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A veia, a Shelda e os Extras

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GUGA DIAS

TAQUEOPARIU

O outro lado das viagens de moto

2a Edição

SÃO PAULO – 2019

475.000 KM


Copyright © 2017 by Guga Dias

Capa: Guga Dias – Peru, Região de Arequipa, ao

fundo o Vulcão PichuPichu.

Contracapa: Guga Dias – BR-319 – Floresta Amazônica.

Fotografias: Guga Dias e Elda Silveira

Revisão: Elda Silveira

Dias, Guga, 1972 -

Taqueopariu – O Outro lado das viagens de moto / Guga

Dias – São Paulo – 2017

376 págs.

ISBN 978-859-232-420-9

1. Dias, Guga, Biografia

2. Proj. Êxodo de Moto

3. Proj. Caminho do Peabiru

4. Proj. Antes do Fim do Mundo, e um pouquinho além

5. Proj. Rodando as Cidades da Copa

6. Proj. Multi Aventura rumo ao WDW14

7. Proj. Vulcões Andinos

8. Site: www.diariodemotocicleta.com.br

9. Youtube: www.youtube.com/c/DiáriodeMotocicleta

10. Face: /DiarioDeMotocicleta.com.br

Todos os direitos desta edição reservados a Guga Dias.

Proibido a reprodução total ou parcial desta obra.


Índice

Agradecimentos .................................................................... 6

A Véia e a Shelda ............................................................... 10

Proj. Êxodo de Moto ......................................................... 39

O Cenário ................................................................................. 39

Uma roda presa no meio começo do caminho ............ 43

Texto extra da 2ª Edição (DEZ/2019)............................... 48

Comando Avançado em frangalhos................................ 50

O voo de galinha .................................................................... 55

Ouça a sua Mãe – leve o guarda-chuva .......................... 59

Desalojados ............................................................................. 65

O que aprendemos? .............................................................. 68

Proj. Caminho do Peabiru .............................................. 71

O Cenário ................................................................................. 71

O alagamento na Rastro da Serpente ............................. 75

Uma emboscada chamada de cidade .............................. 79

Na receita, um molho de chave ........................................ 90

Entre o péssimo e o ruim .................................................... 96

Enchendo o nariz com talco boliviano ........................ 105

As minhas pedras pelo caminho ................................... 122

Sozinhos e sem a grana .................................................... 130

Cruzando o Pampa del Infierno .................................... 138


O que aprendemos? ........................................................... 142

Proj. Antes do Fim do Mundo... ................................. 145

O Cenário .............................................................................. 145

Impacto Profundo............................................................... 148

O Plano Reverso.................................................................. 155

Los Gatunos .......................................................................... 159

O Tempo, o Vento e a Gasolina .................................... 163

Eu sou apenas um rapaz, latino americano sem dinheiro

no banco................................................................................. 181

Subindo a Ruta 40 .............................................................. 185

De alma lavada .................................................................... 197

O que aprendemos? ........................................................... 201

Proj. Rodando as Cidades da Copa .......................... 204

O Cenário .............................................................................. 204

Às cegas .................................................................................. 207

700 latas de cerveja na mão ............................................. 211

Nas águas do Rio Amazonas .......................................... 216

Na BR-319 – a Rodovia Fantasma ................................. 230

Quando o preço a pagar é alto demais ........................ 271

O que aprendemos? ........................................................... 277

Proj. Multi-Aventura rumo ao ................................... 281

O Cenário .............................................................................. 281

Mas és una DUCATI! ........................................................ 284


Qualquer lugar é longe quando algo não funciona direito

................................................................................................... 290

O que aprendemos? ........................................................... 309

Proj. Vulcões Andinos – Parte I ................................. 311

O Cenário .............................................................................. 311

Soroche ................................................................................... 313

El Niño tocando o horror ................................................. 319

O Escalador de Vulcão e o Drone ................................. 325

O que mais poderia me acontecer? .............................. 340

Eu já perguntei o que mais poderia me acontecer? 348

La Gomeria de Russo ........................................................ 356

Bora pra casa ......................................................................... 367

O que aprendemos? ........................................................... 373


A Véia e a Shelda

Lembro-me de acordar com um frio na barriga naquela

manhã de segunda-feira, nublada e fria de agosto. Uma

sensação que cortava a rotina de esperar o ônibus e ficar

preso no trânsito Paulistano, por 1h40 ao longo de míseros

15 km.

Eu tinha 34 anos de idade (Ago/2006) consegui comprar a

minha primeira moto, sem ao menos imaginar o quanto

aquele momento mudaria completamente meu destino, e

aonde aquelas duas rodas poderiam me levar.

A esta altura da vida, eu era casado e pai de uma linda

menininha chamada Lara, morávamos em Jundiaí em um

apartamento recém comprado, com 18 anos de prestação

para pagar, um carro na garagem e uma vaga no fretado.

Eu trabalhava na área de TI, desenvolvendo sistemas web

para clientes como Caixa Econômica Federal, Secretaria da

Fazenda do Estado de São Paulo entre outras, apesar de

ser formado em Comunicação Social.

Pode parecer estranho dizer, mas o filme Beleza Americana

retrataria em partes – e com ressalvas – a minha vida

naquele momento, onde a aparente felicidade encobria a

total ausência deste estado de espírito, e para não morrer

no final, a solução foi pedir divórcio e sair para comprar

um capacete.

Fiquei ridículo todas as vezes em que vesti o meu Taurus

Escamoteável “Tipo Robocop” (palavras do vendedor) e fiz pose


na frente do espelho, vestindo uma jaqueta de napa preta,

erguendo os braços, de punhos fechados, na posição de

pilotar a própria vida.

Que inocência!

