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MOLUSCONTOS

Faça parte da nossa aventura canábica. Taqui uma prezinha do que vai ser o livro MOLUSCONTOS: 20 contos ilustrados + álbum Figuraças do Mundo Molusco + 16 páginas de HQ! Ainda estamos em campanha de financiamento coletivo no catarse.me/moluscontos

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Criado por Ulisses Oliveira e Ilustrado por Leandro Assis

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Eu tentava lavar a Fiat Prêmio 1 cansada de guerra, enquanto

Charlinho Satã andava de um lado pro outro

com um copo de vodca paraguaia na mão.

CHARLINHO SATÃ: Faz força, Molusco. Parece até que tá

morrendo.

E não deixava de ser uma verdade. Eu já tava esfregando aquela

porra mais que o Daniel San, e nada de soltar as cracas. Anos de

lama acumulada. Eu nem lembrava mais como era a cor original

da Prêmio. Joguei a toalha.

MOLUSCO: Aí, desisto, prefiro deixar o carro chapiscado de

lama, assim ninguém encosta nele.

CS: Desiste não, a gente tem que chegar lá apresentável,

não esqueça.

ML: Já esfreguei tanto esse carro que tô até com medo de

sair um gênio maluco aí de dentro, mané. Se quiser pode

assumir o serviço, até porque você não fez porra nenhuma.

CS: Minha parte eu já fiz, descolei o encontro com duas gatas.

ML: Humm… Defina gatas? Não fode... teu parâmetro é

pior que o do Dentola, E olha que o dele é todo zoado. Não

esqueça que você pedalou Carla Caralhinho.

CS: Na verdade, foi ela que me pedalou.

ML: Não sei o que isso significa, mas sei que não melhora

em nada.

CS: Cara, confia em mim... Dessa vez não tem erro... Karen

e Leandra. Um sonho com uma ameixinha em cima. Duas

1 É um Fiat Uno Sedan, você não conhece pq tá fora de linha desde 1994.

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gatassas, Molusco. Aviso logo que me interessei pela Karen,

então pode tirar o cavalinho da chuva.

ML: Já entendi que Karen é mais gata que Leandra, ou menos

esquisita. Mas como você tem um gosto tosco, isso

pode acabar sendo bom pra mim.

Às oito em ponto, cheguei na casa de Charlinho. Quando ele surgiu

arrumadinho, perfumado com seu Leite de Rosas, eu tive a

certeza que a gente formava uma dupla muito da bizarra. Charlinho

tava uns dez quilos acima do seu peso normal, que já era dez

quilos acima do normal de qualquer pessoa. Vestia uma camisa

hippie, azul, manchada, daquelas que parece que jogaram tinta

no liquidificador. E nos pés uma conguinha pirulito 2 toda cagada

de lama. Ai, meu Deus, a noite não prometia. Só que eu não podia

falar nada, tava com o shape do Stay Puff, aquele boneco de marshmallow

do Caça-Fantasmas. Tava todo esquisito, com uma camisa

do Pixies com um tiro de bazuca no suvaco. Uma calça cinza, a

única que eu tinha, parecia calça de espantalho, toda puída, e um

cadarço de All Star pra fazer de cinto. Um tênis todo remendado

de silver tape que quando balançava parecia uma boca de jacaré.

Dinheiro? Nem pensar, o que tinha era um cartão de crédito no

limite e uma confiança sem limites. Partimos.

As bikes moravam no bairro próximo, chegamos no lugar dez minutos

antes do combinado, paramos numa praça e ficamos esperando.

Estava a maior tensão no carro. Às nove em ponto, surgem

dois seres vindo lá de longe. Só dava pra ver as silhuetas.

CS: Fala aí, são ou não são gatas?

ML: Rapaz, daqui só dá pra ver o seguinte: a da esquerda

2 Vocês não sabem o que é uma conguinha pirulito? Era um tênis feio pra caralho,

usado em educação física, que tinha duas listinhas na lateral..

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não dá pra saber se tá de frente ou de lado. Agora, a da

direita tem a silhueta igual a tua. E respondendo a tua pergunta:

não, não são gatas.

As mulheres se aproximaram e o que tava estranho de longe ficou

muito pior de perto. Caralho, eu vou matar o Charlinho, esse sem

noção de olho empenado. E olha que eram dois.

Elas vieram olhando pra nós e... passaram direto, mané. Ufa, não

eram elas. Charlinho Satã testava seu humor bizarro em mim. Ele

ficou rindo, com aquela cara larga e aqueles olhos juntos. De repente,

duas malucas aparecem no portão de um prédio. Será que Charlinho

deu uma bola dentro e iria finalmente se redimir com a vida?

ML: São elas, Satã?

CS: Nem são.

Bosta de vida. Elas se aproximaram da gente saltitantes e cheirosas.

A loira abordou o Charlinho.

KAREN: Charlinho! Foi mal a demora. É que a gente tava

passando batom.

Olha o Charlinho de novo fazendo graça, filho da puta. Só que dessa

vez valeu a pena... Na real, valeu muito a pena, Charlinho Satã

se redimiu. Foi aí que conheci a sorridente Leandra, com seus cabelos

escuros encaracolados, gordurinha no lugar certo. Um dente

da frente quebrado na quina, que dava um certo charme ou pala

que tomou um soco no meio da boca. Vestia uma calça jeans abaixo

da cintura, daquelas que cria um espacinho na frente, na direção

da virilha, que te joga direto pro paraÍso. Uma camiseta básica

branca, que denunciava ausência total de sutiã. Já a Karen era

outro style, grandona e meio espalhafatosa. Usava um shortinho

jeans uns três números abaixo do dela, igual o Charlinho, só que

nela ficava muito mais legal. Como diria o próprio Charlinho, era a

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bisteca pulando do prato. Cinto dourado, brincos dourados, blusa

preta e dourada, cabelos pintados de dourado, tudo dourado. E um

jeitão de que gostava de uma confusão, tudo a ver com Charlinho.

