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Os vivos, o morto e o peixe-frito

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© Pallas Editora. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução.<br />

manual do<br />

professor<br />

Inclui material digital do manual do professor<br />

Organização: Eneida Duarte Gaspar


© Pallas Editora. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução.


© Pallas Editora. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução.<br />

manual do<br />

professor<br />

Inclui material digital do manual do professor<br />

Organização: Eneida Duarte Gaspar<br />

ONDJAKI<br />

OS VIVOS,<br />

O MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

ILUSTRAÇÕES<br />

VÂNIA MEDEIROS<br />

Rio de Janeiro, 2018<br />

1 a edição


© Pallas Editora. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução.<br />

copyright © 2014<br />

Ondjaki<br />

editoras<br />

Cristina Fernandes Warth<br />

Mariana Warth<br />

produção editorial<br />

Aron Balmas<br />

Livia Cabrini<br />

projeto gráfico e edição<br />

Julio Silveira (Imã Editorial)<br />

organizadora do material digital do manual do professor<br />

Eneida Duarte Gaspar<br />

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)<br />

Angélica Ilacqua CRB-8/7057<br />

O67v<br />

Ondjaki, 1977-<br />

<strong>Os</strong> <strong>vivos</strong>, o <strong>morto</strong> e o <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong>: manual do professor /<br />

Ondjaki ; ilustrações de Vânia Medeiros.-- 1. ed.-- Rio de<br />

Janeiro, RJ :Pallas, 2018.<br />

136p. : il. + 2 DVDs<br />

Acompanha 2 DVDs:Manual do professor digital<br />

Organização do Material digital do manual do professor:<br />

Eneida Duarte Gaspar<br />

ISBN: 978-85-347-0554-7<br />

1. Teatro - Literatura infantojuvenil angolana2. Ensino<br />

fundamental - Estudo e ensino - AtividadesI. Título II.<br />

Medeiros, Vânia III. Gaspar, Eneida Duarte<br />

18-1292<br />

CDD 028.5<br />

CDU087.5<br />

Esta edição mantém a grafia do texto original em português de Angola, adaptado ao novo Acordo Ortográfico da<br />

Língua Portuguesa, com preferência à grafia angolana nas situações em que se admite dupla grafia e preservando-se<br />

o texto original nos casos omissos.<br />

Todos os direitos reservados à Pallas Editora e Distribuidora Ltda. Não é permitida a reprodução<br />

por qualquer meio mecânico, eletrônico, xerográfico etc. de parte ou da totalidade do conteúdo e das imagens<br />

contidas neste impresso sem a prévia autorização por escrito da editora.<br />

Pallas Editora e Distribuidora Ltda.<br />

Rua Frederico de Albuquerque, 56<br />

Higienópolis - Rio de Janeiro - RJ<br />

CEP: 21.050-840<br />

www.pallaseditora.com.br<br />

pallas@pallaseditora.com.br


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APRESENTAÇÃO<br />

Ondjaki escreveu esta peça teatral para ser apresentada pelo rádio. Ela foi transmitida<br />

pela RDP África (emissora portuguesa dirigida aos países africanos) em 2006, durante<br />

o “África Festival”.<br />

<strong>Os</strong> personagens são de Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe, Moçambique,<br />

Guiné-Bissau e Portugal. Certa manhã, eles se reúnem na fila de uma repartição que<br />

atende aos imigrantes em Lisboa. Nesse encontro começam a aparecer diversos problemas:<br />

o desafio de levar um defunto até um apartamento para fazer o velório, o desejo<br />

de escutar a transmissão do jogo entre as seleções de futebol de Portugal e Angola,<br />

as confusões de um casal de namorados enfrentando a família da moça, as astúcias<br />

para verificar se um turista africano engoliu diamantes para entrar no país, e as peripécias<br />

para conseguir o <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong> que todos estão sonhando comer.<br />

Por essa descrição você já pode perceber que o livro é muito engraçado. E além das<br />

trapalhadas da história, ele ainda apresenta um desafio ao leitor: entender as falas dos<br />

personagens, que usam palavras e expressões das línguas dos vários países de onde<br />

vieram. Assim, ao ler este livro, você vai conhecer um pouco mais sobre os povos da<br />

África que podem falar português como nós, mas que, também como nós, mudaram a<br />

língua original com a combinação de outras línguas que são a fala de grande parte do<br />

povo nesses países.<br />

Ondjaki<br />

Ndalu de Almeida nasceu em Luanda (Angola) em 1977. É filho de um engenheiro e<br />

uma professora que participaram das lutas pela independência do país. Ndalu não foi<br />

atingido diretamente pela guerra; mas viveu na infância, por um lado, as dificuldades<br />

do pós-guerra e, por outro, o ambiente cheio de esperança de Angola livre.<br />

Ndalu começou a escrever quando era adolescente. Estudou Sociologia e Cinema,<br />

fez teatro amador, produziu um documentário sobre Luanda, “Oxalá cresçam pitangas”,<br />

e até pintou. Mas apesar de ter tantos interesses, resolveu ser escritor e passou a<br />

usar o pseudônimo Ondjaki, que em umbundo (uma das línguas de Angola) significa<br />

“guerreiro”. Até 2018, publicou mais de vinte livros, entre coletâneas de poemas e<br />

contos, romances, novelas e livros infantis e juvenis. Ondjaki é membro da União dos<br />

Escritores Angolanos. Tem obras traduzidas para várias línguas e recebeu prêmios literários<br />

em Angola, Portugal, Brasil e França.<br />

Vânia medeiros<br />

Nasceu em Salvador, Bahia, em 1984. É formada em Comunicação e tem mestrado em<br />

arquitetura. Entre seus trabalhos se destacam: pesquisas sobre arquitetura, ilustração<br />

e projeto gráfico de livros, criação de cenários para teatro, aulas e oficinas sobre arte,<br />

exposições e participação em eventos artísticos. Também coordena a plataforma de<br />

publicações independentes Conspire Edições.


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Aos meus amigos<br />

Paula Nascimento, Daniel Martinho,<br />

Miguel Sermão, Ângelo Torres, Dalton Borralho,<br />

Mina Andala e Fernanda Almeida;<br />

aos mais-velhos Tamoda e João Vêncio,<br />

inspirações maiores do nosso cotidiano criativo;<br />

aos africanos que escolheram a<br />

Europa como uma outra casa.<br />

…é possível que, por “vias afectivas”, haja no meu título<br />

ecos de um título de Manuel Rui: ‘1 <strong>morto</strong> & os <strong>vivos</strong>’.<br />

Afinal, a literatura está contaminada de diálogos que uso aceitar.


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O texto O <strong>morto</strong>, os <strong>vivos</strong> e o <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong> foi apresentado pela primeira vez, via rádio (RDP África),<br />

durante o “África Festival 2006” (Portugal).<br />

Em 2009, o Grupo Harém de Teatro (Teresina, Piauí) publicou uma edição limitada desta obra,<br />

pelo que deixo aqui o meu agradecimento.<br />

Pelas falas em crioulo do personagem Titonho agradeço ao Carlos Jorge.


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Personagens<br />

João Jonny Mouraria ou Jj mouraria<br />

São-tomense, já português<br />

Manguimbo ou padrinho<br />

Angolano<br />

Titonho<br />

Amigo do <strong>morto</strong>, cabo-verdiano, com sotaque cabo-verdiano<br />

Solene<br />

Mulher do guichê, negra, portuguesa, com sotaque de Portugal<br />

Mana São<br />

Mulher da fila, angolana<br />

Makuvela<br />

Estudante, moçambicano<br />

Concertino ou Securíta<br />

Segurança, português<br />

Mário Rombo<br />

Pai da noiva, angolano<br />

Nadine<br />

Mãe da noiva, moçambicana<br />

Guilhermina ou MINA<br />

A noiva, portuguesa<br />

Quim ou tio Quim<br />

Tio da noiva, angolano<br />

FatU<br />

A vizinha, guineense<br />

Morto ou falecido ou finado ou defunto<br />

Guineense


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MANHÃ FRIA.<br />

LADO DE FORA DO EDIFÍCIO “MIGRAÇÃO-COM-FRONTEIRAS”.<br />

TITONHO APROXIMA-SE CAMINHANDO DEPRESSA. ENCONTRA UMA FILA NA PARTE DE FORA<br />

DO EDIFÍCIO. A SENHORA IMEDIATAMENTE À SUA FRENTE É MANA SÃO.<br />

TITONHO<br />

Bom dia, minha senhora.<br />

MANA SÃO<br />

Bom dia.<br />

TITONHO<br />

Como é, a fila está a andar?<br />

MANA SÃO<br />

Está mais ou menos.<br />

TITONHO<br />

Mais ou menos é como então?<br />

MANA SÃO<br />

É só assim, malembe-malembe. Devagarinho.<br />

TITONHO<br />

E não se pode entrar mesmo?<br />

MANA SÃO<br />

Entrar? [ri-se.] Entrar é daqui a duas horas… Você não acabou de chegar?<br />

TITONHO<br />

Vejo que a senhora é angolana.<br />

MANA SÃO<br />

Angolana e benguelense. E o senhor, cabo-verdiano, não?<br />

TITONHO<br />

Cabo-verdiano, muito prazer, sou António,<br />

mais conhecido aqui em Portugal por “Titonho”.<br />

MANA SÃO<br />

[rindo] Titonho?…, sou a Conceição, mais conhecida aqui e em todo o lado por Mana São.<br />

UM SEGURANÇA FAZ SINAL, A FILA AVANÇA UM POUCO, ALGUMAS PESSOAS CONSEGUEM<br />

ENTRAR NO EDIFÍCIO ABRIGANDO-SE DO VENTO. O SEGURANÇA FAZ SINAL PARA<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

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MANA SÃO ENTRAR, E JUSTAMENTE<br />

MANDA PARAR TITONHO, QUE FICA DE FORA.<br />

TITONHO [para o segurança]<br />

Meu amigo, dê-me só licença [tentando entrar] que eu estou aqui junto com a minha prima Mana<br />

São.<br />

SEGURANÇA<br />

[espantado] Sua prima?!, mas você acabou de a conhecer…<br />

TITONHO<br />

Nós, africanos, aqui na Europa, somos todos primos. De qualquer modo está muito frio aqui fora,<br />

deixe-me lá ficar junto da minha prima.<br />

SEGURANÇA<br />

Desculpe, mas não pode ser, tem que aguardar aqui fora. Uma fila é uma fila, o senhor tem que<br />

ter paciência.<br />

TITONHO<br />

[forçando para ficar do lado de dentro] Eu até tenho paciência, mas o problema é este vento<br />

desagradável. E mais uma pessoa não vai tirar vez de ninguém. Você não tem frio?<br />

SEGURANÇA<br />

Tenho frio e tenho ordens. Vá lá, espere um bocadinho que já entra. Isto agora é verão, daqui a<br />

pouco já passa o ventinho.<br />

OUVEM-SE VOZES DE RECLAMAÇÃO. NO FIM DA FILA UM HOMEM DE APARÊNCIA JUVENIL (JJ<br />

MOURARIA) SAI DO SEU LUGAR E VEM REFILAR COM O SEGURANÇA.<br />

JJ MOURARIA<br />

Ó “Segúra”, você não vê que está a falar com um mais velho, dikota propriamente dito, e [virando-se<br />

para TITONHO] bom dia que já vamos resolver isto.<br />

TITONHO<br />

[com frio, esfregando os braços, endireitando no braço esquerdo uma fita negra] Bom dia.<br />

SEGURANÇA<br />

Ó meu amigo, aqui ninguém falou mal com ninguém, eu estava a explicar a este senhor que…<br />

JJ MOURARIA<br />

[interrompendo] Aqui não há explicações de porque-why e ding-dong-bell. Este aqui é um nosso<br />

mais velho considerado, para mais em outros assuntos que você desconhece.<br />

ONDJAKi<br />

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SEGURANÇA<br />

[tentando falar] Mas eu não disse…<br />

JJ MOURARIA<br />

Abstenha-se de fazer ruído logo pela manhã, ó “jovial segúra”.<br />

AS PESSOAS NA FILA RIEM.<br />

JJ MOURARIA<br />

Você não tem olhos de ver que este mais velho está indevidamente resfriado nesta posição e precisa<br />

de resguardo a todos os níveis?<br />

SEGURANÇA<br />

O quê? Não entendo.<br />

JJ MOURARIA<br />

Faça por isso, meu jovem, faça por isso. [Mais sério, a olhar para o segurança] Abra a porta, por<br />

favor. Este nosso mais velho dikota-diami está enlutado numa tristeza muito própria.<br />

Você não viu a farpela lateral no braço?<br />

SEGURANÇA<br />

[Abre a porta, vira-se para Mana São] É que realmente não entendo…<br />

MANA SÃO<br />

Ele está a dizer que o Titonho, além de ter frio, está de luto,<br />

e que você deve respeitar e ajudar. Você nunca esteve enlutado?<br />

O SEGURANÇA FICA CONFUSO.<br />

JJ MOURARIA EMPURRA TITONHO PARA DENTRO DO prédio E FICA ELE<br />

PRÓPRIO LÁ DENTRO. DEPOIS VIRA-SE PARA O SEGURANÇA.<br />

JJ MOURARIA<br />

Muito obrigado, jovial “segúra”, a comunidade africana aqui presencial agradece a tua sensibilidade<br />

para com as temperaturas sentidas nesta manhã.<br />

SEGURANÇA<br />

[murmurando] Parece que vamos ter caldo de “muzinguê 1 ”…<br />

JJ MOURARIA<br />

[Ignorando-o] Já agora [virando-se para Mana São e TITONHO], se os mais velhos admitem o<br />

parlapiê, aproveito para redigir oralmente a minha graça.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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1. O Segurança quis dizer Muzonguê, um caldo de <strong>peixe</strong>.


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MANA SÃO<br />

[rindo] Há com cada um…<br />

JJ MOURARIA<br />

Atendo pelo internacional nome de Jota Jota Mouraria, originário barrigalmente das terras de S.<br />

Tomé e Príncipe, mas já vindo ao mundo nesta capital lisboeta de frios e tanta africanidade. É<br />

verdade, Jota Jota Mouraria… [Pausa] O “Jota Jota” é de raízes familiares, o “Mouraria” é de afinidades<br />

urbanas, muito prazer minha senhora…?<br />

MANA SÃO<br />

…Conceição, mais conhecida por Mana São, e este (aproxima-se de TITONHO) é o seu António,<br />

mais conhecido por Titonho.<br />

JJ MOURARIA<br />

E as coordenadas geográficas, já agora?<br />

TITONHO<br />

Eu sou de Cabo-Verde, Santo Antão, e a minha prima [olhando para o segurança] Mana São, é<br />

do sul de Angola, província de Benguela.<br />

JJ MOURARIA<br />

Verdadeiramente encantado por esta repentina confraternização palopiana 2 . [pausa] Então<br />

o amigo é um “morabezístico juramentado”, e a prima Mana São vem das correntes frias de<br />

Benguela… Que maneira mais optimística de começar o dia, folgo muito em vê-los aqui nesta<br />

nossa cidade afro-europeia.<br />

SEGURANÇA<br />

Isto vai aqui uma “cátchupa” 3 … Belo convívio, belo convívio me saiu na rifa.<br />

O SEGURANÇA AFASTA-SE, INCRÉDULO PELO DIÁLOGO. ABRE A PORTA, DEIXA ENTRAR<br />

MAIS PESSOAS. ENTRA UM SENHOR BEM VESTIDO (MANGUIMBO) E UM ESTUDANTE<br />

(MAKUVELA)<br />

SOLENE (senhora do guichê)<br />

Número 73, última chamada, número 73…! [e insiste] Número 73!…<br />

JJ MOURARIA<br />

[alto] Minha senhora, ultrapasse por favor esse número ausente. [pausa] Dê sequência a essa<br />

contagem numérica que aqui tem muita gente à espera… E camarão que dorme perde a senha…<br />

[vários risos]. Era o que faltava estarmos aqui à espera do tal 73…<br />

MANA SÃO<br />

[séria, para o TITONHO] <strong>Os</strong> meus pêsames pela sua perda.<br />

2. Referência a “Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa”, PALOP.<br />

3. O segurança quis dizer Catchupa, prato cabo-verdiano.<br />

ONDJAKi<br />

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TITONHO<br />

Muito obrigado, minha senhora.<br />

JJ MOURARIA<br />

[voz comovida] Titonho… permita-me que me avizinhe nesse sentido pesaroso e abrevie desde já<br />

os meus enlutados pêsames… [abraça TITONHO] Seja forte, kota 4 … por entre as brumas da dor, o<br />

sol da vida brilhará… seja forte… Tenho dito e fim de citação!<br />

TITONHO SENTE-SE ESQUISITO POR SER ABRAÇADO PELO DESCONHECIDO<br />

JJ MOURARIA, MAS FAZ UMA CARA DE AGRADECIMENTO. ENDIREITA A FITA NO BRAÇO<br />

DEPOIS DO ABRAÇO. JJ MOURARIA OLHA EM VOLTA COMO SE PROCURASSE ALGUÉM.<br />

TROCANDO OLHARES COM MANGUIMBO, CASUALMENTE, APROVEITA PARA FAZER UM<br />

SINAL DE CABEÇA, CUMPRIMENTANDO-O.<br />

TITONHO<br />

É assim a vida, não somos ninguém…, hoje estamos cá, amanhã não sabemos.<br />

Destine te pertencê Déus.<br />

JJ MOURARIA<br />

[baixinho] E mesmo esse já está com dificuldades em controlar a coisa…<br />

MANA SÃO<br />

[para TITONHO] Era familiar seu?<br />

TITONHO<br />

Era quase familiar.<br />

JJ MOURARIA<br />

Um primo?<br />

MANA SÃO<br />

Um irmão seu?<br />

JJ MOURARIA<br />

Um enteado assim afastado?!<br />

TITONHO<br />

Não, era um vizinho.<br />

JJ MOURARIA<br />

Eu compreendo…, hoje em dia nas relações de vizinhança europeia predomina um certo anonimato<br />

factual, mas sempre há excepções… [pausa] Eram vizinhos de larga duração?<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

13<br />

4. Kota: “mais-velho”; tratamento respeitoso.


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TITONHO<br />

É gente muito amiga… Sou de casa, frequentava muito os almoços de domingo e outros, conheço<br />

bem a esposa do falecido, éramos como irmãos, do mesmo clube de futebol e tal… Enfim…<br />

JJ MOURARIA<br />

[acenando afirmativamente com a cabeça] O belo fator da coesão desportiva, acrescido mesmo do<br />

polo gastronômico…<br />

MANA SÃO<br />

E foi assim muito de repente?<br />

TITONHO<br />

Quer dizer, a pessoa nunca está preparada para estas coisas, não é assim…?, mas digamos que<br />

ele foi morrendo… Foi morrendo… E depois morreu! [pausa] Foi de madrugada e a esposa quando<br />

acordou ele já não quis acordar, [pausa] deve ter sido a vontade de Deus.<br />

JJ MOURARIA<br />

[distraidamente] De noite sempre é mais suave… O fator da horizontalidade…<br />

MANA SÃO<br />

Como assim?<br />

JJ MOURARIA<br />

Não….. Digo… Dormindo tudo se mistura com a desfaçatez do sonho e tal, e não custa nada.<br />

[pausa] Melhor assim, não é mais velho? [para TITONHO], penso que o seu amigo vizinho terá<br />

seguido em paz… Dizem que é suave a travessia na canoa do adormecimento eterno, noves fora a<br />

poesia.<br />

TITONHO<br />

Julgo que sim… Nunca experimentei.<br />

MANA SÃO BENZE-SE. JJ MOURARIA BENZE-SE COM A MÃO ESQUERDA.<br />

SOLENE<br />

Número 84…, por favor, número 84 da senha amarela com riscas…<br />

TITONHO<br />

E a senhora, veio tratar da sua autorização de residência?<br />

MANA SÃO<br />

[sorrindo] Não…, eu quero ver como posso fazer com o meu filho que acabou de nascer.<br />

TITONHO<br />

Foi mãe recentemente? Mas ninguém diria… Muitos parabéns, minha senhora…<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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JJ MOURARIA<br />

[que estava distraído a olhar para outras filas] Mas que novidade refrescante e maternal, dona<br />

Mana São…, dona Mana São… [emocionado], venham de lá dois beijos e um amplexante abraço<br />

para saudar a recém chegada da sua criança.<br />

JJ MOURARIA DÁ DOIS BEIJOS E ABRAÇA A MANA SÃO, QUE ESTÁ UM POUCO<br />

ATRAPALHADA. DEPOIS VIRA-SE PARA O SEGURANÇA, EM TOM DE BRINCADEIRA.<br />

JJ MOURARIA<br />

Ó “jovial”, aqui não há champanhe para celebrações repentinas?<br />

[depois, para MANA SÃO] Muitos parabéns…<br />

MANA SÃO<br />

Muito obrigada.<br />

JJ MOURARIA<br />

Vejam as sobreposições coincidentes da vida… Falávamos ainda agora de uma morte<br />

repentina e já introduzimos um tema vital: há mais uma alma africana nascida nesta capital europeia.<br />

[pausa] Não há como o prédio da Migração-Com-Fronteiras para se aprender com a vida.<br />

SEGURANÇA<br />

[metendo-se na conversa] Viva os “cádengues”… Viva os “muanadengues”! 5<br />

TITONHO<br />

Mas esse registro da criança é aqui? A senhora tem certeza?<br />

MANA SÃO<br />

Aqui não é o registro, mas quero saber como faço para legalizar o miúdo, é que se calhar ele já<br />

pode apanhar essa boleia de ser português, não sei.<br />

JJ MOURARIA<br />

[satisfeito] É bem possível, dona Mana São, bem possível… Já foi aprovada essa lei Socrática 6<br />

de portugalizar os estrangeiros residentes… Não sei se a lei já está com vigor extensível aos recém-natos,<br />

se me faço entender.<br />

TITONHO<br />

Lei Socrática? Isso fica como então?<br />

JJ MOURARIA<br />

O tio num está a par das modificações legislativas que vão afectar as comunidades<br />

adjacentes? O primeiro-ministro, Tio Sócrates, já avançou com a proposta…<br />

A malta aí no meu bairro brindou às legalizações e apelidamos essa lei de “lei Socrática”. Quem<br />

residir aqui não sei quantos anos vai poder usufruir também.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

15<br />

5. Ele quis dizer Candengues ou Monandengues, em quimbundo: crianças.<br />

6. “Lei Socrática”: referente a José Sócrates, à época, primeiro-ministro de Portugal.


