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A MELANCOLIA FIXA DO CONTROLADOR DEONDASJosé de Matos-Cruz10 de Junho de 1974Damião de Magalhães sentia todo corpo como um feixede dores. A consciência ainda não se tinha em si, mas elesabia que estava algures, de rastos e perdido em lugar ermo.Era noite, junto à praia, pois as pernas oscilavam com asondas, e tinha uma das mãos enterrada na areia. A outraapertava a longa barba grisalha. A sua mente cerradasubmergia pela íntima adversidade, qual turbilhão de trevasque o tivesse desorientado da empresa primordial. A luzque até ali o trouxera, desde o fragor dos monstros, a esmodo astrolábio entre as vagas da utopia, havia-se portantodissipado. Antes, quando o seu ânimo estremecia, ao pavorda tempestade horrenda e com o esqueleto da alquebradanau a quebrantar-se, fora então o instinto exótico, afragrância flamejante a suplantá-lo, persistindo embaladonuma modorra sobrenatural, numa ansiedade física, pelodevaneio sensual das sereias oceânicas. E todavia a qualquertempo, quando já rompia a aurora, Damião de Magalhãesrecuperaria a arquitectura das memórias, a arqueologia doimaginário – que eram a sua herança fundamental,temerária, quanto ao destino de Portugal. Não mais TerraIgnota ou Mar Incógnito. Convicto, contrafeito, oNáufrago das Descobertas ergueu-se pois, despojou-se daroupa esfarrapada e dos adereços pessoais, embrenhando-senuma actualidade virtual ao assumir a original nudezhumana... Nada e o Centro do Mundo. Assim se fazhistória. Em tortuosa caminhada, pela orla dos penhascos,desde o Guincho até à Boca do Inferno, Damião deMagalhães parou a mirar uns quantos gatos, que aliacordavam, espreguiçando. Também ele estava meioentorpecido, pelo frio e pela ansiedade, que lhe tolhiamum paradeiro na cartografia de seu porvir. Ninguémrepararia em si. Ensimesmado. Mudo. Transfigurado. E,no entanto, algumas mãos compadecidas de feirantes locais,que já abriam as tendas para o negócio, permitiram-lhe55