uma horas. Sofre até ao umbigo porque foi adúltero, e na parte de cima

do corpo porque mandou matar um conde amigo de S. Patrick e foi

perjuro. Todos os seus outros pecados foram-Ih~ perdoa~os: •

Por fim Tnugdal e o anjo chegam ao Paraiso constituído por tres

lugares rodeados de muralhas. Uma muralha de prata cerca a morada

dos bons esposos, uma de ouro a dos mártires e dos castos, dos monges

e das monjas, dos defensores e construtores de igrejas, um~ muralha de

pedras preciosas cerca a das virgens e das nove o~dens d.eanjos, do santo

confessor Ruadan, do santo Patrick e de quatro bispos (irlandesesl), Com

esta visão a alma de Tnugdal regressa ao corpo.

A visão de Tnugdal mostra bem que, se a geografia do além é fra~mentada

e só parece haver Inferno por este ser invisitável, a compartimentação

dos lugares purgatórios tende todavia para um ordenamen~o

obedecendo a três princípios. O primeiro é geográfico: é a alternância

de lugares constrastantes quanto ao relevo e à .temper~~ra. O seg~nd~

é moral: é a repartição dos purgados segundo o tipo de VICIOS. O terceiro e

propriamente religioso, para não dizer teológico: é classificaç~o das pessoas

em quatro categorias: os inteiramente bons que log~ depois da morte

vão para o Paraíso e os inteiramente maus que depois da m~t;e e do

julgamento individual (Tnugdal sublinha que os condenados _<<.Ia. fo~am

julgados») são imediatamente enviados para o Inferno; o~ n~o inteiramente

bons e os não inteiramente maus. Mas Tnugdal nao e claro no

que lhes diz respeito. A tomá-Io à letra, estas d~as categorias. seriam distintas

do conjunto dos pecadores torturados no inferno supenor. Para os

não inteiramente maus Tnugdal não faz qualquer alusão a uma passag~

pelos lugares penais e contenta-se com fazê-los passar <~alg.'-ms. anos» a

chuva e ao vento, sofrendo fome e sede. Quanto aos nao ínteiramente

bons, o anjo lá diz a Tnugdal que «eles foram arrancad.os aos t?rmentos

do Inferno» mas não merecem ainda ir para o verdadeiro Paraíso.

É de estranhar a ausência nessa data da ideia (e da palavra) de

purgacão. Tnugdal tentou desajeitadamente ordenar numa só visão todo

228

um conjunto de heranças literárias e teológicas que não soube unificar.

Por um lado, a existência de dois infernos; mas ele não conseguiu precisar

a função do inferno superior. Por outro lado, a teoria agostiniana das

quatro categorias de homens em relação ao bem e ao mal. Mas não tendo

sabido encaixá-Ias no inferno superior, colocou-as em lugares originais

inclinando-se para uma quíntupla regionalização do além, o que é uma

das soluções esboçadas no século XII para a sua remodelação. O ponto

mais fraco desta concepção (permito-me falar em termos de julgamento

de valor porque creio que a coerência do sistema do Purgatório foi um

elemento importante do seu êxito junto do clero e das massas numa época

«racionalizante») é o facto de Tnugdal não ter relacionado os lugares de

espera (e de expiação mais ou menos mitigada) dos não inteiramente bons

e dos não inteiramente maus com os lugares do inferno inferior. Uma

passagem sucessiva por uns e depois pelos outros teria dado uma solução

concreta às teses agostinianas. Se Tnugdal não o fez foi talvez porque não

só a sua concepção do espaço era ainda confusa mas também e sobretudo

porque a sua concepção do tempo (inseparável, repito, do espaço) não

lho permitia. Para ele, o além estava submetido a um tempo escatológico

que apenas pode ter vagas semelhanças com o tempo terreno, histórico.

Vai introduzindo aqui e ali períodos de «alguns anos» no além, mas não

existe uma continuidade ordenada. O tempo no além não é uno, e muito

menos o tempo duplo do homem neste e no outro mundo.

4. Uma descoberta na Irlanda: o «Purgatório de S. Patrick»

A quarta viagem imaginária, se bem que redigida por um monge -

mas um monge cisterciense - acrescenta ao conjunto de traços tradicionais

novidades importantes. Uma principalmente: o Purgatório é referido

como um dos três lugares do além. O opúsculo que ocupa na história do

Purgatório um lugar fundamental, porque desempenhou um papel importante,

se não decisivo, no seu êxito, é o célebre Purgatório de S. PatricPo.

O autor é um monge de nome H. (inicial que Matthieu Paris, no século

XIlI, transforma sem quaisquer provas em Henricus, Henrique), que, no

momento da redacção, residia no mosteiro cisterciense de Saltrey, no

Huntingdonshire. Foi um abade cisterciense, o de Sartis (hoje Wardon

de Bedfordshire) que lhe pediu que escrevesse esta história que recebera

de outro monge, Gilbert. Este foi enviado à Irlanda pelo abade do mosteiro

cisterciense de Luda (hoje Louthpark, no Huntingdonshire), Gervásio,

para lá procurar um local bom para fundar um mo.steir~. <;omo

Gilbert não fala irlandês, faz-se acompanhar, para lhe servir de mterprete

e protector, pelo cavaleiro Owein que lhe conta a aventura de que fora

herói no Purgatório de S. Patrick.

229



No preâmbulo do seu tratado, H. de Saltrey recorda, ao invocar Santo

Agostinho e sobretudo Gregório, o Grande, como as descrições de visões

e revelações sobre o além podem ser proveitosas para edificações dos

vivos. E o caso, em especial, das diferentes formas da pena a que se chama

(pena) purgatória (que purgatoria voeatur) na qual aqueles que, mesmo

cometendo alguns pecados durante a vida, se mantiveram justos, são

purgados e podem assim alcançar a vida eterna para que são predestinados.

Os castigos são proporcionais à gravidade dos pecados e à natureza

mais ou menos boa dos pecadores. A esta escala de pecados e de penas

corresponde um escalonamento dos lugares das penas, do inferno subterrâneo

que alguns vêem como uma prisão de trevas. Os locais das torturas

maiores situam-se em baixo, os das maiores alegrias no alto, as recompensas

ao mesmo tempo medianamente boas e más no meio (media autem

bona et mala in medio). Por aqui se vê que H. de Saltrey adoptou a divisão

em três categorias (em vez das quatro categorias agostinianas) e a ideia de

intermédio.

Também na pena purgatória se é mais ou menos torturado em função

dos méritos; e as almas que, depois de terem tido essa experiência, recebem

de Deus permissão para regressarem aos corpos terrenos, exibem

marcas semelhantes a marcas corporais como recordações, provas e

advertências".

Quando S. Patrick andava evangelizando, sem grande sucesso, os irlandeses

recalcitrantes e tentava convertê-I os pelo temor do Inferno e a

atracção do Paraíso, Jesus mostrou-lhe num local deserto um buraco

(fossa) redondo e escuro e disse-lhe que se alguém animado de um verdadeiro

espírito de penitência e de fé passasse um dia e uma noite naquele

buraco, lá seria purgado de todos os seus pecados e poderia ver as torturas

dos maus e as alegrias dos bons. S. Patrick apressou-se a construir

uma igreja ao lado do buraco e a instalar nela religiosos regulares, a

cercar o buraco com um muro e a fechá-lo por meio de uma porta cuja

chave ficava à guarda do prior da igreja. Muitos penitentes terão feito a

experiência deste lugar na época de S. Patrick, que terá ordenado que

passassem à escrita as suas descrições. A esse lugar chamou-se purgatório

e, porque S. Patrick foi o primeiro a gozar-se dele, chamou-se depois

Purgatório de S. Patrick (sancti Patricii purgatoriuml 2 •

Queriam as regras que os candidatos à experiência do Purgatório de

S. Patriek fossem autorizados pelo bispo da diocese que deveria primeiro

tentar dissuadi-los, Se não pudesse convencê-l os a renunciar, dava-Ihes

uma autorização que ficava sujeita ao prior da igreja o qual, por sua

vez, procurava persuadi-Ios a escolher outra penitência, fazendo-Ihes notar

que muitos haviam morrido nesta experiência. Se também ele falhava,

prescrevia ao candidato que passasse primeiro quinze dias em oração na

igreja. No fim desta quinzena o candidato assistia a uma missa durante a

230

qual comungava e era exorcizado com água benta. Uma procissão de

cânticos conduzia-o ao Purgatório, cuja porta era aberta pelo prior que

alertava para a presença de demónios e lembrava o desaparecimento de

muitos visitantes anteriores. Se o candidato insistia, era abençoado por

todos os padres e entrava fazendo o sinal da cruz. O prior fechava de

novo a porta. No dia seguinte à mesma hora a procissão voltava ao buraco.

Se o penitente saía, regressava à igreja e lá ficava mais quinze dias

em oração. Se a porta continuava fechada, davam-no por morto e a procissão

retirava-se. Trata-se aqui de uma forma especial de ordálio, de

julgamento de Deus de um tipo talvez característico das tradições célticas.

H. de Saltrey salta então para a época contemporânea (hiis nostris

temporibus) e indica mesmo a época do rei Estêvão (1135-1154). Mat-

-thieu Paris, no século XIII, será ainda mais conciso - sem qualquer prova

- e situará a aventura do cavaleiro Owein em 1153. O cavaleiro Owein,

carregadíssimo de pecados que não são mencionados, tendo ultrapassado

as etapas preliminares do ordálio, entra no buraco confiante e alegre.

No fundo considera esta empresa uma aventura cavalheiresca que enfrenta

sozinho com intrepidez (novam gitur miliciam aggressus miles noster,

licet solus, intrepidus tamen)23 ... Numa penumbra cada vez mais fraca,

chega a uma espécie de mosteiro habitado por doze personagens de vestes

brancas com aspecto de monges. O chefe deles expõe-lhe a regra da

provação. Vai ser cercado por demónios que tentarão assustá-Io com o

espectáculo de suplícios terríveis e seduzi-Io com palavras falaciosas. Se

ele ceder ao medo ou à sedução e arrepiar caminho, está perdido de corpo

e alma. Quando se sentir a ponto de fraquejar, deverá invocar o nome de

Jesus.

Vem então a irrupção dos demónios que não mais o deixarão até ao

fim do seu périplo infernal - no meio de visões horrorosas entrevistas nas

trevas iluminadas apenas pelas chamas dos suplícios, por entre odores

fétidos e clamores estridentes. De cada uma das provações que vai sofrer,

ele-sairá vitorioso invocando o nome de Jesus, e após cada provação

recusa-se a desistir e a voltar atrás. Passarei pois em silêncio o desenrolar

de cada episódio. Primeiro os diabos preparam-lhe, na sala da casa de

onde vão partir, uma fogueira para onde tentam lançá-lo. Depois de

ter passado por urna região deserta e tenebrosa onde soprava um vento

cortante como uma navalha e penetrante como urna espada, chega a um

campo de enormes dimensões onde homens e mulheres nus estão deitados

no chão fixos ao solo por pregos incandescentes que lhes trespassam as

mãos e os pés. Passa para um segundo campo onde pessoas de todas as

idades, sexo e condição, deitadas de costas ou de frente, são presa de

dragões, de serpentes e de sapos de fogo; depois para um terceiro onde

homens e mulheres trespassados por pregos em fogo cravados por todo o

corpo são chicoteados por demónios; depois para um quarto campo, ver-

231



dadeiro campo de suplícios os mais variados, onde alguns estão suspensos

por ganchos de ferro fixos nos olhos, nas orelhas, no pescoço, nas mãos,

nos seios ou nos sexos e outros são vítimas de uma cozinha infernal,

cozidos no forno e num caldeirão ou assados no espeto, etc. Aparece

depois uma grande roda de fogo a que estão amarrados homens que

passam a toda a velocidade pelas chamas. A ela segue-se um balneário

enorme onde uma multidão de homens, mulheres, crianças e velhos estão

mergulhados em cubas cheias de metais em ebulição, uns completamente

imersos, outros até às sobrancelhas, aos lábios, ao pescoço, ao peito, ao

umbigo ou aos joelhos, e ainda outros por um pé ou uma mão. Owein

chega depois a uma montanha entre cujas vertentes abruptas corre um rio

de fogo. No topo da montanha, onde se encontram muitas pessoas, sopra

um vento violento e glacial que faz cair no rio os homens que, se tentam

escapar escalando a montanha, são rechaçados por demónios munidos de

varas de ferro. Surge por fim uma chama horrivelmente nauseabunda e

negra que sai de um poço de onde sobe e onde volta a cair, como faúlhas,

uma multidão de almas. Os demónios que o acompanham informam-no:

«Eis a porta do Inferno, a entrada da geena, a via larga que leva à morte;

aquele que aqui penetra não volta a sair porque no Inferno não há redenção.

E o fogo eterno preparado para o diabo e seus subordinados entre os

quais não podes negar que estás.» Quando se sente tragado pelo poço,

Owein pronuncia de novo o nome de Deus e vê-se longe do poço em

frente de um rio de fogo muito largo tendo por cima uma ponte que

parecia intransponível pois era tão alta que não se podia evitar a vertigem,

tão estreita que não cabia nela um pé e tão escorregadia que era

impossível alguém segurar-se. Lá em baixo no rio, diabos esperavam munidos

de um gancho de ferro. Owein invoca outra vez o nome de Jesus e

avança pela ponte. À medida que avança a ponte toma-se cada vez mais

larga e mais estável, e a meio-caminho ele já não vê o rio nem à esquerda

nem à direita. Escapa a um último esforço dos diabos furiosos e, ao descer

da ponte, vê-se em frente de um muro muito alto e magnificente, com

portas de ouro puro cravejado de pedras preciosas e exalando um odor

delicioso. Entra e encontra-se numa cidade maravilhosa.

Duas personagens parecidas com arcebispos que conduziam uma procissão

dirigem-se a Owein e dizem-lhe: «Vamos explicar-te o sentido

(rationem) do que viste.»

«Aqui, prosseguem elas, é o Paraíso terrestre". Voltámos para cá

porque expiámos os nossos pecados - não tínhamos terminado a nossa

penitência na terra antes da morte - nas torturas que viste de passagem e

nas quais nos mantivémos mais ou menos tempo segundo a qualidade das

nossas culpas. Todos aqueles que viste nos diversos lugares penais, exceptuando

os que estão por baixo da boca do Inferno, alcançarão o repouso

em que nós estamos depois da purgação e, finalmente, serão salvos. Os

232

que assim são torturados não podem saber quanto tempo ficarão nos

lugares penais porque as suas provações podem ser aligeiradas ou abreviadas

por meio de missas, salmos, preces e esmolas feitos em sua intenção.

Também nós, que beneficiamos deste grande repouso e desta alegria

mas ainda não fomos dignos de subir ao céu, não ficaremos aqui indefinidamente;

todos os dias alguns de nós passam do Paraíso terrestre para

o Paraíso celestial.» E mandando-o subir uma montanha, mostram-lhe a

porta desse Paraíso celestial. Uma língua de fogo desce dele e enche-os de

uma sensação deliciosa. Mas os «arcebispos» chamam Owein à realidade:

«Viste em parte o que desejavas ver: o repouso dos bem-aventurados e as

torturas dos pecadores; tens agora de regressar pelo mesmo caminho por

onde vieste. Se de agora em diante te comportares bem no mundo tens a

certeza de que virás para junto de nós depois da morte, mas se viveres

mal, viste as torturas que te esperam. Durante o teu regresso, nada mais

tens a temer dos demónios, porque eles não se atreverão a atacar-te, nem

dos suplícios, porque eles não te atingirão.» O cavaleiro retoma chorando

o caminho de regresso e reencontra finalmente as doze personagens do

início que o felicitam e lhe anunciam que foi purgado dos seus pecados.

Sai do Purgatório de S. Patrick quando o prior volta a abrir a porta, e

cumpre então a sua segunda quinzena de orações na igreja. A seguir

Owein benze-se e parte em peregrinação para Jerusalém. No regresso

vai encontrar-se com o rei seu senhor e pedir-lhe que indique a ordem

religiosa onde poderá viver. É então o momento da missão de Gilbert

de Luda; o rei convidará Owein a servir de intérprete ao monge. O cavaleiro,

encantado, vai aceitar «pois no além não vi nenhuma ordem em tão

grande glória como a ordem cisterciense». Construirão uma abadia mas

Owein não quererá fazer-se monge nem converso; contentar-se-á com ser

o servo de Gilbert.

O conjunto de imagens do além não é para nós o mais importante

nesta história - se bem que muito tenha contribuído para o seu êxito.

Recolhe a maioria dos elementos tradicionais desde o Apocalipse de Paulo,

e anuncia os das visões posteriores - em especial da Divina Comédia.

Mas são mais imagens de inferno do que imagens específicas. Todavia

certos temas não aparecem e a sua ausência agora irá sem dúvida influenciar

o seu quase desaparecimento em seguida. O par formado pelo ardente

e pelo glacial era um elemento típico das imagens do além penal.

Na visão de Drythelm o visitante do além chega a um vale grande e

profundo, cuja vertente esquerda arde com um fogo terrível, enquanto a

direita é fustigada por uma brutal tempestade de neve. Também Tnugdal

encontra num dos lugares que precedem o inferno inferior «uma grande

montanha atravessada por um caminho estreito, tendo uma vertente

cheia de fogo fétido, sulfuroso e fumarento, enquanto a outra é de gelo

e açoitada pelo vento».

233



No sermão atribuído a S. Bernardo diz-se que «aqueles que estão no

Purgatório esperando a sua redenção devem primeiro ser atormentados

quer pelo calor do fogo quer pelo rigor do frio ...»

Mas o significado do frio como castigo não era já bem apreendido

havia muito tempo. A ideia de um refrigerium bem-fazejo tinha-o mais

ou menos ofuscado.

Na Visão do Imperador Carlos, o Gordo, o imperial sonhador, transportado

para um além infernal, ouve seu pai, Luís, o Germânico, mergulhado

até às coxas numa bacia de água a ferver, dizer-lhe: «Não tenhas

medo, eu sei que a tua alma regressará ao corpo. Se Deus te permitiu vir

aqui é para que vejas quais os pecados pelos quais sofro semelhantes

tormentos, assim como todos que viste. Com efeito, num dia estou neste

recipiente com água a ferver mas no dia seguinte sou levado para aquele

onde a água é muito fresca...» Neste texto cujo autor perdeu o significado

original do rito, a passagem pela água fria é apresentada como uma graça

que o imperador deve à intercessão de S. Pedro e de S. Remígio.

No Purgatório de S. Patriek já só se refere o frio a propósito do vento

g.lacial que sopra sobre o cume da montanha situada no fim do purgatóno.

O fogo que no século XII representou o próprio local da purgação,

dele expulsou o frio. O nascimento do Purgatório dá o golpe de misericórdia

ao refrigerium e anuncia o desaparecimento do seio de Abraã0 2s .

O êxito do Purgatório de S. Patriek foi imediato e considerável. Shane

Leslie escreveu que o tratado fora «um dos best-sellers da Idade Média».

A data da sua elaboração não é certa. Situa-se habitualmente cerca de

1190 porque a respectiva tradução para francês pela célebre poetisa inglesa

Marie de France parece não poder ser posterior ao último decénio do

século XII. Por outro lado, S. Malaquias, citado no Tractatus na sua

qualidade de santo, foi canonizado em 1190. Mas outros eruditos fazem

avançar até 1210 a data da sua redacção'". Se bem que eu tenha procurado

localizar cronologicamente com tanta precisão quanta possível o

aparecimento do termo purgatorium e da evolução decisiva da representação

do além que este aparecimento significa, não me parece muito importante

para o objectivo desta investigação datar de 1210 de preferência

a 1190 o Purgatório de S. Patriek. O essencial é o facto de o novo lugar do

além se materializar a dois tempos, um na literatura teológico-espiritual

sob o impulso dos mestres parisienses e do meio cisterciense entre 1170 e

1180, o outro na literatura das visões entre 1180 e 1215. Com efeito, a

Vida de S. Patrick de Jocelyn de Furness, escrita entre 1180 e 1183, fala de

um Purgatório de S. Patrick mas situado sobre o monte Cruachan Aigle

em Connall:gh27. Os acontecimentos autênticos da história das crenças:

das mentalidades e da sensibilidade raramente são datáveis em dia e

ano. O nascimento do Purgatório é um fenómeno da época da passagem

do século XII para o século XIII.

234

Em compensação, é muito importante o facto de uma descrição do

Purgatório, expressamente referido por uma boca pertencente à geogralia

terrestre, ter surgido cerca de 1200. A redacção do tratado de H. de

Saltrey deve ser mais ou menos contemporânea do aparecimento da lenda

e da criação de uma peregrinação. O Purgatório de S. Patrick reaparece -

sem que a história do cavaleiro Owein seja mencionada - na Topografia

irlandesa (Topographia Hibernica) de Giraud, o Galês ou de Cambrie

(Giraldus Cambrensis) cuja primeira edição data de 1188, mas não é referido

no manuscrito mais antigo e apenas aparece à margem de um manuscrito

da Topografia da primeira metade do século XIII. Giraud, o

Galês viajara até à Irlanda em 1185-1186. No capítulo V da segunda

parte da Topographia Hibernica ele descreve um lago no Ulster ~nde

existe uma ilha dividida em duas partes. Uma delas e bela e agradavel,

tem uma igreja oficial e é famosa pela presença frequente de santos. A

outra parte, selvagem e horrível, está abandonada aos demónios. Tem

nove buracos no chão e se alguém se atreve a passar a noite num deles

fica possuído dos espíritos malignos e toda a noite sofre suplícios horríveis

de toda a espécie num fogo indescritível, e de manhã encontram-no

quase inanimado. Diz-se que se, para fazer penitência, alguém sofrer uma

vez estes suplícios, escapará depois da ~orte (a. não se.r2~ue entretanto

tenha cometido pecados muito graves) as penas infernais .

Esta ilha Station Island, situa-se no Lough Derg (o lago Vermelho),

no condado 'de Donegal que faz parte do Eire, muito perto da fronteira

com a Irlanda britânica do Norte. Parece que o Purgatório de S. Patriek

foi aqui objecto de peregrinação a partir do fim do sécul~ XII..: O Papa

Alexandre VI condenou-a em 1497, mas a capela e a peregnnaçao ressurgiram

no século XVI e sobreviveram a novas destruiçõe~ e interd~ções em

1632, 1704 e 1727. A peregrinação reapareceu de maneira espeClalmente

intensa após 1790, e foi edificada uma grande capela. Em 1931 foi acabada

uma nova e enorme igreja dedicada a S. Patrick e todos os anos uma

peregrinação atrai sem~re cerca de 15.000 peregrinos entre os dias 1 de

Junho e 15 de Agosto" .

Mas no fim do século XII o Purgatorium Saneti Patricii, apesar dos

seus laços com o cristianismo irlandês e com o culto de S. Patrick, não

tem sem dúvida o matiz nacionalista, católico e irlandês que irá adquirir

na época moderna e contemporânea. Parece que são os regulares ingleses

que lançam a peregrinação e a controlam.

Depois da tradução de Marie de Prance " haverá muitas redacções do

Purgatório de H. de Saltrey em latim e muitas também em língua vulgar,

principalmente em francês e inglês". A versão latina será retomada por

Roger de Wendover, nas suas Flores Historiarum, redigidas. em 1~31.

Matthieu Paris, continuador de Roger, retoma na sua Chronica majora

a história, palavra por palavra. Tenha ou não tomado conhecimento

235



d.o tratado ~e ~. de Saltr~y, um grande difusor do Purgatório, o cistercrense

alemao Cesar de Heisterbach, escreve no seu Dia/ogus miraeu/orum

(XII, 38): «Quem duvide do Purgatório que vá à Irlanda e entre no Purg~t?rio

de ~atrick; daí em diante não duvidará mais das penas do Purgatono.»

Os cinco autores de histórias edificantes mais influentes do século

XIII utilizaram o Purgatorium Saneti Patrieii: Jacques de Vitry na sua

Historia orientalis (cap. XCII), os dominicanos Vincent de Beauvais no

Speeu/um historia/e (Livro XX, capo XXIII-XXIV), Étienne de Bourbon

no seu Tractatus de diversis materiis praedicabilibus (ver adiante), Humbert

de Romans em De dono timoris e Jacques de Voragine (Jacopo da

":,arazze) n~ sua célebre Lenda dourada onde declara: «E por uma revelaçao

S. Patnc~ so~be que aquele ~oço ~o~duzia a um purgatório e que

a~ueles que Ia quisessem descer Ia explanam os seus pecados e seriam

dispensados do Purgatório depois da morte'".» Gossouin de Metz fala

dele na sua Imagem do Mundo (Image du monde) que conheceu duas

reda~ões. em verso cerca de 1245 e 1248 e uma redacção em prosa em

1246 . EISum excerto de uma dessas canções:

Na Irlanda há um lago

Que dia e noite arde como fogo,

E a que se chama Purgatório de

S. Patrick; e ainda hoje,

Se láfor alguém

que não esteja bem arrependido,

E imediatamente arrebatado e perde-se

E não se sabe o que lhe acontecerá.

Mas se ele se confessar e estiver arrependido

Tem de sofrer muitos tormentos

E purga-se dos seus pecados,

Quantos mais forem mais ele sofre.

Aquele que regressar deste lugar

Daí em diante nada lhe agradará

Neste mundo, nunca mais.

Não rirá e antes viverá chorando

E gemendo pelos males que existem

E pelos pecados que se cometem'",

O douto S. Boaventura leu-a no original ou num resumo e fala dela no

seu comentário às Máximas de Pedro Lombardo ", Froissard pergunta a

um nobre inglês, Sir William Lisle que fez uma viagem à Irlanda em 1394

se visitou o Purgatório de S. Patriek. Este respondeu-lhe afirmativamente

e diz-lhe mesmo que passou uma noite com um companheiro no famoso

buraco a que chama cave. Lá dormiram, tiveram visões em sonhos e Sir

William fica convencido de que «tudo aquilo não passa de fantasmass'",

Incredulidade rara para a época.

236

Dante contactou de perto com o tratado de H. de Saltrey, cuja fama

não se extingue com a época a que chamamos tradicionalmente Idade

Média. Rabelais e Ariosto aludem a ele; Shakespeare acha que esta história

é familiar aos espectadores de Hamler'" e Calderón escreve uma

peça sobre este tema ", A voga do Purgatório de S. Patriek nas literaturas

erudita e popular durou até ao século xvnr", pelo menos.

Mas o essencial neste culto e neste tratado é que daí em diante existe

com o seu nome uma descrição desse lugar novo do além, o Purgatório, e

que, apesar da ante câmara do Paraíso visitada por Owein, há no

Traetatus três lugares no além: ao lado do Inferno e do Paraíso, onde

Owein ainda não entrou, há o Purgatório, demoradamente percorrido e

descrito' pelo audaz cavaleiro/penitente. E esta geografia do além insere-se

na geografia terrestre, não por uma justaposição inábil como indicara

Alberico de Settefrati mas pela localização terrestre precisa de uma boca

do Purgatório. O que poderia haver de mais conforme com as crenças e a

mentalidade daquele tempo, em que a cartografia balbuciante localiza o

Paraíso (é certo que terreno) em continuidade com o mundo dos vivos? À

medida que se desenvolve o processo de «espacialização» do Purgatório,

os vivos admitidos a visitá-lo têm de encontrar as respectivas bocas e

estabelecer vias de comunicação com a terra. Estas bocas são durante

muito tempo mais ou menos confundidas com a do Inferno, e é a imagem

do popa que se impõe. A topografia das bocas do Purgatório aproveitará

as grutas e as cavernas. O grande êxito do Purgatório de S.

Patriek, situado numa caverna de uma ilha irlandesa, reforçará a imagem

do poço do Purgatório. Um sinal interessante desse êxito é o nome

tradicional de Poços de S. Patriek dado a uma obra de arte excepcional, o

poço de S. Patrizio construído no século XVI em Orvieto.

Iria o cristianismo anglo-irlandês impor o seu Purgatório à cristandade,

sem concorrência? No outro extremo da cristandade na Itália Meridional,

nas margens não do Oceano mas do Mediterrâneo, outro

Purgatório já há muito tempo esboçado ia também afirmar-se: na

Sicília.

A tentativa

siciliana

Ao lado do processo anglo-irlandês que, tanto quanto sabemos, se

inicia com Bede no começo do século VIII, o processo siciliano das abordagens

do Purgatório estende-se ainda mais no tempo, do século VII ao

século XIII. Para o nosso propósito o episódio mais importante teve lugar

no século Xl. Já o vimos; é a visão de um eremita recolhido por um monge

de Cluny nas ilhas Lipari e mencionado por Jotsuald e depois por Pedro

Damião nas suas vidas de S. Odilon, abade de Cluny (994-1049). Ouve-se,

237



saindo da cratera de uma montanha, lamentos dos mortos que lá estão a

ser expurgados'",

Um século depois, o sermão XXI de Julien de Vézelay sobre o Julgamento

Final apresenta para o nosso estudo um duplo interesse. Primeiro,

é um testemunho algo extraordinário de uma certa sensibilidade em relação

à morte. Nele encontramos a dupla inspiração da tradição antiga do

necessário abandono dos prazeres terrenos e da tradição monástica do

afastamento das coisas do mundo. Mas ressoa nele o eco de um certo

deleite com a passagem pela terra, sobretudo entre as classes dominantes

da época, entregues ao luxo das propriedades rurais, das habitações pomposas,

do vestuário e das peles, dos objectos de arte e dos cavalos, e de um

gozo corporal, que são o sinal de um estado de espírito novo, de uma

psicologia de valorização do mundo cá de baixo que fornece a explicação

para o crescente interresse por uma vida longa no mundo, e portanto uma

interrogação acrescida sobre o período intermédio entre a morte individual

e o fim do mundo.

Há três coisas que me aterrorizam, declara Julien de Vézelay, só de evocá-

-Ias todo o meu ser interior treme de medo: a morte, o Inferno e o Julgamento

que há-de vir.

Estou pois assustado com a morte que se aproxima, que me fará passar

não sei para que região reservada aos espíritos fiéis, depois de tirado do meu

corpo, desta luz agradável e comum a todos ... Depois de mim, a história dos

homens far-se-á sem mim...

Adeus, terra acolhedora (hospital) onde durante muito tempo me cansei

com futilidades, onde habitei uma casa de barro de que saio contrariado

(invitus) embora ela só seja barro ... E no entanto ... é contra a minha vontade,

e só se me expulsarem dela, que partirei. A pálida morte entrará no meu

reduto e arrastar-me-á até à porta, apesar da minha resistência ...

Ao mesmo tempo que deixamos o mundo, deixamos tudo quanto é do

mundo. A glória do mundo é abandonada nesse triste dia: adeus honras,

riquezas, propriedades, vastos prados encantadores, paravimentos de mármore

e tectos decorados das casas luxuosas! E que dizer dos tecidos ricos e das

peles de lontra, dos mantos multicores, das taças de prata e dos belos ('''valos

relinchantes sobre os quais o rico se pavoneia orgulhosamente para se valorizar?!

Mas tudo isto é ainda bem pouco: é preciso deixar uma esposa tão doce

de contemplar, deixar os filhos e deixar atrás o próprio corpo ~ue de boa

vontade resgataria a preço de ouro para o libertar deste arresto ... I.

o outro interesse do sermão de Julien de Vézelay é o facto de mencionar

de novo a Sicília como lugar terrestre de acesso ao além.

Eis uma primeira evocação dos que ardem no fogo eterno e dos que

fazem penitência no fogo purgatório:

Com efeito, para nada dizer dos que ardem na geena e que são chamados

de «étnicos» da palavra Et(h)na, por causa desse fogo eterno, e para os quais

não há mais repouso, além desses... há certamente outros que, depois da morte

do corpo, conhecem trabalhos muito penosos e muito longos. Enquanto viviam

recusaram-se a «praticar os dignos frutos da penitência (Lucas, lI, 8); no

momento da morte, porém, confessaram-se e experimentaram sentimentos de

penitência»; é por isso que, por decisão do padre «a quem o Pai encarregou de

todo o julgamento (João, V, 22)>>, poderão cumprir no fogo purgatório a

satisfação penitencial que não fizeram cá em baixo. Este fogo que consome

«a madeira, o feno e a palha acumulados sobre o alicerce da fé» queima aqueles

que expurga; «todavia estes serão salvos através do fogo» (I Coríntios, lI,

12-13, 15), pois não passarão com certeza do fogo purgatório para o fogo

eterno: «O Senhor não julga duas vezes a mesma causa» (Job, XXXIII, 14).

Um pouco adiante, ao falar do fogo da geena, novamente, dá os seguintes

dados precisos: «O fogo adere ao seu alimento sem interrupção e sem o consumir.

Assim a salamandra, pequeno réptil, caminha sobre carvões incandescentes

sem dano para o seu corpo; assim o amianto, uma vez incandescente,

arde sem cessar sem que o fogo o faça diminuir; assim o Etna não Jiára de

arder talvez desde o começo do mundo, sem perda da matéria ígnea .»

Vê-se bem como, pelo jogo habitual entre o clero da Idade Média,

(Isidoro de Sevilha dera o exemplo) das etimologias fantasistas, o Etna

é confirmado no seu papel de lugar do além, de ponto de comunicação

entre a terra e a geena, entre os vivos e os mortos. Mas onde é geograficamente

o ponto de separação entre o Inferno e o Purgatório?

No começo do século XIII surge no processo uma peça curiosa. Nas

suas Otia Imperialia (as Ociosidades Imperiais) redigidas cerca de 1210 e

dedicadas ao imperador Otão IV de Brunswick, o vencido de Bouvines

(em 1214), um clérigo culto e curioso - um autêntico etnógrafo medievalo

inglês Gervásio de Tilbury expõe sobre o além, por um lado, concepções

tradicionais que ignoram as novidades do Purgatório e, por outro,

uma história singular. No capítulo XVII da terceira parte, Gervásio trata

dos dois paraísos e dos dois infernos. Assim como, diz ele, há um Paraíso

terrestre e um Paraíso celestial, «há dois infernos: um terrestre que se diz

situado num buraco da terra e nesse inferno há um lugar muito distante

dos lugares de castigo que, por ser tão calmo e afastado, se chama seio,

como se fala de um seio (golfo) do mar, e diz-se que é o seio de Abraão por

causa da parábola do rico e de Lázaro ... Há um outro inferno aéreo e

tenebroso onde foram precipitados para lá serem castigos os anjos

maus, tal como os bons estão no paraíso celeste (CéU)43.) O que interessa

Gervásio é que, segundo parece, alguns destes demónios vêm à terra acasalar

com uma mortal para gerar homens excepcionais a que se chama

«sem pai» ou «filho de virgem», como Merlin o feiticeiro e, no futuro, o

Anticristo.

238

239



Mais adiante Gervásio, ao descrever «maravilhas» geográficas e mais

particularmente sicilianas, conta a seguinte história recolhida no decurso

de uma viagem que ele próprio fizera (cerca de 1190) à Sicília:

«Existe na Sicília uma montanha, o Etna, ardendo em fogos sulfurosos,

perto da cidade de Catânia ... as pessoas do povo chamam a essa

montanha Mondjíbel'i" e os habitantes da região contam que nas vertentes

desertas apareceu na nossa época o grande Artur. Um dia um palafreneiro

do bispo de Catânia ficou cheio de preguiça por ter comido de

mais. O cavalo que ele estava a escovar fugiu e desapareceu. O palafreneiro

procurou-o em vão pelas escarpas e precipícios da montanha. Com

crescente inquietação, começou a explorar as cavernas escuras de um

monte. Um carreiro muito estreito mas plano levou-o a um enorme prado,

encantador e pleno de delícias.

Aí, num palácio construído por encantamento, encontrou Artur deitado

num leito real. O rei, ao saber o motivo da sua vinda, mandou trazer

o cavalo e entregou-o ao rapaz para que o restituísse ao bispo. E contou-

-lhe como, tendo outrora sido ferido numa batalha contra seu sobrinho

Modred e o duque dos saxões Childerico, ficou caído por terra durante

muito tempo, tentando curar os ferimentos que reabriam constantemente.

E, segundo os indígenas que mo revelaram, ele enviou presentes ao bispo

que os mandou expôr à admiração de uma quantidade de gente confundida

com esta história inédita 45.»

A este texto e a esta lenda dedicou o grande Arturo Graf um belo

artigo'". Contentemo-nos em indicar aqui o papel singular que foi o

seu no processo do nascimento do Purgatório. Gervásio de Tilbury ignora

o Purgatório e, como continua apegado ao seio de Abraão, coloca

Artur num lugar mais próximo de um além maravilhoso pagão. Este

texto é antes de mais o espantoso encontro das tradições meridionais e

setentrionais, célticas e italianas. Encontro da lenda arturiana e da Itália,

também testemunhado no século XII por uma escultura da catedral de

Modena'". Encontro que realça também um dos maiores riscos da localização

do Purgatório.

Dois pólos atraíam o Purgatório: o Paraíso e o Inferno. O Purgatório

podia ser um quase Paraíso ou um quase Inferno.

Mas bem cedo o Purgatório (ainda em esboço) se inclinou para o

Inferno e levou muito tempo a distinguir-se dele. Até ao século XIII - e

por vezes mais tarde - não passou de um inferno menos profundo onde

não se era atormentado por toda a eternidade mas sim temporariamente,

a geena superior.

O Purgatório formou-se, pois, numa visão quase sempre infernal do

além. Este além situava-se em geral debaixo da terra durante o longo

período de incubação do Purgatório, em estreito contacto com o Inferno

- o inferno superior - mas, durante esta fase de geografia confusa, o mo-

240

i

delo infernal do Purgatório foi contaminado e corrifdo por dois outros

modelos. Um foi o do Purgatório quase paradisiaco" . O outro nasceu da

vontade de encontrar um lugar verdadeiramente intermédio entre o Inferno

e o Paraíso.

A estes problemas vagamente apercebidos foram dadas até ao século

XIII soluções diversas, mais ou menos coerentes. Por vezes surge a justaposição

de dois lugares, um com aspecto infernal outro com aparência

quase paradisíaca. Assim, na confusíssima Visão de Tnugdal duas regiões

situadas de um e outro lado da mesma muralha e colocadas entre

o Inferno e o Paraíso são uma chuvosa e ventosa enquanto a outra,

risonha, é banhada pela água de uma fonte de vida. A primeira região

contém as almas dos que não são inteiramente maus e a segunda as do

que não são inteiramente bons. Por vezes, o lugar de purgação parece

situado à superficie da terra, num vale estreito e profundo onde reinam

trevas parecidas com as do Inferno. É o caso da região da visão de-

Drythelm.

A infernização do Purgatório e os seus limites

Nenhum texto evoca melhor do que o de Gervásio de Tilbury um

equivalente do Purgatório tão próximo de um lugar de repouso como

esta descrição da espera num mundo que é decerto o da morte (numa

montanha cheia de fogo onde se é conduzido por um cavalo negro

condutor de almas num estado em que as feridas terrenas não saram:

as de Artur reabrem constantemente), mas onde um herói como

Artur jaz «sobre um leito real», «num palácio construído por encantamento»,

no meio de um prado enorme, encantador e pleno de todas as

delícias.

Parece que neste momento decisivo para o Purgatório em gestação, a

cristandade latina, que hesita em situá-Io na Irlanda ou na Sicília, hesita

também em fazer dele um lugar próximo do Inferno ou próximo do Paraíso

... De facto, no momento em que Gervásio de Tilbury recolhe histórias

que reflectem mais as concepções do passado do que as do presente,

os dados estão já lançados. Carregado com o peso da literatura apocalíptica

oriental, cheio de fogo, de torturas, de furor e de ruídos, definido

por Agostinho como o lugar de penas mais dolorosas do que qualquer

dor terrena, posto em funcionamento por uma Igreja que só salva no

temor e no terror, o Purgatório já tombou para o lado do Inferno. A

propósito da lenda de Artur no Etna, Arturo Graf mostrou magistralmente

como, desde o relato de Gervásio de Tilbury até ao do dorninicano

Étienne de Bourbon cinquenta anos depois, a infernização , a

241



satanização do episódio se consumou. O Purgatório de Artur tornou-se

um Inferno provisório'".

Também a Sicília (Lipari ou Etna), ao contrário da Irlanda, não será

uma localização duradoura do Purgatório. Para compreender isto é necessário

remontar às fontes cristãs do além siciliano. Esse além cristão é

largamente tributário de uma antiga herança rica, da qual a mitologia do

Etna, morada infernal de Vulcano e das suas forjas, é a expressão mais

brilhante. Mas um dos grandes fundadores do Purgatório na Alta Idade

Média, Gregório, o Grande, situa na Sicília as bases do além cristão.

Duas histórias dos Diálogos são disso testemunho.

No primeiro texto o monge Pedro pergunta a Gregório se os bons se

reconhecem no Paraíso (in regno) e os maus no Inferno (in supplicio);

Gregório responde com a história de Lázaro e do rico mau. Depois passa

a descrições já tradicionais (pense-se, por exemplo, nas visões do São

Martinho nesse modelo de hagiografia latina que foi a Vila Martini de

Sulpício Severo) de visões de moribundos. Primeiro, a história de um

monge que, no momento da morte, vê Jonas, Ezequiel e Daniel. Depois

vem a história do jovem Eumorfius, que um dia manda um seu escravo

dizer ao seu amigo Estêvão: «Vem depressa porque o navio que vai levar-

-nos à Sicílía está pronto.» Enquanto o escravo vai a caminho, os dois

homens morrem, cada um por seu lado. Este relato espantoso intriga

Pedro que solicita explicações a Gregório:

PEDRO: Mas, pergunto-te, porque apareceu um navio à alma que saía do

corpo, e porque disse ele que depois da morte seria levado para a Sicilia?

GREGÓRIO: A alma não precisa de meio de transporte (vehiculum ) mas

não é de estranhar que a um homem ainda fechado no seu corpo apareça o

que ele tinha o costume de ver por meio do corpo, para que ele possa assim

entender onde a sua alma poderá ser conduzida espiritualmente. O facto de ele

ter afirmado a esse homem que seria levado para a Sicília só pode ter um

sentido: mais do que em qualquer outro lugar, é nas ilhas dessa terra que

estão abertas as marmitas dos tormentos que cospem fogo. Estas, como afirmam

os conhecedores, cada dia aumentam mais porque, como se aproxima o

fim do mundo e é incerto o número dos que lá serão reunidos para serem

queimados, acrescentando-se aos que já lá estão, é necessário que esses lugares

de tormento se abram mais para os recolher. Deus Todo-Poderoso quis

mostrar esses lugares de correcção aos homens que vivem neste mundo, para

que os espíritos incrédulos (mentes infidelium) que não acreditam que existem

tormentos infernais vejam os lugares desses tormentos. assim como os que se

recusam a acreditar naquilo de que apenas ouvem falar.

Quanto àqueles, eleitos ou condenados, cuja causa foi comum nas suas

obras, são conduzidos para lugares igualmente comuns; as palavras verdadeiras

deveriam bastar para nos convencer disto, mesmo que faltassem. os

exemplos 50.

Esta espantosa mistura de lendas pagãs e de cristianismo muito ortodoxo,

de vulcanologia e de teologia dos fins últimos, não é de estranhar

110 grande Papa escatológico. Conhecemos a segunda história que põe em

causa as ilhas vulcânicas sicilianas e os lugares infernais: é a história do

castigo de Teodorico lançado num vulcão das Lipari'".

A politização das visões do além é o elemento mais notório desta

história que continuará bem viva durante a Idade Média e que anuncia

IIS visões dos reis punidos no além, cujos exemplos já vimos com os soberanos

carolíngios da Visão de Carlos, o Gordo, e com os reis irlandeses

da Visão de Tnugdal. Mas a localização siciliana dos lugares cristãos dos

castigos no além é um elemento igualmente significativo. É nesta tradição

que se deve, evidentemente, situar o relato de Jotsuald e de Pedro Damião.

Entre os relatos de Gregório, o Grande, e os textos. dos séculos XI-XIII

(vidas de Odilon, de Jotsuald e de Pedro Damião, história de Artur no

Etna de Gervásio de Tilbury) situa-se uma peça muito interessante do

processo infernal das Lipari. Este texto raro do século VIII dá-nos a conhecer

ao mesmo tempo uma erupção vulcânica entre os anos 723 e 726 e

a continuidade de uma crença ligada a um lugar de excepção. Trata-se do

relato de uma paragem nestes lugares de um peregrino a caminho de

Jerusalém, o santo Willibald.

De lá, chegaram à cidade de Catânia, depois a Reggio, cidade da Calábria.

É aí que fica o inferno de Teodorico. Tendo chegado, saíram do navio para

verem como era esse inferno. Willibald, levado pela curiosidade e para ver

como era o interior desse inferno, quis subir ao cume da montanha onde se

abria o inferno lá em baixo, mas não pôde. Faúlhas vindas do fundo do

tártaro negro subiam até à borda e aí se espalhavam aglomerando-se. Como

a neve quando cai do céu se acumula em montículos brancos vindos dos arcos

aéreos do céu, também as faúlhas acumuladas no cume da montanha impediam

a subida de Willibald. Mas, cuspida pelo poço, ele viu surgir uma chama

negra terrível e horrível, um ruído de trovão. Olhou a grande chama e o vapor

do fumo elevando-se mcdonhamente muito alto no céu. Esta lava (pumex ou

fomex), de que falavam os escritores, viu-a ele subir do inferno e ser projectada

no mar juntamente com chamas, para depois ser projectada do mar para

terra. Há quem a recolha e a leve consig0 52 .

O sentido destes textos é claro. O que existe desde a Antiguidade - e

também aqui o cristianismo deu um sentido novo às crenças mas manteve-as

no seu lugar in situ - na Sicília, nos vulcões das Lipari como no

Etna, é o Inferno. É verdade que durante muito tempo os lugares purgatórios

cristãos serão perto do Inferno e mesmo uma parte dele. Mas quando

nasce o Purgatório e embora as penas que lá se sofrem sejam

242

243



-_._--------_ ..._---------------------,

temporárias mas infernais, é necessário assegurar a sua autonomia topográfica

no interior do sistema geográfico do além. Na Irlanda o Purgatório

- ainda que infernal - de S. Patrick não é ensombrado pelo Inferno.

Na Sicília a grande tradição infernal não permitiu que o Purgatório se

expandisse. O velho Inferno barrou o caminho ao jovem Purgatório.

NOTAS

1 O texto do opúsculo encontra-se em Migne, PL, 145,col. 584-590com títulos de

capítulos acrescentados pelo editor e que são muitas vezes anacrónicos (por exemplo,

liberat a poenis purgatorii). Sobre Pedro Damião e a memória dos mortos, ver

F. DRESSLER, Petrus Damiani. Leben und Werk, Roma, 1954. Sobre a morte no

meio monástico, ver J. LECLERCQ, «Documents sur Ia mort des moines» in Revue

Mabillon, XLV, 1955,pp. 165-180.

2 PL, 145, 186, 188.

3 O texto latino precisa com fundamento e realismo: poena/ibus undique loris ostrictum

et ambientium catenarum squaloribus vehementer attritum.

4 PL, 144, 403.

5 De miraculis, I, IX, PL, 189, 871.

6 De miraculis, I, XXIII, ibid., 891-894.

7 De miraculis, I, XVIII, ibid., 903-908.

8 Trata-se do manuscrito latino 15912 que foi parcialmente transcrito por Georgette

Lagarde no contexto da investigação do grupo de antropologia histórica do

Ocidente medieval da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais sobre o

cxemplum. As visões referidas encontram-se no folheto 64.

9 Esta historieta sobre a breve passagem de S. Bemardo pelo Purgatório não foi

aproveitada por Jacopo da Varazze na Lenda Dourada. Recordemos que a lmaculada

Concepção de Maria só se tomou um dogma do catolicismo em 1854.

10 O De vita sua (título original Monodiae: Poemas a uma voz, Memórias) de

Guibert de Nogent encontra-se no tomo 156 da Patrologie {atine de Migne e foi

substituído na história da autobiografia por G. KISCH, Geschichte der Autobiographie,

1,2, Frankfurt, 1959;ver J. PAUL, «Le dêmoniaque et I'imaginaire dans le De

vila sua de Guibert Nogent» in Le Diable au Moyen Age, Senefiance nO6, Aix-en-

-Provence, Paris, 1979,pp. 371-399.

11 Ver a introdução de John F. BENTON à tradução para inglês da obra: Self and

Society in Medieval France. The Memoirs of Abbot Guibert of Nobent, Nova Iorque,

1970,e o sugestivo artigo de Mary M. McLAUPHLIN, «Survivors and Surrogates:

Children and Parents from the IXth to the XIIIth centuries» in The History of Childhood,

Lloyd de Mause ed., Nova Iorque, 1975,pp. 105-106.

12 Cf. J.-CI. SCHMITT, Le saint /évrier. Guinefort, guérisseur d'enfant depuis le

XIIr siêcle, Paris, 1979.

244

245



13Sbo re a ligaçao - entre a cor negra e o diabo na Idade Média ver 1. DEVISSE e

M. MOLLAT, L 'Image du noir dans /'art occidental, 11. «Des premiers siêcles chrétiens

aux grandes découvertes», 2 vol., Friburgo, 1979.

14 Texto publicado por Dom Mauro INGUANEZ in Miscellanea Cassinese, XI,

1932, pp, 83-103, precedido de um estudo de Dom Antonio MIRRA «La visione di

Alberico», ibid., pp. 34-79. '

15 A propósito das influências muçulmanas ver as teses exageradas de M. ASIN

PALACIO, La Escatologia musulmana en Ia "Divina Comédia", Madrid, 1919 e Dante

y el/slam, Madrid, 1929, e as mais moderadas de E. CERULLI, 11"livro della Scala" et

Ia questione delle fonti arabo-spagnole della Divina Comedia, Roma, 1949. Sobre a

ausência de Purgatório no Islão ver principalmente E. BLOCHET «Étude sur

l'histoire religieuse de l'Iran» in Revue de l'histoire des religions, 20: 1. 40, Paris,

189,9, p. 12. Ver também M. ARKOUN, 1. Le GOFF, T. FAHD, M. RODINSON,

L'E~~ange et le Merveilleux dans l'Islam médiéval, Paris, 1978, pp. 100-101.

Preenche vinte páginas impressas.

l~ O texto editado diz: Hoc autem insinuante apostolo, purgatorii nomen habere

c0K,novi. Sutx:ntendo fluminis: «Soube que tinha o nome de (rio) purgatório.» Com

efeito, a rubnca deste capítulo que, segundo o editor, é transcrita do manuscrito, é

«De .(Iu~ine purgatorio» (edo rio purgatório»). É como adjectivo no genitivo com

referência a esta passagem que purgatorii (purgatorius ) figura no ficheiro do novo

glossário de Du Cange conforme amavelmente me comunicou A. M. Bautier,

18 Se bem que a referência não seja mencionada, esta interdição provém evidentemente

de S. Paulo, II Coríntios, XII, 2-4. Eis o fim'da viagem: S. Pedro leva finalmente

Alberico através de cinquenta e uma províncias terrestres - as do antigo Império

Romano - onde lhe mostra santuários de santos e mirabilia edificantes. O relato termina

com um~ descrição de S. Pedro, diversos propósitos do apóstolo, o regresso da

alma .de Albenco ao corpo, a visão de sua mãe, quando rezava a um ícone que representava

S. Paulo pela sua cura, e a sua entrada no mosteiro de Monte Cassino.

19 Visio Tnugdali, ed. Albrecht Wagner, Erlangen, 1882. Recordo o estudo recente

de Claude CAROZZI citado a p. 16, n. I e p, 185 n. 1.

20 O Purgatorium Sancti Patricii foi editado duas vezes no século XVII, por MES-

SINGHAM no seu Florilegium Insulae Sanctorum, 1624, edição reproduzida na Patrologie

latine, 1. 180, col. 975-1004 e pelo jesuíta John COLGAN na sua Triadis

thaurnaturgae ... acta, Lovaina, 1647. Foram feitas edições modernas por S. ECKLE-

BEN, Die âltest Schilderung vom Fegfeuer des heiligen Patricius, Halle, 1885; por Ed.

MaU que, .perante o texto editado por Colgan, nos dá o texto do manuscrito que se

~e considerar co~o o mais próximo do texto original (ms E VII 59 de Bamberg, do

sc;culo XIV) e as vanantes de um manuscrito do British Museum, Arundel, 292 (fim do

seculo ?GIl), Zur Geschiehte der Legende vom Purgatorium des heiligen Patricius, in

Romanische Forschungen ed. K. Vollmõller, VI, 1891, pp. 139-197; por U. M. VAN

DER ZANDEN, Etude sur le Purgatoire de saint Patriee, Amesterdão, 1927, que ditou

o. texto de um manuscrito de Utrecht do século XV e, em apêndice, uma versão corrigida

do manuscrito Arundel 292; e por Warncke em 1938. Utilizei a edição Mall. O

Purgatorium .Saneti Patricii suscitou, nas suas formas latinas ou em linguagem vulgar

(francesas e inglesas sobretudo - lugar à parte para a tradução de Marie de France

l'!!spurgatoire. ~aint Patriz), ~uitos estudos entre os quais alguns, ainda que antigos,

sa? sempre vahd~s. ~ maioria deles repõe este texto na história das crenças sobre o

~Iem desde a Antiguidade, e no folclore. Se bem que por vezes insuficientemente críticos

e ultrapassados, estes estudos continuam a ser um modelo de abertura de espírito

246

histórico. Citemos: Th. WRIGHT, SI. Patrick's Purgatory; an essay on lhe legends of

Purgatory, Hell and Paradise, eurrent during the Middle Ages, Londres, 1844. BA-

RING-GOULD, Curious Myths of the Middle Ages. 1884, repr. Leyde, 1975; S. Patrick's

Purgatory, pp. 230-249. G. Ph. KRAPP, The Legend of St. Patrick's Purgatory,

its later Iiterary history, Baltimore, 1900. Ph, de FÉLICE, L'autre monde. Mythes et

légendes: Le Purgatoire de saint Patrice, Paris, 1906. O estudo tido como o mais completo,

o de Shame LESLIE, SI. Patrick's Purgatory: A reeordfrom History and Literature

, Londres, 1932, não é o mais interessante. V. e E. TURNER deram uma

interpretação antropológica muito sugestiva à peregrinação de S. Patrick ao Purgatório

nos tempos modernos - que nada acrescenta ao nosso tema: /mage and Pilgrimage

in Christian Culture: capo 11I, St. Patrick's Purgatory: Religion and Nationalism in an

Archaic Pi/grimage, Oxford, 1978, pp. 104-139.

21 Existe em Roma na igreja do Sacro Cuore deI Suffragio um pequeno «museu do

Purgatório» onde são conservados uma dúzia de vestígios (geralmente queimaduras

feitas com uma mão - em sinal do fogo do Purgatório) de aparições de almas do

Purgatório a vivos. Estes testemunhos vão do fim do século XVIII ao começo do

século XX. Longa duração, a do sistema do Purgatório ...

22 Estes dados sobre S. Patrick que viveu no século V são inventados. As antigas

vidas de S. Patrick nada dizem a este respeito. O Purgatório de S. Patriek é mencionado

pela primeira vez, no estado actual da documentação, na nova vida do santo

escrita por Jocelyn de Furness entre 1180 e 1183. Como o chanceler Owein não é

mencionado, considera-se geralmente este período 1180/1183 como o terminus a quo

para a datação do Tractatus de H. de Saltrey,

23 Ver Erich KÓHLER, L 'Aventure ehevalresque. /déal et réalité dans le roman

courtois, Paris, 1974.

24 Continuo a contar a história por uma paráfrase abreviada. O texto entre aspas

não é a tradução integral do discurso dos dois «arcebispos».

25 Noto que se encontram estas imagens do além entre os actuais descendentes dos

Maias, os Lacandons do Sul do México: «O "sábio" Tchank'in Maasch ... não deixava

de referir relatos sobre este domínio das sombras onde correm lado a lado regatos

gelados e rios de fogo ...» (1. SOUSTELLE, Les Quatre Soleils, Paris, 1967, p. 52).

26 F. W. LOCKE, «A new date for the composition of the Tractatus de Purgatorio

Sancti Patricii» in Speculum, 1965, pp. 641-646 rejeita a data tradicional de cerca de

1189 para atribuir ao período 1208-1215 a composição do Tractatus, o que implica que

a data do Espurgatoire Saint Patriz seja também avançada vinte anos. Richard Baum

(<<Recherches sur les oeuvres attribuées à Marie de France», in Annales Universitatis

Saraviensis, 9, Heidelberg, 1968) afirmou recentemente que não só o Espurgatoire era

de facto posterior ao último decénio do século XII mas também que não era de Marie

de France, Veremos adiante que a Topographia Hibernica de Giraud de Cambrie e a

Vida de S. Patrick de Jocelyn de Furness não fornecem qualquer elemento decisivo

para a datação do Tractatus.

27 A Vida de S. Patrick: de JoceIyn de Furness foi editada no século XVII no mesmo

volume do Purgatorium de H. de Saltrey no século XVII por Messigham (Florilegium

insulae sanctorum ..., Paris, 1624, pp. 1-85) e por Colgan (Triadis thaumaturgae .... Lovaina,

1647: a passagem sobre o Purgatório no monte Cruachan Aigle encontra-se na

p. 1027). Foi retomada nos Acta Sanctorum, 17 de Março, 1. lI, pp. 540-580.

28 GIRALDUS CAMBRENSIS, Opera, 1. V, ed. J. F. Dimock, Londres, 1867

(Rerum Brittannicarum medii aevi scriptores ), pp. 82-83. Foi imediatamente a seguir

a esta passagem que foi acrescentado no manuscrito da primeira metade do século XIII

247



«Este lugar foi chamado pelos habitantes Purgatório de Patrick» e diz-se como este

obteve licença para o fundar. Cf. C. M. Van der Zanden. Um capítulo interessante

da Topographia Hibemica e do Tractatus de purgatorio saneti Patrieii encontra-se em

Neophilologus 1927. Giraud, o Galês parece ter redigido a sua Topographia no momento

em que uma peregrinação penitencial - sem dúvida com aspecto de ordálio - foi transferida

da maior ilha dos santos (Saints' Island) para a pequena ilha de Station Island a

noroeste de Lough Derg, e daí a síntese numa só ilha partilhada por santos e demónios.

29 Além do interessantíssimo estudo de V. e E. Tumer citado no fim da nota 20

deste capítulo, pp. 259-260, só existem estudos medíocres ou sumários da peregrinação.

Cf. John SEYMOUR, St. Patrick's Purgatory. A Mediaeval Pilgrimage in Ireland,

Dundald, 1918, J. RYAN, New Catholie Encyclopedia, voI. XI, 1967, p. 1039. Philippe

de FELICE (cujo capítulo IV de L'Autre Monde, Mythes et Légendes, Le Purgatoire de

saint Patrice, Paris, 1906, intitulado «História do Santuário do Lough Derg» não é

isento de interesse e termina com este judicioso reparo: «A persistência, através dos

séculos, do Purgatório de S. Patrick é um facto preciso, indiscutível, cuja importância

merecia ser assinalada à atenção dos sociólogos») conta (p. 9 e ss.) como, na companhia

de um primo, chegou com dificuldade ao Lough Derg e à ilha do Purgatório em

1905. Em 1913 o cardeal Logue, primaz da Irlanda, depois de uma visita a Station

Island, declarou: «Creio que todos que realizaram a peregrinação tradicional aqui

ao Lough Derg, bem como os exercícios penitenciais, o jejum e as preces que valem

tantas indulgências, e morreram em seguida pouco terão tido que sofrer no outro

mundo» (citado por V. e E. Turner, p. 133). Anne Lombard-Jourdan que visitou o

Lough Derg e o Purgatório de S. Patrick em 1972 teve a gentileza de me descrever o

programa oficial que tem a aprovação do bispo local, o bispo de Clogher. Na Idade

Média a duração da penitência passara de 15 para 9 dias, a duração normal das novenas

para a Igreja. Na época moderna a duração foi encurtada para 3 dias, o que é

hoje a prática, mas o centro da peregrinação continua a ser uma provação de 24 horas.

O programa de 1970 diz «a vigília (lhe Vigil) é o principal exercicio espiritual da

peregrinação e significa privarmo-nos de dormir de uma maneira completa e contínua

durante 24 horas». Bela continuidade das crenças e das práticas!

30 L 'Espurgatoire de Saint Patriz de MARIE DE FRANCE foi publicado por

Thomas Atkinson Jenkins, Filadélfia, 1894. Ver L. FOULET, «Marie de France et

Ia Légende du Purgatoire de Saint Patrice» in Romanische Forschungen, XXII, 1908,

pp. 599-627.

31 Paul Meyer indicava sete versões francesas em verso do Purgatório de S. Patrick

(Histoire Iittéraire de Ia France, t. XXXIII, pp. 371-372 e Notiees et Extraits des manuscrits

de Ia Bibliothéque nationale, t. XXXIV, Paris, 1891): I) a de Marie de France;

2 a 5) quatro versões anónimas do século XIII; 6) versão de Béroul; 7) versão de

GeofTroy de Paris introduzida pelo livro IV da Bible des sept états du diable. Uma

delas foi publicada por Johan VISING, Le Purgatoire de saint Patrice des manuscrits

Harléien 273 et Fonds franpais 2198, Gõteborg, 1916. O substantivo purgatório é usado

várias vezes. Por exemplo:

Pela grande vergonha que tinha

Dizia que de boa vontade iria

Para o purgatório, para poder

Expiar bastante os seus pecados (v. 91-94)

Com aquele que não quer deixar

De no purgatório entrar (v. 101-102).

248

Existem .ambém várias versões francesas em prosa. Uma delas foi publicada por

Prosper TARBÉ. Le Purgatoire de saint Patriee. Légende du xnr siêcle, publiée

d'aprés un manuscrit de Ia Bibliothéque de Reims, Reims, 1842. As versões inglesas

mais antigas foram publicadas por HORTSMANN in Alten Englische Legenden, Paderborn,

1875, pp. 149-211, KOELBING in Englische Studien, I, pp. 98-121, Breslau,

1876, e L. T. SMITH, Englisehe Studien, IX, pp. 3-12, Breslau, 1886.

Uma edição em provençal antigo do começo do século XV foi publicada por

A. JEANROY e A. VIGNAUX, Raimon de Perelhos. Voyage au Purgatoire de saint

Patrice, Toulouse, 1903 (textos em languedócio do século XV). Esta edição contém

também versões em provençal antigo da visão de Tnugdal e da visão de S. Paulo

que Raymond de Perelhos julga ser a viagem ao Purgatório de S. Patrick. O conjunto

destes textos provém do manuscrito 894 da Biblioteca municipal de Toulouse, prova

do gosto pelas visões do além e do Purgatório no século XV. Este pequeno «corpus»

ucarreta a transformação da visão de Tnugdal em visão do Purgatório. O título é

(f. 48): Ayssi commensa 10 libre de Tindal traetan de Ias p~nas de purgatori. Sobre o

destino do Purgatório de S. Patrick em Espanha ver J. PEREZ de MONTALBAN,

Vida y Puragatorio de San Patricio, ed. M. G. Profeti, Pisa, 1972.

32 Légende dorée, tradução francesa. T. de WYZEWA, Paris, 1920, p. 182. Sobre

Étienne de Bourbon e Humbert de Romans ver L. FRA TI, «li Purgatorio do S. Patrizio

secondo Stefano di Bourbon e Umberto de Romans» in Giorna/e storieo della

letteratura italiana, 8, 1886, pp. 140-179.

33 A redacção em prosa de Gossouin de Metz foi editada por o. H. PRIOR,

L'1mage du monde de maitre Gossouin. Rédaction en prose, Lausanne-Paris, 1913.

34 Este extracto da Image du monde de Gossouin de Metz é a versão ligeiramente

modernizada do texto do conde de DOUHET no Dietionnaire des /égendes du

christianisme, ed. Migne, Paris, 1855, colunas 950-1035.

35 Ed. de Quaracchi, t. IV, p. 526. O grande mestre franciscano diz que existiu a

lenda de que o Purgatório se encontrava nestes lugares (ex quo fabulose ortum est, quod

ibi esset purgatorium).

36 FROISSART, ed. Kervyn de Lettenhove, Chroniques T. XV, Bruxelas, 1871, pp.

145-146.

37 SHAKESPEARE, Ham/et. Quando o fantasma do pai aparece a Hamlet (acto I,

cena V) revela-lhe que foi condenado por um tempo determinado a errar de noite

e a jejuar durante o dia nas chamas até que os seus pecados sejam queimados e purgados

(dirá pouco depois que o assassínio nele praticado pelo irmão foi tanto mais

odioso quanto nem lhe deu tempo para se confessar e fazer penitência antes de

morrer).

Iam thy father's spirit

Doom 'd for a certain term to walk the night

And.for lhe day, confin 'd to fast in fires,

Till de foul crimes, done in may days of nature,

Are burnt and purg'd away.

Quando o fantasma desapareceu, Hamlet, sem revelar a Horácio e Marcelo o que

ele lhe dissera, invoca S. Patrick:

HORA TIO: There's no offence, my lord,

HAMLET: Yes, by Saint Patrick, but there is, Horatio,

And much offence. 100. Touching this vision

It is an honest ghost.

249



38 CALDERÓN, Le purgatoire de saint Patrice, trad. francode Léon ROUANET,

Drames religieux de Calderôn, Paris, 1898. A primeira edição do Purgatorio de San

Patricio é de 1636.

~9 O conde de DOUHET no seu interessantíssimo artigo: «Saint Patrice, son purgatoire

et son voyage» do Dtctionnaire des légendes du christianisme, ed. Migne, Paris,

1855, col. 950-1035, publicou uma versão ainda muito apreciada no século XVIII.

Escreve,ele(col. 951): «Entre mil outras, escolhemos uma versão recente, ainda popular

no seculo passado e que esclarececompletamente as intenções da Idade Mêdia.»

.40 J<?TSUALD (existem também as ortografias Jotsald, Jotsaud e Jotswald), Vita

Odilons m Patrologie Latine, t. 142,col. 926-27.Pedro Damão, Vita Odilonis, também

em PL, t. 144,col. 935-937.Ver atrás, pp. 171-173.

Sobre as crenças populares ligadas aos vulcões das ilhas Lipari e ao culto de S.

Bart,?I0In:e~~cujas relíquias aparecem nas Lipari cerca de 580 e ao de S. Calogero,

eremita siciliano que viveu algum tempo nas ilhas Lipari e que aparece nos odes do

monge de Sergio no século IX (será canonizado no fim do século XVI), ver G. COZZA

LUZI, «Le eruzioni di Lipari e deI Vesuvio nell'anno 787»in Nuovo Giornale Arcadico

ter. 111,Milão, 1890 e G. IACOLINO, «Quando le Eolie diventarono coloni~

dell'.Infe.rno.Calogero un uomo solo contro mille diavoli» in Arcipelago, ano lI, nO

4, Lipari, 1977.Bernabo Brea prepara um estudo sobre estas tradições da Antiguidade

aos nossos dias.

41 '

JU.LIEN de VEZELAY, Sermone, ed. D. Vorreux, t. II (colecção Fontes cristãs,

193),Pans, 1972,pp. 450-455.Julien dá a mesma etimologia de ethnici a partir de Etna

no sermão IX, t. I, p. 224.

42 Ibid., pp. 456-459 e 460-463.

43 GERVASIO de TILBURY, Otia Imperialia in Scriptores Rerum Brunsvicensium,

Hanover, 1707,t. I, p. 921 (edição de Leibniz que, num prefácio, mostra a sua profund,!

aversão de homem do Século das Luzes pela Idade Média).

Reconheceu-se a palavra árabe Djebel (montanha), testemunho da presença

muçulmana na Sicília e do prestígio do Etna, chamado a montanha.

45 Otia Imperialia, ed. Leibniz, p. 921.

46 A. GRAF, «Artú nell'Etna» in Mitti, leggende e superstizioni dei Media Evo, vol.

11,Turim, 1893,pp. 303-335.

47 Ver R. S. LOOMIS, «The oral diffusion of the Arthurian Legend» in Arthurian

Literature in the Middle Ages. A collaborative History (ed. R. S. Loomis), Oxford, 1959,

pp. 61-62e no mesmo volume A. VISCARDI, «Arthurian intluences in italian literature

from 1200 to 1500»,p. 419.

. 48 Ver o ensaio de Alfred NUTT, The happy otherworld in lhe mythico-romantic

literature of.lhe Irish. The celtic doctrine of re-birth na sequência da edição por Kuno

Meyer d.a vlage~ de .Bran, saga escrita no século VII, revista no século X e cujos

manuscntos mais antigos datam de começo do século XII (The voyage of Bran, Son

of F:tal, 10 lhe. lan~ of lhe Living, An o,ld Irish Saga, Londres, 1895).

~ Falo mais . adiante da versão de Etienne de Bourbon.

GREGO RIO, O GRANDE, Dialogi, IV, XXXIII-XXXVII ed. V. Moricca pp.

278·285. ' ,

51 '

52 GREGORIO, O GRANDE, Dialogi, IV, XXX. Ver atrás, p. 116.

Hodoeporicon S. Willibaldi in Itinera hierosolymitana, ed. Tobler e A. Molinier,

Genebra, 1879, pp. 272-273. Devo o conhecimento deste texto à amizade de Anne

Lombard-Jourdan,

250

VII - A LÓGICA

DO PURGATÓRIO

Os mortos não existem senão pelos e para os vivos. Inocência 111

disse-o: os vivos ocupam-se dos mortos porque são eles próprios futuros

mortos. E numa sociedade cristã, sobretudo na Idade Média, o futuro

não tem apenas um sentido cronológico, mas primeiro e principalmente

um sentido escatológico. Natureza e sobrenatureza, no mundo e no além,

ontem, hoje, amanhã e sempre, a eternidade, são unos, feitos de uma

mesma trama, não sem acontecimentos (o nascimento, a morte, a ressurreição),

não sem saltos qualitativos (conversão) e momentos inesperados

(o milagre). A Igreja está por toda a parte, no seu papel ambíguo: controlar

e salvar, justificar e contestar a ordem estabelecida. Desde o fim do

século IV até meados do século XII, de Agostinho a Otão de Freising (o

prelado tio de Frederico Barba Ruiva), a sociedade viveu - mais mal do

que bem - sobre um modelo ideal, a Cidade de Deus. O essencial era que

a cidade terrena, apesar das suas imperfeições, não tombasse para o lado

do Diabo, para o lado do mal. O modelo continua válido para além do

século XI e Satanás investirá mesmo em ofensivas violentas, angustiantes,

enquanto durar o mundo feudal dos fortes e dos fracos, dos bons e dos

maus, dos brancos e dos negros.

Mas na explosão da cristandade, entre o fim do século Xl e meados do

século XIII, digamos, encontrar referências intelectuais, de Anselmo a

Tomás de Aquino, já não é assim tão simples. Há estados intermédios,

etapas, transições, as comunicações são mais sofisticadas entre os homens,

entre Deus e os homens; o espaço e o tempo fragmentam-se e reorganizam-se

de outra maneira, as fronteiras entre a vida e a morte, entre o

mundo e a eternidade, entre a terra e o céu, deslocam-se. Os instrumentos

de medição já não são os mesmos, quer se trate da ferramenta intelectual,

dos valores, ou das técnicas materiais. A reforma gregoriana entre o meio

do século XI e o meio do século XII, resposta da Igreja ao desafio das

novas estruturas da cristandade, liquidou uma retórica que ainda faltará

durante algum tempo à boca de cena mas que, cada vez menos, esconde

251



as realidades novas do teatro cristão. Retórica do dualismo: as duas ci

dades, os dois poderes, as duas espadas, o clero e os laicos, o Papa e o

imperador; há também dois exércitos, o do Cristo e o de Satanás. Inocêncio

lU é aqui uma testemunha e um actor irrefutável. É um grande Papa

não por ter feito triunfar entre a cristandade (como pretendia uma historiografia

arcaica) um suposto modelo de feudalismo jurídico que nunca

existiu, mas porque, apesar de alguns erros (quem poderia pensar, cerca

de 1200, que os cistercienses seriam incapazes de combater vitoriosamente

os hereges?), restabeleceu o poder da Igreja sobre a nova sociedade, não

opondo-se-lhe mas adaptando-se a ela. Inocêncio 111designa daí em diante

três igrejas: entre o exército de Deus e o exército de Zabulão há «o

exército que está no Purgatório» I.

o além e os progressos

da justiça

A que responde este aparecimento de uma terceira sociedade no além?

Será a uma evolução da ideia de salvação à qual se ligam geralmente as

concepções humanas do outro mundo?

A reflexão dos vivos sobre o além parece-me todavia animada mais

pela necessidade de justiça do que pela aspiração à salvação - excepto,

talvez, durante breves períodos de efervescência escatológica. O além deve

corrigir as desigualdades e as injustiças cá de baixo, deste mundo. Mas

esta função do além de correcção e de compensação não é independente

das realidades judiciais terrenas. Sendo no cristianismo o destino eterno

dos homens fixado no Julgamento Final, a imagem do julgamento ganha

uma importância singular. E certo que o Novo Testamento descreveu a

cena em que a cortina cai sobre o mundo e se abre sobre a eternidade. É a

grande separação das ovelhas e dos lobos, dos eleitos à direita e dos condenados

à esquerda (Mateus, XXV, 31-46). É a vinda do Paracleto.

E ele, logo que venha,

estabelecerá a culpabilidade do mundo

em matéria de pecado

em matéria de justiça

e em matéria de julgamento:

de pecado,

porque eles não crêem em mim;

de justiça,

porque eu vou para o Pai

e vós não me vereis mais;

de julgamento,

porque o Príncipe deste mundo é julgado.

