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Chicos 58 - 22.09.2019

Chicos é uma publicação de literatura e ideias de Cataguases - MG - Brasil. Fale conosco em cataletras.chicos@gmail.com

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Fale conosco em cataletras.chicos@gmail.com

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Nº <strong>58</strong><br />

22 de setembro de 2019<br />

e-zine de literatura e ideias de<br />

Cataguases – MG<br />

Um dedo de prosa<br />

Esta é a nossa edição <strong>58</strong><br />

<strong>Chicos</strong> é uma e-zine que circula apenas pelos meios digitais.<br />

Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar<br />

nossas edições ou visite-nos nos links listados nesta<br />

página.<br />

A linha editorial é fundamentalmente voltada para a<br />

literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno<br />

e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números,<br />

uma diversidade temática.<br />

Neste número, a poeta da primeira página é Lecy Delfim<br />

Vieira. Mais uma de nossas poetas ainda inédita em<br />

livros. Quem nos dá um pouco de sua dimensão é Joaquim<br />

Branco.<br />

No último dia 17.09.2019 faleceu o artista plástico e<br />

professor Ady Resende, quem fala dele em sua poesia é<br />

o estreante nestas páginas Marcos Venícios de Melo.<br />

Esta edição é dedicada ao Cairu Teles, agitador da cena<br />

cultural de Cataguases por décadas, falecido recentemente.<br />

Uma agradável leitura para todos! E até o início do verão.<br />

Os <strong>Chicos</strong><br />

Capa: Foto Vicente Costa<br />

Editores:<br />

Emerson Teixeira Cardoso<br />

José Antonio Pereira<br />

Colaboradores:<br />

Projeto gráfico - Gabriel Franco<br />

Fotografia - Vicente Costa<br />

Fale conosco: cataletras.chicos@gmail.com<br />

Visite-nos em:<br />

https://independent.academia.edu/<strong>Chicos</strong>Cataletras<br />

https://www.yumpu.com/pt/chicos_cataletras<br />

http://chicoscataletras.blogspot.com/<br />

05.05.1939 — 26.06.2019<br />

01


<strong>Chicos</strong><br />

03 LECY DELFIM<br />

Menina nº 4 + 2 poemas<br />

VIEIRA<br />

08 JOAQUIM BRANCO<br />

Lecy Delfim Vieira (1942-2008)<br />

10 INEZ ANDRADE<br />

PAES<br />

Amazónia<br />

11 HELEN MASSOTE<br />

O bobo da corte / Não é o bobo<br />

do povo<br />

13 FERNANDO ABRITTA<br />

Feito Corpo<br />

23 ALBERTO BRESCIANI<br />

Pedras ao mar + 4 poemas<br />

27 GISELA GRACIAS<br />

RAMOS ROSA<br />

2 poemas de O livro das mãos<br />

29 MAURICIO VIEIRA<br />

Floema<br />

34 MARCOS VENÍCIOS<br />

Paraíso + 2 poemas<br />

DE MELO<br />

37 FLAUSINA MÁRCIA<br />

Pedipereipetos Pehumapenos<br />

39 ALBERTO PEREIRA<br />

Um poema<br />

42 RONALDO CAGIANO<br />

Variação sobre um poema de<br />

Marçal Aquino<br />

47 RONALDO WERNECK<br />

Uma noite na Galart<br />

50 JOSÉ VECCHI DE<br />

Dentim<br />

CARVALHO<br />

52 JOSÉ ANTONIO<br />

Ô Glória!<br />

PEREIRA<br />

55 ANDRESSA<br />

Loucura<br />

BARICHELLO<br />

59 ANTÔNIO JAIME<br />

SOARES<br />

Presença espírita e lembrança de<br />

índios<br />

61 MAURICIO VIEIRA<br />

De Bucéfalo ao Acéfalo<br />

63 LUIZ RUFFATO<br />

Lendo os clássicos: Short cuts -<br />

Cenas da vida<br />

65 CLARA ARREGUY<br />

Mecanismos do mal descortinados<br />

66 EMERSON TEIXEIRA<br />

CARDOSO<br />

Gaiola de vidro, de Gleison<br />

Dornellas<br />

68 RONALDO CAGIANO<br />

Uma escritura demiúrgica<br />

71 JOSÉ ANTONIO<br />

Em agosto de 2007<br />

PEREIRA<br />

32 PASCHOAL MOTTA<br />

Saudação da primavera<br />

57 VANDERLEI PEQUENO<br />

A Fina Flor do Noel<br />

75 CLIPS<br />

02


<strong>Chicos</strong><br />

Lecy Delfim<br />

Vieira<br />

Lecy Delfim Vieira, nascida em Cataguases<br />

em 12 de outubro de 1942, falecida em<br />

08 de agosto de 2008. É, infelizmente, mais<br />

uma de nossas ótimas escritoras ainda inédita<br />

em livro.<br />

Graças ao poeta Joaquim Branco, a totalidade<br />

de sua obra não se perdeu; já que vários inéditos<br />

dela encontram-se em seu acervo.<br />

Além da participação no jornal O Muro, de<br />

Joaquim Branco e equipe, apareceu também<br />

nas antologias:<br />

Poetas novos do Brasil, organizada por Walmir<br />

Ayala em 1967.<br />

Marginais do Pomba, organizada por Joaquim<br />

Branco, Fernando Cesário e Ronaldo Werneck.<br />

La Nueva poesia Latinoamericana, organizada<br />

por Jorge A. Boccanera publicada no México<br />

em 1999.<br />

03


<strong>Chicos</strong><br />

Menina nº 4<br />

Não me importa que sonhes as coisas sem sabê-las.<br />

importa-me que saibas<br />

e sonhes as coisas.<br />

Já te dissera que fosses materialista soberba e cínica<br />

não<br />

que fosses fingida.<br />

E quem sonha finge se não sabe com que sonha<br />

e os que sonham não sabem nada<br />

senão<br />

não sonhariam.<br />

04


<strong>Chicos</strong><br />

Menina nº 8<br />

Agora me responderias<br />

num único verso<br />

talvez<br />

como é composto o poeta.<br />

É quando se protesta.<br />

Poeta protesta profundo<br />

tão profundo<br />

quanto o sangue sem cores<br />

e sem lugar<br />

cujo alvo dileto<br />

é a plataforma do poeta.<br />

Poeta alvado<br />

distante<br />

ou<br />

amado<br />

poeta incrédulo,<br />

impossível<br />

ou compacto<br />

meu poeta é um monstro suavíssimo.<br />

05


<strong>Chicos</strong><br />

Menina nº 11<br />

Menina<br />

ninguém pode dizer que eu não procurei.<br />

Até sob os troncos<br />

nas folhas<br />

na raiz<br />

– o que é raiz? –<br />

até nos lagos profundíssimos<br />

eu que não sei nadar<br />

porque eu não sei.<br />

Se eu soubesse teria visto que era inútil<br />

e me afogaria.<br />

mas ninguém pode dizer que eu não procurei.<br />

Até nos olhos profundíssimos<br />

imaculados<br />

em todas as cores<br />

de todos os olhos<br />

eu procurei.<br />

E se eu fosse cega<br />

eu teria visto<br />

e eu não vi<br />

e teria achado.<br />

06


<strong>Chicos</strong><br />

Menina<br />

que grande é o mundo<br />

o mundo é sempre grande<br />

quando se procura.<br />

as escavações, as esperanças, a volta<br />

tudo é tão grande<br />

que é insuportável<br />

e se eu fosse fraca<br />

eu teria achado<br />

pois menina<br />

só os fracos acham.<br />

e eu nunca acho.<br />

[...]<br />

07


<strong>Chicos</strong><br />

Joaquim Branco<br />

Nasceu em Cataguases (MG), em 1940, poeta, Joaquim<br />

Branco herdou de seus conterrâneos da revista<br />

Verde, do final dos anos 20, o gosto pela experimentação<br />

e pela literatura de vanguarda. É autor de<br />

Concreções da fala (poesia 1969); Consumito ( poesia<br />

1975); Laser para lazer (Poesia 1984) Marginais do<br />

Pomba (Contos org. 1985) O caça-palavras (Poesia<br />

1997) Do pré ao pós-moderno Manual de literatura<br />

(1998); Ascânio, o poeta da Verde (org. 1998) , além<br />

de livros de crítica, literatura infantil.<br />

LECY DELFIM VIEIRA (1942-2008)<br />

“Fundarei o céu e a terra<br />

só para ter aonde ir.”<br />

Espanto e susto. Foi o que me acometeu.<br />

Também fiquei muito triste. Alguém me dissera:<br />

– Lecy morreu. Dito assim, seco, funcionou<br />

como um baque.<br />

Não importa quando, como, onde. Parecia que<br />

isso jamais iria acontecer. Sua presença, seus<br />

livros voltaram-me à mente. Em suas invenções<br />

de paródias ou ensaios de meninas, não era<br />

prevista a orfandade do rio e das meninas ao<br />

mesmo tempo.<br />

Imagino sua vida ao escrever ainda muito jovem<br />

o romance Paródias de um gigante líquido.<br />

Um título e tanto. Na época, peguei os manuscritos,<br />

li-os numa sentada. Um texto incrível.<br />

Naqueles idos de 1961, já senti ali a literatura<br />

pulsando célere, madura, imagens bem construídas,<br />

novas, o pensamento de uma autora no<br />

limite de sua pouca leitura e de sua muita densidade.<br />

Como me assustei.<br />

Nem tive tempo de olhar pro lado. Apresentoume,<br />

logo depois, os originais de Ensaios-<br />

