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2 - Joan Blaisse
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C, (.: 2)- J B
S (.: 4 - 16) - B C
A QUEDA DE EUROPA (.: 17 21) - L F D R A
E N (.: 22 34) - Y G
E C (. 35) - R A
“E SE ANTES SERÁ TARDE” (.:36 - 37) “A MARGEM DA MIRAGEM” (.: 38 - 39)
“SOMARMOS DE SOMENOS” (Á.:40 - 41) “MAL TORNA AO CRIADOR QUEM, SUJEI
TO, SE REFAZ” (.: 42- 43) J M-C, R A
DARK MAN (.: 44 - 49) - N R
“INFIS - OS OUTROS NÓS” (.: 50 - 54) R A J
M-C
“A MELANCOLIA FIXA DO CONTROLADOR DE ONDAS” (.: 55 - 56) M-C,
I R A
“OS COLECCIONADORES” (.: 57 - 68) M J W
“REABILITAÇÃO” (.: 63 - 66) S G L R A
- C (.: 67)- A M
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4 - Bernardino Costantino
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A QUEDA DE EUROPA
Luís Filipe Silva
«EUROPA CHEGOU AO FIM!»
As parangonas incendeiam subitamente os quiosques públicos de
informação do bairro, latindo como cães vadios, vestidas com letras
grotescas e disformes da cor do sangue, pois talvez assim despertem os
transeuntes do torpor do consumo. Junta-se logo gente. Acorrem as idosas
que atravessam, espavoridas, as ruas de chinelos nos pés e meias grossas de
lã, saídas das cozinhas, ainda de avental ou touca, faces coradas pelo susto.
Adiantam-se conhecidos e estranhos, a especular intrigas internacionais
com a segurança de especialistas, enquanto aguardam pela reportagem,
desconfiados das notícias das terras de além. Aparecem os satisfeitos
acompanhados dos insatisfeitos, espalhando opiniões emprestadas, pessoas
que vestem com simplicidade e falam com maior simplicidade ainda,
pessoas que, na sua vida humilde, fazem amizades verdadeiras e intensas,
para depois as desfazerem com uma maior paixão. Noutros tempos, estas
gentes seriam «o povo»; agora, chamam-lhes nomes mais requintados.
«EUROPA CHEGOU AO FIM!»
Passo pelos formigueiros de curiosos em torno dos quiosques que espetam
as orelhas para entender o locutor. Acotovelam-se e empurram-se como
bezerros que procuram as tetas da mãe, e eu passo por eles indiferente, sem
sentir a mesma fome, obrigando-me ao ritual diário de apanhar o
transporte e ir trabalhar, o que, nos dias que correm, pode considerar-se
um luxo. Inunda-me a tristeza de todas as manhãs: uma sensação sem
nome do que não sou e que no fundo não quero: tornar-me eles. Não sou
como eles. Não lhes pertenço, embora more naquele mesmo bloco e
frequente as mesmas cantinas estatais do quarteirão. Não falo a mesma
linguagem, não sinto os mesmos desejos, não estou limitado pelos
horizontes que os cercam. Vejo um mundo diferente; mas também não
sou capaz de partilhar esse mundo que não lhes interessa, ali fechados nos
bairros comunais em que nasceram, nas pequenas freguesias da Grande
Europa Unida que os torna dependentes dos vistos de trabalho e
autorizações de viagem, contentes com vitórias mundanas e sabedoria
banal. Pensei em ajudá-los mas eles não me aceitam: o homem afoga-se
no oceano sem pedir ajuda, vai ao fundo contente por ter existido.
«EUROPA CHEGOU AO FIM!»
Olho para o título e apetece-me gritar Só perceberam agora?. Já cheguei à
gare de transbordo. São outros, os rostos. Seguem atentos. Encosto-me à
parede, inventariando os cabelos arrumados, as roupas compostas, o
orgulho. E, no entanto, vazios, iguais aos do bairro. Parecem bonecos
ligados à electricidade, cumprimentando-se sem parar com os tiques das
tribos assalariadas, entre palmadas nas costas e a partilha dos mais recentes
mexericos do escritório, desconfiados da dança de cadeiras que se sussurram
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como verdadeiros segredos de Estado. O ritual da manhã. Eu não estou
cá. Fico longe da agitação humana. Prefiro ser o solitário que se encosta à
parede – o que passa despercebido, o vago, o vento. Encontro dois colegas;
acenam-me, não ficam: já me conhecem bem de mais para tanto. Respondo
por educação. Eis o máximo de contacto social a que me permito neste
meio. Recordo o meu pai e como ele adorava tanta energia, como era
sociável e entrava no jogo animado, qual golfinho na água. Ele, que se
queixava tanto das caras apáticas e tristes, escondidas nas suas misérias
privadas, sedentas de outros sítios. A boa disposição não custa nada,
comentava, e o mundo até fica um pouco melhor. Que saudades dos seus
gestos largos, da sua forma de agir. Pai, nunca quis dizer-lhe, há sempre
aqueles que, como eu, têm mau acordar.
«EUROPA CHEGOU AO FIM!!»