(João, XVI, 8-11).

252

É, por fim, o julgamento das nações:

E eu vi os mortos, grandes e pequenos, de pé perante o trono; abriram-se

livros e depois um outro livro o da vida; então os mortos foram julgados

segundo o conteúdo dos livros, cada um conforme as suas obras .... Então

a Morte e o Hades foram lançados no lago de fogo - é a segunda morte, este

lago de fogo - e àquele que não estava inscrito no livro da vida lançaram-no

no lago de fogo (Apocalipse, XX, 12-15).

Mas este julgamento futuro, último, geral, comporta apenas duas possibilidades:

a vida ou a morte, a luz ou o fogo eterno, o Céu ou o Inferno.

O Purgatório vai depender de um veredicto menos solene, um julgamento

individual logo a seguir à morte que as imagens cristãs medievais vêem

espontaneamente sob a forma de uma luta pela alma do defunto entre

anjos bons e maus, entre anjos propriamente ditos e demónios. Como

as almas do Purgatório são almas eleitas que finalmente serão salvas,

libertam-se dos anjos mas são submetidas a um procedimento judicial

complexo. Podem, com efeito, beneficiar de uma alteração de pena, de

uma libertação antecipada, não pela sua boa conduta pessoal mas por

causa das intervenções exteriores, os sufrágios. A duração da pena depende

pois, para além da misericórdia de Deus simbolizada pelo zelo dos

anjos ao arrancar as almas aos demónios, dos méritos pessoais do defunto

adquiridos durante a vida e dos sufrágios da Igreja suscitados pelos

parentes e amigos do defunto.

Este processo inspira-se evidentemente nas concepções e nas práticas

da justiça terrena. Ora o século XII é o século da justiça num duplo sentido:

a justiça - como ideal - é um dos grandes valores do século enquanto

a prática judicial se transforma consideravelmente. A noção ambígua

de justiça evolui entre esse ideal e essa prática. Face aos senhores feudais

que monopolizam a justiça como direito, instrumento de domínio sobre

os membros do feudo, e como fonte de lucros financeiros, os reis e os

príncipes territoriais reivindicam o ideal e a realidade da justiça, o clero

reforça o seu ascendente sobre as aspirações colectivas da sociedade aprofundando

a concepção cristã de justiça, desenvolvendo a actividade nos

tribunais episcopais, os provisorados e, sobretudo, criando um novo tipo

de direito, o direito eclesiástico ou direito canónico.

Do lado dos detentores de autoridade pública, o aumento das intervenções

no domínio judicial, a invocação mais instante de um ideal de

justiça, caracterizam o século XII. E isto é verdade em relação às grandes

monarquias feudais - e principalmente à Inglaterra mas também à França

dos Capetos onde, de Luís VI e Luís VII a Filipe Augusto e de Suger aos

panegiristas de Filipe Augusto, a imagem do rei justo cresce ao mesmo

tempo que a acção da justiça real/. E isto é assim também nos grandes

253



principados territoriais. Um episódio sangrento, o assassínio por membros

de uma família de ministeriais do conde da Flandres, Carlos, o

Bom, na capela de Bruges em 1127, proporciona-nos um relato espantoso.

Tendo como pano de fundo o nascente poder económico da Flandres,

nele encontramos o enunciado, através do retrato um tanto idealizado do

conde assassinado, do ideal político dos governos do século XII. O autor

deste relato, o notário Galbert de Bruges, coloca à frente das virtudes do

príncipe a justiça:'. Este príncipe justo foi cognominado de o Bom.

O grande iniciador do movimento canonista do século XII, o bispo

Yves de Chartres, no Prólogo da sua colecção canónica, o Decreto

(1094), expôs uma teoria da dispensa, a ser concedida pela autoridade

eclesiástica, para permitir em certos casos a não-aplicação das regras

do direito. Nessa altura ele definiu uma distinção fundamental entre as

regras da justiça: as regras imperativas, as sugestões e as tolerâncias

(praeceptum, consilium, indulgentia) 4. Nos primeiros anos do século

XII, inspirando-se em Yves de Chartres, Alger de Liêge, diácono e mestre

de teologia da Igreja de Saint-Lambert e depois cónego da catedral, que

por fim se retirou em Cluny (não se trata de um tenor da nascente classe

intelectual mas de um clérigo mediano), faz um Livro da misericórdia e da

justipa (Liber de misericordia et justitia)",

Esta ideologia política situa-se num contexto religioso. Ainda que tenha

participado nas violências deste século, tanto em cristandade como

nas cruzadas contra os infiéis, a Igreja não separa, segundo o modelo

divino, a misericórdia da justiça.

Alger define as regras da tolerância que consistem essencialmente em

não acusar sem provas jurídicas. Parte da antítese clássica desde Agostinho,

renovada, explicitada, retomada num contexto bem diferente, o da

efervescência ideológica e social, na volta do século XI para o século XII,

entre o direito estrito e a tolerância. Revela os seus objectivos que devem

ser, segundo ele, os da justiça: propiciar a reconciliação, procurar escrupulosamente

a intenção, definir bem o papel da vontade no delito.

Como farão dentro em breve Abelardo e Graciano, ele evoca os textos

contraditórios da Bíblia: existe uma tal «diversidade» nas Escrituras! Tanta

diversitas scripturarum ... É pois possível brincar com as autoridades.

No fim do século, aproveitando o engenho interpretativo dos teólogos

e dos canonistas, Alain de Lille dirá que as citações têm nariz de cera ...

Cabe aos hábeis torcê-Io a seu favor.

Alger vai muito longe dentro da tolerância. Escreve que «se não podemos

corrigir os iníquos, devemos tolerá-Ios ...», «que devemos tolerar os

maus para conservar a unidade» - a paz. Acha que «até um condenado,

se estiver verdadeiramente arrependido, pode ser reinvestido nos seus

direitos, pois aquele que exerce a justica não peca» (nan peccat qui exercet

justitiarn) .

254

Refere-se por fim à maneira como um acusado pode justificar-se, purgar-se

das suas culpas, reais ou supostas: «Um acusado pode expurgar-se

(expurgare) de três maneiras: apresentando testemunhas irrefutáveis, entregando-se

a um exame profundo ou, antes de qualquer publicidade,

confessando e arrependendo-se» (pela confissão e a penitência: confessiofie

et penitentiat. Enfim, «se um acusado não quis expurgar-se, quer esteja

convencido de que é culpado, quer confesse os seus pecados mais tarde,

será condenados''.

Reencontramos a reflexão sobre o pecado na teologia como no direito

canónico. Crime (crimen), delito (delictum ), culpa (culpa), pecado

(peccatum), estas palavras são, no século XII, comuns aos teólogos e

aos canonistas que se esforçam, uns e outros, por as diferenciar.

Num estudo clássico sobre o ensino da culpa em direito canónico, de

Graciano aos Decretais de Gregório IX 7 , Stephan Kuttner, depois de no

seu prefácio ter sublinhado a importância deste grande movimento intelectual

e social, o começo da ciência do direito canónico e evocado a

produção sempre crescente, na segunda metade do século, da literatura

canonista: glosas ao Decreto, Súmulas, e, no domínio regularmente eclesiástico,

decretais que finalmente Gregório IX reunirá e inserirá em 1234

no Corpus de direito canónico que está em curso, começa o seu estudo por

«Abelardo e o conceito de crime».

Novas concepções

do pecado e da penitência

As palavras e as ideias de Alger de Liêge levaram-nos bem próximo do

Purgatório. Alger de Liêge, ao citar os seus inspiradores, colocava-se na

linha dos pais do Purgatório. Agostinho e Gregório, o Grande, a bem

dizer não o Gregório dos Diálogos mas o dos Moralia e do Liber pastoralis.

Chega-se ao Purgatório penetrando no domínio onde, no século XII,

se joga o essencial da nova partida que a Igreja e a sociedade disputam no

ponto de encontro da vida espiritual e da vida material e social: a penitência.

Pór um itinerário inverso e complementar do de Stephan Kuttner, um

historiador de teologia, Robert Blomme, reencontra - característica fundamental

do século - a noção de justiça ao estudar A Doutrina do pecado

nas escolas teológicas da primeira metade do século XI~ (La Doctrine du

péché dons les écoles théologiques de Ia premiêre rnoitié du XI~ siécle),

E cá temos, na segunda metade do século, Pedro, o Devorador, que é

talvez o «inventon do Purgatório. No Liber Pancrisis ele reuniu citações

dos Pais da Igreja feitas ou comentadas por «mestres modernos» (a modernis

magistris), dando-lhes a forma como estava na moda de «máximas

ou questões». Trata-se de teólogos da escola de Laon do princípio do

século XII, Guillaume de Champeaux, Anselme e Raoul de Laon e

de Yves de Chartres". Esta escola de Laon desempenhou um papel

255



importante na evolução das ideias sobre o pecado e a penitência. Não

retomarei o estudo muito bem feito'? da grande mutação intelectual e

moral que renovou a noção de pecado e modificou profundamente as

práticas da penitência no século XII e no começo do século XIII, ao ligar -

o pecado à ignorância e ao procurar descobrir a intenção na conduta do

pecador.

O ponto de partida é, sem dúvida, Anselmo de Cantorbery. O grande

teólogo insistira na diferença fundamental entre o pecado voluntário e o

pecado por ignorância. No Cur Deus homo (11, 15, 52, 115) declarara:

«Há tamanha diferença entre o pecado cometido conscientemente e aquele

que se pratica por ignorância, que um pecado que nunca se teria cometido

se se conhecesse a sua enormidade é apenas venial porque foi

praticado por ignorância!'.» Todas as grandes escolas da primeira metade

do século XII retomam e desenvolvem esta diferença fundamental que

em seguida se tornará tradicional: a escola de Laon, Abelardo, os adeptos

do Papa Victor. Há duas diferenças que têm especial importância. A diferença

entre vício e pecado, implicando este a aquiescência do pecador, o

seu consensus. A diferença entre culpa e pena (culpa et poena) que um

discípulo de Abelardo no Comentário de Cambridge comenta assim:

«Primeiro é preciso dizer que o pecado comporta dois aspectos: o que

diz respeito à culpa (culpa) que é a aquiescência (consensus ) ou o desprezo

de Deus (contemptus Dei), como quando se diz que uma criança pequena

está isenta de pecado, o que diz respeito à pena como quando

dizemos ter pecado em Adão, quer dizer ter incorrido numa pena I2 .» O

importante para o nosso estudo é que a culpa (culpa), que normalmente

leva à condenação, pode ser remida pela contrição e pela confissão, enquanto

a pena (poena) ou castigo expiatório é anulada pela satisfação,

quer dizer pelo cumprimento da penitência imposta pela Igreja. Se houve

contrição e/ou confissão mas a penitência não foi cumprida ou terminada

voluntária ou involuntariamente (por exemplo, se a morte sobreveio), a

pena (poena) deve ser cumprida no fogo purgatório, quer dizer, a partir

do fim da estada no mundo, no Purgatório+'.

Toda a vida espiritual e moral é daí em diante dirigida para a busca da

intenção, para a pesquisa do voluntário e do involuntário, o acto consciente

e o acto por ignorância. A noção de responsabilidade pessoal fica

consideravelmente acrescida e enriquecida. A caça ao pecado inscreve-se

«numa interiorização e uma personalização» da vida moral que reclama

novas práticas penitenciais. Mais do que a prova interna, o que agora se

busca é a confissão; mais ainda do que o castigo, o que conta é a

contricão'", Tudo isto leva a que passe para primeiro plano a confissão

ao padre, uma confissão transformada.

Na viragem do século XI para o século XII, quando as estruturas oscilam,

aparece uma obra anónima, mal datada, mal estudada e, todavia,

256

essencial: o tratado Sobre a verdadeira e a falsa penitência (De vera et

falsa poenitential'Ô, No século XII o seu sucesso é grande. É utilizado,

citado por Graciano no seu Decreto e por Pedro Lombardo. E certo

que a sua autoridade não advém apenas da novidade - e muitos pontos

do seu conteúdo: julgavam-no do próprio Santo Agostinho. Só reterei

dele três ideias que vão passar para a prática da Igreja e que marcarão o

sistema do Purgatório.

A primeira é que, em caso de perigo e na ausência de um padre, é

legítima e útil a confissão a um laico. O laico não absolve, mas o desejo

de confissão exercido através do laico e que prova a contrição pode conduzir

à absolvição da culpa (culpa). Este recurso extremo não é de recomendar

senão em casos de perigo de morte; e se se escapar a ela deve ir-se

repetir a confissão a um padre que poderá dar a absolvição: se se morrer

só se terá de executar a pena (poena); quer dizer, esta prática conduz

quase sempre ao Purgatório. E eis uma prova:

Mesmo no fim do século XII, o inglês Walter Map conta em De Nugis

curialium a história de um nobre guerreiro que depois se fez monge o

qual, em determinada circunstância, é obrigado a bater-se e põe os inimigos

em fuga; mas pouco depois, quando só está acompanhado por um

irmão converso (puer), é ferido de morte numa vinha por um inimigo

que estava emboscado: «Sentindo-se próximo da morte, confessa os seus

pecados ao servo que estava sozinho com ele, pedindo-lhe que lhe desse

uma penitência. Este, um laico incompetente, jura que não é capaz. O

monge, habituado a reagir prontamente em todas as situações, arrependendo-se

muito, diz-lhe: "Penitencia-me, pela misericórdia de Deus, meu

filho querido, para que a minha alma faça penitência no Inferno até ao

dia do Julgamento (final), a fim de que então o Senhor tenha piedade de

mim e eu não veja nunca, na companhia dos ímpios, o rosto do furor e da

cólera! O servo diz-lhe então em lágrimas: "Senhor, dou-te por penitência

aquilo que os teus lábios aqui pronunciaram diante de Deus." E o outro,

concordando por palavras e pela expressão do rosto, acolheu devotamente

esta penitência e morreu' .» O Inferno aqui referido, do qual se pode

sair no dia do Julgamento é, está claro, o inferno superior, que é como

quem diz o Purgatório que Walter Map, espírito hostil às novidades e

inimigo dos cistercienses, ignora.

A segunda ideia é que não se deve fazer penitência só uma vez na vida,

após um pecado muito grande ou em artigo de morte, mas sim muitas

vezes, se possível.

A terceira ideia é que «a pecados secretos, penitência secreta», «a pecados

públicos, penitência pública». Assim se acelera o desaparecimento,

o declínio da velha penitência pública. A sociedade já não é mais aquele

conjunto de pequenos grupos de fiéis onde a penitência pública tinha

naturalmente o seu lugar. Mesmo as grandes penitências «políticas» na

257



linha de Teodósio, ao submeter-se à penitência imposta por Santo Ambrósio,

solta o seu canto do cisne no cenário do teatro oficial da luta entre

o Papa e o imperador: Henrique IV em Canossa, Barba Ruiva em Veneza,

ou o aparato excepcional da Cruzada dos Albigenses: Raimundo VII

de Toulouse a Notre-Dame de Paris ...

O que resulta de tudo isto é a prática cada vez mais frequente, integrada

na vida espiritual normal se não quotidiana, da confissão auricular,

de boca a orelha, de pecador a padre, de pessoa a pessoa. O «segredo do

confessionário» só virá mais tarde, mas o caminho já está traçado. Em

1215 sucede um facto grandioso, um dos grandes acontecimentos da história

medieval. O quarto concílio de Latrão, no seu cânone 21, Omnis

utriusque sexus, torna obrigatória, pelo menos uma vez por ano, a confissão

auricular para todos os cristãos e cristãs adultos. Eis entronizado,

generalizado, aprofundado, o movimento que empurrava a cristandade

no sentido da confissão desde, pelo menos, um século antes. É o exame

de consciência imposto a todos, uma frente pioneira que se abre na consciência

individual dos cristãos, o alargamento aos laicos de práticas de

introspecção até aí apenas reservadas ao clero e, sobretudo, aos monges.

A decisão chega, pois, no fim de uma longa evolução; vem sancionar,

como é costume dizer, uma necessidade, mas nem por isso deixou de

surpreender muitos, na primeira metade do século XIII. Não é fácil adquirir

o hábito, nem para os laicos nem para os padres. Como confessar-

-se e como confessar, o que confessar e o que perguntar e, finalmente, para

o padre, que penitência infligir pelas coisas confessadas que não constituam

um pecado enorme e extraordinário mas sejam simplesmente faltas

quotidianas e modestas? Mas os especialistas vão acudir aos padres embaraçados,

por vezes mesmo assustados com as novas responsabilidades,

sobretudo aos menos instruídos. Vão escrever a diversos níveis - de forma

simplificada para os padres «simples» - manuais de confessores - como o

de Thomas de Chobham que foi pioneiro 17. Entre as questões postas e

encarados os horizontes penitenciais, um recém-chegado ocupa um lugar

importante: o Purgatório. Tanto mais que ele acolhe também pecadores

carregados de pecados que podem licitamente escapar ao crivo da confissão:

os pecados veniais.

Os pecados veniais têm uma longa história que já vimos em parte. A

sua base nas Escrituras é a primeira epístola de João, I, 8: «Se dissermos:

"não temos pecados" iludimo-nos, a verdade não está em nós»; e, sobretudo,

esta outra passagem da mesma epístola, V, 16-17:

Se alguém vir um seu irmào

cometer um pecado

que não leve à morte,

que reze

258

e Deus dará vida a esse irmão.

Não se trata daqueles que cometem pecados

que levam à morte;

pois há um pecado que leva à morte

por esse pecado não digo que se deve rezar.

Toda a iniquidade é pecado,

mas há pecados

que não levam à morte.

Esboçada por Tertuliano, esta noção foi fixada por Agostinho e por

Gregório, o Grande. Os termos usados são pecados insignificantes (minuta),

pequenos ou mais pequenos (parva, minora), leves ou mais leves

(levia, /eviora) e, sobretudo, segundo uma expressão feliz, quotidianos

(quotidiana). O termo venial (veniale, venialia ) só se tornou corrente

no século XII e, segundo A. M. Landgraf, o sistema de oposição pecados

mortais/pecados veniais foi instalado na segunda metade do século XII

pelos discípulos do teólogo Gilberto Porre ta (Gilbert de Ia Porrée), falecido

em 1154: grupo que incluiria autores anónimos de Questões, e Simon

de Tournai, Alain de Lille, etc.". A expressão pecado venial pertence em

todo o caso a esse conjunto de noções e de palavras que surgem no século

XII com o Purgatório, e que com ele formam um sistema. A palavra tem

ainda o interesse de significar - sentido este de que o clero do século XII

estava bem consciente - dignos de venia, de perdão. A ideia adquiriu um

sentido jurídico-espiritual.

No começo do século XII, um tratado teológico da Escola de Laon, as

Máximas de Arras (Sententiae Atrebatenses ) declara: «Tem de haver uma

penitência diferente para um pecado criminal e para um pecado venial.

Os criminais, quer dizer os passíveis de condenação, são os pecados que

se cometem consciente e deliberadamente. Os outros que provêm da invencível

fraqueza da carne ou da invencível ignorância são veniais, quer

dizer não passíveis de condenação'".» São perdoáveis sem grande custo

pela confissão, pela esmola ou por acções do mesmo género. Anselmo de

Laon, falecido em 1117, é da mesma opinião nas suas Sententiae. Abe1ardo

na Ética 20 opõe os pecados criminais (criminalia ) aos pecados veniais

ou leves (venialia aut levia), Com Hugo de Saint- Victor e seus discípulos

surge uma questão destinada a múltiplos desenvolvimentos: pode um

pecado venial tornar-se mortal? Os discípulos de Saint-Victor respondem

que sim, se é baseado no desprezo de Deus. Alain de Lille dá-se a uma

grande discussão sobre a diferença entre pecado mortal e pecado venial

na qual expõe diversas opiniões e de certo modo resume a doutrina desenvolvida

no decurso do século XII 21 .

Não irei entrar nas subtilezas teológicas a que o pecado venial começa

a dar lugar; é certo que essas discussões implicam por vezes o Purgatório.

259



Mas aqui, parece-me, atingimos aquele nível de elucubrações em que se

comprazem com excessiva frequência os teólogos do século XIII, para não

falar nos da escolástica da Baixa Idade Média e da época moderna. O

Purgatório vai assim ser arrastado no turbilhão pensante de uma escol ástica

em delírio, inventando as questões mais ociosas, esmerando-se nas

distinções mais sofisticadas, comprazendo-se nas soluções mais rebuscadas:

poderá um pecado venial tomar-se mortal, uma acumulação de pecados

veniais equivalerá a um pecado mortal (questão esta já posta por

Agostinho mas em termos simples), qual a sorte de um defunto que morre

com um pecado mortal e um pecado venial ou somente com o pecado

original e um pecado venial (partindo do princípio de que tal possa acontecer,

do que muitos duvidam), etc. O exame de documentos que falam do

pecado venial e. do Purgatório, tal como foram vividos e discutidos pela

cristandade do século XIII, convenceu-me de que estas discussões alambicadas

de intelectuais desenraizados não tiveram qualquer influência sobre

as concepções do Purgatório na massa dos fiéis. Quando muito talvez o

eco destas divagações tenha desviado do Purgatório um certo número de

espíritos simples e sãos que o recusaram, não por oposição doutrinária

mas por irritação provocada por UIp certo snobismo intelectual a que ele

dera lugar a partir do fim do século XII. OS teólogos deste século - muito

diversificados e entre os quais não devemos esquecer os teólogos monásticos

- eram espíritos abstractos porque a ciência é abstracta e a teologia

passara a ser uma ciência. Mas, mais abertos aos contactos e às trocas

com. a sociedade à sua volta a partir das suas catedrais, dos seus claustros

e das suas escolas urbanas invadidas pela maré crescente da nova sociedade,

eles sabiam que reflectir sobre o pecado venial ou sobre o Purgatório

era reflectir sobre a própria sociedade. Oriundos de um movimento

corporativo que fazia deles trabalhadores intelectuais no estaleiro urbano,

os teólogos e os canonistas do século XIII iam, pelo contrário, isolar-

-se cada vez mais nas suas cátedras universitárias e no seu orgulho de

especialistas do espírito.

Uma matéria para o Purgatório: os pecados veniais

No século XII ainda não se tinha chegado a isso. A propósito do pecado

venial surgem duas perguntas que têm a ver de perto com o nosso

estudo: como desembaraçarmo-nos dos pecados veniais e - pergunta estreitamente

ligada à precedente - que relação existe entre o pecado venial

e o Purgatório?

Quando o Purgatório não existia realmente e o pecado venial estava

mal definido, a tendência era, como já vimos, para considerar que esses

pecados podiam ser apagados pela oração, em especial pela missa domi-

260

nical, pela esmola, eventualmente pela confissão e talvez também, como o

próprio Agostinho dera a entender, futuramente no Purgatório. S. Bernardo,

que não usa a palavra veniais mas sim quotidianos, mais pequenos

(minora) ou que não têm a ver com a morte (quae non sunt ad mortem}, e

que acha que a oração é a melhor maneira de purgar esses pecados, considera

mesmo que a confissão é inútil para alguns deles. A evolução do

século XII vai reaproximar o pecado venial do Purgatório. Com feito, ao

pecado venial aplica-se mais particularmente o critério da ignorância que

os teólogos acham cada vez mais importante. Excluída pois a culpa

(culpa), resta a pena que se apaga no Purgatório. Por outro lado, a

exegese da primeira epístola de Paulo aos Coríntios, IH, 10-15 leva a

assimilar as construções de madeira, de feno e de palha aos pecados veniais

e, como estas construções são por tradição as que são destruídas

pelo fogo purgatório mas que permitem a quem as construiu salvar-se

através do fogo, os pecados veniais conduzem ao Purgatório. E o que

diz no fim do século XII João de Deus (Johannes de Deo), por exemplo,

na sua Súmu/a sobre as penitências: «O pecado venial tem três

graus, a saber: a madeira, o feno e a palha. Os pecados veniais são purgados

no fog0 22 .» Já Pedro Lombardo nas suas Máximas considera que

da epístola de Paulo «se conclui que certos pecados veniais são apagados

depois desta vida» e também que os pecados veniais «são dissolvidos no

fogO))23. O Purgatório toma-se pois o receptáculo normal dos pecados

veniais e esta opinião será largamente difundida no século XlII. No entanto

não se deverá supôr que o Purgatório é reservado aos pecados

veniais. No fim do século XII ele é o lugar de purgação de dois tipos de

situação pecaminosa: os pecados veniais, os pecados arrependidos, confessados,

mas cuja penitência não foi cumprida. Relembremos a questão

que, segundo A. M. Landgraf, saiu da esfera de Odon d'Ourscamp, e que

exprime bem, embora com um vocabulário um tanto arcaico, esse sistema:

«É verdade que certas almas, quando se separam dos corpos, entram

logo num fogo purgatório. Mas nem todas lá são purgadas, só algumas;

mas todas as que lá entram lá são punidas. Assim, melhor seria chamar a

esse fogo punitivo em vez de purgatório, mas recebeu o termo mais nobre.

De entre as almas que lá entram, umas são purgadas e punidas e outras

somente punidas. São purgadas e punidas as que trouxeram consigo madeira,

feno ou palha ... São somente punidas as que, tendo-se arrependido

e confessado de todos os seus pecados, morreram antes de cumprirem a

penitência que o padre lhe impusera/".»

A bem dizer, interrogarmo-nos sobre que género de pecados conduz

ao Purgatório não é a pergunta pertinente. Se é verdade que o pecado

venial e o Purgatório nasceram quase ao mesmo tempo e que entre eles

se estabeleceu uma relação estreita, o clero do fim do século XII e do

começo do século XIII não tem como principal objecto de reflexão coisas

261



abstractas como o crime, o pecado, a culpa, etc. Interessa-se sobretudo

pelos homens, a sua preocupação é a sociedade. De facto uma sociedade

decomposta e recomposta segundo critérios religiosos; mas o essencial da

acção ideológica e espiritual da Igreja lá está: da sociedade dos homens,

vivos e mortos, fazer uma sociedade de cristãos. Se ela se preocupa pois

com a classificação por categorias, são as categorias de cristãos que lhe

interessam.

Antes de as estudarmos, convém fazer uma observação. A justiça terrena,

o aparelho judiciário da sociedade feudal; serve muitas vezes, já o

disse, se não de modelo, pelo menos de referência aos teólogos do século

XII e do início do século XIII nas suas teorias sobre a justiça no além. À

luz do que se acaba de dizer sobre o pecado e a penitência, gostaria de dar

dois exemplos. Na sua busca de uma moral de intenção, Abelardo evoca,

na primeira metade do século XII, o caso de um criminoso julgado e

condenado da mesma maneira por dois juízes diferentes. Nos dois casos,

trata-se de uma decisão honesta e exigida pela justiça, mas um dos

juízes actuou por zelo e o outro por ódio e espírito de vingança. Cerca de

1200 esta concepção evoluiu em função da evolução das jurisdições terrenas.

Numa questão que será retomada por Guillaume d' Auxerre, falecido

cerca de 1237, e pelo dominicano Hugo de Saint-Cher, o chanceler parisiense

Prévostin de Cremona, que morreu cerca de 1210, faz uma destas

perguntas que parecem ociosas mas que encerram (é por vezes o

caso) um significado muito preciso. Pergunta-se ele se não haverá o

risco de um pecado venial ser punido no Inferno e não na terra em

penitência, ou no Purgatório. E responde que talvez não seja impossível,

pois o pecado não deve ser julgado em si mesmo mas em função das

diversas justiças - no sentido jurídico de jurisdição - de que pode depender.

Do ponto de vista do foro (jurisdicação) do Inferno ele pode merecer

uma pena eterna; do ponto de vista do foro da penitência presente ou

no Purgatório, apenas uma pena temporária. É assim, acrescenta, que

em Paris um pequeno roubo é castigado só com a mutilação de uma

orelha, mas em Chartres com o corte de um pé. Menos concreto, Hugo

de Saint-Cher limita-se a dizer que um mesmo pecado é duramente punido

em Paris, mais duramente em Orléans e muito duramente em

Tours'". Hipótese que faz a reflexão teológica mais abstracta desembocar

na realidade histórica mais concreta. E se o além não passasse de um

reino feudal - com as suas jurisdições divididas, com critérios e penas

desiguais? Um além da sociedade pré-revolucionária e pré-industrial? Se

este novo reino, o Purgatório, não fosse mais do que um mosaico de

senhorias com fronteiras indecisas, mal protegidas mesmo do lado do

reino infernal? ... Assim a história tira por vezes a máscara no folhear

de um documento ...

262

De duas (ou quatro) para três: três categorias de pecadores

Neste momento em que nasce o Purgatório, em que ele existe e se

expande, torna-se pois necessário examinar as categorias de homens, de

cristãos, para saber como povoá-Io. E aqui tocamos num dos mecanismos

essenciais da história, o da transformação dos quadros mentais, da ferramenta

lógica. Entre estas operações do pensamento - ao nível da sociedade

global e dos especialistas intelectuais - uma reveste-se de uma importância

toda especial: a classificação e o seu subgénero, a categorização.

Convém que nos cinjamos aqui ao esquema lógico, para lá das realidades

sociais concretas. No fim do século XII as coisas são simples mas

deparam com uma dificuldade. Por um lado, existem quatro categorias de

homens, as definidas por Agostinho no século IV, mas retomadas e como

que relançadas por Graciano cerca de 1140: os inteiramente bons, os

inteiramente maus, os não inteiramente bons e os não inteiramente

maus. Para onde vão eles depois da morte? Três lugares se lhas oferecem,

se deixarmos de parte o Paraíso terrestre em plena decadência, onde

já só estão Henoch e Elias, o seio de Abraão que vai, também ele, desaparecendo

e os dois limbos. Estes não têm o mesmo estatuto. Desde a

descida do Cristo aos Infernos, o limbo dos Patriarcas está vazio e assim

deverá continuar para todo o sempre. Já não é mais do que uma recordação

histórica. O limbo das crianças que ainda será objecto de discussões

durante séculos não está no mesmo plano dos outros três lugares do

além. Corresponde ao caso dos seres humanos não carregados com qualquer

pecado pessoal mas apenas com o pecado original; enquanto que o

Inferno, o Purgatório e o Paraíso dizem respeito a três categorias de pecadores

pessoais entre os quais há uma hierarquia de responsabilidade e

de destino: os maus que irão para o Inferno, os bons prometidos ao Paraíso,

os não inteiramente maus e os não inteiramente bons que terão de

passar pelo Purgatório antes de irem para o Paraíso. Se bem que encontremos

no século XIII e até Dante um sistema das «cinco regiões» do além

nos escritos teóricos de certos escolásticos, o que se instala no fim do

século XII é um sistema de três lugares.

O problema parece, pois, simples: torna-se necessário fazer corresponder

um esquema quaternário a uma espacialização ternária. Continuemos

a raciocinar fora de todo o contexto histórico concreto. Existem duas

soluções, parece, que não transtornam os dois sistemas ao mesmo tempo.

Ou o grupo de três se alarga para quatro, ou o grupo de quatro se

reduz para três. Aqui intervêm dois elementos. O primeiro é o facto de

Agostinho, criador do grupo de quatro espécies de cristãos, não ter realmente

sabido definir senão a sorte de três deles, deixando o grupo dos não

inteiramente maus entregue a uma muito hipotética «condenação mais

tolerável».

263



Penso que Agostinho estava dividido entre duas tendências. Por um

lado, era levado a alinhar, apesar da sua subtileza, com os esquemas

binários, cuja influência era cada vez maior na sua época, nessa Antiguidade

tardia forçada a submeter-se, para subsistir, a quadros mentais simplificados.

Sendo um pouco menos vago a respeito dos não inteiramente

bons e do fogo purgatório que podia fazer deles eleitos, não conseguiu

formular com nitidez o caso desse outro grupo intermédio - os não inteiramente

maus. No fundo, porém, ele inclinava-se para um além triplo: o

Céu, o fogo (purgatório), o Inferno; e foi porque se mantiveram fiéis ao

seu espírito mais do que aos seus escritos tomados à letra que os pensadores

do século XIII, fortemente impregnados da influência de Agostinho,

conseguiram enunciar um esquema temário.

O segundo elemento a favorecer esta evolução para uma tríade de

categorias de pecadores, de acordo com a tríade dos lugares do além,

foi a transformação de conjunto dos registos lógicos dos homens do século

XIII - e em primeiro lugar o clero - dentro da grande mutação que

então sofreu a cristandade. Passar de dois para quatro (ou o inverso)

nada tinha de revolucionário. A verdadeira mudança, conforme com a

transformação geral das estruturas no século XII, foi a redução para três

categorias das quatro categorias agostinianas de homens em relação à

salvação.

Agora peço ao leitor que reflicta. Vejo-o divertido ou irritado. Das

duas uma, pensa ele sem dúvida. Ou se trata de um jogo abstracto que

nada tem a ver com a realidade histórica ou se trata de operações que

falam por si: a humanidade sempre e por toda a parte dividiu e reagrupou

- em dois, três ou quatro. Que haverá de mais «natural»? Mas engano-me.

O leitor leu Georges Dumézil, Claude Lévi-Strauss, Georges

Duby, os lógicos como Theodor Caplow/" e também reflectiu por si próprio.

Sabe portanto que a realidade é diferente destas duas hipóteses simplistas

que devemos afastar. Por entre os códigos simples de que dispõe, a

humanidade opta, segundo tempos e os lugares, em função da cultura e

da história. Formar um grupo, um conjunto, um sistema, não é tão simples

como parece. Três pessoas ou três coisas juntas raramente formam

uma tríade. Passar de dois para três para exprimir uma totalidade, quando

o sistema binário foi um hábito secular, não é fácil. Creio que o que se

passou de essencial para o sistema do além na cristandade do século XII

foi o facto de o sistema binário Céu-Inferno (ou Paraíso-Inferno) ter sido

substituído por um sistema ternário Céu-Purgatório-Inferno. É verdade

que esta substituição não vale para a eternidade. A sociedade em que vive

o cristianismo não está ainda suficientemente madura para alterar a concepção

cristã da eternidade. Vale para o período intermédio, o que também

é fundamental e a que voltarei. Mas esta mudança e a maneira como

se fez parecem-me relacionadas em profundidade com a mutação da so-

264

ciedade feudal entre os séculos XI e XIV. Vejamos primeiro a passagem

formal de quatro para três categorias de pecadores.

Esta mudança fez-se em duas fases, cronologicamente muito próximas.

A primeira fase, cujo começo já vimos, consistiu em substituir um

advérbio na categorização agostiniana. Onde Agostinho falava de inteiramente

(valde) bons ou maus, passou a falar-se de medianamente (mediocriter

) bons ou maus, e as duas categorias intermédias aproximaram-

-se.O momento decisivo foi o da fusão das duas categorias numa só, a dos

medianamente bons e maus. Esta deslocação suscitou a indignação de

alguns e com razão. O atrevimento, gramatical e ideológico, era considerável.

Era nada menos do que reunir dois contrários - e que contrários!

(os bons e os maus, o bem e o mal!) - numa só categoria. Vibrado este

golpe de força, reduzir (eventualmente) a nova categoria à dos medianos

(mediocres) era apenas uma operação de rotina.

Os teólogos dão o impulso inicial. Pedro Lombardo declara entre

1150 e 1160: «Eis por quem e em quê são benéficas as funções que a

Igreja celebra pelos mortos: para os medianamente maus os sufrágios

servem para mitiga~ão da pena; para os medianamente bons servem para

11 absolvição plena 7.» Como já vimos, os canonistas estão atrasados.

Mas, salvo algumas excepções, recuperam e, sendo ainda a categorização

tarefa mais de juristas do que de teólogos, recuperam depressa.

Graciano reproduzira o texto de Agostinho com as quatro categorias.

Uma das primeiras súmulas que o comentam, a Súmu/a de Leipzig

( Summa Lipsiensis) de cerca de 1186, dá bem a conhecer a dificil evolução

dos espíritos: «Segundo outros, "condenação" emprega-se para a pena

que sofrem os medianamente bons ou os medianamente maus no

Purgatório, se bem que não haja o hábito de falar de condenação senão

para os condenados eternamente. Os medianamente bons são os que morrem

depois de terem recebido uma penitência pelos pecados veniais, mas

que ainda não foi cumprida. Os medianamente maus são os que morrem

com pecados veniais, ainda que pudéssemos chamar-lhes bons, pois que o

pecado venial, segundo parece, não causa mal algum. Há quem entenda

que isto de que aqui falamos só se aplica aos medianamente bons, alguns

dos quais recebem uma remissão plena; só recebem uma condenação,

quer dizer uma pena, mais toleráver".» Cerca de 1188 o célebre Huguccio

de Pisa protesta vivamente contra a evolução em curso, na sua Súmu-

Ia: «Certos teólogos, por iniciativa própria, distinguem somente três

géneros de homens (em vez dos quatro de Agostinho e Graciano). Alguns

são inteiramente bons, outros inteiramente maus e ainda outros

medianamente bons e medianamente maus. Dizem eles, com efeito, que

os medianamente bons e os medianamente maus são os mesmos, quer

dizer os que estão no fogo purgatório, e que só eles podem aproveitar

os sufrágios para serem libertados mais cedo. A "condenação" significa

265



a pena (é mais tolerável) porque lá eles são menos castigados. Mas esta

opinião parece-me quase herética porque acaba por identificar o bem com

o mal, pois na realidade alguém medianamente bom é bom e alguém

medianamente mau é mau. Do mesmo modo, no fogo purgatório só há

bons, pois ninguém pode estar lá com um pecado mortal. Mas com um

pecado venial ninguém é mau. Portanto, no fogo purgatório não está

nenhum mau 29 .»

A Súmula de Colônia (Summa Coloniensis, 1169) não abordava, como

já se viu, este assunto que declarava deixar aos teólogos; mas ao manuscrito

de Bamberg consultado por Landgraf uma mão acrescentou o esquema

elaborado por Sicard de Cremona, falecido em 1215 e que, ele sim.

é muito claro, muito definitivo:

{

inteiramente

bons

Defuntos inteiramente maus

medianos

- Por eles fazem-se acções de graças.

- Por eles, consolações para os vivos.

- Para eles, remissão plena ou

condenação mais tolerável.

E Sicard precisava: «Para que a sua condenação se tome mais tolerável,

devemos entender isto dos que estão no Purgatório".» Enfim, uma glosa

das Máximas do século XIII esforça-se por exprimir o pensamento de

Santo Agostinho e de Pedro Lombardo à luz da evolução recente.

«Eis o que o Mestre compreendeu com Agostinho:

«Certos mortos são inteiramente bons e a Igreja não celebra sufrágios

por eles porque eles não precisam ... São sem dúvida alguma glorificados.

«Alguns são inteiramente maus e a Igreja também não celebra sufrágios

por eles porque mereceram o seu destino. São sem dúvida alguma

condenados. Outros são medianos e por eles a Igreja celebra sufrágios

porque eles o mereceram. Sobre o seu destino ver ...» (e remete para outro

capítulo).

A Glosa retoma ainda a explicação separando a categoria intermédia

nas suas duas componentes e expressando como que um lamento agostiniano:

'«Alguns são medianamente bons e os sufrágios valem-lhes a absolvição

plena, e esses estão sem dúvida alguma no Purgatório.»

«Alguns são medianamente maus e os sufrágios valem-lhes a mitigação

da pena. E destes podemos hesitar em dizer que estão no Purgatório

ou que estão no Inferno (condenados) ou em ambos ".»

Raoul Ardent, no fim do século XII, distingue também ele três espécies

de defuntos: os inteiramente bons, os medianamente bons e os inteiramente

condenados (vai de boni, mediocriter boni, omnino damnati).

Diz ele «que aqueles que são inteiramente bons passam logo depois da

morte para o repouso e não têm necessidade das nossas preces e das

266

nossas oferendas, somos antes nós que beneficiamos da~ suas. Os _que

são mediana mente bons e se empenham numa verdadeira confissao e

~enitência, como ainda não estão perfeitamente purgados, são purgados

nos lugares purgatórios (in pu~g~toriis locis) ,e, .para _ess,es, as preces, ~s

esmolas e as missas são sem dúvida alguma úteis. Nao e por novos meritos

depois da morte que eles delas retiram beneficios mas como cons_equência

dos seus méritos precedentes (antes da ~orte). Aqueles que sao

inteiramente condenados não mereceram aproveitar de tais benesses. Mas

nós, irmãos, que ignoramos quem tem necessidade e quem não tem, a

quem pode aproveitar e a quem não pode, devemos ~ferecer preces, esmolas

e missas por todos, incluindo aqueles de quem nao ~emos a certeza.

Pelos inteiramente bons, são acções de graças, pelos medianament.e bons

expiações, pelos réprobos são consolações para osviv,?s. E:nfim, sejam ou

não proveitosas estas oferendas àqueles para quem sao felta~ em tod? o

caso podem ser proveitosas aos que as fazem com devoçao ... ASSim,

aquele que reza por outrem trabalha para si próp~o (~L, 155, 14~5).)}.

Se bem que a localização da purgação não esteja umficada, a trípartição

dos defntos

é já um facto.

Esquema lógico e realidades sociais: um intermédio descentrado

Na notável construção deste sistema ternário há ainda que notar dois

aspectos muito importantes. . ' .

O primeiro, insisto, é a substituição de um slst~~a 9uaternan.o, na

realidade binário (dois x dois) por um esquema terna~o. E u~ ~oVlIDento

muito difundido nos quadros mentais da íntelectualidade cnsta desde o

século XI. No geral, substitui o~~sições do tipo ínferior/superior ,co.mo

poderoso/pobre (potenslpauper] , eclesiástico/laico, monge/ecleslastlco,

por triades mais complexas. ,

Na Alta Idade Média o pensamento ordenava-se espontaneamente a

volta de esquemas binários. Pense-se nas forças do Universo: Deus .e ~atanás,

ainda que - correcção muito important~ - ~ pensamento. cnstao,

negando do ponto de vista do dogma o mamquelsmo, s~bordmasse o

Diabo ao bom Deus. Pense-se na sociedade: o clero e os laicos, os poderosos

e os pobres. Pense-se na vida moral e espiritual: as ,virtude~ e os

vícios. Perfis antagónicos que se combatiam com ardor, a ma~elra da

Psychomachie que opunha, segundo o poema de Pruden~, as VIrtudes e

os vícios. A fronteira passava por dentro do homem, dilacerado entre

Deus e Satanás, o orgulho do poderoso e a inveja do pobre, o ape~o da

virtude e a sedução do vício. Desde o ano mil, os esquemas .plu~ahstas,

muitas vezes herdados da Antiguidade greco-romana e mais ~mda da

Antiguidade cristã, pareciam ir ultrapassar os esquemas duahstas. No

267



século XII: os modelos ,construidos sobre o número sete conhecem grande

su~esso: sao os septenanos dos sete sacramentos, dos sete pecados capitais

e dos sete dons do Espírito Santo.

Mas ~ principal tendência era substituir esquemas binários pot esquemas

terna nos que, por sua vez, substituíam as oposições brutais, os confrontos

de duas categorias, pelo jogo mais complexo de três elementos.

Um destes esquemas é o das três ordens: os que rezam, os que se

batem e os que trabalham (clero, nobres, massa camponesa). Este sistema

t~rnário é de tiJ?o especial: opõe dois dos elementos do grupo ao

~erceI;o: ~~ss,a dominada ,m~s que soube abrir caminho à representação

ideológica . E o modelo lógico estudado por Theodor Caplow: dois contra

um.

a esquema ternário sobre cujo modelo foi construido o Purgatório

não conhece êxito menor a partir da segunda metade do século XII e

nãc está menos ligado às estruturas em evolução da sociedade feudal.

Consiste el!l introduzir uma categoria intermédia entre as duas categorias

extremas. E a promoção do meio não pelo aparecimento de uma terceira

categoria depois e abaixo das duas primeiras, mas entre as outras duas ...

O Purgatório é um lugar duplamente intermédio: nele não se é nem tão

feliz como no Paraíso nem tão infeliz como no Inferno, e só durará até ao

Julgamento Final. Para que seja verdadeiramente intermédio, basta situá-

-10 entre o Paraíso e o Inferno.

Também aqui a aplicação essencial do esquema é de ordem sociológica.

Trata-se de representar - não de descrever - a sociedade saída da

segunda f~se da revolução feudal, a da explosão urbana, como o esquema

das tres ordens fizera em relação à primeira fase, a do progresso agrícola.

Na s~a .forma mais genérica e mais corrente, o esauema distingue

grandes, me~los e pequenos: maiores, '}"ediocres, minores' . Esquema cuja

expressao latI~a mostra melhor o.sentido e o funcionamento: designa por

um comparativo grupos nos dOISextremos dos grupos: maiores (mais

gra~des), mais pequenos; exprime uma relação, uma proporção, um jogo

SOCIal.Neste mecanismo, o que pode fazer o grupo intermédio? Crescer à

custa dos vizinhos ou de um só, o ligar-se a um e a outro, alternadamente

a um e depois ao outro dos dois grupos extremos. No começo do século

XIII, Francisco de Assis retirou deste esquema um nome para os irmãos

da ordem que criara: os Menores.". Foi à sociedade feudal modificada

pelo desenvolvimento urbano que mais habitualmente se aplicou o esquema:

~ntre os grandes (laicos e eclesiásticos) e os pequenos (trabalhadores

rurais e urbanos) uma categoria nasceu: os burgueses - muito diversos a

ponro de eu preferir não falar de burguesia.

'

E aqui que aparece a segunda característica do esquema: o seu elemento

intermédio não está a igual distância dos dois pólos. Teoricamente a

sua situação permite à categoria intennédia da tríade fingir alianças ou

268

inclinações para um outro pólo. Os burgueses usá-las-ão em relação aos

pequenos ou aos grandes. Mas, no caso do Purgatório, o seu jogo estará

bloqueado por um lado, o do Paraíso, onde se continua a entrar muito

pouco. A fronteira móvel será entre o Purgatório e o Inferno. Meio descentrado,

repito, relegado para a fronteira sombria, vê-los-emos na leitura

das descrições do além que não serão mais claras do que as visões

negras da Alta Idade Média ". Compreende-se que este modelo - na

sua utilização sociológica - não é menos importante do que o das três

ordens. Este criou o Terceiro Estado, aquele as classes médias.

Compreendam-me. Seria absurdo dizer que a burguesia criou o Purgatório

ou que o Purgatório provém de um modo ou de outro da burguesia,

supondo-se que existia então uma burguesia. O que proponho como

hipótese, como interpretação do nascimento do Purgatório, é que ele faz

parte de um conjunto ligado à transformação da Cristandade feudal, da

qual a criação de es~uemas lógicos ternários com introdução de uma

categoria intermêdia ' foi uma expressão essencial. O modelo lança raizes

sólidas nas estruturas socioeconómicas, disso tenho a certeza. Mas

não me parece menos certo que a mediação das estruturas mentais, ideológicas

e religiosas é essencial para o funcionamento do sistema. Deste

sistema, o Purgatório não é um produto mas um elemento.

O leitor estará um pouco céptico em relação à importância que dou

nesta história a algumas ligeiras alterações de vocabulário. Purgatório

passa de adjectivo para substantivo, uma locução adverbial (non va/de)

é substituída por outra (mediocriter) e nos dois casos eu vejo sinais de

profunda mudança. Creio, com efeito, que as alterações linguísticas ligeiras,

se se situam em locais estratégicos do discurso, são sinal de fenómenos

importantes. E penso que estes desvios de palavras ou de sentidos são

tanto mais significativos quanto se produzem no seio de sistemas ideológicos

rígidos. É verdade que a Cristandade medieval não foi nem imóvel

nem estéril. Pelo contrário, que criatividade! Mas inova ao nível ideológico

por pequenos passos, por pequenas palavras.

Mutações nos quadros mentais: o número

a que também muda com o Purgatório, tornando-o possível e acolhendo-o,

são os hábitos de pensamento, uma ferramenta intelectual

que faz parte da nova paisagem mental. Com o Purgatório aparecem

novas atitudes em relação ao número, ao tempo e ao espaço.

Em relação ao número, porque o Purgatório vai introduzir na escatologia

um cálculo que não é o dos números simbólicos ou o da abolição da

medida na eternidade mas, pelo contrário, um cômputo realista. Esta

contagem é a da prática jurídica. O Purgatório é um inferno não eterno

269



mas temporário. Já no meio do século Xl, na descrição dos gemidos que

saem da cratera do Stromboli, Jotsuald explicara que as almas dos pecadores

sofrem ali suplícios diversos ad tempus statutum, pelo tempo que

lhes fora fixado. No fim do século XII, numa questão relatada numa

recolha da esfera de Odon d'Ourscamp, fala-se daqueles que pensam

que o pecado venial não é punido eternamente «mas no inferno temporário».

A criação do Purgatório reune um processo de espacialização do universo

e de lógica aritmética que, para além do triplo reino do outro mundo,

vai reger as relações entre os comportamentos humanos e as situações

no Purgatório. Medir-se-á proporcionalmente o tempo passado na terra

em pecado e o passado nos tormentos do Purgatório, o tempo dos sufrágios

oferecidos em intenção dos mortos do Purgatório e o tempo da aceleração

da libertação do Purgatório. Esta contabilidade desenvolver-se-á

no século XIII, século da explosão da cartografia e do desencadear do

cálculo. E, finalmente, o tempo do Purgatório será arrastado no tempo

vertiginoso das indulgências.

A noção de uma condenação «temporária» inscreve-se numa atitude

mental mais ampla que, saída da preocupação de justiça, resulta numa

autêntica contabilidade do além. A ideia fundamental, vinda dos primeiros

Pais, vinda de Agostinho, constantemente substituída no decurso dos

séculos, é a de uma proporcionalidade das penas, na ocorrência do tempo

passado no Purgatório, em função da gravidade dos pecados. Mas só no

século XIII a ideia de proporcionalidade passa de qualitativa a quantitativa.

Está ligada aos progressos da aritmética e das matemáticas. Alexandre

de Hales, o mestre universitário parisiense que se fez franciscano na

primeira metade do século XIII interroga-se na sua Glosa sobre as Máximas

de Pedro Lombardo se a pena do Purgatório não poderá ser injusta e

não proporcional (injuste et improportionalis). E responde: «Se bem que a

pena do Purgatório (poena purgatorii) não seja proporcional ao prazer

que se teve ao pecar, é-lhe'no entanto comparável; e, se bem que não seja

proporcional segundo a proporção à pena temporária quanto à dureza, é-

-lhe no entanto proporcional segundo a proporcionalidade: "A proporcionalidade

é com efeito a conformidade das proporções." A proporção

entre a pena temporária devida no mundo por um pecado e a pena temporária

devida também no mundo por um pecado maior é equivalente à

proporção da pena do Purgatório devida por um pecado mais pequeno

em relação à pena do Purgatório devida por um pecado maior, mas a

pena do Purgatório não é proporcional à pena temporária no mundo.

A razão pela qual convém que a pena do Purgatório seja mais dura de

maneira não proporcional à pena que purga no mundo, ainda que ambas

sejam voluntárias, é que a pena que purga no mundo é a pena da alma

que sofre com o corpo, enquanto a pena do Purgatório é a pena directa

270

da própria alma. Com efeito, assim como o que se sofre (por um lado)

não é proporcional ao que se sofre (pelo outro), assim estão em relação

"OS dois sofrimentos. Além de que a pena temporária no mundo é voluntária

no sentido próprio e a pena do Purgatório é voluntária em sentido

ligurado.»

Texto espantoso que não se contenta com explicar a maior intensidade

das penas do Purgatório em relação às penas terrenas pela maior vulnerabilidade

da alma directamente torturada sem a protecção do corpo, e

introduz também na consideração das penas no além um ponto de vista

matemático, topológico. Existe neste texto uma única citação, uma única

autoridade: «A proporcionalidade é, com efeito, a conformidade das proporções.»

Esta autoridade não é das Escrituras, nem da patrística nem

dos eclesiásticos: é uma citação de Euclides, Elementos, V, definição 4 38 •

Um comentário às Máximas do princípio do século XIII em que se põe

u questão da eficácia quantitativa dos sufrágios é provavelmente, de acordo

com Landgraf, o primeiro texto em que foram usadas as expressões

proporção aritmética, proporção geométrica'". O que se abre com o Purgatório,

bem se vê, é a contabilidade do alêm'". Antes não havia senão a

eternidade ou a espera indeterminada. Agora conta-se o tempo do Purgatório

segundo a importância dos sufrágios, calcula-se a relação entre o

tempo vivido cá em baixo no mundo e o tempo sentido lá em baixo no

Purgatório, porque a impressão psicológica da duração (o tempo parece

passar muito lentamente no Purgatório) é também levada em conta. Os

textos do século XIII irão familiarizar-nos com estes cálculos. Recordar-

-nos-ão que o século XIII é o século do cálculo, como demonstrou Alexandre

Murray"' num livro sugestivo, o tempo da contabilidade, o dos

comerciantes e dos funcionários que elaboram os primeiros orçamentos.

Aquele a que pudémos chamar (não sem exagero, é verdade) «o primeiro

orçamento da monarquia francesa» data do reinado de Filipe

Augusto, o rei durante cujo reinado nasceu ou cresceu o Purgatório. Entre

o tempo na terra e o tempo do Purgatório, a Igreja e os pecadores vão

de agora em diante manter uma contabilidade por partidas dobradas.

Segundo o Apocalipse, no dia do Julgamento Final abrir-se-ão os livros

e os mortos serão julgados de acordo com o conteúdo dos livros, mas de

agora em diante outros livros de contas são abertos entretanto, os do

Purgatório.

o espaço e o tempo

o Purgatório está também ligado a novas concepções do espaço e do

tempo. Está associado a uma nova geografia do além que já não é a dos

pequenos receptáculos justapostos como as mónadas senhoriais, mas

271



----- _---_ .. - -_ ..._._----_._----------._-~

grandes territórios, reinos, como Ihes chamará Dante. Chegou o tempo

em que a Cristandade, ao longo das estradas das cruzadas, das estradas

missionárias e comerciais, explora o mundo. «No fim do século XII, escreve

o grande especialista de história de O Mapa das Civilizacões, George

Kish, sobreveio uma mudança: o mundo medieval começou a

movimentar-se; de repente, os viajantes trouxeram uma informação que

no século XIV transformou os mapas medievais ...» A transformação da

cartografia imaginária do além operou-se ao mesmo tempo, e talvez ainda

mais depressa. A cartografia terrestre, reduzida até então a uma espécie

de ideogramas topográficos, ensaia o realismo da representação

topográfica. A cartografia do além completa esse esforço de exploração

do espaço, por muito carregado de simbolismo que ele estivesse entã0 42 •

Também o tempo, o próprio tempo é, na crença no Purgatório, o elemento

mais explicitamente susceptível de ser medido. Grande novidade, um

tempo mensurável abre-se no além e pode assim ser objecto de cômputos,

de avaliações, de comparações. Encontramo-lo nos novos usos da prêdica.

O sermão é feito para ensinar e para salvar. A partir do fim do século

XII, o pregador insere na sua prédica historietas para melhor persuadir,

os exempla. Estas histórias são tomadas como históricas, «verdadeiras».

No tempo escatológico do sermão, tempo da conversão e da salvação

elas introduzem segmentos de tempo histórico, datável, mensurável. ~

o que faz o Purgatório no tempo do além. O Purgatório será um dos

temas favoritos dos exempla.

A rendição ao mundo e ao momento da morte individual

Em todas estas transformações, em toda esta agitação, pressentem-se

dois grandes movimentos de fundo que explicam em profundidade o nascimento

do Purgatório.

O primeiro é o enfraquecimento de um importante lugar-comum da

Alta Idade Média, o contemptus mundi, o desprezo pelo mundo 43.

Alimentado sobretudo pela espiritualidade monástica (que o cultivará,

como demonstrou Jean Delumeau, ainda em pleno Renascimento), ele

recua perante o crescente apego aos valores terrenos ligados ao ímpeto

criador da época.

Gustavo Vinay escreveu algumas linhas inflamadas sobre o optimismo

do século XII: «Se há um século alegre na Idade Média, é mesmo esse: é o

século em que a civilização ocidental explode com uma vitalidade, uma

energia, uma vontade de renovação espantosas. O seu clima é o do "optimum"

medieval... O século XII é tipicamente o século da libertação pela

qual os homens rejeitam tudo aquilo que durante mais de um milénio

estivera incubado e apodrecendo no seu interior.» E é no entanto, acres-

272

centa ele, o momento em que, paradoxalmente, no âmago dessa «explosão

de vitalidade», nasce o medo da morte e do sofrimento: «A Idade

Média começa verdadeiramente a sofrer na altura em que é mais feliz,

em que respira a plenos pulmões, em que parece tomar consciência de

que tem diante de si todo o futuro, em que a história adquire dimensões

que nunca tivera?".»

Ponhamos de parte o exagero deste texto apaixonado e sensível. O que

ainda resta é que Gustavo Vinay compreendeu bem esta rendição ao

mundo cá de baixo, nascida no século XII e que vai prolongar-se - e na

realidade nunca mais desaparecerá apesar dos tormentos, das dúvidas,

das regressões - pelo século seguinte. Também o paradoxo do desenvolvimento

simultâneo do medo da morte é apenas aparente. O preço atribuído

daí em diante à vida terrena torna mais temível o momento de a

deixar. E, ao medo do Inferno, vem acrescentar-se - tende mesmo a substituí-lo

- o temor desse momento doloroso: a hora da morte. O Purgatório,

nova esperança para o além e sensibilização para o instante do

trespasse, tem o seu papel nesta oscilação dos valores.

A humanidade cristã no seu conjunto já não acredita que o Julgamento

Final está para amanhã. Sem se ter tornado feliz, fez a experiência do

desenvolvimento, após séculos de simples reprodução, quando não de

recessão. Produz mais «bens», valores até então unicamente situados na

vida futura tomam forma, mais ou menos bem, cá em baixo neste mundo:

a justiça, a paz, a riqueza, a beleza. A Igreja gótica parece ter feito o

paraíso descer à terra, parece um lugar «de refrigério, de luz e de paz».

Não é por mero gosto pela metáfora que reencontro a evocação do

refrigerium e da liturgia primitiva a propósito da igreja gótica. Meyer

Shapiro e Erwin Panofsky, ao comentarem os escritos de Suger sobre a

nova arquitectura de Saint-Denis, sublinharam «que a fraseologia de Suger

lembra os tituli do cristianismo primitivo onde as doutrinas neoplatónicas

... se exprimiam de maneira semelhantes'". A humanidade

instalou-se na terra. Até aí não valia a pena reflectir demasiado sobre

esse curto momento que devia separar a morte da ressurreição. O par

Inferno-Paraíso já não é suficiente para responder às interrogações da

sociedade. O periodo intermédio entre a morte individual e o julgamento

colectivo torna-se objecto de importantes reflexões. Entre os fanáticos da

escatologia que recusam esta reflexão e concentram todas as suas aspirações

no advento do Millenium ou do Último Dia e aqueles que, pelo

contrário, se instalam nesta terra e se interessam portanto por esse seu

suplemento, o intervalo entre a morte e a ressurreição, a Igreja arbitra

a favor destes últimos. Se a espera tem de ser longa, devemos interrogar-nos

sobre o que acontece aos mortos no intervalo, sobre o que nos

acontecerá a nós amanhã. É verdade que, perante a adesão da maioria

dos cristãos à terra, uma minoria se insurge, reclama mais alto a Pan.sia

273



e, enquanto espera, o reino dos justos cá em baixo neste mundo, o Millenium.

De Joachim de Flore a Celestino V, da cruzada das crianças aos

Flagelantes e aos Espirituais, os «fanáticos do Apocalipse» agitam-se

mais do que nunca. Desconfio mesmo que S. Luís, rei da cruzada penitencial,

enquanto os seus oficiais se afadigam a calcular e a medir, a firmar

bem o seu reino, sonhava arrastá-l o para a aventura escatológica,

sonhava ser, como acreditaram certos imperadores alemães, um rei dos

tempos derradeiros. E, todavia, S. Luís dirá: «Ninguém ama tanto a sua

vida como eu amo a minha'".»

Com excepção de alguns «loucos», o Apocalipse, a bem dizer, já não

convence. No século XI e no começo do século XII foi o livro da Bíblia

mais comentado'". Passou depois para segundo plano, atrás do Cântico

dos Cânticos incendiado de um ardor tão terreno quanto celestial. Os

Apocalipses retiram-se das esculturas góticas e cedem o seu lugar a julgamentos

finais onde o Purgatório não consegue ainda inserir-se mas que

apresentam uma história longínqua, pretexto para representar a sociedade

terrena e a morigerar, a fim de que se comporte melhor cá em baixo no

mundo.

Este progressivo - e relativo - desaparecimento do Apocalipse perante

o Julgamento Final foi realçado por grandes nomes da iconografia medieval.

Assim, Émile Mâle: «A partir do século XII uma nova maneira de

entender a cena do Julgamento substituiu ... a antiga. Surgem composições

magníficas que não devem quase nada ao Apocalipse e antes se inspiram

no Evangelho de S. Mateus ... Não se pode dizer que o Apocalipse

seja um livro muito fecundo, no século XII ... OS artistas preferem adoptar

o quadro do fim do mundo de S. Mateus. O texto do evangelista'f é sem

dúvida menos fulgurante mas é mais acessível à arte. Em S. Mateus, Deus

já não é a enorme pedra preciosa cujo brilho não se pode suportar: é o

Filho do Homem; aparece no seu trono tal como foi na terra; os povos

reconhecem o seu rosto. Um capítulo de S. Paulo da primeira epístola aos

Coríntios sobre a ressurreição dos mortos acrescentou alguns traços ao

conjunto.» E Emile Mâle indica como principal inovação do tema inspirado

pelo Evangelho de Mateus «a separação dos bons e dos maus». Nas

representações do Apocalipse, Deus era «simultaneamente glorioso como

um soberano e ameaçador como um juiz». Nos julgamentos do século

XIII, Deus é «o Filho do Homem» definido «como o redentor, como o

juiz, como o Deus vivo'?».

Henri Focillon retomou esta análise: «A iconografia do século XII ... é

dominada pelo Apocalipse, do qual retira as suas visões terríveis e a própría

imagem do Cristo juiz, instalado na sua glória, cercado de figuras

não humanas ... A iconografia do século XIII renuncia ao mesmo tempo

às visões, à epopeia, ao Oriente, aos monstros. É evangélica, humana,

274

ocidental e natural. Faz o Cristo descer quase ao nível dos fiéis... Sem

dúvida, ele continua instalado nas alturas, presidindo ao despertar dos

mortos e às sanções eternas: mesmo assim, continua a ser o Cristo dos

Evangelhos e conserva a sua doçura humana".»

Se o Cristo das esculturas góticas é um juiz para a eternidade, a substituição

dos relâmpagos apocalípticos pela representação realista do Julgamento

e dos grupos humanos ressuscitados permite que surja em primeiro

plano a justiça a que o nascimento do Purgatório está tão ligado.

Estes eleitos que o Cristo confia aos anjos que os levam ao Paraíso serão

cada vez mais «santos» que passaram pelo Purgatório e estão purgados,

purificados.

Nesta adesão à terra e neste novo poder sobre o tempo, neste prolongamento

da vida no além do Purgatório, existe sobretudo uma preocupação,

a preocupação com os mortos. Não que eu creia - nisto concordo

com Paul Veyne - que a morte em si mesma seja objecto de interesse, mas

porque através dela e através dos seus mortos os vivos aumentam o seu

poder neste mundo " . O século XII assiste ao enriquecimento da memória.

Os seus grandes beneficiários são, está claro, as famílias aristocratas que

traçam e prolongam as suas genealogias=. A morte é cada vez menos

uma fronteira. O Purgatório torna-se um anexo da terra e prolonga o

tempo da vida e da memória. Os sufrágios passam a ser um empreendimento

cada vez mais activo. O reaparecimento dos testamentos - ainda

que só tardiamente se mencione o Purgatório - ajuda também a fazer

recuar essa fronteira da morte.

Embora estas novas solidariedades entre vivos e mortos - em embrião

na obra de Cluny - reforcem os laços familiares, corporativos e confraternais,

o Purgatório - encarado como uma personalização da vida espiritual

- favorece na realidade o individualismo. Concentra o interesse na

morte individual e no julgamento que se lhe segue.

Colocando-se no ponto de vista das instituições e do direito, Walter

Ullmann afirmou «que a passagem do século XII para o século XIII foi o

período em que foram semeados os germes do desenvolvimento institucional

futuro e da emergência do indivíduo na sociedadew". E demonstra

que foi a época da «emergência do cidadão». Este aparecimento do indivíduo

manifesta-se também no rosto da morte e do destino no além. Com

o Purgatório nasce o cidadão do além, entre a morte individual e o Julgamento

Final.

Até a Iiturgia testemunha esta evolução. Sempre muda em relação ao

Purgatório, ela começa a abrir-se à nova classificação dos defuntos e daí

tira consequências sobre o cerimonial em que cada vez mais se afirma a

preocupação com a sorte individual. É o que se vê na Súmula sobre os

Ofícios Eclesiásticos, do cónego de Notre-Dame de Paris, Jean Beleth,

antes de 1165:

275



Da celebração do ofício dos mortos.

«Antes de o corpo ser lavado ou envolto num sudário, o padre ou o

seu vigário deve ir até ao local onde ele jaz, levando água benta e, erguendo

preces a Deus por ele, deve invocar e rezar aos santos para que recebam

a sua alma e a transportem para o lugar da bem-aventurança, Com

efeito, há almas que são perfeitas e que, mal saem do corpo, voam imediatamente

para os céus. E há outras totalmente más que caem logo no

Inferno. Há outras, medianas (medie ), pelas quais se deve fazer uma

recomendação deste género. Também é bom fazê-Ia pelos maus, mas

ao acaso. O corpo lavado e amortalhado num sudário deve ser levado

para a igreja e então deve ser rezada missa'".» Segue-se o texto de Agostinho

retomado pelo Decreto de Graciano sobre as quatro categorias ainda

bloqueadas entre os eleitos e os condenados.

Brandon escreveu que «para preencher o fosso entre os interesses do

indivíduo com a sua trajectória temporal de setenta anos (three-score

years and ten) e os da raça humana estendendo-se por milénios (fosso

que a religião hebraica nunca conseguiu preencher de facto), a Igreja

inventou o Purgatórios ".

276

NOTAS

1 «pro exercitu qui jacet in purgatorio», PL, 217, col. 590. Ver atrás, pp. 207-208.

2 SUGER, Vie de Louis VI, le Gros, ed. e trad. de H. Waquet. Os clássicos da

História de França na Idade Média, Paris, 1964. Suger só escreveu o começo de

uma vida de Luís VII que ficou por terminar (ed. J. Lair, Bibliothêque de I'École

des chartres, 1875, pp. 583-596). As Gesta Philippi Augusti de Rigord e a Philippis

de Guilherme, o Bretão foram estudadas por F. Delaborde, Sociedade da História

de França, Paris, 1882-1885.

3 Ver Galbert de Bruges. Le meurtre de Charles le Bon, traduzido do latim por J.

GENGOUX, sob a direcção e com uma introdução histórica de R. C. VAN CAE-

NEGHEM, Antuérpia, 1977.

4 IVES DE CHARTRES, Prologus in Decretum in PL, 161,47-60. A propósito dos

sufrágios, Yves de Chartres reproduz os textos de Gregório, o Grande (Dialogues, IV,

)9 e IV, 55), PL, 161, 993-995e 999-1000.

S G. LE BRAS, «Le Liber de misercordia et justicia de AIger de Liêge» in Nouvelle

Revue historique de droit franpais et étranger, 1921,pp. 80-118. O texto do Liber encontra-se

em Migne, PL, 180,col. 859-968.

6 Ver os capítulos XXVIII, XLIII-XLIV, LXXXIII, XLIII do Liber. A passagem

sobre a purgação está nos capítulos LXI-LXII(PL, 180,col. 929-930).

7 St. KUTTNER, Kanonistische Schuldlehre von Gratian bis auf die Dekretalen

Gregor IX. Cidade do Vaticano, 1935.

8 R. GLOMME, La Doctrine du péché dans les écoles théologiques de Ia premiére

moitié du Xll" siécle, Lovaina, Gembloux, 1958.

9 O. LOTTIN, «Pour une édition critique du Liber Pancrists» in Recherches de

théologie ancienne et médiévale, XIII (1946), pp, 185-201.

10 Além da obra de R. Blomme, op. cit .. ver Théologie du péché por Ph. DELHA-

YE e outros ..., 1· volume, Paris-Tournai-Nova Iorque-Roma, 1960.

11 ANSELMO DE CANTORBERY, Cur Deus Homo (Porquoi Dieu s'est fait

homme), texto latino, introdução, notas e tradução de R. ROQUES, Paris, 1943.

12 Commentarius Cantabrtgiensis in Epístolas Pau/i e Scho/a Petri Abaelardi 2 In

epistolam ad Corinthias Iam et liam. Ad Gaiatas et Ad Ephesos, ed. A. Landgraf, Notre-

-Dame (Ind.), 1939,p. 429,citado por R. Blomme, La Doctrine du péché ...• p. 250, n. 2.

13 Este ponto foi bem visto e sublinhado por H. Ch. LEA, A History 01 Auricular

Confession and Indulgences in the latin Church, vol, III, Indulgences, Filadélfia, 1896,

pp.313-314.

277



. 14 Ver R. BLOMM~, La Doctrine du péché ..., p. 340. A importância da confissão

fOI bem captada por Michel Foucault, Histoire de Ia sexualité I, La volonté de savoir,

Paris, 1976, pp. 78 e 55.

. 15 O text~ editado por Migne, PL,40, 1127-1128, não me parece ser o texto origmal

(~er Apendi~ 1I~.Sobre o alcance do tratato, ver A. TEETAERT, La confession

~;: laiques dans l Eglise latine depuis le VII/e jusqu 'au XIV" siécle, Paris, 1926, pp. 50-

16 Walter MAP, De nugis curialium, ed. M. R. James, Oxford, 1914. Texto citado

por J.-Ch. PA YEN, Le Motif du repentir dans Ia littérature franpaise médiévale (des

o~i~ines à 1::30): Genebra, 1968, p. 109, que compreende bem que se trata do Purgatono

mas nao diz que Walter Map lhe chama Inferno

17 .

• Ver C. VOGEL, Les «Libri Paenitentialis», Typologie des sources du Moyen

Age occidental, fas. 27, Turnhout, 1978.

• J.. LE ~FF, «Métie: et p~ofession d'aprês les manuels de confesseur du Moyen

Age» m Miscellanea Mediaevalia, vol. IH. Beitrãge zum Berufsbewusstsein des mittelalterlichen

Menschen, Berlim, 1964, pp. 44-60, retomado in Pour un autre Moyen Âge

Paris, 1977, pp, 162-180.

'

_ 18?S trabalhos essenciais são os de A. M. LANDGRAF, Das Wesen der lâsslichen

S~ In der ~cholastik bis Thomas von Aquin, Bamberg, 1923 e Dogmengeschichte der

Frühschola~tik, 4' parte. o.ie Lehre von der Sünde und ihren Folgen, II Rastibonne,

1~56, especialmente III. DU! Nachlassung der lãsslichen Sünde, pp. 100-202. Ver também

Th. DEMAN, artigo «Péchê» in Dictionnaire de théologie catholique, XlIII, 1933,

col. 225-255. M. HUFTIER, «Péché mortel et péché véniel», Capo VII de Ph. DELHA-

~E e. outros, Théologie du Péché, 1960, pp. 363-451 (infelizmente prejudicado por

cltaçoe~ erradas, por exe~~lo, veniali~ ~m vez d~ quotidiana em Santo Agostinho).

J. J. O BRIEN, The Remission of Venialia, Washmgton, 1959 (tomista abstracto que

con~gue não falar do Purgatório). F. BLATON, «De peccato veniali. Doctrina scolastif;>rum

ante S. Thomas» in Co/lationes Gandavenses, 1928, pp. 134-142.

,? LOTIIN, «Les Sententiae Atrebatenses», in Recherches de théologie ancienne

et médiévale, t. 10, 1938, p. 344. Citado por R. BLOMME La Doctrine du péché p

61, n. 1. ' ..., .

: ABELARDO, ed. V. Cousin, t. 11, p. 621.

22 V~r A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte ..., IV/2, p. 102 e ss.

23 Citado por A. M. LANDGRAF; Dogmengeschichte ..., IV/2, p. 116.

24 Libri Sententiarum, Quaracchi, t. lI, 1916, pp. 881-882.

A. M ..LANDGRAF, Dogmengeschichte ..., IV/2, p. 165, n. 34. «verum est quod

quaedam antmae, cum soluuntur a corporibus, statim intrant purgatorium quemdam ignem;

'~ quo tamen non omnes purgantur, sed quaedam. Omnes vero quotquot intrant, in

eo puntuntur ', Unde videretur magis dicendus punitorius quam purgatorius, sed a digniori

nomen accepit. Earum enim, quae intrant, aliae purgantur et puniuntur, aliae puniuntur

tant~. l/lae purgantur et puniuntur, quae secum detúlerunt ligna, fenum, stipulam. Illi

puntuntur ~a~tum qui confitentes et poenitentes de omnibus peccatis suis decesserunt,

antezuam tntunctam a sacerdote poenitentiam peregissent.»

26 A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte ..., IV(2, p. 234.

Th. CAPLOW, Deux contre unoLes coalitions dans les triades 1968 trad franc

Paris, 1971. ' , . .,

~: Libri IV Sententiarum, Quaracchi, t. li, 1916, pp. 1006-1007.

29 A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte .... IV/2, p. 262, n. 7.

Id., ibid., 1"l/2, p. 262, n. 9.