Menina, não sem muita insistência de minha<br />

parte. Poemas de reflexão. Novo impacto. Ela<br />

não estava ali para brincar. As meninas, numeradas<br />

de 1 ao infinito, não terminariam nunca,<br />

e a narradora se dirigia a elas, uma a uma, como<br />

se fossem filhas ou espelhos de si mesma<br />

ou ambas as coisas. O diálogo textual com as<br />

meninas funcionava como num ringue de alteregos.<br />

Daria outro excelente livro.<br />

Tentei incorporá-la ao nosso grupo de rapazes<br />

que, na época, fazia o jornalzinho O Muro; publiquei<br />

alguns de seus textos, mas ela era impermeável<br />

à equipe. Tinha seu próprio mundo e<br />

mostrava-se arredia ao assédio.<br />

Mesmo assim, busquei editores, críticos no Rio,<br />

em Belo Horizonte e São Paulo, pois Lecy era a<br />

única do grupo que tinha livros prontos e eu<br />

sabia o que estava diante de mim. Nada. A sorte<br />

não estava a seu favor.<br />

O máximo que consegui foi o interesse do crítico<br />

Assis Brasil e depois de Walmir Ayala, que<br />

selecionou vários de seus poemas para a antologia<br />

Poetas novos do Brasil, em 1967. Ali foram<br />

editadas, pela primeira vez em livro, as<br />

‘meninas’, com apresentação de Francisco Inácio<br />

Peixoto, que dizia: ‘Herdeira do nada, senão<br />

dos caminhos de Cataguases, e de sua infância,<br />

explode em diálogos que, na verdade, são monólogo<br />

de obsedante desamparo: ‘Será que não<br />

há no mundo/ quem queira comigo ir,/ mesmo<br />

que não olhe meus olhos/ inda que vá por partir?’.<br />

Falamos ‘explode’ e não há de fato, outro<br />

verbo para exprimir o jeito que Lecy tem de<br />

dizer as coisas.”<br />

08


<strong>Chicos</strong><br />

“Volto a Lecy. Procuro um fragmento de Paródias...<br />

, ele dá o tom do belo discurso do rio:<br />

“Nasci nas frontes de Minas Gerais como um<br />

mineiro qualquer. Depois de ser nascido fui<br />

amado e batizado como um rio qualquer. Minha<br />

infância foi sem tréguas. Sempre corri demais.<br />

Talvez por isso começaram as ofertas que não<br />

vinham por amar-me sim por acalmar-me. E<br />

mais vingança eu sonhava quando uma rosa sem<br />

história sumia na minha cara perdida. Sempre fui<br />

assim muito quieto e muito rápido, muito forte e<br />

bem amado. Era assim o meu trecho, sempre<br />

cresci sem vontade e cheio de mágoas. Como<br />

lágrimas sentidas de uma guerra interminável de<br />

um texto prevendo misérias.<br />

Fora isso, sempre fui muito sóbrio, contra o<br />

Amazonas.”<br />

Outros fragmentos de sua obra, e não é difícil<br />

encontrá-los da melhor qualidade:<br />

“Precisarei de alimento, água, bússola, companheira./<br />

– será que não há no mundo quem queira<br />

comigo ir? –/ inda que não olhe meus olhos/<br />

inda que vá por partir./ – Fundarei o céu e a terra<br />

só pra ter aonde ir.” (Menina nº 70)<br />

“O que devemos Menina é fazer a vida/ não assisti-la.”<br />

(Menina nº 62)<br />

“E o grande aguaceiro, e as grandes orgias, e o<br />

aguaceiro e as orgias. Meu sonhar terrível me<br />

desperta de tantas mágoas que nem sei se verei<br />

o fim do mundo. [...] Todos os que caíram nas<br />

minhas águas aumentaram meus pesadelos. Então<br />

que lhes devo?” (Paródias do gigante líquido,<br />

p. 5)<br />

“Além de mim o que mais quererão os deuses<br />

de mim?” (Menina nº 54)<br />

“O mundo?/ O mundo é aquilo que era redondo<br />

e que mudou de forma como eu./ Será que o<br />

mundo me imita?” (Menina nº 31)<br />

“Do jeito que vais Menina/ em pouco o mundo<br />

estará velho demais./ – e são 365 dias às vezes<br />

66 além dos nossos –/ tantos/ que tu me perguntas/<br />

como/ a humanidade pode viver com tão<br />

poucos dias/ incrível não Menina?” (Menina nº<br />

24)<br />

“...até que o mar que nunca fica louco de sede/<br />

– que só a sede enlouquece –/ até que o mar<br />

normal, arrebente este litoral/ que nunca sei se<br />

termina/ cá/ ou acolá/ da mangueira.” (Menina<br />

nº 22)<br />

“Eu me importaria que te suicidasses/ que então<br />

eu não teria armas contra o mundo./ Tu és o<br />

meu projétil.” (Menina nº 20)<br />

“Serei eu provável pedreira?/ Eu te darei todas<br />

as pedras./ Que são as estrelas que não buracos<br />

no céu/ feitos por pedradas?/ Uma pedra bem<br />

atirada revela tudo ao homem Menina./ Um pássaro<br />

apedrejado – por Deus não chores –/ o pássaro<br />

é um embuste./ Um homem apedrejado –<br />

por Deus não te escondas atrás de mim –/ já te<br />

ensinei a enfrentar os dragões Menina./ Além do<br />

mais/ tu tens todas as pedras./ No entanto, recorda-te,/<br />

que o que importa é o alvo/ não é a pedra.”<br />

(Menina nº 18)<br />

“A felicidade é como o segundo andar de um<br />

clube/ três garrafas/ dois copos/ uma mesa./ A<br />

paisagem atrás da vidraça/ eu/ e catorze cadeiras./<br />

Mas não é felicidade que eu busquei/ ninguém<br />

pode dizer isto./ Eu não quero buscar mais<br />

nada/ se tu nunca estás em nada/ nem em mim/<br />

tu tão independente./ Não quero felicidade/ de<br />

cadeiras/ de copos/ de mesa./ Menina/ eu te quero<br />

apenas.” (Menina nº 11)<br />

“O que vale na vida é comer ou não comer./<br />

Mas jamais deixes de devorar os extremos/ pois<br />

para além deles/ não há mais nada para se comer./<br />

E é no ato de se devorar os extremos que<br />

está a fórmula iminente da vida.” (Menina nº 6)<br />

No dia 8 de agosto morreu a cataguasense escritora<br />

Lecy Delfim Vieira, ela que nascera no dia<br />

12 de outubro de 1942. Um talento tão grande<br />

que acabou prejudicando a sua edição em livro<br />

solo.<br />

Além da antologia de Walmir Ayala, participou<br />

apenas da coletânea Marginais do Pomba, organizada<br />

por mim, Fernando Cesário e Ronaldo<br />

Werneck. Deixou inéditos títulos como Rua sem<br />

elevadores, 8.511.965 km2 de omissão, PAN-<br />

Pressão atmosférica normal, Mulher setentrional,<br />

Ensaios-Menina e Paródias do gigante líquido.<br />

Espero editá-los brevemente, e levar ao público<br />

palmo a palmo o seu caminho literário.<br />

09


<strong>Chicos</strong><br />

Inez Andrade Paes<br />

Nasceu em Pemba (Moçambique), é autora de<br />

O Mar que Toca em Ti (Crônica de viagem -<br />

2002); Paredes Abertas ao Céu (Poesia - 2011);<br />

Libreto em três atos, constituindo a Cantoriana<br />

Marítima - Acto I Mar falante, Acto II<br />

Transparente Luva de Água, Acto III Flores de<br />

Acanto em Marfileno Lençol ; D Estrada Vermelha<br />

(Poesia 2015); Da Eterna vontade (Poesia<br />

2015) : À Margem de Todos os Rostos (2017).<br />

Coordena desde 2012 o Prêmio Literário Glória<br />

de Sant”Anna.<br />

Amazónia<br />

os homens trazem cornos em fogo<br />

duma cegueira luminosa<br />

com restos<br />

de cinzas<br />

alimentam<br />

a morte<br />

no chão deitado<br />

10


<strong>Chicos</strong><br />

Helen Massote<br />

Nasceu em Belo Horizonte (MG) e mora no<br />

Rio de Janeiro (RJ). Redatora, poeta e cronista<br />

trabalha no Portal Fiocruz.<br />

O bobo da corte<br />

Não é o bobo do povo<br />

Quando criança<br />

Toda cidade<br />

Tinha o seu<br />

Bobo de estimação<br />

Chamado pelo nome<br />

Pelas invenções<br />

Nomeado por lugares<br />

Por procedência ou<br />

Desconhecimento<br />

11


<strong>Chicos</strong><br />

Ou por acontecimentos<br />

Que não só os seus<br />

Por procedimentos diversos<br />

De conhecimento público ou<br />

Suposto porém aceito<br />

E ele era digamos<br />

entendido<br />

Por certo que cada<br />

Um conforme a<br />

Sua medida também<br />

O tinha como seu.<br />

12


<strong>Chicos</strong><br />

Fernando Abritta<br />

Nasceu na Serra da Onça, Cataguarino,<br />

distrito de Cataguases-MG. Mora em Juiz de<br />

Fora (MG) Tem publicados umÁrvore, O Caso<br />

da Menina Que Perdeu a Voz, e, em parceria<br />

com Joaquim branco, Uma Verde História,<br />

além de um ebook, Relâmpago.<br />

Feito corpo<br />

Um corpo<br />

feito boto<br />

abrindo caminho na água<br />

feito onça<br />