Charlinho Satã e Karen pularam pro banco de trás. Leandra e eu

na frente. Antes de virar a chave, perguntei:

ML: E aí, vamos pra onde?

CS: Como assim pra onde? Vamos meter, porra! Vamos pro

terelteltel!

Silêncio constrangedor, não sabia onde enfiar a cara. Eu mal tinha

me apresentado e o chimpanzé do Charlinho gritando que

queria meter. É um primitivo do caralho. Que que adianta ele se

redimir, se no fim acaba fudendo com tudo, né? SQN.

KR: Demorou! Só não pode ser no Taba!!!

Ah, tempos modernos, mas aposto que Leandra deve tá muito

bolada.

LD: Tô fora!

Viu? Minha percepção ainda andava tá aguçada. SQN.

LD: Do Taba, eu tô fora. Qualquer outro tudo bem, mas no

Taba não!

Nessa hora me senti um puritano virgem recém-saído do monastério.

Preciso andar mais com Charlinho. Uma coisa era fato: o

Taba era uma merda mesmo. Da última vez que fui lá não deu pra

abrir a porta do quarto porque algum filho da puta deu um jato na

maçaneta e parecia um ectoplasma.

Partiu rua dos motéis, lá na Barra! Coloquei um The Cure no toca-

-fitas 3 pra fazer um clima. A música mal começou e fui repreendido

por Karen.

3 Essa é difícil mesmo, quando as músicas eram gravadas em fita. Dá um Google

e descobre.

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KR: Que música chata é essa, hein? Parece música de velho.

Põe uma coisa boa aí!

Boys Don´t Cry música de velho? Porra, o que que essa maluca tava

falando? Quase chorei depois dessa. Mas apostei que Leandra gostava

de rock britânico.

ML: E você, curte um The Cure?

LD: Sei lá. pra mim qualquer coisa agrada, desde que não

seja aquela chatice de jazz.

É, começamos mal, mas que se foda-se, não ia casar com ela mesmo.

Troquei a fita pra algo mais porrada e fui esculhambado de

novo.

KR: Tá maluco, Molusco? Esse negócio não dá pra dançar!

Põe algo mais dançante.

ML: Pô, danço Nirvana até de escafandro! Nirvana é bem

dançante.

KR: Só se for dança da morte.Põe alguma coisa alegre, animada.

ML: Então diz aí o que você quer ouvir?

KR: Mete um SPC.

ML: SPC? Essa porra é com Charlinho, que não paga o cartão

de crédito. Aposto que tá fudido no Serasa também.

KR: Hihihi! Já vi que não entende nada de música. SPC é Só

Pra Contrariar, o melhor grupo de pagode do Brasil.

ML: Cara, tem tanta coisa errada nessa tua frase, que nem

sei por onde começar. Mas Só Pra Contrariar não vai rolar.

Primeiro, que eu não tenho fita dessa merda, e se um dia

tiver, é porque alguma coisa séria aconteceu comigo, tipo

tomei uma tijolada nos cornos e apaguei tudo que já ouvi

na minha fucking vida até agora.

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Seguimos com o rádio desligado, foda-se!

Parei o carro antes da rua dos motéis. Charlinho e Karen se jogaram

na mala do carro. Qual era a ideia? Queríamos pagar um

quarto e beber o outro. Minha comunicação com Charlinho se

dava através de um buraco onde um dia teve um tweeter. A Prêmio

toda fudida. Charlinho falava com o bico saindo pelo buraco.

CS: Molusco, tá me ouvindo?

ML: Em alto e bom som.

CS: Então acelera essa porra aí , senão vou começar as saliências

por aqui.

ML: Guenta aí, doido. Tamos chegando, parece um babuíno.

Virei o carro no primeiro motel, tinha uma faixa enorme: “não há

vagas”! Caralho, tinha esse detalhe: era dia dos namorados. Geral

resolveu meter. Tão errados não.

ML: Ih, fudeu Charlinho, tá tudo lotado. Vou ver o próximo.

CS: Vai logo, Molusco! Ae, você é o maior rato, tinha um garrafão

de vinho aqui na mala e nem falou nada, filho da puta.

Vinho? Que vinho? Que porra de vinho era esse que o Charlinho

achou? CARALHO! Não pode ser! Será que é o mesmo vinho de

quando fui pro Sana 4 com Marrisso? Se for, essa merda fazia dez

meses que tava na mala.

ML: Satã, filho de deus, não bebe essa porra, isso tá podre!

CS: Podre tá o teu rabo! Não fode, tem até uns sanduÍches.

Tu ia fazer uma surpresa, né? Molusco é pica.

Minha Nossa Senhora! Os sanduÍches de patê eram também

da viagem pro Sana. Aquela porra devia tá radioativa.

4 Cidade serrana no estado do Rio de Janeiro boa pra dar uns amassos e queimar

um.

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ML: Charlinho, não come isso. É patê de fígado e tá aí faz

quase um ano.