30 A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte ..., IV/2, p. 261, n. 6.

31 Id., ibid., IV/2, pp. 270-271.

32 K. BOSL, «Potens und pauper. BegrifTsgeschichtliche Studien zur gesselschaftlieher

Differenzierung im frühen Mittelalter und zum Pauperismus des Hochmittelalters»

in Frühformen der Gesellschaft im mittelalterlichen Europa, Munique-Viena,

1964, pp. 106-134.

33 G. DUBY, Les Trois Ordres ou l'imaginaire du féodalisme, Paris, 1978 [edição

portuguesa da Editorial Estampa, Lisboa, 1982]. J. LE GOFF, «Les trois fonctions

indo-européennes, l'historien et I'Europe féodale» in Annales, E.S.C., 1979, pp.

1187-1215.

34 Sobre os medíocres, ver D. LUSCOMBE, «Conceptions of Hierarchy before the

XlIIth. c.» in Miscellanea Mediaevalia, 12/1. Soziale Ordnungen im Selbstverstãndnis

des Mittelalters, Berlim-Nova Iorque, 1979, pp. 17-18.

3S Ver J. LE GOFF, «Le vocabulaire des catégories sociales chez François d'Assise

ct ses biographes du XIII" siêcle» in Ordres et classes (Colóquo de história social Saint-

-Cloud, 1967), Paris, Haia, 1973, pp. 93-124.

36 Em compensação e do ponto de vista escatológico, é deportado para o Paraíso,

visto que a ele conduz obrigatoriamente.

37 A concepção da desigualdade na igualdade, na equidistância por exemplo, é

típica da mentalidade «feudal». Cf. J. Le GOFF a propósito das relações senhor/vássaIo,

Pour un autre Moyen Âge, pp. 365-384.

38 ALEXANDRE DE HALES, Glossa in IV libros sententiarum Petri Lombardi,

Biblioteca Franciscana scholastica Medii AEvi, t. XV, Quaracchi, 1957, pp. 352-353.

«Cum enim proportionalis esset poena temporalis culpae temporali poena autem purgatorii

improportionaliter habeat acerbitatem respectu poenae hic temporalis, punit supra

condignum, non citra. Respondemos quod ... licet autem poena purgatorii non sit proportionalis

delectationi peccati, est tamen comparabilis; etlicet non sit proportionalis secundum

proportionem poenae hic temporali quoad acerbitatem, est tamen proportianalis

secundum proportionalitatem. "Est autem proportionalistas similitudo proportionum"

(Euclides, E/ementa, V, def. 4). Quae enim est proportio poenae temporalis hic debitae

alicui peccato ad poenam temporalem debitam hic maior; peccato, ea est proportio poenae

purgatorii debitae minori peccato ad poenam purgatorii debitam maiori peccato; non

tamen est propor tio poenae purgatorii ad poenam hic temporalem. Ratio autem propter

quam convenit poenam purgatorii esse acerbiorem improportionaliter poena purganti hic,

licet utraque sit voluntaria, est guia poena purgans hic est poena animae per compassionem

ad corpus, poena vero purgatorii est poena ipsius animae immediate. Sicut ergo

passiblle improportionale passibili, ita passio passioni. Praetera, poena temporalis hic

simpliciter voluntaria, poena purgatorii voluntaria comparative.»

Agradeço a Georges Guilbaud e ao Padre P. M. Gy que tiveram a amabilidade de

me ajudar a ler este texto apaixonante mas dificil, o primeiro com a sua competência de

matemático e de especialista da escolástica, o segundo com os seus conhecimentos de

teólogo.

39 A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte ..., IV/2, p. 294, n. 2. Trata-se de um

comentário ás Máximas do começo do século XIII: «sciendum quod seeundum quosdam

suffragia prosunt damnatis (purgatorio) quantum ad proportionem arithmeticam, non

geometricam.»

40 Esta expressão é o título do notável estudo de J. CHIFFOLEAU, La comptabilité

de l'au-delá. Les hommes, Ia mort et Ia religion en Comtat Venaissin à ta fin du

Moyen Âge, Escola francesa de Roma, Roma, 1980.

278

279



41 A. MURRA Y, Reason and Society in lhe Middle Ages, Oxford, 1978. J. MUR.

DOCH fala de delírio de medição (frenzy to measure) entre os universitários de Oxford

do século XIV in J. E. MURDOCH e E. D. SYLLA, ed. The Cultural Context of

Medieval Learning, Dordrecht, 1975, pp. 287-289 e 340-343. Esse delírio começa pelo

menos um século antes e não só em Oxford.

42 Sobre a cartografia medieval, ver entre outros J. K. WRIGHT, The Geographical

Lore of lhe Times of lhe Crusades, Nova Iorque, 1925. G. H. T. K1MBLE, Geography

in the Middle Ages, Londres, 1938. L. BAGROW, Die Geschichte der

Kartographie, Berlim, 1951. M. MOLLAT, «Le Moyen Âge» in Histoire Universelle

des explorations, ed. L. H. Parias, t. I, Paris, 1955. G. KISH, La earte, image des

ctvilisanons, Paris, 1980.

43Sobre o desprezo pelo mundo ver R. BULTOT, La doctrine du mépris du monde

en Occident, de saint Ambroise à Innoeent IlI. Lovaina, 1963.

44 G. VINAY, in li dolore e Ia morte ne//a spiritualità dei seeo/i XII e XIII (1962),

Todi, 1967, pp. 13-14.

45 E. PANOFSKY, citando Meyer SCHAPIRO, Architecture gothique et pensée

scolastique, trad. franco Paris, 1967, p. 42.

46 JOlNVILLE, La Vie de Saint Louis, ed. N. L. Corbett, Sherbrooke, 1977, pp.

85-86 e p. 214.

47 Ver G. LOBRICHON, L'Apocalypse des théologiens au XII" siécle, tese da Escola

dos Altos Estudos em Ciências Sociais defendida em 1979 na Universidade de

Paris X-Nanterre.

48 Mateus, XXV, 31-46 e Paulo, I Coríntios, 15-22.

49É. MÂLE, L'Art religieux du XIII" siêcle en France, Paris, 9- ed. 1958, pp. 369-

-374.

50 H. FOCILLON, Art d'Occident, t. 2, Le Moyen Âge gothique, Paris, 1965, pp.

164-165.

51Ver os trabalhos dos historiadores alemães de Friburgo e de Munique (G. TEL-

LENBACH, K. SCHMID, J. WOLLASCH) citados por J. WOLLASCH, «Les obituaires,

témoins de Ia vie clunisienne» in Cahiers de Ia Civilisation Médiévale, 1979, pp.

139-171; Paul VEYNE, Le Pain et /e Cirque, Paris, 1976.

52 Ver principalmente G. DUBY, «Remarques sur Ia líttérature généalogique en

France aux XI" et XII" siêcles» in Comptes rendus de l'Académie des Inscriptions et

Belles Lettres, 1967, pp. 335-345 retomado em Hommes et Structures du Moyen Âge,

Paris-Haia, 1973, pp. 287-298.

53 W. ULLMANN, The Individual and Society in lhe Middle Ages, Baltimore, 1966,

p.69.

54JEAN BELETH, Summa de ecclesiasticis ofJiciis, ed ..H. Duteil, Corpus Christianorum

Continuatio Mediaevalis XLI A, Turnhout, 1971, p. 317 e ss.

55 S. G. F. BRANDON, Man and his Destiny in lhe Great Religions, Manchester

University Press, 1962, p. 234.

PARTE III

O TRIUNFO DO PURGATÓRIO

280



VIII - O ORDENAMENTO

ESCOLÁSTICO

O século XIII é o século da organização. A sociedade cristã está cada

vez mais enquadrada. No domínio económico aparecem os primeiros

tratados de economia rural- desde a Antiguidade - e a regulamentação

urbana tem muitas vezes por destinatário o artesanato, as indústrias incipientes

(construção civil e têxteis), o comércio e a banca. A actividade

social é ainda mais controlada, pelas corporações no domínio do trabalho,

pelas confrarias no da devoção. As instituições políticas são cada vez

mais coactoras ao nível da cidade, ao nível sobretudo do Estado monárquico,

como se vê em França e na monarquia pontifical, e em menor grau

nos Estados ibéricos e em Inglaterra. Esta organização manifesta-se principalmente

no mundo intelectual em que as universidades, as escolas das

ordens mendicantes e as escolas urbanas canalizam, fixam e organizam a

efervescência ideológica e escolar do século XII, quando a teologia e o

direito (renovação do direito romano e desenvolvimento do direito canónico)

elaboram súmulas, um sistema de debate, de decisão e de aplicação

que ordenam os conhecimentos e a sua utilização.

Um triunfo atenuado

O Purgatório é apanhado neste movimento que ao mesmo tempo o

entroniza e o controla. A escolástica, cuja acção foi decisiva para o seu

aparecimento, assegura-lhe o triunfo, mas um triunfo limitado e atenuado.

Não podemos seguir aqui a instalação do Purgatório na e pela escolástica

do século XIII até ao segundo concílio de Lyon (1274) que lhe dá

uma formulação oficial dentro da Igreja latina. Examinarei o que dizem

do Purgatório alguns dos maiores teólogos do período 1220-1280 (Guillaume

d' Auxerre, Guillaume d' Auvergne, Alexandre de Hales, S. Boaventura,

S. Tomás de Aquino e Alberto, o Grande) sem procurar (o que não

283



está na minha intenção) repor o tratamento do Purgatório no conjunto

do pen~~mento destes mestres, mas clarificando o seu discurso sobre o

Purgatono segundo a maneira como ele surge na sua obra.

Nos ,seus ensinamentos não se encontram, disso não há dúvida, o

mesmo impeto, os mesmos debates apaixonados que se sentem entre os

mestres da seg~nda metade do século XII, de Pedro Lombardo a Pedro o

Chantre, de Gilbert de Ia Porrée a Prévostin de Cremona. No entanto não

se deve esque~er o a~dor das discussões na Universidade de Paris no século

:XIII, o clima animado das questões em debate e das quodlibeta' os

conflitos e as audácias manifestados pela grande querela entre os mestres

r~gulares ~ os mestres seculares, a questão do averroísmo e as condenaçoes

~o bISpOobscurantista Etienne Tempier em 1270 e 12772.

. Nao tem ca~lmento desenvolver aqui episódios célebres que, a maior~a.das

vezes, nao passaram ~e pano de. fundo para a teologia do Purgatono.

As novas ?rdens mendicantes rapidamente se interessaram por este

~~v.opoder do seculo XIII: a ciência universitária, os dominicanos logo de

IniCIOe sem grandes problemas, os franciscanos mais dificilmente e não'

se~ custo. Mas ~~gu~sdos s;u~ mestres surgem muito depressa na prime~ra

fila da sapiencia escolástica e atraem os auditórios de estudantes

mais ~umerosos, em detrimento dos mestres seculares que lhes reprovam

o seu Ideal de mendicidade, a sua sede de poder, a sua falta de solidariedade

corporauva, e que: ~ura e simpíesmente, têm inveja deles. Os grandes

do~tores do .Purgatono no seculo XIII são mestres mendicantes.

Os Inte~ectuaIs do século XIII são leitores - na tradução latina - dos

grandes filosofos gre~~s da Antiguidade (Platão e sobretudo Aristóteles)

e arabes da Idade Média (Avicena, falecido em 1037, e Averróis falecido

em 1198~. A autorid~de eclesiástica não vê com bons olhos este\nteresse

pelos filosofos «pagaos». Uma doutrina atribuída a Averróis distingue

entre as verdades re~e~adas e as v~rdades racionais. Admite que possa

h~ver entr: elas OP?SI.Ç~O e me~~o I~compatibilidade. Neste caso a posiçao

ave?"?Ista consl.stlTl~em privilegiar a razão contra a fé. Que Averróis

obteve eXIt~~a UOlversIdade de Paris no século XIII, é inegável. Que os

mestre~ pansienses tenham ~e .facto professado a doutrina da dupla verdade,

e menos certo. Mas vanos foram acusados disso e contra eles levanto~-se

acesa p~lémica. Não houve interferência entre a querela

ave~01sta e a doutnna do Purgatório, mas os escolásticos dedicaram-se

a dls~ertar sobre ele, n~o só a partir do que diziam os especialistas, mas

tambem segundo a razao.

, . Enfim, a grande reacção veio justamente de Paris. Em 1270 o bispo

EtIe~ne Tempier condenou treze proposições inspiradas na filosofia pagã,

c~~slderadas errada~. Em I~~7.uma nova condenação atingiu 219 proposiçoes.

Este duplo silabo dirigia-se a uma série bastante heteróclita de

«erros», mas as correntes mais visadas eram em 1270 o averroísmo _

284

ou aquilo a que davam este nome - e em 1277 o aristotelismo, incluindo

neste uma parte dos ensinamentos de Tomás de Aquino. E dificil apreciar

n alcance das condenações de Étienne Tempier, e tal não está nos meus

propósitos. A atmosfera criada por estas censuras brutais não foi favorável

à investigação teológica em geral, mas as consequências directas para

li teologia do Purgatório foram pouco importantes. Primeiro, porque o

problema era marginal em relação aos conflitos parisienses. Somente os

dois últimos artigos condenados em 1277 diziam respeito ao além, como

veremos. Mas o essencial da reflexão teológica latina sobre o Purgatório

estava terminado em 1274 e, nesse mesmo ano, iria ser oficialmente consagrado

pelo segundo concílio de Lyon.

Os debates do século XIII foram talvez ainda mais apaixonados na

Faculdade das Artes - diríamos nós, a das letras e das ciências, onde

os jovens estudantes recebiam a sua formação de base e que conhecemos

mal- do que na Faculdade de Teologia. Mas o Purgatório é antes de mais

- em matéria universitária - tarefa de teólogos. Sobretudo tarefa parisiense.

Com efeito, verifica-se que no século XIII e desde longa data, o direito

é elaborado sobretudo em Bolonha e a Teologia é ensinada principalmente

em Paris, mas num ambiente internacional tanto pelos mestres como

pelos estudantes. A par com os franceses Guillaume d' Auxerre e Guillaume

d'Auvergne, são o inglês Alexandre de Hales, o alemão Alberto de

Colónia, os italianos Boaventura de Bagnoreggio e Tomás de Aquino

que dão prestígio à teologia universitária parisiense",

Triunfo atenuado, primeiro porque o êxito do Purgatório na teologia

oficial latina não deve fazer esquecer o seu falhanço em zonas importantes

da cristandade. É a recusa dos hereges, valdenses e cátaros, nesse

século XIII em que o confronto entre o catarismo e a Igreja romana ocupa

um lugar tão importante. A hostilidade dos Gregos, que por razões

políticas haviam sido obrigados a ocultar a sua recusa do Purgatório no

momento da efémera união das Igrejas concluida no segundo concílio de

Lyon (1274), força os latinos a discutir com eles, que não aceitam esse

novo além. Estas discussões vão levar a Igreja latina a definir melhor o

Purgatório no século XIII, tal como fora levada pela luta contra os hereges

a confirmar a sua existência no fim do século XII.

Triunfo atenuado, depois, porque os intelectuais latinos, que desempenham

um papel crescente na cúria romana e na hierarquia eclesiástica

e, está claro, nas universidades, sentem uma certa desconfiança em relação

a esta novidade. É dificil detectá-Ia e documentá-Ia, mas sentimo-Ia.

Aflora aqui e ali nas suas obras. Dupla desconfiança que vem, sem dúvida,

de um certo mal-estar perante uma crença tão pouco e mal fundamentada

na Santa Escritura e, sobretudo, do medo de ver essa crença

submersa pela piedade vulgar e supersticiosa. Medo perante um além

tão próximo da cultura folclórica e da sensibilidade popular, um além

285



tão mais definido pelo imaginário do que pelo teórico, pelo sensível do

que pelo espiritual. Sente-se uma vontade de racionalizar, de balizar, de

controlar, de expurgar o Purgatório.

Eis, por exemplo, como um dos primeiros grandes teólogos parisienses

do século XlII aborda os problemas do Purgatório.

Na sua Summa Aurea (entre 1222 e 1225) Guillaume d'Auxerre, falecido

em 1231, um dos introdutores de Aristóteles na teologia escolástica,

fala do Purgatório sob dois pontos de vista, o dos sufrágios pelos mortos

e o do fogo purgatório.

As questões respeitantes aos sufrágios (<<queutilidade têm os sufrágios

para os que estão no Purgatório» e «serão os sufrágios feitos para os que

estão fora da caridade úteis aos que estão no Purgatório'õ-") são muito

interessantes do ponto de vista do desenvolvimento da contabilidade do

além.

Guillaume está entre a problemática do fogo purgatório e a do Purgatório

em sim mesmo. Sobre a maneira como o fogo purgatório expurgar

as almas, Guillaume d' Auxerre está principalmente interessado num

problema teórico, o da causa eficiente (causa efficiens purgationis), Neste

momento adopta uma posição intermédia em relação ao problema de

saber se existe no além um «lugar de mérito» (locus merendi), Com efeito,

parecendo estar de acordo com a opinião, que será a dos grandes

escolásticos, segundo a qual já não é possível adquirir méritos depois

da morte, ele combate aqueles que negam a possibilidade de correcção

pelo fogo que «expurga as almas agindo nelas sem Ihes imprimir a sua

qualidade» (ignis purgatorius purga! animas agendo in eas tamen non intendit

eis imprimere qualitatem suam). Questão teórica muitíssimo importante

porque autoriza ou não a reversibilidade dos méritos, que só será

reconhecida no século XV. Para já, as almas do Purgatório são as beneficiárias

dos sufrágios dos vivos sem que estes recebam alguma coisa em

troca excepto, como se viu, o beneficio de adquirirem para si próprios

méritos no além, realizando aqui uma obra de misericórdia: rezar pelos

mortos.

Os textos dos grandes escolásticos respeitantes ao Purgatório trazem

em si, de muitas maneiras, a marca dos métodos universitários. Destacarei

dois. O ensino universitário é feito principalmente através do comentário

de manuais. No século XIII, o mais importante foi a recolha dos

Quatro Livros de Máximas de Pedro Lombardo. Ora, como se viu, no

livro IV das Máximas Lombardo trata do fogo purgatório, que no século

XIII se transformou em Purgatório. No seu comentário a Lombardo, os

mestres parisienses tratam do Purgatório, se bem que o bispo de Paris,

falecido em 1160, não tenha ainda este conceito à sua disposição. A passagem

da primeira epístola de Paulo aos Corintios será sempre uma das

peças importantes do processo e do comentário, mas o texto da Escritura

Ncrá cada vez mais substituído como texto de base pelo segundo texto, o

de Lombardo.

Por outro lado, o ensino universitário ordena-se à volta de um programa

metódico, racional, que não deixa sem dúvida de estar ligado às

preocupações da época e às modas intelectuais, como o aristotelismo ou o

uverroismo. Mas questões, mesmo no sistema dos quolibeta criado em

princípio para ser possível abordar qualquer questão fora dos programas

regulares, dependem da sua inserção numa problemática mais vasta. O

Purgatório surge no conjunto dos «fins últimos» no capítulo De

novisstmis', Para os grandes teólogos do século, ele é um dado adquirido,

professado pela Igreja e proposto pelos programas universitários, mas

que não apaixona.

No século XII o além intermédio está estreitamente ligado a alguns

grandes problemas comuns aos teólogos, aos místicos e, em formas menos

elaboradas, a uma parte pelo menos da sociedade laica: a exegese

bíblica, a natureza do pecado, as práticas da penitência, o estatuto das

visões e dos sonhos. Na elaboração de soluções para as questões postas, a

teologia, a teologia parisiense sobretudo, colaborara grandemente, como

se viu, na segunda metade do século.

No século XIII a teologia universitária - sobretudo parisiense de novo

_ entroníza o Purgatório, insere-o no sistema do pensamento cristão, mas

não parece vivê-lo como problema existencial. Por isso devemos conduzir

agora o nosso estudo a dois níveis: o dos intelectuais e o dos pastores e

das massas.

o Purgatório, continuação da penitência terrena: Guillaume d'Auvergne

Um dos melhores historiadores do pensamento medieval, M. de Wulf,

escreveu: «A geração dos grandes teólogos especulativos inicia-se com

Guillaume d' Auvergne, um dos espíritos mais originais da primeira metade

do século ... Guillaume é o primeiro grande filósofo do século xm".»

Tratando-se do Purgatório, direi mesmo; Guillaume d' Auvergne é o último

grande teórico do século XlI 7 • Aliás, Etienne Gilso? consi~erara: «Po~

todo o seu hábito de pensamento como pelo seu estilo, Guillaume esta

ligado ao fim do século XlI» e destacara que ele era também, depois de

Abelardo e de Bernardo de Clairvaux, o último grande teólogo francês da

Idade Média. Pergunto-me se este aspecto um pouco «arcaico» de Guillaume

d'Auvergne virá ou não (como se disse) da· sua hostilidade ao aristotelismo

(que não era com certeza tão grande como se pretendeu), mas

do facto de este secular, este pastor, mesmo sendo um grande teólogo, se

aproximar das preocupações e da mentalidade das suas ovelhas, que não

286

287



----~-----~--~- --_.-~- ------

estavam igualmente avançadas na nova teologia escolástica, que os nov

intelectuais universitários tinham talvez tendência para encerrar n

«ghetto» do Quartier Latin em vias de formação.

Nascido cerca de 1180 em Aurillac, mestre regente de teologia e

Paris entre 1222 e 1228, bispo de Paris de 1228 até à sua morte e

1249, Guillaume d'Auvergne compôs entre 1223 e 1240 uma obra imen«

sa, o Magisterium divinale sive sapientiale, formado por sete tratados, doar,

quais o mais importante, o De universo (Sobre o universo das criaturas],

foi feito entre 1231 e 1236.

Após ter esboçado uma geografia unindo o além e o mundo cá em .

baixo na qual o lugar de felicidade da alma se situa no cume do universo,

no Empíreo; o lugar da sua desdita no fundo do universo, nas profundezas

subterrâneas opostas ao céu do Empíreo; e o lugar de mistura de

felicidade e desdita no mundo dos vivos, Guillaume d'Auvergne aborda o

Purgatório. Considera dois problemas clássicos: a localização e o fogo. O

bispo de Paris põe logo de entrada o problema do lugar de purgação,

dando como adquirido o termo Purgatório: «Se o lugar de purgação

das almas a que se chama Purgatório, é um lugar específico destinado

à purgação das almas humanas, distinto do Paraíso terrestre, do Inferno

e da nossa morada, isso é um problema'o

Que depois da morte do corpo muitas coisas há para expurgar, é para

Guillaume d'Auvergne «uma evidência» (manifestum est). E logo avança

a grande ideia da sua concepção do Purgatório: é a continuação da penitência

terrena. Esta concepção penitencial do Purgatório que ninguém

exprimiu melhor do que ele está bem dentro da tradição do século XII,

como creio já ter sublinhado.

Para a necessidade evidente de purgação, Guillaume dá uma primeira

razão: os defundos mortos de morte súbita ou inesperada, por exemplo,

«pela espada, por sufocação ou por excesso de sofrimento», apanhados

pela morte antes de terem podido cumprir a sua penitência, devem ter um

lugar para terminar essa penitência. Mas existem outras razões para a

existência do Purgatório, como a diferença entre pecados mortais e pecados

leves. Como os pecados não são todos iguais, a sua expiação obrigatória

não pode ser a mesma para os mais graves e os mais leves, para o

homicídio ou a extorsão, por exemplo, por um lado e o riso excessivo ou

o prazer da comida e da bebida por outro. Para uns, é a expiação pelo

castigo (per poenam); para outros ela faz-se pela penitência (per poenitentiam).

No que toca aos pecados leves, é evidente que o morto carregado deles

não pode nem entrar com eles no Paraíso nem ir por causa deles para o

Inferno. Tem, pois, obrigatoriamente de os expiar antes de ser transportado

para a glória celestial. E, por consequência, tem de existir um lugar

onde, no futuro, se faça essa expiação. Guillaume d' Auvergne não tem

288

portanto nenhuma dúvida quanto ao tempo do Purgatório: situa-se entre

li morte e a ressurreição dos corpos.

Separa também muito nitidamente Inferno e Purgatório. Mas se não

Insiste(como se fará mais tarde, no século XIII) no carácter muito penoso

da purgação depois da morte, nem por isso equipara menos a penitência

do Purgatório a uma expiação, e as provações do Purgatório a penas, a

castigos penitenciais (poenae purgatoriae et poenitentiaJes). Com efeito, e

c esta a sua grande ideia, «as penas purgatórias são penas que completam

u purgação penitencial iniciada nesta vida». Acrescenta que a frequência

das mortes imprevistas, das penitências inacabadas antes da morte e dos

casos de morte em estado de pecado ligeiro torna essas penas «necessárias

Il numerosas almas» (necessariae sunt multis animabus). O mesmo é dizer

que o Purgatório tem todas as probabilidades de ser muito povoado. Sem

que tal seja dito, é evidente que, nesta concepção, o Inferno está mais ou

menos deserto em proveito do Purgatório. A existência do Purgatório

não prejudica, aliás, o exercício de uma vida cristã na terra, não é uma

incitação ao relaxamento cá em baixo no mundo, pelo contrário. «Porque,

com medo da purgação no futuro, à falta de outras motivações, os

homens iniciam mais facilmente e mais cedo a purgação penitencial cá em

baixo, executam-na com maior zelo e vigor e esforçam-se por a terminar

untes de morrerem.»

A existência do Purgatório é, pois, provada pelo raciocínio e na perspectiva

da penitência. Guillaume d'Auvergne prossegue com outras provas.

A primeira provém da experiência. Visões e aparições numerosas e

frequentes de almas ou de homens que se encontram nessas purgações

depois da morte atestam a realidade do Purgatório. Consciente da importância

desta literatura do além purgatório de que pretendi aproveitar-me

neste livro, ele destaca o interesse das informações concretas prestadas

peJos escritos e descrições dessas aparições, reclamações, premonições e

relevações que não só são divertidas (quae non soJum auditu jocundae

sunt ) mas também úteis e salutares. Daí a necessidade dos sufrágios pelos

mortos: preces, esmolas, missas e outras obras piedosas.

Existe, por fim, uma terceira razão para a existência do Purgatório: é a

exigência de justiça. Repete que «aqueles que negaram a existência do

Purgatório e das suas purgações das almas ignoraram a penitência».

Ora a penitência «é um julgamento espiritual, julgamento onde a alma

pecadora se acusa a si própria, testemunha contra si própria e pronuncia

uma sentença contra si própria». Mas toda a sentença deve satisfazer a

justiça. Nem todas as culpas são igualmente graves nem merecem a mesma

punição. Se a justiça humana não tolera esta confusão de penas, por

maioria de razão a justiça divina, que é tão misericordiosa. Também aqui

Guillaume d'Auvergne está bem na linha desse século XII tão sedento de

justiça como de penitência, como demonstrei.

289



Falta situar este lugar purgatório cuja existência já não oferece dúvidas.

Aqui Guillaume d'Auvergne mostra-se mais embaraçado, pois «nenhuma

lei, nenhum texto, o define» (nulla lex, ve/ alia scriptura

determinat). Deve pois acreditar-se no que revelam as visões e as aparições.

Mostram elas que essas purgações se fazem em numerosos locais

desta terra. Também para isto Guillaume quer dar uma justificação teórica,

racional. «A coisa não é de espantar, diz ele, porque essas purgações

são apenas suplementos das satisfações penitenciais e não convém portant~

atribuir-lhes outro local diferente do dos penitentes.» E acrescenta:

«E o mesmo local que está destinado ao todo e às partes; onde houver

um lugar para o homem, esse lugar é também para os seus pés e as suas

mãos; essas purgações são apenas partes das penitências.» Assim, a sua

doutrina do purgatório penitencial leva Guillaume a situar o Purgatório

cá em baixo no mundo. Talvez seja simplesmente o leitor de Gregório, o

Grande, procurando uma explicação racional (apparere etiam potest ex

ratione). Depois de ter exprimido a sua concepção geográfica do universo,

ele não podia, sobretudo, senão chegar a esta conclusão, parece-me. O

Paraíso está no alto, o Inferno está em baixo, a nossa terra ocupa o nível

intermédio. Tinha que ser aí que se colocava esse intermédio por excelência,

o Purgatório. Quase um século depois, Dante adoptará a linha de

pensamento de Guillaume d' Auvergne sobre o Purgatório; um lugar

mais próximo do Paraíso do que do Inferno, um lugar onde, ao entrar,

se encontram primeiro as vítimas de morte súbita ou violenta, e até suicidas,

no caso de Catão. Mas graças à sua concepção hemisférica da terra,

Dante saberá dar à montanha do Purgatório uma localização ao mesmo

tempo intermédia e específica.

O segundo problema respeitante ao Purgatório tratado por Guillaume

d'Auvergne no De Universo é o do fogo, que é, na sua época, não só um

acessório essencial e obrigatório do Purgatório mas muitas vezes também

a sua própria encarnação.

Alan E. Bernstein julgou ver uma contradição nos capítulos que Guillaume

dedica ao fogo do Purgatório. Pareceria que ele se inclina para a

concepção de um fogo imaterial, até mesmo puramente «metafórico»,

mesmo que a palavra não seja pronunciada, e depois admitiria finalmente

a ideia de um fogo material. Bernstein tenta resolver esta contradição,

imaginando que Guillaume d'Auvergne elabora uma teoria a dois níveis:

para os seus alunos, para os intelectuais (e para si próprio) apresentaria a

hipótese de um pseudofogo, numa perspectiva próxima da de Orígenes;

para a massa dos fiéis, exporia uma concepção material, real, do fogo,

mais acessível a espíritos mais grosseiros. O bispo de Paris é decerto

um teólogo de alto coturno e, ao mesmo tempo, um pastor muito preocupado

com a cura animarum, com o bem das suas ovelhas. Mas creio que

a duplicidade de ensino que lhe atribui Alan Bernstein não é de todo

290

crível num prelado da primeira metade do século XIII, e não tem em

conta o texto do De Universo.

Guillaume d'Auvergne, nesta súmula que, não o esqueçamos, trata do

universo das criaturas, esboça um inventário e uma fenomenologia do

fogo. Há, diz ele, todas as espécies de fogo. Conhecem-se alguns, na Sicllia

por exemplo, que têm propriedades curiosas que tornam os cabelos

fosforecentes sem os queimar, e há também seres, animais incorruptíveis

pelo fogo, como a salamandra. Tal é a verdade científica terrestre sobre o

fogo. Porque não teria Deus criado uma espécie particular de fogo que

fizessedesaparecer os pecados ligeiros e os pecados expiados de maneira

incompleta? Há pois em Guillaume, primeiro a preocupação de mostrar

que o fogo do Purgatório não é um fogo como os outros. E principalmente

diferente do fogo da geena, do Inferno. O objectivo de Guillaume é

com efeito diferenciar bem o Purgatório do Inferno. E portanto necessário

que o fogo de um seja diferente do fogo do outro. E todavia, mesmo o

fogo infernal é diferente do que nós conhecemos na terra, quer dizer do

fogo que consome. O fogo do Inferno queima sem consumir visto que os

condenados nele serão torturados para sempre. Se há então um fogo que

pode queimar eternamente sem consumir, porque não teria Deus criado

também um fogo que queima consumindo apenas os pecados, purificando

o pecador? Mas estes fogos que ardem sem consumir não são menos

reais. Por outro lado, Guillaume é sensível à opinião daqueles que fazem

notar que, segundo a ideia que se pode ter do Purgatório, ideia confirmada

pelo que dizem os seus habitantes quando das suas aparições, o fogo

não é a única forma de expiação que lá se sofre. O fogo não é pois uma

metáfora mas o termo genérico que serve para designar o conjunto dos

processos de expiação e de purificação que sofrem as almas do Purgatório.

Resta o argumento essencial em que Alan Bernstein se baseia para

defender a hipótese de uma teoria de fogo metafórico em Guillaume

d'Auvergne. O fogo, diz o teólogo, pode mesmo ser eficaz em imaginação

como, por exemplo, nos pesadelos, em que aterroriza sem ser real.

Mas assim como já demonstrou que a crença no Purgatório leva a uma

melhor prática penitencial no mundo, Guillaume pretende apenas provar

a eficácia do fogo purgatório para a salvação eterna. O que ele quer dizer,

parece-me, é que, como o fogo já é eficaz quando somente existe na imaginação

dos homens, dos que sonham, por exemplo, sê-lo-á ainda muito

mais quando é real. Então como duvidar de que Guillaume d'Auvergne

crê e professa que o fogo do Purgatório é real, material? O próprio Alan

Bernstein fez notar que, segundo Guillaume, esse fogo «tortura corporal e

realmente os corpos das almas» (corpora/iter et vere torqueat corpora

animarum). Quem melhor e com maior audácia disse que o teatro do

Purgatório não é um teatro de sombras mas um teatro corporal, onde

as almas sofrem nos seus corpos mordeduras de um fogo material?

291



o Purgatório e os mestres mendicantes

Com os grandes teólogos mendicantes abordamos - apesar da originalidade

individual devida à sua personalidade e às características daa

suas respectivas ordens - um bloco doutrinário.

A. Piolanti, mau grado alguns erros de perspectiva, definiu bem a

posição de conjunto dos grandes escolásticos (Alexandre de Hales, S.

Boaventura, S. Tomás de Aquino, Alberto, o Grande). «No século XIII,

os grandes escolásticos, glosando o texto de Pedro Lombardo, construíram

uma síntese mais consistente: ao discutirem pontos secundários como

a remissão do pecado venial, a gravidade e a duração da pena, o lugar do

Purgatório", sustentaram como doutrina de fé a existência do Purgatório.

o limite da pena no tempo, e estiveram de acordo em considerar o fogo

real'".»

Entre

os frandscanos

1. Do comentário de Pedro Lombardo a uma ciência do além: Alexandre de

Hales

Já citei (p. 270) um extracto da glosa de Alexandre de Hales sobre as

Máximas de Lombardo que aprofundava, do ponto de vista matemático,

o problema da proporcionalidade a propósito do Purgatório. Eis a estrutura

e o essencial do conteúdo do comentário deste grande mestre

parisiense!'.

Este inglês nascido cerca de 1185 que veio a ser mestre em artes em

Paris antes de 1210, ali ensinou teologia desde 1225 até à sua morte, em

1245. Em 1236 ingressou nos Menores e foi titular da primeira cadeira

franciscana de teologia na Universidade de Paris. É um dos primeiros

teólogos parisienses a explicar Aristóteles, apesar das repetidas proibições

(o que provoca a sua ineficácia) de ler as obras do «príncipe dos

filósofos». A Súmula Teológica que durante muito tempo lhe foi atribuída

não é obra sua mas de universitários franciscanos muito marcados

pelos seus ensinamentos. É, em compensação, autor da Glosas sobre

As Máximas de Pedro Lombardo que foi o primeiro a usar como texto

de base do ensino universitário da teologia (o quarto concílio de Latrão

em 1215 tinha praticamente consagrado Lombardo como teólogo oficial),

glosa provavelmente redigida entre 1223 e 1229; e de Questões Discutidas,

igualmente redigidas antes do seu ingresso nos franciscanos - de onde o

título que Ihes foi dado (Questiones disputatae antequam esset frater).

Na sua glosa do livro IV das Máximas de Pedro Lombardo, Alexandre

trata do Purgatório no destaque XVIII e sobretudo nos destaques XX:

292

ceDa penitência tardia, da pena do Purgatório e dos relaxamentos'?», e

XXI: «Da remissão e da punição dos pecados veniais, da edificação do

. d . d \3

ouro, do feno e da palha das sete maneiras e remir o peca o ».

Verifica-se que ele retoma o problema do Purgatório especialmente

destinado aos pecadores, cuja penitência, tardia, está incompleta, e àqueles

que só levam pecados veniais; e que, por sua vez, utiliza a primeira

epístola de Paulo aos Coríntios.

Em Alexandre temos, antes de mais, uma reflexão sobre o fogo. Existe

um fogo que purgará as almas até ao fim do mundo: «Há um duplo fogo,

um, purgatório, que purga as, almas agora até ao dia d~ Julgamento

(final), um outro que precedera o Julgamento, que consuml~a este mundo

e que purificará aqueles que edificam com ouro, etc., se sao encontrados

com algo de combustível. É preciso notar que há três espécies de fogo:

1\ luz, a chama, a brasa (lux .flamma. carbo) e que ele se reparte em três

partes: a superior para os eleitos, a média para os que têm de ser purgados,

a última para os condenados.»

Além da referência a Aristóteles, que escreveu que «a brasa, a chama e

il luz se diferenciam umas das outras» (Tópicos, V, 5) e a S. Paulo, vê-se

que Alexandre de Hales concilia as opiniões tradicionais acerca do fogo

que, para uns, está activo antes da ressurrei~o e para outros dep~ls ~a

ressurreição, no momento do Julgamento Final, ~~larando que ha ?OlS

fogos: um, purgatório, entre a morte e a ressurreiçao; ~u~ro,*dest~d~r

ou purificador entre a ressurreição e o Julgamento. A distinção anstotelica

dos três fogos permite a Alexandre definir bem a natureza mediana,

intermédia, do Purgatório a que corresponde a chama que expurga, enquanto

a luz é reservada aos eleitos, e a brasa,. o carvão ar~e~te, aos

condenados. Temos aqui um bom exemplo do instrumento lógico que

Aristóteles forneceu aos escolásticos do século XIII.

1) Este fogo do Purgatório purga pecados veniais (purgans a venialihus):

«0 pecado é remido e purgado nesta vida pelo amor (ch~r~tas)

de muitas maneiras como uma gota de água no fogo, pela eucanstia, a

confirmação e a extrema-unção. Depois da morte, é purgado no Purgatório.»

2) Purga também penas devidas aos pecados mortais ainda não suficientemente

expiadas (et a poenis debitis mortalibus nondum sufficienter satisfactis)

.

3) É uma pena maior do que qualquer pena temporal (poena maior omni

temporali); é aqui o retomar do tema agostiniano, na preocupação de

combater a ideia de laxismo que poderia ligar-se a uma concepção que

esvazia mais ou menos o Inferno.

4) Não é uma pena injusta e desproporcionada? (nonne iniusta et improportionalis),

é a pergunta cuja importância mostrei no capítulo anterior.

293



5) Há nela confiança e esperança, mas ainda não visão (beatífica) (ib!

fides et spes, nondum visio): Alexandre insiste, como muitos outros, no

facto de o Purgatório ser a esperança, visto ser a antecâmara do Paraíso,

mas sublinha também que ainda não é o Paraíso, e que nele 'se está

privado da visão de Deus.

6) Aqueles que o evitam ou lhe escapam são pouco numerosos (ilIud

vitantes seu evolantes pauci). «Na igreja são pouco numerosos aqueles

cujos méritos são suficientes e que não precisam de passar pelo Purgatório»

(transire per purgatorium). O Purgatório é o além provisório da

maioria dos homens, dos defuntos. A primazia quantitativa do Purgatório

é aqui afirmada.

Alexandre de Hales tratou de outra parte as relações entre a Igreja e o

Purgatório. O primeiro problema é o da jurisdição, do foro (tribunal), de

que depende a alma do Purgatório.

<<À objecção de que ele não se inclui no poder das chaves (o poder

perdoar os pecados dado por Jesus a Pedro e, através dele, a todos os

bispos e a todos os padres) de perdoar a pena purgatória por comutação

em pena temporária, deve responder-se que aqueles que estão no Purgatório

(in purgatorio) dependem de certo modo do foro da Igreja militante

e também do fogo purgatório, na medida em que ele convier à pena satisfatória

(que cumpre a penitência). Como os fiéis pertencem ou à Igreja

militante ou à Igreja triunfante, aqueles que estão no meio (in medio) e,

como não pertencem inteiramente nem à triunfante nem à militante, podem

estar submetidas ao poder do padre (potestati sacerdotis) por causa

do poder das chaves.»

Texto capital que, nesta época em que se reorganiza a jurisdição da

Igreja no direito canónico tanto no plano prático como no teórico, faz

com que ela anexe, pelo menos parcialmente, o novo território aberto no

além. Até então o poder judiciário espiritual, o tribunal da alma, o foro

estava nitidamente dividido por uma fronteira que passava pela linha da

morte. Cá em baixo, no mundo, o homem depende da Igreja, do foro

eclesiástico; no além, só depende de Deus, do foro divino. E certo que

a recente legislação sobre a canonização, sobre a reclamação dos santos,

conferia à Igreja poder sobre alguns mortos que ela, logo a seguir

à morte, colocava no Paraíso e na fruição da visão beatífica mas, ao

fazê-lo, «a Igreja apenas se pronuncia sobre a sorte de um número ínfimo

de defuntos'?». Mas o ingresso no Purgatório diz respeito, como já vimos,

à maioria dos fiéis. Sem dúvida que o novo território não é inteiramente

anexado pela Igreja. Na sua situação de intermédio, fica submetido

ao foro comum de Deus e da Igreja. Poder-se-ia afirmar que, à imagem

das cojurisdições que o sistema feudal desenvolveu nessa época,

existe paridade (co-senhoria em termos de direito feudal) de Deus e da

Igreja sobre o Purgatório. Mas como cresceu o poder da Igreja sobre

294

os fiéis! No momento em que o seu poder no mundo é posto em

causa simultaneamente pela contestação branda dos convertidos às doçuras

do mundo terreno (os despreocupados) e pela contestação dura

dos hereges, a Igreja prolonga para além da morte o seu poder sobre os

fiéis.

Trata-se de doutrina da Igreja no sentido mais pleno e mais lato, e

cabe também a Alexandre de Hales dar uma das primeiras expressões

claras do papel da comunhão dos santos na perspectiva do Purgatório.

Aqui a pergunta é: «Os sufrágios da Igreja são úteis aos mortos que estão

no Purgatório?» Resposta: «Assim como a dor específica traz consigo a

satisfação do pecado, também a dor comum da Igreja universal, chorando

os pecados dos fiéis mortos, orando por eles em lamentos, ajuda à satisfação

mas não cria ela própria satisfação plena; mas com a pena do penitente

ajuda à satisfação, o que constitui a própria definição do sufrágio.

Com efeito, o sufrágio é o mérito da Igreja capaz de diminuir a pena de

um'dos seus membros'".» Começa assim a aparecer em plena luz a noção

de dor, de sofrimento que, de simples expiação, vai tornar-se a fonte dos

méritos que permitirão às almas do Purgatório não só terminarem - com

a ajuda dos vivos - a sua purgação mas também merecerem intervir junto

de Deus a favor desses vivos.

Falta dizer que a Igreja, no sentido eclesiástico, clerical, extrai grande

poder do novo sistema do além. Administra ou controla as preces, as

esmolas, as missas, as oferendas de todos os géneros feitas pelos vivos

a favor dos seus mortos, e de tudo tira beneficios. Graças ao Purgatório,

desenvolve o sistema das indulgências, fonte de grandes lucros de

poder e de dinheiro, antes de se tornar uma arma perigosa que se voltará

contra si mesma.

Também aqui Alexandre de Hales é o teórico e a testemunha desta

evolução. É prudente: «À objecção de que a Igreja, por causa dos perfeitos,

não poderia obter satisfação para os outros, respondi que ela pode

obter uma ajuda, não a satisfação completa. Mas, acrescenta-se, como se

pode obter um relaxamento desse género para parentes defuntos, quando

eles já caíram «nas mãos do Deus vivo e o Senhor diz: "quando tiver

decidido sobre o momento, então julgarei."» (Salmo LXXIV, 3)? Nós

respondemos: só aquele que pesa as almas sabe a grandeza da pena devida

por cada pecado, e não convém que o homem tente saber demasiado.

Mas aqueles que, em amor, vão em socorro da Terra Santa, podem ter tal

devoção e generosidade de esmolas que, libertos eles próprios de todos os

seus pecados, possam libertar os parentes do Purgatório, obtendo para

eles a satisfação.»

A fonte das indulgências para os mortos só é, pois, aberta a conta-

-gotas, a favor dessa categoria excepcional de cristãos, cada vez mais raros

no século XIII, os cruzados. Mas o dispositivo está preparado, e

295



pronto a funcionar. No fim do século, Bonifácio VIII tirará dele maior

partido por ocasião do Jubileu de 1300.

Nas Questões discutidas «Antequam esset frater» entre 1216 e 1236,

Alexandre de Hales faz ainda por várias vezes alusão ao Purgatório.

Na questão XLVIII e a propósito dos pecados veniais ele distingue a

falta, a culpa que é apa1ada pela extrema-unção, enquanto a pena só é

retirada no Purgatório} . Aliás, recorda o carácter amargo, duro (acerbitas)

da pena do Purgatório!", Ao problema de saber se os que estão no

Purgatório têm esperança, ele responde com a bela metáfora dos viajantes

num navio. A esperança deles vem não do mérito próprio mas da acção

de outrem. Os viajantes podem avançar ou pelo trabalho dos seus pés ou

por um meio estranho, um cavalo ou um barco, por exemplo. Os defuntos

no Purgató~i? são «como viajantes num navio: não adquirem para si

qualquer mento e pagam o seu transporte; assim os mortos no Purgatóno

pagam a pena que devem não como o capitão que pode adquirir

méritos no barco, mas simplesmente como transportados} .»

2. Boaventura e osfins últimos do homem

João Fidanza, nascido cerca de 1217 em Bagnoreggio na fronteira do

Lác~oc?m a Umbria, que tomará o nome de Boaventura, tendo ido para

Pans ainda Jovem, entrado em 1243 na ordem franciscana, bacharel

biblico (quer dizer autorizado a explicar a Escritura) em 1248, bacharel

em Máximas (quer dizer habilitado a comentar os Quatro Livros de

Máximas de Pedro Lombardo) em 1250, passa a mestre de teologia em

1253 19 . Foi no começo da sua carreira universitária, entre 1250 e 1256

que redigiu o seu Comentário a Lombardo antes de se tomar ministro da

Ordem dos Menores em 1257 e cardeal em 1273. Por aqui se vê o peso da

inspiração agostiniana, característica do doutor francíscano'".

No destaque XX do livro IV do Comentário às Máximas, Boaventura

trata «da pena do Purgatório em si». Afirma primeiro que é depois desta

vida que se deve, sem dúvida, situar essa pena. A questão de saber «se a

pena do Purgatório é a maior das penas temporais» (utrum poena purgatorii

sit.maxima poenarum temporalium) responde que ela é «no seu género»

mais pesada do que todas as penas temporais que a alma pode sofrer

quando está unida ao corpo. Ao afirmar - na tradição agostiniana - a

severidade do que se sofre no Purgatório e ao reconhecer a relação que se

pode estabelecer entre essa pena e as de cá de baixo, Boaventura sublinha

a especificidade do Purgatório. Há nisto, sem dúvida, o eco das teorias

sobre a proporcionalidade da pena purgatória de Alexandre de Hales,

que foi na realidade o seu autor. Boaventura trata a seguir de um problema

que preocupou todos os grandes escolásticos, o do carácter voluntário

296

ou não da pena do Purgatório, ocupando a vontade nos seus sistemas um

lugar de eleição. É o caso de Boaventura que, no terceiro dos seis graus da

contemplação definidos pelo Itinerário do espírito em direcção a De~s

mostra a alma que «vê brilhar em si a imagem de Deus, porque nos tres

poderes, memória, inteligência e vontade, ela vê Deus por si mesma como

na sua imagem» (J.-c. Bougerol).

Todos os grandes escolásticos, sob formulações diversas decorrentes

dos seus sistemas particulares, atribuem à pena do Purgatório apenas um

carácter voluntário limitado porque, depois da morte, como estabeleceu

Alexandre de Rales, o livre arbítrio está imóvel e o mérito é impossível.

Para os teólogos, os pecados veniais são remidos no Purgatório quanto ~

pena (quoad poenam) mas não quanto à culpa (quoad cumpam) que e

remida no próprio instante da morte. Tomás de Aquino, que segue

Lombardo à letra, ensina no seu Comentário às Máximas que «na outra

vida, o pecado venial é remido mesmo quanto à culpa pelo fogo do

Purgatório àquele que morre em estado de graça I?orque essa pena,

sendo de certo modo voluntária, tem a virtude de expiar todas as culpas

compatíveis com a graça santificante». Volta a esta posição .no De mal~

onde considera que o pecado venial já não existe no Purgatóno; quanto a

culpa, essa foi apagada por um acto de caridade perfeita no momento da

morte.

Sobre o problema do carácter voluntário da pena do Purgatório, Bo.aventura

pensa que ela é minimamente voluntária {minimam habet rattonem

voluntarii), pois a vontade «tolera-a» mas «deseja o seu opos~o»,

quer dizer, a sua cessão e a recompens~ .celeste 21 .,A pergunt~ seguinte

tem a ver com as relações entre Purgatono e Paraíso: «Haverá na pena

do Purgatório menos certeza de glória do que no caminho?22», quer dizer

aqui em baixo, onde o homem é um viato~, ~m peregrino? (\0 que Boaventura

responde: «Há mais certeza da glona no Purgatono do que no

caminho mas menos do que na pátria.» Trata-se aqui do Purgatório como

esperança e Boaventura vai de certa maneira além da esperança, u~a

vez que fala de certeza; mas introduz graus na certeza. Segue a concepçao

fundamental do .Purgatório como «~édio», ,in~ermédio, e disti~§~e duas

fases, se não dois lugares, no Paraíso: a patria (o tet;n? pama. ~ esta

concepção aparecem noutros autores) que parece p~oxlm~ d~ ideia do

seio de Abraão que se encontra no repouso, e a gloria que e simultaneamente

a fruição da visão beatífica e, de certa maneira, a «deificação» do

homem cuja alma recuperou o corpo ressuscitado e agora «glorioso».

Boaventura introduz aqui uma questão muito interessante para nós

porque o faz entrar no domínio do imaginário, tão importante na história

vivida do Purgatório. Responde à pergunta de saber «se a pena do

Purgatório é infligida pelo desempenho (ministerio) dos demônios»: «A

pena do Purgatório não é infligida pelo ministério dos demónios nem dos

297



anjos bons, mas é provável que as almas sejam conduzidas ao Céu pel

anjos bons e ao Inferno pelos maus.»

Assim Boaventura considera o Purgatório uma espécie de lug

neutro, um no man 's land entre o dominio dos anjos e o dos demônioa

~a~ si~ua-o - ,na perspectiva dessa desigualdade na igualdade, na equl~

distância, que e uma estrutura lógica fundamental no espírito dos hom.

da sociedade feudal - do lado do Paraíso, na medida em que, para os doll

rei~o.s~como dirá Dante, os condutores das almas são os anjos bons,

Opinião que está portanto em contradição com a maioria das visões do

além, com o Purgatório de S. Patrick designadamente. O Purgatório in••

tala-se num clima de dramatização das crenças cristãs do século XIII. ESII

clima provém sobretudo do conflito entre uma concepção não infernal, li

não quase paradisíaca, dominante, pareceu-me, no fim do século XII,

apesar do negrume das visões, e aquilo a que Arturo Graf chamou

uma «infernização» progressiva do Purgatório no decurso do século. A

este respeito, Boaventura é tradicional.

E é-o também no que toca à localização propriamente dita do

Purgatório. «O lugar do Purgatório é em cima, em baixo, ou no meio?»

(superi'fS. ~ inferius an in medio). A resposta, original, é: «O lugar do

Purgatório e ~rovavelmente, segundo a lei comum, em baixo (inferius),

mas e no meio (medius) segundo a economia divina (disperuationem

divinam} » Notemos primeiro que, tal como na pergunta anterior sobre

os anj~s e os demónios, se está no campo das opiniões, das probabilidades,

nao das certezas. Em tudo o que respeita ao imaginário e ao

concreto, os grandes escolásticos esquivam-se mais ou menos. Mas a

opi~ião de Bo~ventura é muito interessante, pois aproxima (mesmo

venfica,n~o a dlf~rença, se não a oposição) uma lei comum, que situa o

Purgatono debaixo da terra, de um plano divino que o coloca numa

posição média, segundo a lógica do novo sistema do além. Funciona

pois, entre dois planos, o da lei comum e o da economia divina dualidade

que. é t~mbém a que existe entre a tradição e a tendência teológica. As

hesitações de Boaventura em relação à localização do Purgatório encontram-se

em duas outras passagens do Comentário sobre o Livro IV das

Máximas.

Debruçando-se sobre o fogo do Purgatório e glosando por sua vez a

glosa de Lombardo sobre a primeira epístola de Paulo aos Coríntios, 111,

15 24 , Boave~tura combate a opinião segundo a qual esse fogo teria um

valor purgativo espiritual além do seu valor punitivo, e purgaria pois do

pecado (venial ou não), quer dizer da culpa, à maneira de um sacramento.

Em defesa da sua recusa de ver no fogo do Purgatório uma força nova

(vis nov~) além da punição, recorre ao testemunho de Gregório, o Grande,

ao situar a purgação de muitas almas em lugares diversos (per diversa

loca), dependendo a purificação da culpa apenas da graça. É pois o evo-

298

Ulr da tradição gregoriana da localização da purgação cá em baixo no

mundo, nos locais do pecado.

Já na sexta questão do destaque XX, Boaventura evocara um outro

CIlSO de localização do Purgatório, o do Purga.tório de S. Pat~ick. Des!a

visão concluía ele que o lugar de purgação podia depender da ~ntercessao

de um santo, pois, segundo ele, «alguém» obtivera de S. Patnck ser punido

em determinado lugar da terra, do que nascera a lenda de que o

Purgatório era aí (in quodam loco in terra, ex quo fabulose ortum est,

quod ibi esset purgatorium). Mas a sua conclusão m~smo era que, pura

e simplesmente, havia diversos locais de purgação. ASSim,ao ~ar testemunho

da popularidade do Purgatório de S. Patrick., ele consl~erava que

essa localização, talvez verdadeira em casos particulares, nao pa~s~~a

de uma fonte de «fábulas». O que não era, como veremos, a opimao

de um cisterciense como César de Heisterbach. Aqui está a desconfiança

de um intelectual em relação à literatura folclórica das visões do Purgatório.

Boaventura retoma o problema da localização do Purgatório na questão

clássica dos «receptáculos das almas», no artigo I do destaque XLIV

do livro IV 25 . Distingue cuidadosamente a geografi~ do além ante~ e d~pois

da vinda do Cristo, a Encarnação. Antes de Cnsto o Inferno I~clwa

dois andares de um lugar em baixo (Iocus tnfimus) onde se sofna ao

mesmo tempo a pena dos sentidos (castigos ~at~riais) e a ~na ~a perda

(a privação da visão beatífica) e um lugar inferior (locus inferior] m~s

colocado por cima do anterior, onde só se sofria a pena da perda. São

os limbos (limbus, o limbo, dizia-se na Idade Média, fos~epara defi~ir um

só, fosse para distinguir vários) que compreendem o limbo das crianças

pequenas e o limbo dos patriarcas ou seio de Abraão).

Depois da vinda do Cristo há quatro (o sublinhado é m~u).lug~res:.o

Paraíso o Inferno o Limbo e o Purgatório. Se bem que a ideia nao seja

ex.plicit~mente en~nciada, tem-se a impressão de que o Purgat~rio é uma

consequência de Encarnação ligada à remissão d~s pecados e.instaurada

pela vinda do Cristo. Por outro lado, só res.ta o limbo das cnanças,. ~as

daí resulta um conjunto de quatro lugares VIStoque Boaventura o distingue

nitidamente do Inferno (enquanto Alberto, o Grande, por exemplo e

como veremos, articula Inferno e limbo). Boaventura prossegue com a

sua exposição cruzando, como gosta de fazer, o sistema dos quatro lugares

com outro sistema, este ternário e abstracto, o de um «est~do triplos

do lado dos eleitos: estado de remunerapdo (traduza-se: Paraíso}, estado

de espera no repouso (quietae expectationis, traduza-~e: o seio de Abraão ~

e um estado de purgação (traduza-se: o Purgatono). E a~rescent~.

«Quanto ao estado de purgação, a ele corresponde um lugar indeterminado

em relação a nós e em si (locus indeterminatus et quoad nos et quoad

se), pois nem todos são purgados no mesmo lugar, ainda que provavel-

299



mente muitos o sejam num determinado lugar.» E invoca aqui a autori

dade do seu autor preferido, Agostinho.

Em su~~, Bo~vent~ra não tem uma .ideia precisa sobre a localização

do Purga tono. Dir-se-is estarmos a OUVIrum teólogo indeciso do século'

XII como Hugo de Saint-Victor, mas com uma consciência mais perfeita

da complexidade do. problema. Boaventura tem, no entanto, de admitir a'

crença cada vez mais firme num único lugar, que para ele é apenas um

lugar de um grande .núm~ro, deixando subsistir uma multiplicidade de

lugar~s. de purgaçao lOclwn~o este mundo cá em baixo, como pretendia

Gregório, o Gr~nde. Perplexidade perante autoridades divergentes? Princípalmente,

creio eu, repugnâ~cia de fazer ~o Purgatório mais um lugar

~o que um estado, estado que e decerto preciso localizar mas numa loca.

li~~ção a~st,r~cta, atomizada numa multiplicidade de lugares materiais

alias provisonos.

Perguntando-seê" se é possível beneficiar de «reduções de pena» (re.

laxationes} quando se está no Purgatório ou somente quando se vive

neste mundo, Boaventura é levado a insistir, na linha de Alexandre de

Hal,e~, no poder d~ Igreja em geral e do Papa em particular sobre o Purgat~no.

T~xt~ muito Importante sobre o percurso dos desenvolvimentos

~as indulgências e do poder pontifical sobre os mortos que Bonifácio VIII

maugurara quando do Jubileu de 1300.

, Boaventura vo!t~ a seguir ao fogo do Purgatório-", Interroga-se se ele

e corporal ou espiritual, ou mesmo metafisico, verifica a diversidade de

opl,nloes dos doutores, as hesitações do seu mestre Agostinho, mas conclui

apesar de tudo (vconcede») que se trata de um fogo «material ou

corporal», ~Este aspecto do problema vai ser retomado nas discussões

contemporaneas com os gregos, em que os franciscanos e o próprio Boaventura

largamente participaram 28 .

Em compe~saç~029, Boaventura toma posição firme e decidida (ao

trB:tar de !tultl, de imbecis, os que defendem a opinião contrária) sobre

a libertaçao das almas do Purgatório antes do Julgamento Final. Afirma

com vee~ência ~ .sua re~lidade - especialmente contra os Gregos _ na

perspe~ttva. da visao beatifica. Baseia-se nas autoridades e em argumentos

racionais. De entre as autoridades cita em primeiro lugar a frase de

Jesus na cruz para o bom ladrão: «Hoje tu estarás comigo no Paraíso»

(Lucas, XXIII, 43). Os três arg~mentos são interessantes: I) Não pode

haver element5' retar~ador d.epOls da purgação no Purgatório; parte-se

ma! ~ purgaçao esteja terminada, 2) Recusar a um mercenário o seu

s~lano e cometer um delito de justiça; mas Deus é o justo por excelênera,

~ desde que ache o homem em estado de ser retribuído, retribui-lhe

ll~edlatamente (referência muito interessante à justiça, na tradição do

secul? ~II, e ~o problema do salário justo no quadro de uma moral

economlCo-soclal que os escolásticos se esforçam por elaborar face ao

300

desenvolvimento do salariado). 3) Por fim o argumento psicológico:

.diar indefinidamente a esperança é crueldade; e se mantivesse os santos

.fastados da recompensa até ao dia do Julgamento Final, Deus seria

muito cruel.

É quase no fim do Comentário às Máximas que Boaventura trata dos

sufrágios'". Na linha um pouco modificada de Agostinho, distingue esscncialmente

três categorias de defuntos: os bons (bani) que estão no

Paraíso, os medianamente bons (mediocriter bani) e os inteiramente

maus. Responde da maneira que virá a ser clássica, que só os m~dianamente

bons podem beneficiar dos sufrágios dos vivos, mas precisa que

eles não estão em estado de merecer (in statu merendi), porque não existe

acréscimo de mérito depois da morte.

Depois de ter comentado, no contexto do seu ensino universitário, os

Quatro Livros das Máximas de Pedro Lombardo, Boaventura sentiu n~cessidade

de dissertar sobre o conjunto dos problemas, expondo ao teologo

as suas ideias de maneira mais pessoal como, por seu lado, fez Santo

Agostinho com a Súmula Teológica; o que veio a constituir, ent,re. 1254 e

1256, o Breviloquium. O lugar modesto que nele ocupa o Purgatono mos-

Ira que Boaventura julgava sem dúvida expressar ou ter expressado (a

anterioridade entre esta parte das obras é difícil de descortinar) o essencial

do que pensava a esse resp<:ito no seu Comentário sobre o Livro IV das

Máximas. No Breviloquium' ele esclarece, a propósito da pena do Purgatório

que, como «punitiva», ela se exerce por um fogo material e como

«expurgativa» manifesta-se por um fogo espiritual. . ,

A propósito dos sufrágios=, que não hesita em chamar de «eclesiásticos»,

manifestando assim o papel dominante da Igreja nest~ campo,

precisa sem rodeios que esses sufrágios são válidos «para os medlana~e~te

bons isto é, os que estão no Purgatório» mas ineficazes «para os mteiramente

maus, isto é, os que estão no Inferno» e «para os inteiram~nte

bons, isto é, os que estão no Céu», cujos méritos e preces trazem muitas

benesses aos membros da Igreja milítante'".

Finalmente Boaventura evoca o Purgatório em dois sermões para o

Dia dos Defuntos, o «dia das almas», 2 de Novembro. No primeiro ",

distingue os condenados, os eleitos e os que devem ser purgados (damnati,

beati, purgandi), Fundamenta a existência destes últimos, que inclui

entre os «imperfeitos», em diversas citações bíblicas ". No segundo sermão

faz sobretudo apelo à oração e refere-se à prece de Judas Macabeu

válida para aqueles que «sofrem atribui ações por causa dos seu~ pecados

inveterados no Purgatório, de onde serão, no entanto, transfendos para

as alegrias eternas», e interpreta alegoricamente as personagens de Judas,

Jonathan e Simão como «a oração fiel, ~i~~~es e hu~ilde pela ~ual são

libertados aqueles que estão no Purgatono ». Convinha terminar este

rápido exame das posições de Boaventura em relação ao Purgatório

301



com esta evocação da prece da qual o ilustre franciscano

maiores doutores ".

Entre os dominicanos

foi um dos

Continuemos em Paris mas recuemos alguns anos para examinar a

doutrina do Purgatório dos dois maiores mestres dominicanos: Alberto,

o Grande, e Tomás de Aquino. A cronologia não é sem importância neste

meio dos teólogos parisienses, mas mais vale talvez escolher outro contexto

que não o da sucessão dos ensinamentos em Paris. Uma linha doutrinária

dentro de cada uma das duas grandes ordens mendicantes é, sem

dúvida, o melhor fio condutor. Alberto, o Grande, dá o essencial das suas

ideias sobre o Purgatório entre 1240 e 1248. São vulgarizadas em 1268

por um discípulo seu, Hugo Ripelin de Estrasburgo. Marcaram a obra

original de outro discípulo de Alberto, esse um grande espírito, Tomás

de Aquino, que expõe a primeira vez a sua concepção do Purgatório

nas suas aulas em Paris, entre 1252 e 1256 (comenta as Máximas de Pedro

Lombardo quase ao mesmo tempo que Boaventura) e cujas ideias

serão passadas à escrita por um grupo de discípulos, após a sua morte

em 1274. Este «bloco» dominicano representa o supra-sumo do equilíbrio

escolástico entre os métodos aristotélicos e a tradição cristã, o «optimum»

da construção «racional» no ensino e no pensamento

universitários do século XIII. O génio doutrinário de Alberto e de Tomás

prolonga-se na vulgarização assegurada pelo Compendium de Hugo de

Estrasburgo e pelo Suplemento à Súmu/a Teológica de Reginaldo de Piperno

e seus colaboradores.

1. A depuração escolástica do Purgatório: A/berto, o Grande

Alberto de Lauingen, nascido cerca de 1207, ingressado nos Pregadores

de Pádua em 1223 mas formado em Colónia e noutros conventos

alemães e depois em Paris, onde é bacharel em Máximas de 1240 a

1242 e depois mestre de Teologia, aí ocupa uma das duas catedras dominicanas

na Universidade, entre 1242 e 1248 38 . É durante este periodo que

Alberto, leitor de Aristóteles mas ainda não verdadeiramente aristotélico,

compõe duas grandes obras teológicas, a Súmu/a das Criaturas (Summa

de creaturis) de que faz talvez parte um tratado, De Resurrectione, que

figura como tal nos manuscritos e data de antes de 1246 39 ; e um Comentário

às Máximas de Pedro Lombardo. Nestas duas obras Alberto trata do

Purgatório.

O De Resurrectione é talvez o equivalente de um tratado «De novissimis»,

dos «fins últimos», que teria constituído a terminação da Summa de

302

creaturis. Nos manuscritos onde foi conservado apresenta-se inacabado,

lerminando no Julgamento Final sem que se trate «da beatitude eterna,

das coroas eternas e da casa e das moradas de Deus» que haviam sido

anunciadas.

Após ter-se debruçado sobre a ressurreição em geral na primeira parte

e sobre a ressurreição do Cristo na segunda, Alberto aborda na terceira

a ressurreição dos maus. Os «lugares das penas», declara, são «o

Inferno, o Purgatório, o limbo das crianças e o limbo dos patriarcas».

Sobre a questão de saber se o Inferno é um lugar, Alberto diz que o

Inferno é duplo: há um inferno exterior que é um lugar material e um

inferno interior que é a pena sofrida pelos condenados, onde quer que

estejam; o lugar do inferno situa-se «no coração da terra» e lá as penas

são eternas. As «autoridades» citadas são sempre Agostinho, depois Hugo

de Saint-Victor e, sobre os problemas do lugar e do fogo, Gregório, o

Grande, e o Purgatório de S. Patrick. Sobre questões de lógica é invocado

Aristóteles.

Segundo o De Resurrectione o Purgatório é mesmo um lugar, situado

próximo do Inferno. É justamente a parte superior do Inferno. Se Gregório

e Patrick falam do Purgatório nesta terra é porque há casos de

aparições cá em baixo de almas do Purgatório que receberam permissão

especial para fazerem advertências aos humanos. Os textos de Hugo de

Saint-Victor e de S. Paulo (I, Coríntios, III), este último ilustrado com

comentários de Agostinho, afirmam que os pecados veniais são desfeitos

no Purgatório. Esta demonstração, que permite a Alberto recorrer às

subtilezas de uma demonstração lógica baseada em Aristóteles, é bastante

longa. A seguir, Alberto trata mais rapidamente da intensidade e da

natureza das penas do Purgatório. É de opinião que as almas do Purgatório

não sofrem penas inferiores porque beneficiam da luz da fé e da luz

da graça, e o que lhes falta é, provisoriamente, a visão beatífica; mas esta

privação não deve confundir-se com as trevas interiores. Os demónios

contentam-se com levar ao Purgatório as almas a serem purgadas, mas

não as purgam. Enfim, no Purgatório não existe pena do gelo (gelidicium)

, pois esta pena castiga a frieza na fé - o que não é o caso das almas

que devem ser purgadas. Alberto não menciona a pena principal que é o

fogo porque teve ocasião de a assinalar a propósito do Inferno, quando

feza distinção entre fogo do Purgatório e fogo do Inferno. Enfim, àqueles

que, como Agostinho, pensam que as penas do Purgatório são mais

«amargas» (o acerbitas) do que qualquer pena cá em baixo no mundo,

e a outros que pensam que em relação às penas do Inferno estas penas

não são mais do que é a imagem do fogo em relação ao verdadeiro fogo

ou um ponto em relação à linha, responde fazendo apelo à lógica e elevando

o debate. Chama em seu auxílio Aristóteles (Física, I, 3, c. 6 - 206b

11-12)que declara que só se pode comparar o que é comparável, ou seja,

303



o finito com o finito. Portanto o problema da acerbitas é de excluir. A

diferença entre o Purgatório e o Inferno não é uma questão de intensidade

mas de duração. Por outro lado, aquilo a que a alma aspira no Purga.

tório não é a reencontrar o corpo mas a reunir-se a Deus. Eis como se

deve entender Agostinho que não pensava no fogo do Purgatório. Esta

terceira parte do De Resurrectione termina com um tratamento de conjunto

dos lugares das penas (De locis poenarum simul). Nisto Alberto

mostra bem a consciência plena da unidade do sistema dos lugares do

além. Unidade material e espiritual: há uma geografia e uma teologia

do além.

Quanto ao problema dos «receptáculos das almas», Alberto considera-o

sob três pontos de vista.

O primeiro consiste em examinar se o receptáculo é um lugar definitivo

ou um lugar de passagem. Se é um lugar definitivo, dois casos há a

considerar: a glória e a pena. Se se trata da glória, só existe um lugar, o

reino dos céus, o Paraíso. Se se trata da pena, devemos distinguir um lugar

onde só existe a pena da perda, e que é o limbo das crianpas, e um lugar

com a pena da perda e a pena dos sentidos e que é a geena, o Inferno. Se o

receptáculo é apenas um lugar de passagem, então é preciso distinguir

entre pena da perda sozinha - (é o limbo dos patriarcas) e pena da perda

e pena dos sentidos simultaneamente, que é o Purgatório.

Um segundo ponto de vista consiste em apreciar a causa do mérito. O

mérito pode ser bom ou mau ou bom e mau ao mesmo tempo (bonum

conjuctum mala). Se é bom, é o reino dos céus que convirá. Se é mau, é por

causa de um pecado pessoal ou estranho (ex culpa propria aut aliena). Ao

pecado pessoal responde a geena, ao pecado estranho (o pecado original)

o limbo das crianças. Se é feito de uma mistura de bem e de mal, não pode

tratar-se de um mal mortal que seria incompatível com a graça que está

ligada ao bem. É portanto um mal venial que pode provir de uma falta

pessoal ou estranha. No primeiro caso ir-se-á para o Purgatório, no segundo

para o limbo dos patriarcas.

Por fim podemos partir do que há nos lugares. Estes lugares podem

ter quatro qualidades: serem aflitivos, tenebrosos, luminosos e letificantes

ou gratificantes (afflictivum, tenebrosum, luminosum, laetificativum), Se o

lugar é letificante e luminoso, é o reino dos céus. Se é aflitivo e tenebroso

porque não contém a visão beatífica, é o purgatôrio'"; se é directamente

tenebroso mas não aflitivo, é o limbo das crianpas; se é indirectamente

tenebroso mas não aflitivo, é o limbo dos patriarcas. Alberto dá-se conta

de que não esgotou todas as combinações possíveis entre as quatro qualidades

dos lugares, e demonstra <jue os casos de combinações referidos

são os únicos compatíveis entre si 1.

Descrevi demoradamente esta demonstração de Alberto, o Grande,

não só para mostrar o que a escolástica faz do Purgatório, o processo

304

de racionalização de uma crença que vimos nascer tanto pela imagem

como pelo raciocínio, pelos textos de autoridades como pelas descrições

fantásticas, por entre erros, lentidões, hesitações, contradições e que está

agora amarrada numa construção bem estreita - mas também porque,

melhor do que qualquer outro escolástico, a meus olhos Alberto soube

criar a teoria do sistema do Purgatório tal como ele nascera mais ou

menos empiricamente meio século antes.

Este texto apresenta outros interesses. Alberto sabe harmonizar melhor

do que ninguém, dentro do sistema de uma crença como o Purgatório,

aquilo que depende da imaginação e aquilo que decorre da lógica, o

que vem das autoridades e o que é trazido pelo raciocínio. Põe os diabos

fora do Purgatório mas deixa-os chegar à beira dele. Recusa o frio mas

aceita o quente, o fogo. Distingue um espaço interior e um espaço exterior,

a reconhece que o além é um sistema de lugares materiais. Refuta as

comparações grosseiras mas faz da comparação um elemento legítimo e

mesmo necessário à noção do sistema do além. Se existe vontade de depurar

o imaginário, não é por hostilidade de princípio, mas quando esse

imaginário é contrário à lógica, à verdade, ou ao sentido profundo da

crença.

Este texto mostra também que para Alberto é importante, se não

essencial, distinguir bem o Purgatório do Inferno. Também isto decorre

para ele do sistema. O Purgatório corresponde a um certo estado de pecado,

aquele em que o mal se mistura com o bem. Daí resulta primeiro

que o sistema é no fundo tripartido e não «pentapartido» (aut est bonum

aut est ma/um aut bonum coninactum maio: ou o bem, ou o mal, ou o bem

unido ao mal). De onde resulta, sobretudo, que o Purgatório é um médio

descentrado, desterrado para o bem, para o alto, para o céu, para Deus,

porque o mal que ele implica é um mal venial, não mortal, enquanto o

rem é, como todo o bem, o da graça. E pois errado acreditar que toda a

ideia de Purgatório r.o século XIII foi no sentido da «infernização». Se,

como se verá, foi mesmo essa tendência que o Purgatório seguiu por fim,

é na opção por uma pastoral do medo feita pela Igreja institucional da

época - onde os inquisidores manipulavam a tortura simultaneamente cá

em baixo e no além - que se deve procurar a razão.

No Comentário às Máximas, que deve ter seguido de perto o De

Resurrectione, o tratamento dado por Alberto, o Grande, ao Purgatório

é mais completo, mais aprofundado e apresenta uma certa evolução. São

sempre, bem entendido, os destaques XXI e XLV do livro IV que dão

lugar à exposição sobre o Purgatório. Resumindo o comentário do mestre

dominicano, expo-lo-ei no seu desenvolvimento pois de novo ele valoriza

o cunho pessoal de Alberto e revela qual o percurso percorrido até

chegar a posições que nem sempre concordam exactamente com as do De

Resurrectione.