teimando existir sem matas<br />

feito seriema<br />

feito serafim<br />

sobreviver sem deixar de ser<br />

raiz tronco folha<br />

flor e fruto<br />

exu abrindo caminhos<br />

costurando vida<br />

feito nós enlaçados<br />

——————···0<br />

13


Minha pele parte<br />

<strong>Chicos</strong><br />

O mundo em um<br />

dentro e outro<br />

fora<br />

Fronteira falsa<br />

Não consigo viver<br />

sem o fora<br />

nem sem o dentro<br />

Meu corpo se<br />

se estende pra<br />

dentro em<br />

células e<br />

átomos até<br />

onde não enxergo<br />

nem meu sonho vai<br />

Meu corpo se<br />

espraia pelo mundo<br />

chão montanha<br />

árvore capim<br />

floresta rio<br />

lago e mar<br />

oceano até<br />

onde não enxergo<br />

nem imagens faço<br />

——————···0<br />

14


<strong>Chicos</strong><br />

Corpo,<br />

o meu<br />

tromba com o<br />

corpo seu<br />

o envolve e<br />

o penetra no<br />

ar que respiro<br />

ar que respiras<br />

ar que respiramos<br />

um peixe tem<br />

em si a água<br />

mesma água<br />

que circula<br />

dentro de outro<br />

peixe. Todos<br />

compartilham<br />

do mesmo corpo<br />

feito de todas<br />

águas num<br />

único corpo<br />

comum<br />

——————···0<br />

15


<strong>Chicos</strong><br />

Meu corpo só<br />

tem uma medida<br />

limite beirada<br />

fronteira<br />

onde para<br />

Eu sou vontade<br />

desejo<br />

Sou o mundo<br />

Meu corpo<br />

só se queda<br />

quieto no seu<br />

desejo quando<br />

tromba com<br />

tua vontade<br />

Eu sou vontade<br />

desejo<br />

Sou o mundo<br />

Meu corpo<br />

só se queda<br />

quieto no seu<br />

desejo quando<br />

16


tromba com<br />

<strong>Chicos</strong><br />

tua vontade<br />

Eu sou vontade<br />

desejo<br />

Sou o mundo<br />

e se<br />

a mim permite<br />

penetro vc<br />

como água num<br />

vaso e te<br />

possuo e me<br />

aproprio de ti<br />

A menos que<br />

sua vontade me<br />

contenha e<br />

estabeleça a<br />

fronteira entre<br />

eu e tu<br />

——————···0<br />

17


<strong>Chicos</strong><br />

Seria guerra<br />

se não fosse<br />

guerra, ela mesmo, o fim dos corpos<br />

Ou<br />

uma fronteira<br />

fundada na<br />

caridade<br />

(quando faço algo a vc<br />

e nada espero de retorno)<br />

Seria guerra<br />

se guerra não<br />

fosse fim dos corpos<br />

Ou<br />

solidariedade<br />

(quando faço algo a vc e<br />

espero ter algo de volta)<br />

Seria guerra<br />

se guerra não<br />

fosse fim dos corpos<br />

Ou<br />

respeito<br />

(quando espero tempo<br />

necessário a vc para<br />

que me reconheça<br />

como igual)<br />

18


Seria guerra<br />

<strong>Chicos</strong><br />

se guerra não<br />

fosse fim dos corpos<br />

Ou<br />

respeito<br />

(quando espero tempo<br />

necessário a vc para<br />

que me reconheça<br />

como igual)<br />

——————···0<br />

19


<strong>Chicos</strong><br />

tu<br />

uma divisão<br />

fundada no ato<br />

que faço<br />

sem espera de retorno<br />

E<br />

(esperando ter de volta o mesmo)<br />

respeito<br />

(na esperança<br />

de o tempo nos fazer<br />

iguais)<br />

——————···0<br />

20


<strong>Chicos</strong><br />

Vc?<br />

uma divisão que<br />

não termine em<br />

exclusão ou<br />

silêncio ou<br />

silenciamento<br />

Ou morte<br />

vez que<br />

sua morte<br />

seu silêncio<br />

sua exclusão<br />

diminui meu<br />

Corpo<br />

este (corpo)<br />

já anda<br />

tão ferido tão<br />

em chagas<br />

Tantas árvores cortadas<br />

ervas queimadas<br />

Tanta terra pelada<br />

tostada<br />

revirada e lavada<br />

sem pele de húmus<br />

Resultante do<br />

conflito entre<br />

minha versus<br />

sua vontade<br />

——————···0<br />

21


<strong>Chicos</strong><br />

Bom lembrar<br />

quanto de eu<br />

quanto de mim<br />

possa ser vc<br />

sem esquecer<br />

quanto de vc<br />

passa a ser eu<br />

Lembrar o link<br />

ligação estrada<br />

relação entre eus<br />

caminhos entre nós<br />

resumindo o encontro<br />

de vontades iguais<br />

movimento de ir<br />

e vir<br />

caminho de ida<br />

e volta<br />

Feito broto<br />

abrindo caminho na casca<br />

Feito verme<br />

teimando existir no asfalto<br />

Feito seriema<br />

Feito serafim<br />

sobreviver sem deixar de ser<br />

——————···0<br />

22


<strong>Chicos</strong><br />

Alberto Bresciani<br />

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), mora em Brasília<br />

(DF). É autor de Incompleto movimento (2011), Sem<br />

passagem para Barcelona (2015), finalista do prêmio<br />

APCA de Literatura - Poesia de 2015). Integra, entre<br />

outras, as antologias Outras ruminações (Dobra<br />

editorial, 2014), Hiperconexões (Editora Patuá,<br />

2014), Pássaro liberto (Scortecci Editora, 2015), Pessoa<br />

– Littérature brésilienne contemporaine<br />

(Revista Pessoa, edition spéciale – Salon du Livre<br />

de Paris, 2015) e Escriptonita (Editora Patuá, 2016).<br />

Tem poemas publicados em portais, blogs e sítios da<br />

internet e em revistas e jornais impressos.<br />

Pedras ao mar<br />

E se estávamos ali,<br />

fixos no movimento<br />

uniforme das ondas,<br />

era que dividíamos<br />

ventos, os poucos,<br />

as tempestades,<br />

as aves marinhas<br />

e seus peixes, as aves<br />

marinhas já mortas<br />

Todos os ciclos<br />

nos pertenciam<br />

– ainda que distantes<br />

nos parecessem<br />

as nossas ilhas<br />

Não tínhamos olhos<br />

E assim era melhor<br />

Sem ossos,<br />

somos aquelas pedras<br />

para sempre.<br />

23


<strong>Chicos</strong><br />

Habitat I<br />

Bisões<br />

Guardei sob a pele<br />

todos os peixes, as conchas,<br />

anêmonas, veleiros antigos<br />

e recuperados aos sargaços<br />

Ninguém conheceu<br />

os oceanos que devoravam<br />

as moças e os rapazes<br />

de olhos castanhos<br />

O silêncio da maré baixa<br />

sabe o doce<br />

de frutas selvagens,<br />

um mundo híbrido,<br />

primeiro, anfíbio<br />

À custa de nomes marinhos,<br />

sobrevivo<br />

Aprendi a respirar na água.<br />

E seguimos como bisões,<br />

olhando para a frente,<br />

em disparada, fugindo<br />

de absolutamente nada<br />

e de quase tudo<br />

No caminho, outros bisões<br />

se juntam ao grupo<br />

e continuamos todos,<br />

aos atropelos, na mesma rota<br />

Corremos, nós os bisões,<br />

para onde não sabemos<br />

em uma pradaria fictícia<br />

que, a exemplo dos rios,<br />

é outra a cada migração<br />

Olhamos para a frente<br />

e nos perguntamos,<br />

os olhos bovinos,<br />

se este é mesmo<br />

o nosso lugar.<br />

24


<strong>Chicos</strong><br />

Golfinho<br />

O dorso sobre a areia grossa,<br />

a pele rasgada ao sol<br />

e pelo atrito das conchas,<br />

preso à terra que não quis,<br />

enquanto as gaivotas<br />

gritam o fim<br />

Ainda o poderiam salvar<br />

a maré mais alta<br />

ou uma onda que encontrasse<br />

o céu cinzento<br />

Mas ao país chegaram<br />

os bárbaros e seu rei<br />

e à invasão cederam<br />

todos os mortais<br />

Vêm agora com suas facas,<br />

suas cimitarras<br />

Logo, o primeiro corte.<br />

Souvenir<br />

Todo o tempo, vamos embora<br />

e, no entanto, não nos perdemos<br />

de vista em instante algum<br />

Tentamos um novo enredo,<br />

mas a memória é outro corpo<br />

que arrastamos e decai<br />

com os nossos, permanece,<br />

cicatriz, nome que nunca cessa<br />

E se nos víssemos entre os vivos,<br />

outra vez na multidão? A imagem<br />

fixa de susto e nos perguntaríamos:<br />

e agora, quem some? Nenhum<br />

de nós: somos a provação,<br />

o cravo nas costas, as vértebras<br />

e suas cracas para sempre,<br />

um aleijão, a fisgada em cada gesto<br />

25


<strong>Chicos</strong><br />

Não nos esquecemos, sim,<br />

nos esconderíamos com a mentira,<br />

não nos lembramos, não<br />

nos lembraremos de esquecer,<br />

tornaremos os rostos à parede<br />

mais vendo assim, transe,<br />

mais sabendo que somos nada,<br />

aprisionados nos nossos estômagos<br />