Com o capacete debaixo do braço, me mudei para São

Paulo, minha cidade natal, graças ao meu grande amigo

Cesão, que conheço desde que nasci, e que me acolheu em

sua Agência de Publicidade.

O sobrado em que funcionava o escritório possuía uma

edícula no quintal, que acabou se transformando na minha

casa por seis meses em troca do site da empresa.

Por sorte tinha uma boa garagem para receber minha

futura motoca, que eu vinha procurando, procurando e

procurando.

Zerei um Título de Capitalização que visava amortizar as

prestações do meu apartamento, e achei no Mercado Livre

uma Yamaha Virago 250cc ano 1997, que apesar de ter

cerca de 10 anos, marcava apenas 25 mil km rodados.

Comprei sem ver a moto e pedi para o vendedor levar em

casa, pois já haviam se passado mais de 12 anos sem subir

numa motoca, e o medo batia forte.

Ele prontamente me entregou a moto naquela segundafeira

que foi a mais longa da minha vida, e que mesmo

diante da motoca preta e cromada, a mistura de sensações

de euforia, silêncio, ansiedade e paz, não cessavam.


Demorei algum tempo e muitos perrengues para descobrir

que essas sensações jamais me abandonariam.

E assim que o vendedor me entregou os documentos, as

chaves e “adeus, nunca mais o vi”, comecei a vasculhar o

Manual, pois não me lembrava se a primeira marcha era

para cima ou para baixo.

Naquele desespero de folhear páginas em Japonês – ela era

importada – eu me lembrava dos meus 13 anos, e de

quando aprendi a andar de moto.

Meu amigo Marcio era cerca uns 3 anos mais velho do que

eu e precocemente tinha o dom de mexer com motores de

carros e motos.

Como seu pai possuía muitos imóveis alugados, o que

conferia à família uma vida sem privações, com apenas 16

anos ele comprou uma CB 750 Four toda desmontada em

caixas para restaurar.

A gente andava de bicicleta e skate juntos, e no fim de

muitas tardes acabamos na garagem. Assisti por horas o

Marcio concentrado em uma coreografia de aperta aqui,

encaixa ali, tentativas e erros... foi louco acompanhar a

montagem da moto, ouvir a primeira explosão do motor e

o girar do virabrequim.

Aquele barulho bateu no mesmo ritmo do meu peito, me

fez tremer e querer ir além da minha bike.

Tempos depois ele comprou uma Yamaha TT 125 1983 se

não me engano, e me chamou para um negócio muito


próspero segundo nossas mentes pré juvenis, roubar

calotas de Monza – o carro mais TOP no início dos anos

80.

Na real, as calotas do Monza do pai dele haviam sido

furtadas e ele queria reposição – justo – mas ao mesmo

tempo confabulava o lucro que poderia ter neste tipo de

comércio clandestino.

Puta ideia de rato... mas quando se é moleque... foda-se!

Saímos em nossa primeira investida, ele como piloto e eu

como agente coletor... de TT 125... imagina o barulho às

22h pelas ruas do bairro.

Achamos um Monza, paramos do lado e eu me atraquei

na primeira calota, mas quem disse que ela saia?

Eu era magrelo de dar dó, mas tenho certeza que aquelas

calotas estavam aparafusadas, embora meu amigo nunca

tenha acreditado nisso.

Dotado de uma determinação ímpar, o Marcio decidiu que

eu seria então o piloto de fuga, e ele se encarregaria do

furto.

Percebe como a vida é simples... a gente é que complica?

Então em duas semanas de aula ao redor do quarteirão eu

me apaixonei pela motoca, pelo vento no rosto e pelo chão

passando rápido debaixo dos meus pés.

Nossa! O que era aquela sensação?


Nunca tinha sentido aquilo, mas é como se o sentimento

fosse velho conhecido... sei lá, difícil de explicar.

Habilitado, só que não, partimos para nossa empreitada.

De forma certeira, logo encostamos novamente ao lado

daquele mesmo Monza Classic, e meu amigo vestido de

ninja, saltou da moto e começou a arrancar as calotas e

coloca-las debaixo do braço.

Eu por minha vez não fiz feio, fiquei acelerando a TTzinha

que fumava mais que Pajé em transe, e com aquele

barulhinho gostoso do motor dois tempos, abafava o som

ao desprender de cada calota.

No momento em que o meu amigo sentou na garupa e

disse vaaaaaaaiiiiiii! A moto morreu!

Dei no pedal uma, duas, três vezes e na quarta a pedaleira

voltou na canela, num coice certeiro que ecoou o meu grito

pelo bairro inteiro.

Meu amigo largou as calotas no chão, me tirou da moto e

pau! Bateu no pedal e vazamos dali, com o coração na boca

e uma canela sangrando.

Foi mais ou menos assim que eu me apaixonei por motos.

Mas o tempo tratou de passar rápido demais.

Depois desta experiência, andei mais algumas vezes de

TTzinha e na CG do sócio do meu pai, e dali só depois na

faculdade voltei a pilotar a moto dos amigos, quando de

forma inteligente, me escolhiam como piloto da rodada.


Cerca de 12 anos depois disso, com muito medo, peguei

meu capacete Taurus Escamoteável “Tipo Robocop”, vesti

minha jaqueta de napa preta e sai pelas ruas do bairro

dobrando as esquinas mais quadradas da minha vida...

num medo alucinante de tomar um capote com a

Viraguinho.

O antes e o depois da Viraguinho

Não caí naquela noite, mas oportunidades não me

faltariam, já que a partir daquele momento eu trocaria o

busão pela motoca e começaria as minhas primeiras

viagens.

De cara, fui ver minha filha em Jundiaí/SP, coisa de 45 km

pela Rod. Dos Bandeirantes – uma das melhores rodovias

do Brasil, e descidas para o Litoral, aonde minha família e

boa parte dos meus amigos viviam.


