Chicos 58 - 22.09.2019
Chicos é uma publicação de literatura e ideias de Cataguases - MG - Brasil. Fale conosco em cataletras.chicos@gmail.com
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grave como a mãe de uma amiga teve.<br />
Mas quem ficou doente foi o meu pai,<br />
que não pegava nem gripe. O destino é<br />
sempre a viagem nunca feita pela fantasia.<br />
Um armário de cozinha é, aliás, como<br />
uma mala de viagem. E eu sempre soquei<br />
tudo nas malas de viagem, fiz do zíper<br />
um cabo de guerra, sentei em cima, forçando<br />
caber, como as pessoas atrasadas<br />
no vagão, como as minhas coxas nas pernas<br />
P da calça.<br />
Minha amiga, a da mãe que teve uma<br />
doença grave, sugeriu cortar o pão pra<br />
caber na calça. É tão estranho que o caber<br />
seja quase sempre alguma coisa que<br />
exige subtração e não soma. Cortei o pão<br />
e o saco ficou dentro do armário. O pão,<br />
se caísse, vinha abaixo fechado. Tombava<br />
e eu reerguia. Tombava e eu reerguia, assim,<br />
com a displicência de um abaixa e<br />
levanta. Se o saco de pão pensasse, talvez<br />
caísse de propósito em cima da taça, caísse<br />
hoje, bem hoje que eu não o quis. Mas<br />
não pensando, caiu do mesmo jeito. A<br />
maioria das coisas que acontecem é fruto<br />
de intenção nenhuma. A gente acha que<br />
as pessoas estão fazendo as coisas pensando<br />
na gente só porque elas nos acertam.em<br />
cheio e elas só estão caindo como<br />
um saco de pão cai sobre a única taça<br />
que havia, vingativo como quem ameaça:<br />
se eu cair levo alguém junto.<br />
Não ouvi a ameaça. Mas recebi uma<br />
ameaça.<br />
<strong>Chicos</strong><br />
É que desde que eu soube da história<br />
de uma mulher que enlouqueceu depois<br />
de quebrar sem querer alguma coisa de<br />
vidro dentro de casa, tomo cuidado redobrado,<br />
principalmente com o espelhinho<br />
de aumento que deixo no criado mudo<br />
com uma pinça em cima. Meu espelho<br />
fica sempre no centro, longe das pontas,<br />
mais à esquerda do pendente de teto que,<br />
se cair, não acerta o objeto onde vejo<br />
meus bigodes. Tenho a mania de me preocupar<br />
com coisas improváveis como um<br />
pendente de teto ou a possibilidade de<br />
enlouquecer com a quebra de objetos de<br />
vidro. Por isso deixo o pão a perigo, deixo<br />
a taça a perigo. E coisas caem e quebram<br />
debaixo dos meus bigodes. E o medo<br />
continua a ser horror e fascínio.<br />
O som da taça no chão é como o de<br />
uma janela atingida por uma pedra. Mas<br />
nada de novo invade a minha cozinha.<br />
Esses cacos são fruto do que já estava. E<br />
o mocinho dorme no quarto. Varro, recolho,<br />
ajoelho. No silêncio confesso baixinho<br />
os meus pecados, os meus descasos,<br />
a minha displicência. Mas ele desperta,<br />
surge na porta coçando os olhos e<br />
diz: Isso acontece, não adianta se crucificar.<br />
Pão e vinho. Não tem coisa mais profana<br />
que transubstanciar a loucura no<br />
corpo e no sangue das palavras.<br />
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