Sim, a memória é uma unha<br />

e ainda que cortemos o dedo<br />

que a leva, e mesmo amputados,<br />

leríamos a mutilação, a dor<br />

fantasma, o concreto, toxina,<br />

o plástico nas narinas,<br />

o afogamento, a despeito<br />

das transparências<br />

E nos olharíamos, os mesmos,<br />

quase os mesmos, despojos<br />

de dias gastos.<br />

26


<strong>Chicos</strong><br />

Gisela Gracias<br />

Ramos Rosa<br />

Nasceu em Maputo (Moçambique). O seu primeiro<br />

livro foi um diálogo de poesia com António Ramos<br />

Rosa, Vasos Comunicantes (publicado em 2006).<br />

Colaborou em várias Antologias e Revistas de poesia.<br />

Publicou também entre outros As palavras<br />

mais simples (2014) , O livro das mãos (2017) e A<br />

pedra e o corpo (2018)<br />

Estas mãos sonâmbulas transcrevem<br />

tudo o que sonhei em vigília<br />

Estendo os dedos e toco a página de um lugar<br />

fado dialógico, extremo de minhas mãos.<br />

Sou textura polifónica, luz sonâmbula<br />

de um breve segredo em que me inscrevo.<br />

27


<strong>Chicos</strong><br />

A Inez Andrade Paes<br />

Está no corpo o centro do que ainda não tem nome<br />

a dança contínua em projecção esculpida contra o vento<br />

elevamo‐nos na promessa de encontrar essa linha ao meio<br />

que em diagonais se configura e em movimentos se cumpre<br />

por isso amamos toda a dança que no tempo esboça<br />

o que ainda não tem nome<br />

De: O livro das mãos (2017)<br />

28


<strong>Chicos</strong><br />

Floema<br />

...Solo natura subest... (Georgicon Liber II 49)<br />

à Patrícia Portela<br />

o anelamento na casca da árvore,<br />

o floema —ou líber—segmentado,<br />

impede o fluir da seiva elaborada.<br />

poção concebida da luz do dia,<br />

por varinhas de condão de verde ornadas,<br />

quem olha de fora não sabe subindo<br />

29


<strong>Chicos</strong><br />

da terra os sais e a água<br />

de conjuração embebidos,<br />

palavras de breu sem céu estrelado.<br />

o anel à volta do tronco<br />

futuros anéis faz cessar.<br />

não orna, mas grava<br />

em trincheira, expõe o xilema,<br />

na lida de ázimo aquoso levar<br />

à queima nas verdes fornalhas.<br />

mas vala agora a doce seiva barra<br />

no êxodo cujo pacto não permite muralha.<br />

que inanes labores agora se travam?<br />

sem luz adocicada que som se propaga,<br />

senão o grunhir do martelo de lâmina,<br />

o silente instrumento que é o cinzel?<br />

logo uma cica se entoca no oco<br />

das línguas, que de lamento e fel<br />

no solo nodoso criam bruta saliva.<br />

30


<strong>Chicos</strong><br />

línguas dantes conversantes não se suportam<br />

sobe do breu maldição que os galhos soletram<br />

cuspindo folhas decrépitas às costas da terra<br />

a dita do escuro despida das falas do claro<br />

ruído de mó cobrindo de pó um livro fechado<br />

31


<strong>Chicos</strong><br />

Paschoal Motta<br />

Nasceu em São Pedro dos Ferros (MG), mora em<br />

Belo Horizonte (MG). Jornalista, Crítico de Literatura,<br />

Professor universitário de Literatura Brasileira e<br />

Linguística, Teoria da Literatura, Didática de Literatura<br />

Portuguesa. Editor do Suplemento Literário do<br />

Minas Gerais.<br />

Saudação da primavera<br />

Viaja no pólen do desejo<br />

nas asas de abelhas operosas,<br />

luz inteira, garça em azul;<br />

volta do sempre, desde o gesto<br />

inicial, desde a pedra e o musgo,<br />

desde a fonte, desde a sede;<br />

e chega: suas mãos destas vazias<br />

velejam num remanso de lágrima,<br />

por ausência e apelos repetidos;<br />

luar na tarde, calma na estrada,<br />

sonho de um sabiá protegido<br />

na sombra de verde cantiga;<br />

32


<strong>Chicos</strong><br />

nem sabia mais o gosto da polpa<br />

da manga de vez das meninices,<br />

cheiro roxo do capim-de-mel;<br />

agora, encanto: a festa nas espigas,<br />

e novo encontro, encantada manhã,<br />

flor de primavera, seiva e raiz.<br />

33


<strong>Chicos</strong><br />

Marcos Venícios de<br />

Melo<br />

Nasceu em Cataguases (MG), mora em Juiz de<br />

Fora (MG). Poeta é autor de Chuvas e luas (2018)<br />

Paraíso<br />

Macondo não é minha Pasárgada.<br />

Nem meu Shangri-la fica nos grandes sertões.<br />

Meu Éden é banhado pelo Rio Pomba<br />

E a árvore da vida floresceu<br />

Onde hoje fica a concha acústica.<br />

34


<strong>Chicos</strong><br />

Cato,<br />

No chão das estradas<br />

Onde trafego<br />

Pedregulhos;<br />

Tocos de pau,<br />

Restos de animais<br />

E<br />

Alguma poesia perdida.<br />

Tem dias que encontro:<br />

Diamantes;<br />

Madeiras nobres,<br />

Fosseis pré-históricos<br />

E<br />

Ainda vou achar uma obra prima.<br />

35


<strong>Chicos</strong><br />

Ao Sr. Ady<br />

Um óleo sobre tela;<br />

Uma tapeçaria;<br />

Uma escultura em cerâmica;<br />

Aço.<br />

Uma fotografia<br />

Um oratório em madeira<br />

Uma peça de selaria.<br />

Ando por exposições,<br />

Museus e galerias<br />

Paro diante de cada obra<br />

E me pergunto:<br />

Como Seu Adyr as faria?<br />

36


<strong>Chicos</strong><br />

Flausina Márcia<br />

Nasceu em Cataguases (MG) e mora em Belo<br />

Horizonte (MG) onde trabalhou na Secretaria<br />

de Cultura de Minas Gerais.<br />

Publicou entre outros: Vagalume (2002), Sua<br />

Casa Minha Cruz (2003) e Poemas Declives<br />

(2014).<br />

Pedipereipetos Pehupemapenos<br />

POVO OVO VOO<br />

NAVE AVE EVA<br />

VIDA UVA VIU<br />

VOVÔ IVO VIR<br />

Ver a banda passar<br />

Ir para Pasárgada<br />

Rimar com Raimundo<br />

Vasto Mundo<br />

37


<strong>Chicos</strong><br />

Ambientalizado<br />

Racializado<br />

Mulherizado<br />

Elegebetado<br />

Raiz com profundeza<br />

Própria para a superfície.<br />

Agonia/19<br />

38


<strong>Chicos</strong><br />

Alberto Pereira<br />

Nasceu em Lisboa. É membro do PEN Clube<br />

Português. Publicou: O áspero hálito do amanhã<br />

(2008), Amanhecem nas rugas precipícios<br />

(2011), Poemas com Alzheimer (2013), O<br />

Deus que matava poemas (2015), Biografia das<br />

primeiras coisas (2016), Viagem à demência dos<br />

pássaros (2017). Em 2017, foi editado no Brasil<br />

Bairro de Lata, na coleção Dulcineia Catadora.<br />

Entre vários prêmios em 2018 Menção<br />

Honrosa no Prémio Internacional de Poesia<br />

Glória de Sant´Anna.<br />

IV<br />

Para Victor Oliveira Mateus<br />

Caminho como uma fogueira no tempo.<br />

Estão longe os dias<br />

que pronunciavam o Louvre.<br />

Tudo respira entre dois hemisférios:<br />

um repleto de harpas e cotovias,<br />

o outro,<br />

hirto de mandíbulas e agónicas ficções.<br />

O corpo,<br />

antigo prado vigiado pela neve.<br />

39


<strong>Chicos</strong><br />

Cultivámos o aroma da máscara<br />

e a sensualidade está agora<br />

ligada ao ventilador.<br />

A minha mãe<br />

que orava a Cesariny,<br />

repetia a<br />

Pena Capital.<br />

Dorme meu filho<br />

o amor<br />

será<br />

uma arma esquecida<br />

um pano qualquer como um lenço<br />

sobre o gelo das ruas<br />

Abolimos a leveza<br />

de encostar os lábios<br />

e a nebulosa taquicardia<br />

não deixa que a vertigem recite:<br />

o teu corpo é o Guggenheim.<br />

De súbito,<br />

Agosto inala tumulto.<br />

40


<strong>Chicos</strong><br />

Não entendemos<br />

porque a Aurora Boreal<br />

não continua a girar<br />

à volta do nosso ego.<br />

Como traduzir o Outono<br />

onde a queda é definitiva?<br />

O homem será sempre a partitura de um pântano.<br />

41


<strong>Chicos</strong><br />

Ronaldo Cagiano<br />

Nasceu em Cataguases, autor, dentre outros,<br />

de Dezembro indigesto (Contos, Prêmio Brasília<br />

de Produção Literária 2001), O sol nas feridas<br />

(Poesia, Finalista do Prêmio Portugal Telecom<br />

2012) e Eles não moram mais aqui<br />

(Contos, Prêmio Jabuti 2016), vive atualmente<br />

em Portugal.<br />

Variação sobre um poema de Marçal Aquino<br />

para Adeilton Lima<br />

Outro dia<br />

faleceu a puta mais antiga<br />

da cidade.<br />

