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queixar-me... O bairro não obriga o prevaricador a pagar
a multa estatal de sobreconsumo, mas afixa o nome dele
nos painéis públicos. Porque no fim pagam todos. A
vergonha desnuda. Seria menos sofrível viver noutro bairro,
junto à costa. Passear à noite. Ver o mar. O espírito precisa
de horizontes amplos para se ir lembrando que ainda é
infinito. Mas não me atrevo a pedir transferência. Os
subsídios locais são atribuídos por número de ocupantes.
Não gostam de desertores. Ficaria logo marcado.
«EUROPA CHEGOU AO FIM!»
Também aqui? Algumas folhas de papel electrossensível
aguardam no chão, debaixo da ranhura da impressora na
parede. O contraponto da minha fantasia é ter dinheiro
para alugar um televisor. Ou o mar ou o espectáculo. Não
posso ter ambos. Posso ter, sim, e pago por isso, uma
refeição diária de notícias e ficções. Sete páginas, sem
anúncios. A parangona que me perseguiu o dia todo acaba
no meu colo. Devoro o texto. Mas não é nada do que
pensava: nem uma recessão económica nem um cataclismo
da Natureza. Ou melhor, é, mas muito afastado. Fala do
embate de um cometa de grande porte contra o satélite de
Júpiter que tem o nome de Europa. Mostra esquemas e
desenhos, e uma fotografia difícil de descodificar neste tipo
de papel. A colisão foi suficiente para perturbar a órbita da
pequena lua: daqui a mil anos cairá contra o planeta-mãe.
E é tudo. Eis o grande evento que dominou as agências de
notícias, as conversas, a atenção de toda a gente, e arrebatou
o meu colega quase ao ponto do êxtase. Solto uma
gargalhada. Por que havia de ser diferente? O que houve
de especial neste dia, que despertasse os jornalistas para a
eventualidade do dilúvio? A armadilha capturou-nos a
todos: somos o povo da fogueira que não é capaz de
conceber um universo anterior ao acender da chama.
Conhecemos apenas o que acontece dentro da jaula, a
pequena realidade: indicadores económicos a mostrar um
sorriso de orelha a orelha; práticas científicas que se
preocupam com o bem-estar do cidadão e a sua correcta
integração na sociedade; costumes pacíficos e hábitos
mansos como se indicassem que a vida deve ser saboreada
lentamente à maneira de um bom vinho. Sinais de que
algumas barrigas ainda se encontram cheias. E quando
deixarem de estar? Quando os ciclos económicos teimarem
em descer, desta vez para todos, e provarem a razão das
teorias económicas; quando a recessão assomar à janela;
quando o som de um estômago vazio se fizer ouvir
colectivamente sobre o ruído dos automóveis – e agora?
Palmadas de resignação nas costas e expressões de conforto
como «tem de ser, irmão»? Ou voltarão a acender-se as
velhas inimizades, a desconfiança que herdámos de séculos
de guerras e convivência, notando-se finalmente que uma
Europa Unida era um sonho que só políticos e industriais
poderiam ter, vazio de sentido, oportunista e estéril como
o são todas as obras sem alma: um sonho não reflectido
no inconsciente cultural dos habitantes. O sonho esteve
condenado ao fracasso, desde o início; e quando a dura
verdade se apresentar desnuda, não seremos como aquele
astro de gelo que mergulhará no seu último vôo de
encontro ao berço de onde saíu, ao mar de hidrogénio da
sua infância, despedaçando-se em órbita sob o efeito
gravítico de maré, o cometa mais precioso e efémero do
sistema solar: porque esse astro, essa Europa, cairá em
glória.
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