Ela não entrou na carruagem, a rapariga do bloco cinquenta e dois. Pelo
sétimo dia consecutivo. Talvez esteja doente, volto a convencer-me, não
querendo pensar na gravidade de uma doença de sete dias. Talvez tenha
tido sete doenças, uma por dia. Como se fosse credível. Aconteceu
finalmente: foi promovida. Acabaram-se as deslocações diárias no comboio
comunal, o dormir à noite no bairro, a angústia de pertencer à classe
sustentadora mas ter já um pé de fora, ao encontro do patamar acima. Deu
finalmente a passada e assim saiu da minha existência. As viagens no
comboio vão ficar mais tristes, e não será o ar perfumado e limpo que exala
dos ventiladores, não será a música alegre, não será o ambiente espaçoso e
colorido das carruagens capazes de trazer de volta o conforto das nossas
conversas. Seguirás agora no comboio próprio ao teu novo estatuto, aquele
dos painéis repletos com notícias financeiras, no mundo de costas viradas
às costas dos outros. A notícia sensacionalista da manhã, que até aqui atrai
os olhares e invade conversas (ainda bem que estavam distantes, os painéis
da carruagem), não ocupará a tua mente, agora. Não creio que nesse
comboio se jogue às cartas, nem que os ritmos fáceis da música popular
adornem o ambiente sonoro. A que bairro pertencerás agora?
«EUROPA CHEGOU AO FIM!»
A notícia percorre os ecrãs do Instituto, o que me espanta. Julguei mal?
Existirá algum conteúdo relevante por detrás do sensacionalismo? Pensei
que alguma figura mediática tivesse prognosticado um período de
terramotos para a Europa, ou que se afundaria em dilúvios inclementes,
ou outro qualquer cataclismo como os que se anunciam todos os anos,
provocando a esperada onda alarmista na imprensa comunal – mas se as
agências que servem o Instituto também a noticiam, é porque se trata de
algo sério… uma perturbação na economia, talvez um desequilíbrio
abrupto da taxa cambial, um sacudir das taxas de juro, um embargo à
exportação, uma guerra. Os fios da marioneta europeia têm etiquetas a
identificá-los. O colega do gabinete do canto aborda-me com os olhos a
brilhar: «Já sabes da novidade?», a que respondo, «Mais ou menos, ainda
não tive tempo de...», mas ele prossegue, excitado, «É verdadeiramente
formidável, não é, estas coisas que acontecem sem termos qualquer dito
na matéria, afinal não somos nada, meros grãos de poeira no universo, o
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destino não está nas nossas mãos! Agora não posso falar contigo,
encontra-me na cafetaria daqui a meia-hora» e entranha-se no corredor,
deixando-me estupefacto e confundido, perguntando-me por que raio
esperaria um mínimo de racionalidade de uma pessoa que passa as noites
acordada para fotografar as estrelas? Depois ocorre-me que não posso
encontrar-me com ele, tenho uma reunião após o evento, mas já não
consigo avisá-lo.
«EUROPA CHEGOU AO FIM!»
A sala de conferências enche-se de ouvintes interessados, mais do que
os que se esperariam nesta era de vídeo e telepresença. Lanço um olhar
aos monitores que acompanham cada assento e noto que assistem à
mesma notícia, embora me encontre demasiado longe, aqui na cabina
de processamento, e demasiado ocupado para finalmente perceber de
que trata. Vou acompanhar a transcrição automática do discurso para
texto, para corrigir os defeitos da percepção automática e adaptá-lo ao
linguajar das cinco comunas em que sou versado. Dois outros colegas
acompanham-me para cobrir a diversidade linguística do nosso idioma.
Diversidade que, em certos casos, não passa de uma reformulação
gramatical ou substituição do léxico. Que o digam as equipas das
restantes línguas, mais vastas e especializadas. É mais ideológico que
necessário, o respeito extremo pelos regionalismos. Derruba-se o piso
térreo de Babel, ao invés de reforçar as vigas. Anteriormente, as fronteiras
estavam abertas e as vontades separadas por territórios; agora, o território
da vontade unida cria novas e pequeníssimas fronteiras nas quais se
promove a diferença. Disseram-no no passado: dividir para reinar.
Irrita-me e não consigo evitá-lo. Irrita-me mais por ter este emprego e
contribuir para isso.
«EUROPA CHEGOU AO FIM!»
Convenci-me de que iria falar da notícia-mor da actualidade, mas o
orador, Presidente da Conferência sobre o Desenvolvimento Economico-
Social da GEU, um homem demasiado baixo e franzino para suportar
com facilidade um título tão avantajado, abre o debate com outro
assunto. «Assistimos à transformação do que nos propuseramos
melhorar. Assistimos à integração europeia tornar-se lentamente
realidade, ao estabelecimento de uma presença mundial efectiva,
poderosa, com capacidade de intervenção. Assistimos ao encerramento
dos ódios regionais, e até por vezes, locais, em prol de uma identidade
supra-regional, supra-nacional, sem no entanto, e é bom salientar este
ponto, é bom que nunca o esqueçamos, pois trata-se da nossa maior
vitória, sem no entanto, dizia, subjugarmos as culturas locais, pequenas
e frágeis, sem as quebrarmos e aglomerarmos e resultar uma mistura
que, sem sombras de dúvida, seria intragável, sensaborona e real motivo
da nossa vergonha. Penso que é chegado o momento de fazermos o
ponto da situação. Temos mais consciência das forças que nos
condicionam como sociedade. As disciplinas da ciência contribuiram
para ficarmos mais cultos e alertas. Criámos espaços urbanos de
identidade definida, onde o indivíduo pode livremente encontrar o seu
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semelhante e negar os tratamentos racistas e segregacionistas a que dantes
estava sujeito. Vencemos as doenças mais terríveis. A própria teoria política
elaborou uma nova explicação do tecido sócio-económico, acabando de
vez com as limitativas divisões de classes em baixa, média e alta, para
distinguir uma realidade mais complexa e actual, em que vários grupos
de acção social interactuam para formar o poder. Estabilizámos num
crescimento sustentado que engloba teorias keynesianas com o velho
classicismo, pressupondo um nível de desemprego semi-fixo, um produto
sempre crescente, uma segurança social activa e bem financiada em que
todos confiem, e a garantia de que as necessidades básicas do indivíduo
(roupa, alimentação, habitação, educação) se encontram disponíveis,
gratuita e equitativamente, a todos. Se há algo de que nos podemos
orgulhar, fazendo uma súmula desta década de inovação, observando-a à
luz de uma etapa completada, é de termos sido os primeiros a atingir o
que chamaria de utopia democrática, atingir o que as ditas nações liberais
nunca conseguiram...» diz ele, e eu, observando ocasionalmente pela
redoma das cabines, só encontro ouvintes, na maioria parlamentares e
economistas, a brincar com os ecrãs de notícias, atentos à última sensação
do dia. Já ouviram a lengalenga, sabem como acaba.