© Pallas Editora. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução.<br />

TITONHO<br />

Usufruir de quê?<br />

MANA SÃO<br />

Da nacionalidade portuguesa.<br />

TITONHO<br />

Afinal?<br />

JJ MOURARIA<br />

Afinal e enfim!, vamos ver se nos deixam também usufruir das igualdades todas, as de circunstância<br />

e as outras!… Mas penso que sim, desta vez tem de ser mesmo para valer, e acho que é<br />

mesmo com o BI, o Bilhete de Identidade amarelado e tudo.<br />

TITONHO<br />

[espantado] O BI amarelo dos portugueses? Vão dar aos africanos?!<br />

MANA SÃO<br />

Parece que sim, Titonho, é um sonho mesmo… Um sonho e um descanso…<br />

TITONHO<br />

[muito espantado] Mas o BI amarelo mesmo, aquele dos portugueses? Ou ainda é aquele azul, BI de<br />

estrangeiro que depois também desistiram e nos deram o cartão desdobrável…?<br />

JJ MOURARIA<br />

Ó tio, a promessa Socrática é a portugalidade documental efectiva. Nem a azulada, nem esse<br />

desdobrável tipo cortina de papelão. A promessa é um usufruto totalizado e potenciador… [pausa,<br />

e faz voz como se discursasse] total porque dentro da geografia europeia, e mesmo de outras, estaremos<br />

fortemente documentados; e potente, porque finalmente poderemos circular por nações<br />

nunca dantes frequentadas… [tosse] Tenho dito!<br />

TITONHO<br />

Deus queira mesmo, [voz triste; quase chorando] aiii!, que pena o meu compadre não tenha vivido<br />

mesmo para ver este dia…. [aqui esquece do seu teatro de choro e faz voz normal] Quer dizer, quem<br />

já reside há muito tempo vai poder mesmo pedir nacionalidade?<br />

MANA SÃO<br />

Pedir… Todos podemos pedir…<br />

TITONHO<br />

[sussurrando e olhando em redor] E vão dar mesmo a nacionalidade portuguesa?<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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© Pallas Editora. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução.<br />

NA FILA, O JOVEM MAKUVELA APROVEITA PARA ENTRAR NA CONVERSA.<br />

MAKUVELA<br />

Vão dar, sim, já se fala nisso. Quem vive aqui há seis anos já pode começar a tratar dos papéis.<br />

MANA SÃO<br />

Ah!, são seis anos?<br />

JJ MOURARIA FICA CIUMENTO PORQUE O JOVEM ESTUDANTE PARECE ESCLARECIDO.<br />

JJ MOURARIA FALA DEVAGAR E SABOREANDO CADA PALAVRA COMO QUE DESAFIANDO<br />

O ESTUDANTE COM O SEU PODER CRIATIVO VERBAL.<br />

JJ MOURARIA<br />

Não é bem assim, no “ipsis verbis factuandi”…<br />

MAKUVELA<br />

Como?<br />

JJ MOURARIA<br />

Como digo, não está ainda estabelecido o período temporal de residência prévia ao pedido efectivo<br />

da obtenção da nacionalidade plena e potenciária da chamada nação portuguesa… [pausa,<br />

olha para o miúdo] E o jovem?<br />

MAKUVELA<br />

Sim?<br />

JJ MOURARIA<br />

Qual foi o nome próprio que os seus pais lhe colocaram quando o levaram ao registo das crianças<br />

recém-nascidas?<br />

MAKUVELA<br />

Desculpe, não entendi.<br />

MANA SÃO<br />

[sorrindo] Ele está a perguntar como é que te chamas.<br />

MAKUVELA<br />

Chamo-me Makuvela Duba Dias, sou moçambicano, estudo aqui em Lisboa, também vim saber<br />

dessa situação da obtenção da nacionalidade.<br />

TITONHO<br />

[para Makuvela] sou o Titonho, cabo-verdiano de Santo Antão, muito prazer.<br />

JJ MOURARIA<br />

[aperta a mão de MAKUVELA] Jota Jota Mouraria, de S. Tomé e de Lisboa, simultânea e<br />

quotidianamente.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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© Pallas Editora. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução.<br />

MANA SÃO<br />

Eu sou a Conceição, mais conhecida por Mana São, sou benguelense.<br />

MAKUVELA<br />

Terra de moças muito bonitas, se me permite o comentário.<br />

O SEGURANÇA, NUM GOLPE INESPERADO, APROVEITA E APRESENTA-SE TAMBÉM COM<br />

AR DE PATETA.<br />

SEGURANÇA<br />

Eu sou o Concertino, mais conhecido por “Concertas”… Fiquem à vontade como se estivessem<br />

na “dibala”!<br />

TODOS RIEM MENOS JJ MOURARIA.<br />

MANA SÃO<br />

[corrigindo] Na buala!<br />

SEGURANÇA<br />

Sim, na “dibuala” 7 .<br />

TODOS RIEM.<br />

JJ MOURARIA<br />

Oiça lá, ó “Securíta”, isto aqui é uma confraternização Palopiana sem interferências do carimbo<br />

Schengen.<br />

MANA SÃO<br />

Deixa lá o moço, até tem um nome giro…<br />

JJ MOURARIA<br />

Nome giro… Nome giro… Concertino é nome de homem com “H” maiúsculo? Ou é uma vogal<br />

minoritária sem acento no parlamento adulto dos alfabetos ditos normais…?<br />

SEGURANÇA<br />

Não tem “amaka” 8 …<br />

SOLENE<br />

[interrompendo] Número 117, senha amarela com riscas… Número 117… [pausa] número 117…<br />

7. Buala: bairro, vila.<br />

8. O segurança quiz dizer Maka: problema, questão, confusão.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

18


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JJ MOURARIA REPARA QUE DEPOIS DO JOVEM MAKUVELA ESTÁ UM SENHOR<br />

(MANGUIMBO) BEM VESTIDO QUE OUVE ATENTAMENTE A CONVERSA DELES MAS QUE<br />

NÃO SE INTROMETE.<br />

SOLENE<br />

Número 117, senha amarela com riscas… Número 117…<br />

JJ MOURARIA<br />

Ó minha senhora, desvincule-se do 117, verifique a presença do 118, senão eu ofereço-me como<br />

voluntário!<br />

GARGALHADA GERAL.<br />

MANA SÃO<br />

E o Titonho, está aqui na fila por causa da sua autorização?<br />

TITONHO<br />

Não, eu estou devidamente autorizado. O meu compadre é que não estava, e como a morte<br />

chegou assim de repente, [voz triste] eu agora não sei como será com o enterro e parece que ainda<br />

tenho que vir legalizá-lo a tempo do funeral.<br />

JJ MOURARIA<br />

E essa cerimónia fúnebre, bem regada como manda a tradição africana, até podendo conter elementos<br />

de variada gastronomia local, essa cerimónia quando é vai decorrer, Titonho?<br />

TITONHO<br />

Está tudo ainda muito recente, [pausa] a esposa está desolada e pediu-me para eu vir obter informações.<br />

O funeral deverá ser o mais cedo possível.<br />

JJ MOURARIA<br />

Mas… Se não é atrevimento da minha parte, deixe-me perguntar:<br />

o <strong>morto</strong>, se assim poderei dizer, era de nacionalidade africana?<br />

TITONHO<br />

Sim, ele e a esposa são guineenses.<br />

JJ MOURARIA<br />

E na altura do passamento, ele estava desautorizado a residir, é isso?<br />

TITONHO<br />

Como assim?<br />

MANA SÃO<br />

<strong>Os</strong> papéis dele, estavam já irregulares, não?<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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TITONHO<br />

Pois, é isso mesmo, já estava tudo fora dos prazos, e eu agora vim aqui saber como é que são os<br />

trâmites do processo, deve haver uma solução.<br />

JJ MOURARIA<br />

Bem, um <strong>morto</strong>, se assim posso dizer, não é obrigado a ter autorização de residência,<br />

até porque para residir tinha que estar vivo… (pausa)<br />

Contudo, para ocupar o devido lugar em terreno cemiterioso, talvez, aí sim,<br />

os papéis venham a ser necessários em estatuto confirmado de legalidade oficiosa.<br />

MAKUVELA<br />

Mas não sei se esse assunto se trata aqui.<br />

TITONHO<br />

Eu também não sei, mas a minha comadre viúva estava tão triste que eu vim até aqui obter<br />

qualquer informação, mas uma pessoa só para pedir uma informação tem que enfrentar esta fila<br />

enorme…, isto é um problema.<br />

JJ MOURARIA<br />

[falando um pouco mais alto] Eu usualmente presto certo tipo de informações e de serviços de<br />

modo a evitar justamente estas esperas indefenidas e incessantes, [depois fala para o TITONHO}<br />

mas nunca antes fui confrontado com semelhante dificuldade processual… [murmura ainda} “Post<br />

mortem, vénitas documentum faltum”… [pausa} “Ignorum factu este!”<br />

MANGUIMBO, OLHANDO O RELÓGIO, APROVEITA PARA FALAR COM MAKUVELA.<br />

MANGUIMBO<br />

Desculpe, isto ainda demora muito?<br />

MAKUVELA<br />

Aqui é mesmo é só aguentar, kota, não faço ideia… Depende do andamento dos assuntos aí à<br />

frente.<br />

MANGUIMBO<br />

Mas isto é uma fila que nunca mais acaba, a atenderem as pessoas a este ritmo.<br />

JJ MOURARIA<br />

É uma dificuldade factual [pausa] e deveras desesperante, veja que nós já estamos aqui desde de<br />

manhãzinha, e contudo perecemos… “Mádrugas, madrugadum, et ómnia madrugadis!”.<br />

MANGUIMBO<br />

Como?<br />

JJ MOURARIA<br />

Quer dizer, aqui estamos, vamos estando…, na expectativa e tal, no mais, no etc… [pausa] E o<br />

senhor? Algum assunto informativo que eu possa adequar?<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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MANGUIMBO<br />

Eu estou aqui através de uma prorrogação de visto.<br />

MANA SÃO<br />

O senhor é de Luanda, não?<br />

MANGUIMBO<br />

Sou sim, minha senhora.<br />

MANA SÃO<br />

Vi pelo sotaque caluanda, não deixa dúvidas.<br />

MANGUIMBO<br />

[com voz de conquistador] E a senhora, se não me engano, é de Benguela.<br />

JJ MOURARIA<br />

Epá, sim senhor, você tem um radar com GPS direccional sem rasto de dúvidas, porque aqui a<br />

dona Mana São é mesmo de Benguela… A sua pista era a oralidade do sotaque?<br />

MANGUIMBO<br />

[calmo] Não… [pausa] A minha pista é a beleza no rosto da senhora Conceição.<br />

MAKUVELA<br />

Eu não disse, dona Mana São? As benguelenses não enganam.<br />

MANA SÃO<br />

Muito obrigado, mas também não precisa exagerar… [atrapalhada, tenta mudar de assunto] Mas o<br />

senhor dizia que vinha tratar do quê?<br />

MANGUIMBO<br />

Pois, eu queria ver se era possível prorrogarem-me o visto de turismo,<br />

dado que necessito de ficar mais uns dias, surgiram uns assuntos.<br />

JJ MOURARIA<br />

Tudo se resolve, nomeadamente e mesmo por conseguinte… [pausa] Tudo aqui é possível… Sabe,<br />

Lisboa nesse aspecto é muito homologada com Luanda.<br />

MANGUIMBO<br />

[olhando sério para JJ MOURARIA] Disso não tenho dúvidas.<br />

JJ MOURARIA<br />

[apertando a mão a MANGUIMBO] Sou Jota Jota Mouraria, um amigo ao seu expor.<br />

MANGUIMBO<br />

Prazer, sou Manuel, mais conhecido por Manguimbo.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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TODOS SE CUMPRIMENTAM SORRINDO. O TELEFONE DE JJ MOURARIA TOCA, ELE VÊ O<br />

NÚMERO, IGNORA A CHAMADA. RESPIRA FUNDO.<br />

JJ MOURARIA<br />

[ainda olhando para o TELEFONE e falando para si próprio] Estas epitáfias aventuras femininas…<br />

O que seria da vida sem os condicionalismos dos dias quotidianos e<br />

as relações afectivas em geral… Mesmo que no particular.<br />

MANGUIMBO<br />

Mas isto é por demais complicado, eu não vejo esta fila avançar.<br />

MAKUVELA<br />

[para Manguimbo] Ó kota, é só com calma mesmo… Aqui em Portugal, essa é a fila mais conhecida<br />

pelos africanos, até tem pessoas que envelheceram aqui nessa fila.<br />

TODOS RIEM. JJ MOURARIA ENTENDE QUE O MIÚDO TEVE PIADA E QUE CHAMOU A<br />

ATENÇÃO.<br />

MANGUIMBO<br />

Logo hoje que é o “dia D”.<br />

TITONHO<br />

[concordando] Nem me fale…<br />

JJ MOURARIA<br />

Com certeza aqui o senhor Guimbo está a referir-se fatualmente…<br />

MANGUIMBO<br />

[interrompe JJ MOURARIA, muito sério, falando em tom militar] Atenção jovem!… [pausa desagradável]<br />

O nome é Manguimbo, tenha atenção a todas as letras alfabéticas!<br />

JJ MOURARIA<br />

Queria desculpar este desintencional atropelo provocado por um mero “lábius lingué”… Eu<br />

queria indagá-lo quanto ao seu conceito de “dia D”… Acabou de dizer que hoje é o dia D, estou<br />

na frequência correcta?<br />

MANGUIMBO<br />

Positivo! Então vocês não sabem que hoje é o dia do jogo de futebol Angola-Portugal, no mundial?<br />

Eu estou aqui numa pilha de nervos.<br />

MANA SÃO<br />

[devagar] Mas olhe que isso faz mal ao estômago…<br />

MAKUVELA<br />

Esta espera é que faz mal a qualquer estômago.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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TITONHO<br />

Nê pe falá ness cosa!<br />

MAKUVELA<br />

No estômago?<br />

TITONHO<br />

Não, no jogo…… O meu falecido compadre, ele adorava futebol [pausa, voz triste], estava tão contente<br />

com este jogo de Angola-Portugal, logo tinha que vir a falecer um dia antes.<br />

JJ MOURARIA<br />

[para TITONHO] Tenha calma, Titonho… O que agora devemos realmente providenciar, e foi<br />

muito bem lembrado aqui pelo amigo Manguimbo, é uma comemoração do pré e do pós jogo internacional…<br />

A comunidade deve celebrar umas horas antes porque nunca se sabe o que poderá<br />

vir a acontecer umas horas depois…<br />

MANGUIMBO<br />

[sério, para JJ MOURARIA] Mas então você acha que Angola vai perder…?<br />

JJ MOURARIA<br />

[atrapalhado] Não iria tão longe no meu prévio prognóstico posterior…, Manguimbo… Isto é, propriamente,<br />

sou a favor da táctica da prudência, e que devemos celebrar antes e durante o evento,<br />

nos “depoises”, tudo poderá ser diferente o bastante…, se me faço entender…<br />

MANA SÃO<br />

O importante mesmo é que chegamos lá, e agora pronto, é só aguentarmos,<br />

mas já foi muito bom termos ido ao mundial.<br />

MANGUIMBO<br />

Sim, agora tudo pode acontecer.<br />

MAKUVELA<br />

E tá lá o nosso Mantorras.<br />

JJ MOURARIA<br />

“Nosso”, com quem? Tu não és moçambicano? Agora o Mantorras é primo do Eusébio ou quê?<br />

MANA SÃO<br />

Mas o Eusébio não é português?<br />

MAKUVELA<br />

Eu sou moçambicano, mas a malta de Moçambique está com Angola e com o Mantorras… Tudo<br />

pode acontecer.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

23<br />

TITONHO<br />

[olhando para o JJ MOURARIA, como que tentando perceber a jogada dele] Sim, hoje tudo pode<br />

acontecer [pausa] E este nervosismo dá-me sede…


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JJ MOURARIA<br />

O kota tem razão, “dura lex, sede lex”…<br />

Esta fila demorosa faz com que uma pessoa quase se desidrate de expectativas várias…<br />

[para MANGUIMBO] Ainda há alguns minutos inquiri o “jovem segúra” sobre a possibilidade<br />

desta casa fornecer umas bebidas à população aqui em lista de espera… [Pausa]<br />

SEGURANÇA<br />

Só se quiserem um caldo de “mizongué”… [e ri-se sozinho]<br />

Ahahah, com muito “jidumbo” 9 … Ahahah.<br />

MANA SÃO<br />

Isso é que era bom…<br />

TITONHO<br />

[sorrindo] Eu aceitava um grogue para saudar a selecção angolana.<br />

JJ MOURARIA<br />

[para MANGUIMBO] Mas se os nossos compatriotas permanecerem fiéis a esta fila, nós talvez<br />

possamos induzir-nos a uma tasca que eu conheço nas proximidades circundantes… O kota não<br />

alinha?<br />

MANGUIMBO<br />

Eu tou sempre pronto a alinhar num “levantamento de copo”… [a mão faz um movimento circular<br />

na barriga].<br />

TITONHO<br />

Eu posso acompanhar os senhores.<br />

MANA SÃO<br />

Podem ir, acho que isto aqui ainda falta um bom tempo…<br />

JJ MOURARIA<br />

[fazendo sinal a MANGUIMBO e a TITONHO] Seja feita a vontade dos homens, assim na rua como no<br />

Edifício das Migrações Com Fronteiras. Meus senhores, vamos efectuar uma retirada estratégica<br />

por motivos de pré-celebração do jogo sucedente a ele mesmo.<br />

JJ MOURARIA, MANGUIMBO E TITONHO RETIRAM-SE EM DIRECÇÃO À<br />

PORTA. JJ MOURARIA FAZ SINAL AO “JOVIAL SEGúRA” QUE LHES ABRE A PORTA.<br />

JJ MOURARIA<br />

Ó jovem, memorize com nitidez estes três rostos sedentos de sede, pois nós vamos ali com “V”<br />

de voltar, não venha depois com teorias de nos remeter para o fim da fila…<br />

O SEGURANÇA, MESMO SEM ENTENDER BEM, ACENA QUE SIM COM A CABEÇA.<br />

9. Seria Jindungo: pimenta.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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SEGURANÇA<br />

[sorrindo, contente] Não se preocupem, o “Concertas” tá aqui para resolver o maka, não é assim<br />

que se diz?<br />

MANA SÃO<br />

[rindo] É “A” maka, com “a”…<br />

SEGURANÇA<br />

[sorrindo, contente] Tá bem, não há “amaka” nenhum…, a casa é dos “cádengues” [ri-se]. Vêm?,<br />

isto a malta é todos numa de aprender…! [dá gargalhada ridícula]… Muita “kizumba” 10 , muito<br />

“jidumbo”, numa de aprender!… E viva o Bonga!<br />

JJ MOURARIA<br />

[para MANA SÃO] Se a dona Mana São não se importa, este grupo vai bater uma retirada…, para<br />

que os nossos tímpanos e respectivos aparelhos ouvidais não tenham que se conformar com os<br />

pecados verbais aqui do “Securíta”!<br />

SEGURANÇA<br />

[sorrindo e falando com estranho sotaque supostamente africano] É Concertino, o nome é<br />

Concertino… Mas não tem “amaka”, os “cádengues” podem “vazar”.<br />

MANA SÃO E MAKUVELA RIEM.<br />

MANA SÃO<br />

Vão só bem e cuidado a atravessar a estrada.<br />

JJ MOURARIA, MANGUIMBO E TITONHO RETIRAM-SE.<br />

MANA SÃO<br />

Fico sempre nervosa quando tenho que falar com estas autoridades migratórias.<br />

MAKUVELA<br />

Não tenha receio, é apenas uma informação.<br />

MANA SÃO<br />

Mas às vezes eles complicam, e ainda nos descobrem algum problema.<br />

MAKUVELA<br />

Não se preocupe, dona Mana São, tente é perguntar exactamente aquilo que lhe interessa.<br />

O resto é conversa.<br />

MANA SÃO<br />

Sim, mas eles querem é conversa…<br />

Resolver os problemas do povo é que está mais complicado.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

25<br />

10. Ele quis dizer Kizomba: música e estilo de dança de Angola.


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BAR SCHENGEN.<br />

JJ MOURARIA, MANGUIMBO E TITONHO ENTRAM E APROXIMAM-SE DO BALCÃO.<br />

JJ MOURARIA<br />

[para alguém do balcão] Ó amigo, recomende aí três imperiais estaladiças a modos que bem geladíssimas,<br />

por favor.<br />

VOZ DO BAR<br />

[com sotaque bem portugUês; irónico] “Sai” três imperiais aqui pro artista….!<br />

VOZES NO BAR. BARULHO DE COPOS CHEGANDO AO BALCÃO.<br />

MANGUIMBO<br />

Pois é, hoje Angola não tem tarefa fácil… Mas estamos motivados, tudo pode acontecer…<br />

TITONHO<br />

Com certeza, amigo.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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UM TELEFONE TOCA. É O DE JJ MOURARIA.<br />

JJ MOURARIA<br />

Se os amigos me dão uma certa licença, eu afasto-me para retroceder a esta chamada.<br />

TITONHO<br />

[rindo] Faça favor.<br />

MANGUIMBO<br />

Mas este gajo fala um português assim entre o bairro de Chelas e a Universidade Católica…<br />

TITONHO<br />

Não me faça rir.<br />

ENTRE RUÍDOS, ACONTECE SIMULTANEAMENTE O TELEFONEMA DE JJ MOURARIA E A<br />

CONVERSA ENTRE TITONHO E MANGUIMBO.<br />

JJ MOURARIA<br />

Sim, amor diz […] Mas hoje? Diz então a que horas seria o cujo encontro […] Hummm […] Com o<br />

teu pai?! […]O teu tio, mas qual? […] Do outro lado do rio… Qual? Quem? […] Quim ou Quem?<br />

TITONHO<br />

[para MANGUIMBO] Diga lá, amigo, o que o traz a Portugal? Falou de uns negócios…<br />

MANGUIMBO<br />

Sim… Negócios… Sabe como é, compra-se daqui vende-se dali… Muita circulação…<br />

TITONHO<br />

Desculpe, não estou a entender.<br />

MANGUIMBO<br />

É que este ano com o Mundial de futebol e tudo, anda muita coisa a circular…<br />

É preciso escoar os produtos…<br />

TITONHO<br />

Mas você veio comprar ou veio vender? Que produtos?<br />

MANGUIMBO<br />

Eu vim vender… Produtos diversificados,<br />

eu estou envolvido com o negócio do import-export…<br />

TITONHO<br />

Import-export? Mas de quê?<br />

MANGUIMBO<br />

De tudo um pouco, mobílias, carros, madeira, pedras…<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

27


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TITONHO<br />

Pedra também? Olhe nós em Cabo Verde o que não nos falta é pedra… Temos muita pedra… [ri-se;<br />

bebe cerveja.]<br />

MANGUIMBO<br />

[irônico] Nós também temos “pedras” em Angola. Mas são ligeiramente diferentes das vossas…<br />

JJ MOURARIA<br />

Não, desculpa […] Tava distraído aqui a ouvir uma sequência discursiva […] Sim […]<br />

Mas descobriste quando? […] E ligas-me assim derrepentemente e desprevenidamente para me<br />

arremessar essa notícia?…<br />

MANGUIMBO<br />

Mas, concretamente, como é que a coisa está organizada por aqui…?<br />

TITONHO<br />

Como assim?<br />

MANGUIMBO<br />

Quando é preciso despachar alguma coisa… Há contactos?<br />

TITONHO<br />

[entendendo] Isso depende dos materiais, e da urgência de cada um.<br />

MANGUIMBO<br />

E se o material for “bom” e a urgência for “alguma”…?<br />

JJ MOURARIA<br />

Eu? A quem? […] Então faz de conta que tu não sabes que eu sei que eles já sabem […] Pronto,<br />

calma […] Eu também gosto muito de ti…<br />

MANGUIMBO<br />

Bem, também tamos só a falar numa hipótese, não é… Sempre é bom estar informado.<br />

TITONHO<br />

Estar informado, sim… [pausa] E ser cuidadoso: kond bô te ne te terra de estrônhe, nunca bô te sinti<br />

ne bô casa!<br />

MANGUIMBO<br />

[pensativo] É verdade… Na terra do outro, a nossa casa é sempre emprestada…<br />

JJ MOURARIA<br />

Achas que vou como? […] Não é isso, é claro que vou de autocarro, mas vou sozinho? […] Sim<br />

[…] Hum […]; [assustado] o quê?! Padrinho!? […] Mas não era só ainda uma pequena introdução<br />

superficial, ou é já revisão da matéria dada? […] Não sei […] Olha, achas boa ideia levar<br />

champanhe?<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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EDIFÍCIO MIGRAÇÃO-COM-FRONTEIRAS. ALGUM RUÍDO DE VOZES.<br />

SOLENE<br />

Senha amarela às riscas, número 444… Quatro, quatro, quatro!, senha amarela às riscas…<br />

MANA SÃO<br />

É a minha vez, tou aqui distraída.<br />

MAKUVELA<br />

Vamos lá.<br />

SOLENE<br />

Bom dia.<br />

MANA SÃO<br />

Bom dia, minha senhora, desejava uma informação.<br />

SOLENE<br />

Desejava, ou ainda deseja?<br />

MANA SÃO<br />

Ainda desejo, queria saber se o meu filho…<br />

SOLENE<br />

Um momento! A sua senha por favor…<br />

MANA SÃO<br />

Aqui tem.<br />

SOLENE<br />

Está um pouco amarrotada, não?<br />

MANA SÃO<br />

Ah, desculpe.<br />

SOLENE<br />

Tem a certeza que esta senha é de hoje?<br />

MANA SÃO<br />

Tenho sim… Venho só tentar esclarecer uma coisa, é que o meu filho…<br />

SOLENE<br />

Um momento! Este senhor é seu familiar?<br />

MAKUVELA<br />

De certo modo.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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SOLENE<br />

