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Chicos 58 - 22.09.2019

Chicos é uma publicação de literatura e ideias de Cataguases - MG - Brasil. Fale conosco em cataletras.chicos@gmail.com

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<strong>Chicos</strong><br />

Andressa Barichello<br />

Nasceu em São Paulo - SP, atualmente mora<br />

em Portugal. É autora do livro Crônicas do Cotidiano<br />

e outras mais (Scortecci, 2014). É cofundadora<br />

do projeto fotoverbe-se.com.<br />

Loucura<br />

Quebrei uma taça. Ou a taça foi<br />

quebrada por um saco de pão de forma.<br />

Não sei. O armário, alto, vive cheio de comida.<br />

E a preguiça, grande, faz da bancada<br />

o lugar das taças sujas. As xícaras e copos<br />

vão para a pia ou para a máquina de<br />

lavar. As taças ficam, como se o vinho, ao<br />

contrário do café, do leite e do refrigerante,<br />

pudesse esperar uns dias, fosse água.<br />

As coisas pesadas, como latas, nunca<br />

causam problemas - ao menos não esses,<br />

de queda. Alguns pacotes de bolacha, retângulos<br />

em quatro apoios, também não:<br />

ficam firmes. O perigo, mesmo, está no<br />

mais cotidiano: sacos de arroz, feijão e<br />

pão de forma estão sempre prontos a tombar.<br />

A instabilidade tem afinidade com o<br />

básico em qualquer circunstância.<br />

Prova disso é que se estivermos tristes<br />

ou aflitos a primeira coisa que acontece é:<br />

a gente não dorme, não come, não caga e<br />

não trepa direito. Dentro do meu armário<br />

tudo trepa: nozes em cima de sucrilhos,<br />

sucrilhos em cima de molho bechamel,<br />

chocolate em cima de macarrão. Às vezes<br />

é preciso empurrar, como as pessoas que<br />

ainda desejam entrar no vagão fazem<br />

quando o trem já está lotado. Como eu,<br />

hoje, tentando entrar numa calça P. Embora<br />

haja diferença entre a precariedade que<br />

nasce das pilhas e a unidade que nasce<br />

nos apertos de corpo contra corpo.<br />

Foi essa precariedade que já fez com<br />

que o arroz tombasse. Faz tempo. Nada<br />

grave. Não alçou vôo livre, tombou dentro<br />

dos limites seguros da prateleira mesmo,<br />

os grãos percurtindo ao tocar o chão. Era<br />

como se noivos tivessem passado. Varri<br />

um fim de festa.<br />

O feijão, se caísse, eu imaginei naquele<br />

dia, seria a sensação de um fio quando escapam<br />

contas, bolas de gude. Se pisados,<br />

nos pés uma cócega, estimulados pontos<br />

de acupuntura. A acupuntura, aliás, é ótima<br />

para evitar problemas com dormir, comer,<br />

cagar e trepar, porque é, como dizem,<br />

um tratamento holístico. Eu acredito<br />

muito no holístico mas nunca pude ter sobre<br />

o meu armário uma visão, digamos,<br />

integral. Senão talvez tivesse sabido que<br />

não bastava preencher a soma dos espaços<br />

vazios. Mas enquanto a gente fantasia que<br />

seria o feijão, quem tomba é o pão.<br />

Durante toda a minha adolescência vivi<br />

preocupada com a saúde da minha mãe,<br />

com medo que ela tivesse uma doença<br />

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