«EUROPA CHEGOU AO FIM!»
Ao voltar para casa, vou de espírito pleno de feitos gloriosos, demandas
heróicas e missões divinas. «A História não mente, seguimos o seu
propósito, desde as conquistas dos Hunos, desde a unificação romana,
desde a falhada e violenta tentativa alemã, o destino inevitável da Europa
é manter-se unida. É impossível fugir-lhe», sintetizam os painéis do cair
do dia, oradores, cada qual ao seu modo, que não querem esperar pela
glória concedida pelos historiadores do futuro, mas tomando-a ali, já,
reclamando-a hoje, impacientes e convictos. As carruagens vão
praticamente vazias: é quase noite, por aquela hora os habitantes estão
nos bairros respectivos, atarefados nas rotinas respectivas, não querendo
confusões, não procurando conflitos. Ela continua sem vir. Doi-me a
cabeça. Foi um dia longo. O cheiro a perfume dos ventiladores tornou-se
enjoativo. Talvez esteja com febre. Quando chegar a casa, tomo um
profilático. Prometo.
«EUROPA CHEGOU AO FIM!»
Escolho um preparado congelado e programo o forno para dar-lhe o sabor
de frango assado (podia ter escolhido outro – é uma marca comunitária
e portanto sabe tudo ao mesmo). Dou meia-volta e estou na saleta, que
é como chamo ao outro canto do habitáculo por ter ali conseguido enfiar
um sofá usado e uma mesa de apoio. Olho para o contador na parede.
Não falta muito para afastar os móveis, puxar a cama do encaixe e
deitar-me. Tenho o cuidado de fazer isto mal acabo de comer, não vá
adormecer sentado. O bairro é bastante exigente quanto ao consumo de
luz eléctrica e todos os habitáculos têm contadores bem visíveis.
Infelizmente, o meu reclama uma zona em que ficaria melhor, talvez, um
cartaz publicitário, uma paisagem esbatida, algo que desse cor – tivesse
eu interesse em decorar este cubículo interior sem janelas e era capaz de
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queixar-me... O bairro não obriga o prevaricador a pagar
a multa estatal de sobreconsumo, mas afixa o nome dele
nos painéis públicos. Porque no fim pagam todos. A
vergonha desnuda. Seria menos sofrível viver noutro bairro,
junto à costa. Passear à noite. Ver o mar. O espírito precisa
de horizontes amplos para se ir lembrando que ainda é
infinito. Mas não me atrevo a pedir transferência. Os
subsídios locais são atribuídos por número de ocupantes.
Não gostam de desertores. Ficaria logo marcado.
«EUROPA CHEGOU AO FIM!»
Também aqui? Algumas folhas de papel electrossensível
aguardam no chão, debaixo da ranhura da impressora na
parede. O contraponto da minha fantasia é ter dinheiro
para alugar um televisor. Ou o mar ou o espectáculo. Não
posso ter ambos. Posso ter, sim, e pago por isso, uma
refeição diária de notícias e ficções. Sete páginas, sem
anúncios. A parangona que me perseguiu o dia todo acaba
no meu colo. Devoro o texto. Mas não é nada do que
pensava: nem uma recessão económica nem um cataclismo
da Natureza. Ou melhor, é, mas muito afastado. Fala do
embate de um cometa de grande porte contra o satélite de
Júpiter que tem o nome de Europa. Mostra esquemas e
desenhos, e uma fotografia difícil de descodificar neste tipo
de papel. A colisão foi suficiente para perturbar a órbita da
pequena lua: daqui a mil anos cairá contra o planeta-mãe.
E é tudo. Eis o grande evento que dominou as agências de
notícias, as conversas, a atenção de toda a gente, e arrebatou
o meu colega quase ao ponto do êxtase. Solto uma
gargalhada. Por que havia de ser diferente? O que houve
de especial neste dia, que despertasse os jornalistas para a
eventualidade do dilúvio? A armadilha capturou-nos a
todos: somos o povo da fogueira que não é capaz de
conceber um universo anterior ao acender da chama.
Conhecemos apenas o que acontece dentro da jaula, a
pequena realidade: indicadores económicos a mostrar um
sorriso de orelha a orelha; práticas científicas que se
preocupam com o bem-estar do cidadão e a sua correcta
integração na sociedade; costumes pacíficos e hábitos
mansos como se indicassem que a vida deve ser saboreada
lentamente à maneira de um bom vinho. Sinais de que
algumas barrigas ainda se encontram cheias. E quando
deixarem de estar? Quando os ciclos económicos teimarem
em descer, desta vez para todos, e provarem a razão das
teorias económicas; quando a recessão assomar à janela;
quando o som de um estômago vazio se fizer ouvir
colectivamente sobre o ruído dos automóveis – e agora?