CS: Para de caô! Tá gostosão, com esse vinho então... Mandou,

Molusco!

Caralho, filme de terror. Eu só via o bico roxo de vinho do Charlinho

saindo pelo buraquinho do twetter, cuspindo pedaços de pão de

fôrma venenosos enquanto falava. Coisa bizarra. E nada de motel

com vaga. O segundo também tava lotado, assim como o terceiro.

Parecia aquele desenho do Pica-Pau: “Não há vagas! Não há vagas!”

Finalmente, depois de oito motéis lotados, consegui uma vaga no

famigerado Xaxaxá. Parei na cabine da entrada.

ML: Boa noite, amigão. Uma suíte com garagem, por favor.

RECEPCIONISTA: Tá aqui. Apartamento 115. É só seguir

reto, tá vendo, lá no final, aquela garagem virada pra cá?

ML: Belesma!

Girei a chave, arranquei. Fiquei olhando pelo retrovisor e reparei

que o recepcionista não parava de olhar pro carro, bolado pra

caralho, dando aquela coçadinha no queixo. Porra, o gordo do

Charlinho devia tá empinando o calhambeque junto com a Karen.

Aquilo ia dar merda.

Passei pelo primeiro de uma série de quebra-molas e ouvi um barulho

muito estranho vindo lá do porta-malas, uma espécie de

grunhido. Não acreditei que ele já tava metendo. Ia queimar a

largada.

ML: Porra, Zé-cu. Vê se fica quieto aí. O cara da recepção

tá bolado.

Passei por outro quebra-molas e de novo um som gutural, mas

dessa vez muito mais intenso. Espero que aquele puto não tenha

dado um jato no meu porta-malas.

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Entrei na vaga, saltei da caranga e arriei o portão da garagem.

Pela frestinha, entre o portão e a parede, pude ver o recepcionista

vindo na nossa direção. Fudeu, mané!

Destranquei a mala e falei baixinho pros dois:

ML: Aí, se finjam de mortos. O recepcionista tá vindo. Daqui

a pouco eu volto.

Bati a mala e subi. Dei mole: era pra ter trancado. Marquei um

tempinho lá em cima com Leandra, o que já deu pra dar uma esquentadinha,

e voltei pra libertar Charlinho e Karen.

Conforme descia a escada, escutei uns barulhinhos que aos poucos

se transformaram em vozes. Parei pra ouvir. Fui enxergando

todos de baixo pra cima.

CS: Juro, cara, eu não tenho a menor ideia de como como

fui parar na mala.

RECEPCIONISTA: Tá me achando com cara de babaca?

CS: Eu tô muito doido. Juro que não sei...

O recepcionista, puto, dando uma enquadrada em Charlinho, que

já tava fora da mala. Isso já seria péssimo, mas não era nada perto

da aparência de Karen, totalmente vomitada, com vários pedacinhos

de pão de fôrma espalhados pelo cabelo, pelo rosto, pela blusa,

pela porra toda. Parecia uma árvore de natal de filme de terror.

ML: Puta merda, Charlinho! O que houve, cara?

CS: Molusco, você passou pelo quebra-mola, aí não me

aguentei... Ainda tentei tapar a boca, mas saiu tudo pelo

nariz. Foi direto na palhaça da Karen. Dois jatos, um de

cada narina...

Karen começou a chorar. Eu não tava acreditando: o Charlinho

tinha mandado um exorcista nos cornos dela. Tadinha. E o recepcionista?

Esse tava nem aí pra nada, tava era puto pra caralho.

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RECEPCIONISTA: Quero que vocês saiam daqui imediatamente.

ML: Pô, Deixa pelo menos a menina lavar o cabelo.

RECEPCIONISTA: Vai lavar o cabelo na putaquiopariu! Quiseram

dar uma de espertos, agora se fodam pra lá.

CS: Mas a ideia era foder aqui mesmo.

ML: Poxa, seu recepcionista, chega aqui. A gente é jovem,

sem grana. A gente só mandou o truque da mala porque a

gente tá duro. Ou cê pensa que eu acho maneiro pular rampa

vendo Charlinho pelado na minha frente?!

RECEPCIONISTA: Foda-se! Vazem daqui!

Entramos na caranga e saímos humilhados do Xaxaxá. E o pior:

sem sexo, graças ao imundo do Charlinho. O cabelo de Karen fedia

que nem um bode morto. Não lembro de quem foi a ideia cretina

de lavar lavar o cabelo com água do mar, só sei que ela voltou da

água igual a um espantalho, com palha no lugar do cabelo. Show

de horror, filme do Zé do Caixão.

ML: E agora, o que que a gente faz?

CS: Ué, como assim o que a gente faz? Depois de tudo isso

que a gente passou? Vamos meter, porra!

KR: Tu tá maluco? Nem fodendo que a gente vai foder!

CS: Qual é, Karen? Vem cá, grandona. Não vai ser um acidente

de percurso que vai destruir nosso romance. Me dá

um beijinho.

Charlinho era muito sem noção. Sério que ele achava mesmo que

depois de toda a merda que ele fez, ia conseguir beijar a Karen?

Só se ela fosse maluca pra caralho. E era. Quando olhei de novo,

os dois já tavam atracados. Ele ainda tinha um pedacinho de pão

agarrado no queixo. Argh!