Devorada por um câncer,<br />

a quimioterapia rareou seus cabelos,<br />

impingiu-lhe uma face esquálida<br />

e a boca semiaberta e murcha<br />

realçava a minúscula<br />

povoação de dentes.<br />

Seu tempo, um rol de incertezas.<br />

Sua vagina, um cemitério de espermatozoides.<br />

Jamais reclamou da sorte,<br />

não teve patrão nem FGTS,<br />

42


não falava mal dos políticos,<br />

<strong>Chicos</strong><br />

respeitava as religiões,<br />

pagava as contas em dia,<br />

mas desconhecia o que foi<br />

o maio de 68.<br />

Em certa manhã de primavera<br />

viram-na contemplando<br />

os flamboyants da Avenida<br />

como uma dama num quadro de Van Gogh.<br />

Em um Natal distante<br />

levou presentes às crianças do Orfanato<br />

e assistiu à Missa do Galo<br />

indiferente ao aço dos olhares,<br />

à labareda dos comentários.<br />

Gostava de jogar na loteria<br />

na esperança de mudar de vida.<br />

Enquanto seu enterro atravessava a cidade<br />

o comércio não baixou as portas,<br />

um taxista palitava os dentes,<br />

um mendigo inventariava uma lixeira,<br />

o engraxate sentado na barbearia<br />

observava o comboio ferroviário<br />

que invadia a cidade feito uma língua metálica<br />

como tantas foram as que lhe roçaram a buceta.<br />

Falavam que ela era amante<br />

de um mandachuva da política,<br />

mas nunca frequentou os clubes,<br />

43


não saiu na coluna social,<br />

<strong>Chicos</strong><br />

nem recebia convites<br />

para as solenidades da prefeitura.<br />

Restaram-lhe tantas rugas,<br />

crateras de celulites,<br />

feixes de pelancas pelo corpo,<br />

corolário das entregas,<br />

mas se importava mesmo<br />

é com as cicatrizes na alma.<br />

Votou sempre na Arena, mas amava JK,<br />

não sabia o que era estadista,<br />

mas chorou no suicídio de Vargas,<br />

tinha medo de comunista,<br />

ajudava ao asilo de idosos,<br />

não passava debaixo de escada,<br />

mas se confessava aos domingos.<br />

Dizem que emprestava dinheiro,<br />

detestava a servidão de gigolôs,<br />

acompanhava a novela das oito,<br />

era viciada em cibalena<br />

e guardava um serrote,<br />

lembrança do pai marceneiro.<br />

Se amores teve, nunca disse seus nomes,<br />

mas a foto de um galego de chapéu<br />

dividindo espaço na penteadeira<br />

com batons, esmaltes e brincos,<br />

falava dos caminhos de um coração<br />

44


tão distantes como a esperança<br />

<strong>Chicos</strong><br />

que sempre a desacompanhou.<br />

Morreu sem nenhuma presença,<br />

sem vela nem orações,<br />

a puta mais antiga da cidade.<br />

Mas a enfermidade<br />

da qual nunca se livrou<br />

foi uma tristeza<br />

escondida em suas vísceras,<br />

a jornada na náusea da noite.<br />

Um dia alguém quis saber<br />

por que não teve marido nem filhos.<br />

Outro, a razão de sorrir com tanta facilidade<br />

apesar de seus desertos.<br />

Mas de si não escondia<br />

que a rotina e a maternidade<br />

e uma vida feliz na COHAB<br />

trariam o desgosto e o inferno.<br />

Preferiu a rotatividade das camisinhas<br />

e os gemidos clandestinos<br />

a trocar fraldas e ouvir choros.<br />

E sua coleção de Sétimo Céu<br />

empanturrando as gavetas<br />

tinha mais vida que a realidade.<br />

Findou junto com o século a puta mais velha da cidade,<br />

sem conhecer o novo milênio,<br />

sem testemunhar o 11 de setembro,<br />

45


nem os terremotos do Japão<br />

<strong>Chicos</strong><br />

e também não sabia<br />

que na Abbey Road, em Londres,<br />

há a faixa de pedestres mais famosa do mundo,<br />

mas dentro dela outras<br />

tragédias se passaram.<br />

Morreu num dia sem jogo<br />

com botequins vazios<br />

e as unhas por fazer,<br />

sem meninos brincando na rua,<br />

sem foguetes estourando nas vilas<br />

e os porcos de dona Alzira<br />

cevando no chiqueiro.<br />

Numa tarde comum<br />

com a solidão de nuvens carregadas,<br />

roupas mergulhadas no anil,<br />

a felicidade apequenada nos becos<br />

que impunham aquele mesmo vazio<br />

com que as árvores<br />

sabotam as ruas no outono<br />

e desfolham a alegria das meretrizes.<br />

46


Uma noite na GalArt<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Ronaldo Werneck<br />

Nasceu em Cataguases. Poeta e jornalista, colaborou<br />

em vários jornais e revistas cariocas. Publicou<br />

entre outros os livros: Poesia - Selva Selvaggia<br />

(1976), Pomba Poema (1977), Minas em mim e o<br />

mar este trem azul (1999) Minerar o Branco (2008),<br />

Cataminas Pomba e outros Rios (2012) e O Mar de<br />

Outrora e Poemas de Agora (2014). Prosa - Há Controvérsias<br />

1 (2009) , Há Controvérsias 2 (2011), Rosário<br />

Fusco por Ronaldo Werneck/ Sob o signo do<br />

imprevisto (2017) e o ensaio biográfico “Kiryrí Rendáua<br />

Toribóca Opé” Humberto Mauro Revisto por<br />

Ronaldo Werneck<br />

Cataguases, 29 de outubro de 1983:<br />

o marchand Cairu Teles organiza uma grande<br />

noite de lançamentos de livros com escritores<br />

da terra na GalArt: Lina Tâmega Peixoto<br />

(“Entretempo”); Francisco Inácio Peixoto<br />

(“Chamada Geral”);<br />

Francisco Marcelo Cabral<br />

(“Inexílio”); P.J.<br />

Ribeiro (“Muralhas<br />

Humanas, os Dragões<br />

e Visuais”; Ronaldo<br />

Werneck (“Selva Selvaggia”<br />

e “Pomba Poema”);<br />

Joaquim Branco<br />

(“Concreções da Fala”);<br />

Plínio Filho<br />

(“Leções de Vida”); e<br />

M á r c i a C a r r a n o<br />

(“Zeroversus”).<br />

Do Rio de Janeiro viriam Luiz Linhares<br />

(“Desencontros de Harvey”); Victor Giudice<br />

(“Os Banheiros”); Jair Ferreira dos Santos (“A<br />

Faca Serena”); Fausto Wolff (“O Acrobata Pede<br />

Desculpas e Cai”). Esses acrobatas<br />

“estrangeiros” – a exemplo de Francisco Marcelo<br />

Cabral, P. J. Ribeiro, Plínio Filho e Francisco<br />

Inácio Peixoto (que já havia “saído de cena”)<br />

– pediram as devidas desculpas e caíram,<br />

quer dizer, não vieram.<br />

Em outubro de 2002, Cairu Teles organizou<br />

um número todo do jornal GalArt sobre este<br />

prestidigitador aqui, este que vos prestidigita –<br />

e me fez uma surpresa: colocou uma foto que<br />

eu desconhecia com algumas das presenças<br />

daquele lançamento<br />

de 1983. Estavam lá e<br />

estão aqui agora, impávidos,<br />

perfilados da<br />

esquerda para a direita:<br />

Márcia Carrano,<br />

Lina Tâmega Peixoto,<br />

Ronaldo Werneck, o<br />

cineasta Sylvio Lanna,<br />

Joaquim Branco, o<br />

professor José Silva<br />

Gradim e o próprio<br />

Cairu.<br />

Assim que vi a foto “cometi de imediato” um<br />

poema-legenda para ela, (in)devidamente inédito<br />

até hoje. E que agora publico em homenagem<br />

ao meu amigo Cairu Teles, falecido recentemente.<br />

Cairu, como Francisco Marcelo Cabral,<br />

Luiz Linhares, José Silva Gradim, Victor<br />

Giudice e Fausto Wolff, queridos comparsas de<br />

vida e literatura que também já caíram do trapézio.<br />

E sem rede. Vejam o poema a seguir.<br />

47


<strong>Chicos</strong><br />

Legenda<br />

em sépia e sempre<br />

tanto tempo<br />

e essa ausência<br />

na curva cataguáis<br />

chico peixoto<br />

não mais<br />

nem linhares<br />

nem giudice<br />

enfim<br />

indesculpáveis acrobatas<br />

fausto wolff<br />

trapézio que não veio<br />

nem chico cabral<br />

nem jair ferreira<br />

nem plínio filho<br />

nem<br />

nem p.j.ribeiro<br />

mas nós<br />

esses sós desatados<br />

que, sus!, saltam do pomba<br />

e da foto e da ponte<br />

onde<br />

márcia<br />

lina<br />

mais eu<br />

48


<strong>Chicos</strong><br />

e sylvio lanna<br />

e quincas<br />

e um branco<br />

sorriso<br />

e gradim<br />

e cairu<br />

– sus!<br />

sós no rio<br />

indesculpáveis acrobatas<br />

caímos<br />

e sobre as águas da mata<br />

andamos<br />

sol que cega e arrebata.<br />

Cataguases, dez/2002<br />

49


José Vecchi de<br />

Carvalho<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Nasceu em Cataguases, após morar por muito<br />

