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semelhante e negar os tratamentos racistas e segregacionistas a que dantes
estava sujeito. Vencemos as doenças mais terríveis. A própria teoria política
elaborou uma nova explicação do tecido sócio-económico, acabando de
vez com as limitativas divisões de classes em baixa, média e alta, para
distinguir uma realidade mais complexa e actual, em que vários grupos
de acção social interactuam para formar o poder. Estabilizámos num
crescimento sustentado que engloba teorias keynesianas com o velho
classicismo, pressupondo um nível de desemprego semi-fixo, um produto
sempre crescente, uma segurança social activa e bem financiada em que
todos confiem, e a garantia de que as necessidades básicas do indivíduo
(roupa, alimentação, habitação, educação) se encontram disponíveis,
gratuita e equitativamente, a todos. Se há algo de que nos podemos
orgulhar, fazendo uma súmula desta década de inovação, observando-a à
luz de uma etapa completada, é de termos sido os primeiros a atingir o
que chamaria de utopia democrática, atingir o que as ditas nações liberais
nunca conseguiram...» diz ele, e eu, observando ocasionalmente pela
redoma das cabines, só encontro ouvintes, na maioria parlamentares e
economistas, a brincar com os ecrãs de notícias, atentos à última sensação
do dia. Já ouviram a lengalenga, sabem como acaba.
«EUROPA CHEGOU AO FIM!»
Ao voltar para casa, vou de espírito pleno de feitos gloriosos, demandas
heróicas e missões divinas. «A História não mente, seguimos o seu
propósito, desde as conquistas dos Hunos, desde a unificação romana,
desde a falhada e violenta tentativa alemã, o destino inevitável da Europa
é manter-se unida. É impossível fugir-lhe», sintetizam os painéis do cair
do dia, oradores, cada qual ao seu modo, que não querem esperar pela
glória concedida pelos historiadores do futuro, mas tomando-a ali, já,
reclamando-a hoje, impacientes e convictos. As carruagens vão
praticamente vazias: é quase noite, por aquela hora os habitantes estão
nos bairros respectivos, atarefados nas rotinas respectivas, não querendo
confusões, não procurando conflitos. Ela continua sem vir. Doi-me a
cabeça. Foi um dia longo. O cheiro a perfume dos ventiladores tornou-se
enjoativo. Talvez esteja com febre. Quando chegar a casa, tomo um
profilático. Prometo.
«EUROPA CHEGOU AO FIM!»
Escolho um preparado congelado e programo o forno para dar-lhe o sabor
de frango assado (podia ter escolhido outro – é uma marca comunitária
e portanto sabe tudo ao mesmo). Dou meia-volta e estou na saleta, que
é como chamo ao outro canto do habitáculo por ter ali conseguido enfiar
um sofá usado e uma mesa de apoio. Olho para o contador na parede.
Não falta muito para afastar os móveis, puxar a cama do encaixe e
deitar-me. Tenho o cuidado de fazer isto mal acabo de comer, não vá
adormecer sentado. O bairro é bastante exigente quanto ao consumo de
luz eléctrica e todos os habitáculos têm contadores bem visíveis.
Infelizmente, o meu reclama uma zona em que ficaria melhor, talvez, um
cartaz publicitário, uma paisagem esbatida, algo que desse cor – tivesse
eu interesse em decorar este cubículo interior sem janelas e era capaz de
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