Os trajetos simples nunca foram o problema, mas o

exercício contínuo de tantas coisas para se dar atenção, da

marcha certa, ao carro ultrapassando pela direita, a

reserva da gasolina que tinha que ser aberta abaixo do

tanque... vixe... era quase exaustivo e realmente um

mistério para a ciência, de como a mente do homem

consegue fazer tantas coisas ao mesmo tempo, em cima de

uma moto.

Minhas idas para Jundiaí/SP aconteciam de forma

“aleatória” já que minha filha, na época com cinco

aninhos, não via diferença entre quarta-feira ou domingo,

e muitas destas motocadas acabei fazendo pela Rod.

Anhanguera, que possui muito mais curvas, alvo da

minha insegurança.

Nos dias de hoje eu lhe diria, procure um curso de

Pilotagem Defensiva, mas em 2006 não encontrávamos

isso no Orkut, então a vida era mais na raça mesmo – ao

menos pra mim.

Como moto de garagem não dá problema, a Viraguinho já

de cara apresentou um problema elétrico, desligando

algumas vezes no meio da estrada.

Questionado, o antigo proprietário disse que isso nunca

havia acontecido, claro... e como o problema intermitente

simplesmente desapareceu, continuei usando a motoca

pra trabalhar e passear.


Não demorou muito tempo para minha ex-mulher

resolver deixar nosso apartamento em Jundiaí/SP e voltar

para sua cidade natal, próxima da família, colocando mais

de 500 km entre o meu coração partido e os beijinhos da

minha filha.

Minha filha Lara com 5 aninhos e a Viraginho com 9 – Ago/2006

Porra, como aquilo doeu!

O meu plano era deixar de ser infeliz no casamento, mas

nunca ficar longe da minha menina, mas já que decisões

haviam sido tomadas, o jeito foi encarar a estrada longa,

rasgando o Estado de São Paulo de uma ponta a outra de

Viraguinho.


O trajeto consistia em sair de São Paulo - Capital, acessar

a Rod. Dos Bandeirantes – SP 348 até Limeira/SP (cerca de

160 km) e depois entrar na Rod. Washington Luís – SP 310

até São José do Rio Preto/SP (mais 290 km) e por fim rodar

mais 100 km pela Rod. Euclides da Cunha – SP 320 até

Fernandópolis/SP.

Para quem não conhece a Washington Luís, a pista é um

enorme tobogã em linha reta, que vai subindo e descendo

colinas, em meio a plantações de cana de açúcar, laranja e

dezenas de cidades.

Rod. Washington Luís – retas e ladeiras intermináveis

As viagens de Viraguinho duravam em média de 7 a 8

horas de subidas exaustivas de ladeiras, atingindo o topo


de morros a 70 km/h, e aproveitando a descida para bater

110 km/h, antes de começar a subir de novo, e de novo, e

de novo.

Fiz este trajeto a cada 25 dias durante cinco, seis anos

consecutivos, e posso garantir que estes ventos forjaram os

primeiros traços do motociclista que eu sempre acreditei

que morava dentro de mim.

A única coisa que eu ainda não sabia é que os bons ventos

viriam recheados de perrengues, e que não seriam poucos.

Um dos primeiros foi uma pane seca na altura do KM 393

da Washington Luís, distante apenas uma ladeira íngreme

de 2 km do Posto Quatrocentão, na região de Catiguá/SP.

A Viraguinho tinha um tanque de Playmobil, com apenas

9L, que mal completavam 140 km de autonomia, e na

Washington Luís o que mais se encontra ainda nos dias de

hoje, são postos de combustível abandonados.

Quem me salvou foi um senhor que parou com a sua

camionete, e se apresentando também como motociclista,

amarrou uma corda no meu guidão e me arrastou até o

centrinho de Catiguá, onde abasteci ouvindo suas

histórias.

Ele dizia que tinha uma moto custom, não tão linda como

a minha (risos), mas que lhe dava muita felicidade – era

uma Suzuki Intruder 125cc.

Passados 30 dias, novamente em direção à minha filha,

levei uma garrafa Pet com 2L gasolina, para não passar

novamente aquele aperto. Mas chegando a


Araraquara/SP, uma fumaça branca começou a sair da

moto que não demorou a apagar.

Embalei até o acostamento, tirei a tampa lateral e constatei

que a fumaça saia de uma peça que mais tarde eu

descobriria ser o retificador de voltagem. Ele estava quase

em brasa.

Quando esfriou a moto pegou no tranco, mas bastava pisar

no freio que o motor desligava – não havia corrente

elétrica alimentando a bateria e a luz de freio apagava as

velas.

Com muito sacrifício entrei em Araraquara/SP e consegui

chegar a uma autorizada Yamaha. Lá me disseram que era

o retificador em curto, e que a encomenda de um novo

levaria cinco dias!

Alegando que estava em viagem, o mecânico deu uma

carga na bateria e me indicou uma oficina que poderia me

ajudar.

Sem pisar no freio, sai serpenteando as ruas de Araraquara

até achar a tal oficina que não me lembro mais o nome e

nem aonde fica!

O mecânico tirou o meu retificador e foi categórico

dizendo que aquela peça tinha sido fundida em fundo de

quintal, e de fato, era toda torta, mal-acabada, e agora

queimada.


Ele adaptou a conexão de um retificador de Falcon,

completou o óleo já que a motoca estava fumando,

enquanto eu, precavido, enchia o tanque com aqueles 2L

de reserva.

Voltei para estrada todo contente, apesar do aparente

prejuízo com uma gambiarra que até então desconhecia, e

chegando ao KM 393, novamente a gasolina acabou.


Dois flagrantes... Shadom em meados de 2010 e V-Strom por volta de 2012


Eu desacreditei!