Aqui não existem “certos modos”. Há laços. Laços de família. Se não é familiar e se não tem implicação<br />

directa no assunto, queira aguardar a sua vez e manter uma distância aceitável.<br />

MAKUVELA RECUA.<br />

SOLENE<br />

Diga lá.<br />

MANA SÃO<br />

Minha senhora, eu acabei de ter um filho e gostaria de saber se ele poderá ter nacionalidade<br />

portuguesa.<br />

SOLENE<br />

Isso não é nada fácil.<br />

MANA SÃO<br />

Sim, compreendo. Mas é possível?<br />

SOLENE<br />

Depende.<br />

MANA SÃO<br />

De quê?<br />

SOLENE<br />

De vários fatores. De múltiplas conjunturas.<br />

MANA SÃO<br />

Mas disseram-me que agora há uma lei que já prevê esta situação. A criança nasce cá, a mãe está<br />

legal, ela pode ser portuguesa.<br />

SOLENE<br />

A lei não prevê, a lei contempla. Mas de qualquer modo, nem mesmo contemplar é fácil.<br />

MANA SÃO<br />

Mas a senhora não tem essas informações?<br />

SOLENE<br />

Quais?<br />

MANA SÃO<br />

Das condições para a criança ter a nacionalidade portuguesa.<br />

SOLENE<br />

Bom, vejamos. [Pega na caneta, no papel começa a fazer um breve desenho.] A criança nasceu cá?<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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MANA SÃO<br />

Sim, há menos de um mês.<br />

SOLENE<br />

Então não é uma criança. É um recém-nascido.<br />

MANA SÃO<br />

Sim…<br />

SOLENE<br />

E você reside cá?<br />

MANA SÃO<br />

Sim, já resido há muito tempo.<br />

SOLENE<br />

E sempre esteve legal?<br />

MANA SÃO<br />

Sim, mal consegui emprego, legalizei-me.<br />

SOLENE<br />

E a criança, ah, digo, o recém-nascido?<br />

MANA SÃO<br />

O que tem a criança?<br />

SOLENE<br />

Está legal?<br />

MANA SÃO<br />

A criança acabou de nascer. É sobre a legalização dela que eu vim aqui informar-me.<br />

SOLENE<br />

E há quantos anos a senhora esta cá?<br />

MANA SÃO<br />

Há 5 ou 6 anos, aproximadamente.<br />

SOLENE<br />

Tem que ser mais exacta minha senhora. “Aproximadamente” é algo que vai de 5 minutos até<br />

500 anos. E há uma grande diferença: imagine que você não me convidou para ir à sua casa…<br />

[pausa] Mas eu vou. [pausa]. Uma coisa é ficar 5 minutos, outra é ficar 500 anos… Compreende?<br />

MANA SÃO<br />

Mas é que eu não sei exatamente o número de dias que estou legal em Portugal.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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SOLENE<br />

Mas terá que saber exactamente esse número. É disso que vai depender a decisão da<br />

nacionalidade.<br />

MANA SÃO<br />

Por uma questão de dias?<br />

SOLENE<br />

Até por uma questão de horas. A senhora tem de estar legal há mais de 6 anos. E olhe que os anos<br />

bissextos poderão ajudá-la… Ou não.<br />

MANA SÃO<br />

Mas…<br />

SOLENE<br />

Senha amarela às riscas número 445…<br />

MANA SÃO<br />

Mas não me pode dizer…<br />

SOLENE<br />

[ignorando-a] Senha amarela com risquinhas… Número quatro, quatro, cinco!<br />

MAKUVELA APROXIMA-SE.<br />

MANA SÃO<br />

Não entendo estes funcionários públicos…<br />

MAKUVELA<br />

Não se engane, estes não são funcionários públicos, são desfuncionais públicos…<br />

MANA SÃO<br />

Eu venho legalizar a criança e ela pergunta se a criança já está legal.<br />

MAKUVELA<br />

Não fique assim.<br />

MANA SÃO<br />

Eu digo que é uma criança, ela diz que é um recém-nascido…<br />

MAKUVELA SORRI. AMBOS SAEM DO EDIFíCiO MIGRAÇÃO-COM-FRONTEIRAS.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

33


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PORTA DO PRÉDIO DE MÁRIO ROMBO.<br />

MANGUIMBO<br />

Mas, agora estou-me a lembrar outra vez, nós não ficamos de ir lá ao edifício das fronteiras outra<br />

vez?<br />

JJ MOURARIA<br />

De certo modo… Quer dizer, ficou o dito pelo não feito… não há promessas rigorosas, padrinho,<br />

“passeare, humanum leste”…<br />

MANGUIMBO<br />

Bom, e aqui a situação é como, então?<br />

JJ MOURARIA<br />

É como combinámos já, padrinho… Entramos e deixamos que eles se declarem.<br />

MANGUIMBO<br />

Eles quem?<br />

JJ MOURARIA<br />

<strong>Os</strong> da família.<br />

MANGUIMBO<br />

Mas concretamente o que se passa? O quê que eles sabem?<br />

JJ MOURARIA<br />

Eu também desconheço o que eles conhecem, mas não se esqueça que o inverso também é verídico,<br />

padrinho…<br />

MANGUIMBO<br />

O inverso desse discurso é que era bom!… [pausa] Esta é mesmo a entrada do prédio?<br />

JJ MOURARIA<br />

É correcto, padrinho, estamos perante a entrada do palácio de uma certa Julieta, se me permite a<br />

referência.<br />

MANGUIMBO<br />

Da Julieta… [risos], e do pai da Julieta, e às vezes há também o irmão da Julieta, e os vizinhos! Nós<br />

lá em Angola temos muita experiência desse tipo de combate urbano feminino.<br />

JJ MOURARIA<br />

De fato o padrinho encontra-se com a razão… Mas neste caso concreto a noiva atende pelo nome<br />

de Mina.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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JJ MOURARIA PARECE NERVOSO. E NÃO TOCA A CAMPAINHA NEM ENTRA NO PRÉDIO.<br />

MANGUIMBO<br />

Mas como é então? Vamos entrar ou não?<br />

JJ MOURARIA<br />

Sim, justamente pensava nessa dúvida concreta, entrar ou não entrar, eis o senão…<br />

MANGUIMBO<br />

Ó “Jota”, deixa-te de conversa, pá, vamos avançar, tá tudo mais que visto…<br />

JJ MOURARIA<br />

Mas, ó padrinho [pausa], não estou a ver com a suficiente claridade qual é a nossa estratégia.<br />

MANGUIMBO<br />

A estratégia? Mas como assim?<br />

JJ MOURARIA<br />

A estratégia desta abordagem forçada, não se esqueça que<br />

estamos em território inimigo,e em desvantagem informativa.<br />

MANGUIMBO<br />

[interrompe] Não, não… deixa-te lá de lero-lero! Aqui não há estratégia nenhuma, é avançar e o<br />

depois logo se vê. A porta está aberta? [ouve-se o barulho dele a experimentar]<br />

JJ MOURARIA<br />

[entrando] Seja feita a vontade do padrinho.<br />

MANGUIMBO<br />

Vamos avançar que já tou com sede outra vez.<br />

JJ MOURARIA<br />

Encontro-me contudo munido de um certo nervosismo… Enfim, os dardos estão alçados!<br />

MANGUIMBO<br />

É o quê? Mas como é então você, nunca dás pausa nessas tuas dicas de papagaio mouro?<br />

CHORO NA ESCADA. PASSOS. ALGUÉM DESCE.<br />

JJ MOURARIA<br />

[devagar, como se procurasse entender o que se passa] Ó padrinho… [pausa]<br />

Como diria o saudoso Omelete, “há mais coisas entre a escada e o apartamento do que os nossos<br />

ouvidos podem escutar”…<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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ALGUÉM ACELERA O PASSO NA DESCIDA. É FATU. ENQUANTO DESCE VAI ALTERANDO A SUA<br />

RESPIRAÇÃO.<br />

FAT U<br />

[choramingando] Meu marido… Meu marido… És tu, meu marido?<br />

MANGUIMBO<br />

[para JJ MOURARIA] Mas, como é, você não disse que ainda era só dicas de noivado?<br />

JJ MOURARIA<br />

[sussurrando] Mas essa voz não é da minha pretendente, padrinho, acho que é da vizinha…<br />

MANGUIMBO<br />

[sussurrando] Mas você ainda nem casou e já tá com posições assumidas na vizinhança?<br />

JJ MOURARIA<br />

Não, padrinho, essa informação é negativa.<br />

MANGUIMBO<br />

É quê? Porra, fala lá um português mais entendível.<br />

FAT U<br />

[choramingando] Quem está aí? Ai… o meu marido…<br />

JJ MOURARIA<br />

Quis dizer que essa suposição acerca da vizinhança não corresponde aos factos verídicos. Essa é<br />

uma vizinha chorosa…<br />

MANGUIMBO<br />

Ahn… [como se já tivesse entendido], então esse código de “marido” não é contigo?<br />

JJ MOURARIA<br />

Que eu saiba, não…<br />

ENCONTRAM-SE TODOS NA ESCADA. de repente FAT U PARA DE CHORAR.<br />

FAT U<br />

Trouxeram o meu marido?<br />

JJ MOURARIA<br />

Mas… Nós acabámos de penetrar no edifício…<br />

FAT U<br />

Ai meu marido… [choramingando], vocês não são os bombeiros?<br />

JJ MOURARIA<br />

Dona Fatu, não me reconhece?<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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FAT U<br />

Te conhecer d’aonde?<br />

JJ MOURARIA<br />

Sou eu, o Jota Jota. O que se passa, dona Fatu?<br />

FAT U<br />

[chorando mesmo, abraçando-se a ele] O meu maridoooooooo…<br />

o meu marido faleceu-me ontem à noite…<br />

JJ MOURARIA<br />

[atrapalhado] Tenha uma certa calma, dona Fatu… a vida tem desses repentismos familiares.<br />

FAT U<br />

Eu pensei que vocês eram os da ambulância…<br />

MANGUIMBO<br />

[baixo, para JJ MOURARIA] Mas essa dama tá chalada ó quê?… Primeiro era já bombeiros agora é<br />

mais ambulância…<br />

FAT U<br />

O senhor é bombeiro…?<br />

JJ MOURARIA<br />

Não, este senhor é “padrinho”… mas que ambulância é essa, dona Fatu?<br />

FAT U<br />

A ambulância que levou o meu marido…<br />

JJ MOURARIA<br />

Como assim, dona Fatu?… Acalme-se um pouco, não fique assim, estamos a fazer muita<br />

barulhagem na escadaria, o senhor Mário Rombo pode ficar zangado…<br />

FAT U<br />

[chorando] Mas ele já tá zangado hoje o dia todo… já estiveram a berrar muito na casa dele…<br />

ai, o meu marido…<br />

MANGUIMBO<br />

[irritado] Mas como é então essa kota?<br />

JJ MOURARIA<br />

[nervoso] Chiuuuu… mais uma razão, dona Fatu, decida-se lá então no percurso do<br />

seu trajeto… vai descer sozinha, ou vai subir conosco?<br />

FAT U<br />

Mas vocês não são da ambulância…<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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MANGUIMBO<br />

Mas qual ambulância então é essa? Essa dama tá chanfrú 11 …!<br />

FAT U<br />

A ambulância que levou o meu marido hoje de manhã… para fazer exames médicos…<br />

JJ MOURARIA<br />

Examinações patológicas, é isso, dona Fatu?<br />

FAT U<br />

[repentina, sem chorar] Como?<br />

MANGUIMBO<br />

Mas qual patológica é esse mais? Exames médicos, a kota falou exames médicos…<br />

FAT U<br />

Sim… levaram pros exames… Disseram que depois vão lhe trazer outra vez antes da hora do almoço…<br />

[e chora] e eu pensei que este senhor [para MANGUIMBO] era da ambulância…<br />

MANGUIMBO<br />

[sussurrando] Essa tia tá a “estagiar” 12 com força.<br />

FAT U<br />

[choraminga] O meu marido…<br />

JJ MOURARIA<br />

[atrapalhado] Chiuuuuuu… dona Fatu, este senhor está aqui numa missão de padrinhagem forçada…<br />

Mais calma.<br />

FAT U<br />

[pausa repentina no seu choro] Missão de quê? Mas que português é esse que tu falas?<br />

MANGUIMBO<br />

Eu também já perguntei…<br />

JJ MOURARIA<br />

Ó amigos, por favor, retiremo-nos do espaço público predial… [começam a subir], dona Fatu, por<br />

favor, a ambulância ainda não regressou, vamos progredir para o seu enlutado apartamento.<br />

FAT U<br />

[choramingando] O meu marido… O meu marido…<br />

JJ MOURARIA<br />

Dona Fatu… Uma vez que o senhor Mário Rombo já anda assim com os nervos desfrangalhados,<br />

sabe-se lá porquê…, reduza o volume da sua choradeira enviuvada.<br />

11. Chanfrú: doido, maluco.<br />

12. Estagiar: enlouquecer.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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MANGUIMBO<br />

[comenta baixinho para si mesmo] Todos aqui tão a dar bandeira…<br />

OS TRÊS SOBEM. LÁ EM BAIXO, ABRE-SE A PORTA DO PRÉDIO. OS TRÊS FICAM EM<br />

EXPECTATIVA. HÁ SILÊNCIO. DEPOIS SIM, O RUÍDO DOS PASSOS.<br />

FAT U<br />

O meu marido… [pausa. Pára de repente de chorar.]<br />

Quem está aí? É o senhor bombeiro da ambulância?<br />

OUVEM-SE PASSOS FORTES DE QUEM SOBE AS ESCADAS DEPRESSA, ruidosamente.<br />

TRATA-SE DE QUIM, TIO DE MINA<br />

JJ MOURARIA<br />

[hesitante] Quem vem lá…?<br />

PASSOS MAIS RÁPIDOS.<br />

QUIM<br />

[aparecendo no piso onde os outros três se encontram…] E quem pergunta “quem vem lá”?<br />

FAT U<br />

[reconhecendo QUIM] Ai, senhor Quim…, o meu marido…<br />

QUIM<br />

[calmo] Tenha calma, dona Fatu, há coisas bem piores a sucederem neste mundo… A senhora<br />

nem sabe o problema familiar que presentemente atravessamos.<br />

FAT U<br />

O meu marido era um bom homem.<br />

QUIM<br />

[a querer despachar] A minha sobrinha também era uma linda menina… [pausa] vá lá, dona Fatu, vá<br />

para casa descansar um bocado, que nós temos aqui umas coisas para resolver…<br />

Estes senhores são da ambulância? São bombeiros?<br />

JJ MOURARIA<br />

De certo modo, meu caro senhor, até que hojemente seria melhor ser bombeiro…<br />

QUIM<br />

[com desdém] Como disse?<br />

MANGUIMBO<br />

Não somos bombeiros, somos apenas visitantes do prédio.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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QUIM<br />

Mas o senhor é angolano, não?<br />

JJ MOURARIA<br />

É sim… É o meu padrinho, o senhor Guimbo.<br />

MANGUIMBO<br />

Atenção, rapaz!, o nome é Manguimbo!<br />

JJ MOURARIA<br />

Sim, confirmo e ratifico: Manguimbo, o Padrinho.<br />

QUIM<br />

[despachando-se] Bem, meu senhores, padrinhos, afilhados ou bombeiros… Há coisas importantes<br />

para resolver. [decidido] Um bom dia para todos, salvo seja, e com respeito, dona Fatu, os meus<br />

pesares…<br />

FAT U<br />

[choramingando, abrindo a porta de casa] Obrigada… O meu marido…<br />

QUIM VIRA-SE PARA TOCAR NA PORTA EM FRENTE. FAT U VÊ UMA PISTOLA PRESA NA<br />

SUA CINTURA, NA PARTE DE TRÁS. ASSUSTA-SE.<br />

FAT U<br />

Ai, senhor Quim… Estas horas da manhã e anda com uma pistola… O meu marido…<br />

QUIM<br />

Nunca se sabe, dona Fatu, nunca se sabe, anda por aí muita malandragem, muito gabiru.<br />

JJ MOURARIA<br />

[apressado] Bom, vamos entrar, dona Fatu, o senhor “Quem” tem mais que fazer…<br />

QUIM OLHA SÉRIO PARA JJ MOURARIA.<br />

QUIM<br />

Não entendi…<br />

JJ MOURARIA<br />

[hesitante] Já não há entendimento plausível, senhor“Quem”…<br />

QUIM FAZ UMA PAUSA MUITO DESAGRADÁVEL. JJ MOURARIA TOSSE.<br />

ONDJAKi<br />

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QUIM<br />

Ó jovem, você deve ter entendido mal… O nome não é “Quem”.<br />

JJ MOURARIA<br />

Queira desculpar, senhor “Quem”, ah, perdão, senhor…, senhor…<br />

[acaba por desistir de dizer algum nome], eu havia entendido que o seu nome era “Quem”…<br />

QUIM<br />

Ó jovem… Não entenda as coisas antes de as entender… Sou Quim!<br />

JJ MOURARIA<br />

Como?<br />

QUIM<br />

[elevando a voz] Quim!, o nome é Quim.<br />

FAT U<br />

Ai, quem… quem me dera o meu marido…<br />

QUIM<br />

[para todos] Quim!, Quim, de Joaquim.<br />

FAT U<br />

[tentando terminar] Nós vamos então entrar… Até já, senhor Quim!…<br />

QUIM TOCA A CAMPAÍNHA.<br />

OUVE-SE A VOZ DE MINA DENTRO DA CASA DE MÁRIO ROMBO.<br />

MINA<br />

Quem é…..?<br />

QUIM<br />

Quim.<br />

MINA<br />

Quem?<br />

QUIM<br />

Quim, porra!<br />

FAT U ENTRA NO SEU APARTAMENTO COM JJ MOURARIA E MANGUIMBO. FECHA<br />

A PORTA. ABRE-SE A PORTA DO APARTAMENTO DE MÁRIO ROMBO.<br />

QUIM ENTRA.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

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ONDJAKi<br />

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APARTAMENTO DE FAT U .<br />

FAT U<br />

Sentem-se, então.<br />

JJ MOURARIA<br />

Muito obrigado.<br />

FAT U<br />

Estou muito nervosa sem notícias do meu marido.<br />

MANGUIMBO<br />

Mas, desculpe, onde está o seu marido?<br />

FAT U<br />

[respondendo como se desse uma resposta curta e evidente] Morreu!<br />

MANGUIMBO<br />

Isso já sei… Mas onde está agora, depois de <strong>morto</strong>?<br />

FAT U<br />

Não sei bem, foram fazer os últimos exames…<br />

e trazem de novo o corpo agora antes do almoço… ai, o meu marido…<br />

MANGUIMBO<br />

[irritado] Mas para ainda de chorar, chiça!<br />

JJ MOURARIA<br />

Shiuuuu, tenha calma, dona Fatu, e por falar em refeição… não há nada para distrair a boca?<br />

MANGUIMBO<br />

Até podia ser um pouco de <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong> de ontem,<br />

com cebola já se fazia um escabeche improvisado.<br />

FAT U<br />

Cebola é que não tenho…, mas vou ver se há outra coisa…<br />

MANGUIMBO<br />

E <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong>?<br />

FAT U<br />

Também não… [choramingando] Ai, o meu marido gostava tanto de <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong>…<br />

JJ MOURARIA<br />

Shiuuuu…!<br />

MANGUIMBO<br />

[para si mesmo] Essa viúva tá a malaicar 13 , sem comida…, parece que tá a ofender o <strong>morto</strong>…<br />

FAT U VAI PARA A COZINHA.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

43<br />

13. De Malaico: ridículo, absurdo.


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JJ MOURARIA<br />

Padrinho, desconfio pouco ter entendido acerca do personagem agora encontrado na escadaria<br />

pública… Afinal qual era a designação da pessoa dele?<br />

MANGUIMBO<br />

[com pouca paciência] Era Quim.<br />

JJ MOURARIA<br />

Não era “Quem”?<br />

MANGUIMBO<br />

“Quem” quê, porra? O nome dele é Quim.<br />

JJ MOURARIA<br />

Pronto, padrinho, não se fala mais nisso, mas evite proferir esses palavreados em pleno território<br />

funeralístico… [pausa] Estou deverasmente preocupado, padrinho…<br />

MANGUIMBO<br />

E eu estou deverasmente fobado 14 ,“afilhado”.<br />

JJ MOURARIA<br />

O padrinho vislumbrou o armamento epistolar no cinturão do tal Quim?<br />

MANGUIMBO<br />

Ouve lá, ó seu… [pausa] Ou falas um português falado<br />

ou vais sozinho enfrentar a noiva e o pai Rambo.<br />

JJ MOURARIA<br />

Eu vi uma pistola, padrinho…<br />

MANGUIMBO<br />

E pistola é leão? Nunca viste uma pistola?<br />

JJ MOURARIA<br />

Mas em circunstância de irritação já de si enervante, padrinho…, é uma visão assustadiça.<br />

MANGUIMBO<br />

Aprende, “afilhado”: o problema não é a pistola… A maka é saber se o dono da pistola tem<br />

mesmo hábito de disparar ou não… [pausa] A diferença entre o javali e o porco, apesar de primos,<br />

é que o porco anda a brincar no curral e tem comida. Já o javali, na mata, tem de caçar se quer<br />

comer…<br />

JJ MOURARIA<br />

Mas essa metáfora… Assim fora de horas… Deve ser da fome, padrinho.<br />

MANGUIMBO<br />

A tua compreensão é que tá fora de horas…<br />

Mas que terra esquisita onde um gajo nem pode comer um bocado de <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong>!<br />

14. Fobado: faminto, esfomeado.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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COZINHA DA FAT U .<br />

FAT U LIGA O RÁDIO. RDP-ÁFRICA. COZINHA ALGO, CHORAMINGANDO.<br />

LOCUTOR<br />

…é grande a expectativa e está tudo a postos, na Alemanha, em Portugal e em Angola, a comunidade<br />

de língua portuguesa tem a atenção virada para o jogo desta noite em que a selecção das<br />

quinas defronta os “palancas negras” neste que é o primeiro jogo que a selecção angolana faz<br />

num campeonato mundial… [música] em ambos os países as ruas estão cheias de telas gigantes e<br />

anunciam-se grandes festas após o fim do jogo, a RDP-ÁFRICA tem em linha um ouvinte que nos<br />

vai falar um pouco sobre este derby da lusofonia… Alô? Está-me a ouvir?<br />

ENTREVISTADO 1<br />

[barulho de gritarias] Sim, tou na escuta, meu general, lança aí kota Galeano.<br />

LOCUTOR<br />

[sorrindo] Não, não é o Galeano que está a falar, é o Trinca-Espinhas… Oiça, amigo, como é que<br />

está a ver o jogo de hoje?<br />

ENTREVISTADO 1<br />

[com sotaque angolano, no meio de gritaria] Não… [sério] ainda não tou a ver, o jogo é só mais logo,<br />

mas epa, tamos já a lucrar, eu aqui tou preparado pro que der e vier, não há “pruque” é só perder<br />

ou só ganhar, na minha casa quem vai ganhar é a Superbock num sabor disfarçado de Nocal 15 …<br />

LOCUTOR<br />

Mas você vai torcer por quem?<br />

ENTREVISTADO 1<br />

Vou torcer por quem? E há dúvidas? Tou do lado de Angola, evidentemente, mas tou no lucro, já<br />

me abasteci para qualquer resultado, se Angola ganhar vou beber, mas é pra festejar, se Angola<br />

perder, vou beber, mas é para se alegrar…<br />

LOCUTOR<br />

Obrigado, ouvinte… Junto do Parque das Nações, uma enorme multidão já ocupou os seus<br />

lugares, e há lugar para a festa com direito a sardinhas e muito vinho tinto… A minha colega<br />