305



No destaque XXI 42 Alberto examina os seguintes pontos: é verdade

que há pecados depois da morte como disse Cristo no Evangelho:

«Aquele que pecar contra o Espírito Santo, isso não lhe será remido,

nem neste século nem no século futuro» (Mateus, XII, 32)? Esses pecados

são os pecados veniais a que Agostinho alude ao falar de madeira, de

feno e de palha (I Corintios, Hl; 12)?Deve acreditar-se que essa purgação

será feita por um fogo purgatório e transitório, e que esse fogo será mais

severo do que tudo que o homem possa sofrer nesta vida (Agostinho,

Cidade de Deus, XXI, 26) porque Paulo diz (I Corintios, lU; 15) que se

será salvo como através do fogo (quasi per ignem ), o que deveria levar a

desprezar esse fogo?

Alberto examina estas perguntas e responde-Ihes em doze artigos:

Artigo primeiro: Serão alguns pecados veniais remidos depois desta

vida? A resposta é afirmativa e baseia-se nas autoridades, designadamente

em Gregório, o Grande, no livro IV dos Diálogos, e em argumentos dos

quais retenho dois: 1) depois da morte já não é altura para aumentar o

mérito mas sim para utilizar o mérito (adquirido cá em baixo) nos fins

para os quais ele é pertinente; 2) a própria pena da morte apagaria os

pecados se fosse cumprida para esse fim, como sucede com os mártires,

mas não é esse o caso com os moribundos vulgares (in aliis communiter

morientibus). O Purgatório está estreitamente ligado à conduta geral cá

em baixo no mundo e é feito para o comum dos mortais.

Artigo 2: Que significa a edificação da madeira, do feno e da palha

(paulo, I Corintios, lU; 12)? Resposta: as diferentes espécies de pecados

veniais. Autoridades invocadas: S. Jerónimo e Aristóteles.

Artigo 3: Qual é o alicerce desses edificios? Parece que não pode ser a

fé, visto que a fé só está virada para as boas obras e os pecados veniais

não são boas obras. Resposta: no fundo, o alicerce é mesmo a fé que

conserva em nós a esperança. Os materiais dão ao edifício a sua substância,

mas quanto às paredes, é a esperança inclinada para as coisas eternas;

e no topo está o amor (charitas) que é o lugar da perfeição. A reflexão

sobre o Purgatório implanta-se assim sobre uma teologia das virtudes

fundamentais.

O artigo 4 é crucial para Alberto. Trata-se, com efeito, de responder à

pergunta: «Há ou não um fogo purgatório depois da morte?» De facto,

como Lombardo não conhecia ainda o Purgatório, responder a esta pergunta

era comprometer-se, ao mesmo tempo, com a existência do Purgatório

e com a do fogo purgatório, tanto mais delicada quanto está no

centro dos debates contemporâneos sobre o Purgatório com os Gregos,

e quando os «doutores do Purgatórios (a expressão é minha, não de

Alberto), Agostinho e Gregório, o Grande, duvidaram desse fogo.

Alberto, depois de examinar um certo número de autoridades e de

objecções racionais, responde repetindo: «É a isso que chamamos Purga-

306

tório» Retoma o versículo de Mateus, XII, 31-32, o texto de Paulo, I

Corintios, IH, 15, acrescenta-Ihes o testemunho de um narrador grego

anônimo que, num espírito ecuménico, faz contribuir para um acordo

sobre a existência do fogo purgatório depois da morte, utiliza também

Aristóteles e, feito notável, o santo Anselmo do Cur Deus homo, traçando

assim em proveito da existência do Purgatório uma impressionante

linha filosófica e teológica, desde os antigos gregos até ao século XII Iatino

e grego. Aborda em seguida, como é seu hábito e como fazem geralmente

os escolásticos, os argumentos racionais, enumerando as vantagens

de uma purgação depois da morte.

A todas as objecções Alberto responde misturando habilmente o adjectivo

(purgatorius,fogo subentendido) e o substantivo purgatorium: «De

qualquer maneira é necessário, segundo a razão e a fé, que haja um (fogo)

purgatório (purgatorius), Estas razões são principalmente morais e delas

resulta, de maneira concordante, que existe um Purgatório (purgatorium).»

Quanto às hesitações de Agostinho, Alberto afirma que elas não' diziam

respeito à existência do Purgatório mas à interpretação do texto de

S. Paulo. Lembra que, por outro lado, outros santos falaram expressamente

do Purgatório e que negar a sua existência é uma heresia. Alberto,

seguido pelo seu discípulo Tomás de Aquino, vai neste ponto mais longe

do que qualquer outro teólogo do seu tempo.

No que diz respeito às razões «morais», Alberto não se refere ao fogo

e volta aos problemas da purgação. Desfaz as objecções contra o Purgatório

refutando o paralelismo entre o bem e o mal, acrescentando à balança

da justiça o peso do amor e afirmando que Deus «depois da morte

só recompensa o que se lhe assemelha pelo amor e não condena senão os

que se desviaram dele e o odeiam ... Nenhum dos que são purgados será

condenado.»

O artigo 5 responde a uma pergunta ao mesmo tempo teórica e prática:

«Porque é que as penas do Inferno têm vários nomes e as do Purgatório

só um, que é o fogo?» É que, segundo Alberto, o Inferno é feito para

punir e há muitas maneiras de punir, por exemplo pelo frio assim como

pelo calor. O Purgatório, em compensação, que é feito para purgar, não

pode fazê-lo senão com um elemento que tenha força purgativa e consumptiva.

Não é o caso do frio mas é o caso do fogo. Aqui Alberto faz

visivelmente apelo ao seu gosto pelas ciências naturais.

Depois de no artigo 6 ter completado a sua exegese da primeira

epístola aos Corintios, a propósito do ouro, da prata e das pedras preciosas,

e recorrendo também ele à distinção aristotélica entre a luz, a

chama e a brasa, Alberto aborda no artigo 7 o problema da purgação

voluntária e involuntária. Conclui que as almas querem ser purgadas e

salvas mas que querem ser purgadas no Purgatório só porque não têm

307



outra possibilidade de serem salvas e libertas. A sua vontade é condicionada.

O artigo 8 diz respeito aos pecados veniais dos condenados. Parece um

exercício escolar: os condenados são-no para todo o sempre não pelos

seus pecados veniais mas pelos seus pecados mortais.

O artigo 9 apresenta, como em Boaventura, a questão de saber se as

almas no Purgatório são punidas pelos demónios. Como o doutor franciscano,

Alberto pensa que os demónios não são os ministros dos pecados

do Purgatório, mas não tem a certeza. Em compensação, avança uma

hipótese interessante para as visões do além: pensa que os demónios se

deleitam com o espectáculo das penas das almas do Purgatório e que por

vezes assistem a ele. «E, diz ele, o que se lê às vezes», e explica assim uma

passagem da Vida de S. Martinho. Havia quem sustentasse que, como

segundo essa Vida, o diabo ficava muitas vezes à cabeceira do santo, e

sabia, segundo as suas obras, que ele não seria condenado, era por isso

que esperava poder levá-I o para o Purgatório quando morresse. A hipótese

de Alberto destrói esta interpretação.

O artigo 10 trata longamente - a actualidade obriga ... - do «erro de

alguns gregos que dizem que ninguém entre no Céu ou no Inferno antes

do dia do Julgamento, e antes fica em lugares intermédios (in locis mediis)

à espera de ser transferido (após o Julgamento) para um ou para

outro».

No fim de um debate em que expõe demorada e objectivamente as

concepções dos gregos, Alberto conclui que sem dúvida alguma se pode

ir para o Céu ou para o Inferno quer logo a seguir à morte quer entre a

morte e o Julgamento Final - o que legitima o tempo do Purgatório e

permite acreditar que as almas saem de lá mais ou menos depressa, o

que, por sua vez, justifica os sufrágios. Alberto baseia a sua conclusão,

em que repete que a recusa desta opinião é uma heresia e até uma heresia

muito grave (haeresis pessima}, no Evangelho (Lucas, XXV, 43 e XVI,

22), no Apocalipse (VI, lI) e nas epístolas de Paulo (Hebreus, Il, 40) e

ainda em argumentos racionais, como de costume. Entre estes argumentos

retenho um especialmente interessante para o contexto sócio-ideológico

da época. Do lado grego argumenta-se que os mortos formam uma

comunidade e que, à maneira das comunidades urbanas onde se decide

em comum (in urbanitatibus in quibus in communi decertatur'l ), a decisão

para o conjunto dos eleitos e dos condenados tem de ser tomada e executada

no mesmo momento. Alberto, por seu turno, faz notar que não é

justo não dar aos trabalhadores (operarii ) o seu salário logo que tenham

acabado de trabalhar e recorda que se vê (videmus ) a pessoa que contratou

trabalhadores agrícolas dar um prémio (consolatio specialis) aos trabalhadores

melhores'". Ora - é uma ideia cara a Alberto - se se fala de

salário justo (problema teórico e prático do seu tempo), não se deve es-

308

quecer que Deus é supremamente justo. Ser-se-ia tentado a dizer que ele é

() mais justo dos patrões, dos «dadores de trabalho».

Os artigos 11 e 12 tratam da confissão e não falam do Purgatório mas,

ao evocarem os problemas da culpa (culpa), os pecados mortais e veniais,

tocam nele indirectamente. Encontramos aqui o contexto penitencial em

que, de Lombardo a Alberto, o Grande, se desenrolou o debate teológico

Nobreo novo Purgatório.

É no artigo 45 da primeira parte do destaque XLIV deste comentário

que Alberto, o Grande, nos dá a melhor exposição, que seja do meu

conhecimento, do sistema geográfico do além no século XIII.

A questão posta é: «Há cinco receptáculos para as almas depois de

ficarem separadas dos corpos?». A solução é a seguinte: «A isso devo

dizer que os receptáculos das almas são diversos e diversificam-se assim.

São um lugar de desfecho ou de passagem. Se se trata de um lugar

de desfecho, são dois: segundo o mau mérito o Inferno, segundo o bom

mérito o Reino dos Céus. Mas o desfecho segundo o mau mérito, quer

dizer o Inferno, é duplo segundo o mérito próprio e segundo um pacto

com a natureza; ao primeiro caso corresponde o inferno inferior dos condenados,

ao segundo o limbo das crianças, que é o inferno superior ... Se se

trata de um lugar de passagem, isso pode resultar da falta de mérito

próprio ou da falta de pagamento do preço ... No primeiro caso é o

Purgatório, no segundo o limbo dos patriarcas antes da vinda do

Cristo'".»

Portanto, só há de facto três lugares: o Paraíso, o Inferno, que se

desdobra em geena e em limbo para as crianças (em vez do antigo inferno

superior que prefigurava o Purgatório), e o Purgatório (também ele

ligado a uma outra metade, o limbo dos patriarcas; mas este está vazio e

fechado para sempre depois da descida do Cristo).

Solução elegante para o problema dos três e dos cinco lugares, obtida

por uma argumentação puramente abstracta, ainda que, evidentemente,

haseada na Escritura e na tradição. Enfim, no artigo 4 do destaque XLV

sobre os sufrágios dos defuntos, Alberto reafirma a eficácia dos sufrágios

pelos defuntos do Purgatório, lembra que eles dependem do foro da Igreja,

sublinha que o amor da Igreja militante (charitas Ecc/esiae militantis)

é a fonte dos sufrágios e que se os vivos podem fazer com que os mortos

beneficiem com os sufrágios, a inversa não é verdadeira'". r

Aprecia-se o enriquecimento desde o De Resurrectione. E certo que a

natureza da obra conduzia Alberto mais ou menos para aí: partir de

Lombardo levava-o a reencontrar o laço com o meio do nascimento do

Purgatório, com a teologia dos sacramentos e da penitência, e a evocação

dos sufrágios impunha o tema da solidariedade entre os vivos e os mortos.

Mas sente-se que o pensamento de Alberto se aprofundou entretanto.

A obrigação de produzir provas da existência do Purgatório faz com que

309



exponha novos argumentos. O seu processo das «autoridades» enriqueceu-se

e diversificou-se. A sua exegese dos textos, especialmente da primeira

epístola de Paulo aos Corintios, degradou-se. Quando considera o

que se passa no Purgatório concentra-se mais no processo da purgação

do que nas penas. Trata mais longamente o tempo do Purgatório abordando

a duração das estadas individuais mais ou menos longas, enquanto

no De Resurrectione se contentara com dizer que o Purgatório duraria até

ao Julgamento Final mas não para além dele. Ao falar dos sufrágios

invoca a comunhão dos santos e recorre a comparações que inserem o

texto numa visão aguda das realidades económicas, sociais, políticas e

ideológicas do seu tempo. Enfim, reúne numa só exposição o sistema

dos lugares do além, e ao precisar que o limbo dos patriarcas só existiu

até à vinda do Cristo, reduz o sistema dos cinco lugares a quatro e na

realidade a três, quer dizer à lógica profunda da geografia do outro mundo

cristão.

Alberto, o Grande, é, entre os eclesiásticos, aquele que mais clara e

firmemente tratou o Purgatório e que, talvez à custa de alguns silêncios e

de algumas habilidades, lhe deu um estatuto teológico, se assim posso

dizer, elevado, sem se opor às crenças comuns nem defender teses incompatíveis

com elas.

2. Um manual de vulgarizacão teológica

A sua influência prosseguiu através da obra de vulgarização teológica

de um dos seus discípulos que, aliás, foi publicada com as obras completas

de Alberto. Refiro-me ao Compendium theologicae veritatis (Compêndio

da verdade teológica) elaborado pelo dominicano Hugo Ripelin,

superior do convento dos pregadores de Estrasburgo entre 1268 e 1269,

também chamado Hugo de Estrasburgo. Atribui-se-Ihe a data de 1268 47 •

No livro IV está explicada com clareza a geografia do além e o desaparecimento

do seio de Abraão a propósito da descida do Cristo aos

infernos.

Para se saber a que inferno Cristo desceu deve notar-se que inferno tem

dois sentidos e designa quer a pena quer o lugar da pena. No primeiro sentido

diz-se que os demónios trazem sempre o inferno consigo. Se inferno designa o

lugar da pena devem distinguir-se quatro (lugares). Há o inferno dos condenados

onde se sofre a pena dos sentidos e da perda (privação da presença

divina) e onde se encontram as trevas interiores e exteriores, quer dizer a

ausência de graça: é um luto eterno. Por cima encontra-se o limbo das crianças

onde se sofre a pena da perda mas não a dos sentidos, e lá existem trevas

exteriores e interiores.

310

Por cima deste lugar há o Purgatório (Hugo emprega o masculino

purgatorius e não o neutro purgatorium, subentendendo portanto locus, lugar)

onde existe a pena dos sentidos e da perda ao mesmo tempo, e há também

as trevas exteriores mas não as interiores, pois pela graça existe lá a luz

interior porque se vê que se será salvo. O lugar superior é o limbo dos pais

santos (dos-patriarcas) onde houve a pena da perda mas não a dos sentidos, e

também lá houve as trevas exteriores, mas não as trevas da privação da graça.

Foi a este lugar que o Cristo desceu e de lá libertou os seus, e assim «mordem)

o inferno, pois trouxe uma parte dele e deixou outra, mas no que toca aos

eleitos Deus destruiu completamente a morte, como diz Oseias, XIII, 14:

«Eu serei a tua morte, ó morte, serei a tua mordedura, Inferno.» Também

se chamava a este lugar ° seio de Abraão, o céu do empíreo, pois Abraão

está lá daqui em diante. Em nenhum destes lugares existe passagem para outro,

excepto outrora do terceiro para o quarto, quer dizer do Purgatório para

o limbo dos pais santos (patriarcasj'".

Se este texto lembra as concepções de Alberto, o Grande, nos Comentários

às Máximas, deve notar-se que o Purgatório é apresentado num

conjunto infernal e não está tão nitidamente separado do limbo das crianças,

que Alberto colava ao Inferno depois de ter afastado dele o Purgatório.

A este respeito, Hugo é mais conservador do que Alberto, e a sua

concepção revela o processo de «infernização» do Purgatório. Em compensação,

o seu esforço de racionalização coloca-se mais deliberadamente

numa perspectiva histórica, aliás fiel à do espírito de Alberto. O desaparecimento

histórico do seio de Abraão está muito bem realçado, mas

sabemos que não foi a descida do Cristo aos infernos (quer dizer, em

termos históricos positivos, os tempos evangélicos), que fez esbater-se

ou subir aos céus o seio de Abraão, mas sim o nascimento do Purgatório

na viragem do século XII para o século XIII.

No que respeita ao Purgatório, o essencial encontra-se no livro VII

Sobre os últimos tempos (de ultimis temporibus) onde preenche os capitulos

11 a VI entre o primeiro capítulo dedicado ao fim do mundo e os

capítulos que tratam do Anticristo'". O Compendium começa por afirmar

que o Purgatório é a esperança pois os que lá estão «sabem que não estão

no Inferno». Muitas razões, acrescenta ele, fazem com que tenha de

existir um Purgatório. Primeiro, como disse Agostinho, o facto de haver

três espécies de homens: os muito maus, os muito bons e os nem muito

maus nem muito bons que têm de se desembaraçar dos seus pecados

veniais pela pena do Purgatório. As outras seis razões dependem essencialmente

da justiça e da necessidade da purificação baptismal antes de se

fruir a visão beatifica. Mas logo que são purgadas, as almas voam para o

Paraíso, para a glória.

A pena do Purgatório é dupla: pena da perda e pena dos sentidos e é

muito severa (acerba). O fogo do Purgatório é simultaneamente corporal

311



e incorporal, não por metáfora mas por imagem, por semelhança «como

um leão verdadeiro e um leão pintado» ambos reais mas, como diríamos

hoje, com a diferença que separa um verdadeiro leão de um leão «de

papel».

Sobre a localização do Purgatório, Hugo remete ao que disse a propósito

da descida do Cristo aos infernos e acrescenta que, estando o Purgatório

situado, segundo a lei comum, num compartimento do Inferno,

certas almas podem, por dispensa especial, purgar-se em certos locais

onde pecaram, como revelam algumas aparições.

Os sufrágios da Igreja (cap. IV) servem não para se obter a vida eterna

mas para se ser libertado da pena, quer se trate de mitigação da pena quer

de uma libertação mais rápida. Há quatro tipos de sufrágios: a oração, o

jejum, a esmola e o sacramento do altar (missa). Estes sufrágios só podem

beneficiar aqueles que cá em baixo no mundo mereceram poder tirar

proveito deles após a morte. De uma maneira original e curiosa, o

Compendium acrescenta que os sufrágios podem também aproveitar aos

eleitos e aos condenados. Aos eleitos por acréscimo, pois a multiplicação

dos eleitos por adjunção das almas libertadas do Purgatório aumenta a

glória «acidental» do conjunto dos bem-aventurados. Aos condenados

por diminuição pois, em sentido inverso, a diminuição do número de

condenados aligeira a pena do seu conjunto. Se esta argumentação é especiosa

no que toca aos eleitos, parece-me absurda no que aos condenados

diz respeito. Aqui a máquina escolástica, ávida de simetrias, parece-

-me ter descarrilado.

Enfim, como fizera Boaventura, o Compendium declara que os laicos

não podem fazer os mortos beneficiar de sufrágios senão pela realização

de boas obras. Os beneficiários de indulgências não podem transferi-Ias

nem para os vivos nem para os mortos. Em compensação, o Papa e só ele

pode dispensar aos defuntos, ao mesmo tempo, indulgências por autoridade

e o sufrágio das boas obras por amor (charitas). Assim a monarquia

pontifical estende para fora do domínio do mundo cá em baixo o seu

poder sobre o além: passa a enviar - por canonização - santos para o

Paraíso e a subtrair almas ao Purgatório.

3. O Purgatório no centro da intelectualidade: Tomás de Aquino e o regresso

do homem a Deus

Esforcei-me por mostrar como alguns grandes escolásticos falaram do

Purgatório, afirmando com veemência a sua existência mas mantendo

algumas hesitações quanto à sua localização, mostrando-se discretos sobre

os seus aspectos mais concretos e concedendo-lhe um lugar relativamente

insignificante no seu sistema teológico. É ainda hoje delicado

312

definir em algumas páginas o lugar do Purgatório na mais completa estrutura

teológica do século XIII, a de Tomás de Aquino.

Tomás de Aquino tratou do Purgatório por várias vezes na sua

ubra 5o •

Tomás, filho do conde de Aquino, nascido no castelo de Roccasecca

na Itália do Sul no fim de 1224 ou no princípio de 1225, ingressado nos

dominicanos em Nápoles em 1244, faz os seus estudos em Nápoles, em

Paris e em Colónia com Alberto, o Grande. E quando é bacharel de

Máximas em Paris, entre 1252 e 1256, que elabora não um verdadeiro

comentário aos Quatro Livros de Máximas de Pedro Lombardo mas

um Escrito (Scriptum ), uma série de perguntas e debates sobre esse texto.

Nele fala evidentemente do Purgatório nas questões XXI e XLV no

livro IV. Definiu-se o plano do Scriptium de Tomás como resultante de

uma organização «totalmente centrada em Deus». É composto por três

partes: «Deus no seu ser, as criaturas como vindas de Deus, as criaturas

como regressadas a Deus".» A terceira parte, dedicada ao regresso (redditus),

desdobra-se. É no segundo painel desta terceira parte que se trata

do Purgatório.

Tomás trata também do Purgatório em vários escritos polémicos contra

os Muçulmanos, os Gregos e os Arménios e, de maneira mais genérica:

os pagãos, incluindo também provavelmente Judeus e hereges. São

leitos em Itália, a maioria em Orvieto, em 1263 e 1264: são o Contra

errares Grecorum (Contra os erros dos Gregos) composto a pedido do

Papa Urbano IV, o De rationibus fidei contra saracenos, Graecos et Armenos

ad Cantarem Antiochiae (Das razões de fé contra os Sarracenos, os

Gregos e os Arménios, para o chantre de Antioquia) e o livro IV da Summa

contra Gentiles (Súmula contra os pagãos). Falarei deles mais adiante

ao tratar do Purgatório nas negociações entre Gregos e Latinos.

O Purgatório aparece ainda no De Maio (Do Mal), debates travados

em Roma em 1266-1267. Tomás de Aquino morre a 7 de Março de 1274

na abadia cisterciense de Fossanova quando ia a caminho do 11concílio

de Lyon. Deixa inacabada a sua grande obra, a Súmula teológica (Summa

theologiae ) onde, à maneira de Boaventura no Breviloquium, mostra a sua

preocupação em retomar numa exposição mais pessoal (e, ao contrário de

Boaventura, muito mais vasta) os problemas abordados no Scriptum sobre

os Quatro Livros de Máximas de Pedro Lombardo. Um grupo de

discípulos dirigidos por Reginaldo de Piperno termina a Súmula acrescentando-lhe

um Suplemento tirado no seu essencial de escritos anteriores de

S. Tomás e mais especialmente do Scriptum. É esse o caso no que diz

respeito ao Purgatório que, fazendo parte da exposição sobre «os fins

últimos», aparecia quase no fim da obra.

Vou concentrar a minha análise no Suplemento reportando-me, quanc

caso do ror diISSO, ao S' cnptum 52.

313



Compreendo as objecções que esta escolha pode suscitar. O

Suplemento não é um texto autêntico de S. Tomás, mesmo tendo sido

redigido por discípulos conscienciosos e respeitadores, desejosos de utilizar

apenas textos do próprio Tomás. A montagem dos excertos deforma

o pensamento de Tomás e trai-o duplamente: tornando-o mais rigido e '

empobrecendo-o, fazendo de uma fase relativamente antiga da sua doutrina

o coroar do seu edificio teológico. Mas o Suplemento não tem apenas

a vantagem da citação textual e da coerência; representa aquilo que o

clero da Baixa Idade Média considerou ser a posição definitiva de Tomás

sobre os problemas do além.

A questão LXIX do Suplemento diz respeito à ressurreição e, em primeiro

lugar, aos «receptáculos das almas depois da morte» (é a questão I

do destaque XLV do comentário do livro IV das Máximas). Parece que 01

autores do Suplemento vêem o programa da Súmula duma maneira predominantemente

linear, marcada por sinais cronológicos do tipo «antes,

durante, depols'?». Na perspectiva do redditus, do regresso da criatura a-

Deus, orienta todo o processo a partir desse fim e não de uma trajectória

histórica. No capítulo seguinte tentarei explicar a ideia do tempo do Purgatório

para a massa dos fiéis do século XIII como sendo uma combinação

de tempo escatológico e de tempo sucessivo. De todos os grandes

escolásticos do século XIII, S. Tomás parece-me o mais alheio à experiência

comum dos homens do seu tempo no que respeita aos fins últimos.

E, na mais forte acepção do termo, um pensamento arrogante. Neste

pensamento de eternidade, o lugar de uma realidade tão transitória

como o Purgatório não é muito importante, tanto mais que lá a criatura

já não tem mérito. Tenho a impressão de que Tomás trata do Purgatório

como de uma questão imposta, uma «questão que está no programa»,

para usar a giria universitária, e não um problema fundamental. Usando

um vocabulário que não é o seu, direi que o Purgatório lhe parece

«vulgar».

Creio que devo manter na doutrina tomista do Purgatório a relativa

rigidez que lhe deu o Suplemento.

A questão da morada das almas depois da morte divide-se em sete

artigos: «I) Há determinadas moradas destinadas às almas depois da

morte? 2) Elas vão para lá logo depois da morte? 3) Podem sair de lá?

4) A expressão "o seio de Abraão" designa um limbo do Inferno? 5) Esse

limbo é o mesmo que o Inferno dos condenados? 6) O limbo das crianças

é o mesmo que o dos patriarcas? 7) Deve distinguir-se um número preciso

de receptáculos?»

À primeira pergunta Tomás responde pela afirmativa mas depois de

ter partido de duas opiniões aparentemente contrárias de Boécio (ea opinião

comum dos sábios é que os seres incorpóreos não estão num lugar»)

e de Agostinho (XII Super Genesim ad litteram) que são, como é sabido,

314

os seus pensadores cristãos preferidos. Aliás, dá dessa loc~lização uma

definição abstracta: «As almas separadas ... podem .ser.destinados cert?s

lugares corpóreos correspondentes ao seu grau de dignidade» e elas estao

lá «como num lugar» (quasi in loco). Voltam~s a encontrar o fam~so

quasi que recorda o quasi pe~ ignem de Ag~stl~h?, ~m compe~saçao,

de Aquino faz com que a mais elevada e mais dinanuca concepçao teológica

e a psicologia comum se encontrem, quando declara que «as almas,

pelo facto de saberem que tal ou tal lugar lhes está desti~ad?, ficam por

isso alegres ou tristes: é assim que a sua morada contribui para a sua

. 54

recompensa ou para o seu castigo ». _. _

No artigo 2, ele conclui - baseando-se na comparaçao da graVItaça~

dos corpos: «Como o lugar que é destinado a uma alma corresponde a

recompensa ou ao castigo que ela mereceu, logo que essa alma sal do

corpo ou fica submersa no Inferno ou voa. pa~a o ~~u, a menos que,

neste último caso, uma dívida para com a Justiça divina retarde o seu

. _ ,. 55

voo, obngando-a a uma purgaçao previa .»

No decorrer da discussão, para justificar a saída das almas do Purgatório

antes do Julgmento Final onde todos os corpos, cujas almas o tiverem

merecido se tornarão gloriosos em conjunto, ele declara, em resposta

aos argumentos dos teóricos da comunidade (os urbanitates de Albert~, o

Grande) e dos gregos: «A glorificação simultânea de todas as almas Impõe-se

menos do que a de todos os corpos.», ., , .

O artigo 3 trata dos espectros, esse grande capitulo do imagmano das

sociedades excessivamente ignorado até agora pelos historiadores 56 . T~más

de Aquino está visivelmente pr~ocupa?o com a nat~r~~ das apanções,

visões e sonhos, com a sua mamfestaça? durant~ a~gíhll; ou o son~,

com o seu carácter aparente ou real. A SOCIedadecnsta medieval dominou

maios seus sonhos e a respectiva interpretação 57 . Eleitos, condenados

e almas do Purgatório podem, segundo Tomás, que tem em conta,

ainda que com relutância visível, a literatura das visões: sair ~os seus

respectivos lugares no além e aparecer aos vivos. Deus so permite estas

saídas para instrução dos vivos e, no caso dos condenados e em men~r

grau das almas do Purgatório, para os aterrori~ar (ad terr~re?,,), Os eleitos

podem aparecer à sua vontade, os outros 80 com p~r~llss~o de Deus.

Tanto com os eleitos como com os condenados, as apançoes sao, graças a

Deus (sou eu que o digo, mas suponho não estar a forçar a opinião de

Tomás), raras: «Os mortos, se vão para o Céu, a sua união com a vontade

divina é tal que nada lhes parece permitido que não seja conforme com.as

disposições da Providência; se estão no Inferno, sentem-se de tal maneira

esmagados pelas suas penas que pensam mai~ em se lame~t~r do que em

aparecer aos vivos.» Restam aqueles q~e e~tao no Purgatório, como testemunha

Gregório, o Grande. Esses «vem Implorar sufrágios», I?~s também

a eles, como se verá, Tomás tem o cuidado de limitar ao mmimo os

315



passeios. Em compensação, a partida para o Céu das almas purgadas ne

Purgatório é normal.

Artigo 4: O seio de Abraão era bem um limbo do Inferno mas depois

da descida do Cristo aos infernos já não existe. Aqui Tomás segue 01

ensinamentos do seu mestre Alberto, o Grande. No artigo 5 ele precisa

que «o limbo dos patriarcas ocupava provavelmente o mesmo lugar que O

Inferno ou um lugar próximo, ainda que superior». O artigo 6 distingue O

limbo das crianças e o dos patriarcas. O primeiro ainda existe mas, como

essas crianças apenas são culpadas do pecado original, não são passíveis

senão das punições mais leves e o próprio Tomás interroga-se se, em vez

de punição, não se tratará de um atraso da glorificação (di/atio gloriae~.

No artigo 7 Tomás esboça uma tipologia dos receptáculos do além 8.

Primeira hipótese: «Se os receptáculos correspondem ao mérito ou ao

desmérito» deveria então haver duas moradas no além: o Paraíso para O .

mérito e outra morada :para o desmérito.

Segunda hipótese: «E num mesmo e único lugar que os homens durante

a vida merecem ou desmerecem.» É então possível admitir uma

mesma e única morada destinada a todos depois da morte.

Terceira hipótese: esses lugares devem corresponder aos pecados que

podem ser de três espécies: original, venial e mortal. Deveria então haver

três receptáculos. Pode também pensar-se no «ar tenebroso que é representado

como a prisão dos demónios» e no Paraíso terrestre onde se

encontram Henoch e Elias. Há, portanto, mais de cinco receptáculos.

O que não é tudo. Pode ainda pensar-se que é preciso um lugar para a

alma que deixa o mundo só com o pecado original e pecados veniais. Não

pode ir para o céu nem para o limbo dos patriarcas visto que não possui a

graça, nem para o limbo das crianças visto que lá não existe pena dos

sentidos, devido ao pecado original, nem para o Purgatório porque não

se fica lá sempre, quando lhe é devida uma pena eterna, nem para o

Inferno, visto que só o pecado mortal condena a ele. Curiosa hipótese

que leva em conta o limbo dos patriarcas que foi definitivamente fechado

pelo Cristo e que concebe o pecado venial como uma culpa não remível

depois da morte, não dependendo do Purgatório.

Mas, como os receptáculos correspondem ao mérito e ao desmérito

dos quais existe um número infinito de graus, pode também distinguir-

-se um número infinito de receptáculos para o mérito ou para o desmérito.

Também não se pode excluir que as almas sejam punidas cá em baixo nos

locais onde pecaram. E assim como as almas em estado de graça mas

carregadas de pecados veniais têm uma morada especial, o Purgatório,

distinto do Paraíso, também as almas em estado de pecado mortal mas

que realizaram algumas obras boas pelas quais deveriam ser recompensadas,

devem ter um receptáculo especial, distinto do Inferno. Enfim, assim

como, antes da vinda do Cristo, os Pais esperavam a glória da alma,

316

esperam agora a glória do corpo. Assim como esperavam num receptáculo

especial antes da vinda do Cristo, deveriam agora esperar noutro

lugar diferente daquele para onde irão após a ressurreição, ou seja, o Céu.

Depois de percorrer assim as hipóteses, Tomás dá a sua solução: os

receptáculos das almas são diferentes conforme os seus diferentes estados.

Aqui Tomás usa um termo, status, que vai conhecer grande êxito no século

XIII; designa tanto as diversas condições socioprofissionais dos homens

cá em baixo, como os diferentes estatutos jurídicos, espirituais e

morais dos indivíduos. A sua principal referência é de natureza jurídica.

Detecta-se nela a influência do direito sobre a teologia. As almas

em estado de receber no momento da morte a recompensa final em

bem vão para o Paraíso, as almas em estado de a receber em mal vão

para o Inferno, as que estão carregadas apenas com o pecado original

vão para o limbo das crianças. A alma cujo estado não lhe permite receber

a retribuição final vai para o Purgatório, se é por causa da pessoa; se é

.6 por causa da natureza iria para o limbo dos patriarcas, mas este já não

existe desde a descida do Cristo aos infernos.

Tomás justifica então esta solução. Baseando-se no pseudo-Dionísio e

em Aristóteles (Ética. 11,8, 14), afirma que «há uma única maneira de ser

bom, mas muitas de ser mau». Portanto, só há lugar para a recompensa

do bem, mas vários para os pecados. Como morada, os demónios não

têm o ar mas o Inferno. O Paraíso Terrestre refere-se ao mundo cá em

baixo e não faz parte dos receptáculos do além. A punição do pecado

nesta vida está fora de questão, pois não arranca o homem ao estado

de mérito ou de desmérito. Como o mal nunca se apresenta no estado

puro e sem mistura de bem e, reciprocamente, para atingir a beatitude,

que é o bem soberano, é preciso ser-se purgado de todo o mal, e se não for

esse o caso no momento da morte, tem de existir para essa purgação

completa um lugar depois da morte. É o Purgatório.

E Tomás acrescenta que aqueles que estão no Inferno não podem

estar privados de todo o bem; as boas obras realizadas nesta terra podem

valer aos condenados uma mitigação da pena. Sem o citar, Tomás lembra-se

aqui sem dúvida de Agostinho e da sua hipótese de uma «condenação

mais tolerável» para os «não inteiramente maus».

Existem assim quatro moradas abertas no além: o Céu, o limbo das

crianças, o Purgatório e o Inferno; e uma fechada, o limbo dos patriar-

CIlS. Se bem que a existência de um lugar para a purgação depois da

morte não lhe ofereça qualquer dúvida em si, Tomás não se interessa

pelo seu carácter intermédio mas pela sua existência temporária. Na

perspectiva de eternidade em que se coloca, só há três lugares verdadeiros

no além: o P .iraiso celestial, o limbo das crianças e o Inferno. De

lodos os sistemas escolásticos, o sistema tomista é o que tem a visão

mais completa e mais rica dos problemas respeitantes aos lugares do

317



-.------------11

além, mas é também o mais «intelectual», o mais distante da mentalidade

comum da sua época.

A questão LXX trata da condição da alma separada do corpo e da

pena que lhe é infligida pelo fogo corpóreo. Corresponde a uma parte

(questão XXXIII, artigo 3) do Scriptum sobre o destaque XLIV do livro

IV das Máximas de Pedra Lombardo. Nela Tomás defende a concepção

de um fogo corpóreo.

O Suplemento apresenta aqui uma questão sobre a pena devida ao

pecado original sozinho, quer dizer o limbo das crianças, e uma questão

sobre o Purgatório que os editores da edição leonina'" colocam em apêndice.

Têm sem dúvida razão, pois o projecto de Tomás não parece dever

inscrever-se nessa altura dos desenvolvimentos que interrompem o movimento

da exposição dos fins últimos no plano de conjunto da Súmula. E

sublinham ao mesmo tempo que o Purgatório não era uma peça essencial

no sistema da Súmula. Mas vou tratá-lo agora porque o meu propósito,

esse, centra-se no Purgatório.

A questão sobre o Purgatório apresenta oito perguntas'", I) Existe um

Purgatório depois desta vida? 2) As almas são purgadas e os condenados

punidos no mesmo lugar? 3) A pena do Purgatório excede qualquer pena

temporal nesta vida? 4) Essa pena é voluntária? 5) As almas do Purgatório

são castigadas pelos demónios? 6) O pecado venial é expiado pela

pena do Purgatório quanto à culpa? 7) O fogo purgatório liberta da imputação

da pena? 8) Desta pena uns são libertados mais depressa do que

outros?

A justiça de Deus, responde Tomás à primeira pergunta, exige que

aquele que morreu depois de se ter arrependido dos seus pecados e de

ter recebido a absolvição mas não terminou a sua penitência seja punido

depois da morte. Portanto «aqueles que negam o Purgatório falam contra

a justiça divina: é um erro que afasta da fé». O apelo aqui feito à autoridade

de Gregório da Capadócia surge como uma habilidade na polêmica

com os gregos. E Tomás acrescenta que «visto que a Igreja ordena

"que se reze pelos defuntos para que eles sejam aliviados dos seus pecados",

o que não pode visar senão aqueles que estão no Purgatório, quem

nega o Purgatório resiste à autoridade da Igreja e é herege». Adere assim

à opinião de Alberto, o Grande.

À segunda pergunta Tomás responde com uma geografia do além um

tanto diferente da topografia e dos argumentos apresentados na questão

XLIX que acabámos de ver. Esta diferença não parece ter incomodado os

autores do Suplemento, mas é uma razão mais para rejeitar esta questão

em apêndice, como fizeram os editores da edição leonina. Devemos agora

examinar esta outra hipótese da localização do Purgatório. «A Escritura

nada diz de preciso sobre a localização do Purgatório», nota Tomás, e

não existe argumento racional decisivo'". Mas, segundo as declarações

318

dos santos e as revelações feitas a muitos vivos, é provável que o lugar

tio Purgatório seja duplo. De acordo com «a lei comum», o lugar do

Purgatório é um lugar inferior (subterrâneo) contíguo ao Inferno e é o

mesmo fogo que queima os justos no Purgatório e os condenados, que

estão, no entanto, num lugar situado por cima. Segundo «a distribuição»

vê-seque alguns são punidos em diversos lugares cá em baixo «seja para

edificação dos vivos, seja para alívio dos mortos, que dão a conhecer aos

vivos a sua pena para que estes a suavizem com os sufrágios da Igreja.

Todavia, Tomás é hostil à ideia de que se faça o Purgatório no lugar onde

IIC pecou. E também aqui está visivelmente preocupado em restringir ao

mmnno , . a presença de espectros na terra 62.

Enfim, Tomás recusa a opinião dos que pensam que, segundo a lei

comum, o Purgatório está situado por cima de nós (ou seja, no céu), pois

IlS almas do Purgatório seriam intermediárias entre nós e Deus quanto ao

estatuto. Impossível, responde ele, visto que elas são punidas não pelo

que têm de superior, mas pelo que têm em si de inferior. Argument~

bem especioso, próximo do jogo de palavras, e que lembra as falsas etimologias

ao gosto do clero medieval. Seja como for, esta observação é

interessante porque mostra que Tomás participa na «infemização» do

Purgatório no século XIII, mas que havia membros do clero que pensavam

que o Purgatório não era subterrâneo mas quase celestial. São os

precursores de Dante que fará a montanha do Purgatório erguer-se sobre

u terra, em direcção ao céu.

Quanto à dureza da pena do Purgatório (terceira pergunta), Tomás

acha que tanto na pena da perda como na pena dos sentidos, «o grau

mínimo de uma e de outra ultrapassa a maior pena que se possa sofrer

cá em baixo». A dureza da pena do Purgatório não provém da quantidade

de pecado punido, mas da situação daquele que é punido, porque?

pecado é punido mais duramente no Purgatório do que cá em baixo. E

visível que Tomás não quer caucionar a ideia de que possa haver uma

relação quantitativa entre o pecado cometido cá em baixo e as penas

sofridas no Purgatório. Ainda que insista na justiça de Deus nestes problemas,

não fala de proporcionalidade. Não se compromete seja como for

na via de uma contabilidade do além.

Pensando, em resposta à quarta pergunta, que a pena do Purgatório é

voluntária, não porque as almas a desejam mas porque sabem que é a

maneira de serem salvas, Tomás refuta a opinião dos que julgam que

as almas do Purgatório estão de tal modo absorvidas nas suas penas

que não sabem que estas as purgam e supõem-se condenadas. As almas

do Purgatório sabem que serão salvas.

Como Alberto, o Grande, Tomás pensa que não são os demónios que

atormentam as almas do Purgatório, mas que é possível que eles as acompanhem

até lá e se deleitem a vê-Ias sofrer. É a resposta à quinta pergun-

319



ta. Às sexta e sétima questões Tomás replica que o fogo purgatório purga

de facto pecados veniais, mas aqui parece considerar esse fogo um fogo

metafórico. Sobre este ponto parece partilhar as hesitações de Santo

Agostinho.

Enfim, se Tomás responde afirmativamente à questão de saber se no

Purgatório alguns são libertados mais depressa do que outros (esboça

então um comentário a I Corintios, 111,10-15) e se desta vez emprega a

palavra «proporção», é para evocar, na apreciação da dureza das penas

do Purgatório, a intensidade e a duração ao mesmo tempo. Quer decerto

evitar que se instaure uma aritmética grosseira do tempo do Purgatório.

Retomando o fio da sua exposição sobre os fins últimos, os autores do

Suplemento põem Tomás, na questão LXXI, a tratar do problema dos

sufrágios pelos mortos com a ajuda da segunda questão do destaque quarenta

e cinco do Scriptum sobre o Livro IV das Máximas de Lombardo. É

o tratamento mais aprofundado que conheço desta questão, antes do

secu 'I o XIX 63 . T omas ' responde a catorze perguntas: 1) Os sufrágios por

um morto podem aproveitar a outro? 2) Os mortos podem ser ajudados

pelas obras dos vivos? 3) Os sufrágios feitos por pecadores podem aproveitar

aos mortos? 4) Os sufrágios feitos para os defuntos são úteis àqueles

que os fazem? 5) Os sufrágios são úteis aos condenados? 6) São úteis

aos que estão no Purgatório? 7) São úteis às crianças que estão no limbo?

8) São úteis aos bem-aventurados? 9) A prece da Igreja, o sacrificio do

altar e a esmola são úteis aos defuntos? 10) As indulgências concedidas

pela Igreja são-lhes úteis? 11) As cerimónias das exéquias são-lhes úteis?

12) Os sufrágios são mais úteis àqueles a quem se destinam do que aos

outros defuntos? 13) Os sufrágios feitos para muitos ao mesmo tempo são

tão úteis a cada um como se lhe fossem unicamente destinados? 14) Os

sufrágios comuns são tão úteis aos que não têm outros como os sufrágios

especiais e os sufrágios comuns aos que beneficiam de uns e de outros?

Eis o essencial das respostas de Aquino, sobretudo na perspectiva do

Purgatório, pela ordem que julgo não dever alterar com receio de me

afastar mais do pensamento de Tomás:

1. Os nossos actos podem ter dois efeitos: adquirir um estado, adquirir

um bem consecutivo a um estado, como uma recompensa acidental ou a

remissão de uma pena. A aquisição de um estado só pode conseguir-se

por mérito próprio. Assim é quanto à vida eterna. Em compensação, por

causa da «comunhão dos santos» (sanctorum communio), é possível oferecer

boas obras a outrem por uma espécie de doação: as preces conseguem-lhes

a graça, cujo bom uso pode dar a vida eterna com a condição

de que a tenham merecido por si mesmos. Equilíbrio admirável entre o

mérito individual e a solidariedade, a caridade colectiva.

2. «O laço de amor que une os membros da Igreja não vale só para os

vivos mas também para os defuntos que morreram em estado de amor

320

(charitas) ... Os mortos vivem na memória dos vivos... e assim os sufrágios

dos vivos podem ser úteis aos mortos». Ao afirmar isto, Tomás refuta

a opinião de Aristóteles segundo o qual (Ética, I, 11) «não há

comunicação possível entre os vivos e os mortos». Mas isto apenas serve

para as relações da vida civil, não da vida espiritual, baseada na caridade,

no amor de Deus «para quem os espíritos dos mortos estão vivos». É a

mais bela exposição que encontrei dos laços entre os vivos e os mortos a

propósito do Purgatório.

3. Sim, mesmo os sufrágios dos pecadores são úteis aos mortos porque

o valor dos sufrágios depende da condição do defunto e não do que está

vivo. Actuam, aliás, à semelhança dos sacramentos que são eficazes por si

próprios, independentemente daquele que actua.

4. Na sua condição de satisfatório (expiatório da pena) o sufrágio

passa a ser propriedade do defunto que é o único a poder beneficiar dele;

mas na sua condição de meritório da vida eterna, pela caridade de que

provém, pode ser útil àquele que o recebe e àquele que o dá.

5. Sim, segundo certos textos (designadamente 11Macabeus, XII, 40)

os sufrágios podem ser úteis aos condenados, mas Tomás pensa que se

deve entender a condenação no sentido mais lato, e que isso vale sobretudo

para a pena do Purgatório. De qualquer maneira, tem a ver com

milagre e deve acontecer raramente (talvez fosse o caso do imperador

Trajano). Tomás aproveita para refutar as opiniões de Corígenes de Prêvostin,

dos discípulos de Gilbert de Ia Porrée e de Guillaume d' Auxerre. E

refuta de novo, desta vez muito explicitamente, toda a ideia de proporcionalidade,

mesmo que apoiada por uma citação de Gregório, o Grande.

6. Os sufrágios são úteis aos que estão no Purgatório e são-lhes mesmo

especialmente destinados, pois Agostinho disse que os sufrágios se dirigem

aos que não são nem inteiramente bons nem inteiramente maus. E a

multiplicação dos sufrágios pode até anular a pena do Purgatório.

7. Estes sufrágios são inúteis às crianças mortas sem baptismo, que

não estão em estado de graça, pois não podem mudar o estado dos defuntos.

8. São também inúteis aos bem-aventurados visto que o sufrágio é

uma ajuda que não convém, portanto, àquele a quem nada falta.

9. A condição da utilidade dos sufrágios é a união no amor (charitas)

entre «os vivos e os mortos». Os três sufrágios mais eficazes são a esmola,

como principal efeito da caridade, a oração, o melhor sufrágio segundo a

intenção, e a missa, pois a eucaristia é a fonte de caridade e é o único

sacramento cuja eficácia é comunicável. As missas mais eficazes são as

que incluem preces especiais pelos defuntos, mas a intensidade da devoção

de quem a celebra ou a manda celebrar é essencial. O jejum também é

útil, mas menos, porque é mais exterior. O mesmo acontece com a oblação

de velas ou de óleo enaltecida por S. João Damasceno.

321



10. Sim, a indulgência é aplicável aos mortos pois «não há razão para

que a Igreja possa transferir os méritos comuns, fonte das indulgências,

para os,vivos e não para os mortos». Sobre este ponto a cautela de Tomás

falha. E demasiado «homem de Igreja».

11. Tomás é ainda mais liberal do que Agostinho de quem se reclama,

no que respeita à utilidade das pompas fúnebres. Agostinho dizia que

«tudo o que se faz pelo corpo dos defuntos de nada lhes serve para a

vida eterna, e não passa de um dever de humanídades'". Para Tomás o

cerimonial do enterro pode ser indirectamente útil aos mortos, dando

ocasião a boas obras a favor da Igreja e dos pobres, e incitando à oração

pelo defunto. Melhor ainda, sepultar um defunto num santuário ou num

lugar santo, com a condição de não ser por vã glória, pode valer ao morto

a ajuda do santo junto do qual tenha sido enterrado. Nisto, Tomás é bem

do seu tempo e da sua ordem. Dominicanos (e franciscanos) acolhem e

até atraem a sepultura dos laicos (principalmente dos poderosos e dos

ricos) para as suas igrejas e cemitérios, e os laicos procuram cada vez

mais o favor de beneficiar da sepultura nas igrejas, até aí reservada ao

clero e aos religiosos. Mas o mais interessante neste artigo é talvez o

facto de S. Tomás, apoiando-se num versículo de S. Paulo (Efésios, V,

29): «Ninguém odiou jamais a sua própria carne», declarar que «fazendo

o corpo parte da natureza humana, é natural que o homem o ame».

Está-se longe do desprezo monástico tradicional pelo corpo, «essa abominável

vestimenta da alma»65.

12. Apesar da comunhão dos santos, Tomás pensa que os sufrágios

são úteis principalmente àqueles a quem são destinados mais do que a

outros, porque para ele conta sobretudo a intenção do vivo que faz o

sufrágio, visto que o morto não pode já merecer mais. Não se deixa convencer

pelo argumento segundo o qual os ricos podem ser mais bem ajudados

por este sistema individual no Purgatório do que os pobres. A

expiação da pena, responde ele, não é quase nada em comparação com

a posse do reino dos céus, e aí os pobres são favorecidos.

13. «Aquele que reza não pode, com a mesma oração, satisfazer igualmente

vários ou um só.» Tomás inclina-se aqui decididamente para o

indivíduo, se não para o individualismo.

14. «Pode acreditar-se que,por efeito da misericórdia divina, o excedente

dos sufrágios especiais, superabundantes para aqueles a quem são

destinados, é aplicado a outros defuntos que estão privados de tais sufrágios

e que têm necessidade de ajuda».

Ao longo de todas estas questões, Tomás mostrou-se sensível aos problemas

da dívida, da transferência de bens. O seu vocabulário serve-se

naturalmente da terminologia jurídico-económica. Tomás recusa a contabilidade

do além mas não afasta dele certas transacções que lembram

mais o meio dos pequenos nobres endividados do que o dos comerciantes.

322

Será necessário dizer que o seu pensamento continua sempre fundamentalmente

religioso? Continua a preocupar-se mais com estados do que

com coisas, com condições do que com lugares, com ser do que com ter.

Falta completar ou matizar a exposição do Suplemento com a ajuda de

duas passagens das obras autênticas de S. Tomás que permitem também

observar a evolução do seu pensamento sobre este ou aquele ponto, desde

o Scriptum sobre as Máximas de Pedro Lombardo.

Na parte - a mais importante - da Súmula teológica escrita pelo próprio

Tomás, noto duas passagens em que se trata do Purgatório.

No artigo VIII da questão LXXXIX da primeira parte da Súmula

Tomás trata das aparições de mortos, dos espectros. Faz notar que estas

aparições se devem incluir entre os milagres de Deus que permite que elas

aconteçam quer por acção dos anjos bons, quer por acção dos demónios.

Tomás assemelha estas aparições às que se produzem em sonhos e sublinha

que nos dois casos elas podem suceder com o desconhecimento dos

mortos, que são no entanto o seu conteúdo. De facto, Tomás não evoca

aqui o Purgatório - ainda que fale dos sufrágios pelos mortos - e, curiosamente,

não faz alusão ao caso particular em que os espectros estão bem

conscientes da sua sorte e da sua condição de espectros, visto que vêm

implorar os sufrágios dos vivos. Sente-se aqui de novo a inquietação de

Tomás face a esses vagabundos do além a quem procura limitar tanto

quanto possível o número e a independência. São inteiramente manipulados

por Deus e não podem obter licença para sair do seu receptáculo ou

da sua prisão senão «por uma dispensa especial de Deus» (per specialem

Dei despensationem), A bem dizer, o mais interessante para a nossa pesquisa

é que Tomás reintegra aqui as suas teorias sobre a alma separada

(do corpo) numa reflexão sobre os lugares e as distâncias (distantia localis,

artigo VII desta questão LXXXIX). A separação é um obstáculo ao

conhecimento? Os demónios são favorecidos pela rapidez e a agilidade

dos seus movimentos (celeritas motus, agilitas motus)? Distância espacial

especialmente importante em relação à luz divina, mas também distância

temporal, pois as almas separadas poderão conhecer o futuro? Tomás, se

está reticente quanto a uma espacialização «vulgar» das situações no

além, está também consciente da importância de uma reflexão abstracta

sobre o lugar e o tempo ligados um ao outro mas segundo sistemas diferentes:

porque a distância espacial e a distância temporal não dependem

de uma mesma «razão» 66.

No artigo XI da questão VII do De Maio (Do Mal, 1266-1267) Tomás

pergunta-se ainda se os pecados veniais são remidos depois da morte, no

Purgatório. A sua resposta é, bem entendido, afirmativa, mas o que lhe

interessa é demonstrar que entre pecado mortal e pecado venial não existe

uma diferença de gravidade mas uma diferença de natureza. Por outro

lado, volta ao problema da culpa (culpa) e da pena. No Scriptum sobre

323



o livro IV das Máximas, ele pensara, como Lombardo, que «na outra,

vida o pecado venial é remido, mesmo quanto à culpa, pelo fogo do purgatório,

àquele que morre em estado de graça, porque essa pena, sendo de

certo modo voluntária, tem a virtude de expiar todas as faltas compatíveis

com a graça santificante». Mas no De Maio «o pecado venial já não existe

no Purgatório quanto à culpa; logo que a alma justa se liberta dos laçoa

do corpo, um acto de caridade perfeita apaga a sua culpa da qual apenas

restará a pena a expiar, estando a alma num estado em que lhe é impossível

merecer uma diminuição ou o perdão dessa pena 67».

Como sempre, o que interessa a Tomás é o pecado, a condição da

alma, e não as contingências de um lugar transitório a cujo respeito se

contenta em definitivo com afirmar a existência, porque ele está na Fé o

na autoridade da Igreja e é conforme às demonstrações racionais das

relações entre Deus e o homem.

A recusa do Purgatório

1. Os hereges

Em oposição à aprovação escolástca do Purgatório, temos a recusa

dos hereges e dos gregos.

A oposição dos hereges do Purgatório assenta tanto no plano teórico

como no plano prático, como se verá adiante. Radica também numa

velha e tenaz recusa das orações pelos mortos, dos sufrágios, a qual já

vimos como contribuiu no fim do século XII para levar os ortodoxos a

formularem mais claramente a existência do Purgatório. Recusados pelos

hereges de Arras em 1025, os sufrágios foram-no novamente em 1143-

-1144 pelos de Colónia, contra quem o prelado Eberwin de Steinfeld pede

a ajuda a S. Bemardo: «Eles não admitem que existe um fogo purgatório

depois da morte, e ensinam que as almas vão imediatamente para o repouso

ou para o castigo eternos no momento em que deixam a terra

segundo as palavras de Salomão: "se uma árvore cai rara o Sul ou para

o Norte, a árvore fica onde caiu" (Eclesiastes, 11, 3)6 .»

Na época em que provavelmente, como se viu, Bemardo de Fontcaude

expressa contra os valdenses a nova estrutura do além, uma Súmula

contra os hereges que foi erradamente atribuída a Prévostin de Cremona

mas que, segundo os editores, deve datar do fim do século XII, menciona

a hostilidade de hereges chamados «Passagins» às orações pelos mortos, e

nessa altura fala do Purgatório. Como nesse texto o Purgatório existe mas

os defuntos estão ainda divididos em quatro e não em três categorias, os

últimos anos do século XII parecem uma data pertinentef".

324

À recusa dos «Passagins» a Súmula dá a solução seguinte que segue de

perto as ideias de Agostinho:

Oramos pelos vivos, indiferentemente, mesmo que sejam maus, porque

ignoramos se eles serão condenados ou eleitos. Mas oramos sobretudo pelos

nossos irmãos e pelos mortos; não pelos inteiramente bons porque eles não

têm necessidade disso nem pelos inteiramente maus porque não lhes seria útil,

mas pelos medianamente bons que estão no Purgatório, não para que se tornem

melhores mas para que fiquem livres mais cedo, e pelos medianamente

maus, não para que sejam salvos mas para que sejam menos castigados?",

A crónica de Raul (Ralph), abade do mosteiro cisterciense de Coggeshall

em Inglaterra entre 1207 e 1218, a propósito de uma aventura de

juventude de Gervásio de Tilbury, evoca as ideias de hereges chamados

publicanos 71, espalhados por várias regiões de França e principalmente

em Reims onde se manifestam por um episódio de feitiçaria entre 1176

e 1180: «Pretendem eles que as crianças não devem ser baptizadas antes

de atingirem a idade da razão; acrescentam que não se deve orar pelos

mortos, nem pedir a intercessão dos santos. Condenam o matrimónio e

pregam a virgindade para mascararem a sua luxúria. Destestam o leite e

todos os seus derivados, assim como todos os alimentos provenientes do

coito. Não acreditam no fogo purgatório depois da morte e pensam que a

alma, logo ~ue se liberta, vai imediatamente para o repouso ou para a

condenação .»

No século XIII todos os tratados sobre heresias e hereges incluem a

negação do Purgatório entre os erros da maioria dessas seitas (muitas

vezes mal diferenciadas pelos autores «ortodoxos») e em especial dos

valdenses. Num tratado para uso dos pregadores - de que falarei - que

o dominicano Étienne de Bourbon redigirá nos anos que precederam a

sua morte ocorrida em 1261, diz ele dos valdenses da região de Valença

cerca de 1235: «Declaram eles também que não existe punição purgatória

senão nesta vida presente. Para os mortos, nem os bons oficios da Igreja

nem nada que possa fazer em seu favor tem qualquer efeíto'".» Anselmo

de Alexandria (na Itália do Norte), inquisidor dominicano, redigiu entre

1266 e 1270 um tratado onde se esforça por distinguir valdenses e cátaros

e, entre os valdenses, os da Lombardia e os de Lyon. No número das

crenças comuns aos dois grupos de valdenses ele inclui a negação do

Purgatório: «Como os Transmontanos, os Lombardos não acreditam

no Purgatório, no juramento, no direito à justiça... E (para uns e outros)