No mesmo quilômetro do mês anterior, tive outra pane

seca.

Foi muita burrice usar aqueles 2L, quando eu estava

dentro de uma cidade grande repleta de postos de

combustível.

Acionei a Serviço de Atendimento ao Usuário que veio me

resgatar de guincho até o Posto Quatrocentão, e deste dia

em diante é impossível passar na frente do KM 393 sem rir

ou tirar uma foto.

Não demorou muito, conheci a Elda “nas internet” da vida

e nos apaixonamos durante longos papos por MSN.

A maior sorte da minha vida – Set/2007


Garota do interior, morava em Piracicaba/SP, e assim

como eu, estava no fim de um relacionamento conturbado

e infeliz, e sem hesitação, nos encontramos em

Campinas/SP para passar um final de semana juntos.

Ainda no estacionamento da rodoviária, com o frio na

barriga que só a paixão dá, ela olhou pra Viraguinho e

disse:

-- Nossa, esse motão é seu?

Aí o dia que já estava ganho, fechou com um por do Sol

lindo na estrada, enquanto eu pilotava envaidecido, com

os cotovelos erguidos, como quem segurasse um guidão

gigante de Harley Davidson.

Naquele primeiro encontro eu fui muito claro contando

que havia saído de um relacionamento de 10 anos onde

não era feliz, apesar de ter uma filha linda, acreditava que

não carregava sequelas, e que fazia parte dos meus planos

viajar de moto.

Apaixonada, ela absorveu todas as histórias, contou as

suas e com tranquilidade fez uma única ressalva:

-- Eu nunca viajei de moto!

-- Relaxa que eu também não!

E começamos a motocar sempre que possível em

distâncias curtas, tanto sentido interior como litoral, e só

hoje posso avaliar o quanto era desconfortável viajar

naquela motinho.


Eu com 1,80m de altura, e a Elda com 1,70m, fazíamos da

Viraguinho uma bicicletinha de palhaço de circo, que

quando montada, simplesmente desaparecia debaixo de

nós.

Mas não vou de forma alguma cuspir no prato que eu

comi.

Era o que tínhamos, e foi com ela que motocamos por

muitos meses até a corrente começar a soltar da coroa

“misteriosamente”.

Eu não entendia porque aquilo acontecia e nem me

passava pela cabeça que deveríamos ajustar a corrente

antes de trocar a relação de tempos em tempos.

Manja comprar um chuveiro novo porque queimou a

resistência? Então... fiz a felicidade de muito mecânico

safado.

Falando nisso, somando o problema da corrente e da

fumaça que só fazia aumentar, parei a Viraguinho na

oficina, e logo o mecânico me revelou que seria necessário

retificar os cilindros e o cabeçote, pois aparentemente

aquela moto tinha virado os 100.000 km há tempos.

O cabra me vendeu uma moto com 125.000 km, enquanto

o painel marcava 25.000 km.

Depois de três semanas na oficina, finalmente peguei a

Viraguinho de volta e a batizei de Véia. Montei na danada

e parti para ver minha filha, mas bastou uns 30 km pelo


Rodoanel para a moto travar de um jeito que só deu tempo

de encostar.

Não ligava mais e o jeito foi começar a empurrar de volta

para casa.

Por sorte, alguns quilômetros depois uma Kombi parou e

o motorista me perguntou se eu precisava de ajuda. Disse

que sim, e embarcamos a Véia para dentro, e seguimos até

a casa do meu mecânico, que pelo barulho se deu conta

que esqueceu de colocar óleo quando fechou o motor.

O desgraçado soldou o virabrequim da moto.

Eu só não o matei, porque graças a venda do meu

apartamento em Jundiaí/SP, eu estava me mudando da

Agência do Cesão, e, juntando as escovas e mais uma

grana com a Elda, juntos compramos uma Honda Shadow

600 – 2001.

A Véia que havia rodado pouco mais de 20.000 km em um

ano, ficou quase dois meses na oficina, e saiu de lá pronta

para customizar e ser usada para trabalhar, enquanto a

Shadow, batizada de Shelda (Shadow + Elda), ficou destinada

às estradas.

Aquele momento foi um divisor de águas, uma transição

entre o velho Gustavo e o novo Guga, embora este tenha

sido o meu apelido a vida toda.

Eu finalmente tinha as rédeas da minha vida nas mãos,

entre a Véia representando o fim de um ciclo e o início de


uma caminhada, e a Shelda marcando um compromisso e

uma direção tomada.

Viajar de moto!

Shelda – Shadow 600cc - 2001

Quando pensei em um modo de descrever o impacto de

saltar de uma 250cc para 600cc, a única descrição foi “faca

quente na manteiga”.

Como é bom um torque mais forte quando se viaja com

garupa, e isso fez uma diferença danada, e apesar da

pouca autonomia e da necessidade de Diploma no Curso

de Feitiçaria (só quem já fez curva com uma Shadow 600 sabe a que me

refiro), expandiu nossos horizontes de uma forma

irreversível.


Foi neste momento em que resolvi tirar minha habilitação

de moto.

Sim... havia um ano que eu viajava de Viraguinho sem

CNH.

Acho que a soma de dias corridos e o comodismo diante

da falta de fiscalização, me levaram a essa vergonhosa e

arriscada infração.

Por diversas vezes na estrada, passei por comandos

acenando para os policiais, que retribuíam o aceno me

dando passagem.

Acho que motos custom oferecem esta vantagem.

Seus pilotos são tidos como “certinhos”, “motociclistas” e

creio que esta fama fez com que dezenas de policiais

optassem em me deixar passar.