Fernanda Almeida está no terreno e dá-nos conta da situação…<br />

HÁ MUITO RUÍDO, E PARECE QUE FERNANDA AINDA NÃO ESTÁ NO AR.<br />

MAS ESTÁ. O LOCUTOR INSISTE.<br />

LOCUTOR<br />

Fernanda Almeida, estás conosco?<br />

RUÍDOS, MAS DÁ PARA ENTENDER O QUE ELA VAI DIZER.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

45<br />

15. Superbock e Nocal: marcas de cerveja, respectivamente, de Portugal e Angola.


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FERNANDA ALMEIDA<br />

Alô, estúdio?… Alô? Não oiço nada, acho que tamos sem sinal… Epá, que coisa… Tu viste-me<br />

aquele estúpido completamente bêbado que me entornou um garrafão de vinho…? [ruído]<br />

LOCUTOR<br />

[rindo] Fernanda Almeida, estamos com sinal, sim, estamos em linha direta com todos os países<br />

de Língua Portuguesa, tens outros comentários além do vinho tinto já derramado?<br />

FERNANDA ALMEIDA<br />

[sorrindo, embaraçada] Bom… Deixa-me desejar as boas tardes a todos os ouvintes, uma boa<br />

tarde para ti, Trinca-Espinhas, aqui na “Expo” é de fato uma espécie de loucura total, há gente<br />

de todas as cores, camisetas de todas as cores, e bandeiras de todas as cores, qualquer que seja o<br />

resultado deste jogo haverá aqui gente para celebrar… [pausa] O senhor, diga-me, por favor, como<br />

é que vai ser o jogo de hoje?<br />

ENTREVISTADO 2<br />

[com sotaque português] Tá visto, isto tá visto, pá… <strong>Os</strong> angolanos são muito nossos amigos, pá,<br />

mas agora é hora da verdade, pá… Eles dizem que nós somos os “tugas”, pá, mas agora é que as<br />

“pacaças negras” vão ver o que é enfrentar os campeões europeus…<br />

FERNANDA ALMEIDA<br />

Desculpe, a seleção angolana é a seleção das “palancas negras”…<br />

ONDJAKi<br />

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ENTREVISTADO 2<br />

É palanca, é pacaça, vai tudo ser varrido… Mas tão a brincar connosco ó quê? Eles “hádem” cá<br />

vir, “hádem”… Eles é Akuá, eles é Mantorras, mas Portugal é Figo, é Ronaldo, é Maniche, eles<br />

não se esqueçam que vão enfrentar os campeões da Europa!<br />

LOCUTOR<br />

[interrompendo] Fernanda, desculpa, pergunta aí a esse amigo<br />

quando é que Portugal foi campeão da Europa?<br />

FERNANDA ALMEIDA<br />

O meu colega está a perguntar do estúdio, quando é que Portugal foi campeão da Europa.<br />

ENTREVISTADO 2<br />

Atão, não foi? Em 2004…?<br />

FERNANDA ALMEIDA<br />

Mas em 2004… Portugal perdeu por um a zero, com a Grécia.<br />

ENTREVISTADO 2<br />

Ó filha, a gente perdemos nos golos, mas moralmente fomos campeões… [ouve-se muita gritaria]…<br />

FERNANDA ALMEIDA<br />

Bom, é como se vê, melhor dizendo, como se ouve, há muita alegria aqui, muita comida, muito<br />

vinho e muito calor também, está tudo preparado para que será certamente uma grande festa<br />

nesta noite do grande derby entre Angola e […].<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

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APARTAMENTO DE MÁRIO ROMBO.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[fala baixo com a esposa. Estão na cozinha] Ó Nadine, deixa-te de brincadeira e de reviravoltas…<br />

Interrogaste a miúda ou não?<br />

NADINE<br />

Ó Marito, filho, mas qual interrogar…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Quero saber a verdade, daqui a bocado o moço está a chegar e nem sei bem o que dizer.<br />

NADINE<br />

Mas nem devias ter nada que dizer, nem que falar, acho esta conversa toda uma palhaçada,<br />

sinceramente…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Mas, ó filha, tu estás a brincar ou andaste a beber só porque hoje é dia de futebol?<br />

NADINE<br />

Ó Mário, não sejas parvo, “andei a beber”!… Acho mesmo uma parvoíce esta coisa de quererem<br />

interrogar os miúdos.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Parvoíce? Mas tu vives em que planeta? Então tu não me disseste que a nossa filha namora nãose-sabe-com-quem…,<br />

um bom palerma que anda aí todo o dia a fazer não-se-sabe-o-quê…<br />

NADINE<br />

Disse-te que ela me contou que tem um namorado, e que esse namoro, já tem algum tempo…,<br />

mas acho normal. Não te lembras das nossas aventuras em Maputo, antigamente…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Antigamente é outra conversa; agora é hojemente.<br />

NADINE<br />

Ó filho, não sei… Acho que é tudo natural, mas tu pensas que a tua filha não namora ou quê?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Só penso que no nosso tempo era mais tarde.<br />

NADINE<br />

Mais tarde!, mais tarde… não te faças de sonso… Até parece!<br />

ONDJAKi<br />

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OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

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49<br />

ARRUMA PRATOS E COPOS.<br />

NADINE<br />

Mais tarde quando a minha mãe soube já a minha irmã estava grávida…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[com dificuldades respiratórias] E o quê que queres dizer com isso…?<br />

NADINE<br />

Nada, filho, só quero que te acalmes… Se a miúda achou por bem trazer cá o namorado para te<br />

apresentar, tens mais é que colaborar.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Mas esta coisa de apresentar significa o quê?<br />

NADINE<br />

Significa que as coisas devem estar a ficar sérias.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[faz o seu barulho de garganta, barulho fechado, para dentro,<br />

como se fosse um “hummm!” grave e ligeiramente prolongado] Hummm!…<br />

NADINE<br />

É, filho, as coisas ficam sérias, as pessoas optam por tomar decisões, comunicar aos pais…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm!… [pausa] Mas… As coisas “ficarem sérias” no nosso tempo era outra coisa.<br />

NADINE<br />

Pois, eu não sei quão sérias estão as coisas…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

É por isso que eu insisti para que investigasses, afinal a tua investigação resulta que o gabiru vem<br />

cá e não sabemos de nada… Olha, eu não me responsabilizo pelas ações do meu irmão.<br />

NADINE<br />

Ouve lá, eu não quero aqui muita parvoeira dessa de novela com pistola de “Trinitá”<br />

e “Zeca Diabo”… Pensa é na tua filha e tenta ficar bem disposto.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Mas isto tinha que ser hoje, no dia do jogo da selecção?<br />

NADINE<br />

Ó filho, isso é igual.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Mas tu andaste a beber ou quê?… É igual como!?<br />

Não podia ser terça-feira da páscoa ou sei lá quê dos santos padrinheiros…


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NADINE<br />

[corrigindo] Padroeiros.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Agora, dia mesmo de futebol, ainda por cima este jogo… Caramba!…<br />

NADINE<br />

[séria] Ó filho, sai-me só do caminho, que eu estou a tentar preparar aqui uns aperitivos para<br />

logo… E uma comida para levar à Fatu.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Como é que ela está?<br />

NADINE<br />

Não sei, mal tive tempo de falar com ela, é tudo ao mesmo tempo.<br />

QUIM ENTRA NA COZINHA.<br />

QUIM<br />

Dá licença, minha cunhada.<br />

NADINE<br />

Entra, cunhado.<br />

QUIM<br />

[um pouco irónico] Falam da viúva negra?<br />

NADINE<br />

[séria] Mais respeito, senhor Quim, mais respeito…, assunto de <strong>morto</strong> não é brincadeira.<br />

QUIM<br />

Tem razão, cunhada. Desculpa.<br />

NADINE CIRCULA PELA COZINHA MUDANDO AS COISAS DE LUGAR.<br />

QUIM<br />

Ó cunhada… Não tens aí nada para enganar o vazio do estômago?<br />

NADINE<br />

Tem só calma, e vão os dois para a sala, já vos levo qualquer coisa, deixa-me só organizar aqui o<br />

esquema.<br />

MÁRIO ROMBO ABRE A GELEIRA, PEGA EM DUAS CERVEJAS. ABRE AS CERVEJAS.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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MÁRIO ROMBO<br />

Meu irmão, vamos bater aqui uma retirada estratégica e repensar o esquema aí do “gabiru”.<br />

QUIM<br />

Vamos então, mas dá-me já a cerveja que o líquido ajuda a lubrificar o pensamento.<br />

dirigem-se à porta. NADINE VÊ A ARMA NO CINTO DE QUIM.<br />

NADINE<br />

[muito assustada] Ai, meu deus… Ó Quim!…<br />

QUIM<br />

O que foi, cunhada?<br />

NADINE<br />

Eu num te disse mil vezes que não quero armas aqui em casa?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[calmo] Isso não é uma arma, Nadine, é uma pistola.<br />

Arma é “RPG-7”, “AK47” e por aí em diante.<br />

NADINE<br />

Ó Mário, não sejas parvo que eu não estou a brincar.<br />

QUIM<br />

Ó cunhada, mas o Mário disse-me ainda ontem à noite…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[interrompendo e falando sério] Fui eu que lhe disse ontem para ele hoje trazer a kilunza… [pausa]<br />

mas ó Nadine, tu tás a brincar ou quê?<br />

NADINE<br />

[muito nervosa] Não gosto de armas, já sabes que não gosto de armas.<br />

QUIM<br />

Mas, cunhada, isto é só uma pistolazita, é uma makarov dos bons velhos tempos.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Nadine… tu não me disseste que o gabiru é daquelas zonas ali entre Alfamas e Mourarias?<br />

NADINE<br />

Foi o que eu entendi, sim… Ó Quim, tira-me essa pistola daqui, faz favor.<br />

QUIM SAI DA COZINHA.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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MÁRIO ROMBO<br />

Ó filha, eu não sei quem vem aí… talvez nem a tua filha saiba, mas tu pensas que Mouraria é brincadeira?<br />

Mouraria é o Sambizanga cá de Portugal…<br />

NADINE<br />

Eu não conheço o Sambizanga, filho. Nunca estive em Luanda…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Mesmo muita gente de Luanda também nunca esteve no Sambizanga… A Mouraria é um bairro<br />

sério, cheio de gente séria quando quer enganar.<br />

NADINE<br />

Também não é tanto assim…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Não é assim…? Tu queres receber em tua casa um palermóide da Mouraria sem estarmos devidamente<br />

prevenidos? O meu irmão fez muito bem em trazer a kilunza, a coisa assim tá mais<br />

controlada.<br />

NADINE<br />

[mais calma] Ó filho, mas fico nervosa com as armas…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Aquilo não é arma, Nadine, é uma makarov. Arma é assim M16, PKM…<br />

NADINE<br />

Vai lá fazer companhia ao teu irmão.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Mas não arranjas mesmo aí um petisco?<br />

NADINE<br />

O quê que te apetecia?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

De verdade mesmo, um mimo assim no dia que a minha seleção vai jogar?<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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NADINE<br />

Não vale a pena que não há kizaka 16 .<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Nem tava a pensar em tanto… Arranja só mesmo um bom prato de <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong> que a malta ataca<br />

uma sandes de <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong> com jindungo e limão.<br />

NADINE<br />

[com pena do marido] Ai, filho, <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong> é que não há.<br />

MÁRIO ROMBO DIRIGE-SE À SALA.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Ó filha, então traz qualquer coisa, nem que seja lata de atum contra batata frita, temos é que<br />

enganar a fome.<br />

QUIM<br />

Comé, ponho a pistola onde?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Fica mesmo aí contigo, mas esconde só debaixo da camisa para a Nadine não ficar nervosa antes<br />

do tempo.<br />

QUIM<br />

Sai um <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong> com limão?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Nada, tá fraco… Parece que cada vez é mais complicado encontrar as coisas mais simples…<br />

Na nossa casa não haver <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong> de anteontem era já sinal de mau azar.<br />

QUIM<br />

O pai saía para ir buscar em qualquer lugar, nem que fosse carapau magrinho…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Mas eu não vou sair agora, Quim…!<br />

QUIM<br />

Sim, eu sei, só tava a lembrar o pai nas dicas dele de <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong>…!<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

53<br />

16. Kizaka: prato angolano feito de folhas de mandioca pisadas.


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ONDJAKi<br />

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APARTAMENTO DE FAT U . NA SALA JJ MOURARIA FALA COM<br />

MANGUIMBO.<br />

JJ MOURARIA<br />

Padrinho, estou a ver se penso numa estratégia…<br />

MANGUIMBO<br />

Aqui não há mais estratégia nenhuma, é só irmos lá com calma e falar bem…<br />

Afinal quais são as tuas intenções?<br />

JJ MOURARIA<br />

Não estou munido de qualquer intenção.<br />

MANGUIMBO<br />

Mas você aprendeu a falar assim aonde? Nessa tal de Mouraria…? Deixa-te de brincadeiras que<br />

a coisa tá a ficar a séria. Tu quando entrares ali naquele apartamento, vais ser bem espremido. É<br />

melhor ires preparado!<br />

FAT U ENTRA COM PIRES NA MÃO. OUVE-SE O BARULHO DELA A POUSAR AS COISAS.<br />

FAT U<br />

Ai, o meu marido…, pronto, aqui tem um pouco de pão com manteiga para enganar a fome…<br />

MANGUIMBO<br />

[sussurrando] Pópilas!, nem já no tempo do socialismo…, não! Eu mesmo em Portugal é que vou<br />

mais comer sandes de pão com cheiro de manteiga…?!<br />

FAT U<br />

Como?<br />

JJ MOURARIA<br />

O padrinho…, devido a problemas estomacais de natureza “gástro”, não pode ingerir derivados<br />

de manteiga…<br />

FAT U<br />

[já sentada] Mas não sei… Agora faço como, para saber do meu marido…? Deve estar a chegar, não?<br />

MANGUIMBO<br />

[concordando e levantando-se] Sim, não se preocupe, os bombeiros levam os corpos e depois<br />

trazem sempre… “Menino afilhado”, vamos lá conhecer a noiva.<br />

JJ MOURARIA<br />

Mas agora?<br />

MANGUIMBO<br />

Agora e já. Vamos lá, deixemos aqui a dona Fatu descansar um pouco.<br />

Dê licença, minha senhora.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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JJ MOURARIA<br />

Mas, padrinho…<br />

MANGUIMBO<br />

Vamos avançar, vamos lá… [depois, para FATU] Dona Fatu?<br />

FAT U<br />

Diga, senhor “Guimbo”…<br />

MANGUIMBO<br />

[muito baixinho] “Guimbo” é os tomates da prima…!<br />

FAT U<br />

Diga?<br />

MANGUIMBO<br />

A senhora desculpe, mas parece mal… Daqui a bocado vão chegar parentes e amigos e a senhora<br />

não tem nada para servir, nem dos sólidos nem dos líquidos. Não faça isso, pode parecer falta de<br />

respeito pelo defunto…<br />

JJ MOURARIA<br />

[pegando-o pelo braço] Vamos, padrinho!<br />

FAT U<br />

Ai, não me diga uma coisa dessas, o meu marido…<br />

JJ MOURARIA<br />

Não se preocupe, dona Fatu, nós também vamos já providenciar uma remessa gastronómica,<br />

deixe-me dialogar com a vizinhança.<br />

FAT U<br />

[choramingando] Ai, o meu marido…<br />

JJ MOURARIA E MAGUIMBO SAEM DO APARTAMENTO.<br />

DIRIGEM-SE À OUTRA PORTA. TOCAM À CAMPAINHA.<br />

JJ MOURARIA<br />

[baixinho] Padrinho, não seria melhor voltarmos outra hora, ainda é cedo…<br />

MANGUIMBO<br />

Nunca é cedo nem tarde para se enfrentar os problemas. E também tou cheio de sede.<br />

MINA ABRE A PORTA.<br />

MINA<br />

Amor… Tudo bem?<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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OUVEM-SE VOZES LÁ ATRáS.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Ó Mina, quem é?<br />

MINA<br />

[baixinho] Tudo bem? Ainda bem que vieste, tão todos à tua espera, a minha mãe tá contente de<br />

te conhecer.<br />

JJ MOURARIA<br />

Já o teu pai…<br />

QUIM<br />

Ó Mina, tu não ouviste o teu pai? Quem tá aí?<br />

MINA<br />

Vamos entrar então…<br />

JJ MOURARIA<br />

Mina, este é o kota “Guimbo”…<br />

MANGUIMBO<br />

[corrigindo] Manguimbo!<br />

MINA<br />

Muito prazer, entrem, por favor.<br />

PORTA FECHA-SE. PASSOS. MÁRIO ROMBO E TIO QUIM APROXIMAM-SE.<br />

MINA<br />

Pai, este é o…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[interrompendo] Eu já estou a ver quem é. Boa tarde!<br />

JJ MOURARIA<br />

Meus senhores, muito boa tarde, respectivamente.<br />

MINA<br />

E este é o senhor…<br />

JJ MOURARIA<br />

Manguimbo, um amigo colateral da família.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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QUIM<br />

[para MIN A] A menina mantenha-se deste lado da trincheira, por favor.<br />

NADINE APROXIMA-SE.<br />

NADINE<br />

Boa tarde, meus senhores.<br />

JJ MOURARIA<br />

Muito boa tarde, por obséquio.<br />

MANGUIMBO<br />

[baixinho, para JJ MOURARIA] Para lá com essas dicas de Sucupira!<br />

QUIM<br />

Bom, vamos lá entrar que a porta não é parque de estacionamento!<br />

DIRIGEM-SE À SALA.<br />

NADINE<br />

[para MINA] Filha, afasta essas almofadas para os senhores se sentarem.<br />

MINA<br />

Sim, mãe.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Sentem-se.<br />

MINA<br />

[para JJ MOURARIA] Amor, senta-te aqui nesta cadeira que é mais confortável…<br />

QUIM<br />

Mas o nome dele é “Amor”?<br />

JJ MOURARIA<br />

Não, senhor “Quem”, o nome é Jota.<br />

QUIM<br />

“Quem”, não. Quim!<br />

JJ MOURARIA<br />

Sim, Quim.<br />

QUIM<br />

Quim, não. Senhor Quim!<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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JJ MOURARIA<br />

Sim, senhor Quim. [para QUim] Sente-se.<br />

MINA<br />

[Para JJ MOURARIA] Senta-te. [JJ MOURARIA hesita.]<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[para MANGUIMBO] Sente-se.<br />

MANGUIMBO<br />

[para MINA] Sente-se!<br />

QUIM<br />

[autoritáro, para JJ MOURARIA] Senta-te.<br />

NADINE ENTRA. TRAZ GARRAFAS NUMA BANDEJA.<br />

NADINE<br />

[sorrindo] Sentem-se.<br />

TODOS ACABAM POR SE SENTAR.<br />

MINA<br />

Mãe, este é o Jota.<br />

JJ MOURARIA LEVANTA-SE. CUMPRIMENTA NADINE COM UM CERIMONIOSO BEIJINHO<br />

NA MÃO. NADINE SORRI.<br />

QUIM<br />

Mas “Jota” é nome próprio ou é letra de alfabeto?<br />

JJ MOURARIA<br />

O nome seria João, mas os amigos abreviaram-me para simplesmente Jota.<br />

NADINE<br />

Olá, Jota, como está?<br />

JJ MOURARIA<br />

Em condições possíveis, e a senhora, como está a discorrer pelo seu dia?<br />

NADINE<br />

[sorrindo] Tá tudo normal, graças a Deus.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Bom…<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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QUIM<br />

Falando de coisas sérias…<br />

MANGUIMBO<br />

[para MÁRIO ROMBO] Desculpe, pode passar-me essa garrafa de cerveja?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Faça o favor.<br />

A CAMPAINHA TOCA. É O INTERCOMUNICADOR.<br />

NADINE<br />

Deixem-se estar, eu atendo.<br />

MANGUIMBO<br />

[provando a cerveja] Muito bem gelada, sim senhor… Tá mesmo a estalar.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[tom desconfiado] Você é de Luanda?<br />

[ESTE DIÁLOGO É COMO QUE UM DESAFIO. DE VOZ E DE OLHAR.]<br />

MANGUIMBO<br />

[devagar] Sou sim…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Do Bairro Azul?<br />

MANGUIMBO<br />

[lentamente] Mais para baixo. Praia do Bispo.<br />

PAUSA.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Perto do Mausoléu?<br />

MANGUIMBO<br />

Mais para cima… Perto do Posto do Pão.<br />

PAUSA.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Junto ao Cine Kinanga?<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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MANGUIMBO<br />

Mas mais para os lados da Igreja…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Tou a ver… Não me diga que você é do tempo do Padre Inácio?<br />

MANGUIMBO<br />

Nunca fui militante de catequeses, mas ouvi falar desse Padreco…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Parece que uma vez esse padre levou uma carga de porrada… [pausa]<br />

Por se ter metido com a filha de alguém…<br />

MANGUIMBO<br />

Parece que sim…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[irónico] Há filhas, e há filhinhas…<br />

JJ MOURARIA<br />

[nervoso, tosse…] Senhor Quim, posso beber alguma coisa?<br />

QUIM<br />

[hesitante] Beba.<br />

MANGUIMBO<br />

Parece que esse Padre Inácio gostava de ver meninas a treinar basquetebol em calções de lycra…<br />

Calções justinhos…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Foi o que ouvi dizer… [pausa]; [para JJ MOURARIA] Você também é da Praia do Bispo?<br />

JJ MOURARIA<br />

Não, senhor “Rambo”…<br />

QUIM<br />

[sério] O nome é Rombo. Mário Rombo.<br />

JJ MOURARIA<br />

[nervoso] Desculpe, sofro de uma impertinente “displexia”…[PAUSA]<br />

Mas, senhor Rombo, eu já nasci aqui em Lisboa.<br />

QUIM<br />

Em que bairro?<br />

JJ MOURARIA<br />

Na Mouraria.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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MINA<br />

[alegre] Então, pai, é como eu… Já nasceu aqui, sempre viveu aqui…, não é, Amor?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[faz o barulho dele] Hummm…!<br />

QUIM<br />

Mas o nome dele é “Amor”?<br />

NADINE REGRESSA À SALA.<br />

NADINE<br />

Olha, era aquele amigo do vizinho, o cabo-verdiano…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm!<br />

QUIM<br />

Titonho?<br />

MANGUIMBO<br />

[para JJ MOURARIA] Será o mesmo Titonho?<br />

NADINE<br />

Sim, é capaz de trazer notícias do falecido. [PAUSA] Mina, vem à cozinha ajudar-me, por favor.<br />

MINA<br />

Sim, mãe. [levanta-se, dá um beijinho na bochecha de JJ MOURARIA] Venho já, Amor.<br />

QUIM<br />

Mas o que é isso, menina?<br />

MINA RI. SAI DA SALA.<br />

JJ MOURARIA<br />

[atrapalhado] Desculpe, senhor “Robo”.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm…<br />

QUIM<br />

[sério] Ó rapaz!…, o nome é Rombo. Mário Rombo.<br />

MANGUIMBO<br />

Senhor Rombo, desculpe, onde é a casa de banho?<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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QUIM<br />

[sério, e sempre olhando para JJ MOURARIA] Segunda porta à direita do ponto de vista de quem<br />

segue em frente.<br />

MANGUIMBO SAI DA SALA.<br />

JJ MOURARIA<br />

[atrapalhado] Pois é, justamente.<br />

QUIM<br />

Pois é, rapaz… Chega uma hora em que um homem tem de se comportar como um homem.<br />

JJ MOURARIA<br />

Com certeza, senhor Quim… A vida tem o seu recurso próprio, inclusivamente.<br />

QUIM<br />

E as consequências também…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm…!<br />

JJ MOURARIA<br />

[atrapalhado] As consequências…?<br />

QUIM<br />

As atitudes, as consequências… Parece que temos de falar, meu jovem.<br />

JJ MOURARIA<br />

Venho disposto ao diálogo, ao contraponto… À prosa em geral, senhor Quim.<br />

QUIM<br />

Bom… [pausa] Vamos lá a ver se organizamos a conversa que não podemos<br />

estar aqui até muito tarde. Hoje, como sabe, há jogo da selecção angolana.<br />

JJ MOURARIA<br />

Estou totalmente inteirado do contexto futebolístico.<br />

QUIM<br />

Ainda bem. [pausa] Bom… este senhor que veio consigo… Quem é?<br />

JJ MOURARIA<br />

Como assim…? O senhor Guimbo?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm!<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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QUIM<br />