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Fomos pra estrada Intendente Magalhães, onde tinha motéis que

cabiam no nosso orçamento. Nosso não, no meu, porque Charlinho

não tinha grana nem pra comprar um pirulito Zorro 5 . Resolvemos

invadir o Shelton Motel. Quase bom, quase bonito e quase barato.

ML: Seguinte: cada um vai pegar um quarto, belesma? A

gente não pode correr riscos de dar outro show de horror.

CS: Acho bom, até porque eu não entro naquele porta-mala

todo vomitado.

ML: Isso aí é outra coisa que temos que conversar mais tarde,

Charlinho.

Pedi pro recepcionista dois quartos sem garagem. O cara entregou

as chaves do 302 e do 203. Perguntei pro Charlinho qual quarto

ele queria. Ele quis o 203. Bicho preguiçoso: tudo pra não subir

escada. Eles saíram do carro e sumiram. Estacionei e subi com

Leandra.

Quartinho honesto, das antigas. Spots coloridos por baixo da

cama redonda, um banheirinho confortável, espelhinho no teto,

controle do rádio num painel de aço escovado, tipo o painel do

Homem-Pássaro 6 . Valia vinte e nove e noventa, fácil.

Eu, todo garboso e romântico, sintonizei na “Good times 7 ” e tava

tocando Barry White, Just The Way You Are. Leandra saiu dançando

do banheiro com uma breja na mão, toda sexy. Porra, pensei,

a vida vale a pena. Me empurrou pra cama com o pé. Barry White

deixava a atmosfera lasciva e ela foi desabotoando a calça com um

charme que eu nem sei explicar. Ok, era hora de morfar!

5 Pirulito Zorro, um tablete de caramelo empalado num palitinho de madeira

com o próprio zorro na embalagem.

6 Sério que não conhece esse desenho animado da Hanna-Barbera? Em que ano

vc nasceu?

7 Rádio carioca que só toca trilha sonora de motel, música pra sacudir o esqueleto

pelado.

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Tava lá pulando rampa, feliz da vida, totalmente desconectado

do mundo, quando o telefone toca. Como assim? Foda-se telefone,

foda-se o mundo! O telefone parou, mas a gente não. Tava lá

todo feliz, chafurdando no céu, quando a caralha do telefone toca

de novo. Não era possível. Não dava pra ser feliz assim. Levantei

muito puto e fui atender aquela merda.

ML: Quem é?

KR: Molusco, pelamordedeus, corre aqui que o Charlinho

tá dando choque, ele tá morrendo!

Só deu tempo de me enrolar numa toalha e sair voado pelo corredor.

Por todos os deuses, o que que o Charlinho tinha aprontado

dessa vez?

Invadi o 203 com uma pezada na porta. Quando olhei, a Karen

tava enrolada num lençol, num canto do quarto, olhos arregalados,

chorando e rezando.

KR: Olha ali, Molusco, olha ali, ele tá morrendo!

Bicho, o Charlinho tava deitado nu na cama, cena por si só horrorosa,

os cabelos arrepiados como se tivesse mesmo energizado,

parecia um Freakazoid! 8 gordo.

CS: Mooollllusscccoooo… ELE agarrou em mim e agora eu

tá dando choque, é isso!

Ca-ra-lho. Charlinho aproximou a mão esquerda do braço direito,

e saíram umas fagulhinhas, iguais aquelas de magiclick 9 de fogão.

Bolei.

ML: Porra, isso é eletricidade estática, é de ficar de se arrastando

o rabo gordo no carpete.

CS: Eletricidade estática é o teu rabo. ELE tá agarrado no

8 É um desenho animado muito louco que passava na TV na década de noventa.

Vale a pena conferir.

9 Pistola elétrica pra acender fogão. Coisa de americano, não vingou por aqui.

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meu cangote. Me ajuda, Molusco.

ML: ELE quem, doidão? Tô vendo nada!

CS: ELE, porra! Pega esse travesseiro e bate nas minhas

costas pra ELE desgarrar.

ML: Hã? Como assim?

CS: Bate nas minhas costas, animal. Bate com força! Anda

logo!

Peguei o travesseiro e comecei a espancar o Charlinho

Satã.

CS: Mais forte, porra! Tipo pai mau 10 !

Eu tava largando a porrada de verdade. Nisso a toalha já tinha caído

há muito tempo. De repente, passou uma tiazinha empurrando

um carrinho cheio de vassouras, rodos, essas porras. Charlinho

apontou pra porta e berrou.

CS: Molusco, pega uma vassoura que ELE vai desgarrar!

Caralho, se eu não tava entendendo nada, imagina a tiazinha...

Cara, catei uma vassoura parruda, dessas largas. Mirava nas costas

gigantes do Charlinho Satã e largava o braço, parecia um rebatedor

de beisebol.

Ele gritava como um porco, com a porra do cabelo em pé. Karen

gritava e rezava. Leandra chegou e foi rezar com Karen. E a tiazinha?

Foda-se, a tiazinha puxou um cigarro do bolso, acendeu e

ficou rindo, assistindo o show de horror. Tá certo, pra quem limpa

gozo, sangue, merda e mijo o dia todo, nada como um pouco

de diversão.

CS: Não deu certo... pega o rodo, pega o rodo!

Caralho, o rodo era daqueles de metal, pesado. Me aproximei e

a tiazinha me entregou, nem precisei pegar. Tava curiosa com

10 Chiste com o personagem Pai Mei, do filme Kill Bill, do Tarantino. Se vc não

viu, que se foda-se e segue a leitura.