tempo em Viçosa vive hoje em Paula Candido<br />

todas cidades mineiras. Coautor de A casa da<br />

Rua Alferes e outras crônicas (2006), e autor de<br />

Duas Cruzes (contos 2018).<br />

Dentim<br />

Não tive escapa. Ele veio direto em cima<br />

de mim, véio, balançando o corpo, já tava<br />

daquele jeito. Tive que enfrentar a zoeira no<br />

meu ouvido, a lengalenga de sempre, porra,<br />

a receita médica na mão, o bafo da birita e o<br />

pedido de uns trocados. É foda, Dentim tinha<br />

aquela mania de chegar bem perto, falar<br />

e pôr a mão no ombro da gente. Não deu<br />

outra, pra fugir do bafo e da chuva de cuspe<br />

abri a carteira e dei logo uma nota de dez.<br />

Fez um “tinindo” e saiu todo todo.<br />

Fiquei olhando ele cambaleando pela calçada.<br />

Eu já sabia aonde ia se meter. Ainda<br />

tentou parar o próximo que vinha na correria.<br />

O cara desviou, nem deu confiança. Dentim<br />

tava acostumado com isso, seguiu em<br />

frente mostrando a receita pra todo mundo<br />

que passava. Era umas sete e meia. Ele contou<br />

a grana, atravessou a rua e sumiu. Foi<br />

pras quebradas atrás de uma brita, sacou?<br />

Zanzava por aqui há um ano, mais ou menos.<br />

Antes andava por outras bandas, onde<br />

rolava mais grana, mas puseram ele pra correr<br />

de lá. De vez em quando eu pago um<br />

rango, de dia, quando ele tá legal ainda. Aí<br />

ele é caladão. Come e vai sem encher o saco.<br />

Mas gosta mesmo de ganhar um money<br />

pra pedra e pra cachaça.<br />

Eu lembro dele de muito tempo, jogava<br />

fácil, mas fudeu o joelho, véio, já era. Isso<br />

aqui era uma vila, umas casinhas simples, ele<br />

morava depois do final da rua, num barraco<br />

no meio do pasto. O dono vendeu as terras e<br />

agora é shopping, padaria, escola, banco,<br />

prédio e mais prédio. Aquelas casinhas, já<br />

era. Os lotes vagos, também. Bicho andando<br />

na rua de noite, não tem mais isso, cara.<br />

50


<strong>Chicos</strong><br />

Agora é gente pra lá e pra cá, correria, ronco<br />

de carro, moto, sirene, e o caralho a<br />

quatro. Olha só a calçada, porta de banco,<br />

de loja, tudo lotado de gente pedindo, uma<br />

doideira. Fico pensando, mas não entendo<br />

essa porra. E ainda por cima tem a turma<br />

do Dentim. Tá foda. Eles tão dando mole<br />

porque tem uma galera aí barra pesada que<br />

tá de bronca, já viu, né, cê sabe como é.<br />

Eu não ligo, saio do banco no fim do dia,<br />

ajudo um ou outro. Fico em paz com Deus<br />

e com eles. Minha política, sacou?<br />

Mas olha só, não falei dos barra pesada?<br />

na mosca, naquele dia mesmo, cheguei<br />

em casa, tomei um banho, dei um tapa<br />

num beck e fiquei de boa na TV. Aí horrorizei,<br />

cara, o jornal mostrou que um carro<br />

passou lá na boca, cuspiu bala e saiu cantando<br />

pneu, dois no hospital, seis no chão.<br />

Foda, Dentim tava lá, cara, se fudeu, já era.<br />

Agora nem receita, nem birita, nem porra<br />

nenhuma. E eu dei dez reais pra ele no dia,<br />

cara, tô mal, é foda. Não é porque morreu,<br />

véio, mas o cara era gente boa, né não?<br />

51


José Antonio<br />

Pereira<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A<br />

casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006) e<br />

autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).<br />

Ô Glória!<br />

Naquelas trilhas abertas, chão batido<br />

pelo ir e vir dos moradores, via-se o avermelhado<br />

da bauxita. Seguiam em tortuosas<br />

paralelas a estrada de ferro, cruzando aqui e<br />

ali seus trilhos. Caminhos que enveredavam<br />

para além da ferrovia. Subia até a pitangueira<br />

do alto do pasto do Zé de Barros; zanzava<br />

pela margem do fedorento rio Meia Pataca<br />

até a represa da fábrica de papel. Aqueles<br />

moleques conheciam tão bem aqueles estreitos<br />

e variados caminhos que mesmo no breu<br />

da noite e com o mato já na altura do peito<br />

andavam e, correriam se necessário fosse,<br />

com a desenvoltura de quem os percorria várias<br />

vezes ao dia. Os três amigos de estripulias,<br />

Japonês, Pedrão e o moleque Ivo, irmão<br />

de Pedrão, atravessavam o pontilhão sobre o<br />

rio. Ivo é quem interrompe as risadas dos<br />

dois mais velhos sobre o último dos malfeitos.<br />

– A luz da Glorinha está acesa. Pedrão<br />

retruca, – Tem visita! Ao que Japonês emenda.<br />

– Dou a bunda se não for o coroa lá da<br />

praça. – E alguém vai querer esta tua bunda<br />

magra, ô Japa! Retruca Pedrão. Japonês reage,<br />

metem-se numa discussão recheada de<br />

ofensas recíprocas, entremeada de empurrões<br />

e peitadas, parecem dois galinhos ensaiando<br />

uma briga pelo terreiro. Ivo é que os chama<br />

às falas. – Ô panacas! Estão se esfregando<br />

por quê? O que emputecera Japonês, era Pedrão,<br />

de forma chula, o lembra-lo que a mãe<br />

era amante de um goleiro afamado na cidade.<br />

Depois de trocarem desculpas, dão tudo<br />

por esquecido. Seguem em linha reta pelo<br />

meio dos trilhos na direção da estação, passam<br />

pela chave do desvio que faz a curva<br />

para a direita, onde fica a casa de luz acesa.<br />

Param, olham, o Chevrolet preto reluz por<br />

traz das amoreiras, – É, o veio taí. E Ivo rindo<br />

muito. – Então não vai ter que dar a bunda.<br />

Que alívio em Japô. E outro bate-boca<br />

segue pelos trilhos.<br />

– A filha da falecida dona Clementina é linda.<br />

Diziam todos os homens. Seu nome de<br />

pia era Maria da Glória. Mas na vizinhança<br />

só se ouvia, Glorinha é uma sem juízo... Glorinha<br />

é uma pecadora... um péssimo exemplo<br />

para as meninas mais novas. Muitas vezes de<br />

forma rude alguma velha carola e recalcada<br />

soltava o verbo, – A amante do velho endinheirado?<br />

Aquilo é uma puta, vagabunda,<br />

tinha que tá enfiada em alguma zona, não<br />

aqui perto de nós, gente de bem e temente<br />

52


<strong>Chicos</strong><br />

a Deus. Na casa de Ivo e Pedrão, eles eram<br />

os vizinhos mais próximos de Glorinha, não<br />

era diferente. A mãe, como as mães de seus<br />

amigos em suas catequeses, construía a fé<br />

no medo. E aí a moça era sempre citada ora<br />

como a maior pecadora do beira-linha, ora<br />

como a materialização do chifrudo encarnado.<br />

Apesar do medo, a molecada insistia na<br />

festiva cata de amoras para chupá-las trepados<br />

no muro da amante do doutor.<br />

Ivo, pirralho em que já surgia uma penugem<br />

pelo corpo, ainda conserva uma certa inocência,<br />

adorava catar amoras no quintal da<br />

vizinha, além do quintal ele estava, sempre<br />

que podia, enfiado na casa. Glorinha sempre<br />

atenciosa e sorridente. Generosa, oferecia<br />

uma farta mesa de biscoitos e alguns pedaços<br />

de bolo, coisa rara na casa de todos. Ela<br />

não tinha filhos e dava a atenção que nenhum<br />

deles tinha de seus pais. Delicada, ensinava-os<br />

a se portar na mesa, lavar as amoras<br />

e as mãos antes de comê-las. Até que,<br />

por volta das duas horas da tarde, educadamente<br />

convidava todos a sair. – Meninos,<br />

agora é hora de voltarem para casa, suas<br />

mães devem estar preocupadas com vocês e<br />

eu tenho que receber uma visita. Ivo estranhava<br />

aquilo tudo. Como uma pessoa tão<br />

chique, boa e bonita podia ser a encarnação<br />

do diabo. Aquilo roía a cabeça do moleque.<br />

Numa tarde de domingo, sol quente, ruas<br />

vazias, só se escutava os rádios ligados<br />

transmitindo algum jogo de futebol lá do Rio<br />

de Janeiro. Quem não estava interessado no<br />

jogo, tirava uma soneca depois de um pesado<br />

almoço de domingo. Outros, provavelmente<br />

estariam lá no campo do Flamenguinho<br />

ou no Manu assistindo ao estiloso goleiro<br />

da mãe do Japonês em ação. Solitário,<br />

Ivo catava amoras trepado no muro da casa<br />

de Glorinha. De lá vinha uma música, ... por<br />

isso esta força... estranha no ar... Ao puxar<br />

um galho, vê Glorinha completamente nua,<br />

através da janela aberta, secando seus longos<br />

cabelos. Nunca vira uma mulher nua, a excitação<br />

é imediata, sente algo até ali inimaginável,<br />

as reações do corpo estão fora de<br />

controle. Nervoso, sem entender aquela força<br />

estranha que sacudia seu corpo, não desgruda<br />

os olhos da mulher, nem consegue<br />

mais ouvir a voz do Roberto Carlos. De repente,<br />

explode o gozo.<br />

Recomposto, faz a volta ao redor do muro<br />

até chegar à cerca de arame farpado por onde<br />

sempre entrava no quintal da casa. A porta<br />

da cozinha, como sempre, encontra-se<br />