O nome dele é Manguimbo.<br />

JJ MOURARIA<br />

Tem razão… [pausa], bem… O Manguimbo é um amigo, veio acompanhar-me nesta sequência<br />

dialogante.<br />

QUIM<br />

[inquisitório] Então você… veio cá hoje… para esclarecer as coisas…?<br />

JJ MOURARIA<br />

Bem, eu vim a pedido da Mina…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm!<br />

QUIM<br />

Mas você veio a pedido da Mina, ou você veio porque achou que tinha que vir?<br />

JJ MOURARIA<br />

Bem… Eu penso que terá sido muito simultaneamente ambas as duas coisas.<br />

QUIM<br />

[abre a sua garrafa de cerveja] Acho bem… Porque hoje é dia de clarificarmos as coisas!<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm!…<br />

QUIM<br />

Nós queremos primeiro escutar o que você tem a dizer… E depois então falará o meu irmão, e eu<br />

também falarei, no fim…<br />

JJ MOURARIA<br />

E o kota Manguimbo não tem tempo de antena…?<br />

QUIM<br />

Tempo de antena?! Ó rapaz… [aponta-lhe o dedo, sério] Você nesta casa deve ter mais cuidado com<br />

o palavreado…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm!…<br />

NA COZINHA OUVE-SE UM GRITO DE ESPANTO DE NADINE.<br />

MINA<br />

Shiuuuuuu…!<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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NADINE<br />

Ai, meu deus…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm!…, o quê que foi?<br />

MINA<br />

[atrapalhada] Não foi nada, pai, deixámos cair uma coisa aqui na cozinha.<br />

JJ MOURARIA<br />

[para MINA] É preciso ajuda?<br />

QUIM<br />

[sério] Não! Não é preciso ajuda nenhuma.<br />

MANGUIMBO VOLTA DA CASA DE BANHO. SENTA-SE.<br />

QUIM<br />

Senhor Manguimbo, eu dizia aqui ao seu sobrinho…<br />

MANGUIMBO<br />

Ele não é meu sobrinho.<br />

QUIM<br />

Ao seu…<br />

JJ MOURARIA<br />

Enteado! É como se fosse enteado por afinação…, em São Tomé enteado vai dar quase igual a<br />

sobrinho…, ou mesmo afilhado por intermitência!<br />

QUIM<br />

Bom, eu dizia aqui ao seu enteado… Que estou à espera que ele nos diga como está a situação.<br />

MANGUIMBO<br />

[bebendo a cerveja, desinteressado] Sim, Jota, diz aqui aos senhores como é que está a situação!<br />

JJ MOURARIA<br />

A situação?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm!…<br />

QUIM<br />

[mais sério, mais alto, mais firme] Vamos lá, rapaz, deixa-te de derrapagens…<br />

Afinal o quê que se passa?<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

65


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JJ MOURARIA<br />

Bem… meus senhores, os de certa afinidade familiar e os demais, de longa data e os recentes…<br />

QUIM<br />

[escutando, interessado] Sim?<br />

JJ MOURARIA<br />

É próprio do comportamento juvenil… e dos outros em geral… que em dada altura do processo<br />

aproximativo mais ou menos factual… [tosse] Entre afinidades e o decurso do tempo amoroso…<br />

MANGUIMBO<br />

[baixinho] Cum caraças…!<br />

QUIM<br />

[para ROMBO] Ó mano, isto faz lembrar o Odorico…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[muito sério] Hummm!….<br />

JJ MOURARIA<br />

Quero talvez com isto dizer, se me permitem… Que é sabido por vós que existe uma relação de<br />

afetividade e carinho mútuo, entre a Mina e a minha pessoa… sendo que esta aproximidade de<br />

ternura pode compreender algumas consequências do ponto de vista corporal…<br />

MANGUIMBO<br />

É o quê?<br />

QUIM<br />

[nervoso] “Corporal”? Ó rapaz, fala lá com palavras de serem entendidas…<br />

JJ MOURARIA<br />

Meu senhores, muitas vezes é no domínio do simbólico que o factual tem lugar…<br />

QUIM<br />

Bom, mas abreviando, então: você hoje veio aqui, concretamente, falar de quê?<br />

JJ MOURARIA<br />

Bom… hoje vim aqui a pedido da Mina, para abordar esta complicada temática do presente e<br />

futuro envolvimento afetivo…<br />

QUIM<br />

[muito sério] Ó rapaz!… deixe-se de brincadeiras, mas você quer nos faltar ao respeito ou quê?!<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm!…, hummm!…<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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MANGUIMBO<br />

Calma, camaradas…<br />

JJ MOURARIA<br />

Não sei se com os humores alterados poderemos chegar ao ultimato da nossa discursividade…<br />

QUIM<br />

Ouve lá, ó… Jota… eu não vim do outro lado do rio para estar a ouvir discursos de Sucupira… Tás a<br />

ouvir?<br />

NADINE ENTRA NA SALA COM MINA.<br />

NADINE<br />

Ó Quim, tem calma…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[para NADINE] Ó filha, tem calma…<br />

MINA<br />

Pai, tem calma…<br />

MANGUIMBO<br />

[para JJ MOURARIA] Tem calma!<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm!…<br />

JJ MOURARIA<br />

Mas, contudo, cada um se expressa como pode…<br />

QUIM<br />

Bom… vamos lá a ver… Estamos todos aqui reunidos, somos todos adultos, felizmente…<br />

MANGUIMBO<br />

Felizmente.<br />

JJ MOURARIA<br />

Felizmente.<br />

QUIM<br />

E isto é muito simples, ó “Jota”.<br />

JJ MOURARIA<br />

Diga, senhor Quim.<br />

QUIM<br />

[devagar] Você, segundo sei, está envolvido com a minha sobrinha… É correto?<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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JJ MOURARIA<br />

Sim, senhor Quim.<br />

QUIM<br />

Bom… [pausa] primeiro… essa situação já devia ter sido comunicada, ou não é assim, senhor<br />

Manguimbo?<br />

JJ MOURARIA<br />

De fato.<br />

QUIM<br />

Tou a falar com o seu tio.<br />

MANGUIMBO<br />

Já devia sim.<br />

QUIM<br />

Portanto, aí já temos uma falta, e você hoje tá aqui para se recuperar dela… Não é assim?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm!…<br />

JJ MOURARIA<br />

É sim, senhor Quim.<br />

QUIM<br />

Então você hoje veio aqui falar com a família, como é nosso costume e fez muito bem… [pausa]<br />

Falar para termos todos conhecimento uns dos outros… Ou não é assim, senhor Manguimbo?<br />

MANGUIMBO<br />

É assim mesmo.<br />

MINA<br />

Mas, amor, não vieste só falar disso…!<br />

NADINE<br />

Mina, não interrompas o teu tio…<br />

JJ MOURARIA<br />

Mas posso abordar um assunto de cada vez.<br />

QUIM<br />

Mas é que pelo andar da coisa você não está a abordar assunto nenhum!<br />

JJ MOURARIA<br />

Mas é que por vias de algum receio linguístico…<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

68


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OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

69<br />

QUIM<br />

Calma aí rapaz, eu ainda não terminei!<br />

MANGUIMBO<br />

[para JJ MOURARIA] Deixa o senhor falar…<br />

JJ MOURARIA<br />

Desculpe!<br />

QUIM<br />

Aproveita a boleia que eu tou ta mostrar o caminho… [pausa] Vieste aqui falar com a família, sobre<br />

o fato do namoro que nós já tivemos conhecimento dele.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm!…<br />

QUIM<br />

E portanto agora, vens aqui falar das condições… porque não é só namorar sem vir falar com a<br />

família dos acontecimentos… ou não é assim, senhor Manguimbo?<br />

MANGUIMBO<br />

Tem toda razão, senhor Quim… posso beber mais uma cerveja?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm!…<br />

NADINE<br />

[para MANGUIMBO] Faça o favor…<br />

QUIM<br />

Bom, e agora sim, pergunto então: se nós sabemos do vosso namoro<br />

que você até já devia ter vindo falar com a família…<br />

JJ MOURARIA<br />

Tem razão…<br />

QUIM<br />

Hoje você veio aqui… E trouxe o seu familiar…<br />

MANGUIMBO<br />

Espécie de familiar…<br />

QUIM<br />

Então agora… sem falar esse português da Mouraria… Você vai dizer muito rapidamente e sem<br />

paleios… [eleva a voz] O que você veio aqui dizer… Tá a entender…?<br />

JJ MOURARIA<br />

Sim, senhor Quim.


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NADINE<br />

[nervosa] Ó Mário, filho, não sei se é melhor falarmos antes…<br />

QUIM<br />

Não, ó cunhada, desculpa lá, eu já percebi o que se passa aqui… Aqui o jovem Jota agora vai dizer<br />

tudo num português muito simples…, na presença do tio dele.<br />

MANGUIMBO<br />

Mas não sou tio…<br />

QUIM<br />

[para MANGUIMBO, autoritário] Mas é como se fosse, porra!<br />

FAZ-SE UM LONGO SILÊNCIO.<br />

MINA<br />

[sussurrando] Ó pai, a mãe tem razão, se calhar…<br />

QUIM<br />

[autoritário] Bom!, já falei. O jovem agora vai dizer ao pai da sua namorada, o que ele veio aqui<br />

dizer a todos nós… e nós vamos ouvir com calma… [começa a mexer na calça, no cinto da calça]<br />

com muita calma… [tira a pistola do cinto] e depois vamos todos tomar uma decisão como adultos<br />

que somos… [pousa ruidosamente a pistola sobre a mesa], ou não é assim, senhor Manguimbo?<br />

MANGUIMBO<br />

[dá um gole ruidoso na cerveja; fala devagar, não quer mostrar receio] Parece-me bem, senhor<br />

Quim, parece-me bem…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm!…<br />

JJ MOURARIA<br />

[tosse] Bem…<br />

MINA<br />

Vamos, amor, não fiques acanhado, faz como combinamos.<br />

JJ MOURARIA<br />

Mas como combinamos quando…?<br />

QUIM<br />

[muito sério e rápido] Ó rapaz, vamos lá despachar isto que não temos a tarde toda. Diga lá o que<br />

tem a dizer!<br />

MANGUIMBO<br />

Diz…<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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MINA<br />

Diz…<br />

NADINE<br />

[para JJ MOURARIA] Diz, filho…<br />

TOCA A CAMPAINHA DE CASA.<br />

NADINE<br />

Eu vou lá… Podes continuar, Jota.<br />

JJ MOURARIA<br />

Não, dona Nadine, nem pensar. [sério] Por amor de Deus, esperamos pela senhora.<br />

QUIM<br />

Esta situação está muito demorada para o meu gosto.<br />

NADINE ABRE A PORTA. ENTRA FAT U .<br />

FAT U APERCEBE-SE DO ESTRANHO AMBIENTE. FAZ UMA PAUSA. CHORA.<br />

NADINE<br />

Fatu…<br />

FAT U<br />

Vizinha… Ai, o meu marido…<br />

NADINE<br />

Tenha calma, Fatu…<br />

JJ MOURARIA<br />

Seja forte, dona Fatu…<br />

QUIM<br />

Seja forte.<br />

MANGUIMBO<br />

Seja forte.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm!…<br />

MINA<br />

Seja forte, dona Fatu.<br />

FAT U<br />

[séria de repente, sem chorar] Mas eu até tenho forças, só que não consigo subir sozinha com o corpo.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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JJ MOURARIA<br />

[aproximando-se] Como assim?<br />

FAT U<br />

<strong>Os</strong> bombeiros chegaram com o meu marido… ai, o meu marido… Preciso de ajuda para trazer o<br />

meu marido para casa.<br />

NADINE<br />

Mas com certeza… ó Mário, filho… tu não poderias…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm!…<br />

NADINE<br />

A dona Fatu precisa de homens.<br />

MANGUIMBO<br />

[um pouco ordinário] De quantos homens é que a dona Fatu precisa?<br />

NADINE<br />

[séria] De alguns.<br />

JJ MOURARIA<br />

Nós vamos ajudar os bombeiristas, não haja mais motivos de preocupação fúnebre ou<br />

ascensorista!<br />

FAT U<br />

Obrigada, filho…<br />

JJ MOURARIA<br />

Deixe-se estar, senhor “Rambo”, nós vamos lá abaixo. [para MANGUIMBO] Ó padrinho, vamos<br />

ajudar conjuntamente…<br />

MANGUIMBO<br />

Se a dona Fatu precisa de homens… e nós somos homens… vamos lá ajudar… Com licença.<br />

QUIM<br />

Bom… vão lá… [batendo com a pistola na mesa como se fosse um martelo] A sessão está adiada para<br />

daqui a alguns minutos.<br />

MANGUIMBO E JJ MOURARIA SAEM. DESCEM AS ESCADAS.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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NADINE<br />

Ó Quim…<br />

QUIM<br />

[pensativo] Diz, cunhada…<br />

NADINE<br />

Porquê que vocês estão a fazer isto ao miúdo?<br />

QUIM<br />

Esse com nome alfabético?<br />

MINA<br />

[triste] Ó tio, parem de gozar com ele.<br />

QUIM<br />

[sério] Mas vocês pensam que eu tou a gozar com ele? Vocês não entendem o que se passa aqui?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[sério] Mina… Ouve o teu tio.<br />

QUIM<br />

Tu pensas, Mina, que conheces esse homem…<br />

Namoras com ele há uns tempos e tá tudo bem… Mas agora é diferente…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Agora é diferente…<br />

QUIM<br />

Algo de mais sério se passou… não foi?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm!…<br />

QUIM<br />

E agora trata-se de entender bem o que vamos fazer com isso. Se não fazemos esta reunião a<br />

sério, esse rapaz pode desmarcar a qualquer momento, tás a entender?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Tás a entender, filha?<br />

MINA<br />

Tou sim, pai…<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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QUIM<br />

Nós não estamos em Angola, terra do teu pai… Nós não estamos em Moçambique, terra da tua<br />

mãe… Portanto tudo para nós aqui é novo, tu já nasceste cá… os teus documentos não são como<br />

os nossos… o teu sotaque não é como o nosso. E até o teu destino não é mais como o nosso… Mas<br />

nós somos a tua geração anterior, tás a perceber?<br />

MINA<br />

Sim, tio.<br />

QUIM<br />

Então nós… Temos que falar à nossa maneira, e resolver isto como nós sabemos, mas é por ti, pela<br />

tua vida aqui neste país. E não é tanto pela situação, Mina…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Não é tanto pela situação, filha…<br />

QUIM<br />

É para que este jovem saiba como nós somos, que conheça a nossa cultura em vários momentos…<br />

E que seja um homem, Mina. Ele não pode vir aqui e gaguejar só… Não diz coisa com coisa,<br />

parece um livro electrónico…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[para QUim] É o quê?!<br />

QUIM<br />

Parece um jacó 17 da loja do chinês que engoliu um dicionário fabricado em Taiwan…<br />

TODOS RIEM BAIXINHO.<br />

MINA<br />

Não me faças rir, tio… [pausa] Mas ele é muito querido comigo, tio.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm!…<br />

QUIM<br />

Querido ou não, tem de vir aqui falar com a família, como um homem… eu não sei bem o que<br />

houve, mas nem é isso que interessa… [pausa] ele tem que vir e falar como um homem. Conhecer<br />

a família, o pai, o tio, a mãe… isto é assim que se faz, minha sobrinha.<br />

17. Jacó: papagaio.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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MINA<br />

[lamentando-se] Também… Ele entra aqui e vê logo uma pistola…<br />

QUIM<br />

Mas, ó filha, pistola é leão?… Ele tem só que aguentar… ele gosta de ti ou não?<br />

MINA<br />

Gosta sim, tio.<br />

QUIM<br />

Então é com pistola mesmo… Vais ver que isto vai ser bom para ele… [pausa] Para todos nós…<br />

NADINE<br />

[para a filha] Vem ajudar-me a buscar mais bebidas na cozinha.<br />

NADINE E MINA VÃO PARA A COZINHA.<br />

QUIM<br />

Ó mano, às vezes penso que estas coisas até acontecem por alguma razão…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Como assim?<br />

QUIM<br />

Às vezes estamos aqui e se não acontecesse nada disto íamos esquecer<br />

como é que estas coisas se fazem na nossa terra.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Ya… tens razão… hummm!…<br />

QUIM<br />

Tu não te lembras como foi da nossa irmã?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Se lembro!…, mas nesse dia tínhamos bué de <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong> na mesa.<br />

QUIM<br />

[com saudade] Ya, tens razão.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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NA ESCADA. JJ MOURARIA E MANGUIMBO SOBEM COM O MORTO. FAT U VAI À<br />

FRENTE DANDO INSTRUÇÕES E AJUDANDO.<br />

MANGUIMBO<br />

Mas ó dona Fatu… O seu marido era assim pesado?<br />

FAT U<br />

Ele era levezinho.<br />

JJ MOURARIA<br />

Mas olhe que ele agora de “zinho” tem muito pouco.<br />

MANGUIMBO<br />

Ó dona Fatu…<br />

FAT U<br />

Diga.<br />

MANGUIMBO<br />

A senhora gosta de fazer exercícios? Dizem que faz bem fazer exercícios nas escadas…<br />

JJ MOURARIA<br />

Ó padrinho…!<br />

MANGUIMBO<br />

Qual “ó padrinho” é esse?, tou aqui com duas cervejas no bucho, nem <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong>, nem só já um<br />

atum contra pão e cebola…<br />

BATEM À PORTA DO PRÉDIO.<br />

FAT U<br />

Quem está aí?<br />

TITONHO<br />

Sou eu, Titonho.<br />

MANGUIMBO<br />

[reconhecendo a voz] Ó!, tá aí o nosso grande amigo parente da Cesária Évora… Talvez ele goste de<br />

fazer exercício nas escadas…<br />

FAT U<br />

Já abro.<br />

FAT U ABRE A PORTA A TITONHO. ESTÁ CHOROSA NOVAMENTE.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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FAT U<br />

Ai, o meu marido… O meu marido era teu amigo, Tonho, tão teu amigo…<br />

MANGUIMBO<br />

[sussurrando para JJ MOURARIA] Mas comé essa dama… se vamos ter choradeira então deixame<br />

ainda pousar o corpo…<br />

JJ MOURARIA<br />

Talvez seja melhor acionarmos uma pausa.<br />

TITONHO<br />

Tenha calma, Fatu… É preciso ser forte, Deus é que nos chama… [choraminga também]<br />

CHORO BAIXINHO DE TITONHO E FAT U .<br />

MANGUIMBO<br />

Porra, o apetite é que me chama… Vamos pousar aqui o “tio”.<br />

JJ MOURARIA<br />

Será que devemos?<br />

MANGUIMBO<br />

Devemos, devemos, por que eu não aguento muito tempo assim pá, e também tou mal da<br />

barriga…<br />

FAT U<br />

Ai o meu marido…<br />

MANGUIMBO<br />

[para FATU] Ó dona Fatu, com licença: abuçoitos!<br />

TITONHO<br />

O que se passa?<br />

MANGUIMBO<br />

Se me dão licença, tenho que ir mandar um fax.<br />

TITONHO<br />

Um quê?<br />

MANGUIMBO<br />

Tenho que ir à casa de banho, tou a pedir aqui substituição… Abuçoitos…!<br />

TITONHO<br />

Vá lá, homem, deixe que eu seguro no compadre.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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MANGUIMBO SOBE A CORRER. VAI À CASA DE BANHO NO APARTAMENTO DE FAT U .<br />

FAT U<br />

Ai o meu marido gostava tanto de futebol…<br />

JJ MOURARIA<br />

Por favor, Titonho, vamos avançar…<br />

PEGAM NO CORPO.<br />

JJ MOURARIA<br />

Então era este o seu compadre?<br />

TITONHO<br />

Este mesmo… E você está aqui a fazer o quê?<br />

JJ MOURARIA<br />

Estou numa missão discursivamente epistolar.<br />

TITONHO<br />

Como assim?<br />

JJ MOURARIA<br />

Depois explico com mais rigor detalhístico… Vamos lá subir com o falecido…<br />

[respirando, ofegante] Dona Fatu, vá dando as coordenadas e vamos avançando.<br />

FAT U<br />

Dois degraus pequenos, depois é só subir.<br />

TITONHO<br />

Mas então o falecido chegou agora?<br />

JJ MOURARIA<br />

Acabou mesmo de chegar, Titonho.<br />

FAT U<br />

Agora quinze degraus, cuidado com a cabeça do meu marido.<br />

JJ MOURARIA<br />

Mas a morte acrescenta peso às pessoas ou eu tou a precisar de comer?<br />

TITONHO<br />

Olhe, fui avisar uns amigos, mas com isto do jogo não se encontra ninguém.<br />

FAT U<br />

Agora mais três degraus, cuidado aí com o braço que está a cair assim de lado.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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JJ MOURARIA<br />

Coragem, Titonho, já falta pouco.<br />

FAT U<br />

Coragem, filho…, já falta pouco.<br />

TITONHO<br />

Coragem, compadre, já falta pouco.<br />

APARTAMENTO DE MÁRIO ROMBO.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Mas então, o quê que se passa? Nunca mais voltam? Vai lá ver se desmarcaram, Quim…<br />

QUIM<br />

Calma aí, mano, não desmarcaram nada, estão em manobras com o <strong>morto</strong>.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Mas comé, o <strong>morto</strong> voltou mais? [pausa] É teimoso…<br />

NADINE<br />

Ó Mário, fala baixo.<br />

O MORTO E OS SEUS ACOMPANHANTES ENTRAM NO APARTAMENTO DE FAT U .<br />

FAT U<br />

Entrem, ponham aqui o meu marido no sofá… Ele gostava de ficar aqui à tarde a ouvir rádio…<br />

[pausa] Titonho traga lá o rádio da cozinha por favor.<br />

TITONHO VAI BUSCAR O RÁDIO. MANGUIMBO REAPARECE.<br />

MANGUIMBO<br />

Bem, dona Fatu, com este esforço agora, só mesmo uma cerveja bem gelada com respeito aqui<br />

pelo seu marido.<br />

FAT U<br />

Não sei se tenho, vou ver.<br />

TITONHO VOLTA COM O RÁDIO.<br />

TITONHO<br />

Fatu…, este rádio não quer funcionar.<br />

MANGUIMBO<br />

Deve ser maka de pilhas, dona Fatu, ponha as pilhas ao sol e espere meia hora, depois já<br />

funcionam.<br />

ONDJAKi<br />

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FAT U<br />

Mesmo assim, Titonho, traz o rádio, põe aqui perto do meu marido, ele vai gostar só assim.<br />

JJ MOURARIA<br />

Bem, nós temos que voltar à “procedência”…<br />

MANGUIMBO<br />

Onde?<br />

JJ MOURARIA<br />

Ali no interrogatório, temos que ir despachar o assunto.<br />

TITONHO<br />

Vocês estão aí no senhor Rombo?<br />

MANGUIMBO<br />

Sim, temos ali um pendente, mas aqui eu também tenho uma pendente… Ou não é, dona Fatu?<br />

FAT U<br />

Como assim?<br />

MANGUIMBO<br />

Então a senhora não me prometeu um “birinaite”?<br />

FAT U<br />

Um “biri” quê?<br />

TITONHO<br />

Uma cerveja bem gelada, Fatu.<br />

FAT U<br />

[choramingando] Ai o meu marido, gostava tanto de cerveja bem gelada…<br />

MANGUIMBO<br />

[para JJ MOURARIA] Ala porra! Outra vez a choradeira?! “Afilhado”, vamos desmarcar.<br />

JJ MOURARIA<br />

Titonho, dá licença.<br />

TITONHO<br />

Eu acompanho até à porta.<br />

TIO QUIM ESPERAVA-OS À PORTA DO APARTAMENTO DE MÁRIO ROMBO.<br />

ENTRAM TODOS JUNTOS.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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QUIM<br />

[para JJ MOURARIA, batendo com a pistola na mesa] Vamos lá, rapaz… Início do segundo tempo!<br />