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o desfecho. Pensei comigo: “caralho, vou estropiar a espinha do

Charlinho”. Mas ele tinha estrutura. Dei mais meia dúzia de rodadas,

já tava com o braço doendo de bater quando ele deu um grito

de liberdade.

CS: AHHHHHH! Desgarrou, porra! ELE desgarrou! Vou pro

chuveiro!

ML: Que chuveiro, tá maluco? Você vai morrer eletrocutado!

Fui devolver o rodo e a vassoura pra tiazinha, que tava com

o sorriso de quem ganhou o dia. Ah, alguém feliz nessa história.

Corri pra ver o Charlinho no chuveiro. Ele tava desmaiado,

mas pelo menos tava vivo. Fechei o chuveiro pra

ele não se afogar e voltei pro quarto.

ML: Karen, que merda que vocês arrumaram?

KR: Sei lá! A gente tava pelado na cama e eu falei pra ele

que fui num pai de santo.

Pensava eu no meu canto: que porra de assunto propício pra se

falar antes de trepar.

ML: Hum, e daí?

KR: Falei que o pai de santo me disse que o Zé Pelintra queria

falar comigo.

ML: Hum, que mais?

KR: Daí que o Charlinho dobrou a pele das pálpebras pra

cima e falou “Eu sou o Zé Pelintra, e vou te comer todinha.”

Daí ele começou a dar choque.

Caralho, não sabia o que pensar. Na real, pensar era a última coisa

que deveria fazer naquele instante. De repente, surgiu o Charlinho

na porta, nu.

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CS: Ué, Molusco e Leandra aqui no quarto? Aí, o que que

houve? Vai rolar surubão?

Cara, ele simplesmente não lembrava de nada.

Óbvio que não rolou surubão. As minas tavam em estado de choque.

Pegamos as coisas, pagamos e fomos embora. Geral bolado.

Leandra foi atrás com a Karen, que não queria tocar no Charlinho,

com medo de choque. Liguei o rádio pra acalmar os nervos e começou

a tocar “Bat Macumba”, dos Mutantes. Nessa hora desceu

um frio na espinha, daqueles que vai da nuca até o cu.

Desliguei o rádio e fomos pra casa, em silêncio.

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Dentola contava a última aventura sexual dele enquanto

a gente cruzava a ponte Rio-Niterói. Ele ria a

cada duas frases, e a história era de fato sensacional. Mais sensacional

era ele continuar vivo fazendo tanta merda. Na aventura

que Dentola contava, em meio a cuspes exaltados, ele conseguiu

escapar dum coroa traído e armado, pulando duma cobertura

pra outra e implorando pro vizinho não entregar ele. Isso depois

de ficar 20 minutos escondido dentro dum isopor gigante. A

chance de ser verdade era remota, mas que se foda-se, era uma

boa história.

Ejetei o CD do The Cure que tocava pela segunda vez e coloquei

Mutantes pra gente climatizar. Bugalu, que andava meio desligado,

despertou rapidinho quando Dentola apertou um dedo de gorila.

Assim que pegamos a Niterói-Manilha, começamos o ritual. A gente

fechou a janela pra não dividir o beque com o vento. Dente acendeu

a sardola e puxou como se não houvesse amanhã. Eu e Buga esperamos

ele compartilhar, e nada. Pelo visto não haveria amanhã

nem depois de amanhã. Dente é foda, tem fita dupla-face no dedo.

BUGALU: Qual é Dentola? Passa aí, mané!

Dente, muito lesado, apertou um botão no som, a música pulou

pra segu inte e o Buga pulou junto.

BG: Não é pra passar a música, é pra passar a sardola!

Finalmente o beque começou a rodar, e toda vez que chegava

em mim, chegava babado. Isso era coisa do Bugalu, que fumava

como se tivesse mamando num mamilo. Reclamei, o que obviamente

não adiantou nada: a vida é essa porra mesmo. Mais cinco

rodadas e o beque se desintegrou junto com os nossos cérebros.

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A viagem ficou mais relax. Pé pra fora da janela, velocidade de

cruzeiro cravado em cem por hora - até por que é o máximo que

a Prêmio chegava -, e um ventão rolando que dava pra soltar pipa

dentro do carro. Bem, era isso que a gente tinha feito cinco minutos

antes.

Chegamos em Casimiro de Abreu no modo panqueca e a fome já

tinha dominado nossas almas. A gente percorreu a cidade e não

tinha nenhum estabelecimento aberto. A larica monstra transformou

Buga e Dente em dois velhos rabugentos. Eles começaram a

reclamar mais que o normal deles, que já era anormal. Eu fiquei

calado, economizando saliva.

BG: Fudeu... vou morrer de fome, preciso comer!

DENTOLA: Deve ter tido alguma praga nesse lugar, não tem

ninguém na rua. Tá bom pra gravar filme de zumbi.

Por falar em zumbi, Buga avistou um parado na beira da estrada,

do lado da barraquinha de cachorro-quente. Ele berrou na minha

orelha.

BG: Não acredito, comida! Vira, Molusco!

Cara, aquela barraquinha devia estar na beira da estrada desde

quando construíram aquela estrada. Rolava uma película de asfalto,

composta de poeira e monóxido da casa do caralho, que revestia

toda estrutura da barraquinha e os ingredientes. Aposto

que se jogar uma moeda na travessa de molho ela não afunda por

nada. Isso era muito bizarro, mas menos bizarro que o vendedor,

que também tava revestido com a película imunda. Parecia um

boneco de cera de museu bizarro. Ele falou com uma voz de filme

de terror.