Não tenho orgulho disso e tão pouco recomendo que se

faça igual, mas não serei hipócrita em negar que eu vivia

um misto de frio na barriga, comemorações insanas e

agradecimentos a Deus e ao meu anjo da guarda dentro do

meu capacete a cada bloqueio ultrapassado.

Mas como tudo envolve a Lei do Retorno, um dia eu

deveria pagar.

Ao comprar a Shadow fiquei com medo de vê-la

guinchada, corri atrás de uma Auto Moto Escola e tirei a

minha carta.


Peguei meu documento, mirei a motoca em direção aos

beijinhos da minha filha, e entortei o cabo até a altura de

Limeira/SP, quando um policial me fez sinal para parar.

Eu encostei todo feliz, pois finalmente apresentaria a

minha CNH novinha.

Ele muito educado pediu meus documentos e logo atentou

para o fato que o meu licenciamento estava vencido.

Argumentei que estava pago e apresentei o recibo,

dizendo que apenas não tinha recebido, mas como naquele

dia minha filha fazia aniversário, estava na estrada

carregado de bonecas para encontra-la.

Olha a menina ai seu guarda


Minha sutil chantagem emocional não deu em nada e o

oficial disse que consultaria o sistema da SEFAZ, ao que

respondi que eu trabalhava na SEFAZ e a baixa da

pendência só se dava com a confirmação da entrega do

documento pelos Correios – nem adiantava consultar que

a resposta seria negativa.

Sem esboçar a menor preocupação, o oficial pediu que eu

esperasse ao lado da moto, e quando voltou me deu a triste

notícia que a Shelda seria guinchada.

Eu pedi pelo “Amoooooor de Deus” que ele me liberasse,

que minha filha de sete anos (completava naquele dia) estava me

esperando para sua festinha de aniversário e que eu tinha

um longo caminho pela frente.

Ele foi irredutível e pediu que eu tirasse as malas da moto.

Retruquei dizendo que aquilo eram alforjes, e que ficariam

na moto, então ele disse que teria que relacionar todos os

itens, ao qual não me opus.

Começamos ali a contar pares de meias, cuecas, camisetas

e bonecas Barbie. Foram minutos anotando todos os itens,

até que me pediu para assinar uma folha em branco, pois

teria que anotar todos os itens novamente nela.

Ah, vá!

Eu disse que meu dia estava perdido e que agora

perderíamos o dele.


Pelo olhar ele não gostou da minha resposta, mas eu

estava tão puto da vida, que aquela altura eu sinceramente

não estava preocupado em fazer novos amigos.

Após toda a cópia, eu conferi item por item das duas listas,

até que veio o guincho e levou a moto.

O policial me deu uma carona até a Base, dizendo que o

meu caso era simples, bastava voltar para São Paulo e

fazer um DOC novo.

Eu respondi que acabava de ficar mais puto da vida com

esta informação, por que se fosse simples assim, ele

poderia ter me liberado.

Ai a patente cresceu e fui aconselhado a moderar o meu

tom de voz ou eu seria preso por desacato.

Tive que voltar para São Paulo de ônibus, contratar um

despachante, pagar tudo novamente, inclusive o serviço

dele, para só então no dia seguinte, com o documento

novo em mãos, voltar de ônibus até Limeira/SP e resgatar

a moto do pátio.

Juro que demorou muito tempo para eu passar novamente

por aquele trecho.

Entre idas e vindas da casa da minha filha, com um motor

e tanque maiores (pero no mucho – 11L), nossas viagens de bate

e volta foram substituídos por lugares mais distantes e

destinos muito legais como Paraty/RJ, Boissucanga/SP,

São João del Rey/MG, Tiradentes/MG entre outros, que

passaram a ser conquistados.


Coturno, calça Jeans e Jaqueta de couro - Voltando de Paraty/RJ – JAN/2008

Com esta frequência de estrada, alguns escorregões

aconteceram e, claramente por falta de maturidade como

piloto, alguns pequenos acidentes não foram possíveis de

evitar, como por exemplo, na ida à Paraty/RJ – numa

viagem surpresa.

Nos aniversários da Elda, eu costumava sequestra-la,

orientando quais peças de roupa ela deveria colocar nos

alforjes, e mantinha o destino em segredo.

Numa das primeiras vezes em que fiz isso, motocávamos

pela Rio-Santos num belo dia de Sol, quando na altura de

São Sebastião/SP, passando por um cruzamento muito

mal sinalizado, o trânsito parou, e eu segui ultrapassando


pela direita (oi!), acabou que me choquei com um Chevette

pau velho que cruzava a pista como se estivesse sozinho

no mundo.

O impacto foi tão forte que a Elda e os alforjes foram

arremessados para frente, enquanto eu bati as duas coxas

no guidão da moto, sem soltar os punhos, o que

possibilitou segurar a moto de pé enquanto a lataria do

Chevette era aberta como lata de sardinha enroscada no

garfo dianteiro da Shelda.

A moto entortou o para-lama dianteiro, desalinhou o

guidão e amassou o farol gota, já o Chevette abriu a lateral

da porta ao porta-malas.

Quando tudo parou, fui socorrer a Elda que estava se

queixando de dores no cotovelo e no ombro, mas

aparentemente sem fraturas.

Ao fundo eu ouvia gritos de uma mulher reclamando do

estado do carro, quando finalmente dei atenção ao

acidente, e constatei o estrago no Chevette, na mesma hora

que bati os olhos no estado do motorista completamente

embriagado.

Ele olhava para minha moto torta e coçava a cabeça

enquanto tentava fazer a mulher dele – também de cara

cheia – a calar a porra da boca.

Confesso que eu estava errado em ultrapassar pela direita,

mas dirigir bêbado, e fazer uma conversão sem sinalizar

me colocava em vantagem naquela situação, e com

prerrogativas do Supremo Tribunal Federal em lhe

imputar o prejuízo por conta daquela “cachaçaiada” toda.