JJ MOURARIA<br />

Pelo andar da coisa ainda vamos a prolongamento.<br />

MANGUIMBO<br />

E se formos a pênaltis é melhor preparar umas cervejas com um bocado de <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong>.<br />

ACOMODAM-SE NA SALA.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Sentem-se.<br />

MANGUIMBO<br />

[para QUIM] Sente-se.<br />

QUIM<br />

[para JJ MOURARIA] Senta-te!<br />

JJ MOURARIA<br />

[para MÁRIO ROMBO] Deixe-se estar sentado.<br />

MINA<br />

[para NADINE] Senta-te, mãe.<br />

QUIM<br />

Bem, estamos aqui reunidos novamente, para muito rapidamente e sem mais volteios…<br />

Reiniciarmos o assunto que estamos com ele.<br />

MANGUIMBO<br />

[que começa a ficar bêbado] Apoiado!…<br />

JJ MOURARIA<br />

[mais discreto] Muito bem!<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm!…<br />

QUIM<br />

Antes do intervalo… Digo, da interrupção por assuntos funerários… Aqui o jovem Jota dirigia -se<br />

ao pai da sua namorada… [acaricia a pistola] Ou não é assim?<br />

MANGUIMBO<br />

É correto, é correto.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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QUIM<br />

Dirigia-se ao pai da sua namorada, para fazer muito objetivamente…, repito,<br />

muito objetivamente, uma abordagem ao assunto. Meu jovem [para JJ MOURARIA],<br />

faça o favor de prosseguir sem gaguejamentos nem fintas, porque finta é no futebol!<br />

MANGUIMBO<br />

[para NADINE] Por falar em futebol, que deve começar daqui a pouco, dona Nádia…<br />

QUIM<br />

[irritado] O nome é NADINE!<br />

MANGUIMBO<br />

Dona Nadine!, não sai uma cerveja a estalar para acompanhar aqui o discurso do meu “afilhado”?<br />

NADINE<br />

Com certeza, senhor Guimbo.<br />

MANGUIMBO<br />

O nome é Manguimbo.<br />

QUIM<br />

Bom, chega de brincadeiras, por favor. Jota, vamos lá, de uma vez por todas, avança!<br />

JJ MOURARIA<br />

Bem… Senhor Mário… [hesita, mas acerta no nome] Rombo… Senhor Mário Rombo… Como é do<br />

conhecimento familiar do senhor e da senhora sua esposa…<br />

QUIM<br />

E do tio!…<br />

JJ MOURARIA<br />

E do senhor Tio…<br />

MANGUIMBO ABRE MAIS UMA CERVEJA.<br />

JJ MOURARIA<br />

Como é do vosso conhecimento, há algum tempo que a vossa filha…<br />

QUIM<br />

E sobrinha…<br />

JJ MOURARIA<br />

Ia mesmo dizer… Vossa filha e sobrinha…<br />

Coincide numa aproximação afetiva com a minha pessoa aqui presente.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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QUIM<br />

Seja objetivo, jovem, seja objetivo sem resvalar para mais diccionarismos.<br />

JJ MOURARIA<br />

É nesta sequência que eu venho aqui confessar… ou melhor, dizer… ou até, informar…<br />

MANGUIMBO<br />

Muito bem, enteado!<br />

JJ MOURARIA<br />

Que as coisas evoluíram para um outro estágio.<br />

QUIM<br />

Estágio?!<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm…!…<br />

JJ MOURARIA<br />

A bem dizer, nem tenho bem a certeza se a vossa filha e sobrinha já vos terá comunicado… Mas<br />

parece que temos que ser corajosos, e enfrentar a situação com serenidade.<br />

QUIM<br />

[preocupado] Isso, jovem, diga lá o que você tem a dizer.<br />

MINA<br />

Pai, o Jota tem razão. A situação é muito mais séria do que vocês pensam…<br />

QUIM<br />

Mina!, deixa o jovem falar, seja como for, ele é que vai dizer!<br />

MINA<br />

[para JJ MOURARIA] Diz, Amor…<br />

MANGUIMBO<br />

Diz, sobrinho.<br />

NADINE<br />

Diz, filho…<br />

JJ MOURARIA<br />

É que estou muito nervoso devido ao jogo de Angola com Portugal…<br />

MINA<br />

Ó Jota, caramba, um pouco mais de coragem… Todo mundo já percebeu que eu tou grávida…!<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[levanta-se da cadeira] O QUÊ!?<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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QUIM<br />

[imitando o mesmo gesto e o mesmo grito que MÁRIO ROMBO] O QUÊ?!<br />

MANGUIMBO<br />

[atrasado] O quê?!<br />

INSTALA-SE A CONFUSÃO GERAL. MUITO ESPANTO, DE TODOS.<br />

NADINE<br />

[para MÁRIO ROMBO] Ó filho, tem calma…<br />

QUIM<br />

[pega na pistola] Ó mano, tem calma.<br />

MINA<br />

Ó pai, tem calma…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm!….<br />

MANGUIMBO<br />

Tenham calma, camaradas… O que é preciso é “resolver os problemas do povo”…<br />

QUIM<br />

[para JJ MOURARIA] Ó jovem, repita lá o que acabou de dizer…<br />

JJ MOURARIA<br />

Mas eu não disse nada, senhor Quim…, foi a Mina que falou…<br />

QUIM<br />

[gesticulando com a pistola; falando muito devagar como numa tortura]<br />

Então repita o que a Mina acabou de dizer…<br />

MINA<br />

Vamos Jota, tens que falar, Amor.<br />

MANGUIMBO<br />

Vamos Jota, tens que falar.<br />

NADINE<br />

Vamos, filho, tens que falar.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Hummm!…<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

85


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JJ MOURARIA<br />

Bem…, penso que o que a Mina quis dizer… É que devido ao nosso amor incondicionado… Ambos<br />

os dois estamos à espera de um filho que será nosso, mutuamente!<br />

NADINE<br />

[satisfeita, para MINA] Parabéns, minha filha.<br />

MANGUIMBO<br />

[no mesmo tom] Parabéns meu “afilhado”… [depois para NADINE] Venha de lá mais um birinaite!<br />

NA RUA HÁ SOM DE PALMAS E GRITARIA.<br />

MÁRIO ROMBO NÃO EMITE UM SOM E NÃO SE MOVE. QUIM ESTá PREOCUPADO E NÃO<br />

SABE COMO REAGIR. INSTALA-SE UM SILÊNCIO DESAGRADÁVEL.<br />

QUIM<br />

Mano… tem só calma, olha o coração… Para mais hoje é dia de jogo.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[para NADINE] Nadine, filha… Estás contente?<br />

NADINE<br />

Claro, filho… [aproxima-se dele] Tem só calma, tudo se resolve…<br />

MANGUIMBO<br />

Tudo se resolve sim, e isto ainda vai pedir mais um brinde… vou só ali à casa de banho…<br />

TODOS TOSSEM. UM DE CADA VEZ.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Mas como é isso………. Grávida…? Com bebé e tudo?<br />

NADINE<br />

[com naturalidade] Sim, filho, com bebé e com tudo… E com maridinho também, não é, Jota?<br />

MANGUIMBO RETIRA-SE.<br />

JJ MOURARIA<br />

Todavia não abordamos essa temática, dona Nadine.<br />

QUIM<br />

[com a pistola na mão] Mas estamos aqui para abordar todas as temáticas.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[sentando-se] Hoje… no dia do jogo Angola-Portugal… A minha filha…<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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NADINE<br />

Até pode ser um bom sinal, filho.<br />

QUIM<br />

Mano, pode ser bom sinal…<br />

MINA<br />

Só pode ser um bom sinal, pai…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Ó Nadine, traz-me uma cerveja bem gelada.<br />

QUIM<br />

[para JJ MOURARIA] Então e o seu padrinho…?<br />

NADINE<br />

Vem, Mina, vamos buscar masé uma garrafa de champanhe para regar a notícia.<br />

NADINE E MINA DIRIGEM-SE À COZINHA.<br />

JJ MOURARIA<br />

Meus senhores… [em tom confidente] Era mesmo sobre isso que eu queria falar-vos…<br />

Agora que a situação se esclareceu, é melhor avançarmos para um segundo tema central.<br />

QUIM<br />

O casamento?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

O jogo de futebol?<br />

JJ MOURARIA<br />

Não… nenhum desses ambos! Uma coisa um pouco mais secreta,<br />

digamos, em concomitância…<br />

QUIM<br />

Mais ainda? É o quê então? Primeiro a minha sobrinha tá grávida…, agora é outro segredo…?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Não me diga que são gémeos?<br />

JJ MOURARIA<br />

Não, não se trata desse tipo de abordagem… É um assunto além fronteiras, no qual eu preciso da<br />

vossa colaboração, para não dizer mesmo do vosso contributo.<br />

QUIM<br />

Ó jovem, aqui quem vai contribuir é você!<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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JJ MOURARIA<br />

Eu sei, “tio” Quim, mas ouçam só… Posso parlar?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Diga lá.<br />

JJ MOURARIA<br />

Tio Quim, largue então a pistola, por favor.<br />

QUIM POUSA A PISTOLA NA MESA NOVAMENTE.<br />

QUIM<br />

Mas não quer esperar pelo seu tio para falar?<br />

JJ MOURARIA<br />

Não, não… [segredando] É mesmo dele que vamos falar… Passa-se aqui algo que os senhores<br />

devem incorporar…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Fala lá um português normal, pá!<br />

JJ MOURARIA<br />

Este senhor, “Guimbo” ou Manguimbo ou quê…<br />

QUIM<br />

O seu tio…<br />

JJ MOURARIA<br />

Ele não é meu tio, também nos conhecemos há pouco tempo… Mas há uma questão com ele.<br />

TITONHO TOCA A CAMPAINHA. MINA VAI ABRIR.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Continue, antes que ele volte da casa de banho.<br />

JJ MOURARIA<br />

E é mesmo sobre a casa de banho que eu quero falar.<br />

QUIM<br />

Então fala, porra!<br />

TITONHO ENTRA NA SALA.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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TITONHO<br />

Boa tarde, meus senhores… Tudo bem?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Titonho, entra. À vontade.<br />

TITONHO<br />

Boa tarde, senhor Quim.<br />

QUIM<br />

Como está, Titonho? Preparado para o jogo?<br />

TITONHO<br />

Mais que preparado… Já’l c’mêçá?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Deve faltar pouco.<br />

QUIM<br />

É que aqui estamos com outro jogo… Este jovem veio-se apresentar como namorado da minha<br />

sobrinha… e futuro pai de um casal de gémeos…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Gingongos?<br />

TITONHO<br />

Gémeos?<br />

QUIM<br />

Tudo pode acontecer, hoje em dia com esses iogurtes da União Europeia, nunca se sabe.<br />

TODOS DÃO UMA RISADA.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Mas continue, Jota, você falava do seu padrinho.<br />

JJ MOURARIA FAZ UMA PAUSA, OLHANDO PARA TITONHO.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Este senhor é de casa, podes falar à vontade mesmo.<br />

JJ MOURARIA<br />

Bom, como ia dizendo, a situação é que temos aqui uma situação fatual mesmo.<br />

QUIM<br />

Vou ligar a televisão, vamos já aquecendo os ânimos.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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JJ MOURARIA<br />

Este senhor Manguimbo, parece que tem uma coisa para “despachar”…<br />

TITONHO<br />

Uma coisa?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Uma coisa?<br />

QUIM<br />

Uma coisa?<br />

ENTRA NADINE.<br />

NADINE<br />

Querem comer alguma coisa?<br />

TITONHO<br />

Boa tarde, dona Nadine.<br />

NADINE<br />

Boa tarde, Titonho, os meus pêsames…<br />

TITONHO<br />

Muito obrigado.<br />

QUIM<br />

Ó cunhada, desculpa lá, tu pareces aqueles filmes de suspense mas que depois não acontece<br />

nada… Toda hora a perguntares se queremos comida, e depois não sai nada…<br />

TODOS RIEM.<br />

NADINE<br />

Mas agora vai sair, estamos a fritar uns torresmos com jindungo.<br />

TITONHO<br />

Boa ideia… [triste] O falecido é que gostava tanto de torresmos…<br />

QUIM<br />

Tenha calma, Titonho.<br />

JJ MOURARIA<br />

Tenha calma.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Tenha calma.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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JJ MOURARIA<br />

[retomando] Mas como eu ia dizendo… Ali o meu padrinho…, tem uma coisa para despachar, no<br />

ramo das pedras diamantíferas!<br />

TITONHO<br />

[entendendo] Ahnnnnnnnn…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Ahnnnnnnnnnnnn…<br />

QUIM<br />

Ahnnnnnnnnnn…<br />

JJ MOURARIA<br />

Pois é… Isto é delicado… [faz um gesto com a mão] Mas também pode ser “dedilhado”…<br />

TITONHO<br />

Agora estou a entender tudo…<br />

JJ MOURARIA<br />

Como assim?<br />

TITONHO<br />

Hoje de manhã, lá no bar…<br />

JJ MOURARIA<br />

Sim…?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Mas vocês já se conheciam?<br />

QUIM<br />

Que bar…?<br />

TITONHO<br />

No “Bar do Chénguen”… Fica ali junto do edifício das Migrações Com Fronteiras.<br />

JJ MOURARIA<br />

O que houve, não estou a perceber?<br />

TITONHO<br />

De fato, o seu conterrâneo insistiu várias vezes que… Tinha algo para empacotar…<br />

QUIM<br />

Empacotar?!<br />

TITONHO<br />

Acho que foi isso que ele disse.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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ONDJAKi<br />

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JJ MOURARIA<br />

Não, Titonho, ele deve ter dito “despachar”.<br />

TITONHO<br />

Isso mesmo, tem razão, ele queria despachar.<br />

QUIM<br />

[pensativo] Já tou a ver o filme, “sobrinho”… Já tou a ver o filme!<br />

JJ MOURARIA<br />

Pronto, se o “tio” Quim já tá a ver o filme eu fico mais descansado… Até já posso começar a pensar<br />

na bilheteira.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Com filme ou sem filme, o importante é o jogo… [gritando] Comé Nadine, esses torresmos saem<br />

ou quê?<br />

NADINE<br />

[da cozinha] Tá quase, filho, tá quase.<br />

QUIM GUARDA A PISTOLA NO CINTO. JJ MOURARIA RESPIRA FUNDO.<br />

QUIM LEVANTA-SE FAZENDO SINAL A JJ MOURARIA PARA VIR<br />

FALAR COM ELE JUNTO À JANELA.<br />

QUIM<br />

Vamos aqui falar, ó “sobrinho”.<br />

JJ MOURARIA<br />

Dialoguemos, “tio”, dialoguemos… “Áquila cápite muscas”…<br />

QUIM<br />

O quê?<br />

JJ MOURARIA<br />

É latim, linguajar da Mouraria…!<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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OUVE-SE A VOZ DO LOCUTOR NA TELEVISÃO.<br />

LOCUTOR<br />

Cá está, é a festa de cores e de bandeiras aqui no estádio “Aftaz-Árrden”, na Alemanha, as<br />

selecções estão em campo, muitos sorrisos e algum nervosismo entre estes jogadores irmãos…<br />

O árbitro da partida, para não fugir à regra, tem quantidades excessivas de gel no cabelo, é já<br />

quase uma tradição nestas arbitragens futebolísticas, excepção seja feita, é óbvio, aos carecas que<br />

dispensam tal artefato. [pausa] Neste mundial a Associação Internacional dos Dermatologistas fez<br />

mesmo uma campanha prevenindo os árbitros para os riscos de calvície que advêm do excesso de<br />

aplicação de gel no cabelo mas, bom, este é um apontamento à parte, voltamos às quatro linhas<br />

nesta magnífica tarde de junho…<br />

TITONHO<br />

Ai meu deus, vai começar.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Eu gosto de ver jogo na TV, mas o relato gosto mais da rádio, parece que são mais emocionantes.<br />

TITONHO<br />

Tem razão, bon’ den um rádie êí?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Acho que não, hoje em dia já ninguém ouve rádio.<br />

TITONHO<br />

A Fatu tem lá um rádio.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

E não dá para pedir?<br />

TITONHO<br />

Dar, dá… Mas ela pôs o rádio perto do marido dela.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Mas como é essa dama…!, pôs o rádio perto do marido? Para quê?<br />

TITONHO<br />

É que ele gostava muito de relatos.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

É verdade, o falecido era mesmo viciado em futebol… Pera aí, tenho uma ideia… [gritando para a<br />

cozinha] Ó Mina, vem cá filha.<br />

MANGUIMBO REGRESSA À SALA. UM POUCO TRANSPIRADO.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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TITONHO<br />

Senhor Manguimbo, como vai? Tudo bem?<br />

MANGUIMBO<br />

Tudo bem, é só a fome que nos tá a fazer passar mal… [repara na TV] Ah, vai começar?<br />

MINA CHEGA PERTO DO PAI.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Sim, está quase. [PARA MINA] Ó Mina, faz-me um favor, vais aqui à casa da Fatu<br />

e diz para ela vir ver o jogo conosco.<br />

MINA<br />

Pai, mas a Fatu está de luto…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Ó filha, faz como te digo, futebol não ofende o <strong>morto</strong>.<br />

Para mais, é da tradição fazermos aquilo que o <strong>morto</strong> gostava de fazer.<br />

TITONHO<br />

É verdade.<br />

MANGUIMBO<br />

[imitando] É verdade.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

O falecido adorava futebol…, ela que venha assistir o jogo!<br />

Diz à Fatu para trazer o rádio com ela.<br />

MINA<br />

O rádio?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Ela sabe…, o rádio!, para ouvirmos o relato. Vai lá, filha.<br />

MINA SAI. NADINE ENTRA NA SALA COM PIRES CHEIOS DE TORRESMOS.<br />

NADINE<br />

Cuidado que estão muito quentes.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Ó filha, então é melhor virem já umas cervejas para a malta não queimar a língua.<br />

NADINE<br />

Calma, tou a preparar já uma arca com gelo para ficar aqui perto do jogo.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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MANGUIMBO<br />

[entusiasmado] Grande ideia, dona “Nádia”, até parece que estamos na praia…<br />

Grande ideia mesmo!<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Sirva-se, Titonho.<br />

TITONHO<br />

Obrigado.<br />

MANGUIMBO<br />

Obrigado.<br />

NA JANELA JJ MOURARIA CONVERSA BAIXINHO COM QUIM.<br />

QUIM<br />

Quer dizer, “sobrinho”, tu desconfias que o homem traz a carga no estômago…<br />

JJ MOURARIA<br />

Só pode ser, “tio” Quim, só pode ser… Para mais, não sei se reparou nas deslocações constantes<br />

ao “Wilson de Carvalho”.<br />

QUIM<br />

Wilson de quê?<br />

JJ MOURARIA<br />

Wilson de Carvalho, tio…, é um código para WC.<br />

QUIM<br />

Ah, sim, já havia reparado…<br />

JJ MOURARIA<br />

Isto é a sinalética… Ele pretende que o material veja a luz do dia.<br />

QUIM<br />

Como assim?<br />

JJ MOURARIA<br />

Ele deve estar a esforçar o estômago, “tio” Quim… Faço-me entender?<br />

QUIM<br />

O estômago ou os intestinos?<br />

JJ MOURARIA<br />

Bem, com a modernidade gastronómica, estou de acordo consigo, tudo é possível…, gastrites,<br />

intestinites!<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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QUIM<br />

Para de falar à toa, “sobrinho”, concentra-te.<br />

Nós só temos mesmo é que ajudar, não é assim?<br />

JJ MOURARIA<br />

Positivo, “tio”, é absolutamente positivo.<br />

QUIM<br />

E partindo do pressuposto que já vamos sendo familiares de hoje em diante…<br />

JJ MOURARIA<br />

Sim?<br />

QUIM<br />

Penso que a divisão dos lucros seria feita de modo cuidadoso,<br />

não é assim, Jota Jota da Mouraria?<br />

JJ MOURARIA<br />

Nada me parece mais justo, “tio” Quim.<br />

NADINE ENTRA NA SALA COM ARCA CHEIA DE CERVEJAS BEM GELADAS.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Isto é uma maravilha, parece que estamos ali na praia dos Trapalhões, em Luanda…<br />

MANGUIMBO<br />

[já bêbado] Positivo, positivo…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[para QUIM] Ó mano, juntem-se aqui à malta,vocês agora deram<br />

uma de comadres fofoqueiras ou quê?<br />

JJ MOURARIA E TIO QUIM APROXIMAM-SE ENTRE RISOS.<br />

JJ MOURARIA<br />

Parece que vai começar o jogo.<br />

TITONHO<br />

[irónico] Parece que o jogo já começou há algum tempo…<br />

QUIM<br />

[olhando para o prato] Mas vocês quase que já derrotaram o pires de torresmos,<br />

vocês afinal tavam mesmo com fome…<br />

TITONHO<br />

Mas estes torresmos estão uma maravilha…!<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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MINA ENTRA EM CASA NOVAMENTE.<br />

MINA<br />

Pai, a Fatu diz que é complicado mandar o rádio porque o <strong>morto</strong> gostava muito de escutar rádio.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Mas essa dona Fatu só complica…, nós tamos aqui a requisitar o rádio por razões patrióticas…<br />

JJ MOURARIA<br />

Coadjuvados por motivações desportivas.<br />

MANGUIMBO<br />

Já sei! Podia vir a dona Fatu, o rádio… E o falecido também!<br />

QUIM<br />

O quê?<br />

MANGUIMBO<br />

Então… Nós queremos o rádio… O <strong>morto</strong> está com o rádio… Que venha o rádio, o <strong>morto</strong> e a esposa<br />

do <strong>morto</strong>!<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[apoiando] Tem razão, é uma boa ideia e não ofende a tradição. Até que ele mesmo gostaria de ver<br />

o jogo.<br />

QUIM<br />

Não sei, mano, um <strong>morto</strong> já morrido mesmo… Vir mais aqui na sala com as nossas cervejas e o<br />

torresmo…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[sério] Mano, a maka não é o <strong>morto</strong>… [longa pausa. <strong>Os</strong> outros fazem silêncio] A maka é não estarmos<br />

a conseguir um <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong> como deve ser, nos conformes mesmo…<br />

MINA APROXIMA-SE DE JJ MOURARIA.<br />

MINA<br />

Anda, amor, vem-me ajudar a fala com a dona Fatu.<br />

JJ MOURARIA<br />

Com a vossa licença permissiva, meus senhores…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Vai lá, filha, a nossa selecção merece um bom relato de rádio.<br />

MINA E JJ MOURARIA VÃO TER COM A VIZINHA. QUIM APROVEITA E VAI ATÉ À COZINHA.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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QUIM<br />

[para NADINE] Ó cunhada…, comé, tudo sob controle aqui?<br />

NADINE<br />

Diz, Quim. Tu quando vens com essa voz, é porque há gato.<br />

QUIM<br />

[sorrindo] Não… Eu estava mais interessado é no <strong>peixe</strong>…<br />

NADINE<br />

Mas vocês nunca estão satisfeitos com o que há? Já num vos disse que não há <strong>peixe</strong>? [pausa]<br />

Esperem só um bocadinho que eu estou a fritar mais torresmos.<br />

QUIM<br />

Ó cunhada…<br />

NADINE<br />

Diz, Quim.<br />

QUIM<br />

Estou com um plano e preciso da tua ajuda.<br />

NADINE<br />

Se é para assustar mais os miúdos, não contes comigo.<br />

QUIM<br />

Nada disso… É um plano de alembamentos 18 .<br />

NADINE<br />

O quê que vocês estão a inventar, Quim?<br />

QUIM<br />

Confia, só, cunhada. O padrinho, esse tal de Manguimbo, vai pagar alembamento do afilhado<br />

dele, com juros em atraso de namoro avançado sem consentimento da família,<br />

e algumas despesas das crianças ainda por nascer…<br />

NADINE<br />

Que confusão, Quim… E então, quê que queres?<br />

QUIM<br />

Tens algumas coisas, comprimidos ou comida,<br />

que faça um gajo ir mesmo à casa de banho com vontade?<br />

NADINE<br />

Mas para quê?<br />

QUIM<br />

Confia só, cunhada, tá tudo combinado e o próprio Jota é que entregou o padrinho.<br />