aberta, isto, só, quando o visitante não está.<br />

– Glória? Ô Glória, é o Ivo. E a voz vem lá<br />

de dentro, – Um instantinho, tô indo. É só<br />

acabar de me aprontar. Ivo senta no degrau<br />

da porta, ainda não tomou tino do que aconteceu<br />

com ele. Tenta entender aquele terremoto<br />

que lhe sacudiu, lembra da primeira<br />

vez que o peruzinho ficou retesado, outra<br />

ocasião um tantinho, quase uma gota, de um<br />

liquido feito óleo, mas agora veio tudo junto,<br />

muito doido. – Mas foi gostoso. – Uê<br />

Ivo, o que foi gostoso? Ele se assusta, – Ô<br />

Glória! Fica de pé e explode pela cara uma<br />

vermelhidão que arde como o sol do meio<br />

dia. Glorinha sorri, . – Te assustei né? Ela o<br />

abraça, a cabeça fervilhante entre os peitos<br />

sente a alfazema queimar as narinas. Ele<br />

pressente que a mesma força estranha vai<br />

incendiá-lo novamente. Ele se desvencilha<br />

dos braços dela, sai a galope, passa pela cerca<br />

e só para de correr no pontilhão. Entra no<br />

vão da estrutura metálica e vai até o pilar de<br />

pedras rejuntadas por cimento, onde em sua<br />

base correm as águas do Meia Pataca. Lá de<br />

cima fica olhando as águas em redemoinhos<br />

onde as margens se alargam, e em seguida<br />

se estreitam fazendo uma curva à esquerda<br />

para não trombar com o morro da pitangueira.<br />

Aquele movimento tranquilo das águas o<br />

acalma. Lembra das conversas do Pedrão<br />

com a molecada sobre sexo e mulheres, recheadas<br />

de machismos e um contarvantagem<br />

sem fim. Um tempão por ali, deulhe<br />

uma certeza. – Agora sou homem.<br />

53


<strong>Chicos</strong><br />

Durante alguns dias, atormentou-lhe um<br />

misto de euforia pelas possibilidades de prazeres,<br />

que tanto ouvia o Pedrão e o Japonês<br />

falarem e o medo das punições divinas apregoados<br />

pelos pais moralistas. Tentando pôr<br />

ordem naquela confusão em sua cabeça, começa<br />

a refutar o moralismo dos mais velhos.<br />

– Mais que merda! Tudo é pecado. Glorinha,<br />

nua, começa a tomar conta dos seus<br />

pensamentos. Por onde ele vai ela está presente,<br />

sempre nua com os dedos das duas<br />

mãos delicadamente percorrendo os cabelos<br />

e a imaginação criando outros movimentos.<br />

Uma noite sonha com ela entre as amoras,<br />

esfregando amoras pelo corpo e ele louco<br />

para abraçá-la e beijá-la. Bruscamente é<br />

acordado pelo irmão. – Vamo cara! Tá<br />

na hora, vai perder a aula. Levanta às pressas.<br />

O irmão caçoa. – Tesão de mijo? Se dá<br />

conta da ereção e sem graça atira o travesseiro<br />

no irmão, que está as gargalhadas. Por<br />

onde anda, não consegue se concentrar em<br />

nada. Na escola e até na igreja a mulher nua<br />

vai ocupando todos os cantos de sua mente.<br />

Com quem falar sobre aquilo? O pai, a mãe,<br />

um amigo, o irmão? Sabe que qualquer um<br />

deles vai tripudiar em cima dele. Os pais<br />

são conservadores, o pai então, seria capaz<br />

de uma surra se soubesse que ele insinuara<br />

uma conversa destas com a mãe. Os amigos<br />

e o irmão iriam gozá-los por um bom tempo.<br />

Acha que a solução é se abrir com alguém<br />

mais distante e respeitável.<br />

Com a inocência dos puros resolve se confessar.<br />

Impaciente, não dá nenhum tempo e<br />

dispara, – Tô apaixonado por uma mulher.<br />

– Você é uma criança. Está gostando de alguma<br />

menina, né? – Não! Já disse. É uma<br />

mulher. – Um moleque de calças curtas como<br />

você, não sabe nem o que está falando.<br />

– Ela não sai da minha cabeça. – Como não<br />

sai? O que aconteceu? Todo o ensaio para<br />

conseguir falar, desanda. A segurança das<br />

primeiras palavras desaparece. Não sabe<br />

mais o que falar. A pergunta insiste, – O que<br />

aconteceu? O medo o paralisa. Já sabe de<br />

cor e salteado qual será o conselho do padre<br />

velho e conservador. Não tem solução. Aquilo<br />

será seu segredo. Levanta do confessionário<br />

e sai correndo igreja afora. Atravessa a<br />

porta. Vira à esquerda e com o pé na rua escuta<br />

trovejar a voz do padre. – Ô menino,<br />

volta aqui!<br />

54


<strong>Chicos</strong><br />

Andressa Barichello<br />

Nasceu em São Paulo - SP, atualmente mora<br />

em Portugal. É autora do livro Crônicas do Cotidiano<br />

e outras mais (Scortecci, 2014). É cofundadora<br />

do projeto fotoverbe-se.com.<br />

Loucura<br />

Quebrei uma taça. Ou a taça foi<br />

quebrada por um saco de pão de forma.<br />

Não sei. O armário, alto, vive cheio de comida.<br />

E a preguiça, grande, faz da bancada<br />

o lugar das taças sujas. As xícaras e copos<br />

vão para a pia ou para a máquina de<br />

lavar. As taças ficam, como se o vinho, ao<br />

contrário do café, do leite e do refrigerante,<br />

pudesse esperar uns dias, fosse água.<br />

As coisas pesadas, como latas, nunca<br />

causam problemas - ao menos não esses,<br />

de queda. Alguns pacotes de bolacha, retângulos<br />

em quatro apoios, também não:<br />

ficam firmes. O perigo, mesmo, está no<br />

mais cotidiano: sacos de arroz, feijão e<br />

pão de forma estão sempre prontos a tombar.<br />

A instabilidade tem afinidade com o<br />

básico em qualquer circunstância.<br />

Prova disso é que se estivermos tristes<br />

ou aflitos a primeira coisa que acontece é:<br />

a gente não dorme, não come, não caga e<br />

não trepa direito. Dentro do meu armário<br />

tudo trepa: nozes em cima de sucrilhos,<br />

sucrilhos em cima de molho bechamel,<br />

chocolate em cima de macarrão. Às vezes<br />

é preciso empurrar, como as pessoas que<br />

ainda desejam entrar no vagão fazem<br />

quando o trem já está lotado. Como eu,<br />

hoje, tentando entrar numa calça P. Embora<br />

haja diferença entre a precariedade que<br />

nasce das pilhas e a unidade que nasce<br />

nos apertos de corpo contra corpo.<br />

Foi essa precariedade que já fez com<br />

que o arroz tombasse. Faz tempo. Nada<br />

grave. Não alçou vôo livre, tombou dentro<br />

dos limites seguros da prateleira mesmo,<br />

os grãos percurtindo ao tocar o chão. Era<br />

como se noivos tivessem passado. Varri<br />

um fim de festa.<br />

O feijão, se caísse, eu imaginei naquele<br />

dia, seria a sensação de um fio quando escapam<br />

contas, bolas de gude. Se pisados,<br />

nos pés uma cócega, estimulados pontos<br />

de acupuntura. A acupuntura, aliás, é ótima<br />

para evitar problemas com dormir, comer,<br />

cagar e trepar, porque é, como dizem,<br />

um tratamento holístico. Eu acredito<br />

muito no holístico mas nunca pude ter sobre<br />

o meu armário uma visão, digamos,<br />

integral. Senão talvez tivesse sabido que<br />

não bastava preencher a soma dos espaços<br />

vazios. Mas enquanto a gente fantasia que<br />

seria o feijão, quem tomba é o pão.<br />

Durante toda a minha adolescência vivi<br />

preocupada com a saúde da minha mãe,<br />

com medo que ela tivesse uma doença<br />

55


grave como a mãe de uma amiga teve.<br />

Mas quem ficou doente foi o meu pai,<br />

que não pegava nem gripe. O destino é<br />

sempre a viagem nunca feita pela fantasia.<br />

Um armário de cozinha é, aliás, como<br />

uma mala de viagem. E eu sempre soquei<br />

tudo nas malas de viagem, fiz do zíper<br />

um cabo de guerra, sentei em cima, forçando<br />

caber, como as pessoas atrasadas<br />

no vagão, como as minhas coxas nas pernas<br />

P da calça.<br />

Minha amiga, a da mãe que teve uma<br />

doença grave, sugeriu cortar o pão pra<br />

caber na calça. É tão estranho que o caber<br />

seja quase sempre alguma coisa que<br />

exige subtração e não soma. Cortei o pão<br />

e o saco ficou dentro do armário. O pão,<br />

se caísse, vinha abaixo fechado. Tombava<br />

e eu reerguia. Tombava e eu reerguia, assim,<br />

com a displicência de um abaixa e<br />

levanta. Se o saco de pão pensasse, talvez<br />

caísse de propósito em cima da taça, caísse<br />

hoje, bem hoje que eu não o quis. Mas<br />

não pensando, caiu do mesmo jeito. A<br />

maioria das coisas que acontecem é fruto<br />

de intenção nenhuma. A gente acha que<br />

as pessoas estão fazendo as coisas pensando<br />

na gente só porque elas nos acertam.em<br />

cheio e elas só estão caindo como<br />

um saco de pão cai sobre a única taça<br />

que havia, vingativo como quem ameaça:<br />

se eu cair levo alguém junto.<br />

Não ouvi a ameaça. Mas recebi uma<br />

ameaça.<br />

<strong>Chicos</strong><br />

É que desde que eu soube da história<br />

de uma mulher que enlouqueceu depois<br />

de quebrar sem querer alguma coisa de<br />