O cabra fedendo a pinga veio perguntar se estávamos

bem, e respondendo que sim, pedi para que ele segurasse

a roda dianteira com as pernas, enquanto eu tentava

alinhar o guidão. Até que deu certo e finalmente o pinguço

sugeriu que cada um seguisse com o seu prejuízo.

Como estávamos bem e a moto continuaria andando, dei

dois tapinhas nas costas dele e seguimos viagem.

Se bem lembro, tive que trocar o farol, os retentores e a

caixa de direção o que não me custou mais do que US$

250,00 contando a mão de obra.

Em meio a estes acontecimentos e embriagado pelo sonho

de pegar estrada com os amigos, me tornei Full Patch de

um Moto Clube de São Paulo, o que me levou a participar

de vários encontros semanais, possibilitando conhecer e

fazer novos amigos.

Viajamos bastante para aniversários de Moto Clubes pelo

Estado de São Paulo e Rio de Janeiro, e estes momentos

nos deram mais experiência no motocar por estradas.

Numa destas experiências, eu e a Elda embarcamos com

meu MC para Caxambu/MG, atrás de um encontro de

motociclistas que foi um fiasco, vazio e sem atrações,

apenas “o mais do mesmo”, sentar e tomar cerveja – não

que isso não seja legal.


Caxambu/MG

No entanto eu e a Elda já tínhamos curiosidade em

conhecer pontos turísticos, e cruzando informação de

garçom aqui, e recepcionista ali, descobrimos um passeio

de Maria Fumaça entre São Lourenço a Soledade de

Minas, pertinho da gente, e que nos salvou de um fim de

semana chato.

Quando voltamos para casa, mergulhei no Google Maps,

curioso em identificar por quais estradas nós tínhamos

andado, pois eu simplesmente segui o grupo sem saber

onde estávamos indo... Caxambu e Estrada Real eram

nomes completamente desconhecidos que foram saltando

aos olhos já nas primeiras pesquisas.


Conta a história que a Família Imperial, mais precisamente

D. Pedro, Dona Leopoldina, Duque de Saxe, Conde D’Eu

e Dona Isabel construíram fontes para banhar-se no

trânsito entre Paraty/RJ e Vila Rica/MG (Ouro Preto).

Com fama de águas minerais rejuvenescedoras,

Caxambu/MG viu crescer o que hoje constitui o bem

conservado Parque das Águas que, além destas fontes,

possui outras dedicadas à ilustres benfeitores ao longo da

história.

E eu não vi fonte alguma!

Lamentavelmente, fiz mais do mesmo e tomei cerveja na

frente do Parque das Águas, sem fazer a menor ideia que

lá dentro tinha uma fonte de D. Pedro. E quer saber, nossos

caminhos foram para outros lados, e nunca mais

conseguimos voltar, apesar de estar aqui do lado de casa

(350 km).

Com esse episódio aprendemos a pesquisar e planejar

nossas viagens, e aproveitar ao máximo cada feriado que

a minha vida de workaholic me permitia gozar.

Num ciclo de aprendendo e motocando, não demorou

para que os primeiros amigos, percebendo a nossa

movimentação, começassem a pedir dicas de destinos e

indicação de hotéis.

Foi aí que eu desenvolvi o site Diário de Motocicleta,

partindo da premissa que, se numa roda de amigos


minhas dicas atingiam três ou quatro motociclistas, então

um site poderia ajudar mais apaixonados a pegar estrada.

Acho que está no meu DNA. Eu sou neto e filho de

professores, dei aula de informática por três anos para

alunos da 1ª série até 3° Colegial. Gosto de ensinar, gosto

de transferir conhecimento, compartilhar ideias.

Primeiro Logo/Brasão - fortes traços da cultura motoclubista

Com o site eu tinha a chance de oferecer dicas de viagens,

pelos lugares que eu mesmo havia conhecido. A sensação

era muito gratificante, apesar dos primeiros feedbacks

frustrantes de alguns velhos motociclistas que

debochavam da minha curta estrada – pouco mais de um

ano de viagens – que rendia críticas do tipo: “Quem esse

moleque pensa que é para falar de moto turismo?“.


Por sorte sou resiliente, e com doses generosas de

idealismo, o que talvez me faça ser teimoso... às vezes!

Hoje, doze anos depois o que eu faço me define.

Segui no meu propósito de conhecer o mundo, embora

ainda não soubesse o tamanho dele e nem para que lado

seguir, mas desde o começo, me apresentei disposto a

aprender, e decidido a compartilhar minhas experiências,

instigando os amigos a motocar, se não sozinho, sendo

guiados por mim tempos mais tarde.

Entre agosto de 2006 a janeiro de 2010, eu e a Elda rodamos

por roteiros de até 1.500 km (ida e volta), explorando as

bordas dos estados vizinhos a São Paulo, enquanto crescia

o planejamento da nossa primeira viagem de Longa

distância, as minhas merecidas férias, depois de oito anos

de contratos renovados consecutivamente.

Esta primeira viagem abriu a porteira do mundo.

Engraçado que o medo e a ansiedade em sair para estrada

foram tão fortes e intensos como na última grande viagem

que fizemos pela Bolívia em 2017, e recentemente sem a

Elda pala Transamazônica.

Não consigo me acostumar (graças a Deus) com essa história

de viajar de moto. Eu conto os dias, planejo durante meses

e fico horas acordado com insônia antes de partir.

Eu sei que por mais que o roteiro esteja redondo, bem

planejado e estudado, os imprevistos nos seguirão aonde


quer que estejamos, e isso já me assustou demais, e vira e

mexe, assusta de novo.