Ele está com problemas de pedras.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

99<br />

18. Alembamento: dote.


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NADINE<br />

Quem, o Jota?<br />

QUIM<br />

Não, o padrinho.<br />

NADINE<br />

Pedras nos rins?<br />

QUIM<br />

Não… Pedras intestinais. É uma modernice angolana… [pausa] Tens algum acelerador de<br />

evacuação?<br />

NADINE<br />

[rindo] Ahahah, “acelerador de evacuação”? Viraste mecânico de Fórmula Um, ou quê? Deixa<br />

ver aqui no armário…<br />

QUIM<br />

Olha, eu vou lá para dentro, não posso demorar aqui. Qualquer coisa que encontres, põe bastante<br />

na próxima dose de torresmos. E serves nesse pires vermelho, eu depois controlo o resto.<br />

NADINE<br />

Vai lá para a sala, seu maluco.<br />

NA SALA CONTINUAM A VER TELEVISÃO. O JOGO COMEÇOU.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Mano, comé, vem mais comida?<br />

QUIM<br />

Está a ser preparada… [para Manguimbo] Ainda tem fome?<br />

MANGUIMBO<br />

Para ser sincero, agora com o nervosismo do início do jogo, é capaz de me abrir o apetite…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[atento ao jogo mas também à conversa] Mas o seu apetite, do que eu vi, nunca esteve muito<br />

fechado…<br />

MANGUIMBO<br />

É que nós esta manhã tivemos uma longa jornada ali nas Migrações Com Fronteiras.<br />

QUIM<br />

E foram fazer o quê?<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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TITONHO<br />

Eu fui ver se ajudava aí a Fatu a resolver os documentos do <strong>morto</strong>.<br />

QUIM<br />

[para Manguimbo] E você?<br />

MANGUIMBO<br />

Eu tou a ver se prorrogo o visto de turismo, preciso de ficar mais uns dias… Surgiram aí umas<br />

coisas para resolver…<br />

QUIM<br />

Se pudermos ajudar, está entre amigos… Angolanos…<br />

E aqui o Titonho de Cabo Verde também é amigo.<br />

MANGUIMBO<br />

[lento, desafiador] Há horas na vida, em que aparecem amigos de todos os lados…<br />

TITONHO<br />

De todas as ilhas.<br />

QUIM<br />

[sério, quase comovido] Há momentos na vida em que é necessário<br />

ter amigos de todas as latitudes…<br />

TITONHO<br />

Eu diria mais… O qu’ê vida sem nôs amigue? [pausa] Um brinde pe amizéde!…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Sim, e metemos já Angola no brinde também.<br />

TODOS<br />

Tchin-tchin!…<br />

JJ MOURARIA E MINA ENTRAM NA SALA COM O MORTO.<br />

FAT U ENTRA TAMBÉM COM O RÁDIO NA MÃO.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Brinde cancelado! Estamos na presença de um defunto!<br />

JJ MOURARIA<br />

Ó padrinho, dê aqui uma ajuda fortificante, para ver se acomodamos o falecido.<br />

QUIM<br />

Deixe-se estar, Manguimbo, é melhor não fazer muito esforço.<br />

MANGUIMBO<br />

Ora essa, estamos aqui para ajudar… [mas não se mexe].<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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FAT U<br />

[choramingando] Ai, senhor Rombo, muito obrigado pela atenção… O meu marido…, ele ia adorar<br />

ver este jogo…<br />

MINA<br />

Pronto, Fatu, tem calma.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Sim, Fatu tem calma, e não chores muito senão o falecido não pode escutar o relato… Trouxeste o<br />

rádio para ele ouvir?<br />

FAT U<br />

[choramingando] Trouxe…, o rádio do meu marido…, [para de chorar] Mas tá sem pilhas…!<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Ó que chatice… Então mantemos o relato do tuga na TV.<br />

NADINE ENTRA COM DOIS PIRES NA MÃO. UM BRANCO E UM VERMELHO. UM POUCO<br />

NERVOSA.<br />

QUIM<br />

[Para NADINE] Deixa que eu ajudo, cunhada.<br />

NADINE<br />

[apontando para o pires vermelho] Este está mais picante…<br />

QUIM<br />

Ah, sim? Então é o do padrinho Manguimbo… [sorrindo maliciosamente] Deixa já aqui perto dele…<br />

Perto do padrinho… [olhando para Manguimbo com ternura] Perto do padrinho…<br />

MANGUIMBO<br />

Muito obrigado, estes torresmos estão da ponta da orelha!<br />

MINA<br />

Veja lá, não abuse, que eles fazem muito mal ao fígado.<br />

QUIM<br />

[ralhando] Ó Mina, o que é isso? Qual fígado, qual carapau, deixa lá o padrinho comer à vontade…<br />

Coma, Manguimbo, sinta-se em casa, qualquer coisa está ali a casa de banho, o “débas”,<br />

como se diz na terra.<br />

JJ MOURARIA<br />

Sim, padrinho, coma à vontade…<br />

TITONHO<br />

Posso comer também?<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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FAT U<br />

Posso comer também?<br />

JJ MOURARIA<br />

Posso comer também?<br />

QUIM<br />

Sim, claro, mas no pires do padrinho ninguém toca!<br />

MANGUIMBO<br />

Senhor Rombo, passe-me mais uma birra, por favor.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Faz favor…<br />

NADINE VOLTA à COZINHA. CONTINUA O JOGO.<br />

LOCUTOR<br />

… lá está uma bonita combinação entre Tiago e Figo… vai Figo… corre Figo pela lateral…<br />

progride e deixa ficar para Pauleta… pode acontecer o remate… Pauleta afasta o defesa, remataaaaaaaa…<br />

aaaaaaaaaa… que grande defesa de João Ricardo… Pode bem dizer-se que foi por um<br />

triz, por uma unha negra…<br />

QUIM<br />

Unha negra, toda hora essas dicas, o miúdo até é branco…<br />

TITONHO<br />

É só uma maneira de falar.<br />

JJ MOURARIA<br />

Apenas um “ípsis verbus” futebolístico…<br />

QUIM<br />

Sim, é só uma expressão, mas “a unha é negra”, “o futuro está negro”, “vejo as coisas pouco<br />

claras”, é sempre a malhar no bumbo 19 …<br />

TODOS RIEM.<br />

MANGUIMBO<br />

Com licença, ainda vou à casa de banho.<br />

QUIM<br />

Com licença, vou à cozinha.<br />

FAT U<br />

Com licença, vou à minha casa.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

103<br />

19. Bumbo: pessoa negra, em Angola.


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ONDJAKi<br />

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© Pallas Editora. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução.<br />

JJ MOURARIA ARROTA RUIDOSAMENTE.<br />

JJ MOURARIA<br />

Com licença…!<br />

NA COZINHA. QUIM ENTRA E ENCONTRA NADINE AO TELEFONE.<br />

NADINE<br />

Mas não tem mesmo?… hummm… não, nós queríamos mesmo era <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong>… pois, eu sei, a<br />

esta hora… tá bem… mas mande então o que puder… tá bem… sim, é o apartamento mesmo em<br />

frente ao da Fatu…<br />

DESLIGA O TELEFONE. SENTE TIO QUIM PROCURANDO ALGUMA COISA NA COZINHA.<br />

NADINE<br />

Quim!, que susto!… Ficas aí assim agachado tipo morcego?<br />

QUIM<br />

Shiuuu, tou numa missão de 007!<br />

NADINE<br />

O quê?!<br />

QUIM<br />

Cunhada… arranja só um coador de café com leite… Daqueles das natas…<br />

NADINE<br />

Tá ali na segunda gaveta. Para quê?<br />

QUIM<br />

Vais me perdoar, mas tenho que ir fazer uma instalação ali na casa de banho… Não podemos correr<br />

riscos do padrinho não saber fazer bem as coisas.<br />

NADINE<br />

Na casa de banho?<br />

QUIM<br />

Eu sei o que estou a fazer… [segredando] Comé, o pires vermelho tá puramente perigoso?<br />

MINA<br />

Mais perigoso não podia estar.<br />

QUIM<br />

Tá “naice”, cunhada… A luta continua, o alembamento é nosso!<br />

NADINE<br />

Amém!<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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QUIM SAI DA COZINHA. na sala, ENCONTRA TITONHO A DEVORAR OS úLTIMOS<br />

TORRESMOS DO PIRES VERMELHO.<br />

QUIM<br />

Não faça isso, homem…<br />

TITONHO<br />

Que foi?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Pouco barulho, o jogo tá quente, pá…<br />

LOCUTOR<br />

Mas que susto, que susto para a selecção portuguesa, um remate fortíssimo de Mantorras, foi por<br />

uma unha negra, foi literalmente por uma unha negra! Mantorras, o menino bonito do Benfica,<br />

fez estremecer Portugal…<br />

QUIM<br />

[para TITONHO] Então você está a atacar o pires do padrinho?<br />

TITONHO<br />

Mas como assim?<br />

QUIM<br />

[para JJ MOURARIA] Você também tá aqui e não tá a controlar o dopping?<br />

JJ MOURARIA<br />

Desculpe, estava com a atenção mais vocacionada para o jogo.<br />

QUIM<br />

Mas o grande desafio tá a decorrer fora das quatros linhas, não adormeça, jovem.<br />

TITONHO<br />

Ma enton gente n’ podê c’mê tchôrresme?<br />

QUIM<br />

Não é isso, Titonho, pode comer sim, mas vocês tiram do pires branco. O pires vermelho é do<br />

padrinho!<br />

JJ MOURARIA<br />

[murmurando] É uma regra cromática, de índole separatista…<br />

TITONHO<br />

Ahm, desculpe lá, não sabia, também, para dizer a verdade, só comi dois.<br />

LOCUTOR<br />

… a recuperação de Angola, é Jamba com muita velocidade passa por Petit, acho que Petit não viu<br />

Jamba passar e deixa para Figueiredo… golpe forte em Figueiredo que avança e o árbitro mandar<br />

seguir, pode ser perigosa a jogada… Figueiredo passa a bola para Mateus que afasta Ricardo<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

106


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Carvalho… vai rematar… foooooorte remate de Mateus… e Ricardo… é Ricardo a afastar a bola da<br />

baliza portuguesa, bela iniciativa da selecção angolana…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Caramba, tamos quase no intervalo, nem golos, nem comida.<br />

Comé, Nadine?, num disseste que ias garantir um reforço?<br />

NADINE<br />

Calma só, filho, já liguei para a dona São e ela vai mandar cá o sobrinho trazer algo mais pesado.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Pediste <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong>, Amor?<br />

NADINE<br />

Pedi, Mário… Mas ela também não tem.<br />

QUIM<br />

Que chatice!<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Parece impossível… Porra, daqui a bocado ligo para o meu amigo da Póvoa, o Aurelino, para ele<br />

falar lá com as <strong>peixe</strong>iras amigas dele… Mandavam um carregamento para Lisboa!<br />

NADINE<br />

Ó filho, sim, mas da Póvoa até cá baixo ainda são umas horas…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Ó filha, mas também já vão umas horas desde que andamos a tentar comer um bom <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong>.<br />

MINA<br />

A dona São vai mandar um bom petisco, pai.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Ó filha, mas eu não tou mais no tempo dos petiscos, agora é caça grossa já…<br />

MANGUIMBO VOLTA DA CASA DE BANHO.<br />

QUIM<br />

[para MANGUIMBO] Está livre?<br />

MANGUIMBO<br />

Eu?<br />

QUIM<br />

A casa de banho!<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

107


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MANGUIMBO<br />

Sim, com certeza… [sente uma cólica] Como é o jogo, na mesma?<br />

QUIM CORRE PARA A CASA DE BANHO.<br />

TITONHO<br />

Na mesma… Mas Portugal está a pressionar muito.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Portugal? O senhor está a ver bem, Titonho?<br />

TITONHO<br />

Sim, senhor Mário… Portugal está a pressionar…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[irritado] Pois eu… Que sou o dono da casa e da televisão, parece que estou a ver Angola a pressionar<br />

mais…!<br />

JJ MOURARIA<br />

[concordando com MÁRIO ROMBO] a mim pareceu-me identicamente…<br />

TITONHO<br />

[petiscando mais um torresmo] Bom, às vezes acontece uma pessoa ver mal.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Às vezes acontece, sim!<br />

QUIM CHAMA JJ MOURARIA.<br />

QUIM<br />

Ó Jota, vem cá ajudar…<br />

LOCUTOR<br />

Lance perigoso, é canto e Figo parece concentrado… faz sinais obscuros a Cristiano Ronaldo… Ah<br />

não, faz sinais a Petit… Ah não… faz sinal a… a… faz sinal a alguém dentro da grande área a quem<br />

ele certamente pensa fazer a bola chegar, muito inteligente esta atitude de Figo…<br />

QUIM<br />

Ó Jota… Tou ta chamar!<br />

JJ MOURARIA<br />

[atento ao jogo] Já vou!<br />

QUIM<br />

[irritado] Não é “já vou”, porra, é “vem já”!…<br />

JJ MOURARIA<br />

Então “vem já”!…<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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LOCUTOR<br />

Figo hesita… aproxima-se da bola… bem marcado… cabeceamento… ahhhhhhhhh…<br />

bola na trave, que bela oportunidade teve Portugal agora… parece que a sorte não esteve do lado<br />

dos portugueses… Figo faz ali um sinal qualquer ao técnico Scolari… não… fez um sinal a… a… a<br />

alguém no banco, certamente ao massagista, ou a um colega de equipe…<br />

um amigo talvez … um familiar… ou mesmo um fã nas bancadas…<br />

QUIM APARECE IRRITADO NA SALA. TIRA A PISTOLA DA CINTURA OUTRA VEZ. PÕE BALA<br />

NA CâMERA.<br />

QUIM<br />

[para JJ MOURARIA] Tás a brincar ou quê?… Vem masé ajudar!<br />

JJ MOURARIA<br />

[assustado] Desculpe, tio.<br />

TITONHO<br />

<strong>Os</strong> nervos estão à flor da pele…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

No campo?<br />

TITONHO<br />

Não, fora do campo.<br />

NA CASA DE BANHO COM MAUS ODORES.<br />

JJ MOURARIA<br />

Ó tio Quim, isto aqui está a precisar de arejar um pouco…<br />

QUIM<br />

Já abri a janela… A culpa é do teu padrinho.<br />

JJ MOURARIA<br />

E dos torresmos… [tapa o nariz. Voz fanhosa] Qual é a estratégia?<br />

QUIM<br />

[tapa o nariz] É a estratégia básica do coador.<br />

QUIM ENTREGA O COADOR A JJ MOURARIA.<br />

JJ MOURARIA<br />

Como assim?<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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QUIM<br />

Muito simples, vi num filme do 007.<br />

JJ MOURARIA<br />

De quem?<br />

QUIM<br />

Bond. James Bond… Que agora é Jaime Bunda… É simples: eu controlo a porta, tu instalas o<br />

coador.<br />

JJ MOURARIA<br />

Eu instalo o coador?<br />

QUIM<br />

Não há tempo a perder, instalas o coador na sanita… Vamos, despacha-te. Eu cubro a porta de<br />

entrada enquanto tu executas a missão.<br />

JJ MOURARIA<br />

Comé, tio Quim… Não pode me obrigar a fazer isso…<br />

QUIM<br />

[gesticulando com a pistola] O padrinho é de quem?<br />

JJ MOURARIA<br />

É meu.<br />

QUIM<br />

A diarreia é de quem?<br />

JJ MOURARIA<br />

É do padrinho.<br />

QUIM<br />

A namorada é de quem?<br />

JJ MOURARIA<br />

É minha.<br />

QUIM<br />

Quem engravidou a filha do meu irmão?<br />

JJ MOURARIA<br />

Fui eu.<br />

QUIM<br />

Quem tem a pistola na mão?<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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JJ MOURARIA<br />

É você!<br />

QUIM<br />

Então instala isso rapidamente, antes que ele volte para mais uma descarga.<br />

JJ MOURARIA<br />

[ajoelhado, instalando o coador] Alea jacta est…. Aliás, “jacta imparabilis et constantis”!<br />

CAMPAÍNHA TOCA.<br />

NADINE<br />

[ falando NA COZINHA] Eu vou, deve ser o sobrinho da dona São que vem trazer a comida.<br />

NADINE DIRIGE-SE À PORTA.<br />

LOCUTOR<br />

Estamos sensivelmente a um minuto do intervalo… o jogo continua zero a zero…<br />

um resultado que certamente favorece a selecção angolana…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Olha-me este cabrão!, favorece a selecção angolana!<br />

E se estivesse um a zero, golo de Angola, favorecia quem?<br />

NADINE<br />

Entra, filho. Estás bom?<br />

MAKUVELA<br />

Estou sim.<br />

NADINE<br />

A tia está bem?<br />

MAKUVELA<br />

Está sim, pediu para vir entregar esta comida.<br />

NADINE<br />

Ela disse quanto é que é?<br />

MAKUVELA<br />

Ela disse que não era nada.<br />

NADINE<br />

Não, filho, não pode ser.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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LOCUTOR<br />

… o árbitro olha para o relógio, está visivelmente exausto este árbitro, apesar de ser jovem… escorre-lhe<br />

suor pela cara… bem já não se sabe o que é suor, o que é gel… no ano precisamente em<br />

que a Associação Internacional de Dermatologistas fez um apelo ao trio de arbitragem, incluindo<br />

o quarto árbitro, para a redução do uso do gel… mas, dizia eu, na altura em que o árbitro olha<br />

constantemente para o relógio, vemos ali Luís Figo também preocupado… fazendo, se não estou<br />

em erro… fazendo sinais a Scolari… não… não foi a Scolari, porque Scolari está do outro lado do<br />

campo… foi possivelmente a algum repórter ou fotógrafo seu conhecido… Figo que é um jogador<br />

que já viveu em várias capitais europeias e cuja mulher é suíça… perdão… sueca… bem… suíça ou<br />

sueca agora não tenho bem presente… é uma mulher alta, digamos assim, bem constituída…<br />

MAKUVELA<br />

A tia disse que hoje não podia cobrar porque havia aqui um funeral da dona Fatu.<br />

NADINE<br />

É verdade.<br />

MAKUVELA<br />

E também porque a selecção de Angola jogava hoje… A tia não sabe me dizer quanto é que tá o<br />

jogo?<br />

NADINE<br />

Entra, filho, estão todos ali na sala, eu vou pôr as coisas na cozinha.<br />

MAKUVELA ENTRA NA SALA.<br />

TITONHO<br />

Bem me parecia que era a tua voz, rapaz… Tudo bem?<br />

MANGUIMBO<br />

[já mais bêbado] Sim, a mim também me pareceu… Tudo bem, rapaz? Agora dás licença que vou<br />

ali à casa de banho.<br />

MAKUVELA<br />

[para MÁRIO ROMBO] Muito boa tarde, senhor Rombo.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Comé, tudo fixe? Trouxeste um pitéu?<br />

MAKUVELA<br />

Trouxe, sim.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Sabes se é <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong>?<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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MINA<br />

Mas, pai, já te disseram que não há <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong>.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Mas no caminho poderia ter havido um milagre…<br />

Uma vez Jesus transformou a água em vinho… Belo milagre!<br />

MAKUVELA<br />

Mas não é <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong>, senhor Rombo, é um caril de Moçambique.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Ao menos isso que é picante…! Senta-te, rapaz, ficas já para ver a segunda parte.<br />

Aceitas uma cerveja a estalar?<br />

MAKUVELA<br />

Aceito, muito obrigado.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[para TITONHO] Mas vocês já se conheciam todos?<br />

TITONHO<br />

Foi hoje de manhã, estivemos juntos lá na Migração-Com-Fronteiras.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Mas a vossa vida é encontrarem-se nesse edifício ou quê?<br />

TITONHO<br />

É que os assuntos ali demoram muito, senhor Rombo.<br />

MAKUVELA<br />

Tem que se ir lá muitas vezes, aquilo é praticamente a nossa segunda casa.<br />

MANGUIMBO APROXIMA-SE DA CASA DE BANHO. QUIM ESTÁ NA PORTA.<br />

QUIM<br />

[baixinho, para JJ MOURARIA] Alerta vermelho, alerta vermelho…<br />

JJ MOURARIA<br />

[terminando, agachado junto à sanita] Tenho quê no cabelo?<br />

QUIM<br />

Alerta vermelho, porra… Abortar!<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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JJ MOURARIA LEVANTA-SE DE REPENTE. ESCONDE ALGUNS OBJETOS.<br />

JJ MOURARIA<br />

Missão concluída, senhor Jaime Bunda…<br />

QUIM<br />

[ainda para JJ MOURARIA] Mais respeito, miúdo… [para MANGUIMBO] então, senhor “padrinho”,<br />

mais uma visitinha?<br />

MANGUIMBO<br />

É verdade… O carteiro toca sempre duas vezes.<br />

QUIM<br />

[sussurrando] No seu caso já deve ter tocado mais… [em tom normal] Mas faça o favor, nós estamos<br />

de saída.<br />

MANGUIMBO<br />

Pois eu estou de entrada.<br />

QUIM<br />

Não há problema, qualquer coisa é só chamar.<br />

MANGUIMBO DIRIGE-se À CASA DE BANHO. JJ MOURARIA E QUIM VOLTAM PARA<br />

A SALA.<br />

JJ MOURARIA<br />

[surpreendido] Jovem Makú por aqui?<br />

MAKUVELA<br />

“Jota”… E tu?<br />

JJ MOURARIA<br />

Esta é a casa da minha dama!<br />

MINA<br />

[sorrindo] Que sou eu!<br />

MAKUVELA<br />

Muito prazer, sou Makuvela.<br />

JJ MOURARIA<br />

Qual “muito prazer” é esse… Basta só com “algum” prazer!<br />

TODOS RIEM.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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MÁRIO ROMBO<br />

Nadine, filha, traz então o pitéu, vamos aproveitar o intervalo para atacar.<br />

TITONHO<br />

Eu não sei se vou comer mais, estou aqui com uma dor de barriga… Posso usar a casa de banho?<br />

QUIM<br />

[rápido] Não! Está ocupada.<br />

JJ MOURARIA<br />

Confirmo.<br />

TITONHO<br />

Então vou usar aqui ao lado, na Fatu.<br />

QUIM<br />

É melhor.<br />

PASSARAM-SE ENTRETANTO MAIS DE 20 MINUTOS.<br />

JÁ COMERAM E JÁ RECOMEÇOU O JOGO.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Este empate dá-me nervosismo!<br />

JJ MOURARIA<br />

[para QUIM] Ó “tio”, estou a achar estranho… o padrinho nunca mais volta.<br />

QUIM<br />

Deixa-lhe estar. É bom sinal…<br />

NADINE<br />

E a Fatu?<br />

MINA<br />

Foi para casa dela e não voltou mais.<br />

Não quis ir lá incomodar, deve estar a descansar um pouco.<br />

NADINE<br />

Deve ser isso.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Epá, calma aí com o falatório que estamos numa parte crítica, canto para Angola…<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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LOCUTOR<br />

… pode ser um lance de perigo… É Figueiredo quem vai bater o canto… O árbitro resolve ali entretanto<br />

algumas picardias entre os jogadores… Habituais, de resto, neste gênero de lance… As<br />

mãos passeiam pelos corpos do adversário, numa nítida tentativa de causar alguma irritação…<br />

Isto depois origina, obviamente, comentários menos simpáticos relativamente às respectivas<br />

mães dos jogadores… Ricardo parece nervoso… Gesticula… Ricardo gesticula, parece-me que para<br />

Scolari… Não… Não deve ser, Scolari não tem ângulo para poder ver os gestos de Ricardo… E aí<br />

está, Figueiredo recua, apanha balanço… Muito bem marcado… A bola segue em arco… Salta toda<br />

a selecção angolana… Pode haver perigo… [grita] Pode haver perigo!…<br />

VOZ É CORTADA DE REPENTE.<br />

A LUZ FOI.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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TODOS<br />

Aahhhhhhhhh!…….<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Puta que o pariu…!<br />