COROA: O que vocês querem?

BG: Quanto é o dogão?

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COROA: Dois e cinquenta.

BG: Faz três por sete e cinquenta?

O vendedor respondeu que sim e Buga comemorou como se tivesse

negociado bem. É, isso explica muito do nosso amigo.

COROA: Vão querer de quê? Só tem duas linguiça e uma

salsicha.

Dente e Buga pediram as de linguiça, não me dando chance de

escolha. E os putos sabiam que eu prefiro de linguiça, ratos. O

tiozinho pescou as bichas da panela. Elas tinham uma coloração

verde metálico. Caralho, pensando bem, não preferia mais não.

Não acreditei que eles iam comer aquela merda. O problema não

era a linguiça ser verde, o problema era ser metálica. Tudo que

é metálico é mais foda, né? Só que é foda pro mal. Basta pensar

na mosca varejeira, que é muito mais foda que qualquer mosca

do planeta. Voa de ré e os caralho... parece um drone! A alface é

verde, mas você comeria se ela fosse uma alface verde metálica?

Agora imagina uma linguiça.

MOLUSCO: Como isso não, seus malucos. Essa porra veio de

Chernobyl!

DL: Tá falando isso pra pegar a de linguiça. Não fode, Molusco!

Não é possível que esses dois não tenham se incomodado com as

linguiças verde metálicas. Esses putos tão daltônicos.

COROA: E você, branquelo, vai na salsicha, né?

Tiozinho simpático esse. Dei uma olhada na salsicha, que tava cinza.

Sou mais cinza que verde metálica.

BG: É serve-serve?

O vendedor fez um “sim” com a cabeça, e eu achei que a cabeça dele

fosse desencaixar e sair rolando. Ele passou pro Buga uma colher

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de plástico com cara de usada. Dentola pediu uma colher também.

Os dois encheram o saco plástico que acomodava o cachorro quente

com tudo que tinha disponível: pimentão, cebola, tomate, bacon,

ovo de codorna, batata-palha, passas, milho, ervilha, queijo

ralado e monóxido da casa do caralho. Eles traçaram de cima pra

baixo, quando tocavam as linguiças sinistras, abasteciam a porra

toda e repetiram a dose. Eu comi no modo minimalista, abusando

pouco dos condimentos radioativos. Apesar da aparência, o cachorro-quente

estava bem bom; pelo menos era o que meu cérebro

amarrotado e lariquento queria acreditar. Trinta minutos

depois, terminamos o lanche, montamos na Fiat Prêmio cansada

de guerra e partimos rumo ao Sana .

A estrada tava toda fodida e a noite era um breu. Isso obrigava a

gente a ir a uns 15 km por hora. Ou seja, duas horas esmerilhando

a Prêmio, coitada.

Dentola e Buga, falando que nem duas cacatuas. E o assunto não

podia ser outro: mulher. No auge dos vinte um anos a gente não

sabia de muita coisa, mas achava que sabia. Todo mundo contando

mentiras, até que, de repente, Dentola se calou. Logo ele, que

foi vacinado com agulha de vitrola.

ML: Qual é, Dentola, tá passando mal?

DL: Acho que foi a azeitona que não bateu bem.

ML: Qual azeitona? Aquela que você comeu junto com uma

mosca varejeira gigante no formato de linguiça? Tu só

pode tá de sacanagem? Mas ó, qualquer coisa, fala que eu

encosto aí pra você destruir um formigueiro.

DL: Não precisa, tá tranquilo. Já passou.

Dirigi mais um bocado e, de repente, a luz do luar refletiu na testa

de Dentola. E lá tava ela, imóvel e multicolorida: A GOTA! Ela bro-

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tava geralmente no lado esquerdo da testa. É uma espécie de aviso

que o corpo vai colapsar a qualquer momento. Pobre Dentinho,

que ria com seus trezentos e cinquenta e sete dentes, sem se dar

conta do que estava por vir. Preferi não avisar pra não afetar seu

já zuado psicológico. Por volta das vinte e três horas, a gente chegou

no Sana. Lugar pacato. A cidade era tão pequena, que atrás

da placa de "bem-vindo", tá escrito "volte sempre". Passamos por

um bar que rolava uma sinuca e, nas caixas, Hendrix tacava fogo

na guitarra. Tinha umas hippies malucas mamando umas latas de

cerveja lá dentro.

DL: Caralho, para o carro Molusco, a gente tem que estar ali.

ML: Não é melhor deixar nossas coisas na pousada e voltar?

DL: Sei lá, porra. Só sei que temos que estar ali.

Achamos uma pousada riponga quinhentos metros à frente. Jogamos

nossas mochilas no quarto e voltamos voando pro boteco.

O lugar era astral. Posters de rock, mandalas penduradas, chão

de madeira prestes a quebrar e várias bikes perdidas. Tá bom, tá

bom, na real, só tinham três minas, bem estilosinhas. E a gente?

Três, mais ou menos. Na verdade, bem mais pra menos. Elas tavam

jogando sinuca numa mesa toda empenada. Compramos umas fichas

e umas cervejas e pedimos pra jogar com elas. Toparam.

ML: Olá. É mata-mata?

CLARA: Sim.

ML: Prazer, eu sou Molusco. Aquele esquisito ali é o Dentola,

e o feioso é o Buga. Elas riram, bom sinal.