Como diria meu pai – desculpe-me por tal filosofia de

botequim – mas grosseiramente, posso garantir que

merdas acontecem, e que uma hora ou outra você vai se

ferrar, porque não depende da sua vontade, e sim da

natureza e essência de uma viagem de moto, que nos

coloca a pura exposição ao risco.

Hoje em dia penso que o perrengue não é a receita básica

de uma viagem de moto, bem como não deve se tornar a

paranoia de um motociclista.

É importante impedir pensamentos negativos, deixar fluir

as boas vibrações de um planejamento caprichado,

cultivando o desejo de conhecer novos lugares, e

consolidando um compromisso pessoal para que tudo

caminhe rumo ao melhor resultado – ser FELIZ sobre duas

rodas.

Uma boa dica é colocar-se no seu time e manter a cabeça

fria, porque o perrengue é um ingrediente que sempre fará

parte do tempero de uma viagem de moto.

Quanto maior o roteiro, mais será exigido de você.

A diferença está em como você vai reagir a isso.

Eu aprendi que o estado de espírito deve estar equilibrado

para o sucesso da sua aventura, mantendo você focado na

solução de situações, quando algo não planejado

acontecer.


Eu sei que parece papo de bicho grilo, mas a única

descrição é essa mesmo, você tem que estar vibrando

positivo e disposto a fazer dar certo... e assim as piores

situações serão os momentos de maior aprendizado.

Neste livro vou revisar alguns momentos difíceis vividos

nas seis primeiras viagens de longa distância que

realizamos no Brasil, América Latina e Europa.

Os amigos que acompanham os relatos publicados no site

Diário de Motocicleta (em tempo real direto da estrada), vão se

deparar com algumas revelações inéditas, já que algumas

histórias que contamos no site, algumas vezes são floridas

propositalmente, para omitir um ou outro acontecimento

“não previsto”, e que se revelados, poderiam gerar

preocupações às nossas famílias em casa.

Com humor negro, brinco dizendo que tenho muitas

Senhorinhas para matar do coração com as minhas

aventuras!

Já basta viajar de moto! Isso por si só, faz-se iluminar um

altar de velas brancas para o meu anjo de guarda.

A ideia que muitas pessoas têm sobre viajar de moto ser

uma grande loucura, ainda me arranca risos abafados, e na

contramão deste conceito, posso garantir que boa parte

dos riscos que passamos, foram calculados, e sabíamos

desde o começo onde estávamos nos metendo.

É claro que alguns perrengues foram essencialmente

causados por falta de experiência que, graças à Deus, me


acompanha nesta trajetória de vida. Assim como faz

tempo que descobri que a prática nos impõe dificuldades.

As nossas, até aqui, foram superadas e serviram para o

nosso crescimento, como pessoas, como motociclistas e

como turistas.

Uma vez me disseram que eu tinha muita

coragem em viajar de moto. Na verdade, eu

morro de medo. A coragem te dá o ímpeto de

fazer, o medo te faz estudar as possibilidades.

A sucessão de perrengues a seguir não representa o

resumo das viagens citadas. Em alguns roteiros, são

pequenos fragmentos do todo, momentos e

acontecimentos, que de forma alguma, tiraram o prazer da

motocada.

Sempre vale a pena tirar a bunda do sofá.

Tudo vira história para contar.

E agora, além da visível curva de aprendizado e o

flagrante dos riscos que a inexperiência nos expôs, vou

apresentar os bastidores que orbitavam cada

planejamento das nossas primeiras viagens de longa

distância, do cenário pré-viagem à solução de cada

problema na estrada.

Desejo que estes “causos” além de diversão, lhe tragam

conhecimento e força para os seus momentos mais difíceis

na estrada, que eu sinceramente desejo que você passe, e

seja agradecido por cada experiência vivida.


Boas Estradas Sempre!

Texto extra da 2ª Edição (DEZ/2019)

Na manhã seguinte, recuperados da friaca da estrada na

noite anterior, deixamos as dificuldades para trás,

acordamos cedo, tomamos café, pegamos câmeras e

filmadoras, e partimos para conhecer todas as igrejas de

Ouro Preto.

Sentimos a cidade vazia, mas pudera, estava cedo... tão

cedo que todas as igrejas estavam fechadas, nos restando

a alternativa de vagar pelas ruas e praças fotografando a

belíssima e singular arquitetura de casarões e prédios

antigos.

O tempo foi passando e nada das igrejas abrirem e aquilo

começou a ficar estranho... até que em uma pracinha

encontramos um grupo de senhores conversando,

vestidos com coletes chamativos, crachás... e quando

identifiquei, eram guias. Fui até eles e perguntei sobre as

igrejas fechadas e todos riram, menos o Gilson que

gentilmente disse que às segundas as igrejas e museus

fechavam para faxina e manutenção, mas que ele poderia

me levar em todas as igrejas que eu quisesse. Disse que o

serviço dele custava R$50 na época, cerca de quase US$15,

e que eventualmente eu deveria contribuir com a caixinha

da igreja, já que o plano era entrar pela sacristia depois

dele falar com o padre.

Bingo!


Visitamos as cinco principais igrejas, capelas e a Matriz,

com direito ao padre como um guia exclusivo, nos dando

aulas de história e liberando para fotos e filmagens.

Quase todas as igrejas não permitem fotos por conta do

contrabando de peças sacras. Vagabundos fazem

catálogos, vendem e roubam estas obras de valores

inestimáveis.

Tinha tudo para ser um perrengue e foi um dia

maravilhoso graças ao Gilson, parte triste do fim dessa

história, pois anos mais tarde, em parceria com a Revista

Moto Adventure e a Honda, eu voltei para Ouro Preto

fazendo uma matéria para a NC750x, e quando procurei

por ele, me disseram que meses atrás, descendo de um

ônibus, se desequilibrou, caiu e bateu a cabeça terminado

sua história de guia em Ouro Preto, deixando família e o

meu silêncio.