também não existe Purgatório. Nada se ganha com visitar os túmu-

~~~~~:Ss:lt~:'r:~~~~~4~»cruz, construir igrejas, orar, dizer missas ou dar

A mesma censura no famoso Manual do Inquisidor do dominicano

8emardo Gui, fruto de uma longa experiência relatada quase no fim

325



da vida, no começo do século XIV: «Os Valdenses também negam qUI

haja um Purgatório para as almas depois desta vida e, por consequência,

afirmam que as preces, as esmolas, as missas e outros piedosos sufrágios

em favor dos mortos não servem para nada.» E ainda: «Dizem

também e ensinam aos seus adeptos que a verdadeira penitência e o Purgatório

para os pecados só podem ter lugar nesta vida, não na outra ..•

Do mesmo modo, segundo eles, as almas, quando deixam o corpo, vão

imediatamente ou para o Paraíso, se devem ser salvas, ou para o Inferno,

se devem ser condenadas, e que não há outro lugar (morada) para at

almas depois desta vida senão o Céu e o Inferno. Dizem também que

as orações pelos mortos não os ajudam nada, uma vez que os que estão

no Paraíso não precisam delas e para os que estão no Inferno não h'

repouso ".»

Quanto aos Cátaros, a sua atitude face ao Purgatório parece ter sido

mais complexa. Voltarei a isto. Os documentos respeitantes às crençaa

concretas, designadamente em Montaillou, mostram-nos uma posição

bastante confusa e cheia de cambiantes. Os textos teóricos aqui examínados

insistem, de um modo geral, numa atitude negativa em relação ao

Purgatório. Em 1250, na sua Súmula sobre os Cátaros e os Pobres di

Lyon (Summa de Catharis et Pauperibus de Lunduno ), Rainerius Saeconi,

um herege convertido por Pedro de Verona e que veio a ser domínicano

e inquisidor como este, tendo escapado a um atentado qUI

custou a vida a Pedro (logo transformado pela Igreja em S. Pedro Mártir)

escreve: «O segundo erro deles é que, segundo eles, Deus não inflige

qualquer castigo purgatório, pois negam totalmente o Purgatório, nem

qual~uer punição temporária, pois esta é infligida pelo diabo nesta

vida" .»

Dos Cátaros, ainda Italianos, baptizados de Albanos ou Albaneses

(muitas vezes com a corruptela Albigenses), uma pequena súmula anónima,

feita provavelmente por um franciscano entre 1250 e 1260, diz que

não só eles não acreditam no Purgatório como também não acreditam no

Inferno porque este não foi criado pelo Deus que, segundo o Génesis,

criou o mundo, ou seja, Lúcifer. Nesta .perspectiva, «eles dizem que .

não há fogo purgatório nem Purgatório» 7 •

2. Os gregos

Se, ao nível da pastoral e da polémica, a luta da Igreja contra 01

hereges que negavam o resgate depois da morte a levou, como se viu, a

adoptar e a definir a crença num lugar de purgação das penas após a

morte, o Purgatório, no fun do século XII foram os debates de ordem

teológica, as negociações entre membros das hierarquias eclesiásticas la-

326

tina e grega que levaram a Igreja a exprimir as suas primeiras formulações

dogmáticas do Purgatório no século XIII. O Purgatório nasceu nas aspirações

e nasceu também nas lutas.

Depois da ruptura de 1054, resultado do lento aprofundar da separação

entre cristianismo latino e cristianismo grego iniciada no século IV 78

se tanto, não faltaram as discussões e as negociações para a reunião das

duas Igrejas. A questão do além não teve nisso qualquer interferência. A

Igreja grega, que estivera, aliás, na origem da elaboração doutrinária que

iria conduzir ao Purgatório, não desenvolvera esses germes. Contentara-

-se com uma vaga crença na possibilidade de resgate depois da morte e

com a prática, pouco diferente da latina, de preces e de sufrágios pelos

mortos. Mas enquanto a crença latina se expandia no nascimento de um

terceiro lugar do além e na remodelação profunda da geografia do outro

mundo, o problema do Purgatório saltou para o primeiro plano das discussões

e das dissenções. Foi essencialmente à volta do problema do fogo

do Purgatório que se desenrolou a primeira fase do debate.

Continuando no século XIII, é preciso primeiro recordar que, durante

a primeira metade do século, as negociações depararam sobretudo com

um obstáculo político, além das dificuldades propriamente religiosas. O

papado apoia o império latino estabelecido em Constantinopla pela quarta

cruzada em 1204, enquanto os gregos apenas reconhecem o imperador

bizantino sediado em Niceia.

No meio destas diligências eis que irrompe o Purgatório. Como diz

com graça e com razão o padre Daniel Stiernon: «O fogo! Pois, está

bem, há também o fogo do Purgatório que um ano depois inflamará os

espíritos. Da Apúlia onde brotara a chamazinha em Novembro de 1235,

o incêndio atingirá o trono patriarcal, se é verdade que Germano lI,

interpelado no novo debate, redigiu um libelo sobre este tema, causa

bem candente que deixará vestígios duradouros 79 .•. »

De facto, o primeiro vestígio importante do debate greco-Iatino sobre

o Purgatório data de pouco antes. Trata-se do relato de uma controvérsia

que no fim de 1231, no mosteiro grego de Casola perto de Otrante, opôs

Georges Bardanês, metropolita de Corfu, e um enviado do Papa, o franciscano

Bartolomeu. O relato, talvez incompleto, é do prelado grego.

Georges Bardanês declara que os Irmãos Menores «preconizam a falsa

doutrina de que existe um fogo purificador (xop KCXeCXp'tTjplOV) para onde

são levados aqueles que morrem depois de se terem confessado mas

que não tiveram tempo de fazer penitência pelos seus pecados, e são purificados

antes do Julgamento Final, obtendo a satisfação da pena»80. A

autoridade avançada pelos franciscanos é a de «S. Gregório o Diálogo»,

quer dizer, Gregório, o Grande, assim baptizado pelos gregos para o

distinguir de muitos outros gregórios.

Eis como se terá desenrolado a discussão:

327



A questão posta pelo latino, que se chamava Bartolomeu, era mais ou

menos esta:

«Quero saber de vocês, gregos, para onde vão as almas daqueles que morreram

sem fazer penitência e que não tiveram tempo para cumprir os castigos

(

... )81

«epitímias» que os seus confessores Ihes haviam imposto.»

A nossa resposta, a dos gregos:

«As almas dos pecadores não vão daqui para o Inferno eterno, porque

a~u7le ~ue d~ve julgar todo o universo ainda não veio com a sua glória para

distinguir os Justos dos pecadores; vão, sim, para lugares sombrios que dão o

antegozo dos suplícios que esses pecadores devem suportar. Pois, assim como

para os justos foram preparados em casa do Pai vários lugares e diversos

repousos, segundo a palavra do Salvador 82 , assim existem também diversas

punições para os pecadores.»

O latino:

«Nós não temos essa crença, antes acreditamos que existe de um modo

especial um fogo «purgatório», quer dizer 83 fogo que purifica, e que por esse

fogo, aqueles que passam deste mundo sem se arrependerem, como os ladrões,

os adúlteros, os assassinos e todos aqueles que cometem pecados veniais, sofrem

durante um certo tempo e purificam-se das máculas dos seus pecados, e a

seguir ficam libertos da punição.»

«Mas, meu excelente amigo, digo eu, aquele que acredita em tais coisas e

as ensina parece-me um perfeito partidário de Origenes. Com efeito, Origenes

e os que o seguem preconizaram a doutrina do fim do Inferno, e até os demónios,

passados muitos anos, obteriam o seu perdão e ficariam libertos da

punição eterna. Depois, tu só tens que apelar à tua sabedoria ao referires-te às

palavras do Evangelho ditas por Deus, visto que o Senhor clama que estes, 08

justos, irão para a ressurreição da vida, enquanto os pecadores (irão) para a

ressu~eição do julgamento'". E ainda: "Ide para longe de mim, para o fogo

extenor e eterno, preparar-vos para o diabo e seus anjos!8511E noutra passagem:

"Onde houver lágrimas e ranger de dentes 86 ", e onde estão os vermes que

não acabam e o fogo que não se extingue'".»

Uma vez que o Senhor faz tantas e tais ameaças contra os que partem

desta vida não purificados (pela penitência) das más acções e dos crimes

quem ousará concordar que existe um fogo purificador e um pretenso fi~

da punição antes da decisão do julgamento do Juiz? Mas se fosse possível,

de alguma maneira arrancar antes (do Julgamento Final) aos suplícios aque-

!es qu~ partem .daqui de baixo, culpados seja de que pecados for, o que teria

Impedido o muito fiel e amado de Deus, Abraão, de tirar do fogo inextinguível

o rico sem misercórdia, quando este implorava, com palavras capazes de comover

profundamente, uma simples gota de água que caísse da ponta do

dedo, para se refrescar? Mas ele ouviu: «Tu, meu filho, tu fruístes os teus

bens durante a vida, enquanto Lázaro só recebeu males. Agora rezamos a

ele e tu sofress'", E ensinava que há um abismo profundo e intransponível

entre ele e Lázaro, o pobre. Mas como o irmão menor escutava tudo isto

sem se deixar convencer, e tapava os ouvidos, mostrámos-Ihe os textos dos

Pais, que trazem Deus (= inspirados por Deus) respeitantes às Santas Escri-

328

turas, a fim de que, tomado de respeito perante a autoridade dos maiores

mestres, ele abandonasse as suas objecções.

As autoridades das Escrituras não abalaram o franciscano e cada um

ficou na sua.

A primeira defmição pontificaI do Purgatório (1254)

Nos últimos anos do pontificado de Inocêncio IV, o clima dos debates

entre gregos e latinos modificou-se e pensou-se que se encaminhavam

para um acordo quando o Papa morreu em 1254. Algumas semanas antes

da sua morte, em 6 de Março de 1254, o pontífice enviara ao seu

núncio junto dos gregos em Chipre, o cardeal Eudes de Châteauroux,

uma carta oficial (sub catholicae) que constitui uma das mais importantes

datas da história do Purgatório. O Papa, pensando que existiam pontos

comuns suficientes entre os gregos e os latinos, e deixando na sombra

a questão bicuda do momento da passagem pelo fogo purgatório antes ou

depois da ressurreição dos mortos, pede (de uma maneira bastante autoritária,

para dizer a verdade) que os gregos subscreveram uma definição

do Purgatório:

Uma vez que a Verdade afirma no Evangelho que, se alguém blasfema

contra o Espírito Santo, esse pecado nunca lhe será remido nem neste século

nem no outro: pelo que nos é dado a entender que algumas culpas são perdoadas

no tempo presente e outras na outra vida; visto também que o apóstolo

declara que a obra de cada um, seja ela qual for, será posta à prova pelo

fogo e que, se ela arder, o obreiro sofrerá a sua perda mas ele próprio será

salvo; visto que os próprios gregos, segundo se diz, acreditam e professam

verdadeiramente e sem hesitação que as almas dos que morrem depois de

terem recebido a penitência mas sem terem tido tempo para a cumprir, ou

que morrem sem pecado mortal mas culpados de (pecados) veniais ou de

culpas mínimas, são purgados depois da morte e podem ser ajudados pelos

sufrágios da Igreja, nós, considerando que os gregos afirmam não encontrar

entre os seus doutores um nome adequado e certo para designar o lugar dessa

purgação, e que, por outro lado, segundo as tradições e a autoridade dos

santos Padres, esse nome é o Purgatório, desejamos que no futuro essa expressão

seja igualmente aceite por eles. Pois, nesse fogo purgatório, os pecados

(não, decerto, os crimes e faltas capitais que antes não seriam remidos pela

penitência) ligeiros e mínimos são purgados; se eles não forem remidos no

decurso da existência, pesam na alma depois da morte'".

Esta carta é o registo do nascimento doutrinário do Purgatório como

lugar.

329



----------------

o segundo concílio de Lyon e o Purgatório (1274)

Em 1274 o segundo concílio de Lyon deu um novo passo.

Convém talvez evocar antes um dos numerosos episódios que marearam

as negociações recheadas de polémicas entre gregos e latinos durante

o terceiro quarto do século XIII.

Em 1263 Tomás de Aquino foi chamado a dar a sua opinião como

perito na polémica com os gregos. Nicolau de Durazzo, bispo de Crotona,

«sábio em latim e em grego» escrevera um Libelo sobre a procissão do

Espírito Santo e da Trindade contra os erros dos Gregos (Libellus de processione

spiritus sancti et de fide trinitatis contra errores Graecorum) do

qual em 1262 foi enviada uma cópia latina ao Papa Urbano IV que solicitou

a opinião de Tomás de Aquino. O Libelo, que interessava sobretudo

ao fiJioque, pretendia demonstrar que os gregos do século XIII nem sequer

eram fiéis aos Pais da Igreja grega que teriam professado as mesmas doutrinas

que os latinos. O Libelo era de facto uma trapalhada 90 de falsificações

e de falsas atribuições. O papado sonhava no entanto fazer dele o

documento de base para as negociações com os gregos. Tomás de Aquino

experimentou, parece, «uma sensação de mal-estar» com a leitura do

Libelo. Não pôs em causa a autenticidade dos textos citados pelo

Libelo mas contestou a validade de uma parte deles, e preferiu frequentemente

recorrer a outras autoridades. A influência do Libelo não fez

porém diminuir o alcande do Contra errores Graecorum (Contra os Erros

dos Gregos) elaborado por Tomás no Verão de 1263 em Orvieto e que

veio a ser, para os latinos, um arsenal de argumentos contra os gregos".

O essencial, trinta e dois capítulos, diz respeito à procissão do Espírito

Santo na Trindade, e sete curtos capítulos são dedicados, cinco deles à

primazia do papado romano e os dois restantes à consagração do pão

ázimo para a Eucaristia e ao Purgatório. Neste último caso, Tomás defende

a existência do Purgatório da maneira que será retomada no

Suplemento da Súmula Teológica que já vimos.

Entretanto a situação política criada a seguir à tomada de Constantinopla

pelos Gregos e ao restabelecimento do Império bizantino na sua

integridade aparente conduziu a uma tentativa de reconciliação entre latinos

e gregos que teve como resultado o segundo concílio de Lyon em

1274 92 .

A união entre latinos e gregos era desejada por razões políticas pelo

Papa Gregório X, que via nela uma das condições prévias necessárias ao

êxito da cruzada que pretendia organizar, e pelo imperador Miguel VIII

Paleólogo que queria não só evitar um eventual ataque de CarIos de Anjou

mas também retomar, como bem demonstrou Gilberto Dagron, uma

importante política tradicional de «ligação orgânica entre o Ocidente e o

Oriente».

330

Ambiguamente discutida e sem ir até ao fundo dos problemas, com o

imperador a forçar a mão à hierarquia grega, a união f<;>iprocla~ada em

16 de Janeiro de 1275 depois de ter sido deposto o patnarca Jose I, que a

desaprovara. Iria ser "etra morta, ~as pe~tiu que o Pur~atório se. instalasse

melhor na Igreja latina. A formula fOI um comprormsso enunciado

pelo Papa Clemente IV numa carta enviada em 4 de Març~ ~e 1267 a~

imperador Miguel VIII. Foi retomada numa carta de Gregono X a MIguel

Paleólogo de 24 de Outubro de 1272 e na profissão de fé que o

imperador mandou em resposta, em Março ,~e 1274. Tomou-se u~ ~nexo

da constituição Cum sacrosancta do concilio, promulgada com ligeiras

alterações de redacção em 1 de Novembro de 1274.

Eis o conteúdo:

Mas, por causa de diversos erros que alguns introduziram por ignorância e

outros por malícia, ela (a Igreja romana) diz e procl~a que aqueles que ca?D

em pecado depois do baptismo não devem ser rebaptizados, mas que, por ~a

verdadeira penitência, obtêm o perdão dos seus pecados. Que se, ver~adelr~mente

arrependidos, eles morrerem em caridade antes de terem, por íntermedio

dos dignos frutos de penitência, satisfeito pelo que cometeram ou

omitiram, as suas almas, conforme nos explicou o irmão João, são purgadas

depois da morte por penas purgatórios ou purificadoras, e, para abrand~mento

dessas penas, servem-Ihes os sufrágios dos vivos fiéis, ou seja, o~.sa~rifiCJosdas

missas, as preces, as esmolas e outras obras piedosas que os fiéis ~emo costume

de oferecer pelos outros fiéis segundo as instituições da Igreja. As almas

daqueles que, depois de terem recebido o baptismo, n~o contraíram qualquer

outra mácula de pecado, e também aquelas que, depois de terem con~raIdo a

mácula do pecado, dela foram purificadas, ou enquanto estavam amd.a no

corpo ou depois de terem contraído a mácula do pecado, foram dele purificadas

ou enquanto estavam no corpo ou depois de se terem despojado do corpo,

como se disse atrás, são imediatamente recebidas no céU 93 .

O texto está atrasado em relação à carta de Inocêncio IV, vinte an~s

antes. Trata de «poenis purgatoriis seu catharteriis», a pal.avra grega latinizada

correspondente à palavra latina que os gregos haviam helenizado.

Mas a palavra purgatorium, o purgatório, não aparece. ~ão ~ .trata nem

de lugar nem de fogo. Este atraso será devido apenas a hos~llldad~ dos

gregos, ou virá também das reticências de alguns meios teológicos OCIdentais?

Não é possivel..., tanto mais que alguns documentos fazem supor

que, pelo menos na chancelaria imperial bizantina, estavam pr?nto~ a

aceitar a palavra purgatório. Com efeito, lê-se nas profissões de fe enviadas

por Miguel VIII em 1277 aos Papas João XXI e.Nicolau 1.11,as pena~.

do purgatório ou do purificador, tanto na versão latina (poenis purga tom

seu catharterii) como na versão grega (1tOlVCI1S1toupytX'toptOU nroi

331



K<xO<XP'tT)ptoU). o mesmo na profissão de fé de Andronico 11 alguns anos

mais tarde. Pode também supor-se que o segundo concílio de Lyon promulgara

uma fórmula perdida que retomava os termos da carta de 1254

de Inocêncio IV e não da de Clemente IV, de 126794•

o Purgatório e as mentalidades: Oriente e Ocidente

o importante não é isto.

É antes, como bem viu A. Michel, o facto de, «no ponto de vista

dogmático, o texto imposto aos gregos representar seguramente a doutrina

católica. É o equivalente de uma definição ex cathedra 9s ». É a primeira

proclamação da crença no processo purgatório, se é que não no Purgatório,

como dogma.

O segundo facto interessante é que, a nível dogmático, o Purgatório

nunca mais será definido pela Igreja como um lugar preciso ou como um

fogo, nas duas assembleias que instaurarão definitivamente o dogma do

Purgatório no cristianismo romano: o concílio de Ferrara-Florença em

1438-1439, de novo face aos gregos'", e o concílio de Trento em 1563,

desta vez contra os protestantes.

A minha convicção continua a ser que, apesar das reticências dos

teólogos e da prudência da instituição eclesiástica, o êxito do Purgatório

é devido à sua espacialização e ao imaginário cujo desenvolvimento pleno

permitiu.

Mas antes de vermos o êxito «popular», o êxito maciço do Purgatório,

do lugar purgatório, no século XIII, desejaria salientar, num documento

ligado ao debate entre gregos e latinos, uma confissão que explica as

atitudes profundas dos cristãos do Ocidente quando do nascimento e

da vulgarização do Purgatório. Depois do segundo concílio de Lyon

(1274), Miguel VIII Paleólogo esforçou-se por fazer respeitar a união

pelo clero bizantino. Os mosteiros do Athos eram um dos principais centros

de resistência. Em Maio de 1276 a polícia imperial, no decurso de

uma «surtida ao Athos», expulsou e dispersou os monges e fez prisioneiros

dois deles, Niceforo e Clemente, que o imperador, por deferência para

com os latinos, mandou conduzir num barco veneziano a São João de

Acre, onde foram entregues ao núncio pontifica!. Este não é qualquer

um. É um dominicano, Tomás de Lentini, que quarenta anos antes recebera

Tomás de Aquino na ordem.

O núncio, que é também bispo de Acre e patriarca de Jerusalém, teve

uma discussão franca com os dois monges gregos e finalmente limitou-se

a fixar-Ihes residência em Chipre'", No debate surgiu a questão do Purgatório,

pois é bem do purgatório (rô 1tUpJ(<XtÓpwv)que se trata.

332

o LATINO: E o Purgatório, que dizeis dele? .

OS GREGOS: O que é o Purgatório e qual fOI a ESCritura que vo-lo

ensinou? • .

O LATINO: A de Paulo, quando diz que (os homens) ~o postos a prova

pelo fogo: «Se a obra de alguém for. consumida, ele sofrera a sua perda, mas

ele próprio será salvo, e desta maneira como pelo fogo.»

OS GREGOS: Na verdade, o castigo não te~ fim. . .

O LATINO: Eis o que nós dizemos: se alguem, depois de ter ~do, fOI

confessar-se e recebeu uma penitência e morreu antes d~ ter cumpndo ~sa

penitência, os anjos levarão a sua alma para ~ fogo punficador, quer dizer,

para aquele rio de fogo, até que ele tenha terminado o.tempo que fal~ do que

lhe fora fixado pelo (pai) espiritual, esse t~po <!-uenao pude~a terminar por

causa da rapidez imprevisível da morte. E depois de ter t~rmtnado o t~~

que falta, dizemos nós, que ele vai para a vida eterna punficado. Aereditais

nisto também? É assim ou não? . ,

OS GREGOS: Escuta: não só não admitimos ISSOcomo também o an~tematizamos,

como os pais em concilio. Segundo a palavra do Senhor, «vos

enganai-vos, sem conhecerdes as Escrituras nem o poder de DeUS».

Com efeito, para os gregos e perante as E~critura~ que ~ão falam do

Purgatório os latinos não são capazes de citar senao visoes de almas

pretensam~nte salvas dos tormentos do além. «Mas,. acresce~tam, :sses

factos nos sonhos e no ar que se contam, estão cheios de Adl~agaçoes e

não oferecem portanto qualquer certeza.» Por c~~sequencla, «faz o

bem durante a vida porque depois da morte tudo e merte e, por ~au~a

disso, a prece por aqueles que não fizeram o bem durante a sua propna

vida não é escutada».

Mas Tomás de Lentini relança a discussão:

O LATINO: Em que lugar repousam agora as almas dos justos e onde as

dos pecadores? , •

OS GREGOS: Segundo a palavra do Senhor, os justos como Lazaro estão

no seio de Abraão, e os pecadores como o rico sem.pie,?ade.no fogo da geen~.

O LATINO: Muitos simples fiéis da nossa Igr~Ja tem.dificuldade em aceitar

isso. A restauração (apocatástase) dizem el~s, ainda nao chegou e, por essa

razão, as almas não experimentam nem castigo nem repouso. Portanto, se

assim é .

Aqui, no momento de completar uma informação para ~ós e~sencia.l,

o manuscrito apresenta uma lacuna. Na minha interpretaçao exíste pOIS

uma parte hipotética. ..

Noto antes de mais o recurso, paradoxal neste latmo, a~ conceito. de

apocatástase de Origenes, mas o importante parece-me ser ~ao a doutI?-n~

mas as disposições mentais dos latinos a que alude Tomas de Lentini.

333



Muitos simples fiéis já não se contentam com a oposição geena/seio di

Abraão, Inferno/Paraíso depois da morte individual. A necessidade do

Purgatório, de uma última peripécia entre a morte e a ressurreição, di

um prolongamento do processo de penitência e de salvação para lá desta

falsa fronteira da morte tomou-se uma exigência das massas. Vox populi...

Pelo menos no Ocidente.

NOTAS

I Entre os títulos de quodlibeta mencionados por P. GLORIEUX, IA littérature

ftIIldlibétique de 1260 à 1320, 1925, só aparece um quodlibet sobre o Purgatório. É de

"omás de Aquino e data do Natal de 1269: «Se se pode ser mais ou menos depressa

IIhcrtadode uma mesma pena no Purgatório» (utrum aequali poena puniendi in purga-

'ur/u, unus citius possit liberari quam alius, quod. 11,14, p. 278).

2 A 219" e última proposição condenada em 1277 diz respeito ao fogo do além

.m grande precisão: «Que a alma separada (do corpo) não pode de maneira alguma

Illfrercom o fogo» (quod anima separata nullo modo patitur in igne). Trata-se, aliás,

dI!ensino na Faculdade das Artes e não de Teologia. Cf. R. HISSETTE, Enquête

,.., /(!S 219 articles condamnés à Paris le 7 mars 1277, Lovaina-Paris 1977, pp. 311-

·312 .

.1 A bibliografia da escolástica do século XIII é enorme. As sínteses estão mais

Incluídasna filosofia do que na teologia. Para uma vista de conjunto recorre-se aos

lI"ISicos, E. GILSON, La Philosophie au Moyen Âge,3' ed., Paris, 1947, M. DE

WlJLF, Histoire de Ia philosophie médiévale, 6" ed., t. Il, Lovaina, 1936. F. VAN

NTEENBERGHEN, IA Philosophie au XIII' siécle, Lovaina-Paris, 1966. Os grandes

lIColásticosdo século XIII distinguiram bem entrefilosofia e teologia. A fronteira nem

IGmpreé fácil de definir e depende da definição que se der destas duas ciências. No

eonjunto - e isto é válido para as melhores - parece-me que estas sínteses não distin-

,uem suficientemente as duas disciplinas. Um esboço rápido mas sugestivoda filosofia

medievalna sociedade foi dada por F. ALESSIO, «li pensiero dell'Occidente feudale»

In Filosfie e Societâ, t. I, Bolonha, 1975. Em C. TRESMONTANT, IA Métaphysique

• christianisme et Ia crise du treiziême siécte, Paris, 1964, encontra-se uma interpretaylo

original.

"GUILLEULMUS ALTISSIODORENSIS, Summa aurea, ed. Pigouchet, Paris,

1500, reedição anastática, Francfort-sur-le-Main, Minerva, 1964, livro IV, foI.

('CCIVv e CCCVv.

5 É ainda nesta rubrica que o encontramos no ficheiro metódico da excelente

bibliotecada Universidade Gregoriana em Roma.

6 Sobre Guillaume d'Auvergne ver o livrojá ultrapassado de Noêl VALOIS, Guillaume

d'Auvergne, sa vie et ses ouvrages, Paris, 1880; o.estudo de J. KRAMP, «Des

Wilhelm von Auvergne Magisterium Divinale» in Gregorianum, 1920, pp. 538-584 e

11,121, pp. 42-78, 174-187; e sobretudo A. MASNOVO, Da Guglielmo d'Auvergne a

San Tommaso d'Aquino, 2 vols., Milão, 1930-1934.

334

335



7 Alan E. Bemstein apresentou em Fevereiro de 1979 perante a Medieval Assoe

tion of the Pacific uma exposição sobre William of Auvergne on punishment after deatlt,

cujo texto teve a amabilidade de me comunicar. Concordo geralmente com a sua

interpretação. Penso que exagerou por um lado e a propósito de Amo Borst, a influêne

cia da luta contra os Cátaros sobre as suas ideias a respeito do Purgatório, e por outl'O

lado as contradições que existiriam na sua doutrina do fogo purgatório. Alan E. Bem ••

tein empreendeu uma investigação sobre «Hell, Purgatory and Community in XllIth.

century France».

8 «De loco vero purgationis animarum, quem purgatorium vocant, an sit proprius, "

deputatus purgationi animarum humanarum, seorsum a paradiso terrestri, et inferno,

atque habttaüone nostra, quaestionem habeu (De universo, capo LX). GUILlELMUS

PARISIENSIS, Opera Omnia, Paris, 1674, I, 676. Quanto ao lugar do Purgatório es~

nos capítulos LX-LXI-LXII (pp. 676-679) desta edição. Quanto ao fogo do Purgatório

nos capítulos LXlII"LXIV-LXV (pp. 680-682).

9 Pontos estes que, quanto a mim, não são secundários.

10 A. PIOLANTI, <di dogma dei Purgatório» in Euntes Docete, 6, 1953, p. 301.

11 Sobre a vida e as obras de Alexandre de Hales, ver Prolegomena (pp. 7-75), do

volume I da edição da sua glosa: Magistri Alexandri de Bales Glossa in quatuor librOl

sententiarum Petri Lombardi, Quaracchi, 1951.

12 De sera poenitentia, de poena purgatorii et de relaxationibus (Glossa in quatuot'

libros sententiarum Petri Lombardi, vol. IV, Quaracchi, 1957, pp. 349-365).

13 De remissione et punitione venialium, de aedificantis aurum.foenum, stipulam, di

septem modis remissionls peceati (Ibid., pp. 363-375).

14 G. Le BRAS, Institutions ecclésiastíques de Ia chrétienté médiévale, I, Paris, 1959,

p.l46

15.«Respondemus: sicut dolor communis Ecclesiae universalis, plangentis peccata

fidelium mortuorum et orantis pro ipsis cum genitu, est adiutorius in satisfacttone: nOIl

quod per se plene satisfaciat, sed (quod) cum poena poenitentis iuvet ad satisfationem,

sicut ex ratione suffraggii potest haberi. Suffragium enim est meritum Ecclesiae, poeTIM

alicuius diminutivum» (Glossa, vol. IV, p. 354).

16 ALEXANDRE DE HALES, Quaestiones disputatae «antequam esset frater»,

Biblioteca franciscana scholastica medii aevi, 3 vol., 1. 19-20-21. Quaracchi, 1960,

Passagem citada da questão XLVIII vem nas páginas 855-856.

17 Ibid., p. 1069.

18 Ibid., p. 1548.

19 Tendo morrido em 1274, só será canonizado em 1482, e proclamado doutor da

Igreja apenas em 1588. Sobre Boaventura pode consultar-se l.-C. BOUGEROL, I".

troduction à l'étude de saim Boaventura, Paris, 1961, e o conjunto de cinco volumes

S. Boaventura, 1274-1974 publicados em Grottaferrata em 1973-1974.

Existe um estudo útil sobre S. Boaventura e o Purgatório, em latim, Th. V. GERS-

TER A ZEIL, Purgatorium iuxta doctrinam seraphici doctoris S. Bonaventurae, Turim,

1932.

20 O Comentário às Máximas de Pedro Lombardo de 80aventura foi editado nos

4 primeiros volumes da edição monumental dos franciscanos de Quaracchi a partir de

1882. O comentário do livro IV encontra-se no tomo IV do destaque 20 nos foI. 517-

-538, nos artigos 2 e 3 da primeira parte do destaque 21 nos foI. 551-556, no artigo 2 do

destaque 44 nos foI. 943-944. Uma edição mais manejável foi feita pelos irmãos de

Quaracchi: S. Bonaventurae Opera Theotogica, editio minor, 1. IV, Liber IV

Sententiarum, Quaracchi, 1949.

336

21 Sobre todos estes problemas ver A. MICHEL, artigo «Purgatoire» in Dictionnaire

de théologie catholique, col. 1239-1240.

22 «Utrum in poena purgatorii sit minor certitudo de gloria quam in via... cuja conclusão

é «in purgatorio est maior certitudo de gloria quam in via, minor quam in patria»

(Opera, t. IV, fol. 522-524).

23 Patria vem de S. Paulo: Hebreus, XI, 14: «Aqueles que assim falam mostram

claramente que estão à procura de uma pátria.»

24 Segunda questão do artigo 11 da primeira parte do destaque XXI.

25 lbid., fol, 939-942.

26 Segunda parte do destaque XX.

27 Artigo 11 da primeira parte do destaque XXI.

28 Boaventura pronunciou no concílio de Lyon em 1274, alguns dias antes de

morrer, o discurso solene da sessão de oflcialização da união entre os gregos e os

latinos.

29 Artigo Hl desta mesma questão.

30 Artigo 11 do destaque XLIV.

31 Capo 11 da sétima parte.

32 Capo III da mesma parte.

33 BOA VENTURA, Opera, t. V, fol. 282-283. Os irmãos de Quaracchi fizeram

depois uma edição mais manejável do Breviloquium, como para o Comentário às Máximas.

34 Opera, t. IX, pp. 606-607.

35 A primeira epístola de Paulo aos Coríntios, 111, 10-15, mas também das

autoridades sobre o Antigo Testamento (Job, lI, 18, Provérbios XIII 12) e de S. Paulo

(11 Timóteo, IV, 7-8: Hebreus, IX, 15) cuja relação com o Purgatório parece

distante.

36 Ibid., p. 608.

37 Sobre a importância da oração na teologia de 8oaventura, o que ainda enraíza

mais o Purgatório no seu pensamento, ver Zelina ZAFARANA, «Pietâ e devozione in

Sun Bonaventura» in S. Bonaventura Francescano (Convénio do Centro de Estudos

Nobre a espiritualidade medieval, XIV, Todi, 1914, pp. 129-157).

38 Sobre Alberto, o Grande, ver O. LOTTIN, «Ouvrages théologiques de saint

Albert le Grand» in Psychologie et mora/e aux Xll" et XII!' siêcles, voI. VI, Gembloux,

1960, pp. 237-297 e Albertus Magnus Doctor Universalis 1280/1980, ed.

G. Meyer e A. Zimmermann, Mayence, 1980.

39 De Resurrectione, ed. W. Kübel in Alberti Magni Opera Omnia, t. XXVI, MuniquefW,

1958. A questão 6 De purgatorio encontra-se nas páginas 315-318 e a questão

9 De locis poenarum simul, pp. 320-321.

40 Pode notar-se que Alberto, que neste texto emprega habitualmente o substantivo

purgatorium, usa aqui o epíteto purgatorius (ignis subentendido). Sobre este uso ver

adiante a propósito do Comentário às Máximas.

41 Alberto refuta uma última objecção: «Podendo haver muitas diferenças entre os

méritos para os que vão ser salvos, condenados ou purgados, deve haver também mais

de cinco receptáculos». Resposta: «Devem separar-se as diferenças gerais das diferen-

••as particulares. Haverá "casas" no interior dos "receptáculos".» Requinte da divisão

lógica que é também uma referência ao Evangelho de João.

42 Este destaque XXI do Comentário ao Livro IV das Máximas de Pedro Lombardo

encontra-se na edição das obras de Alberto, o Grande, de Auguste 8orgnet, B. Alberti

Magni... opera omnia, t. 29, pp. 861-882, Paris, 1894.

337



43 Pierre MICHAUD-QUANTIN, no seu grande livro Universitas. Expressions.

mouvement communautaire dans le Moyen Âge latin, Paris, 1970, pp. 105 e 119, f.

notar que Alberto, o Grande «ao estudar a acção das colectividades divide-as etJI

urbanitates da sociedade civil e congregationes da Igreja». O uso da palavra surgiu-

-lhe no debate dos teólogos a propósito da interdição pronunciada pelo Papa Inocêncio

IV de excomungar colectividades, importante decisão deste pontífice genovês,

Alberto tratou deste problema um pouco antes no seu Comentário ao Livro IV ••

Máximas (destaque 19, artigo VII, Opera, t. 29, p. 808; o nosso texto está na página

876 do mesmo volume). Pierre Michaud-Quantin faz notar que «no mesmo contexto,

Boaventura emprega congregatio para qualquer agrupamento civil ou religioso».

44 Ibid., 1. 29, pp. 877-878.

45 ALBERTI MAGNI, Opera omnia, ed, A. Borgnet, 1. 30, pp. 603-604.

46 Ibid., 1. 30, p. 612.

47 O Compendium theologicae veritatis foi publicado por Bourgnet no tomo 34 dai

Opera omnia de Alberto, o Grande, Paris, 1895. eobre Hugo de Estrasburgo consultar

G. BONER, Über den Dominikaner Theologen Hugo von Strassburg, 1954.

48 Compendium ... IV, 22. Alberti Magni ..., Opera omnia, ed. A. Borgnet, vol. 34.

p.147.

49 Ibid., pp. 237-241.

soSobre Tomás de Aquino ver M.-D. CRENU, Introduction à l'étude de saillt

Thomas d'Aquin, Montréa!-Paris, 1950. J.-A. WEISREIPL, Friar Thomas d'Aquino,

his Life, Thought and Works, Oxford, 1974. Thomas von Aquino. Interpretation

Rezegtion. Studien und Texte, ed. W. P. Eckert, Mayence, 1974.

1 M. CORBIN, Le chemin de Ia théologie chez Thomas d'Aquin, Paris, 1974,

p.267.

52 Utilizei a edição da Súmula Teológica publicada com uma tradução e notas pe

edições da «Revue des Jeunes chez Desclée et Cie.» O Purgatório encontra-se no opÚllt

culo sobre O Além que contém as questões 69 e 74 do suplemento, Paris, Tournal,

Roma, 2 1 ed., 1951, com uma tradução de J. D. Folghera e notas e apêndices de

L. Wébert: a palavra purgatorium ocupa 6 colunas no Index Thomisticus, Sectio lI,

concordantia prima, ed. R. Busa, vol, 18, 1974, pp. 961-962.

53 Ver as notas de J. Wébert no opúsculo indicado na nota anterior, p. 287.

54 Ibid., p. 13.

ss Ibid., p. 17.

56 Ver em todo o caso as páginas pioneiras de J. DELUMEAU, La Peur en Oc

dent (XI~-XVJIr siécles), Paris, 1978 (ver Index sv. revenants) e de H. NEVEtlX,

«Les lendemains de Ia mort dans !es croyances occidentales (cerca de 1250-cerca

1300)>>in Annales E.S.e. 1979, pp. 245-263. Jean-Claude Schmitt e Jaeques Chiffoles

levaram a cabo pesquisas sobre as aparições na Idade Média.

S7 Ver J. Le GOFF, «Les rêves dans Ia culture et Ia psychologie collective

!'Occident mêdiéval» in Scolies, I, 1971, pp. 123-130, retomados em Pour un au

Moyen Âge, Paris, 1977, pp. 299-306 [tradução portuguesa da Editorial Estampa,

Lisboa, 1980). Alberto, o Grande, abordou decididamente o problema no seu trata

De somno et vigilia.

S8 S. TOMAS DE AQUINO, Somme théologique. L'au-delà, pp. 38-46.

S9 Edição destinada a ser a edição modelo, se não oficial, das obras comple

de Tomás de Aquino, assim chamada porque foi empreendida em 1882 por iniciati

do Papa Leão XIII, promotor do neotomismo, Esta edição ainda não está to

minada.

338

60 S. TOMÁS DE AQUINO, L'au-delà, pp. 97-128. Esta questão retoma elemen-

1118 do destaque XXI do Livro IV das Máximas de Pedro Lombardo no Scriptum de

Tomás.

61 «de loco purgatorii non inuenitur aliquid expresse determinatum in scriptura, nec

nuiones possunt ad hoc efficaces induci» (Ibid., p. 105).

62 O comentado r da nossa edição do Suplemento, o padre J. Wébert, fica em todo o

ualO escandalizado com o caso que Tomás de Aquino faz dos relatos de aparições de

upectros: «Parece-me estranho, escreve ele, que S. Tomás leve em consideração os

relatos sobre os mortos que expiam em certos lugares terrenos. Faz pensar nas "al-

10118 penadas" dos contos fantásticos» (pp. 304-305). Quanto a mim, espanto-me com a

pouca familiaridade do comentador moderno com a literatura medieval das visões e

com a mentalidade comum no século XIII, as quais S. Tomás, por muito intelectual

que fosse, tinha de ter em conta e em certa medida partilhava.

63 A questão LXXI encontra-se nas páginas 129-203 da nossa edição (ver nota

p. 355).

64 De cura pro mortuis gerenda, capo XVIII.

65 Este desprezo - sobretudo monástico - pelo corpo não impediu os pensadores

uriatãos da Idade Média (incluindo os monges) de estarem convencidos de que só se

podia ser salvo «de corpo e alma», por meio do próprio corpo.

66 Summa theologiae, Ia Pars, q. LXXXIX, art, VII, 2" edição romana, Roma,

1920, p. 695, «non est eadem ratio de distantia loei, et de distantia temporis».

67 A. MICREL, art. «Purgatoire» do Dictionnaire de théologie catholique, col. I

240. O texto do Scriptum in IV um Sententiarum, dest. XXI, q. 1, a 1 encontra-se

nlK páginas 1045-1052 da edição Moos. O texto do De Maio, q. 7, a. 11 encontra-se

nls gáginas 58~-~90 da edição de Marietti, Quaestiones disputatae.

Texto original entre as cartas de S. Bemardo na Patrologie latine, t. 182, col.

fl76-680. Everwini Steinfeldensis praepositi ad. S. Bernardum, apresentação e tradução

Inlllesa em W. L. WAKEFIELD e A. P. EVANS, Heresies of the High Middle Ages,

Nova Iorque-Londres, 1969, p. 126 e ss, (a passagem sobre o fogo purgatório está na

lI. 131).

69 Os «Passagins» professavam uma observância estrita do Antigo Testamento,

Incluindo a prática da circuncisão. Foram classificados entre as seitas «judaizantes»,

" primeira menção a seu respeito é de 1184, a última de 1291. Parece terem ficado

uonfinados à Lombardia e terem estado activos pouco antes e pouco depois de 1200.

Ver R. MANSELLI, «I Passagini» in Bol/etino deil'Instinao storico italiano per il medio

"'li e Archivio Muratoriano, LXXXV, 1963, pp. 189-210. Aparecem ao lado dos cátarm

mas diferentes deles nesta Summa contra Haereticos aseribed to Praepositinus

111Cremona, ed, J. N. Garvin, e J. A. Corbett, Notre-Dame, (Indiana), 1958 e traduylu

inglesa parcial in WAKEFIELD e EVANS, Heresies of lhe High Middle Ages,

p, 173 e ss.

70 Ibid., pp. 210-211.

71 Este nome, deformação dos «Paulicianos» orientais, serviu no Ocidente para

de.i~ar qualquer ~ipo d~ ~erege.

O texto latino original encontra-se em Radulphi de Coggeshall Chronieon

"flKlieanum, ed. J. Stevenson, Londres, 1875, pp, 121-125, tradução inglesa em WA-

KEFIELD e EVANS, p. 251.

73 O texto latino original foi editado nos excertos do Tractatus de diversis materiis

I'rlwdicabilibus publicados por A. LECOY de Ia, MARCHE, Anecdotes historiques

I~Kendes et apoloques tirées du recueil inédit d'Etienne de Bourbon, domintcain du

339



XIII" siécle, Paris, 1877, pp. 202-299. Tradução inglesa em WAKEFIELD e EVA

p.347.

74 Texto latino publicado por A. DONDAINE, «La hiérarchie cathare en Italie,

Le Tractatus de Hereticis d'Anselme d'Alexandrie, O.P ... » in Archivum fratr

praedicatorum, XX, 1950, p. 310-324. Tradução inglesa in WAKEFIELD e EVA

pp.371-372.

75 Bernardo Gui, nascido em Limousin em 1261 ou 1262, ingressado nos Pr

res em 1279, formado em Montpellier, foi inquisidor sobretudo na diocese de Toul

se. No fim da vida foi bispo de Lodêve. O Manual do Inquisidor deve ter sido aca

em 1323-1324. Foi editado com uma tradução francesa de G. Mollat nos clássicos

história de França na Idade Média, VIII/IX, 2 vol., Paris, 1926-1927. Os textos cita

encontram-se no capítulo 11 da 5" parte.

76 A Summa de Sacconi foi editada por A. Dondaine no prefácio da sua obra

Traité néo-manichéen du XIII" siêcle: o Liber de duobus principiis, suivi d'un frag.

de rituel cathare. Roma, 1939, pp. 64-78. Tradução inglesa em WAKEFIELD

EVANS, pp. 333-334.

77 Esta Brevis summula contra errores notatos hereticorum foi editada por Céles

Douais na Somme des autorités à l'usage des prédicateurs méridionaux au XIII" siê

Paris, 1896, pp. 125-133. Tradução inglesa em WAKEFIELD e EVANS, pp. 35

-356.

78 Para uma ideia de conjunto ver Y. M. J. CONGAR, «Neuf cents ans ap

Notes sur le Schisme oriental» in L'Église et les Églises: neuf siécles de doulour

séparation entre l'Orient et /'Occident. Études et travaux ojJerts à dom Lambert Be

dom, I, Chevetogne, 1954. Cf. de um ponto de vista menos vasto, os estudos de D.

NICOL reunidos em Byzantium: lts Ecc/esiastical History and Relations with the W.

tem World, Londres, 1972.

79 D. STIERNON. «Le problême de l'union gréco-Iatine vu de Byzance: de

main 11à Joseph ler (1232-1273)>>in 1274, Année chamiére. Mutations et Continuü

(Colóquio de Lyon-Paris, 1974). Paris, C.N.R.S., 1977, p. 147.

80 P. RONCAGLIA, Georges Bardanés métropolite de Corfou et Barthélemy

/'ordre franciscain, Les discussions sur le Purgatoire (15 de Octobre-17 NovembrO

1231). Estudo critico com texto inédito, Roma, 1953, p. 57 e ss. I

81 Epitimies: actos de penitência e de mortificação.

82 João, XIV, 3.

83 Bardanês emprega aqui o termo 1tOP'Y'tOplO'Y neologismo para traduzir a palavra"

latina.

84 João, V, 29.

85 Mateus, XXV, 41.

86 Mateus, XXV, 51.

87 Marcos, IX, 43-48.

88 Lucas, XVI, 25.

89 Tradução ligeiramente corrigida tirada do artigo «Puragatoire» do Dictionnaire

de théologie catholique, col. 1248. Du Cange citou esta carta no seu célebre glossário na·

palavra Purgatorium. Eis, no latim original, as passagens importantes para o nosse.

objectivo: «Nos, quia locum purgationis hujus modi dicunt (Graeci) non fuisse sibi ab'

eorum doctoribus certo et proprio nomine indicatum, illum quidem juxta traditiones "

auctoritates sanctorum patrum purgatorium nominantes volumus, quod de caetero apud

iIlos isto nomine appeletur»

90 Ver J. A. WEISHEIPL, Friar Thomas d'Aquino, pp. 168-170.

340

,,. Ver A. DONDAINE, «Nicolas de Crotone et les sources du Contra errores

thuecorum de saint Thomas» in Divus Thomas, 1950, pp. 313-340.

n Ver a secção do colóquio 1274 Année charniêre (publicado em 1977 pelas edições

dI! C.N.R.S.) dedicada a Byzance et /'Union (pp. 139-207) com os artigos de D. Stiernon,

já citados; J. Darroiizês, J. Gouillard e G. Dagron. Ver também B. ROBERG,

/)Ir Union zwischen der griechischen und der lateinischen Kirche auf den lI. Konzi/ von

'.Vlln. 1274. Bona, 1964. Sobre as atitudes bizantinas em relação ao além espera-se um

próximo livro de Gilbert Dagron. Agradeço a Évelyne Patlagean por me ter comuni-

IlIIdo o texto do seu estudo «Bizâncio e o seu outro mundo. Observações sobre alguns

,.llIlos» a aparecer no colóquio Faire croire (Escola Francesa de Roma, (979).

93 Segundo o artigo «Purgatoire» do Dictionnaire de théologie catholique, col. 1249-

·1250.

94 Ver A. MICHEL, ibid.. col. 1249-1250.

'Ij Ibid., col. 1249-1250.

96 Ver designadamente De Purgatorio Disputationes in Concilio Florentino Habitae,

L. Petit et G. Hofmann, Roma, 1969.

97 Ver J. DARROUZES, «Les documents grecs concernant le concite de Lyon» in

/174. Année charniére, pp. 175-176. O texto citado, extraído do Procés de Niciphore

1/177) foi editado por V. LAURENT e J. DARROUZES, Dossier grec de l'Union de

I.Vlln (1273-1277). Arquivos do Oriente cristão, 16, Paris" 1976, pp. 496-501.

341



IX - O TRIUNFO SOCIAL: A PASTORAL E O PURGATÓRIO

No século XIII o Purgatório triunfou na teologia e no plano dogmático.

A sua existência é certa, tomou-se uma verdade da fé da Igreja. Sob

uma forma ou sob outra, num sentido muito concreto ou mais ou menos

abstracto, é um lugar. Oficializa-se a sua formulação. Vem dar sentido

pleno a uma prática cristã muito antiga: os sufrágios pelos mortos.

Mas os teólogos e a hierarquia eclesiástica controlam-no, limitam-lhe a

expansão no imaginário.

Ao nível em que vou agora colocar-me (tanto quanto o historiador

pode captá-lo), o da recepção do Purgatório pelas massas, pelo conjunto

dos fiéis e pelas diversas categorias profissionais, os progressos do Purgatório

são ainda mais impressionantes.

Quando a Igreja faz descer o Purgatório das alturas da razão teológica

para a prática pastoral, mobilizando os recursos do imaginário, o êxito

parece ser enorme. No fim do século XIII o Purgatório está por toda a

parte, na prática, nos testamentos (timidamente), na literatura em língua

vulgar. O Jubileu de 1300 será o seu triunfo pelo encontro das aspirações

das massas dos fiéis com as prescrições da Igreja. As oposições esbatem-

-se, entre os intelectuais e até entre os hereges. Só a imagem continua

refractária a esse triunfo: conservadorismo da iconografia? Dificuldades

na representação de um mundo intermédio, temporário, efémero? Cautela

da Igreja, preocupada em manter o Purgatório próximo do Inferno ou

mesmo «infernizá-lo» para evitar representações mais tranquilizadoras do

que assustadoras?' O Purgatório nasce numa perspectiva de localização

porque é preciso encontrar um lugar para as penas que purgam, porque o

vaguear das almas penadas já não é suportável. Mas o espaço e o tempo

estão sempre ligados, mesmo que esse lugar não seja simples, como no-lo

recorda Tomás de Aquino.

343



o tempo contado

a Purgatório é também um tempo, visto que podemos defini-lo co

um inferno «temporário». Há, pois, um tempo de Purgatório, e esse te

po que também se define na viragem do século XII para o século XI

insere-se no repensar geral das estruturas temporais nessa época.

Até então a vida e as mentalidades eram dominadas por uma ideol

gia do tempo por um lado e pela experiência de uma multiplicidade

tempos por outro. A Igreja ensinava a teoria das seis idades do mund

que chegara à sexta e última idade, a da velhice ou decrepitude e,

firmar solidamente o universo numa historicidade marcada por doi

grandes acontecimentos do passado (a criação seguida da queda e a E

carnação do Cristo, origem da redenção) ela estava orientando o tem

no sentido de um fim: o Julgamento Final e a absolvição do tempo

eternidade. Acreditava e afirmava que esse fim estava próximo e es

convicção teve como consequência preocuparem-se pouco com o peri

do, muito curto, que separava a morte individual da ressurreição d

corpos e do julgamento geral. Indivíduos e grupos exigentes e contes

tários, ou as duas coisas ao mesmo tempo, introduziram duas varian

neste esquema.

Uns desejavam um rejuvenescimento do mundo, o regresso da Igrej

primitiva, forma cristã do mito da idade de ouro, outros e por vezes

mesmos acreditavam e esperavam que, de acordo com o Apocalipse,

fim do mundo seria precedido por provações do Anticristo, mas ant

por uma longa época de justiça, o Millenium. No começo do século

XIII o milenarismo, condenado desde há muito pela Igreja, encontra

um novo profeta, o abade Joaquim de Flore cujas ideias inflamam, ao

longo do século, numerosos adeptos, principalmente entre os franei ••

canos".

Por outro lado, a vida dos homens era pontuada por uma multiplieis

dade de tempos: o tempo litúrgico, o tempo do calendário anunciado.

controlado pela Igreja e diariamente indicado pelos sinos dos edificio ..

religiosos, o tempo dos trabalhos campestres estreitamente dependente

dos ritmos naturais mas marcado por ritmos calendarizados mais ou menos

cristianizados: ciclo dos doze dias do princípio do ano tradicional, do

Natal à Epifania, tempo de Carnaval e de Quaresma, tempo das Rogações

e de S. João, época das colheitas, o tempo feudal marcado pelo.

trabalhos da Primavera e pelas datas do prazo de pagamento das rendas,

as grandes assembleias do Pentecostes. Todos tempos repetitívoa,

se não circulares.

Todavia desenham-se segmentos de tempo linear, períodos revestido.

de um sentido. Decorrem de uma nova aplicação da memória individual.

colectiva. A memória que se exerce sobre as recordações do passado não

344

pode recuar mais de uma centena de anos, como demonstrou Bernard

Uucnée 3 . Ao nível dos poderosos e da nobreza, ela combina-se com a

dllta fornecida por um escrito, por um foral conservado mais ou menos

por acaso, e pelas lendas sobre os antepassados, os fundadores das linhapns,

para permitir a elaboração das genealogias". Principalmente e para

nossa reflexão, ela está na fonte da memória dos mortos, tão viva sobretudo

em Cluny nos séculos XI e XII, ainda antes de o Purgatório ser

localizado. A redacção de obituários chamados Livros de Memória (Li-

"ri memoriales) e a instauração no dia seguinte a Todos-os-Santos, em 2

de Novembro, de uma Comemoracão por todos os Defuntos, exprime essa

memória inscrita nos livros e na liturgia dos mortos que serão salvos para

" da mortes.

No século XII, o que caracteriza as novas atitudes em relação ao tem-

!l0 é a combinação entre o tempo escatológico e o tempo terrestre cada

vezmais penetrado de linearidade e sobretudo cada vez mais entrecortado

de normas, de pontos de referência, de porções de tempo.

Este tempo sucessivo que é também o tempo da narração é particularmente

sensível na literatura narrativa que conhece uma extraordinária

voga depois de 1150 e sobretudo depois de 1200: os pequenos poemas

narrativos, os contos em verso, o romance, tornam-se em poucos decénios

géneros de sucesso". a êxito do Purgatório é seu contemporâneo, ou

melhor, os dois fenómenos estão ligados. O Purgatório introduz uma

Intriga na história individual da salvação, e essa intriga prossegue para

além da morte.

as defuntos quando morrem têm de entrar num tempo escatológico,

quer vão eternamente para o Inferno ou para o Paraíso, quer esperem

durante todo o tempo que separa a morte individual do Julgamento Filial

num lugar neutro mas sombrio, cinzento, do tipo do shéol judaico, ou

então em receptáculos como o seio de Abraão. Mas a teoria dos receptáculos

que, no fundo, tivera até ao século XII os favores do cristianismo,

transforma-se a ponto de não ser mais do que uma expressão de escola.

() limbo dos padres, dos patriarcas, foi definitivamente encerrado, o seio

de Abraão esvaziou-se, Henoch e Elias moram sozinhos no Paraíso terrestre.

Apenas restam o limbo das crianças e o Purgatório.

Apesar de alguns sinais de hesitação vindos sobretudo de Agostinho,

este último está daí em diante, no século XIII, bem delimitado nas suas

fronteiras temporais. Só se entra lá depois da morte. A purgação não

começa na terra. a desenvolvimento das crenças e das práticas de penitência

favoreceu sem dúvida o nascimento do Purgatório. Mas a concepção

«penitencial» do Purgatório de um Guillaume d'Auvergne não se

encontra depois dele com a mesma força. Tomás de Aquino dá a resposta

teórica sublinhando que não pode haver penitência senão durante a

vida e pena só depois da morte. Portanto a entrada no Purgatório só

345



começa com a morte. Tal como não usurpa o tempo terreno, o Purgatório

também não rouba no tempo propriamente escatológico, no pós-ressurreição.

Na verdade, o «fogo» purgará não durante o Julgamento Final

mas sim antes.

O mais importante é que, para os defuntos individuais, o tempo do

Purgatório nã9 cobrirá obrigatoriamente todo o período entre a morte e a

ressurreição. E mesmo mais provável que a alma do Purgatório seja libertada

antes do Julgamento, mais ou menos rapidamente, mais ou menos

cedo, segundo a qualidade e a quantidade dos pecados a purgar e a

intensidade dos sufrágios oferecidos pelos vivos. Eis, pois, que no além se

instala um tempo variável, mensurável e ainda mais manipulável. Daí a

precisão com que os narradores de aparições de almas do Purgatório e a.

próprias almas indicam, nos seus discursos aos vivos, o tempo decorrido

depois da morte, o tempo já cumprido no Purgatório, por vezes as pre- .

visões da duração da pena ainda a purgar" e sobretudo do momento em

que se deixa o Purgatório pelo céu do Paraíso, o que permite medir O

tempo passado no Purgatório.

E aqui que se procura instaurar um cálculo, uma contabilidade sobre

a relação entre a quantidade de pecados cometidos na terra, a quantidade

de sufrágios produzidos em reparação desses pecados e o lapso de tempo

passado QO Purgatório. Com as suas considerações sobre a proporcionalidade,

Alexandre de Hales deu uma espécie de justificação teórica a esses

cálculos que Tomás de Aquino se esforçou por conter. O desenvolvimento

do sistema de indulgências abrirá a porta a todos os excessos dessa

contabilidade. Assim são postos em relação, de qualquer maneira, o tempo

terreno e o tempo do além, o tempo do pecado e o tempo da purgação.

O sistema do Purgatório tem ainda duas consequências capitais.

A primeira é dar uma renovada importância ao período que precede a

morte. E certo que os pecadores sempre foram prevenidos contra a morte

súbita e convidados a prepararem-se a tempo, para escaparem ao Inferno.

Mas para evitar uma condenação tão pesada era preciso actuar depressa e

bem, não levar uma vida demasiado escandalosa, não cometer um pecado

demasiado exorbitante, ou, no caso de o cometer, fazer uma penitência

exemplar o mais depressa possível, de preferência uma peregrinação a um

lugar distante. Para aqueles a quem a ordem monástica podia abrir-se

facilmente, eruditos seculares, nobres, poderosos, tomar o hábito quando

chegava a velhice e a decrepitude era uma boa garantia. Daí em diante

o sistema do Purgatório permite definir na prática comportamentos mais

matizados mas igualmente decisivos se se trata de escapar apenas ao Purgatório.

O melhor meio é, à falta de uma vida santa, a penitência - cada

vez mais precedida de confissão - mas há ainda in extremis esperança de

escapar ao Inferno e de se ser passível apenas do Purgatório, se pelo

menos se iniciou o arrependimento. A contricão final toma-se cada vez

346

mais o último recurso para beneficiar do Purgatório. Os últimos ~ns~~lOtes

adquirem assim uma intensidade suplementar? pois s~ p~a a maioria dos

moribundos já há muito tempo é tarde d~ mais para l~ ~lrectamente para

o Céu, é ainda tempo de salvação atraves do Purgatono. Parece-me, ~o

contrário do que diz Philippe Ariês em O Homem f~rante a.~orte, que e a

partir do século XIII que «daí em diante ~ar~ ~hilippe Ariés trata-se dos

séculos XIV-XV) a sorte da alma imortal e decidida no mo~ento da morte

física» e que o Purgatório é uma das causas fundamentaIs desta dramatização

do momento da mortes. ,

Philippe Ariês prossegue: «Cada ~ez hayera menos .lugar para os espectros

e suas manifestações.» Também venfico, a partir ~~ seculo ,XIII e

com excepção do pequeno número de almas do Purgatono, o nu~e:o

ainda mais pequeno de eleitos ou de condenados que «po.r pe~lssao

especial» de Deus fazem curtas aparições aos vivos para edificação destes

mas sem se entregarem à vagabundagem. Se compararmos A Lenda

D;urada do dominicano Jacopo de Varazze, escrita por vo~ta d~ .1260,

com as descrições dos habitantes de Montaillou perante os inquisidores

meio século depois, ficamos impression~dos com a ~~gabundagem das

almas à volta desses aldeões hereges hostis ao Purga tono e com .a gra~de

ausência de espectros no livro do pregador interessado em difundir a

, . 9

crença no Purgatono . .

O Renascimento assistirá, no entanto, ao regresso dos espectros, pois

se o Purgatório continua então a desempenhar o seu papel de laço entre

os vivos e os mortos, enriquecendo até essa função com nov~s formas de

devoção, parece já não funcionar bem como lugar de reclusao ~as almas

penadas. Alguns historiadores do século XVI chamaram a atençao para a

vagabundagem recomeçada e para as danças nos cemitérios, terrenos dos

, . 10

espectros escapados ao Purgatono .

Mas não acho que Philippe Ariês tenha razão ao acrescenta~: ~(Em

compensação, a crença - durante muito tempo reservada aos sábios e

aos teólogos ou poetas - no Purgatório como lugar de espera, to~ar-

-se-á verdadeiramente popular, mas não antes dos meados do século

XVII.» Interrogam-se até se em certas regiões, na de Toulouse, por exemplo,

a voga do Purgatório não acabou no século XVII~ll... .

O sistema do Purgatório tem uma segunda consequencla: implica uma

definição relativamente concisa dos laços - entre os vivos e os mortos -

eficazes no caso dos sufrágios. . .

A quem aparecem as almas do Purgatório para pedir .socorr?? .Pnmel-

TO à família carnal ascendentes ou descendentes. Depois ao conjuge - e

es~ecialmente no s6culo XIII é import~~te o p~p~l ~as viúvas dos m?rt~s

do Purgatório. A seguir, às suas famílias artificiais e, antes de ~als? as

ordens monásticas a que pertencem se são monges, ou a que estãoligados

se são laicos. Enfim, o defunto pode aparecer a um supenor: e eVI-

347



dente no caso de um monge que vem solicitar um superior do convento,

ou da abadia, mas encontra-se também o caso de um vassalo, de um

familiar, de um servo que se dirige ao seu senhor, ao seu patrão, como

se o dever de protecção por parte do senhor, estabelecido no contrato

feudal, continuasse para além da morte, no decurso desse tempo ao mesmo

tempo diferente e suplementar que é o tempo do Purgatório. Pouco a

pouco, do século XIII ao século XVI, a solidariedade do Purgatório ser' .

arrastada nas novas formas de sociabilidade das confrarias. Mas não

devemos iludir-nos; e Philippe Ariês, se datou como demasiado tardio

esse momento essencial, compreendeu bem que o Purgatório dá outro

sentido à fronteira da morte. Se, por um lado, parece tomá-Ia mais transponível,

estendendo sobre a encosta do além a possibilidade de remissão

dos pecados, por outro põe termo à passagem da vida para a eternidade

(gloriosa ou não) como se de um tecido temporal sem costura se tratasse.

Aproveitando o termo de Gabriel Le Bras, direi que, para um número

crescente de defuntos, abre-se no além um «estágio» entre a vida terrena

e a recompensa celeste.

O esquema temporal do Purgatório, tal como se exprime nas aparições

e se revela nas relações entre vivos e mortos, pode descrever-se assim:

pouco tempo depois da morte (alguns dias ou alguns meses, raramente

mais) um defunto que está no Purgatório aparece a um vivo a quem

estava ligado na terra, informa-o com maiores ou menores delongas da

sua situação, do além em geral e do Purgatório em particular, e convida-o

a levar a cabo ou a encomendar a outro parente ou pessoa próxima ou a

uma comunidade, sufrágios (jejuns, preces, esmolas e, sobretudo, missas)

em seu favor. Promete comunicar-lhe numa próxima aparição a eficácia

(ou ineficácia) dos sufrágios realizados. Esta reaparição pode fazer-se a

um ou a dois tempos. Se há uma primeira aparição, o morto indica geralmente

ao vivo que porção da pena já cumpriu. A maioria das vezes

uma porção simples, a metade ou um terço, materializada pela aparência

exterior do espectro cujo «corpo» (ou «vestuário») são metade negros

(tempo que falta cumprir) ou um terço brancos e dois terços negros, etc.

Podemos espantar-nos (e os homens do século XIII, ainda pouco familiarizados

com um Purgatório banalizado, manifestaram esse espanto)

por a estada no Purgatório surgir, na maior parte das vezes, como muito

breve, da ordem de dias ou de meses, se bem que num dos primeiros casos

mais interessantes, o do usurário de Liêge, a purgação dure catorze anos

" 12 ' ,

em dOISpenodos de sete anos . E que o tempo parece muito longo no

Purgatório, por causa da dureza (acerbitas) das penas sofridas. Um dia

aparece a alguns, como se verá, tão comprido como um ano. Esta intensidade

do tempo do Purgatório é notável a vários títulos. É primeiro uma

solução, ainda que grosseira, para o problema da proporcionalidade entre

tempo terreno e tempo no além purgatório que põe em relação tempos

348

desiguais e mesmo diferentes. É também o recurso a um conceito psicológico

(o sentido subjectivo da duração) bem de acordo com a crescente

«psicologização» que caracteriza a literatura da mesma época. Enfim - e

não é o menos espantoso nem o menos importante -, o tempo do Purgatório

inverte-se em relação ao tempo do além tradicional do folclore. Este

e assim definido no contra-tipo 470 da classificação dos contos populares

por Aarne-Thompson+': «Anos vividos como dias: os anos passados no

outro mundo parecem dias por causa do esquecimento» e, mais ainda,

porque lá a vida é agradável. A passagem do branco além céltico para

o além muito duro do Purgatório levou à inversão da sensação de tempo.

Evolução notável: neste jogo de inversões entre a cultura erudita e a

cultura folclórica, é geralmente o folclore que imagina um mundo ao

invés. Mas aqui o pensamento erudito, que recebeu do folclore o tema

do além de onde se regressa, procede por sua própria conta a uma inversão.

Nisto vê-se bem o jogo dos empréstimos recíprocos e dos passos

simétricos da cultura erudita e da cultura folclórica. Vejo aqui uma das

provas da presença do folclore no seio da génese do Purgatório'". Recordemos

a Viagem de Bran, por exemplo, no fim da qual, quando Bran e os

companheiros querem voltar à terra de onde partiram, depois do seu

périplo pelas ilhas maravilhosas que não são senão o além, ao saltar do

navio para terra um deles cai desfeito em cinza «como se tivesse vivido

muitas centenas de anos na terra». No século XIII, a literatura das visões

não esgotou a sua sedução sobre ouvintes e leitores. Daí em diante as

viagens pelo além dão lugar, aberta e nomeadamente, ao Purgatório.

Novas viagens pelo além

Nos primeiros anos do século um cisterciense alemão, Conrado, que

foi monge em Clairvaux e depois abade de Eberbach, no Taunus, escreve

uma série de milagres e de historietas ao retratar os começos da ordem,

O Grande Exórdio Cisterciense ou o Relato dos Começos da Ordem Cisterciense

(Exordium Magnum Cisterciense Sive Narratio de Initio Cisterciensis

Ordinis). Nele se encontram várias histórias de espectros. O

Purgatório raramente é citado porque a obra apresenta-se como a história

de um tempo, o século XII, e até 1180 ele ainda não existia. Numa

história tirada do Livro dos Milagres, escrito em 1178 por Herbert de

Clairvaux, um castelão dado à violência e à rapina, Baudouin de Guise,

da região de Reims (que no entanto venerava Pedro, abade de Igny)

morrera arrependendo-se mas sem ter tido tempo de fazer penitência. Na

própria noite da .ua morte, aparece a um monge invocando o auxílio de

S. Bento, enquanto um anjo aparece a Pedro de Igny para pedir sufrágios

da comunidade cisterciense pelo morto. Algum tempo depois, dois anjos

349



levam diante do altar da igreja da abadia de Igny, à presença do abade

Pedro, o defunto com hábitos negros mas com bom aspecto e feitos de

bom tecido. O abade compreende que as vestes negras são sinal de penitência

e que esta aparição diante do altar dá a entender que o morto será

salvo. Como depois ele não apareceu mais, teve-se a certeza de que fora

recebido nos lugares purgatórios (in locis purgatoriis ), promessa de salvação

futura.

Vê-se que o sistema não funciona bem visto que o morto não volta

para informar os vivos da sua passagem do Purgatório para o Paraíso 15 •

Noutra história é Santo Agostinho que aparece numa visão a um

santo monge de Clairvaux para o conduzir através de inúmeros lugarea

de penas até à entrada do poço da geena 16.

Ainda noutro caso Conrado propõe-se mostrar como a prova do fogo

purgatório é temível e aterradora: conta a história de um monge que,

antes de morrer, é conduzido em espírito aos lugares infernais (ad loca

infemalia), onde a breve visão que tem se aproxima muito do Purgatório

de S. Patrick (e do Apocalipse de Paulo), e depois a um lugar de refrigério

(ad quemdam refrigerii locum). Conrado explica que os mortos são recebidos

neste lugar depois de terem sido purgados dos seus pecados com

mais ou menos rapidez segundo a quantidade e a qualidade dos pecados,

e cita o sermão de S. Bernardo quando da morte de Humberto, superior

de Clairvaux, em que o santo dissera que os pecados cometidos cá em

baixo deviam ser pagos cem vezes mais até ao último tostão nos lugares

purgatórios (in purgatoriis locis) 17.

Recordações de um tempo em que o Purgatório se preparava para

nascer mas ainda não existia, estas visões e aparições do Magnum Exordium

Cisterciense têm um perfume arcaico. O Purgatório está em compensação

bem presente nas visões relatadas um pouco mais tarde por dois

beneditinos ingleses, herdeiros da grande tradição céltica e anglo-saxónica

desde Bede. O primeiro, Roger de Wendover, monge da grande abadia

de Saint-Albans, falecido em 1236, conta nas suas Flores das Histórias

(Flores historiarum), datadas de 1206, a viagem de Thurchill ao além'",

Quando trabalhava no seu campo, este camponês da aldeia de Tidstude,

na diocese de Londres, vê aparecer um homem que diz ser S. Julião

Hospitaleiro e que o previne de que virá buscá-lo na noite seguinte para o

levar junto do seu patrono S. Tiago de que é devoto, e para lhe mostrar,

por permissão divina, segredos escondidos aos homens. Chegada a noite,

vem com efeito acordá-Io no seu leito e faz-lhe sair a alma do corpo que

fica no leito mas não inanimado. O seu guia fá-lo entrar numa grande e

esplêndida basílica que não tem paredes excepto uma, não muito alta, a

norte. S. Julião e S. Domnius, guardas da basílica, levam Thurchill a

visitá-Ia. São os lugares que Deus destina aos mortos sejam eles condenados

ou salvos pelas penas do Purgatório (per purgatorii poenas). Junto

350

du parede Thurchill vê almas manchadas de preto e branco. As mais

brancas são as mais próximas da parede e as negras as mais distantes.

Ao lado da parede abre-se o poço do Inferno e Thurchill sente o seu odor

rétido. Esse odor, diz-lhe Julião, é um aviso por ele não pagar as suas

dizimas à Igreja. Mostra-lhe a seguir a leste da basílica um grande fogo

purgatório pelo qual passam almas antes de serem purgadas num outro

purgatório, esse gelado, um lago muito frio onde a passagem é regulada

por S. Nic~lau (que já encontrámos como santo do Purgatório). Por fim,

11M almas passam mais ou menos depressa por uma ponte com estacas e

pregos aguçados para a montanha do Paraíso (o monte de alegria, mons

/luudii). Regressados ao centro da basílica, Julião e Domnius mostram a

'l'hurchill a triagem e a pesagem das almas. S. Miguel Arcanjo, S. Pedro e

S. Paulo procedem a elas em nome de Deus. S. Migue1 faz passar as almas

todas brancas pelas chamas do fogo purgatório e pelos outros lugares de

penas sem que elas fiquem feridas, e leva-as para o monte do Paraíso. As

que estão manchadas de branco e preto, S. Pedro fá-Ias entrar no fogo

purgatório para aí serem purgadas pelas chamas. Q~anto às almas todas

negras são objecto de pesagem entre S. Paulo e o diabo, Se a balança se

inclina para o lado de S. Paulo, este leva a alma para ser purgada no fogo

purgatório; se se inclina para o lado do diabo, este leva-a para o Inferno.

'l'hurchill, acompanhado de S. Domnius, visita a seguir demoradamente o

Inferno guiado por Satanás, excepto o inferno interior. Aproximando-se

do átrio de entrada do monte de alegria apercebe-se de que S. Miguel faz

nvançar as almas que esperam mais ou menos depressa em proporção

com o número de missas que os amigos e a Igreja universal mandaram

dizer pela sua libertação. Depois percorre rapidamente muitas casas do

monte paradisíaco com S. Miguel por guia e termina com uma volta pelo

Paraíso terrestre. S. Julião aparece-lhe de novo e ordena-lhe que conte o

que viu. Daí em diante, no dia de Todos-os-Santos, Thurchill contará a

sua visão. Fá-lo em linguagem vernácula e admiram-se por aquele rústico

anteriormente sem cultura e com dificuldade de falar, dar prova de uma

bela eloquência nestes relatos'".

Esta descrição cheia de arcaismos agrupa, de facto, em três lugares,

Paraíso, Inferno e Purgatório, o mundo do além, mas a divisão geográfica

não é perfeita. O Inferno inclui uma parte superior e outra inferior, o

Paraíso contém muitas casas e a sua montanha parece-se com a torre

de BabeI, e o Purgatório é feito de três pedaços colados uns aos outros:

o fogo, o lago gelado e a ponte.

o Purgatório celebrado: os «exempla»

Estas histórias ainda só eram destinadas a um auditório limitado, o

dos mosteiros; faltava-Ihes chegar às massas laicas.

351



o grande meio de difusão do Purgatório é o sermão e dentro

sermão, as historietas com que os pregadores recheiam as suas homil

e que fazem passar a lição através do divertimento da anedota. Este

curs? a uma f~rma narrativa curta é um dos meios principais pelo qual

Igreja moderniza o seu apostolado, mantendo-se porém dentro de u

longa t~a~i.ção.Na ocorrência es.tas historietas edificantes, estas exemp

comp~t.lblhzam-se - apesar de diferenças notórias - com as narrações

Gregono, o Grande, nos seus Diálogos. Ora essas narrações são com

sab~~os, um marco essencial no caminho do Purgatório. O e~cont

decisivo no século XIII entre o Purgatório e o exemplum é a consecu

retumbante do cenário que, seis séculos e meio antes, Gregório, o Grau

de, esboçaraê" .

O se?Dão teve ~emp.reum lugar importante no apostolado da Igrej

mas o seculo XIII e o seculo do renascimento do sermão no seio de

discurso novo, mais directo, mais realista, do qual os irmãos mendican

são em breve os principais promotoresê'. O sermão - e as suas incrus

ções, os exemp/a - é o grande meio de comunicação de massas do sécul

XIII, a mensagem recebida po~ todos os fiéis, mesmo havendo algun.

desertores da rmssa e e~ e~pecIal da pregação, mais dados a ser pilarei

de taberna do que de Igreja. O sermão recheado de exempla já não'

apenas ~m momento esperado do oficio, desenvolve-se separadamente,

nas Igrejas ou nas pra.ças, prefiguração da conferência e do «meetings,

A par com os malabanstas cujo público é sobretudo de nobres, os pregadores

da .moda tornam-se os «ídolos» das multidões cristãs. Mostramolhes,

ensinam-lhes, o Purgatório.

Um precursor: Jacques de Vitry

!acques de Vitry é um dos primeiros autores de modelos de sermões

che~os d~ exemp/a qu~ iriam s~r m.uito utilizados depois. Formado pela

U~l1~ersldade de Pans nos pnmeiros anos do século XIII, pároco de

Oigmes no No~e de França, em contacto com o meio das beguinas (ess~s

mulh~res re~Iradas no meio das cidades para aí levarem uma existência

a meio carmnho entre a das laicas e a das freiras), pregador célebre

entre ~a parte da cristandade, sobretudo em França, bispo de Acre na

Palestina e, por fim, cardeal bispo de Tusculum (morre em 1240): é um

p:rsonagem considerávell/ê Nas suas recolhas de sermões o Purgatório

nao ~cupa grande lugar, mas vê-se nele o novo sistema do além bem

acreditado e oferece-nos particularidades interessantes. Com efeito, deve

acrescentar-se aos seus exempla as partes teóricas dos sermões que exprimem

as suas concepções.

352

Duas passagens são particularmente significativas. A primeira está

num modelo de sermão Aos esposos (Ad conjugatos): «A contrição

transforma a pena do inferno em pena do Purgatório, a confissão em

pena temporal, a satisfação conveniente em nada. Na contrição o pecado

morre, na confissão é retirado da casa, na satisfação é enterrado'".»

Ex.posição notável que liga o Purgatório à contrição e ao processo

penitencial e que sublinha o regresso decisivo do Inferno para o Purgatório.

Num modelo de sermão para os domingos, Jacques de Vitry evoca a

Ideia de um repouso dominical no Purgatório: «Faz parte da devoção

Acreditar, e muitos santos o afirmam, que no dia do Senhor as almas

dos defuntos repousam ou, pelo menos, sofrem castigos menos duros

no Purgatório até segunda-feira, quando a Igreja tem o hábito de os

socorrer na sua compaixão, celebrando uma missa pelos defuntos. Assim,

é a justo título que são privados do beneficio desse repouso dominieul

aqueles que não honraram cá em baixo o dia do Senhor, recusando

Abster-se dos trabalhos servis e dos negócios do século ou, pior ainda,

entragando-se a comezainas e à bebida e a outros desejos carnais, dando-se

lascivamente a danças e canções, e que não tiveram receio de sujar e

de desonrar os domingos com querelas e discussões, com propósitos vãos

e ociosos, com palavras maldizentes e temerárias'".»

Transposição do repouso sabático no Inferno para uma trégua dominical

no Purgatório, ligação entre o comportamento ao domingo cá em

baixo e a pena de domingo no além. A Igreja amarrou decididamente o

Pnrgatório à prática terrena num paralelismo edificante.

Dos modelos de sermões de Jacques de Vitry destinados ao conjunto

lias situações humanas (sermones vulgares ou ad status) apenas aproveito

dois exempla em que o Purgatório tem um papel fundamental.

O primeiro, talvez proveniente do cisterciense Hélinand de Froimont,

veio das lendas tecidas em volta de Carlos Magno e dirige-se «àqueles que

choram a morte de parentes ou amigos». Situa-se pois nas novas formas

de sociabilidade entre os vivos e os mortos. Um cavaleiro do séquito de

Carlos Magno numa expedição contra os Sarracenos em Espanha pede

por testamento a um parente que, depois da sua morte, venda o seu cavalo

em beneficio dos pobres. O parente, indelicado, fica com o cavalo.

Ao fim de oito dias o morto aparece-lhe, censura-lhe ter retardado a sua

libertação do Purgatório e anuncia-lhe que no dia seguinte ele expiará a

sua culpa com uma morte horrível. No dia seguinte aparecem corvos

negros que levam o infeliz pelos ares e o deixam cair sobre um rochedo

onde parte a cabeça e morre'". O papel dos vivos para com os mortos do

Purgatório é evocado com bastante subtileza e a diferença entre pecado

venial e pecado mortal fica bem ilustrada. Aqui o objectívo é incitar ao

cumprimento das disposições testamentárias, em especial quando se tr ita

353



verdade

de cláusulas reparadoras, pelos testamenteiros. O jogo Purgatório/Inf

no enriquece a panóplia das ameaças.

O s~gundo exemplum mal evoca o Purgatório, mas nem por isso

menos Importante e está ligado às prédicas a favor da cruzada. U

mulher ,im~ede o marido ~e ir ouvir um sermão pela cruzada preg

pelo propno Jacques de Vitry. Mas ele consegue ouvi-lo por uma j

Ia, e quando o pregador anuncia que esta penitência permite evitar

p~~a~ p~rgatórias e a pena da g~ena, e obter o reino dos céus, foge

vigilância da mulher, salta pela Janela e vai ser o primeiro a tomar

cruz2~. Cruza~a, indulgência e Purgatório, evocação do sistema trip

do alem, também aqui se apresenta um modelo onde o Purgatório des

penha um papel intermédio cada vez mais importante.

Dois grandes divulgadores do Purgatório

É entre os religiosos das ordens e no contacto ainda mais estreito co

os meios urbanos que devemos procurar os grandes divulgadores do Purw

gatório por meio da prédica e dos exempla. E eis dois deles, eminen

entre todos os ou!r~s: São bem diferentes de Jacques de Vitry e o cOQ,

traste entre eles dOISe Igualmente grande. São dois monges, um cistercien ••

e o outro dominicano, e viveram nos dois primeiros terços do século XIQ

mas ~m morreu em 1240 e o outro vinte anos depois, em 1261: um •

alemao e o seu ponto de referência geográfico e cultural é Colónia, cOe

quanto o outro é francês e a sua experiência vai da formatura universi«

tária em Paris até à sua actividade como inquisidor num grande círculo

ao redor do Convento dos Pregadores de Lyon. Porém, ambos escrevem

obras para uso directo ou indirecto dos pregadores e ambos rechearam di

exempla os seus tratados a ponto de eles terem sido (erradamente) considerados

compilações de exempla. Um e outro dão sobretudo uma grande

importância ao Purgatório tanto nos exempla como na construção teórica

em que se Inserem. Com eles surge nitidamente o além triplo Inferno

Purgatório e Paraíso, num equilíbrio relativo que culminará co~ a Div~

na Comédia.

1. O cisterciense Cesário de Heisterbach

Em forma de diálogo que lembra Gregório, o Grande o cisterciense

Ce.sário de Heisterbach elaborou entre 1219 e 1223 u~ Diálogo dOI

MIlagres, na verdade uma recolha de historietas em que assistimos 4

tr~nsformação do relato tradicional do milagre em exemplum, conto

e?Ificante. 27 ._ Mas esta r;c~lha tem ~a orientação que é uma peregrinaçao

do cnstão aos fins últimos, ao alem. As doze etapas desta peregrina-

354

\lIo que constituem os doze livros (destaques) do Dia/ogus miracu/orum

do a conversão, a contrição, a confissão, a tentação, os demónios, a

aimplicidade, a Virgem Maria, as visões, a eucaristia, os milagres, os moribundos

e a recompensa dos mortos'". Este último capítulo é, evidentemente,

aquele onde o Purgatório aparece em plenitude, quer pelo número

e os pormenores dos exempla quer pela estrutura da obra.

A estrutura do décimo-segundo e último destaque é simples. A da

recompensa dos mortos é tripla. Para uns é a glória do Céu (Paraíso

celeste), para outros são ou as penas eternas do Inferno ou as penas temporárias

do Purgatório. Em cinquenta e cinco exempla, vinte e cinco são

dedicados ao Inferno, dezasseis ao Purgatório e catorze ao Paraíso. Por

esta simples contagem se vê que, apesar de Cesário ser um espírito liberal

e misericordioso e a «infernizaçâo» do Purgatório não ter atingido a intensidade

a que chegará mais tarde no mesmo século, o Inferno continua

u ser o lugar de onde se extraem mais lições. Causar medo constitui uma

preocupação, se não primeira pelo menos essencial'". Entre Inferno e

Paraíso, porém, o Purgatório conquistou para si um lugar praticamente

igual.

Mas o Purgatório não esperou pelo último destaque do Dialogus

miraculorum para aparecer. Andrée Duby citou oito «exempla do Purgatório»,

entre os quais alguns importantes para a doutrina do Purgatório

visto por Cesário ". Na verdade, se o Purgatório faz daí em diante parte

do último capítulo das súmulas cristãs, o que trata dos «fins últimos», dos

novissima, encontra-se também no horizonte de cada etapa da vida espiritual.

Apresentarei quatro exempla importantes dos primeiros livros antes

de tratar do bloco de exempla do Purgatório do último «destaque»,

No primeiro capítulo que trata da conversão, Cesário de Heisterbach

conta a história de um estudante pouco dotado que, para ter êxito nos

estudos, aceita, a conselho do diabo, recorrer à magia. Segurando na mão

um talismã que Santanás lhe deu, brilha nos exames. Mas fica doente e

em artigo de morte confessa-se a um padre que o faz deitar fora o talismã.

Morre e a sua alma é transportada para um vale horrível onde espíritos

com mãos de unhas compridas e afiadas brincam com ela como se fosse

uma bola, e ao brincarem ferem-na gravemente. Deus tem piedade dele e

ordena aos demónios que deixem de torturar aquela alma. Esta reintegra

o corpo do estudante que volta à vida. Assustado com o que viu e experimentou,

converte-se e faz-se monge cisterciense, vindo a ser abade de

Morimond. Trava-se então um diálogo entre o noviço e o monge, ou

seja, Cesário. O noviço pergunta se o lugar de tormentos do estudante

era o Inferno ou o Purgatório. Cesário responde que, se o vale das penas

pertencesse ao Inferno, isso significaria que a sua confissão não fora

acompanhada de contrição e à é que ele consentiria em ficar

355



com a pedra mágica mas recusara render homenagens ao demónio. N

entanto, o que impede Cesário de falar explicitamente do Purgatório

respeito deste abade de Morimond é o facto de não haver anjos na sua

visão mas sim demónios. Ora o mestre de Cesário nas escolas de Colónia..

Rudolfo, ensinara-lhe que os demónios nunca tocavam numa alma eleita

e que eram os anjos bons que a levavam para os lugares do Purgatório,'

«se ela for digna do Purgatório» - expressão que indica que o Purgatório

é promessa de Paraíso, esperança, concessão da justiça misericordiosa d.

Deus". .

No capítulo da contrição, o segundo, Cesário conta a história de um

jovem monge quê deixou o convento, fez-se salteador de estrada e foi

mortalmente ferido durante o cerco a um castelo. Antes de morrer confessa-se

e os seus pecados parecem tão grandes ao confessor que este não

encontra penitência para lhe dar. O moribundo sugere mil anos de Purgatório

ao fim dos quais espera a misericórdia divina; e antes de expirar

pede ao padre que leve a um certo bispo uma carta em que lhe roga que

reze por ele. Morre e é levado para o Purgatório. O bispo, que nunca I

deixara de amar aquele ex-monge apesar da sua apostasia, reza e manda

rezar por ele durante um ano todo o clero da sua diocese. Passado um

ano o morto aparece-lhe «lívido, descamado, magro, vestido de negro»,

Agradece todavia ao bispo porque esse ano de sufrágios lhe retirara mil

anos de Purgatório e declara que mais um ano de ajuda o libertaria totalmente.

O bispo e o seu clero repetem os esforços. Ao cabo do segundo

ano, o morto reaparece ao bispo «de cogula branca e com ar sereno».

quer dizer com o hábito cisterciense. Anuncia a sua partida para o Paraíso

e agradece ao bispo, pois aqueles dois anos lhe haviam sido contados

por dois mil anos. O noviço fica maravilhado com o poder da contrição

do morto e com o poder das preces que o libertaram. Cesário sublinha

que a contrição é mais eficaz do ~ue os sufrágios que podem diminuir a

pena mas não aumentar a glória" .

A história de um jovem monge cisterciense de Heisterbach que se encontra

no último livro do Dialogus miraculorum, Cristiano, contém igualmente

muitos ensinamentos sobre a contabilidade do Purgatório segundo

Cesário. Trata-se de um monge muito piedoso, impregnado durante a

vida de um perfume aromático semelhante ao odor de santidade, mas

fraco de espírito, favorecido com visões da Virgem, dos anjos, do próprio

Jesus, mas atormentado por provações de tentação, como perder o

dom das lágrimas que lhe é restituído por um beijo num crucifixo. A sua

última provação é uma doença terrível. Aparece-lhe Santa Agata que o

exorta a suportar com resignação aquela doença, pois sessenta dias de

sofrimento ser-lhe-ão contados por sessenta anos. Sessenta dias após esta

aparição, no dia da festa de Santa Ágata, morre. Segundo Cesário, os

propósitos de Santa Agata podem ser interpretados de duas maneiras:

356

ou esses sessentas dias de doença o purgaram dos seus pecados como

!Ie fossem sessenta anos de Purgatório, ou a maneira como ele suportou

o sofrimento durante sessenta dias conseguiu para ele um mérito de sessenta

anos 33 . Cesário interpreta da maneira activa, valorizadora e não

meramente negativa, a acção dos méritos cá de b~ixo do mundo. Como

no caso anterior, Cesário privilegia a vontade actrva do homem de preferência

às virtudes passivas.

A história do monge Cristiano de Hemmenrode pretende

A •

por em eVIdência

o poder da Virgem Maria. Este Cristiano, também ele ~astante

ingénuo, ainda antes de ser monge ~ enquanto ~studante e depOls. padre

resiste a várias tentações e é favorecido com visoes por Santa Mana Madalena

e sobretudo pela Virgem Maria. Já monge em Hemmenrode, u.m

dia em que sonhava com as penas do Purgatório tem um~ vi~ão: a Virgem,

rodeada por outras virgens e acompanhada do fale.cldo Impera~or

Frederico Barba Ruiva, preside ao seu funeral. Leva consigo para os ceus

Il alma do defunto que multidões de demónios reclamam em vão, soprando

sobre ela colunas de fogo. Anjos conduzem a alma até um grande fogo

e comunicam-lhe que depois da morte ela voltará àquele lugar e ~erá de

passar através daquele fogo. Regressado à ~i~a, Cristiano. continua a

levar no mosteiro a sua vida santa cheia de visoes e de humildade. Esta

humildade explica-se pelo facto de não só ter perdi?o a virgin~ade na sua

juventude mas também por ter dois filhos nat~rals, am?os mgressad.o.s,

aliás, na ordem cisterciense. Tem portanto maior necessidade do auxilio

da Virgem Maria. Esta atende-o tanto que n.o moment~ da ~ua ~orte a

Virgem e o Menino Jesus aparecem-lhe vestindo o habito Clsterclen~e. e

quando ele morre recebem-no no Paraíso. A visão do fogo do Purgatono

nao • se ven 'fiICOUpor tan to 34. .

No caso dos dois Cristianos, Cesário quis mostrar que o pior nunca

está assegurado e que o primeiro Cristiano sou~ escapar ao Infem~ ~ara

ir para o Purgatório, enquanto ao segundo foi poupado o Purgatono e

dado o Inferno. .

Os exemplo do décimo segundo e último «destaque» respeítantes a?

Purgatório formam, numa primeira abordagem, trê~ g~pos, segundo cntérios

em que se misturam considerações novas e. l~elas tradlcl0n~ls. ~

que está em primeiro lugar no espírito da é~~a e ligar o novo alem .as

categorias de pecados. De acordo com a tradição .esta, em ~ompensaça?,

a preocupação de fornecer pormenores sobre os dl.feren~es ~~os de sufrágios.

Enfim, caracteristico do século XIII é o desejo de ínsisnr na dureza

das penas do Purgatório, evidente até num espinto pleno de mansuetude

como o de Cesário. . .

O primeiro grupo (oito exemplo, dos números 24 a ~Al) ~lZ, 'pOlS, .respeito

à avareza (cupidez), à luxúria, à magia, à desobediência, a obstinação

perversa, à superficialidade e à preguiça. ..

357



o usurário de Liege: Purgatório e capitalismo

o exemplum que abre a série parece-me de particular importância.

a história do usurário de Liêge:

o MONGE: Um usurário de Liêge morreu na nossa época. O bispo

dou expulsá-lo do cemitério. A mulher dele foi junto da cúria apostólica

implorar que ele fosse enterrado em Terra Santa. O Papa recusou. Ela ar

mentou então a favor do esposo: «Disseram-me, Senhor, que marido e m

são apenas um e que, segundo o apóstolo, o homem infiel pode ser salvo

esposa fiel. Aquilo que o meu marido se esqueceu de fazer, eu, que sou

parte do seu corpo, fá-lo-ei em seu lugar. Estou pronta a entrar em e1au

por ele e a resgatar a Deus os seus pecados» Cedendo aos rogos dos card

o Papa mandou o morto para o cemitério. A mulher passou a viver ao lado

seu túmulo, fechou-se como reclusa e esforçou-se dia e noite por aplacar

para salvação da sua alma, por meio de esmolas, jejuns, orações e vigílias.

cabo de sete anos apareceu-lhe o marido vestido de negro e agradeceu-

«Deus te pague, pois graças às tuas provações fui retirado das profun

do Inferno e das penas mais terríveis. Se me prestares tais serviços duran

mais sete anos, ficarei completamente livre.» Ela assim fez. Ele apareceude

novo passados sete anos, mas desta vez vestido de branco e com um ar fe

«Graças a Deus e a ti fui hoje libertado,»

O NOVIÇO: .Como pode ele dizer-se liberto do Inferno, lugar onde

existe resgate possível?

O MONGE: As profundezas do Inferno significam a dureza do Purgat6i

rio. Assim quando a Igreja reza pelos defuntos dizendo: «Senhor Jesus Criltof

Rei de Glória, liberta as almas de todos os fiéis defuntos da mão do Inferno.

das profundezas do abismo, etc.», não está a rezar pelos condenados, mil

pelos que podem ser salvos. A mão do Inferno, as profundezas do abismo.

querem dizer aqui a dureza do Purgatório. Quanto ao nosso usurário, nlo

teria ficado livre das suas penas se não tivesse manifestado uma contriçlt

fmae s .

Notam-se os pontos fortes deste texto. A ênfase posta no valor dOI

laços conjugais numa altura em que a Igreja procura impor um modelO

matrimonial de monogamia baseada na igualdade dos dois cônjuges, fi

a um modelo aristocrático masculino todo orientado para a salvaguarq

do património e pouco respeitador do carácter único e indissolúvel dOi

laços conjugais'". No sistema dos sufrágios pelas almas do Purgatório slQ

no geral as estruturas do parentesco aristocrático que actuam, e nelas Q'

papel da mulher é secundário. Aqui, pelo contrário, no meio urbano ti

burguês, o laço conjugal passa para primeiro plano, no além como 01.

em baixo. O sistema de proporcionalidade temporal entre o tempo dOI'

sufrágios terrenos e o tempo das penas do Purgatório e a ocorrência d••

aparições reguladas pela divisão dessa relação de tempo, dois períodos dt

358

"te anos terrenos indicados pelas vestes do morto, sucessivamente negras

• brancas. A evocação da panóplia dos sufrágios: esmolas, jejuns, preces,

vlllilias, onde faltam as missas mas que uma forma extrema de comunhão

do" santos completa e resume: a penitência de substituição do vivo sob a

rurma de erernitismo penitencial no meio urbano: a vida de reclusão. A

precisão, a nível do vocabulário, sobre as relações entre Inferno e Purgalório,

a passagem do vocabulário infernal das Escrituras para o vocabu-

"rio do novo Purgatório que aspira a ele, Inferno, e conserva -

lerllPorariamente - a sua dureza. .

Mas o mais espantoso não é isto. A surpresa deste texto (que o foi

provavelmente também para os ouvintes e os leitores deste exemplum) é

u facto de o herói, o beneficiário desta história, ser um usurário. Num

momento em que a Igreja redobra esforços contra a usura severamente

eondenada no segundo (1139), terceiro (1179)37 e quarto (1215) concílios

de Latrão, no segundo concílio de Lyon (1274) e ainda no concílio de

Viena (1311), no momento em que se desenvolve entre a cristandade

uma campanha contra a usura, particularmente intensa no começo do

IlÓculoXIII na Itália do Norte e em Toulouse, e em que a avareza está

.m vias de roubar ao orgulho o primeiro lugar entre os pecados

mortais'", quando os fiéis têm sempre debaixo dos olhos esse tema favorito

da imaginária romana - o usurário, presa certa do Inferno, puxado

pura a geena pela bolsa recheada que lhe pende do pescoço, ei-lo, o usuririo,

salvo por uma hipotética contrição final e pela dedicação da espo-

111. apesar da resistência da Igreja representada pelo topo da sua

hierarquia.

Demonstrei noutro livr0 39 como, na linha deste exemplum, no decurso

do século XllI e em determinadas condições, o usurário vai ser arrancado

10 Inferno e salvo por e através do Purgatório. Avancei mesmo a opinião

provocadora de que o Purgatório, ao permitir a salvação do usurário,

contribuíra para o aparecimento do capitalismo. Aqui desejaria sobretudo

realçar o papel do Purgatório no domínio socioprofissional. Uma das

!'unções do Purgatório foi, com efeito, subtrair ao Inferno aquelas cate-

.orjas de pecadores que, pela natureza e gravidade da sua culpa, ou pela

hostilidade tradicional à sua profissão não tinham anteriormente hipótese

de lhe escapar.

Por um lado, há pecados gravíssimos, designadamente no meio monástico,

como a apostasia ou a luxúria que podem beneficiar, pelo preço

de uma permanência mais ou menos longa no Purgatório, da salvação

flnal, quando o seu caso era até então desesperado. Têm de facto a possibilidade,

principalmente em Cister, de serem favorecidos pela intensidade

do culto mariano em pleno desenvolvimento - e que intercessor mais

eficaz do que a Virgem em casos aparentemente desesperados? - e pela

solídez dos laços comunitários da ordem. Mas, por outro lado, as cate-

359



gorias socioprofissionais desprezadas e condenadas, os que derra

sangue, os manipuladores de dinheiro, os maculados de impureza

ter esperança, se cá em baixo no mundo souberam agradar suficientem

te (também com os seus tesouros de iniquidades?) aos seus próximos.

como a Virgem, aqui é a esposa que pode operar maravilhas e a legisl

bem como a jurisprudência anti-usurárias do século XIII interessam

devotadamente pelas viúvas de usurários.

o Purgatório é a esperança

Um segundo exemplum baseado na cupidez faz com que a uma fi

cisterciense apareça um superior recentemente falecido, com um as

lívido e débil, o hábito coçado, o qual lhe revela que vai finalmente fi

liberto do Purgatório quando de uma solenidade da Virgem Maria,

ças aos sufrágios de um dos seus monges. Pasmo da freira: toda a gente

julgava tão «santo»! Causa da sua passagem pelo Purgatório: levado

avareza, aumentou para além das conveniências os bens do mostei

Aqui actua um sistema triplo de relações intercistercienses, um su

rior, um monge e uma freira. As mulheres têm um papel importante

funcionamento do Purgatório, particularmente em Cister e muito el

cialmente em Cesário de Heisterbach'".

O pecado da freira de Sion en Frise é muito grave. Foi seduzida

um prelado e morreu ao dar à luz. Antes de morrer, confiou-se à I

família carnal: o pai, a mãe, duas irmãs casadas e um primo direi

Mas estes, sem esperança de poderem salvá-Ia, tanto o seu caso lhes

rece evidente, não se preocupam com sufrágios. Assim, ela vai solici

um abade cisterciense que fica admirado com a sua aparição porque

a conhece. Cheia de vergonha, pede timidamente «ao menos um salmo

algumas missas» sem se atrever a revelar-lhe a sua culpa nem a sua id

tidade completa. Por fim ele encontra uma tia da morta, também o

freira cisterciense, que lhe explica tudo. Alertam os pais que reencon

a esperança, bem como a família carnal e todos os monges e freiras

província. A história não diz como termina esta mobilização, mas a

pida salvação da pecadora não oferece dúvidas. A Virgem não interv

directamente neste salvamento, mas o nome próprio da heroína - úni

indicação que ela ousa confiar ao abade - é Maria. Este breve relato, fei

com muita delicadeza e verdade psicológica, realça a função essencial