CL: Eu sou Clara, aquela esquisita ali é a Ana e a feiosa é a

Elaine.

Clara tinha um metro e sessenta de puro senso de humor e uma

bela bunda, com todo respeito. Ela tava com uma calça cintura

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baixa, muito baixa, pra falar a verdade, e marcava aqueles estabilizadores

de polegar na parte de trás. Saca os dois furinhos perto

da cintura? Demais isso. Já a Ana era grandona, um e oitenta, e

lembrava a Cheetara, dos Thundercats. Tinha olhos azuis e cara

de tarada. Pelo menos eu queria acreditar que era. Ela usava um

VTM, vestido de tecido molinho, que revelava curvas interessantes.

E tinha a Elaine, uma branquela de um metro e setenta, corpinho

de modelo, com sardas na cara e aparelho nos dentes. Vestia

uma calça jeans desbotada e uma camiseta Hering sem sutiã, que

marcava uma bela jujuba no pudim, se é que vocês me entendem.

Elas também nos escanearam. Imagino a decepção.

DL: Quem mata-mata com quem?

Elas riram de novo. É isso, somos feios, mas somos simpáticos.

Buga, servindo breja pra geral, manda a malandragem:

BG: Sou mais formar duplas de casais, pra gente não tomar

uma surra de vocês, já que a gente não joga nada.

Elas concordaram e Dente se antecipou e escolheu a Ana. Esse

puto sempre gostou das altonas. — É igual surfar de pranchão,

Molusco — ele sempre dizia isso.

ML: Agora vocês escolhem.

CL: Vou querer o Molusco.

ML: Fale mais, fale mais...

ELAINE: Jogo com o Bug então.

BG: Melhor escolha.

O jogo começou, assim como nossas investidas. A gente estava

muito solto naquela noite, falando várias merdas. De repente,

uma trovoada sinistra interrompe o Jim Morrison e apaga o bar.

Clara me abraça, dizendo que tem medo de escuro. Larga mais,

São Pedro! Quando a luz voltou, todos estavam se pegando. Volta-

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mos a jogar, agora de casalzinho, e quando chegou a vez de Dentola,

ele ficou estático: parecia concentrado, mas não no jogo.

ML: Vai, Dentinho, é tua vez.

Ele olhou pra mim e vi terror em seus olhos. Ele torcia o taco com

desespero. Outro trovão pipocou e não acreditei no que vi refletido

em sua testa tensa: era ela de novo, A GOTA, manégléglégléglé!

Deus tenha piedade do Dentola. Ele se aproximou, pálido.

DL: Molusco, me dá a chave do carro.

Me atrapalhei pra tirar as chaves do bolso.

DL: Rápido, maluco! Pelamordijesuscristo!

Entreguei as chaves pra ele, que correu pro carro. Entrou, virou

a chave, mas não arrancou. Deitou a cabeça no volante, levantou,

respirou fundo e saiu do carro. Passou por nós numa marcha

olímpica, jogou a chave pra mim e se trancou no banheiro. Jogamos

várias partidas e bebemos várias cervejas esperando nosso

amigo querido. Quarenta cinco minutos depois, a porta do banheiro

abre. Sai Dentola, encharcado de suor, pálido... quer dizer,

mais pálido que quando entrou. Parecia um morto-vivo. Ignorou

a gente, foi até o balcão, falou algo pro dono e os dois saíram do

bar. Quando eles voltaram, não acreditei no que vi: ambos carregavam

baldes cheios de água e foram direto pro banheiro. Porra,

isso sim é ser um cidadão modelo. Você teria coragem de falar pro

dono do bar que explodiu a privada dele de tanto cagar? Dentola é

foda! Eu nunca teria essa coragem, preferia morrer, sério mesmo.

DL: Molusco, eu vou no hotel tomar um banho, cara, tô podre.

Se elas perguntarem por mim, diz que fui pegar uma

sardola.

Beleza, fiquei com Buga e as malucas no bar, secando umas garrafas.

Elas estavam tão doidas que nem perceberam que Dente deu

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um show de horror. Depois de 30 minutos, chega Dentola todo

cheirosinho.

ANA: Ué, trocou de roupa?

Claro que trocou, e espero que tenha tocado fogo na roupa cagada.

Só quero ver a desculpa que ele vai dar pra Cheetara.

DL: Então... Fui pegar uma sardola, só que escorreguei na

lama gigante e me caguei todo. Aí já viu, né? Tive que tomar

um banho.

Dentola ardiloso.

ANA: Essa chuva tá foda. Eu nem sei o que a gente vai fazer.

CL: A gente tá num camping que fica na rua de terra e deve

tá igual um rio da fantástica fábrica de chocolates.

Foi a deixa. A propósito, boa referência. Curti.

ML: Não seja por isso, vamos geral lá pro quartinho. Tem

três camas, e onde dormem três, dormem seis.

Elas se olharam. Segundos de expectativa... e, puta que pariu, elas

toparam, manégléglégléglé. Nem chegamos direito e já vamos

pular rampa. A noite promete. Entramos os seis no carro, maior

zoação. Botei Mutantes pra berrar no som e partimos pra pousada.

O motorzinho um ponto três com pneus carecas sofria naquelas

ruas lamacentas, patinava e batia toda a suspensão, com todo

mundo cantando, com a chuva entrando pelas janelas. Chegamos

na pousada e entramos cambaleando pelos corredores, loucos pra

porra. O dono olhou pra gente e riu. Era um hippie da velha guarda

e sacou paz e amor na situação. Buga demorou uns três minutos

pra abrir a porta e quase apanhou. Entramos. O quarto era

pequeno, com três camas de solteiro. As paredes ainda tavam no

cimento, mas puseram umas mandalas penduradas pra disfarçar.