Mas és una DUCATI!

O próximo capítulo, original da 1ª Edição deste livro

(JUL/2017), começa com “Desci por caminhos conhecidos até

Buenos Aires e pontuei a moto em vários pontos turísticos

que eu já conhecia na capital Porteña...” e já salta para

Montevidéu, chega em Porto Alegre para palestra e

desanda a história até a Itália, mas na revisão da versão

Digital (2ª Edição DEZ/2019), me dei conta que eu esqueci de

contar uma passagem interessante em Buenos Aires.


Já se iam 18 meses desde a minha última vez em Buenos

Aires, mas as ruas ainda me pareciam muito familiares e

acessar os principais pontos turísticos e fazer uma foto

com a moto não foi problema.

Porto Madero, Ponte da Mulher, A Casa Rodada, Obelisco,

um por um eu ia visitando até terminar no Caminito.

Aqui não é perrengue, mas duas passagens foram muito

engraçadas, e tinha tudo pra ser enrascada.

A primeira situação foi um casal de dançarinos, após uma

brilhante apresentação, se aproximaram de mim, e o rapaz

bem alinhado me perguntou:

-- És uma DUCATI? Sorri e disse -- Si!

O rapaz ficou alucinado, levou as mãos na cabeça, chamou

por Deus, sacou um celular do bolso e perguntou se

poderia fazer uma foto.

Disse que sim, então rapidamente ele passou o celular

para sua parceira, aparentemente entediada, e mais do que

de pressa subiu na moto minha moto para o meu total

espanto.

Existe aquela política enraizada do “não toca na minha

moto” e tals, que fez meu cérebro gerar o impulso de um

“sai dai caráio”, que desmoronou em risadas quando me

liguei no sorrisão do rapaz.


Em plena felicidade, ele pedia um monte de ângulos para

parceira que respondia lenta e sem vontade. Então saquei

o celular da mão dela e pedi que se juntasse ao amigo.

Ela com cara feia disse que não e eu insisti.

-- Mira la felicidad de tu amigo.

E ela se rendeu a ponto de fazer pose até para minha

câmera.

Dançarinos em Caminito – Buenos Aires/ARGP

Saindo deste episódio, estava louco por uma cerveja, e um

restaurante perto do meu hotel era o alvo do dia, já tinha

feito todas as fotos e até voado de drone na frente do

Palácio do Governo, uma área Federal que poderia ter me

rendido muita dor de cabeça... mas não rendeu.


Existem lugares proibidos para se voar com drones, como este – Buenos Aires/ARGP

Seguindo para hotel, uma quadra antes da Plaza de Mayo,

onde fica a Casa Rosada, um comando policial me

mandou encostar.

Haviam feito um recuo com cones, estreitando a rua e

tals... todos de uniforme branco pareciam da Marinha, mas

na verdade era policiais Municipais/Trânsito – as funções

se aglutinam.

Encostei, tirei meu capacete fechado ARAI DUCATI... por

isso gosto de escamoteável, ali já estava conversando com

todos, mas você precisa tirar o capacete para arriscar um

“Buenas Tarde Oficial”.

-- Buenas... los papeles da la moto...


Pediu sem olhar para mim, com a mão estendida e o olhar

fixo na motoca.

Retirei o DOC e a CNH da carteira, coloquei em sua mão,

e só de sentir o tato do papel, o oficial pegou num

movimento de cruzar os braços, colocando meus

documentos embaixo do suvaco suado, soltando uma

pergunta familiar:

-- És uma DUCATI? E eu disse SI!

Tal qual o dançarino de tango, este homem começou a se

contorcer, dando voltas na moto e chamando outros

oficiais para ver a DUCATI.

Ai começaram as perguntas de consumo, velocidade,

conforto, painel, preço no Brasil... isso tudo com o meu

documento do suvaco.

O papo ia bem até que ouvi um toque de buzina e notei

que um dos 4 oficiais que me cercavam deu uma

corridinha até um carro preto estacionado atrás de nós.

Quando ele voltou, me cutucou e disse que “eles queriam

falar comigo” e apontou para o carro.

Fui até eles, me abaixei no vidro e vi que eram todos

policiais, mas a farda preta, os identificavam como

federais.


-- Hola que tal! Disse bem descontraído, ao que o oficial no

volante me perguntou:

-- És uma DUCATI?

Sorri como quem sorri para o próprio pai -- Si! És uma

DUCATI

Mais quatro marmanjos saíram do carro batento o pé,

tirando o quepe e coçando as cabeças, chamando

mamacita e Dios mio.

Todos ao redor da DUCATI, as perguntas se repetiam e

alguns especialistas em DUCATI já respondiam ante

mesmo de eu ensaiar as primeiras palavras.

Um dos oficiais, acho que o de maior patente, pois quando

falava todos ficavam quietos ao ponto até de pararem de

rir, me perguntou o que um brasileiro, em plena Copa do

Mundo no Brasil estava fazendo ali.

Ao que imediatamente respondi em bom portunhol:

-- Amigo, és uma DUCATI, foda-se la Copa.

E todos racharam de rir, numa uma cena surreal onde

infelizmente não havia uma Go Pro ligada para registrar

aquele momento.

Meus documentos foram devolvidos sem ao menos serem

conferidos, com as bordas do papel molhado de suvaco...

e entre de apertos de mão, abraços e selfies, me despedi e

segui para minha tão sonhada cerveja gelada.


Já estava adiando esse plano a quase uma hora, porque

não é todo dia em que se vê uma DUCATI.

Boas estradas sempre!

Guga Dias

150 cidades – 23 Estados e 14 países - Roteiros percorridos entre 2006 e 2019

475.000km e contando...

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