Purgatório, nesse começo do século XIII. OS pais da infeliz desesperar

e depois reencontraram a esperança (de animae ejus salute desesperantes.,

spe concepta). O Purgatório é a esperança": :

Outro exemplum apresenta um marido orando pela esposa defun

que aparecera à sua cunhada, uma reclusa, para a informar das duril"

360

mas penas que sofria no Purgatório. Esta mulher que parecia boa e honesta

entregara-se a práticas de magia para conservar o amor do marido.

O noviço, sem pensar na faceta supersticiosa deste comportamento, fica

impressionado com a severidade de Deus para com pecados que ele considera

pecadilhos. Atenção, parece dizer o texto, o nosso ponto de vista

não é forçosamente o de Deus 42 . Cesário reforça. Deus é muito rigoroso,

mesmo quezilento. Quando os monges não obedecem a todas as prescrições

dos superiores e lhes opõem uma resistência obstinada, mesmo que

Metrate dee coi COIsaspequenas, Deus, esse, nao - dei eixa passar nada 43.

Depois da negligência, eis o seu oposto, a teimosia, punida no Purgatório.

Uma teimosia que é, também ela, uma forma de desobediência. Um

mestre-escola que se fizera monte no mosteiro de Pruilly mostrara-se de

um rigor que o seu abade tinha em vão tentado moderar. Morreu e, uma

noite, o abade que se encontrava na Igreja para as laudes viu surgir no

coro três personagens semelhantes a velas a arder. Reconheceu-as: no

meio estava o mestre-escola tendo ao lado dois conversos recentemente

falecidos. O abade disse ao monge defunto: «Como vais? - Bem», responde

o outro. O abade, que se lembrava da sua obstinação, admira-se: «Não

sofres nada por causa da tua desobediência?» A aparição confessa: «Sim,

sofro muitos e enormes tormentos. Mas como a minha intenção era boa,

o Senhor não me condenou.» Quanto aos conversos, o abade admira-se

por um, que foi apóstata, brilhar mais do que o outro a quem nada havia

a censurar, e o monge explica-lhe que, depois do seu pecado, o primeiro

arrependeu-se e ultrapassou em fervor o segundo, que não passava de um

pusilânime. Aqui intervém um pormenor interessante: para deixar um

testemunho irrefutável da sua aparição, uma prova da existência do Purgatório

de onde se pode regressar por um instante, o monge defunto dá

um tal pontapé no estrado onde se cantam os salmos que o deixa rachado.

Assim nasce uma «relíquia» do Purgatório. São relíquias destas, datando

as mais antigas do fim do século XIII e as mais recentes de meados

do nosso século xx, que estão reunidas no pequeno Museu do Purgatório

em Roma. Que lição tirar deste exemplum? Cesário e o noviço estão de

acordo ao ver confirmado o sistema de valores de S. Bento que reprova

tanto os que se obstinam no rigor como os que são demasiado «superficiais»44.

É uma exaltação da moderação beneditina confirmada pelo Purgatório.

A alusão à superficialidade é uma transição hábil para falar no caso

do sacristão João, do mosteiro de ViIlers, homem religioso mas que foi

superficial nas palavras e nos actos (in verbis et signis}, Condenado ao

Purgatório, aparece ao seu abade que fica aterrorizado'".

Por fim, nesta revista dos pecados monásticos punidos no Purgatório,

eis castigada a preguiça. Um abade de Hemmenrode observava em tudo a

disciplina da ordem, mas era renitente para trabalhar com as mãos jun-

361



tamente com os irmãos. Antes de morrer, prometeu a um monge a q

amava .entre todos os outros, aparecer-lhe trinda dias depois da mo

para o informar do seu estado. Na data prevista manifesta-se brilhan

da cintura pala cima, mas todo negro para baixo. Reclama ~rações

~o.n§;s e aparece de no,:o para an~nciar a sua libertação do Pur

t<:>no . O noviço pede entao para ser mformado da hierarquia dos suf

g10S. As orações são mais eficazes para os mortos do que as esmo

Alguns exempla vão dar-lhe a resposta.

Eis primeiro o.caso d~ u~ morto que aparece a um amigo e lhe diz q .

a escala e a segwnt.e: pnmeiro as orações, os sufrágios a bem dizer um

tanto mornos, depois as esmolas e sobretudo as missas. Na missa o Cri ••• ,

ora, e o seu corpo e o seu sangue são as esmolas?".

Um nobre adole~nte que se fez converso em Clairvaux guardava

reb~~o de ~a. quinta. Um primo-irmão defunto aparece-lhe e pede

a~xilio de tres missas para se libertar de enormes tormentos. Ditas as t

missas re~pareceu para a~~dece~ e afirmou que não deviam admirar ••• '

com as Virtudes da eucanstia, pois uma breve absolvição podia ser s

ciente para libertar certas almas'".

E então 9ue se vê aparecer o monge Cristiano de Heisterbach de q .

se falou atras, que morrera na ausência do abade. Quando este voltou

~assados set~ dias bastou-lhe dizer «Que descanse em paz» para que Cri ••

bano fosse libertado do Purgatórío'".

Mas é n~ssário q~e. a intercessão - por muito modesta que seja •.

venha de um íntermediáno eficaz. Uma beneditina do mosteiro de Rindorp,

perto de Bona, era devota de S. João Evangelista. Depois de morrer.

apareceu a um~ freira que ~ra também sua irmã carnal e rezava por ela,

para lhe anunciar a sua salda do Purgatório. Mas revela-lhe que o seu

mtercessor não f?ra S._João mas ~. Bento, que se limitara a ajoelhar

perante Deus em mtenção dela. ASSIm se recorda aos monges e às freiru

a vantagem que há em honrar os santos fundadores da sua ordem'?

. .O~últimos exempla de Cesário sobre o Purgatório têm por objective

insistír na dureza das penas do Purgatório. O noviço perguntou a Cesário

se era verdade ~ue a .m~is insignificante pena do Purgatório era superior a

q~_alquer pena .1magmavel deste mundo. Cesário responde dando a opínrao

de um teologo que consultara sobre o assunto. «Não é verdade,

respondeu este, a menos que se fale do mesmo género de pena: por

exempl~, o fogo do Purgatório é mais forte do que qualquer fogo terrestre,

o fno mais asp~ro do qu~ qualquer frio cá em baixo, etc.». Mas pode

haver no Purgatono penas inferiores a certas penas terrestres. Mesmo ,

reconhece~do a dureza das penas do Purgatório, Cesário, espírito mode- .

~a~o, desejoso ~e mostrar toda a maleabilidade do sistema do Purgatório,

insiste ?~amplitude das penas do Purgatório, que oferece o maior leque

de puniçoes.

362

Assim, uma pequena freira de nove anos do mosteiro de Mont-Saint-

.Bauveur, próximo de Aix-Ia-Chapelle~ irmã Gertrudes, aparece a .~a

eompanheira do convento da mesma Idade, com quem tinha o hábito

de tagarelar durante o oficio. Condenada a cumprir o seu .P.urgat.óri?

nos locais onde pecara, teve de voltar quatro vezes para participar, mV1-

Ilvel excepto para a amiga, no oficio do convento. O noviço vê que esta

pena foi pequena ao lado de algumas penas terrenas

51

. Por filID, C esano ..

propõe um exemplum que mostra o que I?oderíamos ~hamar de grau zero

do Purgatório. Uma criança pequena muito pura, Guilherme, que entrara

na ordem morreu ao fim de um ano de provações. Aparecendo a um

monge, disse-lhe estar em sofrimento. Este fica atemorizado: «Se tu, inocente,

és castigado, o que me acontecerá a mim, pobre pecador? - Sosse-

'li. responde o menino morto, o que eu estou a sofrer é apenas estar

privado da visão de Deus.» Algumas orações durante ~te dias b~s~ram

para que ele reaparecesse, protegido pelo manto da Virgem Mana, indo

para o Paraíso.

Cesário apresenta aqui um Purgatório próximo do limbo das crianças

t faz notar que o caso do pequeno Guilherme não é excepcional: um

teólogo afirmou-lhe que um certo número de justos, que apenas tê~. a

tilpiar pecados veniais insignificantes, têm como castigo no Purgatono

lerem privados durante um certo tempo da visao isão dee D eus 52 .

Aqui Cesário atinge um ponto extremo da dout~na do. Purgató~~.

Não só abre ao máximo o leque das penas, mas tambem articula explicitumente

a reflexão teológica sobre o Purgatório com uma outra preocupução

que, sem ser mencionada, deve estar-lhe muitas ~ezes ~ga~a: a

reflexão sobre a visão beatifica. Para dar todas as suas dimensões a reflexão

teológica da Idade Média sobre o tempo intermédio, o tempo que

separa o momento da morte do da ressurreição e do julgamento geral, é

necessário ter-se em consideração o facto de no Purgatório, ameaçado

pelo lado de baixo pelo Inferno a que as almas purgadas conseguiram

escapar, estas serem atraídas para o alto por esse apelo do Par~so que,

em casos limite, pode reduzir-se à falta única mas essencial da Visão beatifica.

É precisamente entre os grandes teólogos do século XIII que a doutrina

da visão beatífica dos justos, imediatamente após o julgamento

particular, toma a sua forma defínitiva'". O Purgatório, nestes .casos limites

superiores, pode ser em definitivo um testemunho da realidade de

uma visão beatifica anterior ao Julgamento Final.

Este passar revista ao Purgatório de Cesário termina lembrando que

algumas visões mostram que o Purgatório pode estar situado em diversos

lugares deste mundo. Gregório, o Grande, deu disto exemplos. Mas

o mais convincente é o do Purgatório de S. Patrick. Afirma ele: «Que

aquele que duvida do Purgatório vá à Irlanda e entre no Purgatório de

S. Patrick, e não duvidará mais das penas purgatórias ".»

363



Para ~I~m de to~os os aspectos que sublinhei, compreende-se o que

p~ra Cesano de Heisterbach, testemunha e actor privilegiado da instal

çao d~ lugar ~o Purgatório nas crenças dos cristãos da Idade Média,

essencial do ~lsteI?a do Purgatório. E antes de mais o culminar de

p~~cesso ~mtenclal onde a contrição final, como vimos no caso do USQe

rano de Llege: p~r exemplo: ~ condição necessária e suficiente, mas cuj

etap~s ~normals sao a contnçao, a confissão e a penitência. É a seguir I

definição de um lu~ar. e. de ~a pena ainda não completamente estabílízado~

mas ~ue se individualizam cada vez mais em relação à terra, eJI

relaçao ao. h~bo~ em relação ao Paraíso, mas sobretudo em relação ao

Inferno. Dlstmgu,lf.bem o Purgatório do Inferno é uma preocupação fundamental

de Cesano.

Há t~mbém um exercício de contas por vezes um pouco simplista ma.

que se s~tu:a entre os hábitos monásticos de contabilidade simbólica e o.

nov~~ h~bltos de uma contabilidade prática que se estende do comércio'

pemtencia.

Acima ~e t,:,do Cesá?o insiste na solidariedade entre os vivos e 01

mort?s, solidariedade cujo modelo é para ele a família cisterciense onde

se reun.em o pa~e?tesco carnal do meio nobre e o parentesco artificial da

co~um~ade rehgIosll:' m~s onde assomam também novas solídariedades

conjugais o,:, pro~sslOnals, das quais o caso do usurário de Líêge é O

exemplo mais notavel.

2. O dominicano Étienne de Bourbon e a «infemizacão» do Purgatório

Entre o Diáologo dos Milagres do cisterciense Cesário de Heisterbach

(cerca. de .1~20) e ? Tratado das Prédicas (Tractatus de diversis matertis

praedicabilibus) feito no período que vai de 1250 a 1261 data e

t dei . r ' m que sua mor e o elXOU inacabado, pelo dominicano Etienne de Bourbon a

atmosfera do Pur~atório muda. Já não é de esperança mas de medo. '

O autor, n~scld<:>em Belleville-sur-Saône cerca de 1195, fez os seus

estudos em Saint-Vincent de Mâcon e depois na Universidade de Paris

antes de en~r~r para a Ordem dos Pregadores. Saiu muitas vezes do convento

dominicano de Lyon e, como pregador e inquisidor, andou por

~uvergn~, Le Forez, Borgonha e os Alpes. No fim da vida entregou-se

a re~ac~o d~ ~m grande tratado para uso dos pregadores onde, também

ele, m~n~ vanos ~~xe"!pla.Mas em vez de os colher principalmente na

sua propna exp.en~~cla como fizera Cesário, em quem a maioria dos

exempla er.am hlsto~cas recentes que ouvira contar, Étienne foi buscá-

-los ta~to as fontes hvrescas como à tradição contemporânea. Além disto,

~elxou menos autonomia aos seus relatos, subordinando-os mais

estntamente a um plano modelado sobre os sete dons do Espírito-

364

.Sant055. Étienne de Bourbon deixa-se levar por um espírito escolástico

que o faz multiplicar divisões e subdivisões, por vezes muito artificialmente.

O Purgatório constitui o título ou capítulo cinco do primeiro dom do

Espírito-Santo, o dom do temor (De dono timorisf",

Este primeiro livro do dom do temor compreende dez títulos: 1) das

sete espécies de temor; 2) dos efeitos do temor do Senhor; 3) que é preciso

temer a Deus; 4) do Inferno; 5) que é preciso temer o Purgatório futuro;

6) do temor do Julgamento Final; 7) do temor da morte; 8) do temor do

pecado; 9) que se deve temer o perigo presente; 10) da qualidade dos

inimigos do género humano (os demónios).

Logo de início Étienne de Bourbon introduz-nos num cristianismo de

medo, onde o Purgatório é encaixado num contexto de temor escatológico,

a par e muito próximo do Inferno.

Trata-se, pois, do Purgatório do quinto título. Este título é, por sua

vez, dividido por Étienne de Bourbon, mas de maneira artificial, em sete

capítulos, porque o dominicano leonês organiza as suas exposições segundo

números simbólicos (sete, dez, doze, etc.). Estes sete capítulos são

dedicados ao Purgatório presente, ao Purgatório futuro, à natureza dos

pecadores e das culpas que têm a ver com o Purgatório, às sete razões que

devemos ter para temer o Purgatório repartidas por três capítulos e, finalmente,

aos doze tipos de sufrágios que podem ajudar as almas do

Purgatório.

Regressando a uma concepção tradicional geralmente abandonada na

sua época, Étienne de Bourbon pensa que a vida terrena pode ser considerada

um primeiro purgatório onde se pode ser purgado de doze maneiras

cuja enumeração pouparei ao leitor. Não há aqui qualquer

argumentação mas apenas autoridades sobre os Testamentos, umas após

outras. O segundo capítulo pretende provar a existência de um purgatório

das almas despojadas dos corpos no futuro. As provas são autoridades

(Mateus, XII, Gregório, o Grande, Diálogos IV, Paulo, I Coríntios, III), e

um conjunto de textos do Velho Testamento que falam do fogo e de

provação no futuro. Uma vez que depois da morte deve haver remissão

dos pecados, tem de existir um lugar apropriado para essa última purgação

que não pode ser nem o Inferno nem o Paraíso. Étienne condena os

hereges - sobretudo os valdenses - «que dizem que não há pena purgatória

no futuro» e negam os sufrágios pelos mortos. Num daqueles deslizes

que lhe são habituais, Étienne evoca então as oito espécies de pena de

que trata o livro das Leis, sem dizer em que é que elas podem ter a ver

com o Purgatório, e declara que os que negam o Purgatório pecam contra

Deus e contra todos os sacramentos.

Quem é castigado no Purgatório? No começo do terceiro capítulo

Étienne define três categorias de pecadores destinados ao Purgatório:

os que «se converteram» tarde de mais, os que ao morrerem só têm pe-

365



cados veniais e aqueles que não fizeram penitência suficiente cá em b '

no mundo. Um desenvolvimento breve resume-se praticamente a um

pido come?tário da segunda epístola de Paulo aos Coríntios, IIl, 10-15

Os capitulos quatro, cinco e seis são consagrados às razões que

homem tem para temer a pena do Purgatório e que são sete: a dure

(acerbitas), a diversidade (diversitas), a duração (diuturnitas ), a este '

dade (sterilitas), a qualidade dos tormentos (tormentorum quaiitas)

pequeno número de auxiliares (subveniencium paucitas ) e a nocivida

(dampnositas).

Estas características negativas da pena do Purgatório são ilustra-.

das principalmente com a ajuda de exempla. Assim, o Purgatório .'

S. Patrick com a descrição das suas torturas tirada do Apocalipse dt'

Pa~lo é.longamente evocado para mostrar ao mesmo tempo a dureza ~'.

a diverslda,d~ das penas. A duração refere-se à sensação que as almas têJD

no Purgatório de que no tempo passa muito lentamente, por causa dot

sof?ID~ntos que lá suportam. A equivalência é essencialmente uma equi~

valência de resgate entre o mundo cá de baixo e o além. Etienne avan9a

com alguma reserva (forte. talvez, diz ele) que se pode resgatar num dia

um ano de Purgatório. A esterilidade decorre da impossibilidade de adquirir

méritos depois da morte, a nocividade vem da carência da visão de

I?eus. Ao contrário dos que, como Cesário de Heisterbach, parecem considerar

que a P?~açã? .de Deus é a pena mais pequena das que se suportam

no Purgatono, Etienne lembra que estar privado nem que seja por

um só dia da visão de Deus não é pequeno prejuízo. E chega ao exagero: .

os santos prefeririam, se fosse necessário, estar no Inferno mas vendo

Deus a estar no Paraíso sem o ver. Nestas páginas bastante obscurantistas

esta tirada sobre a visão beatífica introduz como que um raio de sol.

Sobre a qualidade dos tormentos, Etienne remete para o que diz du

penas do Inferno, o que é significativo. O pequeno número de auxiliarei

tem a ver com o pessimismo de Étienne. Segundo ele, «os vivos esquecem

depressa os mortos» e estes, no Inferno, gritam como lobo

«Ten~e piedade de mim, tende piedade de mim, ao menos vós, amigo.

meus, pois a mao do Senhor tocou-me.» E ainda: «Os amigos de ocasião

os amigos no m~ndo são semelhantes a um cão que, enquanto o peregrino

esta sentado a mesa segurando um osso na mão, dá ao rabo em sinal

de afecto por ele, mas quando ele tem as mãos vazias já não o reconhece.»

E é de novo ~ aproximação ao Inferno, «pois o Inferno é muito esquecido»,

. Por fim Etienn~ de Bourbon trata longamente os doze tipos de sufrágros

que podem ajudar as almas do Purgatório. Também aqui são os

exempla que vêm dar testemunho. A exposição do dominicano é bastante.

confusa, mas po.demos elaborar assim a lista dos doze sufrágios: a

~ssa, a oferenda piedosa, a oração, a esmola, a penitência, a peregrinaçao,

a cruzada, a execução de legados piedosos, a restituição de bens

366

Injustamente adquiridos, a intercessão dos santos, a fé, os sufrágios gerais

da Igreja baseados na comunhão dos santos. Três preocupações parecem

animar Étienne: insistir no papel dos próximos (aqueles que mais

podem pelas almas do Purgatório são os parentes do morto, os «seus» -

sui - e os seus amigos amiciy; sublinhar o valor dos sufrágios executados

pelos bons, os justos e, por fim, recordar o papel da Igreja na distribuição

e controlo 'destes sufrágios.

Está fora de questão mencionar aqui os trinta e nove «exempla do

Purgatório» de Étienne de Bourbon, tanto mais que muitos deles são

tirados de fontes antigas que vimos ou citámos, Gregório, o Grande,

Rede, Pedro, o Venerável, Jacques de Vitry, etc.

Citarei três deles de entre aqueles que Étienne afirma ter recolhido da

boca de outros, e que introduz com a palavra audivi «ouvi dizer».

O primeiro caso tem todavia probabilidades de ser de origem livresca,

pois encontra-se nos Otia imperialia de Gervásio de Tilbury (cerca de

1210),a menos que o seu informador o tenha lido em Gervásio. ~m todo

o caso, é interessante comparar a versão de Gervásio com a de Etienne.

Recordo a versão de Gervásio de Tilbury:

Há na SicíJia uma montanha, o Etna, ardendo com um fogo sulfuroso,

perto da cidade de Catânia ..., as pessoas do povo chamam a esta montanha

Mondjibel e os habitantes da região contam que, pelas vertentes desertas,

apareceu na nossa época o grande Artur. Aconteceu um dia que um palafreneiro

do bispo de Catânia ficou cheio de preguiça, por ter comido de mais. O

cavalo que ele escovava escapou-se e desapareceu. O palafreneiro procurou-o

em vão pelas escarpas e precipícios da montanha. Com crescente inquietação,

pôs-se a explorar as cavernas escuras do monte. Um carreiro muito estreito

mas plano conduziu-o a um prado muito grande, encantador e cheio de todas

as delícias.

Lá, num palácio construído por encanto, encontrou Artur deitado num

leito real. O rei, ao saber o motivo da sua vinda, mandou entregar o cavalo

ao rapaz para que este o restituisse ao bispo. E contou-lhe como, ferido outrora

numa batalha contra o seu sobrinho Modred e o duque dos Saxões,

Childerico, lá jazera durante muito tempo procurando curar as suas feridas

constantemente reabertas. E, segundo os indígenas que mo contaram, enviou

presentes ao bispo que os mandou expor à admiração de uma multidão de

pessoas confundidas com esta história inaudita".

E a de Étienne de Bourbon:

Ouvi dizer a um certo irmão da Apúlia chamado João, que dizia ser da

região onde o acontecimento se produzira, que um homem procurava um dia

o cavalo do seu patrão na montanha Etna onde se encontra, dizem, o Purgatório,

perto da cidade de Catânia. Chegou a uma cidade onde se entrava por

urna pequena porta de ferro. Informou-se junto do porteiro sobre o cavalo

367



que procurava. Este respondeu-lhe que deveria ir à corte do seu senhor q

lho entregaria ou o informaria. Rogou ao porteiro que lhe dissesse o q

deveria fazer. O porteiro disse-lhe que se livrasse de comer de um prato q

lhe iriam oferecer. Naquela cidade ele viu uma multidão tão grande como

população da terra, de todos os géneros e de todos os oficioso Tendo atravasado

muitos palácios chegou a um onde viu um principe rodeado dos se

ofereceram-lhe muitos pratos e ele recusou-se a provar deles. Mostraram-I

quatro leitos e disseram-lhe que um deles estava preparado para o seu patrão

os outros três para os usurários. E este príncipe disse-lhe que fixava um dia

obrigatório para o seu patrão e os três usurários, se não seriam trazidos ,:

força, e deu-lhe uma taça de ouro com tampa de ouro. Disseram-lhe q.

não a destapasse e que a levasse ao seu patrão como sinal, para que bebeall',

dela. Deram-lhe o cavalo; ele regressa e desempenha-se da sua missão. AbfC1l1

a taça, e sai de lá uma chama ardente, lançam-na ao mar com a taça e o m~.

inflama-se. Os outros homens, se bem que se tivessem confessado, mas só por

medo e não por verdadeiro arrependimento, no dia aprazado são levado. '

sobre quatro cavalos negros'". .

De Gervásio a Étienne, o Purgatório sem nome é chamado pelo seu.

nome, a cidade perdeu o seu encanto, o fogo do Purgatório anuncia-se

pelo fogo da taça, os leitos preparados já não são de repouso mas leitos

de tortura, o cavalo prefigura os cavaleiros negros condutores de almas,

anunciadores da morte. Como bem observou Arturo Graf, de um texto

para o outro a história «ínfernizou-ses-".

Uma outra história teria sido contada a Étienne de Bourbon por um

irmão padre, velho e piedoso. Havia uma vez um preboste que não temia

a Deus nem aos homens. Deus teve piedade dele e deu-lhe uma grave

doença. Ele gastou em medicamentos e noutros meios tudo o que possuía

e não tirou nenhum proveito. Passados cinco anos e continuando

a estar doente não podia levantar-se, já não tinha nenhum meio de subo

sistência e desesperou por causa da sua pobreza, do seu estado miserável e

dos seus sofrimentos, e começou a murmurar contra Deus que o fazia

viver tanto tempo em tal miséria. Foi-lhe enviado um anjo que o censurou

por assim blasfemar, exortou-o a ter paciência e prometeu-lhe que, se

suportasse os seus males durante mais dois anos, ficaria plenamente purgado

e iria para o Paraíso. O outro respondeu que não era capaz, que

preferia morrer. O anjo disse-lhe que teria de escolher entre dois anos

de sofrimento e dois dias de pena no Purgatório antes de Deus o mandar

ir para o Paraíso. Ele escolheu dois dias no Purgatório, foi levado pelo

anjo e enviado para o Purgatório. A dureza (acerbitas ) da pena pareceu-

-lhe tão insuportável que antes de se ter passado meio dia já ele julgava

estar ali há uma infinidade de dias. Pôs-se a gritar, a gemer, a chamar

mentiroso ao anjo, a dizer que ele não era um anjo mas um diabo. O

anjo veio, exortou-o a ter paciência, censurou-lhe o ter blasfemado e afir-

368

mou-lhe que só estava ali havia pouco tempo. Ele suplicou ao anjo que o

eonduzisse ao seu estado anterior e afirmou que, se ele o permitisse, estava

pronto a suportar pacientemente os seus males não só durante dois

anos mas até ao Julgamento Final.

O anjo consentiu e o preboste suportou ~acientemente todos os seus

males durante os dois anos complementares .

Eis bem claramente - se não ingenuamente - patenteadas a proporcionalidade

elementar entre os dias no Purgatório e os anos na terra e a

dureza da pena do Purgatório infinitamente superior a qualquer pena

cá em baixo. .

Último exemplum: «Ouvi dizer, conta Etienne de Bourbon, que uma

criança de uma grande familia morreu com a idade de nove anos. Para se

entregar às suas brincadeiras aceitara um empréstimo com juros da família

do pai e da mãe (sic). Não pensou nisso no momento de morrer e, se

bem que se tivesse confessado, não restituiu o dinheiro.» Apareceu pouco

depois a um dos seus e disse que estava a ser castigada severamente por

não ter pago o que devia. A pessoa a quem apareceu informou-se e saldou

todas as dívidas. A criança reapareceu-lhe, anunciou que estava liberta de

todas as penas e tinha um ar muito feliz. Esta criança era o filho do duque

de Borgonha, Hugues, e a pessoa a quem apareceu era a própria mãe do

duque, sua avó, que mo contou

61.» E' IS esq~e~atIcamen . te ev~cado ~ m~canismo

da aparição das almas do Purgatono e realçada a ímportancia

da restituição de bens para a libertação do Purgatório. Este tomo~-se um

instrumento de salvação e, ao mesmo tempo, um regulador da Vida económica

cá em baixo no mundo.

O tratado de Étienne de Bourbon parece ter tido um grande êxito e os

seus exemplo foram muitas vezes utilizados. Assim se expandiu a imagem

de um Purgatório «infernizado», banalizado, objecto de cálculos simplistas.

Vou referir-me a uma recolha de exemplo por rubricas classificadas

por ordem alfabética o Alphabetum narrationum (elaborado nos primeiros

anos do século XIV pelo dominicano Amold de Liêge e que deu origem

a muitas cópias mais ou menos fiéis em latim e em línguas ver:náculas

..inglês, catalão e francês - nos séculos XIV e xv), para dar uma Imag~m

final dos exempla do Purgatório. Oferece-nos catorze exempla na rubnca

Purgatório (purgatorium), os quais se agrupam em oito temas. Quatro

dizem respeito às penas do purgatório, à sua intensidade, duração e temor

que inspiram: «As penas do Purgatório ,s~o diversas» (nl!676), ? ~u~

significa que não se reduzem ao fogo purgatono, «a pena do Purgatono e

dura (acerba) e longa», conforme ensinou Agostinho, «a pena do Purgatório,

mesmo que dure pouco, parece durar muito tempo», no que encontramos

o tempo invertido do além folclórico, «o purgatório», enfim, «é

mais temido pelos bons do que pelos maus», o que o situa mais próxi no

369



do Paraíso do que do Inferno mas testemunha também a sua dureza.

dizem respeito à localização do Purgatório, que admitem ser na te

«Alguns são purgados entre os vivos» e «alguns fazem o seu purgató

entre aqueles junto de quem pecaram». Felizmente, dois têm a ver com ot

sufrágios: «A pena do Purgatório é suavizada pela oração- e «a pena do

Purgatório é anulada pela missa». Os exempla são tirados de Gregório, O

Grande, de Pedro, o Venerável, do Purgatório de S. Patrick, dos cister«

cienses Hélinand de Froimont e Cesário de Heisterbach, de Jacques de

Vitry e do dominicano Humbert de Romans, autor de um «dom de temon

(De dono timoris) muito próximo de Étienne de Bourbon'S.

Completarei este estudo da difusão do Purgatório com o sermão e O

exemplum no século XIII, evocando por um lado a biografia dos primeircs

dominicanos e a prédica entre as beguinas e, por outro, a continuação da

exploração das visões do Purgatório para fins políticos.

Dominicanos

no Purgatório

As ordens mendicantes desempenham o papel dos cistercienses no

enquadramento espiritual da sociedade durante o século XIII. Mas enm

os dominicanos como entre os franciscanos uma parte dos irmãos continua

próxima da tradição monástica. Assim, o contemporâneo de Êtienne

de Bourbon, Gérard de Frachet, dá uma imagem sensivelmente diferente

do interesse dos Irmãos Pregadores pelo Purgatório.

O testemunho de Gérard de Frachet é precioso sobretudo para a divulgação

da crença no Purgatório no interior da ordem dominicana. Este

natural de Limoges originário de Châlus (Haute- Vienne), ingressado nOI

Pregadores em Paris em 1225, superior de Limoges e depois provincial da

província da Provença, falecido em Limoges em 1271, escreveu uma história

da ordem dominicana e dos seus memorabilia entre 1203 e 1254.

Compreende ela cinco partes. A primeira é dedicada aos começos da

ordem, a segunda a S. Domingos, a terceira ao mestre-geral Jourdain

de Saxe, sucessor de Domingos à frente da ordem, a quarta à evolução

da ordem (de progressu ordinis) e a quinta à morte dos irmãos.

Esta estrutura da obra é significativa. A quinta e última parte exprime

bem as atitudes de um meio religioso representativo da tradição e da

inovação dentro da Igreja. A morte dá à vida o seu sentido e situa-se

no ponto de encontro da existência terrena com o destino escatológico.

Gérard de Frachet testemunha bem esta focagem no momento da morte

em relação com o pós-morte, que explica também o êxito do Purgatório.

Examinemos mais de perto esta quinta parte das «Vidas dos Irmãos

da Ordem dos Pregadores» ou «Crónica da Ordem de 1203 a 1254». Representa

todos os casos, possíveis para os irmãos, das maneiras de mor-

370

rer, e das condições do além. Primeiro, trata dos mártires da Ordem, dos

mortos bem-aventurados, das visões e revelações que acompanham a

morte. Depois vêm as situações no pós-morte. É aqui que se coloca, em

primeiro lugar, a evocação dos irmãos que estão no Purgatório, a qual

precede os estratagemas do diabo, as maneiras de ajudar os defuntos, a

triste sorte dos apóstatas e, pelo contrário, a glória daqueles que, depois

da morte, se ilustram através dos milagres. Os exempla dos irmãos no

Purgatório ocupam pois a posição intermédia, de chameira, que é bem

a do novo lugar.

Gérard de Frachet propõe catorze exempla, catorze histórias de Purgatório

que não se inserem num tratado como acontecia com Cesário de

Heisterbach ou Étienne de Bourbon. São para glória da ordem, ou antes,

para seu uso interno, alternando os casos felizes e gloriosos com os que

devem fazer os irmãos reflectir. Lembram o Exordium magnum de Conrado

de Eberbach para a ordem cisterciense no começo do século e, principalmente

em relação a Cesário, respiram um ar muito tradicional.

Primeira história: no mesmo dia morrem num convento de Colónia

um velho pregador e um noviço. Ao fim de três dias o noviço aparece.

O seu fervor valeu-lhe uma passagem muito breve pelo Purgatório. Pelo

contrário, o pregador só aparece passado um mês. Os seus comprometimentos

com seculares valeram-lhe esta provação mais longa mas, em

compensação, tem uma sorte mais brilhante, como revelam as vestes ornadas

com pedras preciosas, uma coroa de ouro, recompensa das conversões

que obteve.

As catorze histórias seguintes passam-se em Inglaterra. Em Derby, um

jovem irmão em artigo de morte passa da alegria à angústia. Alegria

porque S. Edmundo e depois a Virgem aparecem-lhe. Angústia porque,

embora se soubesse eleito quase com certeza, receia que os pecados veniais

(modica ) de que está carregado lhe valham, apesar de tudo, a condenação.

Aviso de que a fronteira entre pecados veniais e mortais, entre

Purgatório e Inferno, é estreita.

O irmão Ricardo, leitor em Inglaterra, vê no seu leito de morte aparições

terríveis, e depois é-lhe revelado que será salvo graças à ajuda dos

seus irmãos dominicanos e também à dos franciscanos que ele sempre

amara. Aviso, pois, no sentido da colaboração entre as duas ordens.

O irmão Alain, superior em York, assaltado também ele por visões

aterradoras no momento de morrer, prefere permanecer num fogo terrível

até ao Julgamento Final, a rever a figura dos diabos que lhe apareceram.

O Purgatório, na sua forma mais penosa, vale portanto mais do que

° Inferno no seu aspecto mais visível.

Um pároco, aterrado pela visão que lhe anuncia o Inferno, ingressa

nos dominicanos e, depois de morrer, aparece ao seu confessor para lhe

revelar que fora salvo e que ele também o será.

371



As duas histórias seguintes passam-se «em Espanha», em Santa

(hoje Portugal). Numa vemos um irmão passar pelo Purgatório po

foi assistido por seculares no momento da morte, e na outra um ou

irmão ter a mesma sorte por se ter gabado de cantar bem.

Um irmão italiano de Bolonha sofre, também ele, no Purgatório,

ter gostado em excesso de arquitectura. Um irmão português de Lisbol

punido igualmente no Purgatório, porque se ocupou de mais de man

critos, enquanto o irmão Gaillard d'Orthez é visto numa aparição com

peito e os flancos queimados por se ter interessado de mais pela cons

ção de novos conventos, e pede orações aos irmãos. O irmão João

lestier de Limoges passou sete dias no Purgatório por causa dos

defeitos e atesta que a pena que lá se sofre pelos pecados veniais é muí

intensa. E indica que os anjos o foram buscar para o levarem para

Paraíso. .

Esta indicação é muito interessante, pois anuncia a iconografia

Purgatório: veremos anjos estendendo a mão a defuntos para os fi

sair do novo lugar e os fazer subir ao céu.

O irmão Pedro de Toulouse, embora tivesse sido muito dedicado à •

ordem e apesar do número de conversões que conseguira, revela em

nhos que passou vários meses no Purgatório não se sabe por que pecad

Um excelente irmão morrera com o terror estampado no rosto. Q

do aparece, alguns dias depois da morte, perguntam-lhe a razão de

terror. Ele responde por meio do versículo do Livro de Job, 41, 1

«Quia territi purgabuntur»: «porque serão purgados em terror.» Enfim.

um .último irmão sofre um suplício devido à sua paixão pelo vinho, que

bebia puro.

Estes exempla mostram alguns traços do sistema do Purgatório: •

duração, as aparições. São sobretudo instrutivos porque revelam como

são usados no interior da Ordem dos Pregadores - toda uma casuístioa

dos pecados veniais por um lado, uma imagem dos irmãos por outro

mais próximas das preocupações tradicionais do meio monástico, d~

que se pretendiam diferentes, do que das tendências intelectuais com

que - a exemplo de algumas grandes figuras - se queria caracterizá-los,

!?epois dos irmãos pregadores eis também as mulheres animadas pelo

desejo de levar uma nova forma de vida religiosa, a quem se propõe que

meditem sobre o Purgatório: as beguinas.

o Purgatório e as beguinas

No século XIII, as beguinas constituem um meio muito interessante.

Estas mulheres retiram-se para casas individuais ou habitadas por um

pequeno número delas situadas no mesmo bairro da cidade para levarem

372

.1 uma vida devota a meio caminho entre a vida das religiosas e a das

laicas. Seduzem e inquietam simultaneamente e são objecto de um apostolado

especial por parte da Igreja.

Ao estudar a pregação praticada em 1272-1273 na capela de Santa

Catarina da beguinaria de Paris, que S. Luís fundara cerca de 1260, pelos

pregadores na sua maioria dominicanos e franciscanos, Nicole Bériou

encontrou muitas vezes o Purgatório'", Um mostra os mortos gloriosos

no Paraíso, representado por Jerusalém, exortando os seus irmãos que se

encontram no Purgatório, representado pelo Egipto. As penas do Purgatório

são pesadas e devemos preocupar-nos com os nossos parentes que lá

Ie encontram, atormentados e impotentes'".

Outro incita as beguinas a rezar por «aqueles que estão no Purgatório»

para que Deus liberte «os seus prisioneiros da prisão do Purgató-

. &5

rio.» .

Vemos definir-se a ideia de que há vantagem em rezar pelos que estão

no Purgatório porque, logo que estiverem no Paraíso, eles rezarão por

aqueles que os arrancaram ao Purgatório. «Não serão ingratos», afirma

o segundo pregador. Outro ainda incita a rezar pelos que estão no Purgatório,

não pelos do Inferno, por aqueles que estão na prisão do Senhor

e, em linguagem vernácula, «gritam e vociferam» e que os vivos devem

libertar com as suas esmolas, jejuns e orações'".

Um sublinha que não se deve esperar pelo Purgatório ou pelo Inferno

para se cumprir a penitência?", enquanto um franciscano, evocando a

lista das oito categorias de pessoas pelas quais se deve habitualmente

rezar (pro quibus solet orari), inclui nela as que estão no Purgatório'",

Um terceiro explica que se deve fazê-lo especialmente «pelos parentes e

amigos»69. Este indica que o primeiro fruto da penitência é libertar da

pena do Purgatório 70, e aquele avisa: «São loucos os que dizem: "Ora,

farei a minha penitência no Purgatório" pois não há comparação entre

a dura~ão da pena do Purgatório e qualquer pena cá em baixo no

mundo I.)) Particularmente interessante é a declaração de um pregador

franciscano no Dia de Ramos. Não quer ser um daqueles confessores

«grandes avaliadores de almas» (non consuevi esse de illis magnis ponderatoribus)

que enviam uns para o Inferno e outros para o Paraíso. «O

caminho intermédio, diz ele, parece-me mais seguro. Como não conheço

o coração dos diferentes homens, prefiro enviá-los para o Purgatório e

não para o Inferno por desespero, e o resto deixo-o ao mestre supremo,

o Espírito Santo, que ensina os nossos corações a partir de

dentro 72 .) Terá havido uma expressão mais bela da função do Purgatório?!

Este pequeno corpus de sermões às beguinas parisienses realça três

aspectos fundamentais do Purgatório: 1) E a prisão de Deus. Trata-se

pois do grande encerramento das almas e a sua libertação impõe-se às

373



orações dos vivos porque se coloca na longa tradição cristã das pr

pelos prisioneiros oriunda dos primeiros séculos de perseguição e estim

lada pelos sentimentos de justiça e de amor. 2) O Purgatório obriga

solidariedade entre os vivos e os mortos, em que insistem quase tod

os pregadores. 3) Enfim, o Purgatório está estreitamente ligado à penit

cia, quer esta liberte dele, quer aquele a termine.

o Purgatório e a política

Numa crónica do começo do século XIV composta no Convento dOI!

Dominicanos de Colmar encontra-se uma história que mostra que o Purgatório

continua a ser uma arma política nas mãos da Igreja. É a história,

de um mimo que viu no Purgatório Rudolfo de Habsburgo (1271-1290)

filho de Rudolfo, rei dos Romanos.

A história, contada pelo dominicano Otto, é suposta ter acontecido

em Lucerna. Havia nesta cidade dois amigos, um ferreiro e um mimo

chamado Zalchart. Um dia o mimo foi representar num local onde ••

realizava um casamento. Entretanto o ferreiro morreu e apareceu a Zal.

chart montado num grande cavalo e levou-o e à sua sanfona para uma

montanha que se abriu para os deixar entrar. Lá encontraram muitos

importantes personagens falecidos, entre os quais Rudolfo, duque de AI.

sácia, filho do rei dos Romanos Rudolfo. Estes mortos aproximaram-li

de Zalchart e pediram-lhe que anunciasse às suas mulheres e aos seus

amigos que eles estavam a sofrer grandes penas, um por ter roubado,

outro por ter praticado a usura, e rogavam aos seus parentes vivos que

restituíssem aquilo de que eles se tinham apossado. Rudolfo confiou também

a Zalchart uma mensagem para os seus herdeiros, pedindo-lhes que

procedessem à restituição de um bem usurpado, e encarregou-o de anunciar

a seu pai o rei dos Romanos que também ele morreria dentro de

pouco tempo e viria para aquele lugar de tormentos. Como selo de autenticidade

imprime-lhe no pescoço com dois dedos duas marcas dolorosas.

Depois de a montanha o devolver ao mundo dos vivos, ele entrega as

mensagens que lh~ foram confiadas mas os sinais (intersigne - intersignum)

do pescoço infectam-se e ele morre ao fim de dez dias.

Toda a história mergulha num clima folclórico: o ferreiro é um demónio

condutor de almas e o mimo um rabequista do diabo. Quanto a este

Purgatório, é de tal maneira «infernizado» que, quando Zalchart pergunta

a Rudolfo «Onde estais?», este responde: «No Inferno ".»

O Purgatório penetra também no mundo dos santos e na hagiografia,

O século XIII é a época em que a santidade passa a ser controlada pelo

papado, em que os santos já não se fazem através da vox populi (na condição

de ter sido sancionada por milagres), mas através da vox Ecclesiae,

374

Il voz da Igreja. É também a época em que a concepção de santidade

evolui, em que, a par com o milagre sempre necessário para reconhecer

um santo, as virtudes, a qualidade da vida, a aura espiritual contam cada

vezmais. S. Francisco de Assis, para além dos mártires, dos confessores e

dos taumaturgos, encarna um novo tipo de santo cujo modelo directo é o

próprio Cristo?". Mas há uma piedade popular, uma devoção de massas

que tocam tanto os intelectuais como o povo e que se alimentam nas

fontes tradicionais da hagiografia. A par com as vidas individuais de

santos, divulgam-se recolhas de lendas hagiográficas elaboradas num novo

espírito, que os próprios catálogos medievais chamam de «lenda no-

Vil»,legenda nova. É verdade que o público privilegiado destas «lendas» é

o «pequeno mundo do clero vivendo em comunidade» e o «grande público»

não é atingido directamente por estas recolhas. Mas, por intermédio

dos pregadores e dos artistas que, com frescos, miniaturas e esculturas se

inspiram largamente nestas lendas, também ele é atingido, tanto mais que

um vasto movimento de tradução, adaptação e encurtamento em linguagem

vulgar põe estas lendas ao alcance da parte do mundo monástico que

não entendia o latim, os conversos e as freiras, e abre-lhes assim um

caminho directo para a sociedade dos laicos".

o Purgatório na «lenda dourada»

Nesta produção hagiográfica a Itália chega relativamente tarde mas,

no século XIII, cerca de 1260, produz a lenda que, apesar da sua mediocridade,

conhecerá o maior êxito, a Lenda Dourada (Legenda aurea) do

dominicano Jacopo de Varazze. Amálgama de fontes diversas, a Lenda

dourada nem por isso é menos aberta a temas «modernos» de devoção. E

favorável ao Purgatório que surge em primeiro plano em dois dos seus

capítulos, o que é dedicado a S. Patrick e o que trata da Comemoração

das almas.

Ao Purgatório de S. Patrick atribui ele a seguinte origem: «Quando

S. Patrick pregava na Irlanda e não tirava disso grandes frutos, pediu ao

Senhor que lhe mostrasse um sinal para assustar os irlandeses e os levar a

fazer penitência. Por ordem do Senhor, traçou num determinado local um

grande círculo com o seu bordão e eis que a terra se abriu no interior do

círculo e surgiu um poço muito grande e profundo. Foi revelado a S.

Patrick que ali era um lugar do Purgatório. Se alguém lá quisesse descer

não lhe faltaria mais nenhuma penitência par.a cumprir e não suportaria

outro purgatório pelos seus pecados. Muitos não regressavam e os que

regressavam tinham de lá estar desde uma manhã até à manhã seguinte.

Ora entravam lá muitos que não regressavam.» Jacopo de Varazze resume

a seguir o opúsculo de H. de Saltrey (que não menciona) mas muda o

375



nome do herói substituindo o cavaleiro Owein" por um nobre cha

Nicolau.

Nesta lenda inserida no calendário litúrgico, onde os grandes perí

e os grandes momentos do ano litúrgico dão origem a exposições dou

nárias sumárias, o Purgatório encontra-se na Comemorarão das A/mal

2 de Novembr0 78 . Esta exposição aborda logo ao princípio o probl I

do Purgatório. A comemoração é apresentada como um dia destinado

levar.sufrá~os ~os,def~n~o~~u~ não são ajudados por benesses especi

A ongem e.~tnbUlda a mtcratrva do abade de Cluny, Odilon, segun

Pedro Damião. O texto que conhecemos está alterado de maneira a f:

de Odilon não o ouvinte do relato do monge regressado da peregrina

mas a testemunha directa dos gritos e lamentos não dos defuntos to

rados mas dos demónios furiosos por verem que as almas dos mortos

são arrancadas pelas esmolas e as preces.

Jacopo de Varazze responde a seguir a duas perguntas: 1) Quem ea

no Purgatório? 2) O que pode fazer-se pelos que lá estão? O domini "

ligúrico dado às divisões numeradas como um estudante subdivide

primeira pergunta em três: 1) Quem deve ser purgado? 2) Por quem? 3

Onde? Existem - resposta à primeira subpergunta - três categorias di

purgandos: 1) os que morrem sem terem terminado completamente a

sua penitência; 2) os que descem ao Purgatório (qui in purgatorium M,."

cendunt) porque a penitência que lhes foi imposta pelo confessor é in'"

rior a? que de~a ser (Jacopo prevê também, aliás, o caso em que ela seja

supenor ao devido e valha ao defunto um acréscimo de glória); 3) aqueles

que «levam consigo madeira, feno e palha» e, através desta referência

à. p.rimeira epístola de Paulo aos Corintios, Jacopo visa os pecados vemais.

Ao desenvolver estes princípios Jacopo esboça uma aritmética do Purgatório,

dizendo por e~e?Iplo que «se se tivesse de suportar uma pena d.

dOIS~eses no Pu.rgatono, poder-se-ia ser ajudado (pelos sufrágios) d.

maneira a ser-se libertado ao fim de 'rm mês».

_ Seguindo Ag~stin~o, ele precisa que a pena do Purgatório, ainda que

nao seja eterna, e murto dura e excede qualquer pena terrena, até os torme~tc:>sdos.mártires.

Jacopo leva bastante longe a «infemização» do Purgatono,

pOISpensa que são os demónios, os anjos maus, que atormentam

os defuntos no Purgatório. Enquanto outros supõem que Satanás e 01

demónios vêm assistir com prazer aos tormentos dos expurgados, aqui

pelo contrário, são os anjos bons que vêm (talvez) assistir e os consolam:

Os mortos do Purgatório têm ainda outra consolação: esperam a «glória

futura (o Céu), sabendo estar certos». E em relação a esta glória futura

t~m .uma certeza ~<detipo médio» (medio modo), o que realça a importancia

da categona de intermédio. Os vivos esperam e têm certezas os

eleitos têm certezas sem espera, os que estão no Purgatório têm certezas

376

e esperam. Porém, in fine. Jacopo da Varazze, que no fundo não tem

qualquer ideia pessoal e justapõe as opiniões de un.s e outros, afi~a

como conclusão desta pergunta que mais vale acreditar que a pumçao

do Purgatório não é executada pelos demónios mas apenas por ordem

de Deus.

Sobre a pergunta seguinte, a localização do Purgatório, depois ~e ter

emitido a opinião dominante na sua época, Jacopo e~~~era tambén: d~

enfiada outras opiniões que não lhe parecem contradltonas em relação a

primeira. Opinião comum: «A purgação faz-se num 10c8;1situa?~perto

do Inferno chamado Purgatóri0 79 .» Mas acrescenta: «E a opimao da

maioria dos entendidos (sapientes) mas outros pensam que ele se situa

no ar e na zona tórrida.» E prossegue: «No entanto, por dispensa divina,

certos lugares são por vezes destinados a certas almas, seja para abreviar

a sua punição, seja prevendo a sua libertação mais rápi~a, ou para nos

edificar ou ainda para que a punição se cumpra nos locais do pecado, ou

ainda graças às preces de um santo.» Em defesa destas últimas hiP?t~ses,

cita algumas autoridades e exemplos tirados sobretudo de Gregono, o

Grande mas também da história do mestre Silo proveniente de ,Pedro,

o Chantre, mas que reencontramos em Jacques de Vitry e em Etienne

de Bourbon e, para o último caso, a intervenção de um santo, remete

para o Purgatório de S. Patrick. . _ .

Dos sufrágios diz muito classicamente que quatro ~lpOSsa~ ~speclalmente

eficazes: as oraçõs dos amigos, as esmolas, a missa e o Jejum..Invoca

a autoridade de Gregório, o Grande (história de Paschase e muitas

outras), de Pedro, o Venerando, de Pedro, o Chantre, o segundo livro dos

Macabeus, Henrique, o Grande, célebre mestre parisiense da. segunAda

metade do século e uma história interessante porque evoca as indulgências

ligadas à cruzada, no caso a cruzada contra os albigenses: «As i~d~lgências

da Igreja são igualmente eficazes. Por exemplo, um nuncio

pontifical pedira a um guerreiro valoroso que fosse combater n~ cruz::da

contra os albigenses ao serviço da Igreja, concedendo-lhe uma indulgência

para o pai defunto; passou lá quarenta dias e, ao cabo desse período,

apareceu-lhe o pai irradiando luz e agradeceu-lhe a sua líbertação'".»

Por fim designa a categoria dos medianamente bons como a que aproveita

com os sufrágios. Numa última palinódia volta à sua ideia de que os

sufrágios dos vivos maus não aproveitam às almas do Pur~~tório, par~

dizer que isto não se aplica à celebração de missas, sempre validas, ne?I a

realização de boas obras de que o defunto tivesse encarregado o VIVO,

ainda que mau. . '

Este longo desenvolvimento termina por um exemplum brado da Cronica

do cisterciense Hélinand de Froimond, do começo do século XIII, e

cuja acção é suposta desenrolar-se na época de Carlos Magno, em 807

exactamente. «Um cavaleiro que partia para a guerra de Carlos Magno

377



"

contra os Mouros pediu a um parente que vendesse o seu cavalo e dCSII

dinheiro aos pobres se ele morresse na guerra. Depois da morte do ca

leiro este. parente ficou com o cavalo que muito lhe agradava. Po

tempo depois apareceu- lhe o defunto brilhando como o Sol e disse-

"Bom parente, durante oito dias fizeste-me sofrer as penas do Purgatô

por causa do cavalo cujo preço não deste aos pobres; mas não o levar

para o Paraíso (impune non feres) pois hoje mesmo os demónios v

levar a tua alma para o Inferno enquanto eu, purgado, vou para o rei

de Deus." Logo se ouviram no ar como que clamores de leões de ursos.

d . 81 '

e lobos, e ele fOIlevado da terra .» Reconheceu-se neste uma versão di

um dos dois exempla sobre o Purgatório que se encontram nos sermo",~

vulgares de Jacques de Vitry - mas também em Eudes de Chêriton •

Tomás de Cantimpré. E um clássico das colecções de exempla. Retomad~

na Lenda dourada. será um pouco o vademecum do Purgatório DO

seculo.XIII. Nele se encontra o essencial do processo do Purgatório desdt ,

Agostinho, com alguns textos mais recentes destinados a contribuir com >

complementos teóricos e explicações.

Uma santa do Purgatório: Lutgarda

A literatura hagiográfica oferece um testemunho surpreendente da

popularidade do Purgatório.

No Purgatório as almas têm necessidade de auxílio. Este vem-íhes

sobretudo dos parentes, dos amigos, das suas comunidades. Mas nio

caberá aos santos, a determinados santos, cumprir o seu dever de inter-

~ss?re~, de a~iIiadores? É ~erdade que a Virgem, mediadora por exce-

Iência, e particularmente acnva. Um certo santo Nicolau está prestes a

J~tar aos seus numerosos patrocínios o do Purgatório, se assim se pode

dizer. Mas um caso é especialmente notável. O século XIII assiste ao esboçar

do. cult~ de uma verdadeira santa do Purgatório, Santa Lutgarda.

E uma cistercíense do mosteiro beneditino de Saint-Frond talvez uma

simples conversa, .que morreu cega em 1246 no mosteiro de Aywiêres,

no Brabante,. na diocese de Namur. Parece ligada ao meio das beguinas

e esteve relacionada com Jacques de Vitry de quem recebeu pelo menos

um~ carta, e com a tal Maria de Oignies, beguina célebre, cuja vida foi

e~n.ta por Jacques de Vitry. Deixou nome principalmente na história da

mística, em que contribuiu, juntamente com algumas beguinas, para promover

a devoção ao Coração do Crist0 82 .

. Um dominicano bem conhecido, Tomás de Cantímpré, escreveu a sua

Vida logo depois de ela ter morrido, entre 1246 e 1248. Mas Lutgarda não

será ca~onizada oficialmente. Lutgarda, de que ele nos diz que nunca

conseguru falar francês (não quereria conservar a língua da sua cultura

de origem, o flamengo, no contacto com os laicos?), parece ter sido ~

tanto suspeita aos olhos da Igreja oficial. Inocêncio IV or~enou a To~~s

de Cantimpré que corrigisse a primeira redacção da sua VIda. O dominicano

apenas chama Lutgarda de «piedosa» (pia), nunca ?e santa (s~ncta

ou beata) mas foi considerada e honrada como santa «a moda antiga».

Segundo a sua Vida, especializara-se na libertação das almas do Purgatório.

Conta no seu activo pessoas notórias, até mesmo célebres, que

auxiliou.

A primeira de que nos falam é Simão, abade de Fouilly, «um homem

fervoroso mas duro para quem de si dependia», falecido prematuramen~e.

Tinha uma predilecção pela piedosa Lutgarda a quem a su~ ~orte mU1~o

perturbou. Cumpriu penitências especiais (afflictiones} e Jejuns e pediu

ao Senhor a libertação da alma do defunto; o Senhor respondeu-lhe:

«Graças a ti serei benevolente para com aquele por quem oras.» Mílitante

decidida da libertação das almas do Purgatório, Lutgarda responde:

«Senhor, não deixarei de chorar e não me satisfarei com as tuas promessas

enquanto não vir livre aquele por quem te imploro.» Então o Senh,?~

apareceu-lhe e mostrou-lhe a alma em pessoa que o acompanhava, ja

liberta do Purgatório. «Depois do que Simão apareceu frequentem~n~e

a Lutgarda e disse-lhe que teria passado quarenta anos no Purgatório

se as suas orações não o tivessem socorrido junto de Deus misencordíoso'".»

No momento de morrer, a bem-aventurada Maria de Oignies confirmou

que as preces, os jejuns e os esforços de Lutgarda tinham um gran~e

poder. E predisse: «Debaixo do céu, o mundo não tem intercessor mais

fiel nem mais eficaz para libertar com as suas preces as almas do Purgatório

do que a dama Lutgarda. Durante a vida realizou muitos milagres

espirituais e depois da morte reali~-los-á c~rpora~s84.» ., .

O próprio cardeal Jacques de Vitry podena ter Sido um beneficiário da

intercessão de Lutgarda. Quatro dias depois da sua morte, Lutgarda, que

não soubera dela, foi transportada ao Céu e viu a alma de Jacques d.e

Vitry levada por dois anjos para o Paraíso. «O espírito de Lutgarda felicitou-o

e disse: "Reverendíssimo Padre, ignorava a tua morte. Quando

deixaste o teu corpo?" Ele respondeu: "Há quatro dias e passei três o<;>ites

e dois dias no Purgatório." Ela admirou-se: "Porque não me fizeste sinal,

a mim, sobrevivente, logo que morreste, para que eu te libertasse da. tua

pena com o auxílio das orações das nossas irmãs? - O Senhor, replicou

ele, não quis entristecer-te com a minha pena e preferiu confortar-te ~~m

a minha libertação e a minha glorificação, terminado o meu purgatono .

Mas tu vais em breve seguir-me". Ao ouvir estas palavras a piedosa Lutgarda

veio a si e anunciou às irmãs com grande alegria a s.uam,orte, o seu

purgatório e a sua glorificação.» Segundo Tomás de Cantlmpre,.ess: purgatório

de Jacques de Vitry teve uma segunda testemunha, um irmao do

j.

!

378

379



convento dos dominicanos de Roma, onde Jacques de Vitry foi prim

enterrado, ao qual Deus também revelou no quarto dia depois de mo

o seu purgatório e a sua glorificação'".

Enfim, a bem-aventurada Maria de Oignies apareceu a Lutgarda

pediu-lhe que interviesse a favor do amigo de ambas, Baudoin de Bar

zon, superior de Oignies, anti~o capelão de Aywiêres, a quem promete

ajudar no momento da morte 6.

E Tomás de Cantimpré conclui: «Ó venerável Maria, como és verdedeira

no teu testemunho, fiel na tua promessa, tu que te dignaste ir pedir'

piedosa Lutgarda o sufrágio das suas preces para todos os mortais, t1&

que, quando ainda estavas nesta terra, pediste àquela que era a mata

poderosa que libertasse as almas do Purgatório e que, sublimada n••

alegrias celestiais, vieste ainda pedir o seu auxílio para um amigo d••

funtol»

Os vivos e os mortos: testamentos e obituários

o Purgatório aparece também nas principais manifestações das nov ••

formas de solidariedade entre os vivos e os mortos no século XIII.

OS primeiros documentos em que se pensa são os testamentos. É pre-.

ciso reconhecer que o Purgatório parece apenas fazer neles uma tímida

aparição nesse século XIII. Só se introduzirá verdadeiramente no século

XIV, e mesmo assim de maneira diferente segundo as regíões'". Por

exemplo, num testamento como o de Renaud de Borgonha, conde de

Montbéliard, que data de 1296 (com o acrescentamento de um codicilo

em 1314) trata-se mesmo de aliviar a alma do futuro defunto pagando li

suas dívidas e mandando dizer missas pelo aniversário da sua morte

«para remédio da alma» (a expressão «pro remedio animae» é tradicional

dos actos de doação e depois nos testamentos) e evocam-se portanto O.

sufrágios pelos defuntos que estão no Purgatório, mas o nome não'

pronunciado'". Seria necessário estudar a atitude das ordens mendicantes

das quais se sabe que foram por um lado grandes «captadoras dto .

testamentos» e, por outro lado, grandes divulgadores do Purgatório, pe.

10 menos nos sermões e nos exempla. Não foram elas que no decurso do

século XIII substituíram os cistercienses no papel de vulgarizadoras do

Purgatório?

Os estabelecimentos religiosos conservam sempre livros de memórias

dos mortos. Mas os necrológicos do período anterior dão lugar a novo.

memoriais a que se chamará obituários e, se o Purgatório não aparece .

neles directamente, os seus progressos influenciam muito esta transformação,

como pensa o especialista Jean-Loup Lemaitre.

380

A partir do fim do século XII, com a redescoberta do testamento, com a

multiplicação dos legados piedosos, com o desenvolvimento da crença no

Purgatório, a documentação necrológica toma um aspecto sensivelmente diferente.

Uma simples inscrição recomendando uma comemoração e sufrágios

é substituída por uma inscrição acompanhada por um oficio a celebrar. O

officium plenum, até então excepcional, toma-se progressivamente de regra.

Sendo o oficio dos mortos, solene ou não, super-errogatório, importava assegurar

a respectiva celebração por meio de fundos, e daí a modi~cação do

carácter das notícias. Ao lado do nome do defunto, da sua qualidade e da

sua função, acrescentaram-se os elementos constitutivos desses fundos instituídos

geralmente em forma de renda: base, devedores, sucessão destes, por

vezes mesmo definindo-se as modalidades de emprego: distribuição ao celebrante,

aos ajudantes, aos sineiros. Por vezes define-se mesmo o tipo de oficio

a celebrar. Em certos casos a legação de fundos era feita em vida do beneficiário

e o oficio era então uma missa, a maioria das vezes da Virgem ou do

Espírito Santo, que passaria a ser missa de aniversário após a sua morte.

O processo de inscrição variou e evoluíu. Primeiro,. inscrevia~-se ~ado a

lado os óbitos dos membros da comunidade, de associados espíntuaís e os

fundos de aniversário para os quais as modalidades de execução eram indicadas.

Progressivamente a inscrição destes fundos passou a ser preponderante e

suplantou as inscrições automáticas e graciosas de simples nomes a comemorar.

Era sempre lícito relembrar no capítulo ou no refeitório os nomes dos

defuntos para quem os sufrágios da comunidade eram requeridos, mas o essencial

era saber quais os oficios dos mortos que deviam celebrar, em intenção

de quem deviam ser ditos, que pitança, que soma em dinheiro, segundo os

casos, estava ligada a essa celebração. O livro tinha pois um duplo uso, mas

já s~ servia para inscrever os óbitos da comunidade. com fundos. .

E por esta razão que se vê desaparecer progressivamente destas compilações,

a partir do século XIII, os membros da comunidade (sobretudo nas

comunidades monásticas) em proveito dos laicos, burgueses e nobres, preocupados

com assegurar a sua salvação e encurtar a estada no Purgatório por

meio de outorga piedosa de fundos'".

Enfim, encontra-se pelo menos um testemunho explícito do lugar ~upado

pelo Purgatório nas preocupações dos membros de uma confran~,

associações cuja grande preocupação, à semelhança dos colegas funerarios

da Antiguidade, era velar pelos funerais e pelos sufrágios dos membros

defuntos da confraria. Encontra-se esta referência no alvará da

confraria dos barbeiros de Arras de 1274.

Este texto, cujo original foi escrito em linguagem vernácula, em f~ancês

antigo, visto que uma das partes - os barbeiros - é formada por laicos

que não sabem latim - é dos mais significativos. O Purgatório está no

centro desta asso' .iação de tipo sociedade ajuramentada própria do novo

mundo urbano entre os membros de ambos os sexos de uma profissão

dirigida por pessoas eleitas de tipo comunal (presidente da Câmara e

381



abnotacés) e a comunidade de uma das novas ordens religiosas mendicaa

tes, os dominicanos, estreitamente ligados no seu aposto lado à nova s0-

ciedade urbana.

Saibam todos os que existem ou vão existir que o superior dos IrmlOl

Pregadores de Arras e o convento dos ditos Irmãos concederam, pela autoridade

do mestre da Ordem, aos barbeiros de Arras uma caridade (confraria).

fazer em honra de Deus e de Nossa Senhora e de Monsenhor S. DomingOl.

Concederam-lhes três missas todos os anos perpetuamente a todos os irmão. •

irmãs que nela entrarem, nela permanecerem e lá morrerem. A primeira mi•••

é no dia da trasladação de Monsenhor S. Domingos e as duas outras nOl

aniversários dos seus pai e mãe falecidos. E outorgaram-lhes plena associaçlo

(compaignie) e plena participação de todos os bens que existirem e vierem •

existir no seu convento de Arras e para toda a ordem e santa cristandade,

para todos os vivos que se mantiverem em caridade e em graça e, por aquelol

que morrerem, para encurtar as suas penas no Purgatório e apressar o seu

repouso eterno. A todas estas coisas mencionadas o superior e os irmão.

associam (acompaigne ) todos os homens e todas as mulheres que entrarem

neste convento por intermédio do presidente da câmara e dos almotacés que

os barbeiros lá puserem. E para certificar e tornar estável (estande: estável,

firme) e provável tudo isto, o superior e o convento dos ditos irmãos selaram

este documento com o seu selo, o que foi feito no ano da Encarnação d,

Nosso Senhor MCC e XLVII, no mês de Abril 90 .

Sobre este texto - na verdade o único deste género que conheço e que

chegou até nós - formularei duas hipóteses. A primeira tem a ver com o

papel dos mendicantes difusores de novas atitudes perante a morte, na

divulgação do Purgatório. A segunda é o interesse pelo Purgatório manifestado

por uma profissão suspeita, desprezível, esses barbeiros-cirurgiões

em contacto com o corpo e o sangue, que eram incluídos nos oficios

desonestos - inhonesta mercimonia. Como aconteceu com os usurários,

não verão os barbeiros no Purgatório uma melhor oportunidade para

escapar ao Inferno? Uma das consequências dos progressos do Purgatório

não será reabilitar, na perspectiva da salvação, as categorias sócioprofissionais

espiritualmente frágeis e consolidar religiosamente a sua

ascensão social?

o Purgatório

em língua vulgar: o caso francês

Haveria outra investigação a empreender na literatura em língua vernácula.

O seu interesse seria informar-nos sobre a difusão do novo além

nas obras literárias directamente «consumidas» pelos laicos. Nas compilações

de exempla em língua vulgar ou nas crónicas «topa-a-tudo» como

382

u Menestrel de Reims encontra-se, bem entendido, o Purgatório. Mas a

produção literária, em francês por exemplo, tomou-se tão abundante no

século XIII que apenas é possível efectuar uma sondagem. Parece-me,

pelas amostras dadas por alguns eruditos'", que o Purgatório se toma

uma espécie de acessório nos diversos géneros literários. Como assinala

o Vocabulário de Francês Antigo de Tobler-Lommatzch, nunca se fala do

Purgatório na epopeia (género anterior ao Purgatório, ainda que se tenham

composto canções de gesta no século XIII) e a primeira obra literária

que o menciona é o Espurgatoire saint Patriz de Maria de França.

Um cavaleiro italiano, Filipe de Novare, jurista, escritor, interessado

nos negócios com a Terra Santa e com Chipre, escreve depois de reformado

com mais de sessenta anos e depois de 1260, em francês, que é a

lingua literária da cristandade, um tratado onde resume a sua experiência,

Os Quatro Tempos da Idade do Homem. Os jovens, segundo Filipe, ~me~

tem muitas imprudências e mesmo loucuras. Fazem pouca pemtência ca

Pu

,. 92

em baixo no mundo, e terão de fazer uma grande e longa no rgatono.

No Romance de Baudouin de Sebourc pode ler-se:

Vai para o Paraíso

Sem passar pelo Purgatôno",

o que lembra o papel intermédio, a situação de passagem do Purgatório.

Gautier de Coincy, cónego de Soissons, autor da mais abundante e

reputada colecção de Milagres de Nossa Senhora (Miracles de Notre-Dame)

em verso (1223), fala do Purgatório como lugar de castigo:

No Purgatório ajustam-se as contas

Ele foi para lá levado pelas más acpões

Que em vida cometeu e praticou",

Jehan de Journi, proprietário da Picardia, escreve na sua Dízima de

Penitência (Dfme de pénitence ) composta em Chipre em 1288:

Um homem prudente deve moderar-se

Enquanto pode resistir

Que dê esmolas enquanto vive

Porque na morte isso ajudá-to-á

A ir para o Purgatório

A fim de se purificar para o Paraiso" ...

Mas o mais interessante de todos estes textos literários é, sem dúvida,

uma passagem do conto em verso A Corte do Paraíso (La cour de paradis):

383



Por isso vos diz no dia das Almas

E depois do Dia de Todos-os-Santos

Tenham todos a certeza;

Conta-nos a história

De que as almas do Purgatório

Repousam durante esses dois dias;

Mas as que não tiverem perdão

E forem condenadas pelos seus pecados

Tenham todas a certeza

De que não terão repouso nem permanência.

A ligação entre a festa de Todos-os-Santos e a Comemoração daa

Almas (1 e 2 de Novembro) está fortemente marcada, e os laços destel

duas solenidades com o Purgatório nitidamente sublinhados. A origina.

lidade destes versos reside sobretudo no seguinte: se o sabat infernal, O

descanso hebdomadário dos condenados do Inferno é negado, em com.

pensação aparece a ideia de uma trégua de dois dias no Purgatório, em

vez da ideia de Jacques de Vitry de um repouso dominical. O Purgatório

«infernizou-se» decididamente a ponto de ser transferido para ele o tema

de um repouso imaginado para a geena.

Justamente na viragem do século XIII para o século XIV, um grande

acontecimento permitiu ao Purgatório uma promoção ao encontro daa

intenções da Igreja e das aspirações dos fiéis. Foi o Jubileu de 1300 96 •

As indulgências para o Purgatório: o Jubileu de 1300

Neste ano o Papa Bonifácio VIII, já empenhado na sua luta com o rei

de França Filipe, o Belo, e, através deste, com a sociedade laica cristã que

suportava cada vez menos o jugo pontifical, convocou pela primeira vez a

Roma todos os fiéis para a celebração do jubileu, em memória da lei

mosaísta expressa no capítulo XXV do Levítico. Tratava-se de uma espécie

de super-ano sabático, ano de expiação e de repouso, de libertação e

de regresso às origens, que deveria repetir-se passados sete vezes sete

anos, quer dizer de cinquenta em cinquenta anos. Ano jubilar simbólico

que decerto nunca foi efectivamente realizado. Também aqui o cristianismo

substituiu judaísmo e o Evangelho anunciou «um ano da graça do

Senhor» (Lucas, IV, 19). Desde a Alta Idade Média que o jubileu, sem

ser praticado pela Igreja, fora integrado por alguns autores eclesiásticos

nas novas concepções cristãs da penitência e do perdão. É portanto normal

que o jubileu ressuscitado se junte ao recente Purgatório também ele

ligado, histórica e teoricamente, à penitência.

Isidoro de Sevilha definira nas suas Etimologias o jubileu como um

ano de remissão (remissionis annus I": Ano de absolvição cujos promo-

tores de 1300 assinalaram também que era o início de um novo século.

Consecução penitencial, ele oferecia aos fiéis uma espécie de substituto do

Millenium controlado bem de perto pela Igreja e pela Santa Sé.

Nesta altura o Papa concedeu aos peregrinos de Roma indulgência

plena (plenissima venia peccatorum), a completa remissão dos pecados

que até então só era dada aos cruzados, e estendeu o beneficio dessa

indulgência aos mortos, ou seja às almas do Purgatório. Esta extensão

nunca vista das indulgências fez-se tardiamente e de uma maneira de

certo modo indirecta.

Foi por uma decisão do Natal de 1300 que Bonifácio VIII concedeu a

indulgência plena a todos os peregrinos que morreram durante a peregrinação,

quer fossem a caminho quer estivessem em Roma, e às pessoas

que, tendo a firme intenção de realizar a peregrinação, tinham sido disso

impedidas'". A medida era pois de maior importância.

Parecia que o Papa decidia «a libertação instantânea de todas as penas

para certas almas do Purgatôriosf". É certo que a teoria do poder pontifical

já fora de certo modo estabelecida, nomeadamente, como já vimos,

por S. Boaventura e S. Tomás de Aquino. Mas, segundo parece, nunca

fora aplicada. A possibilidade de os vivos libertarem os mortos do Purgatório

nunca fora até então exercida senão per modum suffragii, pela

transferência para os mortos dos méritos que os vivos adquiriam através

de boas obras.

Parece que o poder pontifical em matéria de libertação das almas do

Purgatório permaneceu teórico até ao século xv, após esta explosão.

O canonista Alessandro Lombardo, falecido em 1314, bem repetiu, por

exemplo, que o Papa podia ir em socorro dos que estão no Purgatório com

a ajuda de indulgências indirectamente ou «acidentalmente», que podia

conceder indulgências a todos quantos «oram ou fazem bem aos defuntos

que estão no Purgatório»; mas os seus sucessores do século XIV não se

atreveram, tanto quanto se sabe, a usar deste poder exorbitante sobre o

além. Porém a iniciativa, embora limitada, fora tomada. Uma etapa fora

ultrapassada na inserção das indulgências no sistema do Purgatório.

A persistente hostilidade ao Purgatório

Esta decisão de Bonifácio VIII quando do jubileu de 1300, que foi um

grande êxito é, de certo modo, o ponto de interrupção do triunfo do

Purgatório no século XIII. Mas não devemos esquecer que, nessa viragem

do século, o Purgatório só tem partidários entre a cristandade.

E há os hereges.

Ainda no começo do século XIV, em 1335 e em Giaveno no Piemonte,

muitos valdenses declaram ao inquisidor dominicano: «Na outra vida

384 385



só existem o Paraíso e o Inferno e o Purgatório apenas existe ne.

mundo 100.»

Porém noutros casos, alguns suspeitos francamente hereges ou qUi

passam por o. ser, parecem acomodar-se mais ou menos ao Purgat6rio

o~ porque (j integraram num contexto de crenças folclóricas sobre O

além ou porque foram sensíveis ao imaginário do Purgatório.

E. ~ ~so de uma mulher, Rixenda, que em 1288 é interrogada pela .

Inquisição em Nar~~ne '. Parece pertencer ao meio das beguinas ligadu

aos. franciscanos espmtuaís, Declara ela que há oito anos, pelo S. Mateua

~(fol transportad~ para o Céu e ~u Jesus em pé e sentado e sua mãe Maria

Junto dele e ao pe deles S. Francisco», Acrescenta que «pôde ver o seu pai

e a sua mãe no Purgatório expiando os seus pecados e eles lhe disseram

que par~ os salvar ... (há ~qui uma lacuna no manuscrito) e disseram que

g;aças as suas preces muitas almas são arrancadas ao Purgatório, especialmente

seu pai e sua mãe e uma prima direita Aucradis. Diz tambénl

que no seu arrebatamento viu ~a mulher, Feralguiêre de Béziers, sobreca:re~da

de. penas, .sendo açoitada e espancada no Purgatório durante

tres <?as... VIU o pai e a mae a porta do Paraíso e pouco depois foram

recebidos ~a. sua _mor~da.» No dia seguinte precisa que as almas que saem

do Purgatono nao vao logo para o Paraíso e esperam um pouco na sua

mo.rada. Ass~ seu pa~ e sua mãe, que ela libertara do Purgatório por

meio de oraçoes e restituindo algum trigo que eles deviam, tiveram do

esperar durante um dia e uma noite à porta do Paraísol'" ...

Isto passa-se também com alguns aldeões cátaros de Montaillou. Pa.

rece~me que aqui se deveria adoçar a opinião de Emmanuel Le Roy Ladurie:

,«~m todas estas histórias existe um grande esquecido, o

Purgatôrio.» No processo de Raímond Vaissiêre d'Ax, a testemunha ajuramentada

Jean Barra declara: «Quando estávamos ambos em Encastel

ele disse-me que me fizesse membro da seita do falecido Pierre Authié o

herege, porque assim a minha alma, ao sair do corpo, iria logo ou entraria

no Paraíso e não veria o Inferno nem o Purgatório'!".»

N~ caso mais completo que chamou a atenção de Emmanuel Le Roy

Ladune, o de Amaud Gélis, copeiro da quinta de Saint-Antonin, vemos

espectros e Purgatório a coexistir e misturar-se. A alma do falecido Pierre

Durand: ~ónego de Pamiers, que lhe aparece na igreja de Saint-Antonín,

faz familiarmente a pergunta clássica: «Perguntei-lhe como ele ia e ele

disse-~e: "Agora bastante bem, mas conheci um lugar muito mau." Perguntei-lhe

qual e ele respondeu-me: "Passei pelo fogo do Purgatório que

era d~ro e mau. Mas só passei por ele." Pediu-me também que rezasse por

ele. VI-O uma outra vez no claustro ... E vi-o outra vez ainda no claustro e

depois não o vi mais, e julgo que está no repouso103.»

Arnaud Gélis faz notar o recuo do Inferno perante o Purgatório:

«Todos aqueles que já se foram me dizem que não se deve ter medo da

386

condenação eterna pois basta ser um cristão fiel que se confessou e se

arrependeu para não ser condenado ...»

Todavia, Pierre Durand é uma excepção. Segundo as revelações feitas

li Arnaud Gélis a condição normal das almas dos defuntos é vaguearem e

irem visitar as igrejas: «Fazem penitência indo a diversas igrejas. Uns vão

mais depressa outros mais lentamente, e os que têm penitência maior vão

mais depressa. É assim que os usurários correm como o vento; mas os que

têm uma penitência mais pequena caminham mais lentamente. Não ouvi

falar de ninguém que sofresse outra penitência além da movimentação,

excepto o referido Pierre Durant que passou pelo fogo do Purgatório.

Assim, quando deixam de visitar as igrejas, vão para o lugar do Repouso

onde ficam até ao dia do Julgamento, segundo me disseram esses

defuntos'P'»

Quando Amaud Gélis abjura, volta a ter mais consideração pelo Purgatório:

«Sobre o primeiro artigo, negando o erro que ele contém, afirmou

que embora tivesse acreditado nisso que se mencionou, crê agora

firmemente que as almas dos homens e mulheres defuntos vão para o

Purgatório onde cumprem a penitência que não cumpriram no mundo.

Terminada esta, vão para o Paraíso celeste onde estão o Senhor Cristo, a

. . t 105

Santa VIrgem, os anjos e os san os .»

Outra forma de resistência ao Purgatório encontra-se designadamente

em certos religiosos e poetas, especialmente em Itália.

Uns, conservadores, tradicionalistas, querem acreditar na velha oposição

Inferno/Paraíso e fecham os olhos perante esse novo terceiro lugar,

criação de teólogos intelectuais.

Bonsevin dalla Riva 106 , um milanês que viveu na segunda metade do

século XIII, da Ordem dos Humiliates, escreveu um Libro delle Tre

Scritture onde, entre a escritura «negra» que descreve as doze penas do

Inferno e a escritura «dourada» que mostra as doze glórias do Paraíso, o

que existe não é o Purgatório mas a Encarnação, a Paixão do Redentor,

que constitui a escritura «vermelha» feita do sangue do Cristo.

Na mesma época um outro poeta, o franciscano Giacomino da Verona

só retém das «escrituras» de Bonsevin a negra e a dourada num poema

Da Jerusalém Celeste e da Babilónia Infernal onde, entre as alegrias do

Paraíso e as penas do Inferno, não existe lugar sequer para as purgações

intermédias. A alusão às «subtilezas» dos teólogos (v. 19), a oposição

nítida entre o bem e o mal:

o mal conduz à morte com o anjo perdido

o bem dá a vida com o bom Jesus

(v. 331-332).

. 'do d P , . 107

parecem visar a exclusão do plano mterme 10 o urgatono .

387



Para outros a hostilidade, se não ao Purgatório pelo menos a ce

exageros piedosos que têm a ver com ele, parece vir do receio de enco

tr~r n~le superstições pagãs. Assim, numa passagem do seu célebre Specchio

di ve~apenttenza, on~e denuncia «as opiniões falsas e vãs que ficaraaa

do p~~aDJsmoou foram introduzidas pela falsa doutrina do demónio», O

dominicano Jacopo Passavanti ataca «a vaidade e cupidez dos mortaia

que querem dirigir a justiça divina e que pelas suas obras, palavras,

oferendas pretendem tirar prematuramente as almas do Purgatório. B

uma grande presunção e um erro perigoso»!".

Há quem considere Bonsevin dalla Riva e Giacomino da Verona precursores

de Dante. O génio e a audácia do poeta da Divina Comédia SÓ

saem mais realçados por contraste.

NOTAS

1 Talvez investigações aturadas permitam encontrar uma iconografia do Purgatório

mais precoce do que habitualmente se julga (ver o Apêndice III).

2 Sobre Joachim de Flore e o milenarismo, ver a obra de M. REEVES, The Influence

of Prophecy in the Later Middle Ages. A Study in Joachimisme, Oxford, 1969, e

o belo livro de Henry MOTIU, La Manifestation de l'Esprit selon Joachim de Fiore,

Neuchâtel, Paris, 1977. A obra inspirada mas por vezes contestável de Norman

COHN, The Pursuit of the Millenium, Londres, 1957, trad. franc., Les Fanatiques de

l'Apocalypse, Paris, 1963, sensibilizou o grande público para os movimentos milenalistas

do século XI ao século XVI.

3 B. GUENÉE, «Temps de l'histoire et temps de Ia mémoire au Moyen Âge» in

Bulletin de Ia Société de l'Histoire de France, nO 487, 1976-77, pp. 25-36.

4 Ver K. HAUCK, «Haus und Sippengebundene Literatur mittelalterlicher Adelsgeschlechter»

in Mitteilungen des Instituis für Õsterreichische Geschichtsforschung, 62,

1954, pp. 121-145 retomado em Geschichtsdenken UM Geschichtsbild im Mittelalter,

Wege der Forsehung, XXI, 1961. G. DUBY, «Remarques sur Ia Iittérature gênêalogique

en France aux XI" et XII" siécles» in Comptes rendus de l'Académie des Inscriptions

et Belles-Lettres, 1967, pp. 123-131. G. DUBY, «Structures de parenté et noblesse.

France du Nord xr-xrr siêcles» in Miscellanea Mediaevalia in memoriam J. F. Niermeyer,

1967, pp. 149-165, ambos retomados em Hommes et Structures du Moyen Âge,

Paris, 1973, pp. 267-298. L. GENICOT, Les Généalogies, Typologie des Sources du

Mouen Âge occidental, fase. 15, Turnhout, 1975.

5 Ver os trabalhos atrás citados, pp. 149-150.

6 Sobre o êxito dos géneros narrativos nesta época ver os fascículos 12 (Le

Roman por J.-Ch. Payen e F. N. M. Diekstra, 1975) e 13 (Le Fabliau por O. Jodogne

eLe Lai narratifpor J. Ch. Payen, 1975) da Typologie des sources du Moyen Age

occidental e La littérature narra tive d'imagination: des genres littéraires aux techniques

d'expression (Colóquio de Estrasburgo, 1959), Paris, 1961. Faz falta um estudo

de conjunto sobre o «fenómeno narrativo» na Idade Média e a sua explosão no

século XIII.

7 Não escapará ao leitor que esta expressão que veio a ser corrente, «purgar a sua

pena», vem da crença no Purgatório.

8 Philippe ARIES, L'Homme devam Ia mort, Paris, 1977, p. 110.

9 H. NEVEUX, «Les lendemains de Ia mort au Moyen Age» in Annales E.S.e.,

1979, pp. 245-263.

388

389



10 Jean DELUMEAU na sua grande síntese sobre La peur en Occident du XIV-

XVllr siêcle (1978), Jean WIRTH, no seu belo estudo sobre La jeune fllle et Ia

(Pe~uisa sobre as teses macabras na arte germânica do Renascimento), 1979.

I Michelle BASTARD-FOURNIÉ, «Le Purgatoire dans Ia région toulousaine 111

XIV" siêcle et au début du XV" siêcle» in Annales du Midi, pp. 5-34: «Êxito efémero •

escala do tempo histórico; parece que no século XVIII o Purgatório já não está ao

centro das preocupações religiosas dos naturais de Toulouse, a acreditar-se no leitemunho

dos testamentos» (p. 5, nota 2).

12 Ver adiante, pp. 358-360.

13 A. AARNE e S. THOMPSON, The Types of the Folktale, 21 ed. revista, Hei.

sinquia, 1964, p. 161.

14 Jean-Claude Schmitt, nas suas investigações sobre os espectros, interessa- ••

particularmente por este aspecto.

15 CONRADO D'EBERBACH, Exordium magnum cisterciense, Il, 23, ed. a.

Griesser, Roma, 1961, pp. 143-147. Agradeço a M. Philippe Dautrey que prepara

um estudo sobre A Morte cisterciense por me ter chamado a atenção para estes textoe,

16 Também tirado do Liber miraculorum de Herbert, ibid., p. 229.

17 Ibid., pp. 332-334.

18 Ver o Apêndice IV, pp. 443-444.

19 Chronica ROGERI DE WENDOVER, Flores Historiarum, t. 11, Londres, 1887,

pp. 16-35. Mathieu Paris, também monge de Saint-Albans, falecido em 1259, nas sua

Grandes Chroniques (Chronica Majora) onde continua Roger de Wendover, conteQ.

tou-se com recopiar palavra por palavra a história de Thurchill tal como a encontrou

em Fleurs des Histoires, MATTHAEI PARISIENSIS, Monge de Sancti Albani, Chronica

Majora, 1. lI, Londres, 1874, pp. 497-511.

20 S';?bre o exemplum ver o fascículo L'Exemplum da Typologie des sources tIN

Moyen Age occidental, no prelo, de a. BREMOND, J. Le GOFF e J.-Cl. SCHMITI,

A 21 A velha obra de A. LECOY De La MARCHE, La chaire franpaise au MoJl'lf

Age, spécialement au Xlll" siêcle, Paris, 1886, reimp. em Genebra, 1974, sobre a pli.

dica, continua a fornecer informações e ideias preciosas. Ver também de J. Le GOFF.

J.-CI. SCHMITT, «Au XIII" síêcle: une parole nouvelle» in Histoire vécue du peupl,

chrétien (sob a orientação de J. DELUMEAU), vol. I, Toulouse, 1978, pp. 257-279.

22 Sobre Jacques de Vitry, Alberto FORNI, «Giacomo de Vitry, Predicatore e

soeiologo» in La Cultura XVII/I. 1980, pp. 34-89.

23 JACQUES DE VITRY, Sermones vulgares, Sermão 68 Ad conjugatos, inédito.

Transcrição de Marie-Claire Gasnault sobretudo segundo os manuscritos Cambrai 53<t

e Paris BN, ms latino 17509.

24 Sermão inédito Sermo communis omni die dominica (I) segundo o manuscrito

455 de Liêge, fol. 2-2 v, comunicado por Marie-Claire Gasnault, a quem agradeço

vivamente.

25 The Exempla or illustrative stories from the sermones vulgares of Jacques de Vitry,

ed. Th. F. Crane, Londres, 1890, reimp. Nelden, 1967. Edição preciosa pelas suas

nota.s, mas medíocre pelo texto, e que separa os exempla do contexto do sermão, o

que ~~pede que se avalie o seu significado. O exemplum citado é o nOXCIV, pp. 52-53.

Ibid., nOCXXII, p. 56.

27 Ver Fritz WAGNER, «Studien zu Caesarius von Heisterbach» in Analecta Cistercensia

29, 1973, pp. 79-95.

28 CÉSÁRIO DE HEISTERBACH, Dialogue miraculorum ed. J. Strange, Colónia-

-Bona-Bruxelas, 1951. F. Wagner anuncia no seu artigo atrás citado uma nova edição

critica. Andrée Duby, a quem agradeço pelas suas informações e sugestões, prepara

um importante trabalho sobre o Dialogus miraculorum.

29 Num texto notável que teve a amabilidade de me comunicar, Alberto .Forni

acentua que para os ouvintes de sermões o tema do Purgatório «é fonte de terror».

É verdade, mas noutros contextos a «infernização» do Purgatório não é levada tão

longe. A. FORNI, «Kerigma e adattamento. Aspetti della predicazione cattolica nei

secoli XII-XIV» (a aparecer no Bullettino dell'Istituto Storico Italiano per iI Medio

Evo},

30 São os exempla I, 32 (conversão de um abade de Morimond que ressuscitou); 11,

2 (monge apóstata que se fez salteador de estrada e no momento da morte se arrependeu

e escolheu dois mil anos no Purgatório); m, 24 (tendo um confessor cometido o

pecado de sodomia com um adolescente, arrependeu-se profundamente mas não ousou

confessar-se; depois de morto aparece ao adolescente, conta-lhe as suas penas e exorta-

-o a confessar-se); 111, 25 (um noviço cisterciense que morre antes de ter podido confessar-se

escapa ao Purgatório confessando-se a um padre numa aparição em sonhos);

IV, 30 (tentações e visões do jovem monge de Heisterbach, Cristiano, que Santa Bárbara

preveniu de que sessenta dias de uma doença dolorosa cá em baixo serão contados

por sessenta anos no Purgatório); VII, 16 (Cristiano, monge de Hemmenrode,

devoto da Virgem Maria, vê numa visão a sua alma atravessar um grande fogo mas

ir finalmente para o Paraiso); VII, 58 (um bandido aceita não cometer nenhuma má

acção no sábado em honra da Virgem e deixa-se enforcar e decapitar: escapa assim ao

Purgatório); XI, 11 (o converso Mengoz ressuscitado pelo padre Gilberto conta que

viu no além mortos que seriam libertados do Purgatório dentro de trinta dias).

31 I, 32, ed. Strange, I, pp. 36-39.

32 11, 2, ed. Strange, I, pp. 58-61.

33 IV, 30, ed. Strange, I, pp. 198-202.

34 VII, 16, ed. Strange, 11, pp. 17-23.

3S XII, 24, ed. Strange, 11, pp. 335-336.

36 Ver G. DUBY, Le Chevalier, Ia femme et le prêtre. Le mariage dons Ia France

féodale, Paris, 1981.

37 Recusa-se mesmo a sepultura aos usurários.

38 L. K. LITTLE, «Pride Goes before Avance: Social Change and the Vices in

Latin Christendom» in American Historical Review, 76, (1971), 16-49.

39 J. Le GOFF, «The Usurer and Purgatory» in The Dawn of Modem Baking

(Centro de Estudos Medievais e do Renascimento, Universidade da Califórnia, Los

Angeles) New-Haven-Londres, 1979, pp. 25-52.

40 Dialogus miraculorum, XII, ed. Strange, Il, pp. 336-337.

41 Ibid., XII, 26, pp. 337-338.

42 Ibid., XII, 27, pp. 338-339.

43 Ibid., XII, 28, p. 339.

44 Ibid., XII, 29, pp. 339-340.

45 Ibid., XII, 30, pp. 340-341.

46 Ibid., XII, 31, pp. 341-342.

47 Ibid., XII, 32, p. 342.

48 lbid., XII, 33, pp. 342-343.

49 lbid., XII, 34, p. 343.

50 Ibid., XII, 35, pp. 343-344.

51 Ibid., XII, 36, pp. 344-345.

52 Ibid., XII, 37, pp. 346-347.

.

\

1

390

391



53 Ver H. DONDAINE, «L'object et le medium de Ia vision béatifique chez lei

théologiens du XIIl e siêcle», in Revue de théologie antique et médiévale, 19, 1952. pp.

60-130. Sobre a crise do século XIV provocada pela negação da visão beatífica iln

Papa João XXII ver M. DYKMANS, Les sermons de Jean XXII sur Ia vision béatiflque,

Roma, 1973.

54 Dialogus miraculorum, XII, 38 e XII, 39, pp. 347-348.

55 Sobre o tema dos sete dons do Espírito Santo nos séculos XII e XIII (os septenários

estão na moda: sacramentos, pecados capitais, artes liberais, etc.) ver O. LOT·

TIN, Psychologie et Morale aux Xll" et XIII' siêcle, t. IlI, Problémes de moralc

Lovaina, 1949,. capo XVI, «Les dons du Saint-Esprit du Xlf" siêcle à l'êpoque de saint

Thomas d'Aquin», pp. 327-456.

56 Está em preparação uma edição do tratado de Étienne de Bourbon em colaboração

entre «l'Ecole nationale des chartes» (Paris), o «groupe d'anthropologie historique

de I'Occident médiéval de l'École des Hautes Études en sciences socíaless (paris) e

«l'Istituto Storico Italiano per il Medio Evo» (Roma). A transcrição do De dono

timoris foi assegurada por Georgette Lagarde, a quem agradeço vivamente, a partir

do manuscrito latino 15970 da Biblioteca Nacional de Paris onde o Purgatório ocupa

os fólios 156-164. Uma antologia de exempla tirados da compilação de Étienne do

Bourbon foi publicada no século passado por A. LECOY DE LA MARCHE, Anecdotes

historiques, légendes et apologues tirés du recuei! inédit d'Étienne de Bourbon,

dominicain du XIIr siêcle, Paris, 1877. O autor extraiu 14 exempla respeitantes ao

Purgatório que se encontram nas pp. 30-49. Madame Lagarde transcreveu a totalidade

dos 39 exempla sobre o Purgatório. Humbert de Romans, mestre geral dos Pregadores,

compôs no Convento dos dominicanos de Lyon, para onde se retirara entre

1263 e a sua morte em 1277, uma compilação de exempla, o Liber de dono timoris

ou Tractatus de habundancia exemplorum que aguarda ser editado de maneira critica

e ser estudado. Está muito próximo do tratado de Étienne de Bourbon.

57 •

GERVASIO DE TILBURY, ed. LEIBNIZ, Scriptores rerum brunsvicensium, I,

921 ;8 LIEBREC:HT, Des Gervasius von Tilbury Otia imperia/ia, Hanover, 1856, p. 12.

9 Texto latino em A. LECOY DE LA MARCHE, Anecdotes historiques ..., p. 32.

5 Arturo GRAF, «Artú nell'Etna» in Leggende, miti e superstizioni dei Medio Evo,

Turim, 1925.

60 A. LECOY DE LA MARCHE, Anecdotes historiques .... pp. 30-31.

61 Ibid., p. 43.

62 Agradeço a Colette Ribaucourt que transcreveu um manuscrito inédito do Alph~~etum

narrationum por ter tido a gentileza de me comunicar os «exempla do Purgatono».

Sobre o Alphabetum narrationum ver J. Le GOFF; «Le vocabulaire des exempla

d'aprês YAtphabetum narrationum» in La lexicographie du latin médiéval (aetas do

colóquio de Paris, 1978), Paris, 1981.

. Se se quiser ter uma ideia aproximada do lugar do Purgatórionos exempla medievais

pode consultar-se o Index exemplorum de F. C. Tubach que examinou as principais

compilações de exempla dos séculos XIII e XIV. Assinala trinta temas de exempla

do Purgatório. No fascículo da Tipologia das fontes da Idade Média ocidental sobre o

exemplum podem encontrar-se indicações quanto aos méritos e defeitos desse instrumento

de trabalho: F. C. TUBACH, Index exemplorum. A Handbook of Medieval

Religious Tales.Pi' Communications, nO204, Helsínquia, 1969.

63 Nicole BERIOU, «La prédication au béguinage de Paris pendant l'annêe liturgique

1272-1273», extraído de Recherches augustiniennes, volume XIII, 1978, pp. \05-

-·229.

392

~)'\Ibid., p. 124.

65 Ibid., p. 124.

56 Ibid., p. 129.

67 lbid .. p. 138.

68 Ibid., p. 143.

69 Ibid., p. 154.

'10 Ibid., p. 160.

71 Ibid., p. lB5, n. 253.

/2 Ibid., p. 221.

73 E. KLEINSCHMIDT, «Die Colmarer Dominikaner Geschichtsschreibung im

11. und 14. Jahrhundert» in Deutsches Archiv [ür Erforschung des Mittelalters, 28,

lIeft, 2, 1872, pp. 484-486.

74 Ver o belo livro de André VAUCHEZ, La Sainteté en Occident aux demiers

siêcles du Moyen Âge (1198-1431). Recherches sur les menta/ités religieuses médiévalcs,

Roma, 198\.

75 Sobre as lendas latinas, a excelente obra de Guy PHILIPPART, Les /égendiers

iatinset autres manuscrits hagiographiques, Tipologia das fontes da Idade Média ocidental,

Turnbout, 1977. Em 1980 Jean-Pierre Perrot defendeu na Universidade de

l'aris-11l uma tese interessante sobre um conjunto de lendas do século XIII em francês.

Prosseguem os estudos sobre lendas em inglês e alemão.

76 A edição do texto latino da Légende dorée p<;>rTh. Graese, Dresde-Leipzig, 1846,

loi feita apenas a partir de um único manuscrito. A tradução medíocre para francês de

Roze, Paris, 1900 (reed. em 1967) deve preferir-se a de Téodor de Wyzewa, Paris, 1902,

embora mais difícil de encontrar.

77 Legendo aurea, ed. Graese, pp. 213-216.

78 lbid., pp, 728-739.

79 «Purgantur in quodam loco juxta infernum posito qui purgatotium dicitur», ibid.,

[J.730.

80 Ibid., p. 736.

81 Ibid., p. 739.

82 Sobre Lutgarda ver S. ROISIN. «Sainte Lutgarde d'Aywiêres dans son ordre

et son temps» in Co//ectanea Ordenis Cisterciensium reformatorum, VIII, 1946,

pp. 161-172. L. REYPENS, «Sint Lutgarts mysticke opgang» in Ons geest Erf., XX,

!946.

83 Vila, 11, 4 ACla Sanctorum, 16 de Junho, Junho, IV, ed. Paris-Roma, 1867.

84 Vila, lI, 9, ibid., p. 198.

85 Vita, m, 5, ibid., p. 205.

86 Vila, Hl, 8, ibid., p. 206.

87 Cf. J. CHIFFOLEAU, La comptabilité de l'Au-delà, les hommes, ia mort et Ia

région comtadine à Ia fin du Moyen Âge, Rome, 1981, e M. Bastard-Fournie, «Le

Purgatoire dans Ia région toulousaine au XIV" et au début.do x.ye siêcle», in Annales

du Midi, 1980, 5-34, designadamente pp. 14-17 (e n. 65).

88 J.-P. REDOUTEY, «Le testament de Renaud de Bourgogne, Comte de Montbêliard»,

in Société d'émulation de Montbéliard, vol. LXXV, fase. 192, 1979, pp. 27-57.

Ver a notícia breve de P. C. TIMBAL, «Les legs pieux au Moyen Age» in La Mort au

Moyen Âge, colóquio da Sociedade de historiadores medievalistas, Estrasburgo, 1975,

Estrasburgo 1977, pp. 23-26.

89 J.-L. LEMAITRE, Répertoire des documents nécrologiquesfranpais. sob a orientação

de P. Marot, Recueil des historiens de la France, 2 vol., Paris, 1980, pp. 23-24.

393



90 0t t '.

exto ongmal foi publicado G F AGN

l'his~fjre de l'":dr:strie en France, t. I, P~~:, 1898. IEZ, Documents pour servt« ~

_ Aproveitei os exemplos dados por TOBLER-LO .

Wõrterbuch VII 1969 col 209 . MMATZCH, AltjrfUlzosLfC/w

YEN Le 'tif ti '.' 6-2097, s.v. purgatotre e as referências de J -Ch "A

Genebra ~;6~u repenttr ~ Ia littérature française médiévale (des origine~ à Il.W)

tóri ' s.v, purgatoire, mas apenas os textos onde se menciona explicitarncnl •

~a~~:f.a ono, o que, por exemplo, não é o caso do «conto piedoso» Le chevalier ,,:

x - O TRIUNFO

rormco. A «DIVINA COMÉDIA»

. 92 PHILIPPE DE NOV ARE, IV âges d'omes ed M de FréviU P .

«c~lfait lijones po de penitance ou siêcle; si estue; qu;i/ /~ [ace grfUlte~t laons,1888, p.l]

toire,» J' ligue en purll"

93 L'R

94 E I omans ~ B~udouin de Sebourc, XVI, 843, in Tobler-Lommatzch VII 2097

n purgatOlre c est Ia somme ' ,.

Menez en fu por les meffaix '

9S Qu'en sa vie out ouvrez et fait (ibid.)

Et sages home amesurer

Se doit si ke puisse durer

S'aumosne tant qu'iJ iert en víe

Si qu'a Ia mort li fache aie

De li mener en purgatoire

Pour lui poser net en Ia gloire ...

LeD' de •.

96 ~ penitence, 2.885 (citado por Tobler-Lommatzch VII 2097)

Arseruo FRUGONI II Gi bil di " '"

Storico Italiano per i/ Medi~e:o e A U

h ~~ M,Borufa.clO VIII»>in Bollettino del/'Islilulll

Incontri nel Medio e», Bolonha 1';7~Vlpo 7;~~~o7rU11/o, 1950, pp. 1-121, retomado em

97·PL, 72,222.

"p..

: Bul/arium Anni Sancti, ed. H. Schmídt, Roma, 1949, p. 35.

100A. FRUGONI, Incontri nel Medioevo, p. 106.

197~'oP~' ~70~~~~8,E;:~C~