Palmadas de resignação nas costas e expressões de conforto
como «tem de ser, irmão»? Ou voltarão a acender-se as
velhas inimizades, a desconfiança que herdámos de séculos
de guerras e convivência, notando-se finalmente que uma
Europa Unida era um sonho que só políticos e industriais
poderiam ter, vazio de sentido, oportunista e estéril como
o são todas as obras sem alma: um sonho não reflectido
no inconsciente cultural dos habitantes. O sonho esteve
condenado ao fracasso, desde o início; e quando a dura
verdade se apresentar desnuda, não seremos como aquele
astro de gelo que mergulhará no seu último vôo de
encontro ao berço de onde saíu, ao mar de hidrogénio da
sua infância, despedaçando-se em órbita sob o efeito
gravítico de maré, o cometa mais precioso e efémero do
sistema solar: porque esse astro, essa Europa, cairá em
glória.
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22 - Yvan Guillo
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35 Renato Abreu
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Nunca saberia bem o que ainda lhe restava de memória, ou
provinha da imaginação. Por isso hesitava, e persistia em
dúvidas no género:
– O mais bizarro é que eu nem aqui estive, logo não
poderia ter-me lembrado do que jamais aconteceu… –
ponderou ela, fechando os olhos para ver-se por dentro, à
procura de sinais ou registos fidedignos.
Antes que se precipitasse… Outrora, pelo lento e longo
passeio no limiar entre realidade e devaneio, toda se entregara à
volúvel volúpia de viver, tão só, o íntimo fascínio em seu
domínio mínimo, exorbitando uma espiral intensa sob
paroxismos ou cintilações. Assumindo a Moda recriada como
bailado extremo, exterior, e cúmplice aos estilos sensuais.
Os monstros ou os modelos que a estimulavam – pleno
veículo sofisticado, inebriante, de se soltar, irradiar… Vertigem
de signos, mitos – que ela em si possuísse, e por que se
transfigurasse… Precedendo. No ritual híbrido, mutante,
assim inspiração. Existindo. Viagem sofisticada ao artifício da
natureza, à essência do desejo. O cerne de ser, sublimado.
E, todavia, debatia-se no auge do tempo. Repetição.
Reinvenção. Própria. Fortuita. Neutra. Outra. Inédita.
Exposta. Invólucro, sortilégio.
– Ou passaria, talvez, a haver-me com o mesmo… – arrisca
a Moda arisca, exibindo um perdulário frenesim de emoções e
omissões. Contrafeita. Solícita. Imitando o senso comum, à
hora do lusco-fusco…
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A MARGEM DA MIRAGEM
Estendeu o braço sobre a areia, até que cravou a espada.
E, assim, nasceu a árvore de sangue. Aí, transfigurou-se a mão
da natureza. E, então, a sorte do guerreiro ficaria marejada
para sempre. As lágrimas que fecundavam a aridez do deserto.
A ávida magia de semear prodígios entre o espanto e o destino.
Germinando a negação de outros desaires.
João Teodósio abolia a vanglória fatal e triunfal, o
fascínio pelo auge da agonia. E, todavia, o acompanhante de
Sebastião à tragédia de Alcácer-Kibir oscilara, em si, com o
espírito inclinado à premonição. O Condestável Lusitano
embargado no conflito íntimo dos usos obtusos, subjugado ao
delírio da luta absoluta… Ânimo, ou a rendição espectral?
Varado. Virado. Penhascos profundos, para quem só
veria de cima. Abismos alcantilados, quando se estivesse em
baixo. Sustendo o alcance da utopia. Sublimando o reverso da
ousadia. Apenas brumas e logros. Os lugares mais próximos
tornavam-se distantes. Os extremos ignotos faziam-se
familiares. Um voo de silêncio, solidão, para lá pairar.
Alguém, porém… Fugir? Fingir? O Condestável
Lusitano, em mansidão telúrica. Contraindo a extensão da
catástrofe. João Teodósio, no vórtice espúrio. Envolvendo a
imensidão da redondeza. O homem exposto à sua dimensão
ambígua, essencial. Fantasma. Paradoxo. Entre o sobressalto e
a transcendência. Ainda, antes do fim. Divagar.
José de Matos-Cruz
As Crónicas do Livro Livre
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SOMARMOS DE SOMENOS
Entre si, partilhavam sangues e sustos, suspiros e sorrisos. Nunca
se olhariam como outro, antes nele viam o mais que lhes faltava.
Cada um era ausente, quando o parceiro não aparecia. E, afinal,
sem sentirem presente a companhia, ocupavam o espaço das suas
invioláveis solidões. Gémeos idênticos, cuja existência convergia
qual alternativa em evasão.
Porém, sobre Alma & Elmo pendia a singularidade do paradoxo
ancestral. Origem e matriz. Estigma e desvio. Pai a quem
roubaram uma filha, pastora de estrelas, em noite de luar minaz.
Mãe que rejeitou ao filho, um predador de sonhos, a paz no caos
familiar. Com os modos e as tragédias, os medos e as quimeras que
fundam mitos, fundem lendas.
À distância minguante que os apartava, entre si contraíam sílabas e
símbolos. Raros sinónimos, pois, que assim contrastassem…
Agreste. Avessa. Candidamente selvagem. Minimamente épico.
Imune. Furtiva. O refúgio inibido. O exílio suspenso. Armadura.
Amadora. Pele e osso, a magia e a rebeldia de se compensarem no
desassossego transfigurador.
Alma tendia à alucinação. O tímido Elmo julgava-se temido. A
insubmissa inibia-se a definhar. O irmão ampliava, tenso, o
quanto lhe faltava. E nesse jogo lúdico, bélico, de abordagens,
coincidências, fruíam o sobressalto intrusivo, o amplexo imparcial
do bem-querer, no mal-estar. Qual auge umbilical – ei-los
fraternos, na abominável sexualidade.
