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como verdadeiros segredos de Estado. O ritual da manhã. Eu não estou
cá. Fico longe da agitação humana. Prefiro ser o solitário que se encosta à
parede – o que passa despercebido, o vago, o vento. Encontro dois colegas;
acenam-me, não ficam: já me conhecem bem de mais para tanto. Respondo
por educação. Eis o máximo de contacto social a que me permito neste
meio. Recordo o meu pai e como ele adorava tanta energia, como era
sociável e entrava no jogo animado, qual golfinho na água. Ele, que se
queixava tanto das caras apáticas e tristes, escondidas nas suas misérias
privadas, sedentas de outros sítios. A boa disposição não custa nada,
comentava, e o mundo até fica um pouco melhor. Que saudades dos seus
gestos largos, da sua forma de agir. Pai, nunca quis dizer-lhe, há sempre
aqueles que, como eu, têm mau acordar.
«EUROPA CHEGOU AO FIM!!»
Ela não entrou na carruagem, a rapariga do bloco cinquenta e dois. Pelo
sétimo dia consecutivo. Talvez esteja doente, volto a convencer-me, não
querendo pensar na gravidade de uma doença de sete dias. Talvez tenha
tido sete doenças, uma por dia. Como se fosse credível. Aconteceu
finalmente: foi promovida. Acabaram-se as deslocações diárias no comboio
comunal, o dormir à noite no bairro, a angústia de pertencer à classe
sustentadora mas ter já um pé de fora, ao encontro do patamar acima. Deu
finalmente a passada e assim saiu da minha existência. As viagens no
comboio vão ficar mais tristes, e não será o ar perfumado e limpo que exala
dos ventiladores, não será a música alegre, não será o ambiente espaçoso e
colorido das carruagens capazes de trazer de volta o conforto das nossas
conversas. Seguirás agora no comboio próprio ao teu novo estatuto, aquele
dos painéis repletos com notícias financeiras, no mundo de costas viradas
às costas dos outros. A notícia sensacionalista da manhã, que até aqui atrai
os olhares e invade conversas (ainda bem que estavam distantes, os painéis
da carruagem), não ocupará a tua mente, agora. Não creio que nesse
comboio se jogue às cartas, nem que os ritmos fáceis da música popular
adornem o ambiente sonoro. A que bairro pertencerás agora?
«EUROPA CHEGOU AO FIM!»
A notícia percorre os ecrãs do Instituto, o que me espanta. Julguei mal?
Existirá algum conteúdo relevante por detrás do sensacionalismo? Pensei
que alguma figura mediática tivesse prognosticado um período de
terramotos para a Europa, ou que se afundaria em dilúvios inclementes,
ou outro qualquer cataclismo como os que se anunciam todos os anos,
provocando a esperada onda alarmista na imprensa comunal – mas se as
agências que servem o Instituto também a noticiam, é porque se trata de
algo sério… uma perturbação na economia, talvez um desequilíbrio
abrupto da taxa cambial, um sacudir das taxas de juro, um embargo à
exportação, uma guerra. Os fios da marioneta europeia têm etiquetas a
identificá-los. O colega do gabinete do canto aborda-me com os olhos a
brilhar: «Já sabes da novidade?», a que respondo, «Mais ou menos, ainda
não tive tempo de...», mas ele prossegue, excitado, «É verdadeiramente
formidável, não é, estas coisas que acontecem sem termos qualquer dito
na matéria, afinal não somos nada, meros grãos de poeira no universo, o
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