~~~~~~t~~8~ella societâ piemontese dei trecento, Turim,

Inquisuio UI Rlxendinfanaticam in I Von DOLLING . _

geschichte des Mittelalters, Munique 1890' t II 706-7 ER, Beitrãg« zur Sekten.

102 J DUVERNOY ."" pp. 11.

1978, I, 354. ' Le registre d'Inquisition de Jacques Fournier, Paris-Haia.

103 Ibid., p. 160.

104 nu., p. 163.

105 Ibid., p. 167.

106 BONVESIN DALLA RIV ALe'

Consultei a edição de Leandro B ' opere .vo/gan, ed. G. Contini, I, Roma, 1941.

Riva Pisa 1902 De IAI?ENE,.// libro deI/e Tre Scritture di Bonvesin dalla

, , . vo aos meus amigos Girolamo Arn ldi R I

cimento dos textos de Bonvesin daUa Riva e de Giaco:U eda a~u Manselli o conhe-

107 GIACOMINO DA VERONA, IA Gerusalemme no erona:..

ed. E. Barana, Verona, 1921. Utilizei a edição de R Brcele~/~:;O ~abl.lo~~ infemale,

Duecento, I, Nápoles, 1960, pp. 627-652. . oggIru-. ontini ID Poeti dei

108 JACOPO PASSA VANTI Lo S. '.

pp. 387-391. ' 'pecchio di vera penitenza, ed. M. Lenardon,

Pouco depois de terem passado cem anos sobre o seu nascimento, o

Purgatório beneficia de uma oportunidade extraordinária: o génio poético

de Dante Alighieri, nascido em Florença em 1265, confere-lhe definitivamente

um lugar de eleição na memória dos homens. Entre o seu exílio

em Florença em 1302 e a sua morte em Ravena em 1321, Dante compôs a

nivina Comédia cujos dois primeiros cantos, ou seja, o Inferno e o

Purgatório já estavam terminados em 1319, como prova uma carta do

erudito bolonhês Giovanni dei Virgilio.

Não é apenas para mostrar a obra do acaso na história do Purgatório

que termino este estudo com a Divina Comédia. E também não é apenas

rara, no fim deste livro, deixar o Purgatório nas alturas onde Dante o

colocou. É igualmente, é sobretudo, porque Dante, através de uma obra

de excepção, reuniu numa sinfonia a maior parte dos temas esparsos cujo

rasto segui nesta obra. li Purgatorio é uma conclusão sublime para a lenta

génese do Purgatório. É também, de entre estas imagens possíveis e por

vezes concorrentes do Purgatório que a Igreja, ao afirmar o essencial do

dogma, deixara à escolha da sensibilidade e da imaginação dos cristãos, a

mais nobre representação do Purgatório nascida do espírito humano.

Na selva dos comentários dos estudiosos de Dante, entre os quais

seria ridículo pretender incluir-me, segui o simples caminho de uma leitura

desapaixonada do poema em que o meu guia era a lembrança dos

numerosos textos que haviam precedido a Divina Comédia na busca do

Purgatório '. Traçarei, em primeiro lugar, esse percurso.

o sistema dantesco do Purgatório

Dante já disse muito a esse respeito no último verso do Inferno.

O poeta e o seu guia, Virgílio, saíram para «tornar a ver as estrelas».

O Purgatório não é subterrâneo. Está ao nível da terra sob o céu estrela-

394

395



do. Um velho sábio da Antiguidade, Catão da Útica recebe-os porque é O

guarda do Purgatório. Este é uma montanha cuja parte inferior é uma

antecâmara, um lugar de espera onde estão na expectativa os mortos

que ainda não são dignos de entrar no Purgatório propriamente dito.

A montanha ergue-se no hemisfério sul, ocupado, segundo Ptolomcu

que segue Dante, por um oceano deserto impenetrável para os homens

vivos. Eleva-se nos antípodas de Jerusalém (Ill, 3, IV, 68 e ss.). O Purgatório

propriamente dito é abordado pelos dois peregrinos no canto nono,

quando Virgilio anuncia ao seu companheiro:

Chegaste agora ao Purgatório

Vê lá em baixo a falésia (balzo) que o cerca

Olha a entrada no sítio em que ela parece interrompida

(v. 49-51).

O Purgatório é formado por sete círculos ou cornijas sobrepostas

(cerchi, cerchie, cinghi, cornici, giri, gironi), cuja circunferência vai diminuindo

à medida que se sobe. Ali as almas purgam os sete pecados capitais:

por sua ordem, o orgulho, a inveja, a cólera, a preguiça, a avareza, a

gula e a luxúria. No cume da montanha Virgílio e Dante entram no paraíso

terrestre onde se passam os seis últimos cantos do Purgatório

(XXVIII a XXXIIn. No limiar do paraíso terrestre Virgílio abandona

a sua tarefa e diz àquele que conduziu até então:

Não esperes que eu te diga mais nem que te faça sinal

Livre, recto e são é o teu arbítrio

E seria um erro não lhe obedecer:

Por isso faço-te soberano e dou-te a coroa e a mitra

(XXVII, 139-142).

.0 poeta desaparece deixando em lágrimas Dante a quem logo aparece

Beatriz que será a sua guia na última fase da peregrinação, no terceiro

reino, o Paraíso.

Ninguém melhor do que Dante exprimiu a ligação entre o sistema da

Criação cá em baixo no mundo e no além. Do Inferno emerge-se ao nível

do mundo intermédio e temporário, o da terra, de onde se eleva para o

céu a montanha do Purgatório coroada pelo Paraíso terrestre que já não

se situa num canto perdido do universo mas ao seu nível ideológico, o da

pureza, entre o auge da purificação no Purgatório e o início da glorificação

no Céu. Aqui parecem relativamente sacrificados os limbos, sobre os

quais no século XIII os teólogos profissionais se tinham complacentemente

entendido, sem que a isso tenha correspondido, parece, uma implanta-

396

ção profunda desses lugares marginais na crença e nas práticas.

O verdadeiro sistema do além adoptado pela massa dos fiéis não foi o

sistema dos cinco lugares mas o dos três lugares. No entanto, os limbos

também estão presentes na Divina Comédia. Os dois limbros: o dos antigos

sábios e dos patriarcas, o das crianças do mundo cristão. Sente-se

Dante dilacerado entre a sua admiração, o seu reconhecimento, o seu

afecto pelos grandes espíritos pagãos - a escolha de Virgilio para guia é

plena de sentido -, a sua piedade e a sua ternura pelas crianc.inhas mort~s

de tenra idade, por um lado, e, por outro lado, a sua estreita ortodoxia

cristã. Ninguém poderá ser salvo no céu sem ter recebido o baptismo.

Mas os duplos habitantes dos limbos não cessam de perseguir Dante

ao longo de toda a sua peregrinação. Para os sábios e os justos de antes

de Cristo há dois destinos diferentes. Os que viveram sob a antiga lei

foram salvos pelo Cristo que desceu àquela parte do Inferno que constituía

o limbo dos patriarcas,

e fê-Ias bem-aventurados

(Inferno, IV, 61):

e que Ele fechou definitivamente. Quanto aos pagãos, têm de ficar a esse

nível de trevas, mas Deus concedeu-lhes no ponto mais alto dos infernos,

ao nível do primeiro círculo, um castelo nobre (nobile castello) onde

vivem «num prado de fresca verdura», limitado por um lado por «um

lugar aberto, luminoso e elevado» (Inferno, IV, 106 e ss.). Os sábios antigos,

cuja evocação e reminiscências não cessam de acompanhar Dante no

decurso da sua peregrinação, estão também explicitamente presentes no

Purgatório: são eles Aristóteles e Platão e tantos outros de que recorda «o

desejo sem fruto» do verdadeiro Deus (III, 40-45); é Juvenal que Virgílio

evoca descendo para «o limbo do inferno» (XXII, 14); é Estácio, perguntando

ansiosamente a seu mestre Virgílio se os grandes escritores romanos

estão condenados e Virgílio respondendo-lhe que estão com ele «no

primeiro recinto da cega prisão», onde falam frequentemente da montanha,

do monte do Purgatório, onde residem as suas amas, as Musas

(XXII, 97 e ss.). Foi aliás um deles que Deus pôs como guarda da montanha

do Purgatório: Catão de Útica. Alguns admiram-se por verem essa

função confiada a um pagão que, ainda por cima, se suicidara. Mas Dante

tinha a maior admiração por aquele que, pelo preço da própria vida,

fora o campeão da liberdade (Purgatório, I, 70-75). No Banquete Virgílio

faz dele o símbolo do cidadão, do herói da vida cívica que julga ter nascido

«não para si próprio mas para a pátria e para o mundo inteirov'.

Quanto às crianças mortas antes do baptismo e apenas marcadas pelo

pecado original, estão com os sábios pagãos naquele mesmo castelo do

397



primeiro círculo do Inferno, o que é revelado por Virgílio ao trovador

Sordel que encontra no antepurgatório:

Existe lá em baixo um lugar ensombrado não por tormentos

Mas apenas por trevas, onde os lamentos

Não soam como gritos e não são mais do que suspiros

É lá que eu moro com os pequenos inocentes

Que os dentes da morte morderam antes

De terem sido lavados do pecado humano

(VII, 28-33).

Ainda no Paraíso, Dante evocará as criancinhas retidas no limbo do

Inferno:

Mas depois que veio o tempo da graça

Sem o perfeito baptismo do Cristo

Essa inocênciafica retida lá em baixo

(XXXII, 82-84).

Se Dante soube dar ao Purgatório todas as suas dimensões foi porque

compreendeu o seu papel de intermediário activo e o mostrou graças à

sua encarnação espacial e à figuração da lógica espiritual em que se insere.

Dante soube estabelecer a ligação entre a sua cosmogonia e a sua

teologia. Alguns comentadores afirmaram que ele introduzira - quase

como verbo-de-encher - na Divina Comédia os conhecimentos adquiridos

na frequentação, segundo as suas próprias palavras, das «escolas

religiosas e das discussões dos filósofos» a que se entregara de corpo e

alma após a morte de Beatriz em 1290. Quem não vê que a sua cosmogonia,

a sua filosofia e a sua teologia são a própria matéria - a matéria e o

espírito - do seu poema?

O Purgatório é bem «esse segundo reino» entre o Inferno e o Paraíso.

Mas Dante tem desse além intermédio um conceito dinâmico e espiritual.

O Purgatório não é um lugar intermédio neutro, é orientado. Vai da terra

onde os futuros eleitos morrem, ao céu onde fica a sua morada eterna. No

decurso do seu itinerário eles purgam-se, tomam-se cada vez mais puros,

aproximam-se sempre mais do topo, das alturas a que se destinam. De

entre todas as imagens geográficas que o imaginário do além oferecia a

Dante desde há tantos séculos, ele escolhe a única que exprime a verdadeira

lógica do Purgatório, aquela onde se sobe, a montanha. Para Dante

que realiza, na invocação dos fins últimos, a síntese entre o mais novo (o

Purgatório) e o mais tradicional (o temor do Inferno e o desejo do Céu),

não existe cristalização dos sentimentos à volta da morte. Contenta-se

398

com evocá-Ia de maneira significativa no segundo canto do Purgatório

quando, na nau do anjo barqueiro, «as almas cantam todas juntas em

uníssono o salmo CXIII In exitu Israel de Aegypto que se cantava na

Idade Média enquanto se transportavam os mortos de sua casa para a

Igreja e depois para o cemitério (lI, 46-48). O essencial está na ascensão

dessa montanha constantemente referida (eele sobe» ao longo de todo

canto)" e a que se chama mesmo «o monte sagrado» (U sacro monte,

XIX, 38), o monte santo (U santo monte, XXVIII, 12). A esta montanha,

em dois daqueles versos de que tem o segredo para evocar várias

sensações ao mesmo tempo, Dante define-a como um puy, breve designação

de vulcão, e como que erguida em direcção ao céu onde deve conduzir:

e eu dirigi o meu olhar para o pico

que do sítio mais alto se ergue para o céu

(e diedi il viso mio incontro al poggio

che'nverso il ciel piú alto si dislaga)

(111, 14-15).

Montanha muito alta, muito escarpada, muito penosa de escalar. Virgílio

arrasta literalmente Dante e trepam de gatas:

subíamos pela fenda aberta na rocha

e de todos os lados as paredes esmagavam-nos

e debaixo de nós o solo reclamava pés e mãos

quando estávamos na aresta superior

da alta falésia, num lugar descoberto

«meu mestre, disse eu, que caminho vamos tomar?»

ele para mim: «que nenhum dos teus passos desça:

avança apenas atrás de mim para o alto da montanha»

o cume era tão alto que desafiava a vista

(IV,4O).

(IV,31-38).

Este «segundo reino» que é todo um mundo, por sua vez está dividido

em sete regiões a que Dante também chama reinos: são os «sete reinos»

pelos quais Virgílio pede ao porteiro Catão que os deixe passar, a ele e a

Dante:

Deixa-nos ir pelos sete reinos

(1,82).

399



De um destes reinos para o seguinte, de uma cornija para a que 1M

está por cima, os viajantes sobem escadas, degraus escarpados (scale

scaglioni, scallo, gradi, etc.). Ei-los, por exemplo, quando sobem da quarta

para a quinta cornija:

entre as duas paredes da dura rocha

A montanba da purgação

(XIX,48).

Mas esta montanha é a da purgação e esse é bem o acto essencial que

lá se produz. Este tema é posto logo de início por Dante:

E eu cantarei este segundo reino

onde a alma humana se purga

e se torna digna de subir ao céu

(I, 4-6).

Virgílio, dirigindo-se a Catão, recorda que mostrar essa purgação a

Dante é o objectivo daquela parte da sua viagem:

e agora quero mostrar-lhe esses espíritos

que se purgam sob a tua guarda

(I, 65-66).

~o meio da purgação colectiva, Dante atenta nas purgações individuais.

E, por exemplo, o caso do poeta Guido Guinizelli na sétima cornija,

a dos libidinosos:

Sou Guinizelli e já estou a purgar-me

(XXVI,92).

A purgação na montanha faz-se de três maneiras: por uma punição

material que mortifica as paixões más e' incita à virtude. Pela meditação

sobre o pecado a purgar e sobre a virtude oposta: de certo modo, existe

no Purgatório um tratado das virtudes e dos vícios. Meditação facilitada

pelo .exemplo de mortos ilustres ou conhecidos encontrados nas cornijas.

AqUI Dante desenvolve a utilização tradicional dos mortos do Purgatório

para fins políticos (e que poeta foi mais político do que ele?) numa lição

400

espiritual mais elevada. Enfim, a purgação faz-se pela oração que purifica

a alma, fortifica-a na graça de Deus e exprime a sua esperança".

O princípio que explica a distribuição das almas pelas cornijas do

Purgatório é o amor. Virgílio explica a Dante o seu mecanismo quando

vão a meio da montanha, entre a terceira cornija, a dos coléricos, e a

quarta, a dos preguiçosos.

Dante interroga o seu guia durante uma paragem que não deve interromper

a lição que vai recebendo progressivamente:

Meu doce irmão, diz-me, que ofensa

se expia neste círculo onde estamos?

Se os nossos passos pararem, que não parem os teus ensinamentos

(XVII, 82-84).

O fundo comum a todos os pecados é a ausência de amor de Deus,

quer dizer do bem. O amor desviado para o mal, o amor tíbio de mais, o

amor transformado em ódio, eis o movimento profundo do pecado; sobre

a montanha do Purgatório restaura-se o verdadeiro amor, a escalada do

Purgatório é uma subida para o bem, o retomar da navegação em direcção

a Deus, atrasada pelo pecado. Dante reúne aqui as metáforas da

montanha e do mar naquele lugar onde o monte surge do oceano. Com

efeito, Virgilio responde:

o enfraquecido amor do bem

restaura-se para o seu dever,

aqui regressa e retoma a sua batida o remo indevidamente retardado

A lei do progresso

(XVII, 85-87)5.

Toda a lógica deste purgatório montanhoso está no progresso que se

consegue ao subir: a cada passo a alma progride, torna-se mais pura. É

uma ascensão em sentido duplo, sentido fisico e sentido espiritual. O sinal

deste progresso é o aligeiramente da pena, como se a escalada se tornasse

mais fácil, a montanha menos escarpada, para a alma cada vez menos

carregada de pecados.

Logo no antepurgatório Virgilio anunciou-o a Dante:

E ele para mim: «Esta montanha é tal

que sempre lá em baixo no princípio ela é difícil

mas quanto mais o homem se eleva, menos ela faz sofrer»

401

(IV,88-90).



E de novo as imagens da escalada e da navegação misturadas:

Assim, quando ela se tornar tão suave

Que te seja fácil subi-Ia

Como é fácil descer de barco afavor da corrente,

então estarás no fim deste caminho

(IV, 91-94).

A partir da primeira comija já há melhoria; os corredores verticais são

substituídos por escadas:

... Vem, aqui estão os degraus

daqui em diante sobe-se mais facilmente

(XII, 92-93).

No alto desta primeira escada Dante evoca a lei de progressão que é

também uma lei de progresso:

Estávamos no cimo da escada

lá onde pela segunda vez se interrompe

a montanha que apaga o mal enquanto a subimos

(XIII, 1-3).

Na comija seguinte um anjo faz notar aos alpinistas a continuação das

melhorias, num clima mais descontraído:

Diz-nos ele com voz alegre: subi por aqui

Por uma escada bem menos íngreme do que as outras

(XV, 35-36).

À chegada à quinta comija onde os mortos choram estendidos com a

face contra o chão, pedem-lhe auxilio, invocando o princípio do progresso

da ascensão:

Ó eleitos de Deus, cujos sofrimentos

São suavizados pela justiça e pela esperança

Guiai-nos até aos degraus que sobem mais alto

(XIX, 76-78).

Esta nova interrupção sintética lembra alguns dados essenciais do

Purgatório: as almas que lá moram estão prometidas ao céu, são almas

402

de eleitos e lá sofrem; mas a justiça de Deus que é perfeita e se confunde

com a misericórdia e a esperança e que reina nesses lugares atenua os

sofrimentos que vão diminuindo à medida que se sobe.

Na sexta cornija, Dante diz ao seu amigo Forese Donati que a montanha

onde se encontra e para onde Virgílio o levou é o lugar que levanta e

dignifica:

De lá os seus incitamentos levaram-me para o alto

subindo e contornando a montanha

que dignifica aqueles que o mundo tornou defeituosos

o Purgatório e os pecados

(XXIII, 124-126).

Este Purgatório é bem aquele onde os pecados são expiados, mas

Dante parece ter esquecido, pelo menos em parte, os ensinamentos dos

teólogos. Não são os pecados veniais os que lá se expiam, pecados de que

Dante não fala a não ser talvez quando alude a eles ao evocar o amor

excessivo pela família, um desses pecados «leves» já citados por Agostinho.

Mas no entanto, no essencial, purgam-se nas sete comijas os sete

pecados capitais tal como no Inferno. Dante, sempre consciente da lógica

profunda do Purgatório, vê nele um inferno temporário que lembra os

tormentos infernais merecidos pelos mesmos pecados mas também eles

cometidos de maneira menos grave, seja porque foram parcialmente apagados

pelo arrependimento e a penitência, seja porque foram menos inveterados

do que os dos condenados, seja porque somente em parte

mancharam uma vida animada pelo amor de Deus em tudo o resto.

Um anjo marca simbolicamente Dante por esses pecados à entrada do

Purgatório, traçando com a ponta da espada sete vezes a letra P (peccato,

pecado) sobre a sua testa.

«Arranja maneira de lavar

quando estiveres lá dentro, esses ferimentos»,

diz ele

(IX, 112-114).

Com efeito, à saída de cada cornija um anjo apagará uma das chagas,

um dos pecados marcados sobre a fronte ,de Dante.

No décimo-sétimo canto, depois de Virgílio ter explicado a Dante a

lista das infracções ao amor, esclarece-o também, à luz desse princípio,

sobre o sistema dos sete pecados capitais.

403



-------~-~"', .."=~~~

As três primeiras formas da transformação do amor do bem em amor

do mal são as três espécies de ódio ao próximo, ou antes o amor do mal

do próximo ('I mal che s'ama e dei prossímo). São a vontade de o humilhar,

a impossibilidade de suportar a sua superioridade, o desejo de se

vingar de qualquer ofensa. Os três primeiros pecados capitais são pois:

o orgulho, a inveja e a cólera (XVII, 112-123).

Há, por outro lado, três formas de um outro amor: «que se dirige para

o ~m mas segundo uma corrupção da ordem» (XVII, 125 e ss.). Virgílio

deixa a Dante o cuidado de descobrir, na sequência da sua ascensão as

três formas desse amor corrupto. Serão elas a avareza, a gula e a luxúria.

No centro do sistema inscreve-se o relaxamento do amor, o amor

tíbio, o amor «lento» (lento amore). É o pecado que se expia a meia

altura da montanha: essa indolência, esse aborrecimento da vida nascido

no meio monástico, a que se chama em latim accedía (de onde o italiano

accídia) de que se purgam os «tristes» (tristi} da quarta cornija.

Verifica-se que esta lista dos sete pecados capitais é também uma lista

hierárquica, pois elevando-se de cornija em cornija as almas progridem.

Também aqui Dante se mostra tradicionalista e inovador simultaneamente.

T,radicionalista porque põe à cabe~a dos pecados o orgulho, quando

no seculo XIII a avareza o suplantara . Inovador porque considera mais

graves os pecados do espírito cometidos contra o próximo, o orgulho a

inveja, a cólera, do que os pecados da carne cometidos em grande parte

contra o próprio, a avareza, a gula, a luxúria. Para este último vício,

Dante faz beneficiar do Purgatório, tal como condenara ao Inferno, os

libidinosos, tanto homossexuais como heterossexuais (canto :XXVI).

No mecanismo do pecado que conduz ao Purgatório, Dante parece ter

sido especialmente sensível ao carácter tardio do arrependimento. Volta a

isso por várias vezes. É, no antepurgatório, Belacqua convencido de

que lhe é inútil ir até à porta do Purgatório que continuará a estar-lhe

fechada,

«Porque, diz ele, adiei até ao fim os salutares suspiros»

(IV, 132).

É a multidão daqueles que receiam a morte violenta e, por isso,

só se arrependeram no último momento:

«Morremos todos outrora de morte violenta

e fomos pecadores até à hora última»

(V, 52-53).

Na primeira cornija recordam-lhes que um morto que tenha esperado

a última hora para se arrepender não pode ser admitido no Purgatório

404

,

I

senão com ajuda (XI, 127-129). Daí a surpresa de Dante por encontrar no

Purgatório, menos de cinco anos depois de ter morrido, Forese Donati,

cujo pouco zelo no arrependimento o fazia julgá-lo no antepurgatório

lá em baixo

num lugar onde o tempo é restaurado pelo tempo

O antepurgatório

(XXIII, 83-84).

A originalidade de Dante está, com efeito, no facto de imaginar que

muitos pecadores, antes de penetrarem no espaço onde se desenrola o

processo de purgação, fazem um estágio num lugar de espera, o antepurgatório,

no sopé da montanha. Pode supor-se que, estando cada vez mais

o Purgatório prometido aos que se contentavam com um acto de contrição

in extremis (já em Cesário de Heisterbach se adivinhava isso), Dante

julgou necessário, por muito inclinado que estivesse a acreditar largamente

na justiça de Deus, instituir essa provação suplementar, a espera junto

do Purgatório.

É uma multidão inquieta, ignorante do caminho para o Purgatório,

que pergunta a Virgílio e a Dante:

Se o sabeis,

Mostrai-nos

o caminho que leva à montanha

A Dante, que no antepurgatório

(lI, 59-60)

Mas tu, como te atrasaram tantas horas?

este contenta-se com responder:

pergunta ao seu amigo Caselia:

Nenhum mal me fizeram,

mas o anjo que leva consigo quem lhe agrade e quando lhe agrada,

mais de uma vez me recusou a passagem

pois a sua vontade é o reflexo de uma vontade justa

(11, 94-97).

É ele que recorda como sendo realidade a velha lenda segundo a qual

as almas dos mortos não condenados mas que têm de se purgar, se reúnem

em Ostia, junto da foz do Tibre:

405



Foi assim que, quando eu contemplava o mar,

lá onde a água do Tibre se torna salgada,

fui apanhado por ele com benevolência

e ele estendeu as asas em direcpão àquela foz

porque é lá que sempre se reúnem

as almas que não têm de descer ao Aqueronte

(11, 100-105).

o orgulhoso provençano Galvani ficou a dever apenas a uma acção

piedosa que foi para ele uma humilhação ter escapado à espera no antepurgatório.

Para pagar o resgate de um amigo seu, mendigou na praça

principal da cidade:

Essa acpão tirou-lhe a pena do exílio

(XI, 142).

Guido Guinizelli, esse, já pode purgar-se

«Porque, diz ele a Dante, arrependi-me antes dos meus últimos dias»

(XXVI,93).

Foi na época em que Dante fez a sua viagem pelo além que aconteceu

uma circunstância que remove os obstáculos à porta do Purgatório e

empurra para a montanha a multidão de almas que esperam. São as indulgências

decididas pelo Papa Bonifácio VIII por ocasião do jubileu de

1300. Casella di-lo a Virgílio e a Dante ao falar do barqueiro Catão:

Para falar verdade, há três meses que ele

recebe em paz quem quer entrar.

(11,98-99).

Que melhor testemunho se poderia encontrar da perturbação provocada

pela inovação de Bonifácio VIII nas práticas relacionadas com o

Purgatório?

Não só não entra quem quer e como quer, como não deve pensar-se

que o Purgatório dantesco é já um Paraíso. As suas cornijas ressoam de

lamentos e gemidos. Ao aproximar-se dele, Dante, em sonhos, fica aterrorizado.

Estremece e toma-se lívido,

como um homem a quem o medo faz gelar

406

(IX,42).

I

I I

.t

Virgilio tem de o acalmar.

A montanha é bem um lugar de castigos. Eis, por exemplo, na segunda

cornija, a dos invejosos, o chicote, se bem que as cordas sejam entrançadas

de amor,

Este círculo castiga

O pecado da inveja, e é por isso que as cordas

do chicote são entranpadas de amor

(XIII, 37-39).

Estas sombras dos invejosos sofrem penas ainda piores,

pois um fio de ferro atravessa as pálpebras de todas

e os pescoços, como se faz aos gaviões selvagens

se não estão quietos

(XIII, 70-72).

Entre os pecados cometidos na terra e a intensidade e duração destes

castigos, especialmente o tempo de espera no antepurgatório, existe, para

lá do nível da montanha onde se purga a culpa, essa proporcionalidade

em que reconheci uma das características do sistema do Purgatório.

O filho legítimo de Frederico 11, Manfredo, que morreu excomungado,

declara no antepurgatório:

É verdade que aquele que morre em conflito

com a Santa Igreja, mesmo que no fim se arrependa,

tem de ficar no exílio fora desta vida

trinta vezes o tempo que ficou

na sua teimosia

nn, 136-140).

E Belacqua:

Primeiro é preciso que o céu gire à minha volta durante o mesmo tempo

em que o fez durante a minha vida, enquanto eu espero cá fora

porque retardei até ao fim os salutares suspiros

(IV, 130-132).

Examinando em imaginação essa proporcionalidade, Estácio, o grande

admirador de Virgílio, garante que teria de boa vontade passado mais

um ano suplementar no Purgatório para ter podido viver na terra ao

mesmo tempo que Virgílio (XXI, 100-102).

407



Mas Dante retoma a afirmação vinda de Agostinho, segundo a qúal as

penas do Purgatório são superiores à pior das penas terrenas. Fá-lo no

seu jeito imaginativo, utilizando o relevo montanhoso que deu ao Purgatório:

o fogo

Chegámos entretanto ao sopé da montanha.

Aiencontrámos rochas tão escarpadas

Que a agilidade das pernas era em vão

Entre Lerici e Turbia; o mais ermo,

o mais duro montão de pedregulhos é uma escada

fácil e espaçosa se o compararmos com aquelas rochas

(III, 46-51).

Dante faz frequentemente alusão àquilo que, antes dele, se identificou

mais ou menos com a pena do Purgatório, o fogo.

A No pesadelo que o atormenta ao aproximar-se da montanha, Dante

ve em sonhos um fogo:

Aí tive a impressão de que ardíamos

e o incêndio imaginário tornou-se tão pungente

que foi preciso o meu sono interromper-se

Dante julgou-se no Inferno:

(IX, 31-33).

Escuridão de inferno, escuridão de uma noite privada

de qualquer estrela; um céu estéril,

ensombrado de nuvens tanto quanto é possível,

não pôs diante da minha vista um viu tão espesso

como este fumo que nos cobriu

(XVI, 1-5).

Na sétima e última cornija o fogo queima os libidinosos (XXV, 137):

Aqui o flanco da montanha dardeja chamas para cima

e do fundo da ravina sopra para o alto um vento

que os empurra para trás e os afasta da borda:

de maneira que tinham de caminhar pelo lado descoberto

um a um; e eu temia ofogo por este lado,

e pelo outro temia cair no abismo

408

(XXV, 112-117).

I

I

1

Este fogo é tão forte que impede Dante de se lançar nos braços do seu

mestre Guido Guinizelli

No entanto, por causa desse fogo 1UÜJ me aproximei mais

enquanto o trovador Arnaut Daniel

se perde no fogo que o purifica

(XXVI, 102).

(XXVI, 102),

Enfim, no momento de deixar o Purgatório pelo Paraíso terrestre, é

preciso passar através da parede de fogo. O anjo da última cornija anuncia-o:

Não se vai mais longe se primeiro não se sofrer

a mordedura deste fogo; ó almas santas entrai nele...

Dante olha o fogo com apreensão:

Inclinei-me por cima das minhas mãos postas

olhando o fogo, e imaginei com nitidez

corpos humanos que outrora vira arder

Virgílio tranquiliza-o:

(XXVII, 10-11).

(XXVII, 16-18).

Podes estar certo de que, se no seio desta chama

tivesses de ficar mil anos e mesmo mais,

ela não poderia queimar-te um único cabelo

(XXVII, 25-27).

A provação é no entanto penosa, se bem que Virgílio tenha entrado no

fogo à frente dele:

Quando estive nessefogo, era no vidro em fusão

que me teria lançado para ~e refrescar,

de tal maneira o incêndio era imenso

(XXVII, 49-51).

409



É preciso que Virgílio lhe fale de Beatriz sem parar e que uma voz

chame por eles cantando da outra borda para que Dante suporte a provação.

Fogo-que lembra o Inferno, mas que no entanto é diferente dele. No

momento em que vai deixar Dante, Virgílio recorda-lhe:

o fogo temporário e o que é eterno,

Tu viste-os, meu filho

(XXVII, 127-128).

Purgatório e Inferno: o arrependimento

É certo que por diversas vezes o Purgatório lembrou a Dante o Inferno.

Se a montanha com as suas nove moradas, o antepurgatório, as sete

comijas do Purgatório e o Paraíso terrestre anuncia as nove esferas do

Paraíso, no momento de a transpor ela recorda-lhe sobretudo os nove

círculos/do Inferno. No entanto, Dante assinala a diferença fundamental

que existe entre o Inferno e o Purgatório e que ele toma perfeitamente

.nítida, Primeiro, pela estreiteza da porta (IX, 75) que constrasta com a

grande abertura da porta do Inferno e lembra a porta estreita da salvação

segundo o Evangelho: «Entrai pela porta estreita. Largo e espaçoso é,

com efeito, o caminho que leva à perdição, e há muitos que o tomam;

mas estreita é a porta e apertado o caminho que leva à vida e há poucos

que o encontram» (Mateus, XLVII, 13-14). E ainda: «Lutai para entrar

pela porta estreita, pois muitos, diga-vos eu, procurarão entrar e não

poderão» (Lucas, XIII, 24).

Dante é ainda mais explícito:

Ó como estes caminhos de chegada são diferentes

dos do Inferno, pois aqui é entre cânticos

que se entra, e lá em baixo é entre terríveis lamentos.

Dante, mais e melhor do que qualquer outro, faz do Purgatório o

lugar intermédio do além, mas subtrai o seu Purgatório à «infernização»

a que a Igreja o submete no século XIII. Mais ortodoxamente fiel

à lógica do Purgatório, nesse intervalo desigualmente distante dos dois

extremos, pendendo para o Paraíso, Dante apresenta o Purgatório como

~ lugar da esperança e do início da bem-aventurança, da entrada progressiva

na luz.

É que, de uma certa maneira e para além da maioria dos grandes

escolásticos, Dante é fiel, como o fora quase em excesso Guillaume

410

I

d' Auvergne, à grande tradição dos teólogos do século XII que haviam

firmado o Purgatório na penitência.

É. no antepurgatório, o canto do Miserere, canto de humildade necessário

à expiação e à purificação (V, 22-24).

É, no momento de transpor a porta do Purgatório, o simbolismo perfeito

e subtil dos três degraus que lhe dão acesso.

Vi uma porta e por baixo três degraus

de cor diferente, que lhe davam acesso

e um porteiro que não dizia palavra.

A vanpômos para eles e o primeiro degrau

era de um mármore branco, tão claro e tão polido

que eu me via nele como num espelho, tal como sou.

O segundo era escuro, mais negro do que avermelhado,

feito de um tipo de pedra tosca e calcinada,

rachada ao comprimento e à largura.

Por cima, o terceiro, macipo,

parecia-me de pôrfiro, tão vivo

como o sangue que sai de uma artéria.

Pelos três degraus acima para meu agrado,

me levou o meu guia, dizendo: «Pede

humildemente que ele te abra esta porta.»

(IX,76-108).

«Esta cena», como bem explica o comentário da edição bilingue francesa

do Centenário, «é uma representação da penitência: o anjo representa

o padre, silencioso, pois é o pecador que deve dirigir-se a ele. Os três

degraus de cores diferentes simbolizam os três ~ctos do sacra.mento: a

confissão, a contrição e o cumprimento, actos diferentes em ~l mesmos

mas que constituem entre os três o sacramento, tal como os tres degraus

conduzem a um só limiar 7 .»

O primeiro degrau simboliza a contrição (contritio cordis) que deve

tomar o penitente branco como mármore. O segundo representa a confissão

(confessio oris) que provoca no penitente o vermelho escuro da

vergonha. O terceiro encama a penitê~cia propriamente dita. que é de

um vermelho vivo como o ardor da candade, do amor, que anima agora

o penitente. . .

Neste limiar da purgação o morto penitente, ainda que penetre naquele

411



mundo, onde pecar já não está no nosso poder

(XXVI, 131-132),

deve, como homem que sempre é, dotado de livre arbítrio, manifestar a

sua vontade de purgação. Dante segue Virgílio até ao Purgatório «de boa

vontade» (di buona voglia).

No meio do Purgatório, Estácio lembra a Virgílio e a Dante que a

alma deve querer purificar-se.

Da sua purificacão só o seu querer faz prova

que, como é livre de mudar de morada,

vem surpreender a alma e obtém para ela

o feliz resultado da sua vontade

(XXI, 61-63)8.

E assim, arrependendo-nos e perdoando,

saímos para fora da vida reconciliados com Deus

que inflama os nossos corações do desejo de o ver

(V, 55-57).

No antepurgatório Buonconte de Montefeltro conta que o seu arrependimento

no momento de morrer o colocou entre ~s mãos do .anjo de

Deus para grande despeito do anjo do Infem?, ~o diabo, que Vl~ a s~

presa escapar-lhe por meio de uma pequena lagnma, per una lacrimetta:

O anjo de Deus agarrou-me e o do Inferno

gritava: «ó tu que vens do céu, porque me defraudas?

Levas contigo o que existe nesse de imortal

por uma pequena lágrima que mo rouba»

(V, 104-107).

Assim Dante terá fixado a lição abstracta dos escolásticos que se perguntam

se a pena do Purgatório é «voluntária».

Penitência que envolve também a sua parte de amargura (a acerbitas

dos teólogos e dos pastores).

Assim os avaros e os pródigos da quinta cornija:

o mal da avareza aparece nitidamente neste lugar

na purgapão das almas convertidas

e nenhuma pena naquele monte é mais amarga

(XIX, 115-117).

Ainda no Paraíso terrestre a bela dama Matelda que, cantando e dançando,

recebe Dante ainda acompanhado por Virgílio, canta o salmo

XXXII, um salmo da penitência:

Beati, quorum tecla sant peccata!

(XXVIII, 40).

E lị

~'

"

Quando Dante descobre na cornija dos avaros, envergonhado e tentando

esconder-se, o Papa Adriano V, interpela-o aSSlID:

«... Espírito em que as lágrimas amadurecem

o fruto sem o qual não podemos voltar a Deus ...)

(XIX, 91-92).

Nesta quinta cornija estende-se à beira do abismo a multidão daqueles

que, pelas suas lágrimas, fazem o mal dissolver-se,

Aqueles em quem gota a gota se funde

pelos olhos o mal que ocupa o mundo inteiro

(XX, 7-8).

Ao entrar no Paraíso terrestre, Dante recordará uma última vez que

para experimentar aquela felicidad«;é 'preciso tê-Ia pago primeiro com o

arrependimento que faz correr as lágrimas (XXX, 145).

Neste processo penitenciaI o arrependimento é particularmente importante

e é bom que ele se manifeste por lágrimas.

As vítimas de morte víolenta que estão no antepurgatório, apesar do

pouco tempo que tiveram antes de expirarem puderam, no entanto, não

só arrepender-se mas também perdoar aos seus assassinos e aos seus carrascos.

412

A esperança

Mas Dante insiste, no Purgatório reina a esperança. As almas, dotadas

de um corpo imaterial - é o tema incansavelme~te repe~,do das sombras

que se procura em vão abraçar/ - são almas libertas, ja salvas.

413



A esperança exprime-se muitas vezes pela oração. Todo o Purgatório

está recheado de orações e de cânticos. Dante soube integrar no poema a

liturgia que os escolásticos mantiveram à parte a maioria das vezes. E a

imagem dos mortos do Purgatório em oração será precisamente aquela

que os artistas do fim da Idade Média escolherão para distinguir o Purgatório

do Inferno. Aqui não há esperança alguma, então para que serve

rezar? Lá, pelo contrário, a certeza da salvação deve materializar-se em

orações, ser testemunhada e apressada por elas. Esperança simbolizada

pelo branco e pelo verde, cores da pureza e da esperança.