José de Matos-Cruz
As Crónicas do Livro Livre
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14 de Março de 1958
Era um daqueles casos em que uma pessoa
atravessa outra e passa a ser ela, deixando para trás de si
apenas uma sombra, um estro fantasmagórico. Ofélia
Toledo foi abalada por tal frémito - fulminante, visceral -
e Joel Crespo ganiu à condição de despojado predador.
Às vezes, processos destes trazem precedente
ou deixam sequela. Na vertente experiência, ambos os
fenómenos se repercutiriam. Joel era um desenlace brutal
de sua mãe esfomeada, a loba Silvina. Ofélia definhara um
corrimento romântico com o crepuscular actor Ulisses
Galhardo.
No âmbito das cerimónias que emularam o
trágico defunto, o Major Joel Crespo foi até ao Teatro Vaz
de Moraes, no Parque Mayer, atraído por «A Revolução de
Abril», a velha fita de Arthur Lopes de Barros. Aí, a vaga
Ofélia Toledo exuberou em palco durante a homenagem,
ofuscando mesmo a embaraçada filha do protagonista –
Pulquéria Galhardo, um esfregão lacrimoso ao lado do
noivo Inocêncio Pernate.
Sentado numa das primeiras filas da Plateia,
Joel ficou varado. Nada mais via ou ouvira e, concluída a
sessão, ainda no foyer, colou-se à div’amante de Galhardo
com assanhada ansiedade. Ora, ela nunca se mostrou capaz
de resistir a uma farda, quanto mais solene...
Não houve uma transferência sexual, ou sua
mistificação. Só que uma neutra sobreposição de máscaras,
masculina e feminina, distorceu as matrizes essenciais de
Joel e Ofélia. Desabrida, funesto.
Foi uma orgia depravada que estarreceu tudo e
todos, até frequentadores e engajadores habituais num lagar
sórdido de sangue e gozo como a Pensão Alegria, lá para as
bandas de Almirante Reis. Quem testemunhou, prestes ao
atolar-se a escandaleira entre a moral pública e um muro
de silêncio, falou num cio ancestral em que se entrechocam
vícios e virtudes.
Requintes e rituais. Ela castrava-o, ele a vibrála.
E assim mesmo se desnudaram, perante os ocultos deste
mundo...
Sobreveio a separação. Mortificada,
açougueiro. A mulher repercutiu-se num horror telúrico.
O sujeito transformou-se numa fera insaciável.
Joel Crespo seria espoliado dos seus galões
patentes por denúncia do irmão mais novo, Geraldes,
entrando na Polícia Política, com um zelo grotesco que o
tornou mesmo ameaçado de sanções disciplinares. Ofélia
Toledo consumiu-se desprezada em sua forma física e, no
caos íntimo, desejou tudo e todos, acabando por
desaparecer de vez num rasto de perfume barato.
Antes, Ofélia aderiu à diáspora lésbica. De sua
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imensa dor, extrairia os prazeres da absolvição. Gritando para as parceiras, enciumadas: «Eu nunca te menti sobre a
minha condição!» Pois não. Só que estava diferente, devassada que foi um dia em sua ambiguidade carnal.
Depois, Joel tornou-se proxeneta de almas, escavando nelas, estilizado, um suplício irritante, como
funcionário catártico do Poder vigente. Às tantas, canino, deleitava-se mesmo a infligir tormentos vãos aos pobres
diabos, idealistas, num desbarato quanto à integridade militante.
Algum instante, quer Ofélia quer Joel procuravam-se, com as marcas tribais da própria emanação, equívoca.
A dela, precedia-o. A dele, perseguia-a.
- És tu ou eu? – questionava a já maligna, fixando-se ao espelho. Mas logo lhe voltava as costas, como se
vira a esquina para nada.
– És tu ou eu! – deduzia o torcionário ao açaimar, furtando-se à sua imagem. Então, apático, ficava com o
medo reflectido no olhar.
Melancolia mansa, fúria selvagem. Nunca mais.
Por natureza, nunca mais seriam. Profanados, destilavam o paradoxo de tal
perplexidade, numa existência alternativa.
E se tivessem nascido outros? Como assim, únicos – a divergência que entretanto assumiriam.
E se pudessem morrer autênticos? Quem então, impessoais – anteriores ao
sobressalto da sua coincidência.
Homogéneo. Um tempo em harmonia, na vertigem das origens. Hegemónico. Um mundo às avessas, nos
pilares do apocalipse. Joel Crespo e Ofélia Toledo – enfim anónimos, e recriando a fractura essencial...
Contos de loucura, cantos de lucidez. Era uma altura em que ainda havia uma relação mais próxima, entre
humanos e animais. Os homens alteravam-se em bestas míticas. Os bichos convertiam-se em fabulosos heróis.
Os SobreNaturais
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44 - Nicola Retttino
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50 - Renato Abreu & José de Matos-Cruz
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A MELANCOLIA FIXA DO CONTROLADOR DE
ONDAS
José de Matos-Cruz
10 de Junho de 1974
Damião de Magalhães sentia todo corpo como um feixe
de dores. A consciência ainda não se tinha em si, mas ele
sabia que estava algures, de rastos e perdido em lugar ermo.
