Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
meridional da África e o ponto mais a sul do mundo. É um lugar violento, cheio
de tempestades e águas traiçoeiras. Um lugar que viu séculos de tráfico, comércio
e esforço humanos. Um lugar, ironicamente, de esperanças perdidas.
Quando dizemos que alguém está dobrando o Cabo da Boa Esperança,
ironicamente isso significa que a vida dessa pessoa está em sua fase final, que ela
não tem mais como realizar nada.
Eu ultrapasso as pedras em direção ao azul, deixando a vastidão engolfar meu
campo de visão. Estou suando, mas sinto frio. Empolgado, mas nervoso. É isso?
O vento bate contra os meus ouvidos. Não escuto nada, mas vejo a borda:
onde a pedra encontra o nada. Paro e fico ali por um instante, a vários metros de
distância. Vejo o mar lá embaixo, batendo e espumando contra os penhascos que
se estendem por quilômetros de ambos os lados. As marés se chocam furiosas
contra as paredes impenetráveis. Bem à frente, a queda é de no mínimo
cinquenta metros até a água.
Lá embaixo, à minha direita, turistas pontilham a paisagem, tirando fotos e se
juntando em formações quase como um formigueiro. À minha esquerda está a
Ásia. Diante de mim, o céu, e atrás está tudo o que já sonhei e trouxe comigo.
E se for isso? E se isso for tudo o que existe?
Eu olho em volta. Estou sozinho. Dou o primeiro passo em direção ao
penhasco.
O corpo humano parece vir equipado com um radar natural para situações
que envolvem risco de morte. Por exemplo, no instante em que você chega a uns
três metros da borda de um penhasco sem proteção, certa tensão começa a
percorrer seu corpo. Suas costas se enrijecem. Sua pele se arrepia. Seus olhos
ficam hiperfocados em cada detalhe do ambiente. Parece que seus pés são feitos
de pedra. É como se houvesse um grande ímã invisível puxando seu corpo de
volta para a segurança.
Mas eu luto contra o ímã. Arrasto meus pés pesados para mais perto da borda.
A um metro e meio de distância, a mente se junta à festa. Agora dá para ver
não só a borda do penhasco, mas o próprio penhasco, o que induz todo tipo de
visualizações indesejadas de tropeções e queda e de se precipitar para uma morte
catastrófica. É alto para cacete, sua mente ressalta. Tipo, alto para cacete mesmo.