QUIM<br />

Puta que o pariu…!<br />

JJ MOURARIA<br />

Eu diria o mesmo se estivesse em minha casa.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Mas aqui em Portugal também tem Robin dos Postes?!<br />

TITONHO REAPARECE.<br />

TITONHO<br />

Ai, meu deus, isto é muito azar…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Eu não acredito nisto!<br />

NADINE<br />

Calma, Mário.<br />

JJ MOURARIA<br />

[para MÁRIO ROMBO] calma, senhor Rambo…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[desesperado] Eu não acredito nisto… querem me matar do coração… primeiro é porque não há<br />

<strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong>… depois é que para conseguir um rádio tenho que trazer um <strong>morto</strong> e ainda por cima o<br />

rádio não funciona e o <strong>morto</strong> fica aqui a assistir o jogo…<br />

MINA<br />

Calma, pai…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

E agora, mesmo estando na Tuga, a pagar imposto com 21 por cento mais a segurança social… a<br />

luz vai… e eu não posso ver o jogo da minha selecção… [muito triste] Mas eu fiz quê a Deus?!<br />

QUIM<br />

Mano, agarra só a tua calma… A luz já volta.<br />

NADINE<br />

Eu vou buscar velas.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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MANGUIMBO VOLTA DA CASA DE BANHO.<br />

MANGUIMBO<br />

Felizmente já tinha feito o que havia para fazer… [pausa] Mas quanto é que está o jogo?<br />

MAKUVELA<br />

Isso gostaríamos nós de saber.<br />

MANGUIMBO<br />

Ó como é, tás aqui?<br />

MAKUVELA<br />

Yá, vim trazer comida.<br />

MANGUIMBO<br />

Olha aqui estamos a varrer uns torresmos cinco estrelas “faine” bem “gude”!<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Bom, mas agora vamos lá organizar melhor este esquema.<br />

QUIM<br />

[para MANGUIMBO] Sente-se, padrinho, procure a sua cadeira e sente-se. [para<br />

JJ MOURARIA] Jota num queres ir à casa de banho?<br />

JJ MOURARIA<br />

[relaxado] Eu não, obrigado.<br />

QUIM<br />

[autoritário] Queres, sim! Vai lá à casa de banho e vê se está tudo bem.<br />

JJ MOURARIA<br />

[entendendo] Ahn… está bem… Vou ver se está tudo bem.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Aqui é que não está tudo bem… [para QUIM] Ó mano, vamos reorganizar a tropa.<br />

QUIM<br />

Então diz.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Aqui o falecido vai já para casa, porque já não está aqui a ver grande coisa…<br />

TITONHO<br />

Am te levá esse defunto pa casa. E o rádio, vai?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

O rádio fica. É a nossa última esperança.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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QUIM<br />

Ok!<br />

MANGUIMBO<br />

[BÊBADO] Ok! Ok positivo! Câmbio!<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Ó Makuvela…<br />

MAKUVELA<br />

Diga, senhor Rombo.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Vais partir em missão urgente de arranjar pilhas pro rádio.<br />

MAKUVELA<br />

Com licença então… Fui!<br />

MINA<br />

Eu vou procurar mais velas.<br />

QUIM<br />

Mas, mano, senta-te então, assim tás muito nervoso.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[sentando-se] Tens razão. [para MANGUIMBO] O “padrinho” podia ajudar a levar o falecido.<br />

QUIM<br />

O Jota ajuda, o padrinho fica aqui conosco.<br />

MANGUIMBO<br />

[não se consegue levantar] Mas eu quero ajudar…<br />

QUIM<br />

[autoritário] Mas eu já disse que fica sentado. Não é preciso. O Jota tem que fazer exercício físico.<br />

[grita para o JJ MOURARIA] Ó Jota, volta aqui à base.<br />

JJ MOURARIA REGRESSA DA CASA DE BANHO.<br />

QUIM<br />

[baixinho] Sinais das “rolling stones”?<br />

JJ MOURARIA<br />

Como?<br />

QUIM<br />

[baixinho] As pedras!, há sinais das pedras?<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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JJ MOURARIA<br />

Negativo, tio. Só um cheiro suspeito.<br />

QUIM<br />

Poupa-me!… [ainda para JJ MOURARIA] Então ajuda aqui o Titonho a levar o falecido para<br />

casa.<br />

JJ MOURARIA<br />

Com certeza. Vamos lá, Titonho.<br />

TITONHO<br />

Vamos lá… Cada um ne sê casa; cada corpe ne sê cama…<br />

JJ MOURARIA<br />

[com dificuldade em suportar o peso do <strong>morto</strong>] Ê pá… isto… está… difícil…<br />

TITONHO<br />

Verdadeiramente… difícil…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Mas esse <strong>morto</strong>, comé? Cada vez mais pesado?<br />

MANGUIMBO<br />

Isso pode ser feitiço!<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Qual feitiço qual quê… Feitiço é a falta de luz que não me deixa ver o jogo… [para MANGUIMBO]<br />

Vá lá, ajude então a levar o vizinho. [Depois para MINA] Ó filha, ajuda também aí com o<br />

petromax 20 .<br />

MINA<br />

Sim, pai.<br />

MINA AJEITA A VELA, PREPARA-SE PARA IR ILUMINANDO O CAMINHO.<br />

MANGUIMBO<br />

[com dificuldade levanta-se] Ok, positivo. Câmbio e desligo!<br />

QUIM<br />

Mas volte depressa, “padrinho”, ainda há muita cerveja para entornar…<br />

MANGUIMBO<br />

[para JJ MOURARIA e TITONHO] Vamos lá… Um, dois… Três!<br />

JJ MOURARIA<br />

[fazendo esforço] Irra!…<br />

20. Petromax: lamparina, candeeiro.<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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TITONHO<br />

[fazendo esforço] Chiça!…<br />

MANGUIMBO<br />

[fazendo esforço] Pópilas!…<br />

SAEM OS TRÊS COM O FALECIDO PARA O APARTAMENTO DE FAT U .<br />

MINA SEGUE À FRENTE. PARECE UMA PROCISSÃO.<br />

QUIM APROVEITA E DIRIGE-SE À CASA DE BANHO.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Mas tás com diarrumba, Quim?…, toda hora na casa de banho…<br />

QUIM<br />

Nada, mano. Tou em missão mesmo… Volto já.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Nadine, estás aí, filha?<br />

NADINE<br />

Estou aqui.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Que dia, não, filha?<br />

NADINE<br />

Pois é… Também estou estourada, não vejo a hora de ir para a cama… [pausa] Queres que eu vá<br />

pedir a algum vizinho se tem rádio?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[já mais bem disposto] Rádio, Nadine? [riso ligeiro] Rádio é coisa de antigamente, ninguém mais<br />

tem rádio… Agora têm eme-pê-três e o caraças…<br />

NADINE SORRI.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Não viste mesmo aqui no nosso grupo o único que tinha rádio era o <strong>morto</strong>,<br />

e mesmo assim sem pilhas…<br />

NADINE<br />

Não me faças rir, Mário.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Que dia…, mas também te digo… Sabes o que me custa mais, filha?<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

•<br />

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NADINE<br />

A questão da tua filha?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Não… isso parece-me que tá mais ou menos resolvido, ou então o Quim resolve isso depois.<br />

NADINE<br />

O jogo de futebol? Tás preocupado?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Não, filha… é igual… Já não vamos levar grande carga de porrada, mesmo que os tugas ganhem, já<br />

é só um golo ou dois.<br />

NADINE<br />

Mas ainda tás com essa carinha de preocupado.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Não contes a ninguém, Nadine… [triste] Mas tu não imaginas a vontade que eu tive hoje de me<br />

dar encontro com um bom <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong>…<br />

NADINE<br />

Com muito limão e cebolada?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

E jindungo! Para dar um certo ritmo…<br />

NADINE<br />

[beijando-o na testa] Ai, Mário…, és igualzinho ao teu pai!<br />

ONDJAKi<br />

•<br />

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APARTAMENTO DE FAT U . ENTRAM MINA, JJ MOURARIA, TITONHO E MANGUIMBO<br />

COM O CORPO. PARAM NA SALA.<br />

MANGUIMBO<br />

Epá, pousa só o muadiê aqui no sofá, não era aqui que ele gostava de ficar?<br />

TITONHO<br />

[baixinho] Shiuuu… mas aqui a Fatu está a dormir, pode se assustar de acordar sozinha com o<br />

<strong>morto</strong> aqui perto dela.<br />

JJ MOURARIA<br />

Tem razão, Titonho…<br />

MANGUIMBO<br />

[com pressa] Epá, mas eu não aguento mais, tenho que ir à casa de banho… [para Titonho] Onde<br />

é o Wilson de Carvalho?<br />

TITONHO<br />

Quê? Ílson?<br />

MANGUIMBO<br />

O WC, mais conhecido como casa de banho?<br />

TITONHO<br />

É ali na segunda porta.<br />

JJ MOURARIA<br />

[atrapalhado, interrompendo] Mas… É melhor ir lá na casa do senhor Rambo…<br />

aqui vai fazer muito barulho e…<br />

MANGUIMBO<br />

Qual barulho é esse? Eu num dou puns a esta hora.<br />

JJ MOURARIA<br />

Não… mesmo assim, “padrinho”… A canalização não está devidamente apetrechada…<br />

MANGUIMBO<br />

Ok, positivo… vou então na casa do senhor Silvestre Estalóne…<br />

TITONHO<br />

De quem?!<br />

JJ MOURARIA<br />

Não interessa, Titonho. Vamos só deitar o falecido.<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

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ONDJAKi<br />

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JJ MOURARIA E TITONHO LEVAM O FALECIDO PARA O QUARTO.<br />

MANGUIMBO SAI APRESSADO. MINA SAI PARA ILUMINAR O CAMINHO.<br />

MANGUIMBO DIRIGE-SE ÀS ESCADAS.<br />

MINA<br />

[surpreendida] Senhor Manguimbo… Vai-se embora? O tio Quim está à sua espera.<br />

MANGUIMBO<br />

[disfarçando] Eu sei… Isto é… O Titonho… Não… A dona Fatu já tinha me pedido para ir buscar<br />

uma coisa ali na bomba de gasolina…<br />

MINA<br />

Mas aqui perto? [pausa] Olhe que aqui não há nenhuma bomba.<br />

MANGUIMBO<br />

Há sim, minha “afilhada”… Você é que não conhece os caminhos da vida… [depois, sério] Nós,<br />

angolanos, conhecemos lugares que os outros povos desconhecem…<br />

MINA<br />

[pensando que Manguimbo está a brincar. Divertida] Está bem… e se o tio Quim perguntar por si?<br />

MANGUIMBO<br />

[faz uma pausa, pensa um pouco. Fala com gosto] Se o tio Quim perguntar por mim… Diga que eu fui<br />

ali à “Casa Andeia” e que volto já…<br />

MINA<br />

À casa da Andreia?<br />

MANGUIMBO<br />

Não, filha… Ouve bem: a “Casa Andeia!”… “Casa Andeia”, ele vai entender logo.<br />

MINA<br />

Está bem. Até já.<br />

MANGUIMBO<br />

[descendo, cambaleante] Até já, minha afilhada… Até já… [desce cantarolando] “Eu vou… Eu vou…<br />

Morrer em Angola… Com armas… Com armas, de guerra na mão…”<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

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NO APARTAMENTO DE FAT U , JJ MOURARIA E TITONHO REGRESSAM À SALA.<br />

TITONHO SENTA-se JUNTO DE FAT U , QUE DORME.<br />

JJ MOURARIA<br />

Titonho…? Não vem ouvir o resto?<br />

TITONHO<br />

Ouvir o resto do quê?<br />

JJ MOURARIA<br />

Do relato do jogo.<br />

TITONHO<br />

Ouvir como?<br />

JJ MOURARIA<br />

No rádio do falecido.<br />

TITONHO<br />

E onde é que estão as pilhas que fazem funcionar o rádio do falecido?<br />

JJ MOURARIA<br />

Hão de chegar…<br />

TITONHO<br />

[sonolento] Não… Am tó fórte de permessa. Sempre a falarem de coisas que hão-de chegar… Eu<br />

estou bem aqui, deixe estar. Pode ir… F’tchá porta éntes de saí.<br />

JJ MOURARIA<br />

Até amanhã… Rest in “please”.<br />

JJ MOURARIA SAI DO APARTAMENTO DE FAT U . ENCONTRA MINA NO CORREDOR,<br />

SORRIDENTE.<br />

MINA<br />

Estava à espera de ti!<br />

JJ MOURARIA<br />

Que bela surpresa… [de repente lembra-se] Mas o teu tio está à espera para continuarmos as investigações<br />

do Manguimbo…<br />

MINA<br />

Mas o Manguimbo acabou de descer.<br />

ONDJAKi<br />

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QUIM ABRE A PORTA DO APARTAMENTO DE MÁRIO ROMBO. DEPARA-SE COM OS DOIS.<br />

QUIM<br />

Ó meninos, o que é isso? Nada de beijos aí no escuro, para mais à frente da casa do <strong>morto</strong>…<br />

JJ MOURARIA<br />

Mas ainda não estávamos nessa parte, senhor Quim. Estava a ver se localizava o Manguimbo.<br />

QUIM<br />

[assustado] Como assim? Ele não tá aí no apartamento com o <strong>morto</strong>?<br />

JJ MOURARIA<br />

Ele disse-me que ia à casa de banho na casa do senhor Rombo.<br />

MINA<br />

Ele desceu, tio.<br />

QUIM<br />

Desceu? Desceu como?<br />

MINA<br />

Desceu estas escadas, mas volta já… Ele até deixou um recado.<br />

QUIM<br />

Qual recado?<br />

MINA<br />

Não entendi bem, primeiro disse que ia à bomba de gasolina…<br />

QUIM<br />

Mas aqui não há bomba de gasolina nenhuma!<br />

MINA<br />

Foi o que eu lhe disse… Depois então ele mudou de ideias.<br />

JJ MOURARIA<br />

Como assim?<br />

QUIM<br />

Como assim?<br />

MINA<br />

Disse-me que se o tio Quim perguntasse por ele… para dizer que ele foi à casa… à casa… já sei, ele<br />

disse que foi à “Casa Andeia” e que já volta.<br />

QUIM<br />

[muito desanimado, com ar de derrotado mesmo] Ele disse “Casa Andeia”? Tens a certeza…?<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

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MINA<br />

Absoluta, tio. “Casa Andeia”.<br />

JJ MOURARIA<br />

[pensativo] Casa Andeia, não tou a ver… Só se for para lá de Celorico!<br />

QUIM<br />

Casa Andeia!… Nem podes ver, Jota. É um código de antigamente…<br />

QUIM FECHA A PORTA DO APARTAMENTO DEIXANDO OS DOIS NO CORrEDOR.<br />

MINA<br />

Jota, apaga a vela.<br />

JJ MOURARIA<br />

Mas vamos ficar às escuras.<br />

MINA<br />

[sorrindo] Sim, apaga a vela!<br />

JJ MOURARIA APAGA A VELA.<br />

DENTRO DO SEU APARTAMENTO, MÁRIO ROMBO ESTÁ À JANELA A FUMAR.<br />

QUIM APROXIMA-SE DELE.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[sorrindo tranquilo] Não precisas de dizer nada, Quim… Tá tudo bem…<br />

QUIM<br />

O sacana do “padrinho”!<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Tudo está bem quando acaba bem, Quim.<br />

QUIM<br />

Desaparece e ainda tem o desplante de deixar recado…<br />

MÁRIO ROMBO OFERECE UM CIGARRO A QUIM.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Fuma um cigarro também. Vai-te acalmar.<br />

ONDJAKi<br />

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QUIM ACEITA O CIGARRO. ACENDE-O.<br />

QUIM<br />

Deixou recado com a Mina, a dizer que ia à Casa Andeia e que já voltava…<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[sorrindo] A “Casa Andeia”! Há que tempos que não ouvia isso…<br />

Faz me lembrar o pai outra vez.<br />

QUIM<br />

O pai quando ia à Casa Andéia não tinha hora de voltar…<br />

OUVE-SE GRITARIA DE CELEBRAÇÃO AO LONGE.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Ouves a gritaria, Quim?<br />

QUIM<br />

Ya.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

[triste] Portugal deve ter vencido, não?<br />

QUIM<br />

Não sei… Aqui no nosso bairro essa gritaria não quer dizer nada… [pausa] Tanto pode ser vitória de<br />

Portugal como de Angola.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Quim?<br />

QUIM<br />

Diz, mano.<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Até vou apagar o cigarro para cheirar melhor…<br />

QUIM<br />

O que foi?<br />

MÁRIO ROMBO<br />

Era capaz de jurar que sinto o cheiro de <strong>peixe</strong>-seco!<br />

QUIM<br />

Tens cada uma, mano… O pai é que adorava <strong>peixe</strong>-seco.<br />

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TERRAÇO DO PRÉDIO.<br />

JJ MOURARIA E MINA CHEGAM ABRAÇADOS.<br />

JJ MOURARIA<br />

Ouves essa confusão?<br />

MINA<br />

Oiço sim.. Tanto barulho… Mas então Portugal deve ter vencido, não?<br />

JJ MOURARIA<br />

Não quer dizer nada, respectivamente…<br />

MINA<br />

Mas ó Jota, onde é que tu aprendeste a falar assim à toa?<br />

JJ MOURARIA<br />

Mas como “à toa”? [espantado] Não me digas que não conheces o termo “respectivamente”?<br />

MINA<br />

Conheço sim… Mas como o acabaste de usar, não é respectivo com nenhum significado… [pausa]<br />

Diz lá, achas que Portugal ganhou? Coitado do meu pai…<br />

JJ MOURARIA<br />

Esta festança nas proximidades não quer dizer nada, Mina… Aqui no nosso bairro, tanto pode ser<br />

vitória de Portugal como de Angola…<br />

MINA<br />

Bem, também já não me interessa… Dá-me um beijo bom!<br />

JJ MOURARIA<br />

Como é um beijo bom, Mina?<br />

MINA<br />

Vês aquelas estrelas brilhantes no céu?<br />

JJ MOURARIA<br />

Vejo.<br />

MINA<br />

Um beijo bom é eu fechar os olhos… [ela fecha os olhos] Tu dás-me um beijo…<br />

E eu continuo a ver estrelas…<br />

JJ MOURARIA BEIJA-LHE DEVAGAR O PESCOÇO. DEPOIS A BOCHECHA. PASSA PELA<br />

ORELHA. VOLTA AO PESCOÇO. APROXIMA O SEU CORPO. ELA FOGE UM BOCADO. ELE<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

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CONTINUA A BEIJAR O PESCOÇO. SEM QUERER TROPEÇAM. HÁ UM ESTRONDO.<br />

DEIXAM CAIR ALGO. DESATAM A RIR.<br />

JJ MOURARIA<br />

Amor… Magoaste alguma articulação lateral? O osso da bunda?<br />

MINA<br />

[gargalhada] Ai, afinal bunda tem osso? Não sabia…<br />

JJ MOURARIA<br />

É uma forma de falar… Mas que caixas são essas?<br />

MINA<br />

Que cheiro é este?<br />

OBSERVAM. HÁ PEIXE-SECO ESPALHADO PELO CHÃO.<br />

JJ MOURARIA<br />

Peixe-seco, e é do bom!<br />

MINA<br />

A sério…? É <strong>peixe</strong>-seco?<br />

JJ MOURARIA<br />

[pegando nalguMAs postas] É <strong>peixe</strong>-seco, sim… Que estranho, é muito bom, está bem conservado.<br />

MINA<br />

Alguém deve ter posto aqui para secar, então.<br />

JJ MOURARIA<br />

Amor…<br />

MINA<br />

Diz.<br />

JJ MOURARIA<br />

Estava todo mundo triste lá em baixo porque não havia <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong>, se calhar devíamos ir lá levar<br />

este <strong>peixe</strong>.<br />

MINA<br />

Ai, Jota… Desculpa… Cada coisa tem o seu tempo… [abraça-o] Vem cá, dá-me lá o tal beijo que<br />

me prometeste antes de cairmos.<br />

JJ MOURARIA<br />

Eu com a queda quase que já via estrelas, mesmo sem o beijo…<br />

ONDJAKi<br />

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MINA<br />

[sorrindo] Mas vais ver que com o beijo as estrelas brilham mais.<br />

JJ MOURARIA ABRAÇA-A. BEIJA-A NO PESCOÇO. ELA FECHA OS OLHOS,<br />

ELE VAI PARANDO O BEIJO.<br />

JJ MOURARIA<br />

Mina…<br />

MINA<br />

O que foi, amor?<br />

JJ MOURARIA<br />

Desculpa só a interrupção inusitada neste beijo estrelar… Mas é que estou a pensar uma coisa.<br />

MINA<br />

O que foi, amor?<br />

JJ MOURARIA<br />

Já viste bem… Desde hoje de manhã, todos… À procura de <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong>…<br />

MINA<br />

Sim.<br />

JJ MOURARIA<br />

E nós sem querer aqui, já no fim do dia, longe de todos… Encontramos o <strong>peixe</strong>-seco.<br />

MINA<br />

Não estou a entender nada, Jotinha.<br />

JJ MOURARIA<br />

Eu também não estou a entender, limito-me a constatar… [pausa]<br />

Uma pessoa passa tanto tempo a querer <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong>…<br />

MINA<br />

Ou me beijas… Ou me beijas, Jota…<br />

JJ MOURARIA<br />

E é a própria vida que nos esconde o <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong> e nos dá de presente um monte de <strong>peixe</strong>-seco!<br />

MINA<br />

Beija-me só, Jota… Mesmo em cima do cheiro do <strong>peixe</strong>-seco,<br />

eu quero ver estrelas nascerem no nosso beijo…<br />

OS VIVOS, O<br />

MORTO E O<br />

PEIXE-FRITO<br />

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JJ MOURARIA<br />

Fecha os olhos, amor… Vou-te beijar como se Angola tivesse ganhado a Portugal e o teu pai estivesse<br />

já a comer <strong>peixe</strong>-<strong>frito</strong>…<br />

MINA<br />

Com limão…<br />

JJ MOURARIA<br />

Com jindungo… E um monte de cebola, como o teu tio gosta…<br />

MINA<br />

Gosto quando falas e me beijas, Jota.<br />

JJ MOURARIA<br />

Fecha os olhos, amor… Vou te beijar com estrelas brilhantes… Mas depois temos que ir levar este<br />

<strong>peixe</strong>-seco lá para baixo. Parece que aqui há <strong>peixe</strong> para muita gente.<br />

FIM


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ondjaki<br />

Nasceu em Luanda, em 1977. Prosador e poeta, é membro da União dos Escritores Angolanos.<br />

Está traduzido para francês, espanhol, italiano, alemão, inglês, sérvio, sueco, polaco<br />

(www.kazukuta.com).<br />

Venceu os prémios Sagrada Esperança (Angola, 2004), António Paulouro (Portugal, 2005),<br />

Grande Prémio APE (Portugal, 2007), Grinzane Young Writer (Etiópia, 2008), FNLIJ (Brasil, 2010,<br />

2013 & 2014), Jabuti (Brasil, 2010 & 2014), Caxinde (Angola, 2011), Bissaya Barreto (Portugal,<br />

2012) e o prémio José Saramago (Portugal, 2013).<br />

vânia medeiros<br />

Nasceu em Salvador, Bahia, em 1984. É artista plástica, desenha, pinta, faz cenografia,<br />

instalações e anda de bicicleta. Seu trabalho pode ser visto no:<br />

https://www.flickr.com/photos/vania_medeiros


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EM LISBOA, no dia em que a selecção de futebol<br />

angolana enfrenta a selecção portuguesa, num<br />

minúsculo apartamento, irão juntar-se cabo-verdianos,<br />

angolanos, são-tomenses, guineenses, moçambicanos<br />

e portugueses, mais o bebê na barriga da futura noiva,<br />

as cervejas, a pistola, o futuro noivo, a comida, os<br />

diamantes na barriga do padrinho e o vizinho <strong>morto</strong><br />

que ainda adora futebol.<br />

Portugal nunca tinha vivido um dia assim!<br />

9 788534 705547 705493

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