Era noite, junto à praia, pois as pernas oscilavam com as
ondas, e tinha uma das mãos enterrada na areia. A outra
apertava a longa barba grisalha. A sua mente cerrada
submergia pela íntima adversidade, qual turbilhão de trevas
que o tivesse desorientado da empresa primordial. A luz
que até ali o trouxera, desde o fragor dos monstros, a esmo
do astrolábio entre as vagas da utopia, havia-se portanto
dissipado. Antes, quando o seu ânimo estremecia, ao pavor
da tempestade horrenda e com o esqueleto da alquebrada
nau a quebrantar-se, fora então o instinto exótico, a
fragrância flamejante a suplantá-lo, persistindo embalado
numa modorra sobrenatural, numa ansiedade física, pelo
devaneio sensual das sereias oceânicas. E todavia a qualquer
tempo, quando já rompia a aurora, Damião de Magalhães
recuperaria a arquitectura das memórias, a arqueologia do
imaginário – que eram a sua herança fundamental,
temerária, quanto ao destino de Portugal. Não mais Terra
Ignota ou Mar Incógnito. Convicto, contrafeito, o
Náufrago das Descobertas ergueu-se pois, despojou-se da
roupa esfarrapada e dos adereços pessoais, embrenhando-se
numa actualidade virtual ao assumir a original nudez
humana... Nada e o Centro do Mundo. Assim se faz
história. Em tortuosa caminhada, pela orla dos penhascos,
desde o Guincho até à Boca do Inferno, Damião de
Magalhães parou a mirar uns quantos gatos, que ali
acordavam, espreguiçando. Também ele estava meio
entorpecido, pelo frio e pela ansiedade, que lhe tolhiam
um paradeiro na cartografia de seu porvir. Ninguém
repararia em si. Ensimesmado. Mudo. Transfigurado. E,
no entanto, algumas mãos compadecidas de feirantes locais,
que já abriam as tendas para o negócio, permitiram-lhe
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preservar o aspecto com vestimentas várias que,
precariamente, o indiferenciavam entre a
contemporaneidade. Aliás, o que era Damião de Magalhães
senão um viajante paradoxal, uma testemunha
incongruente? A humildade. Com a firmeza de quem, no
horizonte em brumas, sublimou e perverteu um risco
visionário. Por conseguinte, deveria confinar-se. Encerrado
numa caixa tumular - estanques cada um dos lados cardeais,
o quinto infinito e o sexto, por onde entrara, tornado
inexistente como a sua condição essencial - não haveria
mais pontos de orientação que o relacionassem,
convertendo-se apenas numa efeméride onírica,
referenciada com a identidade pátria e a demanda da
liberdade. E no entanto, o fantasmagórico Damião de
Magalhães atravessara já Cascais, espantado e escorraçado
com os sinais dos tempos, prosseguindo um erradio litoral
para as bandas de Lisboa. Estava, afinal, com o sol em
ocaso, nesse cúmulo telúrico que lhe havia sido familiar,
Belém, onde e quando se tornava ilíquida a fusão de marés,
entre Tejo e Atlântico. Ali, Damião de Magalhães foi então
surpreendido por uma populaça que, aos morras e vivas,
se acotovelava entre a língua das águas e uma edificação
monumental. O efémero e o eterno. Do morro
descampado, em transe, que um dia ele conhecera,
mantinha-se apenas uma porção de ervas e árvores, posta
à qual aquela turba humana pudesse restituir um frémito
providencial. Inquieto, extrovertido, Damião de Magalhães
ia-se teimando de que apenas lhe prezaria um qualquer
refúgio solitário. Agora, que recobrava em razão, de onde
ousara por megalomania. Sem glória, encoberto, ante o
dissoluto e o ouropel. Onde o céu levantara a névoa,
dissipar-se-ia o seu fascínio. Quando o escorbuto não o
vitimara, torturavam-no já os escrúpulos. Fiel aos desígnios
íntimos, fora traído pelos caprichos do Império. E ele, que
presenciara o passado a soçobrar, pressentia antecipar-se
uma ruína. Que instigaria, pois, aquela gente variegada?
Raça ruim? Por que fatalidade lhe escorreriam lágrimas pelo
coração, ferindo-se afinal numa revolução sem sangue
derramado? Herança extinta ou heresia funesta. Eis o arrojo
visceral, a quimera catártica, que um premonitório Damião
de Magalhães vislumbraria, reinvestido em tal derradeiro
crepúsculo sobre o cais místico da Ibéria. Futuro. Arcaica
a missa de resgate, ou além da missão apologética. Um
futuro espúrio de rituais, em que a pura rotina se
inspirasse... Como num mistério, com os olhos bem
abertos imagina o que vê. Como num enigma, vê o que
imagina com os olhos bem fechados.
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57 - Maria João Worm (Os Coleccionadores)
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Ao cimo das escadas uma porta, tinham-lhe dito
para esperar ali que era o próximo a ser atendido. A sala
de espera estava confinada a um pequeno hall que dava
acesso a três portas cinzentas lacadas com puxadores em
aço inox, embutidas em paredes verdes florescentes,
pintadas de fresco. Havia um balcão alto entre duas portas,
com a administrativa atrás, de pé, os cotovelos assentes no
topo com as mãos a segurar a cara, a ler uma revista
qualquer ali pousada, indiferente ao resto.
Vários homens e mulheres estavam espalhados pelo
pequeno espaço, todos eles vestidos com os mesmos fatos
vermelhos. As três cadeiras existentes estavam ocupadas
pelos mais velhos, que nem eram assim tão velhos, talvez
entre os cinquenta e os sessenta anos, e os restantes onde
se podiam enfiar, uma mulher grávida sentou-se em frente
ao balcão e acabou por ocupar o resto do espaço existente.