Ficamos ali, dividindo as camas, torrando uma sardola e gastando

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filosofia barata. Papo fluía de boa e de repente percebi ausência

sonora de Dentinho. Devia tá fagocitando Cheetara, pensei. Mas

não, ele tava lendo, que dizer, fingindo, pois a revista tava de cabeça

pra baixo. Eis que ELA dá sinal de vida, no lugar de sempre,

do lado esquerdo da testa, mais multicolorida do que nunca. Não

é possível que ainda tivesse merda pra sair do Dentola. Ele já tava

igual a uma bandeira de pirata, pano e osso. Desespero total. Ele

levantou de relance e caminhou elegantemente pro banheiro,

que ficava ao lado da minha cama. Tranquilo, é só se trancar, isolar

o som e se esvair em merda. Só que não. Malditos decoradores

hippies! O banheiro seguia o estilo Sana Bicho-Grilo e simplesmente

não tinha porta. No lugar dela tinha uns balangandãs feito

de miçangas coloridas, daqueles que fazem barulhinhos quando

passa alguém. Antes de sumir no banheiro, Dente virou pra mim

e olhou com cara de quem tava no corredor da morte. Tadinho.

Eu era a pessoa mais próxima da porta do banheiro, quer dizer,

dos balangandãs. De repente, comecei a ouvir uns barulhinhos

constrangedores. Dentola estava largando umas pedroquinhas

sonoras. Pra preservar a imagem de meu amigo, aumentei o volume

da voz.

ML: EU ACHO O TARANTINO UM BOM COLADOR DE CENAS,

MAIS SINISTRO É O KUBRICK. O PUTO FEZ TODOS OS GÊ-

NEROS!

ANA: Confesso que assisti Laranja Mecânica, mas não entendi

na...

Nem deixava ela terminar...

ML: MAS VOCÊ ASSISTIU DE CARA?

ANA: Claro que não, eu tava loucaça. Molusco, você tá berrando.

Tá tudo bem?

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Nesse instante, os barulhos começaram a ficar mais altos. Puxei

ar e resolvi gritar qualquer merda na velocidade daqueles narradores

de corrida de cavalos.

ML: TÁ TUDO ÓTIMO, NEM PERCEBI QUE TAVA BERRAN-

DO. MAS VOLTANDO, KUBRICK ESTÁ EM OUTRO PATA-

MAR. GOSTEI DO PULP FICTION, MAS QUEM NÃO GOS-

TARIA DE VER UM FILME ONDE JOHN TRAVOLTA TOMA

PICO E DANÇA SKA COM UMA THURMAN NUM BAR COM

POLTRONAS FEITAS DE CADILLAC? TÁ BOM, PULP FICTION

ESTÁ NO NÍVEL DO LARANJA MECÂNICA, PORQUE MATAR

O JOHN TRAVOLTA CAGANDO FOI TOQUE DE MESTRE! MAS

VAMOS COMBINAR QUE KUBRICK É O SENHOR MIYAGI E

TARANTOLA É DANIEL SAN PEGANDO MOSCA COM PAU-

ZINHO.

Porra, não aguentava mais gritar. Quando parei pra pegar um ar,

veio uma metralhadora fedorenta, muito, mas muito alta, o "Gran

Finale", acabando de vez com dignidade do Dentola.

PRU-PRU-PRU-PRU UUUUUUUUUUU! PFU, FUUUU! PRÁ-PRÁ!

ML: E foi assim que John Travolta morreu na privada.

Imediatamente houve uma histeria coletiva de gargalhadas. Eu

tentei me segurar, em respeito ao Dente, mas não consegui. As

minas estavam quase se mijando. Buga caiu da cama, chorando de

rir. Dentinho se revoltou, lá do vaso.

DL: Vocês nunca cagaram? Não fode, porra! Tô passando

mal.

Rimos mais ainda. E o pior, a gente não conseguia parar. Minha

barriga tava doendo horrores, mas certamente menos que a do

Dentola. Levantei chorando de tanto rir e fui olhar meu amigo,

talvez precisasse de algo. Foi aí que me deparei com uma cena

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bizarra, que me perseguiu por anos: Dentinho simplesmente não

sentava diretamente no vaso: ele ficava como uma gárgula, agachado.

Por isso fazia tanto barulho: a merda dava um triplo carpado

até cair na água. Seus dedos gigantes, dobrados pra baixo

do vaso, davam a estabilidade. Se tentasse tirar ele dali com uma

voadora, as chances de falhar eram grandes.

ML: Tu não senta a bunda no vaso, não?

DL: Tá maluco que eu vou encostar minha bunda em vaso

estranho?

Olhei pro papel higiênico e vi que era daqueles que parece uma

lixa de skate. Pobre Dentola.

ML: Se liga no papel, se prepara pra ralar o olhota.

DL: Tá maluco que vou usar isso, vou lavar direto.

Voltei pra cama sem ar, de tanto rir. Dentinho voltou calado e

de banho tomado, deitou ao lado da Cheetara e dormiu. Estava

exausto de tanto cagar. Muito loucos, acabamos fazendo o mesmo.

Porra de noite maluca. A chuva continuou e, pra variar, ninguém

comeu ninguém.

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