Logo durante os primeiros passos dos viajantes no antepurgatório

aparece o branco.

Depois por cada lado eu vi aparecer

um não sei quê de branco e por baixo

pouco a pouco outra brancura surgia

(11, 22-24).

Virgilio encoraja Dante e exorta-o a procurar a luz:

e tu conserva bem a tua esperança, meu doce filho

(lH,66).

Quando os peregrinos começam a sua ascensão, são de novo impelidos

pelo desejo, pela esperança e pela luz,

mas aqui o homem deve voar

sobre as asas ágeis e as plumas

do grande desejo, como disse aquele guia

que me dava esperança e me iluminava com a sua luz

Passam as almas do antepurgatório

Ali oravam as mãos postas

Federigo Novel/o e o de Pisa...

(VI, 16-17).

(IV, 27-30).

em oração:

Os anjos que ali velam têm mantos e asas cor de esperança:

E vi sair das alturas e descer às profundezas

dois anjos, com duas espadas reluzentes,

truncadas e privadas das pontas.

414

Verdes, semelhantes às folhas novas recentemente nascidas

eram os seus mantos que, agitados por asas verdes,

esvoaçavam atrás deles ao vento da sua corrida

Logo que ouviu as asas verdes cruzarem o ar

a serpente fugiu ...

(VIII, 106-107).

(VIII, 25-30).

E acontece na primeira cornija o grande episódio da recitação do

Pater pelos orgulhosos, do qual dizem o último versículo, o que apela

à libertação do mal, apenas como pró-forma pois, libertos do pecado,

já não têm daí em diante necessidade dele.

Esta última prece, Senhor bem-amado,

já não se faz por nós, que não temos mais necessidade,

mas por aqueles que ficaram atrás de nós

(XI, 22-24).

As primeiras almas que Dante vê no antepurgatório são já «almas

afortunadas» (11, 74), eleitas ...

Ó vós, bem realizados, Ó espíritos já eleitos

(lH,73),

diz-lhes Virgílio dirigindo-se a elas.

Aos invejosos da segunda cornija, Dante diz também:

Ó vós, almas que tendes a certeza

de ver a luz mais alta

(XIII, 85-86).

A salvação das almas do Purgatório é determinada pela justiça de

Deus que castiga mas que é também misericórdia e graça, e progride

também pelo resto de vontade das próprias almas. Na cornija dos avaros,

Hugo Capeto assinala-o:

Por vezes um de nós fala em voz alta e outro em voz baixa

segundo o ardor que impele a nossa caminJu:ula,

tornando os nossos passos ora mais longos, ora mais curtos

415

(XX, 118-120).



A ajuda dos vivos

O progresso na purgação e na ascensão ao céu depende sobretudo da

ajuda dos vivos. Aqui Dante retoma plenamente a crença nos sufrágios.

Se a maioria dos mortos do Purgatório reclama a ajuda de um parente ou

de um amigo, outros apelam mais à comunhão dos santos.

Manfredo, enquanto espera a entrada no Purgatório, pede ao poeta que

revele o seu estado, quando voltar à terra, à filha e à sua «doce Constança»

que, sabendo-o excomungado, poderá julgá-lo também condenado,

pois aqui, com a ajuda dos de lá de baixo, pode-se avançar muito

Belacqua desespera de entrar em breve no Purgatório,

a menos que venha em meu auxílio uma prece,

surgida de um corapão vivo e em santa grapa

(IV, 133-134).

rm, 145).

Jacopo dei Cassero solicita a ajuda de todos os habitantes de Fano:

Peco-te, se alguma vez vires essa região

que está situada entre a Romanha e a que pertence a Carlos

faz-me o favor das tuas orações

em Fano, e que os que lá estão se prostemem bem

diante dos altares

para que eu possa expiar as minhas graves ofensas

(V,68-72).

Buonconte de Montefeltro queixa-se de ter sido abandonado pela mulher

Giovanna e pelos seus:

nem Giovanna nem os outros se preocupam comigo

e é por isso que eu ando entre aqueles de cabeça baixa

(V,89-9O).

Dante fica como que acabrunhado com as reclamações destas almas

que esperam diante da porta do Purgatório:

Logo que me libertei de todas aquelas sombras

que somente tinham pedido que se rezasse

a fim de que para elas viesse depressa a hora de se tomarem santas

416

(VI, 25-27).

Nino Visconti, também ele, pede a Dante que incite a sua neta Giovanna

a ajudá-lei.

quando estiveres para lá das grandes ondas

diz à minha Giovanna que interceda por mim

lá em cima onde se dá resposta aos corapões inocentes

(VIII, 70-72).

Os orgulhosos que recitaram o Pater pedem ajuda aos vivos pois eles

próprios, tanto quanto está no seu poder (e Dante parece entrar no caminho

da reciprocidade dos méritos), rezam pelos que estão na terra, e

Dante junta-se ao seu apelo:

Se naquele outro lado se reza sempre pelo nosso bem

sobre a terra, que devem então dizer e fazer por essas almas

aqueles cuja vontade tem boas raizes?

Deve-se ajudá-Ias bem a lavar-se das máculas

que levaram daqui de baixo, para que, puras e leves,

possam elevar-se até às esferas estreladas

(XI, 31-36).

No Purgatório há portanto almas que foram esquecidas; há também

as que foram socorridas. Uma natural de Siena, Sapia, que se arrependeu

tarde de mais, foi ajudada pelo seu compatriota Pier Pettigano, um franciscano:

Quis estar em paz com Deus no fim

da minha vida; mas a minha dívida não teria sido

diminuída pela penitência

se não se lembrasse de mim

nas suas santas preces Pier Peuigano,

que por caridade se comoveu a meu favor

(XIII, 124-129).

Por vezes uma alma do Purgatório pede a Dante que solicite a seu

favor não os vivos, mas Deus. Como na comija dos coléricos, Marco o

Lombardo:

Peco-te

que intercedas por mim quando estiveres lá em cima

417

(XVI, 50-51).



í!

I

É também a ajuda de Deus que Estácio invoca para as almas do Purgatório

na quinta cornija:

Que ele possa em breve mandá-Ias para o alto

(XXI,72).

Mas, está claro, os que sofrem no Purgatório solicitam ainda mais

a intercessão da Virgem e dos santos, como os invejosos da segunda cornija:

OUFO gritar «Maria. orai por nôsl»

e gritar: ((Miguel» e «Pedro» e «Todos os Santos»

o tempo do Purgatório

(XIII, 50-51).

A viagem de Dante e Virgílio ao Purgatório dura quatro dias de tempo

pascal, o da ressurreição, da vitória sobre a morte, da promessa de

salvação: um dia, o da Páscoa, no antepurgatório, dois dias, segunda e

terça-feira de Páscoa no monte do Purgatório, o quarto, quarta-feira, no

Paraíso terrestre. Durante toda a viagem, Dante anota cuidadosamente o

movimento do sol e dos astros que os iluminam na sua ascensão circular e

simbolizam a graça de Deus que os acompanha e leva para o céu as almas

do Purgatório.

Mas é todo o canto do Purgatório que está semeado de anotações

temporais. No Inferno as únicas indicações sobre tempo eram as que demarcavam

a viagem de Virgílio e Dante. No Paraíso o tempo será abolido

mesmo para a breve fassagem de Dante. O Purgatório é, pelo contrário,

um reino no tempo! . Dante integra a situação do tempo do Purgatório

no conjunto do tempo da história, o tempo máximo de permanência no

Purgatório é o que se estende da morte ao Julgamento Final. Aqui o

poeta dirige-se ao leitor:

Vais ouvir

como Deus quer que a dívida seja paga:

não te detenhas na forma do martírio:

pensa no que se seguirá. pensa que na pior das hipóteses

ele não pode persistir para lá da grande setenpa

418

(X, 107-111).

Nesta temporalidade sinfónica o tempo é feito da ligação do tempo da

viagem de Dante com o tempo vivido das almas do Purgatório entre as

quais ele passa, é feito sobretudo dos diferentes tempos misturados dessas

almas postas à prova entre a terra e o céu, entre a vida terrena e a eternidade.

Tempo acelerado e tempo retardado, tempo em vaivém entre a

memória dos vivos e a inquietação dos mortos, tempo ainda ligado à

história e já absorvido pela escatologia.

No Purgatório até a duração é regulada pelo progresso das almas.

Esta articulação do tempo dos homens é marcada na eternidade divina

por prodígios, que sublinham os únicos acontecimentos que podem produzir-se

no Purgatório.

Quando Virgílio e Dante estão na quinta cornija, a dos avaros, eis que

a montanha treme:

E nós esforçávamo-nos por avançar pela estrada

tanto quanto era permitido ao nosso poder

quando senti, como qualquer coisa que desaba,

tremer a montanha. e veio-me um frio glacial

semelhante ao frio que ataca aquele que caminha para a morte

(XX, 127-129).

E todavia, coisa estranha, eis que se elevam cânticos de alegria:

Depois. de todos os lados elevou-se um grito

tal que o mestre (Virgílio) virou-se para mim

dizendo: «Não tenhas medo enquanto eu te guiar»

«Gloria in excelsis Deo» cantavam

todos...

(XX, 133-137).

No canto seguinte Estácio vai explicar aos dois peregrinos o significado

daquele tremor de terra:

(estas alturas) tremem quando uma alma se sente purificada

tão perfeitamente que se ergue e se põe em movimento

para subir ao céu e esse grito (que ouvistes]

acompanha-a

(XXI, 58-60).

Esta perturbação dos acontecimentos no Purgatório é pois o voo das

almas tornadas dignas de subir ao céu e capazes de para lá voarem. Este

tremor e este clamor é a agitação produzida pela passagem de uma alma

do tempo para a eternidade.

419



o purgatório dantesco é também, é ainda sem dúvida o tempo do

sofrimento e da provação. As almas do Purgatório estão privadas da

verdadeira alegria, a da visão beatífica, pois, como diz tristemente o Papa

Adriano V,

Assim como o nosso olhar não se dirige

para o alto. fIXO que está nas coisas terrenas,

assim aqui a justiça fâ-lo mergulhar na terra

A caminho da luz

(XIX, 118-120).

Mas o Purgatório é todo aspirado para o alto. Beatriz não virá substituir

Virgílio para guiar Dante até ao Paraíso senão no Paraíso terrestre,

senão no canto trigésimo primeiro, mas logo no antepurgatório Virgílio

anuncia-a a Dante:

Sei que me compreenderás;falo de Beatriz

que tu verás lá em cima. no alto

deste monte. risonha efeliz

(VI, 46-48).

Os escolásticos interrogavam-se sobre se são os demónios ou os anjos

que se ocupam das almas do Purgatório. Dante responde sem hesitação

que são os anjos bons, os anjos do céu, os anjos de Deus. Há o da entrada

que marca sobre a fronte os sete Pês dos pecados capitais, e também, em

cada cornija, o que lá introduz as almas e os peregrinos, e que à saída,

apara o P correspondente ao círculo ultrapassado.

Sobretudo e apesar dos episódios de escuridão, de fumo, de noitesmas

são noites sob as estrelas -, a montanha do Purgatório é progressivamente

envolvida pela claridade. A ascensão é uma caminhada para a

luz. Entre as trevas do Inferno e a luz do Paraíso, o Purgatório é um lugar

que mergulha num claro-escuro que não cessa de se iluminar 1I.

Logo de início, na praia da ilha à beira-mar, o sol ergue-se e restitui as

suas cores à paisagem como ao rosto de Dante.

Estendi para ele asfaces ainda molhadas de lágrimas

e nelas ele fez reaparecer

a sua cor que o Inferno escurecera

420

(I, 127-129).

Esta claridade vem também dos anjos que levam para o Purgatório a

luz celestial derramada nas suas faces:

Eu distinguia bem as suas cabeças louras

mas os meus olhos perdiam-se no reverbero dos seus rostos

(VIU, 34-35).

No momento de entrar na segunda cornija, Virgílio olha o sol:

«ó doce luz. entro confiando em ti

pelo novo caminho...

os teus raios serão sempre os nossos guias»

(XIII, 16-21).

Ao subir da segunda para a terceira cornija, Dante fica mesmo deslumbrado:

senti pesar sobre a minha fronte

um resplendor de luz bem maior do que antes

e fiquei espantado com estas coisas desconhecidas

E Virgilio explica-lhe:

(XV, 10-12).

Não te admires se te deslumbrarem

os servidores do céu...

é um mensageiro que vem convidar o homem a elevar-se mais alto

(XV, 28-30).

O Paraíso terrestre já está finalmente banhado de luz celestial

As trevas fugiam por lodos os lados

(XXVII, 112).

Tem lugar a última purificação. De uma nascente correm dois rios dos

quais um..o Letes, tira ao homem a recordação do seu pecado, e o outro,

o Eunué (que é uma invenção de Dante), restitui-lhe a lembrança de todo

o bem que praticou (XXVIII, 127-132). Última palavra de Dante sobre o

processo de penitência e de purgação em que a memória desempenha um

421



papel tão importante. É a metamorfose definitiva da memória, também

ela lavada do pecado. O mal está esquecido, só subsiste a memória do que

há de imortal no homem, o bem. A memória, também ela, atingiu o limiar

escatológico.

Eis pois Dante em contacto com a verdadeira claridade:

NOTAS

Ó esplendor de viva luz eterna

(Ó isplendor di viva luce ettema)

(XXXI, 139).

O poeta, que terminou a viagem ao Purgatório, bebe a água do Eunué

e, qual alma purgada, chega ao último verso do Purgatório

puro e pronto a subir até às estrelas

(puro e disposto a salire alie stelle).

1 Utilizei a edição bilingue publicada quando do sétimo centenário do nascimento

do poeta, em 1965, pelos Libraires associés, Paris, 1965, com o texto italiano a partir

da última edição da Società Dantesca Italiana, a tradução de L. Espinasse-Mongenet

revista por Louise Cohen e Claude Ambroise e uma publicação de Paul Renucci.

Também me foram úteis a tradução e os comentários originais, ricos e densos de

André Pézard na Biblioteca da Pleiade saídos também em 1965. Um quadro oportuno

da estrutura do Purgatorio encontra-se na Edizione dei Centenario de Tutte le Opere di

Dante, ao cuidado de Fredi Chiapelli, Milão U. Marsia, 1965. O breve artigo «Purgatorio»

do Dante Dictionary é útil pela caracterização do Purgatório dantesco tanto

do ponto de vista topográfico como ideológico. Encontram-se indicações interessantes

sobre a localização e a descrição do Purgatório no antigo estudo de Edoardo COLI, Ii

paradiso terrestre dantesco, Florença, 1897. Entre os comentários, o de G. A. Scartazzini

é retomado e revisto por Giuseppe Vandelli na edição critica da Società Dantesca

Italiana, 2' ed., Milão, 1960. André Pézard distingue o de G. TROCCOLl, Il Purgatorio

dantesco. Utilizei também o de Charles S. SINGLETON, Dante Alighieri, The

Divine Comedy, Purgatorio, 2: Commentary, Princeton, 1973, e as notas da edição de

Natalino Sapegno, Florença, 1956. De um ponto de vista importante na minha óptica,

o da teologia, pode sempre ler-se o estudo clássico do padre MANDONNET, Dante, le

théologien, Paris, 1935 que se combina com Dante et /a philosophie de Étienne GIL-

SON, Paris, 1939.

Sobre os precursores de Dante nas visões e descrições do além, citarei, além de H.

R. PATCH, The Other World According To Descriptions In Medieval Literature, 1950;

A. D'ANCONA, I precursori di Dante, Florença, 1874; M. DODS; Forerunners of

Dante, Edimburgo, 1903; DIELS, «Himmels und Hõllenfahrten von Homer bis Dante»

in Neues Jahrbuch, XLIX, 1922, p. 239 e ss.; A. RUEGG, Die Jenseitvorstellungen

vor Dante, Einsiedeln e Colónia, 1945, e sobretudo Giosuê MUSCA, «Dante e Beda»

in Studi Storiei in onore di Ottorino Bertolini, Il, 1972, pp. 497-524. Devo à amizade de

Girolamo Arnaldi ter podido consultar em excelentes condições os comentários mais

antigos à Divina Commedia publicados por G. Biagi, G. L. Passerini, E. Rostagno, La

Divina Commedia nella figurazione artistica e nel secolare commento, Turim, 1931. Os

comentários mais antigos (os do século XIV, os únicos a que me cingi) são sobretudo

filológicos.

2 «Onde si /egge (o De Senectude de Cícero) di Catone che non a sé, ma a Ia patria e

a tutto 10 mondo nato esser credea» (Convivio, IV, XXVII, 3).

422 423



r

3 I, 108; 11, 60, 122; m. 46; IV, 38, 39; VI, 48; VII, 4, 65; VIII, 57; X, 18; XII, 24,

73; XIV, I;XV, 8; XIX, 117; XX, 114, 128; XXI, 35, 71; XXII, 123; XXV, 105; XXVII,

74; XXVIII, 101; XXX, 74 e ainda no Paraíso XV, 93; XVII, 113, 137.

4 Cf. Dante Dictionary, p. 534.

5 Ed el/i a me: «L'amor dei bene scemo

dei suo dever quiritta si ristora,

qui si ribatte il mal tardato remo.»

Belos versos, difíceis de traduzir ...

6 Cf. L. K. LIlTLE, «Pride goes before Avarice. Social Change and the Vices in

Latin Chrístendom» in American Historical Review, LXXVI, 1971.

7 É a edição com a tradução de L. Espinasse-Mongenet indicada na nota I,p. 449.

A citação encontra-se na página 604.

8 Della mondizia sol voler fa prova

che, tutto libero a mutar convento,

l'alma sorprende, e di voler le giova.

9 ot ombre vane.fuor che nell'aspetto!

Tre volte dietro a lei le mani avvinsi,

tante mi tomai con esse ai petto (11, 79-81).

10 Ver um sugestivo estudo de Luigi BLASUCCI, «La dimensione dei tempo neI

Purgatorio» in rApprodo Letterario, 1967, pp. 40-57. Sobre a tradução em termos

psicológicos destes dados teológicos, inteligentes observações de A. MOMIGLIANO

no seu comentário ao Purgatorio, Florença, 1946, designadamente sobre a «nostalgia

insieme terreno e celeste, che unisce in una medesima malinconia le anime che aspirano

alia Ratria celeste e il pellegrino che ha in cuore Ia lontana patria terreno».

J Ver M. MARTI, «Simbologie luministiche neI Purgatorio» in Realismo dantesco

e altri studi, Milão-Nápoles, 1961.

424

A RAZÃo

DO PURGATÓRIO

A história do Purgatório na sociedade cristã não termina no começo

do século XIV. A sua inserção em profundidade na devoção cristã e depois

católica, os seus momentos mais fervorosos, os mais «gloriosos»,

datam dos séculos XV a XIX. Às formas tradicionais de publicidade

vem acrescentar-se a imagem 1 • O fresco, a miniatura, a gravura e os conjuntos

artísticos das capelas e dos altares especializados dão enfun ao

imaginário do Purgatório a possibilidade de se concretizar. Desprovidas

da força do delírio literário que afligem certas visões do além, a arquitectura,

a escultura e a pintura garantem ao Purgatório a sedução da visão

directa, rematam o triunfo da sua localização, da sua materialidade, do

seu conteúdo''.

Os desenvolvimentos não são menos importantes em matéria de crenças

e de práticas. O Purgatório fizera uma aparição limitada nos testamentos.

Mais ou menos a partir do século XIV, mais ou menos cedo, mais

ou menos intensa segundo as regiões, é uma penetração que por vezes

confina com a invasão''. Surgem instituições para suprir a carência de

testamentos, ou reforçá-los no apelo à generosidade dos fiéis. Nas regiões

meridionais de França, por exemplo, onde subsistem reticências,

se não resistências, ao julgamento particular e ao terceiro lugar, vulgariza-se

«a taça das almas do Purgatório» que se faz circular na igreja no

momento da missa para recolher «o dinheiro dos fiéiS) e que vai alimentar

«a obra do Purgatório» bem estudada por MicheUe Bastard-Foumíer.

São os trocos da comunhão dos santos. Estas representações figuradas,

estas práticas, revelam transformações, um alargamento das crenças ligadas

ao Purgatório. A devoção que se exprime pelos altares e pelos ex-

-votos às almas do Purgatório mostra que daí em diante não só essas

almas adquiriram méritos mas podem também dirigi-los aos vivos, restituir-lhes,

devolver-lhes a sua assistência. Eis assegurada a reversibilidade

dos méritos de que se duvidava nos séculos XII e XIII e que era então

quase sempre negada. O sistema da solidariedade entre os vivos e os mor-

425



tos através do Purgatório tornou-se uma cadeia circular sem fim, uma

corrente de reciprocidade perfeita. O anel fechou-se. Por outro lado, a

criaçã? de uma «taça das almas do Purgatório» prova que os sufrágios,

para Ia da comemoração do 2 de Novembro, se aplicam a todos os mortos

que se supõe estarem no Purgatório, mesmo que o fiel pense que a sua

oferenda servirá sobretudo para encurtar as provações dos «seus» mortos.

A comunhão dos santos manifesta-se em plenitude. A sua aplicação

está generalizada.

No século XIII o Purgatório apenas tinha dado lugar a formas limitadas

de espiritualidade - se exceptuarmos o grande poema dantesco. Santa

Lutgarda era uma ardente auxiliar das almas do Purgatório mas parece

não ter unido explicitamente essa devoção à corrente mais profunda de

espiritualidade de que foi uma das pioneiras, designadamente na piedade

ao Coração do Cristo. Oriunda do meio das beguinas, essa devoção que

se desenvolve com Hadewijch e Mechtilde de Magdeburg, depois com as

monjas beniditinas Mechtilde e Gertrude de Hackeborn, no fim do século

XIII, inspira sobretudo o meio das monjas de Helfta, na Saxónia. Com

Gertrudes, a Grande, falecida em BOiou 1302, o Purgatório entra na

esfera da mística mais elevada e atingirá o topo (ou as profundezas) do

misticismo com Santa Catarina de Génova (1147-1510), autora de um

Tratado do Purgatório.

No campo dogmático e teológico, é também entre meados do século

XV e o começo do século XVII que o Purgatório se entroniza na doutrina

da Igreja católica, ainda contra os gregos no concílio de Florença (1439),

contra os protestantes no concílio de Trento (1562). Trento, questão de

teólogos e de governantes mais do que de pastores, embora inserindo

irrevogavelmente o Purgatório no dogma, mantém à distância, como

no século XIII, o imaginário do terceiro lugar, o qual ocupa também

um lugar modesto nas duas grandes sínteses em que o Purgatório se radica

na teologia da catequese pós-concílio de Trento, a dos jesuítas Bellarmin

e Suarez.

Mas o Purgatório vive ainda mais intensamente nas grandes expressões

~atólicas entre os séculos XV e XIX. Há um Purgatório do gótico

~ameJante e da devotio moderna, um Purgatório da Contra-Reforma, esta

claro, mas sobretudo talvez um Purgatório clássico, um Purgatório

barroco, e finalmente um Purgatório romântico e um Purgatório ao gosto

da congregação de Saint-Sulpice, Os historiadores mais importantes

d~s atitudes perante a morte entre os séculos XVI e XX, Philippe Ariês,

Pierre Chaunu, François Lebrun, Alberto Tenenti e Michel Vovelle abriram

nas suas grandes obras um lugar para o Purgatório, não tão definido

como seria desejável", É verdade que o Purgatório, esse grande desconhecido

da história, é uma peça do além, mesmo que se trate de um além

perecível e não, ao menos aparentemente, de uma componente essencial

426

do conceito de morte que era o horizonte principal da sua busca. No

entanto e como já demonstrei, no século XIII o Purgatório modificou a

atitude dos cristãos perante os últimos momentos da vida. O Purgatório

dramatizou essa última parte da existência terrena, carregando-a de intensidade

misturada de temor e de esperança. O essencial, a escolha do

Inferno ou do Paraíso, visto que o Purgatório era a antecâmara certa do

Paraíso, podia ainda jogar-se no minuto derradeiro. Os últimos instantes

eram também os da última oportunidade. Creio no entanto que falta

expliçar a relação entre o Purgatório e a morte no período que vai do

século XIV ao século XX.

No momento de terminar este livro onde tentei mostrar e explicar a

formação do sistema do além cristão entre os séculos IV e XIV, sistema

ideológico e imaginário, sou tomado de inquietação. O meu propósito foi

sugerir que neste sistema o lugar-chave foi o elemento intermédio, efêmero,

frágil e no entanto essencial, o Purgatório, que ganhou o seu lugar

entre o Paraíso e o Inferno.

Mas será ele a verdade do sistema?

Não poderemos perguntar-nos se o elemento motor, organizador, não

foi esse Paraíso que tão pouco suscitou o interesse dos historiadores e

que, se consulto as minhas notas, não me parece tão insípido e monótono

como se diz? Essa planície banhada por grandes rios, transfigurada

pela luz, rumorosa de cânticos de uma harmonia perfeita, impregnada

de perfumes estranhos, repleta da inefável presença divina que se revela

na quinta essência e na infinita amplidão do empíreo, continua a ser um

mundo por descobrir". Além do Purgatório, esperança e certeza de salvação,

exigência de justiça mais graduada e mais precisa, de preparação

mais atenta à pureza perfeita requerida na última etapa do «regresso»,

o que anima o sistema, não será a promessa do Cristo crucificado ao

bom ladrão: «Hoje tu estarás comigo no Paraíso» (Lucas, XXIII, 43)?

O Purgatório estaria tão inclinado para o Paraíso, a despeito das imagens

infernais, que o motor da crença cristã católica seria esse desejo do céu

que atrairia para ele as almas do Purgatório numa sequência ininterrupta

de regressos a Deus pontuados pelos trovões jubilosos da Divina Comédia.

Nesta perspectiva, eu não teria decifrado suficientemente, por trás do

quase-silêncio dos textos, o problema da visão beatífica cuja privação,

mais do que ser o grau zero do Purgatório, seria a última estância antes

da eternidade. Não seria do lado da «duração extra» como lhe chama

Pierre Chaunu, ou do «suplemento de biografia» como se lhe refere Philippe

Ariês, que se deveria procurar, depois da vida terrena, a chave espaço-tempo

do Purgatório, mas do lado do vazio necessário antes da visão

beatífica, antes da eternidade. Teria João XXII razão? O Purgatório seria

mais uma pré-eternidade do que uma pós-existência?

427



Mas a minha inquietação não vem daqui. No desenrolar de toda esta

história, não teria sido a preocupação principal da Igreja manter o inferno

eterno? O fogo purgatório temporário não teria sido a exaltação do

fogo inextinguível? O segundo reino não terá sido o degrau protector do

reino infernal? O Purgatório não teria sido o preço pago pela Igreja para

conservar a arma absoluta, a condenação eterna? Seria a luz sulfurosa de

um período do catolicismo, o que corresponde ao cristianismo de medo

de Jean Delumeau.

Compreender-se-ia talvez melhor a atitude actual da maioria dos católicos

e da Igreja para com o Purgatório.

Atitude que visa o conjunto do sistema do além, mas mais particularmente

o Purgatório. Para a Igreja trata-se, mais uma vez na sua história,

de realizar um aggiornamento que cada um de nós pode, conforme a sua

crença, considerar uma lenta mas perseverante caminhada para a realização

de um cristianismo «ideal», simultaneamente regresso às fontes e

consecução, ou reduzir a uma simples recuperação da marcha caótica

da história por uma instituição atrasada. Seja como for, o imaginário

do além faz mais uma vez as despesas de uma atitude que, sob o signo

da depuração, rejeita as formas «primitivas» das crenças. Para bem dos

espíritos informados do passado, respeitadores dos outros, ansiosos de

equilíbrio, dizem eles, como Y. M. Congar: «Mais uma vez será necessário

purificar as nossas representações e desembaraçar-nos, se não das

imagens, pois não podemos pensar sem elas e há-as válidas e mesmo

belas, pelo menos de certas imaginações",» Quem não aderiria ao desejo

de afastar a visão de torturas, propriamente infernais ou pretensamente

purgatórias, cuja inspiração em práticas terrenas que estão longe de ter

desaparecido, é por de mais evidente? Do programa traçado pelo grande

teólogo dominicano deve reter-se a vontade de unir duas tendências que a

história opôs excessivamente: adaptar as crenças à evolução das sociedades

e das mentalidades sem mutilar o homem de uma parte fundamental

da sua lembraça e do seu ser: o imaginário. A razão alimenta-se de imagens,

é a história profunda que no-lo revela.

Temo, com efeito, que, nesse desejo de depurar, o Purgatório fique a

perder, pois, como julgo ter demonstrado, o seu aparecimento, o seu

desenvolvimento e a sua difusão estão de tal modo ligados ao imaginário

que o padre Congar teve de encontrar tonalidades quase origenistas para

o salvar nas concepções actuais da hierarquia católica.

Do lado dos fiéis parece-me que o desinteresse pelo Purgatório se

explica de outra maneira e talvez mesmo por razões inversas. Do lado

do clero há a «desinfernização» e a desmaterialização do Purgatório.

Do lado dos fiéis e dos homens sensíveis à evolução das crenças religiosas

há um crescendo de desapego em relação ao tempo intermédio do

além. De novo a nossa época, sobretudo nas sociedades ditas desenvolvi-

428

das, concentra as suas interrogações, as suas esperanças e as suas angústias

em dois pólos. Primeiro cá em baixo no mundo e, se abstrairmos do

número ínfimo de verdadeiros «desinteressados», o olhar dirige-se para o

horizonte da morte, onde os velhos modelos do acto de morrer estalam

por todos os lados. Como morrer? Para os católicos e para os homens de

todas as fés e para os que, pura e simplesmente, devem pensar na sua

morte, a opção parece espartilhar-se entre paraísos e infernos, projecção

dos sonhos cá de baixo e de um temor que encontrou uma nova realidade

imaginária. O apocalipse nuclear hoje: um apocalipse cuja aterradora

experiência se fez cá em baixo 7 •

Porém haverá sempre, espero, um lugar nos sonhos do homem para a

nuance, para a justiça/justeza, para a medida em todos os sentidos do

termo, para a razão (ó Purgatório racional!) e para a esperança. Faço

votos por que não possamos dizer em breve que, na verdade, o Purgatório

teve o seu tempo.

429



NOTAS

APÊNDICE I ,

BIBLIOGRAFIA DO PURGATORIO

I Ver o Apêndice

III.

2 Sobre as diversas formas do «êxito» do Purgatório ver Michelle BASTARD-

-FOURNIÉ, «Le Purgatoire dans Ia région toulousaine au XIve siêcle» in A.1I1ItÚeS

du Midi, 1980, pp. 5-7. No que respeita à iconografia do purgatório, campo vasto

ainda largamente inexplorado, deve mencionar-se o estudo pioneiro de Gaby e Michel

VOVELLE, Vision de Ia mort et de l'au-delâ en Provence d'aprês les autels des âmes •

purgatoire (xJt"-xr siêcles), Paris, 1970. Não consultei a tese inédita, que eu saiba, de

Madame A.-M. VAURILLON-CERVONI, L'iconographie du Purgatoire au Moylm

Âge dans le Sud-Ouest, le centre de Ia France et en Espagne, Toulouse, 1978, que parece

dizer respeito ao fim da Idade Média e ao século XVI.

3 Remeto às observações de M. Bastard-Fourniê, em especial a propósito do belo

trabalho de Jacques ChitToleau a respeito de Avignon e a Comtat Venaissin, p. 17,

n. 65, e mais genericamente p. 7.

4 Ph. ARIÉS, L'Homme devant Ia mort, Paris, 1977, P. CHAUNU, La Mort à

Paris - xvr, xv/r, xVIIr siêcles, Paris, 1978. F. LEBRUN, Les Hommes e/Ia mort

en Anjou, Paris, 1971. M. VOVELLE, Piété baroque et décbrisüantisation en Provence,

Paris, 1973, Id., Mourir autrefois. Altitudes collectives devant Ia mort aux xv/r et

xV/Ir siêcles, Paris, 1974, Id., «Les attitudes devant Ia mort: problêmes de mêthodes,

approches et lectures ditTérentes» in Annales E.s.C., 1976. Num livro que recebi

quando escrevia esta conclusão, Pierre Chaunu caracterizou o Purgatório no século

XV de maneira notável que está de acordo com os resultados da minha pesquisa,

Eglise, culture et société. Essais sur Réforme et contre-Réforme 1517-1620, Paris,

1981, designadamente pp. 378-380 a propósito do concílio de Trento. Nele retoma

uma afirmação do seu livro de 1978 (p. 131) vinda em parte de um meu esboço de

1975: J. Le GOFF,«La naissance du Purgatoire (XII" et XIII" siêcles)» in La Mort au

Moyen Âge(colóquio de Estrasburgo 1975, prefácio de P. CHAUNU), Paris, 1977, p.

710. «A explosão do Purgatório, escreve ele (p. 64), a explosão e a substantivacào da

pena purgatória pode ser datada com extrema precisão. Acontece entre 1170 e 1180,

tanto quanto as nossas séries heterogéneas permitem avaliar. Explode como uma bomba

atómica no fim da instalação de uma massa crítica de transformação,» Viu-se que

sou mais subtil.

S Ver R. R. GRIMM, Paradisus Coelestis, Paradisus Terrestris. Zur Auslegungsgeschichte

des Paradises im Abendland bis um 1200, Munique, 1977.

6 Y. CONGAR, Vaste monde, ma paroisse. Vérité et dimensions du salut, Paris,

1966, capo VII: «Que savons-nous du Purgatoire?», p. 76. Ver também Y. CON-

GAR, «Le Purgatoire» in Le mystére de Ia mort et sa 'célébratíon, Lex orandi, 12,

Paris, 1956, pp. 279-336.

7 Relembro o sentido etimológico de apocalipse: descoberta, revelação.

430

A actual bibliografia do Purgatório é considerável. M.uitas obras d~dicadas

à história do Purgatório são mal informadas e anlII~a~asde espirito

polêmico entre os católicos ~ os pro!estantes e al?o!ogetlco entr~ ~s

católicos. Tem-se muitas vezes a impressao de que a V1~aodo Purgatório

dos eruditos católicos não se renovou desde Bellarmin e Suarez ate a

primeira metade do século xx. O grande artigo de A. MICHEL, «Puratório»

no Dicionário de Teologia Católica de E. VA~AN!, E. M~N-

~ENOT e E. AMANN, t. 13, 193~, col..l ~63-1326, ~U1tOnco, contlOu~

a ser fundamental. O seu espírito e tradICiOnal e antlprotestante. A me

lhor síntese pareceu-me ser a de A. PIOLANTI, «11 ~ogma del purga~rio»

in Euntes docete, 6, 1953, pp. 287-311. O artigo, «Fegfeuer» o

Lexicon jür Theologie und Kirche, IV, 1960, co~. 49-?5 ~ breve. A obra

t E FLEISCHHAK Fegfeuer Die chrtstltchen Vorstellundo

protestan e . ,. d .

gen vom Geschick der Verstorbenen geschichtlich dargestel!t,_1969, ,~tlna~

da a informar os seus correligionários so~re a poslça~ catohca, e

simpática mas não nos chegou directamente, informa defiCientemente e

não está isenta de erros. . LAN

A obra mais sugestiva é a do etnólogo e histonado~ Marcus .-

DAU, Hõlle und Fegfeuer in Volksglaube, D~chtung un! Klr~henlehr~, Heid

lb 1909 É lamentável que as suas informações sejam antlga~ e

p:rc~:~' e sob;etudo que sofra do desprezo do etnólogo pela crono~ogta.

Sobre a exegese medieval de um texto essencial para o desen~olvlme~to

do Purgatório, ver J. GNILKA? '". I Kor. 3, 10 ein Schrij"tzeugms

jür das Fegfeuer? Eine exegetisch-hlstorlsche Untersuchung, Dusseldorf,

195~ antiga história do Purgatório foi renovada pelos traba~os excele~d

J h NTEDIKA Évolution de Ia doctrine du Purgatoire chez saint

tes e osep , . ,. de l' -d I'

Au ustin. Estudos agostiniano~, Paris, 1966 e L Evocatzo~ . au .e a

da:s Ia priére pour les morts. Etudes de patristique et de liturgie latine,

Lovaina, Paris, 1971.

431



T

Em J. GOUBERT e L. CRISTIANI, Les plus beaux textes sur l'au- .• I

-delà, encontra-se uma antologia de textos de valor e nível diferentes, mas

com alguns significativos sobre o Purgatório.

APÊNDICE II

«PURGATORIUM»: HISTÓRIA DUMA PALAVRA

o facto essencial é o aparecimento, na segunda metade do século XII,

ao lado do adjectivo purgatorius, a, um, do substantivo purgatorium.

Curiosamente, este acontecimento linguístico que me parece um sinal

da evolução capital das crenças respeitantes ao além escapou aos historiadores

do Purgatório ou pouco lhes chamou a atenção. Até Joseph

Ntedika se engana ao atribuir a Hildebert de Lavardin ou Hildebert du

Mans (falecido em 1133) o privilégio de ter sido o primeiro a empregar a

palavra purgatorium (Evolution de ia doctrine du Purga to ire chez saint

Augustin, p. 11, n. 17). Encontra-se o mesmo erro no artigo «Fegfeuer»

do Lexicon für Theologie und Kirche, vol. IV, col. 51. A. PIOLANTI

contenta-se com dizer: «Neste século (o XII) aparecem os primeiros esboços

do tratado De purgatorio (o adjectivo transformara-se em substantivo)»

(<<11dogma dei Purgatorio» in Euntes Docete, 6, 1953, p. 300);

E. FLEISCHHAK pretende, sem dar referências (pudera!. ..), que «a palavra

purgatorium foi usada desde a época carolíngia» (Fegfeuer ... 1969,

p.64).

Para poder afirmar como faço que o termo aparece muito provavelmente

entre 1170 e 1180 é necessário corrigir algumas falsas atribuições

de textos ou emendar a edição de certos textos anteriores a 1170 (usado

sobretudo nas expressões ignis purgatorius, poena( e) purgatoria( e), loca

purgatoria, e a forma in (locis) purgatoriis) onde purgatorium como substantivo

só aparece porque a edição foi feita a partir de manuscritos posteriores

a 1170, onde o copista substituiu naturalmente, por exemplo,

ignem purgatorium por purgatorium simplesmente, dado o emprego habitual

do substantivo na sua época.

Pedro Damião (falecido em 1072) no seu sermão LIX para a festa de

S. Nicolau, sem empregar o termo purgatorium, teria distinguido o lugar

purgatório entre as cinco regiões que podem acolher o homem; 1) regia

dissimilitudinis (cá em baixo); 2) paradisus claustralis (o paraíso cá em

baixo, quer dizer o claustro); 3) regia expiationis, o lugar da expiação

432

433



- o purgatório; 4) regia gehennalis, o inferno; 5) paradisus supercoelestis, o

paraíso celestal.

Para distinguir a região da expiação, usa a expressão loca purgatoria

(PL, 144, col. 838). Mas reconheceu-se que este texto não é de Pedro

Damião, mas do falsário notório, Nicolau de Clairvaux (falecido depois

de 1176), que foi secretário de S. Bemardo. Por exemplo, F. DRESS-

LER, Petrus Damiani. Leben und Werk (Anselmiana XXXIV), Roma,

1954. Apêndice 3, pp. 234-235 fornece, na lista dos 19 sermões que muito

provavelmente não devem ser atribuídos a Pedro Damião, o sermão

59, e acrescenta que eles são «provavelmente» de Nicolau de Clairvaux,

«einem gerissenen Fâlscher». Cf. J. RYAN, «Saint Peter Damiani and the

sermons of Nichoias de Clairvaux: a clarification» in Medieval Studies, 9,

1947, 151-161. Aliás, a Patrologie latine da Migne publicou duas vezes o

mesmo sermão (59), uma primeira vez sob o nome de Pedra Damião

(PL, 144, col. 835-839) e uma segunda vez sob o de Nicolau de Clairvaux

(PL, 184, cal. 1055-1060). Nicolau de Clairvaux é talvez também o

autor do sermão 42 «De quinque negotiationibus et quinque regionibus»

atribuído a S. Bemardo, muito próximo do de Pedro Damião mas onde

o sistema dos três lugares (dentro dos cinco) e a palavra purgatório

(purgatorium) surgem com uma nitidez que me parece impossível antes

de 1153, data da morte de S. Bemardo: Tria sunt loca, quae mortuorum

animae pro diversis meritiis sortiuntuer: infernus, purgatorium, caelum (S.

BERNARDO, Opera omnia, ed. J. Leclercq-H. M. Rochais, 6, I, p. 259).

Dom Jean Leclercq e H. M. Rochais tiveram a amabilidade de me reafirmar

por escrito e de viva voz o que haviam escrito em diferentes artigos:

J. LECLERCQ, «Les collections de sermons de Nicolas de

Clairvaux» in Revue bénédictine, 1956; H. M. ROCHAIS, «Enquête

sur les sermons divers et les sentences de saint Bernard» in Analecta

soe, 1962, a saber, que nada permitia decidir pela não-atribuição a S.

Bemardo do sermão 42, se bem que nada permita igualmente atribuir-

-lhe a paternidade com segurança: «Mantivemos o De diversis 42 como de

S. Bemardo se trata de um texto de que existem várias redacções devidas

não ao próprio S. Bemardo, mas a Nicolau de Clairvaux e outros, o que

explicaria a introdução de elementos mais tardios» (J. Leclercq, carta de

5 de Outubro de 1979). Madame Monique-Cêcile Garand, que teve a

gentileza de examinar por mim os manuscritos latinos 2571 da Biblioteca

Nacional de Paris e 169 de Cambrai - talvez os mais antigos -, sugere

prudentemente, sob critérios paleográficos, que o primeiro deve ser do

terceiro quarto do século XII (mas talvez de antes da canonização de

Bemardo em 1174, sendo que a palavra sanctus não figura no título e

terá sido acrescentada no ex-libris) e o segundo da segunda metade do

século. Poderá pois pensar-se numa data próxima de 1170. Estou convencido

de que o primeiro sermão não é de S. Bemardo e data pelo

434

menos de uma vintena de anos depois da sua morte. Cf. igualmente,

sobre Nicolau de Clairvaux, G. CONST ABLE, The /etters of Peter the

Venerable /I, Nicho/as of Montieramey and Peter the Venerable, pp. 316-

-330, Cambridge (Mass.), 1967.

Antes de S. Bemardo a palavra purgatorium teria sido encontrada

num texto de Hildebert de Lavardin, bispo de Mans e arcebispo de Tours

(falecido em 1133), e o excelente Ntedika, como já se viu, aceitou essa

atribuição errada. O sermão 85 Jerusalem quae aedificatur publicado

com os sermões de Hildebert por Beaugendre em 1708 e reproduzido

pela Migne, Patrologie latine, 171, col. 741 (hi, qui in purgatório

po/iuntur) foi atribuído a Pedro, o Devorador, por HAURÉAU, «Notice

sur les sermons attribués à Hildebert de Lavardin» in Notices et extraits

des manuscritu ..., XXXII, 2, 1888, p. 143. Cf. A. WILMART, «Les

sermons d'Hildebert» in Revue Bénédictine, 47, 1935, pp. 12-51. A atribuição

a Pedro, o Devorador, foi confirmada por M. M. LEBRETON,

«Recherches sur les manuscrits contenant des sermons de Pierre le Mangeur»

in Bulletin d'Informations de L'I.R.H.T., 12 (953), pp. 25-44. M.

François Dolbeau teve a amabilidade de me fazer notar que nos manuscritos

mais antigos destes sermões, que por sua vez confirma como sendo

de Pedra, o Devorador, encontra-se in purgatorio (ms 312 (303) e 247

(238) de Angers, do fim do século XII) mas que o fragmento de frase

inteira onde se encontra in purgatorio falta num manuscrito mais antigo,

o 227 (218) da Biblioteca Municipal de Valenciennes, de meados do

século XII.

Como me parece que o substantivo purgatorium se encontra realmente

numa carta enviada em 1176 pelo beneditíno inglês Nicolas de Saint-Albans

ao cluniacense Pierre de Celle (em 1180-1182, segundo informação

amavelmente fomecida por A.-M. Bautier); Porro facto levi per purgatorium

transitu intravit in gaudium Domini sui (PL, 202, col. 624), e que

Pedra, o Devorador, falecido em 1179, se é que empregou no sermão

Jerusalem quae aedificatur o substantivo purgatorium não o emprega nunca

no De sacramentis composto entre 1165 e 1170, julgo que os empregos

mais antigos de purgatorium como substantivo seriam de cerca de 1170 no

cisterciense Nicolau de Clairvaux, no beneditíno Nicolau de Saint-Albans

e no mestre secular da Escola de Notre-Dame de Paris, Pedro, o Devorador.

Resta um problema que não pude esclarecer de maneira decisiva. Encontra-se

na edição de um tratado anónimo, De vera et falsa poenitentia,

publicada pela Migne e atribuída pela Idade Média a Santo Agostinho,

mas que data, na verdade, do fim do século XI ou mais provavelmente da

primeira metade do século XII, o termo purgatorium usado como substantivo:

ita quod nec purgatorium sentiunt qui in fine baptizantur (PL, 40,

1127). O facto de nalgumas linhas mais adiante o texto falar de ignis

435



i 1,;1

.,

"

purgatíonís nada prova mas deixa isolada a palavra purgatorium sobre a

qual estou convencido de que só ficou nos manuscritos a partir do fim do

século XII, quando o texto primitivo devia ser ignem purgatorium. Não

restam dúvidas, na verdade, de que o De vera et falsa poenitentia data de

antes do meio do século XII, pois foi citado não só por Pedro Lombardo

falecido em 1160 (PL, 192, 883) mas também pelo Decreto de Graciano,

escrito cerca de 1140 (PL, 187, 1559, 1561, 1637). Infelizmente, apesar dos

meus esforços, ajudado por M. François Dolbeau, M. Agostino Paravicini

Bagliani e Mme Marie-Claire Gasnault, não pude consultar o manuscrito

do De vera et falsa poenitentia anterior ao fim do século XII, e a

minha convicção continua a ser uma hipótese. Só posso desejar uma edição

científica deste texto fundamental para a história da penitência, tema

essencial da teologia e da prática religiosa no século XII. Cf. A. TEE-

TAERT, La Confession aux laiques dans l'Église latine depuis le VIII"

jusqu'au XIV siêcle, Paris, 1926, pp. 50-56, e C. FANTINI, «Il tratatto

ps. agostiniano De vera et falsa poenitentia» in Ricercche di storia religiosa,

1954, pp. 200-209.

Sobre a maneira como a expressão ignis purgatorius se transformou a

partir do fim do século XII em purgatorium, quando o substantivo do

texto mais recente e o adjectivo do texto primitivo estavam no mesmo

caso gramatical, eis um exemplo significativo.

Alexandre de Hales na sua Glosa das Máximas de Pedro Lombardo

(entre 1223 e 1229), cita o De potestate legandi et solvendi de Richard de

Saint- Victor, falecido em 1173, da seguinte maneira: «per incendium purgatorii

scoria peccati excoquitur» (Glossa in IV libros Sententiarum Petri

Lombardi, liv. IV, dest. XX, ed. Quaracchi, 1. IV, p. 354). Ora o texto

original de Richard de Saint- Victor é: «per incendium purgatorii ignis

scoria peccatí excoquitur» (PL, 196, 1177).

No fim do século XII e no começo do século XIII purgatoríum e ignis

purgatoríus coexistem quase como sinónimos e por vezes nos mesmos

autores. Pierre de Celle, a quem Nicolas de Saint-Albans escreve cerca

de'Tl Sü falando de purgatoríum (a propósito de S. Bernardo), emprega

no seu tratado De disciplina claustrali, feito em 1179, apenas a expressão

ignis purgatorius (PL, 202, col. 1133). Como os manuscritos mais antigos

de várias obras do século XII não foram conservados, será dificil detectar

com segurança os empregos mais antigos de purgatorium.

Madame Anne-Marie Bautier teve a gentileza de me assinalar uma das

mais antigas definições do Purgatório que se encontra numa vida de S.

Victor, mártir de Mauzon, recentemente editada por F. DOLBEAU

(Revue historique ardennaise, 1. IX, p. 61): Purgatorium ergo, locum conflationis,

ergastulum purgationis, iste sanctus repperít in gremio ecclesiae in

qua conflari injuriis et passionibus meruit, quibus ad remunerationem victoriae

laureatus pervenit» Verifica-se que certos santos (e foi o que se pen-

sou de S. Bernardo) não vão directamente para o Paraíso e passam pelo

Purgatório.

Se se consultar os dicionários e glossários do latim medieval, vê-se que

o exemplo mais antigo de purgatorium citado por DU CANGE é a carta

de Inocêncio IV a Eudes de Châteauroux de 1254. J. F. NIERMEYER

(Mediae Latinitatis Lexícon Minus, Leyde, 1976) diz: «subst. neutro purgatorium,

o Purgatório, the Purgatory, S. XIII». A. BLAISE no seu Dictionnaire

latin-francais des auteurs du Moyen Âge (Corpus christianorum

Continuatio Maedievalis, Turnhout, 1975, pp. 754-755) diz que a palavra

aparece no século XII enquanto anteriormente empregava-se uma perífrase

como purgatorius ignis e cita o pseudo-Agostinho (o De vera et falsa

poenitentia), a carta de Inocêncio 111do começo do século XIII e o sermão

de Hildebert de Lavardin que deve ser restituído a Pedro, o Devorador,

(falecido em 1179). Indica também o sentido de «local penitencial situado

numa ilha e chamado "purgatório de S. Patrick" ou Patrick».

J.-H. BAXTER e Ch. JOHNSON (Medieval Latin Word - List from

British and Irish Sources, Oxford, 1934) dão simplesmente «purgatorium,

purgatório (ecl.), c. 1200». R. E. LATHAM no seu Revised Medieval

Latin Word-List from Britísh and Irish Sourees (Londres, 1965) distingue

«purgatorium (teol.) e. 1150 e purgatorium Sancti Patricii (in Lough

Derg) c. 1188». Julgo que a data de cerca de 1150 vem da data de 1153

atribuída, na tradição do Purgatorium Sancti Patricii, à aventura do cavaleiro

Owein. A data (e provavelmente a história) é fantasista.

Para as línguas vernáculas em francês a menção mais antiga de

purgatório aparece provavelmente sob a forma espurgatoire no Espurgatoire

Saint-Patriz de Marie de France, cerca de 1190 (ou no princípio do

século XIII, entre 1208 e 1215, na hipótese de F. W. LOCKE, in

Speeeulum, 1965, pp. 641-646).

O meu amigo Josef Macek faz-me notar que em checo a palavra que

designa o Purgatório Oõistec só aparece nos anos 1350-1380 em traduções

de obras latinas. Mas este Purgatório parece mal diferenciado do limbo

ou mesmo do inferno. Para Jean Hus, o Purgatório é «o terceiro inferno»

(tretie pehlo in Vyhlad viery, Ms M, Biblioteca da Universidade de Brno,

MK, fol. 16 a). Ainda no começo do século XV os taboritas recusam-se a

acreditar no Purgatório e fazem um jogo de palavras entre oõistec e

osistec (mentira) ou chamam ao Purgatório purgáé, quer dizer purgativo.

Sobre a recusa do Purgatório entre os Valdenses e os Hussitas, ver

Romolo CEGNA, «Le De reliquiis et de veneratione sanctorum: De

purgatorío de Nicola della Rosa Nera detto da Dresda (di Cerruc), maitre

à Prague de 1412 a 1415», Mediaevalia Philosophiea Polonorum,

t. XXIII, Wroclaw-Varsóvia-Cracóvia-Gdansk, 1977.

'I

~

436

437

I

jj



APÊNDICE III

AS PRIMEIRAS IMAGENS

(Ver as quatro páginas de ilustracães extra-texto)

No artigo FEGFEUER (Purgatório) do excelente Lexicon der christlichen

lkonographie, ed. Kirschbaum, vol. 11, 1970, col. 17, W. BRAUN-

FELS escreve: «No mundo figurado do paleocristianismo como no da

Idade Média, até ao fim do século XIV não se encontra qualquer representação

do Purgatório».

Embora me pareça certo que a iconografia do Purgatório só se expandiu

no fim do século XIV, encontram-se todavia representações do Purgatório

durante o século precedente e uma investigação iconográfica

atenta revelaria sem dúvida uma colheita mais rica de imagens do Purgatório

anteriores ao fim do século XIV.

Apresento aqui três dessas representações:

1) A mais antiga, para a qual o Padre Gy chamou a minha atenção, é

uma miniatura que se encontra no folheto 49 do Breviário de Paris, chamado

Breviário de Filipe, o Belo (Paris, Biblioteca Nacional, manuscrito

latino 1023). Este manuscrito, que data do período 1253-1296 e que, segundo

critérios formais, deve ser situado perto de 1296, é muito provavelmente

o breviário cuja ilustração foi encomendada por Filipe, o Belo,

a um célebre pintor parisiense, mestre Honoré, em 1296, como testemunha

o inventário do tesouro do Louvre desse ano.

A miniatura de pequenas dimensões (3,5 em x 4 em) do folheto 49

representa provavelmente um julgamento de almas por Deus. O Cristo

em majestade e dois serafins que o acompanham ocupam cerca de dois

terços da altura da miniatura. Na parte inferior vêem-se quatro almas do

Purgatório, duas ainda imersas no fogo e duas sendo tiradas do fogo por

dois anjos que romperam o tecto de nuvens. A figura compreende quatro

lugares em camadas: um céu dourado, uma zona de nuvens, uma zona

sub-lunar quadriculada e o fogo (Cf. V. LEROQUAIS, Les Bréviaires

manuscrits des bibliothéques publiques de France, t. lI, Paris, 1934,

nO 487, pp. 465-485).

439

I

.~



2) Uma miniatura que oferece ao mesmo tempo diferenças e semelhanças

com a imagem anterior encontra-se no Breviário parisiense chamado

Breviário de Carlos V que foi talvez executado por uma mulher da

família real francesa, entre 1347 e 1380, data em que se encontra na Biblioteca

de Carlos V (paris, Biblioteca Nacional, manuscrito latino 1052,

folheto 556 verso, cf. LEROQUAIS, t. IH, pp. 49-56). A miniatura, também

de pequenas dimensões, está datada «da comemoração dos mortos»,

quer dizer de 2 de Novembro, enquanto a anterior ilustra o Salmo CXIV,

Salmo Dilexi, onde o salmista agradece a Javé tê-lo libertado das malhas

do shéol. O Cristo não figura nesta miniatura, ao contrário da anterior.

Dois grandes anjos levam para o céu duas almas que já só têm os pés no

fogo. Onze cabeças de almas representando uma multidão destas almas

do Purgatório e as diferentes condições sociais (lá se reconhecem o papa,

o bispo, etc.) estão mergulhadas no fogo. Há três lugares em camadas: um

céu azul muito delgado (cerca de um décimo da altura), uma zona intermédia

quadriculada ocupando mais de metade da altura, um mundo infernal

feito de rochas silicosas com um grande buraco cheio de fogô.

Devo o conhecimento e a reprodução desta miniatura à amabilidade de

M. François Avril.

3) A terceira representação do Purgatório encontra-se num fresco da

catedral velha de Salamanca que representa todo o sistema do, além no

começo do século XIV segundo a concepção dos quatro lugares. A esquerda

(para quem olha) o Céu e à direita o Inferno. No centro receptáculos

com almas representando à esquerda o Purgatório, à direita os limbos.

No receptáculo superior do Purgatório um anjo vem buscar uma alma

para a conduzir ao céu. Uma inscrição data esta pintura de 1300 da

era espanhola, o que daria 1262, mas M. François Avril pensa que, por

razões de estilo, este fresco não pode ser anterior à primeira metade do

século XIV. Devo a reprodução desta pintura à amabilidade do professor

Luis Cortes. Cf. José GUDIOL RICART, Ars Hispanica, voI. 9, Pintura

Gótica, Madrid, 1955, p. 47.

APÊNDICE IV

TRABALHOS RECENTES

Já depois de terminar este livro (Janeiro de 1981) tive conhecimento de

diversos estudos mais ou menos ligados ao Purgatório.

Paolo SANTARCANGELI em NEKYIA, La discesa dei poeti

agli Inferni, Milão, 1980, evoca o Purgatório de S, Patrick e a Irlanda

(p. 72) a propósito da geografia simbólica dos Infernos situados nas

ilhas.

Três estudos importantes foram dedicados às visões e às viagens do

além.

O primeiro, de Michel AUBRUN, «Caractêre et portée religieuse et

sociale des Visiones en Occident du VI e au XI e siêcle», apareceu nos Cahiers

de civilisation médiévales, Abril-Junho 1980, pp. 109-130. O autor

analisa com argúcia a atmosfera religiosa e psicológica destas visões. Destaca

com perspicácia a atitude da hierarquia eclesiástica que oscila entre a

reserva e a recuperação que se inscrevem no quadro da desconfiança da

Alta Idade Média em relação aos sonhos. Não põe o «problema» do

Purgatório porque o seu estudo fica-se pelo começo do século XII, mas

nota justamente a presença, na visão de Drythelm de Bede, de uma espécie

de «Purgatório-penitência a nordeste» e de «Purgatório-espera a sudeste».

Esta dicotomia do Purgatório corresponde aos dois «além» da

tradição céltica, o quase-infernal e o quase-paradisíaco, e anuncia o

Purgatorio de Dante com a sua antecâmara.

O grande medievalista soviético Aaron J. GURJEWITSCH (cuja obra

sobre Les Catégories de Ia culture médiévale, 1972, traduzida para alemão

com o título Das Weltbild des mittelalter/ichen Menschen, Dresde, 1978,

aparecerá brevemente em tradução francesa nesta Bibliothéque des

Histoires da Gallimard) enviou ao colóquio organizado em Paris em Março

de 1981 pelo Centro Nacional de Investigação Científica sobre o

Temps chrétien (séculos IV a XIII), colóquio em que não pôde participar,

um texto importante que será publicado nos Annales E.S.e. sobre

O Indivíduo e a Imaginapão do Além (L'individu et l'imagination de l'au-

440 441



de/à). Gurjewitsch censura a Pierre Chaunu e principalmente a Philippe

Ariês terem baseado as suas ideias sobre o Purgatório em fontes que só o

aceitam tardiamente (testamentos e sobretudo iconografia) enquanto outras,

essenciais, fazem datar de mais cedo o seu nascimento e difusão.

Estou de acordo com ele por considerar que essas outras fontes - as

visões do além e os exempla que largamente utilizei neste livro - são

indispensáveis e dão outra imagem da história do Purgatório. Ambos

concluímos que o período crucial é o fim do século XII e o princípio do

século XIII. Mas creio que Gurjewitsch, por sua vez, esqueceu de mais a

teologia, a liturgia e as práticas religiosas. Penso como ele que o Purgatório

e o conjunto do sistema do além revelados por essas fontes mostram

um processo de individualização da morte e do além que insiste cada vez

mais no julgamento individual logo após a morte. Mas o conjunto das

fontes e em especial as que falam dos sufrágios fazem notar que, como

demonstrei, esta promoção da salvação individual se combina com a acção

das comunidades a que pertence o indivíduo, quer se trate de comunidades

terrestres de parentesco carnal ou artificial, quer da comunidade

sobrenatural da comunhão dos santos.

Em Abril de 1981 Claude CAROZZI apresentou na XXIX e Settimana

di Storia du Centro Italiano di Studi sull'Alto Medioevo de Spoleto dedicada

ao tema Popoli e paesi nella cultura altomedievale uma comunicação

notável- que aparecerá no volume das relações e debates da semana

- intitulada: A Geografia do Além e o seu Significado Durante a Alta Idade

Média. E um bosquejo da tese que prepara sobre a literatura das visões

entre os séculos VI e XIII. O Purgatório estava no centro da sua exposição.

Estou de acordo com ele quanto a sublinhar-se a importância da

geografia no desenvolvimento das crenças do além e a distinguir-se como

etapas principais: os Diálogos de Gregório, o Grande, a visão de

Drythelm de Bede, a politização do além na época caroIíngia, e evolução

decisiva no sentido da precisão dos grandes textos do século XII e do

começo do século XIII. Mas divergimos num ponto que considero essencial.

Claude Carozzi fala do Purgatório a partir do século VIII, quando

não do século VI. E «realista» onde eu sou «nominalista» e acredito no

significado capital das mudanças de vocabulário; e é assim levado a ver

no fim do século XII o nascimento do Inferno - um além de castigos

eternos bem diferenciado - e não o do Purgatório. A título de piada

provocadora esta hipótese é sugestiva, mas não creio que esteja de acordo

com a realidade histórica. Claude Carozzi estudou com muita erudição

e inteligência um género literário. Um fenómeno histórico como o

nascimento do Purgatório deve ser explicado por um conjunto de fontes

analisadas no seu contexto histórico global. Mas o meu resumo simplifica

muito as teses de Claude Carozzi. Será preciso esperar pela conclusão e

publicação da sua tese de cuja riqueza e interesse estou certo.

Estes estudos recentes levam-me a recordar e a afirmar que não estudei

todas as visões do além que conservámos, para o período que vai do

século VIII ao século XIII. Penso que apenas pus de parte textos que nada

acrescentavam à minha demonstração, num sentido ou noutro, apesar do

interesse que pudessem ter. A palavra purgatorium não existe, está claro,

em nenhum desses textos. Vou dizer rapidamente, a título de exemplos,

porque não aproveitei algumas dessas visões analisadas pelos três autores

que acabo de citar, como o tinham sido - ainda que de maneira menos

pormenorizada e numa perspectiva menos histórica - pelos autores antigos

como Becker, Dods, MacCullogh, Seymour, Patch e mais recentemente

Dinzelbacher.

Alta Idade Média: século VII. A Visão de Bonellus (PL, t. 87, col.

433-5).

O abade espanhol Valera, falecido no último decénio do século VII,

conta a viagem ao além do monge Bonellus. Durante um êxtase é levado

por um anjo para um habitáculo, uma célula esplendorosa de pedras

preciosas que será a sua futura morada se continuar com as suas práticas

ascéticas. Num segundo êxtase um demónio leva-o para o poço do Inferno.

Nenhuma palavra alude a qualquer purgação mas alguns detalhes

evocam o sistema do futuro Purgatório. O lugar está situado nas profundezas

da terra, e contém um fogo aterrador no qual os demónios lançam

as almas. Bonellús vê lá um diabo horrível acorrentado mas que não deve

ser Satanás, pois só lhe mostram «o poço inferior do abismo onde as

penas são mais intensas e mais cruéis». Um pobre que ele socorrera na

terra procura vir em seu auxílio - alusão ao sistema dos sufrágios. Resiste

graças ao sinal da cruz, como acontecerá no Purgatório de S. Patrick.

Finalmente é conduzido à terra. Não existe, repito, qualquer ideia de

purgação, apenas uma hierarquia dos lugares de punição. O sistema é

dualista: lugar muito agradável sem nome, abismo (abyssus) chamado

inferno (infemus).

Alta Idade Média: século VII. A Visão de Barontus (678/9)) (Monumenta

Germaniae Historica, Scriptores Rerum Merovingicarum, V,

pp. 337-394). Barontus, monge do mosteiro de Longoretus (Saint-

-Cyran, perto de Bruges), levado por dois demônios durante uma doença

grave, é socorrido pelo santo arcanjo Rafael e por S. Pedro, que lhe mostram

as quatro portas do Paraíso e lhe deixam entrever o Inferno onde

multidões de homens e mulheres reunidos por categorias de pecados são

torturadas pelos diabos. Nada de purgação.

Alta Idade Média: século VIII. A Visão do monge de Wenlock (cerca

de 717) (Monumenta Germaniae Historica Epistolae, t. 3, pp. 252-257).

442 443



Numa carta à abadessa Eadburge de Tenet, S. Bonifácio conta a visão

dum monge da abadia inglesa de Wenlock, no Shropshire. Alguns anjos

fizeram-no dar a volta ao globo terrestre e depois mostram-lhe os poços

de fogo dos infernos e ele ouve os lamentos e os gritos das almas que

estão no inferno inferior. Mostram-lhe também um lugar muito agradável

que lhe designam como o paraíso de Deus. O único ponto interessante

para a pré-história do Purgatório é a existência de um ponto sobranceiro

a um rio de fogo de onde caem almas que são mergulhadas no rio ou

intei~as ou só por uma parte do corpo, ou por metade do corpo, ou até

aos Joelhos ou até às axilas. «São, dizem-lhe, as almas que depois de

deixarem a vida mortal não estavam completamente libertas de certos

pecados leves e precisavam de um castigo piedoso do Deus misericordioso,

para serem dignas de Deus.» É, sem a palavra, a ideia de purgação.

Mas este texto está bastante atrasado em relação à visão de Drythelm de

Bede, quase contemporânea.

No século XI: Otloh de Saint-Emmeran.

Otloh de Saint-Emmeran e de Fulda (1010-1070) autor da primeira

autobiografia da Idade Média que se chegou a comparar com as

Confissões de Santo Agostinho, escreveu um Livro de Visões (PL,

t. 146, col. 341-388) que se situa na tradição monástica e relata visões

que ele próprio teve ou que encontrou em autores, o principal dos quais

Gregório, o Grande, nos Diálogos. Entre essas visões de estranhos encontra-se

a do monge de Wenlock contada por S. Bonifácio (col. 375-380) e a

de Drythelm narrada por Bede (380-383). Dada a antiguidade das fontes

de Otloh, não só o Purgatório não aparece nestas visões, mas mesmo as

expressões ignis purgatorius, poenae purgatoriae só aparecem raramente'.

Por exemplo, na visão catorze, um monge de um mosteiro da Boémia,

Isaac, vê num prado muito agradável os santos Gunther, Maurício e

Adalberto que lhe dizem que tiveram de «passar pelo fogo purgatório»

antes de ir para aquele refrigerium. Otloh nada traz, pois, de novo, ao

futuro Purgatório. Pode notar-se, por entre os apartes interessantes das

visões, a sua tendência para insistir, por um lado, na espoliação dos bens

monacais pelos laicos como causa dos seus castigos no além (na visão sete

um proprietário rural culpado deste crime aparece aos seus dois filhos

numa cavalgada aérea) e, por outro, para utilizar estas visões para fins

políticos. Por exemplo, a visão do monge Isaac destina-se a mostrar a

supremacia da cadeira episcopal de Ratisbona sobre a de Praga. A visão

dezassete mostra a imperatriz Teofânia, mulher de Othon 11 e mãe de

Othon lU, aparecendo a uma monja para lhe pedir que a tire dos tormentos

que sofre no além, porque, à moda das mulheres orientais, exibiu na

terra vestes luxuosas de mais. Belo exemplo da utilização do além para

exprimir o fosso cultural entre o Ocidente e o Oriente!

No começo do século XIII: a visão de Thurchill.

Retomo a visão de Thurchill, visão literalmente espantosa e que expliquei

há alguns anos no meu seminário, mas sobre a qual não me alarguei

(atrás, pp. 350-351) porque, sendo, grosso modo, contemporânea do

Purgatório de S. Patrick, provavelmente ligeiramente posterior, não fez o

sucesso do Purgatório, ao contrário do opúsculo de H. de Saltrey. Esta

visão datada de 1206 é talvez obra do cisterciense inglês Ralph de Coggeshall.

Foi incluída pelos beneditinos Roger de Wendover nas suas Flores

historiarum e Mathieu Paris, falecido em 1259, nas suas Chronica

Majora. Thurchill, camponês simplório da região de Londres, é levado

durante o sono através do além por Santo Julião, o Hospitaleiro, e S.

Domnius que, a pedido de S. Tiago, o levam a fazer a peregrinação ao

além. No interior de uma grande basílica sem paredes parecida com um

claustro monástico, visita «os lugares de castigo dos maus e as moradas

dos justos». O vocabulário a respeito do Purgatório reúne, como é normal

no início do século XIII, expressões arcaicas (loca poenalia, ignis purgatorius)

e o novo substantivo purgatorium (per purgatorii poenas). A

geografia do além de Thurchill é ainda um tanto confusa e o Purgatório,

obedecendo à imagem arcaica dos receptacula animarum, ainda não

está bem unificado. Assim, por entre outros lugares purgatórios, há um

purgatório dirigido por S. Nicolau (qui huicpurgatorio praeerat). A visão

de Thurchill apresenta duas particularidades representativas da mentalidade

do começo do século XIII: a importância dada ao acto de pesar as

almas, que se reencontra na escultura gótica, e a associação ao Purgatório

de uma tipologia de habitantes dos lugares das penas do além, misturando

pecados capitais (o castigo de um orgulhoso) e pecados das categorias

sociais (punições de um padre, de um cavaleiro, de um jurisconsulto,

forma interessante do esquema trifuncional da sociedade). O que sobretudo

impressionou os exegeses da visão de Thurchill foi o carácter teatral

da visão que culmina no episódio espantoso em que o peregrino assiste ao

espectáculo, ao jogo (ludus vestros) dos demónios com as torturas dos

habitantes do Purgatório (p. 503). Henri REY -FLAUD (Para uma dramaturgia

da Idade Média - Pour une Dramaturgie du Moyen Âge, Paris,

1980, pp. 82-83) fez a aproximação entre a visão de Thurchill e o movimento

teatral da época e designadamente com o Jogo de S. Nicolau,

inteiramente contemporâneo, do natural de Arras Jean Bode!. Parece

todavia que, tal como para a iconografia, esta teatralização do Purgatório

terá abortado e os mistérios terão continuado a funcionar segundo o

sistema dualista do Paraíso e do Inferno.

Por fim, a terceira grande visão do além, com as do Purgatório de

S. Patrick e de Thurchill da passagem do século XII para o século XIII,

a do monge Eynsham (Evesham), igualmente incluída no Chronicon

Anglicanum de Ralph de Coggeshall (ed. J. Stevenson, 1875, pp. 71-72),

444 445

1



nas Flores historiarum de Roger de Wendover e na Chronica Majora de

Mathieu Paris (vol. 11,pp. 243-244), está demasiado próxima da Visão de

Drythelm e nela o Purgatório está por de mais fragmentado para que eu a

aproveite.

- François Dolbeau teve a amabilidade de me indicar um artigo de

Brian GROGAN: «Eschatological Teaching of the Early Irish Church»

surgido em Biblical Studies, The Medieval lrish Contributions, ed. M.

McNamara. Proceedings of the lrish Biblical Association, nOI, Dublin,

1976, pp. 46-58. Menciona muito o Purgatório. Sem o dizer com clareza,

pois emprega o termo prematuramente, B. Grogan confirma que o Inferno

e o ignis purgatorius só se distinguem um do outro no fim do século XII

e que o Purgatorium Sancti Patricii é o primeiro texto relativo à Irlanda

em que aparece a palavra purgatorium.

- Recebi, sem poder utilizá-Io, o artigo de GiIbert DAGRON «La

perception d'une difTérence: les débuts de Ia "Querelle du Purgatoire't»

(Actes du xV" congrês intemational d'Etudes byzantines, IV, Histoire, Atenas,

1980, pp. 84-92).

446

AGRADECIMENTOS

Esta investigação beneficiou de muitas ajudas. Em primeiro lugar, a

dos membros do Grupo de Antropologia Histórica da Escola de Altos

Estudos em Ciências Sociais: Andrée Duby, Marie-Claire Gasnault,

Georgette Lagarde, Colette Ribaucourt, Jean-CIaude Schmitt e da minha

colega e amiga Anne Lombard-Jourdan.

Ainda de Paris, ao Instituto de Investigação e de História dos Textos

do C.N.R.S., a François Dolbeau e Monique-Cécile Garand, ao Comité

Du Cange, Anne-Marie Bautier, ao Léxico do Latim filosófico medieval,

Annie Cazenave, e à equipa da Biblioteca de Saulchoir que me fizeram

beneficiar da sua competência e da sua gentileza.

Em Roma, os meus amigos Girolamo Amaldi e Raoul Manselli dispensaram-me

a sua ciência e a sua atenção. Encontrei uma ajuda incomparável

na Biblioteca da Escola Francesa, junto de Noêlle de La

Blanchardiêre, de Pascale Koch e de todo o pessoal. Jean-Claude Maire-Vigueur,

director dos estudos medievais, e Jacques Chiffoleau, membro

da Escola, deram-me um apoio múltiplo. Georges Vallet, director da

Escola e André Hartmann permitiram-me, ao receber-me de uma maneira

perfeita na Piazza Navona, redigir em condições inigualáveis a maior

parte da obra. Na Biblioteca do Vaticano, Agostino Paravicini-Bagliani

antes de mais, mas também Louis Duval-Arnould e Monsenhor Joseph

Sauset não me regatearam nem a sua ciência nem a sua amabilidade.

Pude assim trabalhar em excelentes condições na Biblioteca da Universidade

Pontifical Gregoriana. O P. Reinhard Elze, director do Instituto

Histórico Alemão e o Dr. Goldbrunner, bibliotecário, adivinharam mesmo

as minhas necessidades e os meus anseios.

A três amigos que me trouxeram em diversas fases deste trabalho, e

designadamente na critica estabelecida do manuscrito, uma ajuda inestimável:

ao P. Pierre-Marie Gy, a Jean-Claude Schmitt, e muito particularmente

a Jacques Revel, exprimo a minha especial gratidão.

447

I

I ~

I;



Christine Bonnefoy e, ocasionalmente, Simone Brochereau contribuíram

com os seus cuidados e gentileza para a realização deste livro.

A todas e a todos o meu mais profundo reconhecimento.

10 editor moderno fez por várias vezes um uso abusivo do termo purgatorium nos

títulos que deu às visões.

448

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