Quando o jovem entrou, deu um passo e foi barrado pela
grávida, que estava entre ele e o balcão. A administrativa
levantou ligeiramente os olhos, aborrecida por mais uma
O jovem subia um lance de escadas, de cabeça
baixa, passos hesitantes com medo de qualquer coisa, de
vez em quando roda o corpo, olha para trás e segue em
frente. Apesar da aparência de adolescente, algumas rugas
de preocupação traiam a idade e a descendência asiática é
bem notória, não fosse o cabelo castanho, cortado rente e
os olhos cor de amêndoa num rosto pálido, podia passar
por raça pura. É um jovem pequeno, como se em algum
ponto da sua vida tivesse parado de crescer, e de uma
magreza em recuperação, que se reconhecia pelo rosto
ossudo e as mãos cadavéricas, únicas partes do corpo que
revelava, todo o resto estava escondido dentro de um fato
de macaco vermelho com o estampado das costas a dizer:
REABILITAÇÃO
intrusão. E não era por pouco, já quase que não havia chão
desocupado, estava um calor seco agoniante e um cheiro
a suor e flatulência começava a inundar o lugar.
- Mais um? Isto hoje não para. Têm de parar de
enviar todos ao mesmo tempo! Como te chamas?
- Não sei senhora.
- Qual é o teu número de processamento?
- 441, senhora.
Ela fez um gesto com um dedo no ar e surgiu a sua
frente, vindo do nada um ecrã tátil.
- Hummmm, haaaaaa, sim, aqui está. Já tens
nome. – Revelou com impaciência. – Não foste
informado? Joshua Lang, parece muito apropriado, que te
parece?
- Parece me bem, senhora.
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- Ótimo, agora senta-te, espera como os outros, ou
fica de pé, como quiseres, vão-te chamar pelo nome.
O jovem permaneceu no mesmo lugar, não havia
muito mais espaço mesmo para se mexer. A grávida
encolheu as pernas para lhe dar um pouco mais de espaço,
e isso foi apreciado. Sorriu-lhe e agradeceu baixinho. Ela
respondeu:
- Eu ainda não tenho nome, mas ela já tem, vai
chamar-se Maria. - Sorriu com uma boca de dentes
castanhos esburacados. Não parecia muito incomodada
com a dentição podre, mas àquela distância o jovem sentiu
o mau odor vindo daquela boca e conteve-se para não
demonstrar o incómodo. Afinal estavam todos ali pelo
mesmo, tinham sido reciclados, processados e iam refazer
a vida a partir do nada de consciência tranquila, diziam
eles.
Joshua, chamava-se Joshua, o nome parecia-lhe
estranho como tudo o resto. Tinha um vislumbre muito
ténue da sua vida passada. Em algum ponto do tempo
nasceu, teve uma mãe, um pai, uma irmã bebé, sim tinha
uma ideia de uma irmã, uma família e era amado. Depois
deixou de merecer o direito a ser amado. Sabia o que tinha
feito, do que era acusado, que tinha assinado um papel que
consentia em todo aquele procedimento invés de vinte e
cinco anos fechado num estabelecimento prisional. E
aquela mulher tão grávida, que teria ela feito? Parecia feliz,
cansada, mas feliz, seria a proximidade da maternidade?
Ele só tinha dúvidas, seu espírito permanecia num
estado geral de confusão, em que tudo lhe parecia
alienígena e ao mesmo tempo familiar, talvez fruto da sua
natureza ou de alguma estranha reação aos químicos com
que tinha sido processado. Seria isso, tinha que ser um
bom exemplo de processamento, para justificar o dinheiro
Estava ali sem nada, era um composto de nada a
aguardar para saber como ia pagar a sua dívida ao estado,
contudo perante aquela mulher, teve um vislumbre de
outra mulher assim tão grávida. Um vislumbre do que
perdera, de outra vida que já não era sua e foi invadido por
uma dor estranha, a dor da perda de algo que não recordava.
Uma porta abriu-se e um homem enorme e
volumoso saiu do seu interior, ao sair comprimiu dois
utentes, passou por sima de um terceiro e quase que o levou
com ele à frente. Estranhamente, o seu cheiro fresco foi
um alívio e um prazer para os seus sentidos. O homem
pousou-lhe uma mão enorme no ombro direito, pregoulhe
uma palmada valente nas costas, e soltou um: - Boa
sorte na próxima vida, Joshua!! - E o jovem já transpunha
em desequilíbrio a ombreira da porta agitando os braços
finos, quase caindo com aquele gesto de boa disposição.
Assim que recuperou o equilíbrio voltou para trás para
reclamar, mas encontrou apenas uma porta fechada, ele
trancado no seu interior, sem saber bem como aquilo
aconteceu
Ali no gabinete as paredes eram beges e havia
quadros a embelezar o espaço de jardins paradisíacos, o
chão estava coberto por uma carpete de pelo curto, e ao
fundo estava uma secretária longa com duas poltronas
confortáveis à frente. Atrás da secretária estava a sua agente
condicional sentada numa cadeira de costas altas que,
parecia, mexia-se com ela, acompanhando os movimentos
do seu ocupante.
- Joshua, podes avançar! Como te sentes hoje? –
Ela levantou-se e inclinou-se ligeiramente para lhe estender
uma mão que ele aceitou e apertou timidamente. Era uma
mulher ainda jovem, talvez uns quarenta e pouco anos,
uns quilos a mais, de rosto redondo e simpático. Depois
dos contribuintes na sua reabilitação.
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dos cumprimentos, voltou para o seu lugar e Joshua
sentou-se numa das poltronas.
- Ansioso Senhora, cansado, mas aliviado.
- Mas é claro, é tudo normal nesta fase do
tratamento. E ainda deves estar confuso, talvez tenhas
recordações.
- Não senhora, nenhuma, estou totalmente
limpo.
- Não precisas de ter medo ou vergonha se tiveres
alguma recordação. Estamos aqui para te ajudar nesta fase
da tua vida, a transpor qualquer obstáculo para a tua
reabilitação. Vais continuar o tratamento durante mais
algum tempo e depois vais ver que gradualmente vais
compreender que não será mais necessário. Alguma
pergunta?
- Sim, há algo que me incomoda. Sou mesmo outra
pessoa? E se a minha natureza se revelar igual ou pior do
que a anterior? E se recordar que sou um homem mau?
- Não és um homem mau, acredito que nenhuma
criança nasce má, foste apenas vítima das circunstâncias,
por isso existe este programa, para pessoas como tu, que
querem mudar, que trabalham para isso e tu és um
excelente exemplo, não te esqueças que os candidatos são
rigorosamente escolhidos e a mudança tem que começar
antes do início dos tratamentos. Eles não funcionam com
resistência. Estamos muito felizes com o teu desempenho
Joshua, desde o início demonstraste que estás disposto a
mudar e transformares-te num membro útil da sociedade.
Estás pronto? Sentes realmente que estás pronto a voltar
lá para fora?
- Sim! – Respondeu com convicção, era isso que
sentia, mais do que tudo, naquele momento, queria viver,
estar integrado, fazer parte de algo, de um grupo, de uma
erguida, sem vergonha. Ter um emprego, comprar uma
casa, ter uma mulher e filhos. Sim, iria ter muitos filhos.
O seu rosto expressivo quase que revelava todos os
seus sonhos e isso pareceu agradar à Agente da
Condicional. Contudo, Mariane Shart não estava nada
agradada, fazia o seu trabalho como sabia, de forma
meticulosa e profissional, as suas perguntas eram iguais
para todos, o discurso idêntico e os medos e receios dos
reclusos processados eram todos os mesmos. Aquele caso
em especial parecia-lhe uma afronta, uma criança-soldado
transformada em assassino especialista em emboscadas.
Um criminoso de guerra sem remorsos responsável pela
morte de centenas de civis indefesos. Tinha lido o ser
processo e sim, se existiam homens maus ali estava um
homem mau a quem tinham dado a oportunidade de se
redimir. E ainda por cima com uma carta de recomendação
do presidente da Nova Aliança para um perdão total em
cinco anos de bons trabalhos efetivos. Sim, não podia ir
contra isso, a sentença já tinha sido emitida, ela estava ali
para lhe dizer isso, mas por que lhe facilitar a vida?
Porque ele tinha que ser beneficiado enquanto
outros tinham que cumprir todos os 25 anos de pena?
Porque os direitos eram mais direitos para uns do que para
outros? A eterna pergunta que ficou desde Antígona. E lá
fora à espera de ser chamada estava Isabel, uma mulher
que matou o marido abusivo apenas para proteger a filha
por nascer. Ia criar e educar uma criança nas mais duras
condições e nunca renunciou à sua carne.
A guerra tinha terminado, mas as injustiças eram
sempre as mesmas.
Mariane era uma profissional experiente e estava
preparada para algumas injustiças, acreditava no programa
e era uma das suas maiores defensoras. Contudo não ia
sociedade, onde fosse aceite e podia andar de cabeça
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facilitar. Joshua tinha 5 anos de dívida para pagar ao
estado, ia pagar essa dívida como se fossem 25 anos.
- Fico muito feliz Joshua. Não esperava outra coisa
da tua parte, na realidade tenho uma excelente notícia para
te dar. O teu empenho foi tão notório que foste
contemplado com o perdão presidencial.
- Como assim?
- Vais cumprir apenas 5 anos. – Revelou
cândida. Como ele pareceu chocado com a ideia,
insistiu. – E então, que cara é essa? É razão para
comemorar. Nunca colocaste esse perdão em
hipótese?
- Não senhora, pensei que esse perdão não
fosse para assassinos.
- Joshua Lang não és um assassino. Na
verdade… - O seu rosto abriu-se num largo
sorriso, como uma serpente a lançar uma
instruções dos termos da condicional e uma
identidade nova. Não sabia o que o futuro lhe
reservava, mas apesar dos alarmes, estava muito
otimista.
Assim que Joshua saiu, Mariane mandou
entrar Isabel Sanches, a nova identidade de Maria
do Rosário Boceiro, sobre a sua mesa tinha a vaga
deixada para estudante de Farmácia no Polo
Universitário da Atmosfera Sete da Colónia Lunar,
que tinha vindo com o perdão presidencial.
Mariane sentiu-se muito satisfeita consigo
mesmo, enquanto a presidiária entrava agarrada à
barriga, também ela ansiosa, cansada, mas feliz. E
como ia ficar feliz no final daquela entrevista, e as
oportunidades que aquela criança teria, educada
num meio académico!
armadilhá - Joshua Lang és um operacional dos
estaleiros de construção da Wait Corp. Tens noção
do privilégio? Se os próximos 5 anos correrem
bem, podes acabar com um contrato generoso e
continuar nas instalações. O que achas?
- Não sei senhora, onde fica isso mesmo?
- Na órbita de Europa, uma lua de Júpiter.
Joshua ficou um pouco confuso, apesar de
não ter memória, uma sirene de alarme soava
dentro da sua cabeça como um aviso de perigo.
Contudo, não protestou, levantou-se e apertou a
mão que a agente condicional lhe estendeu, como
a resolução de um contrato. Saiu dali com as
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67 - Andro Malis