vidro dentro de casa, tomo cuidado redobrado,<br />

principalmente com o espelhinho<br />

de aumento que deixo no criado mudo<br />

com uma pinça em cima. Meu espelho<br />

fica sempre no centro, longe das pontas,<br />

mais à esquerda do pendente de teto que,<br />

se cair, não acerta o objeto onde vejo<br />

meus bigodes. Tenho a mania de me preocupar<br />

com coisas improváveis como um<br />

pendente de teto ou a possibilidade de<br />

enlouquecer com a quebra de objetos de<br />

vidro. Por isso deixo o pão a perigo, deixo<br />

a taça a perigo. E coisas caem e quebram<br />

debaixo dos meus bigodes. E o medo<br />

continua a ser horror e fascínio.<br />

O som da taça no chão é como o de<br />

uma janela atingida por uma pedra. Mas<br />

nada de novo invade a minha cozinha.<br />

Esses cacos são fruto do que já estava. E<br />

o mocinho dorme no quarto. Varro, recolho,<br />

ajoelho. No silêncio confesso baixinho<br />

os meus pecados, os meus descasos,<br />

a minha displicência. Mas ele desperta,<br />

surge na porta coçando os olhos e<br />

diz: Isso acontece, não adianta se crucificar.<br />

Pão e vinho. Não tem coisa mais profana<br />

que transubstanciar a loucura no<br />

corpo e no sangue das palavras.<br />

56


<strong>Chicos</strong><br />

Vanderlei Pequeno<br />

Nascido em Cataguases MG, músico, compositor,<br />

escritor e ativista cultural Autor da Lei Ascânio<br />

Lopes (Lei de incentivo a cultura de Cataguases)<br />

Escreveu entre outros: 50 Casos do nosso<br />

futebol, Casos e acasos e coautor de A Casa<br />

da Rua Alferes<br />

A Fina Flor de Noel<br />

“Mas você é mesmo artigo que não se imita<br />

Quando a fábrica apita faz reclame de você”.<br />

Tenho comigo a edição do Jornal Cataguases<br />

de 14 de novembro de 2004. A página<br />

3 traz uma matéria dando conta do falecimento<br />

da senhora Josefina Teles Nunes, a<br />

Fina, 90 anos. O texto, embora não esteja<br />

assinado, sei, é de autoria da jornalista Vera<br />

Maciel e faz o registro desse acontecimento<br />

ímpar em nossa cidade. Fina era mãe do<br />

Marchand Cairu Teles que, já há algum tempo,<br />

aportou em Cataguases e por aqui ficou.<br />

É nosso velho conhecido. Josefina foi –<br />

Ave! – musa inspiradora de Noel Rosa, o genial<br />

compositor brasileiro dos anos trinta do<br />

século passado.<br />

Rememoro agora o dia primeiro do<br />

mesmo mês quando Cairu, atabalhoado, parou<br />

seu carro no meio da rua e me informou<br />

da morte de sua mãe. Estava visivelmente<br />

abatido e em pranto. Situação constrangedora<br />

e comovente. Fiquei de repassar a notícia<br />

e o horário do sepultamento aos escritores<br />

Emerson Cardoso e José Antonio Pereira.<br />

Nada mais a dizer naquele momento.<br />

Fui depois à capela contígua ao cemitério<br />

e encontrei Fina pela primeira vez. Estava<br />

composta, tez maquiada e de batom, como<br />

se preparada para algum momento especial:<br />

uma viagem, um encontro, um aniversário,<br />

um casamento. Parecia resistir à submissão<br />

da morte. Havia poesia no ar, mais sugestão<br />

de vida do que expectativa de partida, tristeza,<br />

despedida. Aquela viagem sugeria realização,<br />

acabamento fino, brilho. Ali estava a<br />

inspiradora de pelo menos uma composição<br />

do Poeta da Vila: “Três Apitos”, uma pérola<br />

do nosso cancioneiro popular. Questioneime:<br />

Por que pesar, lágrimas, compressões<br />

emocionais?<br />

57


<strong>Chicos</strong><br />

Num volteio pelo centro da cidade,<br />

convenci-me de que ninguém ainda havia se<br />

apercebido da importância desse fato histórico,<br />

poético, quase idílico. Nossa atenção para<br />

as questões culturais precisa sair do limbo;<br />

a flor de que necessitamos para compor melhor<br />

o nosso jardim ainda não brotou. Por<br />

outro lado, purgamos o nosso ócio nas esquinas,<br />

praças e cafés, dando conta do comportamento<br />

alheio, mascando infortúnios,<br />

indignando-nos com a mesmice pública,<br />

num flagrante e bestial processo de transferência<br />

psicológica coletiva que só mesmo<br />

Freud explica. Fico imaginando quão longe<br />

está a cidade que almejamos construir. Recorro<br />

a Guimarães Rosa: “Mais que momentos,<br />

precisamos de eternidades”.<br />

Retornei à capela ainda antes do sepultamento.<br />

Risquei num papel alguns versos da<br />

canção de Noel (Sou do sereno, poeta muito<br />

soturno / vou virar guarda noturno e você<br />

sabe por que / Mas você não sabe que enquanto<br />

você faz pano / faço junto do piano<br />

esses versos pra você.) e pedi a Cairu que os<br />

depositasse no ataúde, ao lado do corpo da<br />

mãe. Dei-me por realizado. Fina que levasse<br />

consigo aqueles versos que, em verdade,<br />

eram seus.<br />

Uma chuva, traspassada pelos raios de<br />

sol daquele primeiro de novembro de dois<br />

mil e quatro, parecia jorrar minúsculos cristais<br />

sobre a tarde. Breve estio, grave caminhada<br />

entre sepulturas. Dois trabalhadores<br />

municipais, abstraídos, deitaram na campa o<br />

esquife da “Beatriz” de Noel, numa cena patética,<br />

mas cheia de dignidade aos nossos<br />

olhos. Chorando feito uma criança, Cairu,<br />

“O Menino da sua Mãe”, agradeceu a nossa<br />

presença e acolhida em Cataguases.<br />

-Imagine!<br />

<strong>58</strong>


Antônio Jaime<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Soares<br />

Nasceu em Cataguases - MG, lá na Chave.<br />

Participou de um dos movimentos culturais<br />

mais ativos dos anos 60 em Cataguases, o CAC.<br />

Depois de morar um longo tempo no Rio de Janeiro,<br />

onde entre outras foi redator de publicidade.<br />

Retornou a Cataguases direto para a Vila.<br />

Poeta e cronista publicou Pedra que não quebra<br />

(crônicas - 2011)<br />

Presença espírita e lembrança de índios<br />

Como parte das comemorações pelos<br />

110 anos do Centro Espírita Paz, Luz<br />

e Amor foi lançado o livro Movi­mento<br />

Espírita de Cataguases, autoria conjunta<br />

de Alcides Gomes Oliveira e Marlene Rodrigues<br />

de Lima, com prefácio de Luciano<br />

Alencar, de Barbacena.<br />

Obra que resume a história do espiritismo,<br />

com maior destaque para sua<br />

atuação em Cataguases e arredores. Valiosa<br />

documentação, mesmo para quem<br />

não professa a crença espírita. Um exemplo:<br />

não há como não ficar indignado ao<br />

tomar conhecimento da intolerância à prática<br />

do espiritismo, nas primeiras décadas<br />

do século vinte, em nossa cidade. A polícia<br />

invadia as casas onde realizavam as<br />

reuniões, o que levou os espíritas a adotarem<br />

uma estratégia: alguém ficava do lado<br />

de fora e dava o sinal, caso os policiais<br />

se aproximassem. Então, a reunião era<br />

interrompida e os participantes punhamse<br />

a jogar baralho.<br />

Algumas pessoas se benziam ao<br />

cruzar com um espírita, até ensinavam as<br />

crianças a cuspir, ao passar pelo Centro.<br />

Bem mais tarde, em 1941, ainda havia<br />

perseguição, a ponto de o ditador Getúlio<br />

Vargas ter proibido o espiritismo no Rio<br />

de Janeiro, então capital federal. Depois,<br />

voltou atrás e permitiu as reuniões, desde<br />

que na presença de um agente da polícia.<br />

Entre outros contratempos, um grande<br />

desafio, em Cataguases, foi a criação do<br />

albergue noturno, por uma única razão: a<br />

ideia partiu dos espíritas, e isso era inconcebível.<br />

Por fim, houve entendimento, a<br />

Indústria Irmãos Peixoto doou o terreno,<br />

os ânimos arrefeceram e hoje o albergue<br />

continua a cumprir seu papel humanitário,<br />

mantido pela prefeitura.<br />

Entre muitas histórias, o livro lembra<br />

os desmandos dos primeiros desbravadores<br />

da região, que incluíam a perseguição<br />

implacável aos índios, e muitos deles,<br />

os que escaparam, refugiavam-se nas redondezas.<br />

Informação que me levou a entender,<br />

finalmente, o trecho do Hino Cataguasense,<br />

que diz: “Vai longe o tempo<br />

nefário...”. Tempo das febres, castigos<br />

para escravos e matança de índios. Não<br />

por acaso, há no livro um caso narrado<br />

59


<strong>Chicos</strong><br />

por Eva Vital Ruzze, de Guidoval, que co<br />

­nheceu índios, por volta de 1950, ontem<br />

mesmo, do ponto de vista da História:<br />

“Havia índios puris que moravam na<br />

serra e, nos fins de semana, passavam<br />

em nossa casa, trazendo café, em lombos<br />

de burros, pra trocar por outros mantimentos.<br />

Andavam descalços, com roupas<br />

mal feitas, muito malvestidos, era de dar<br />

pena. Morenos de olhos claros e cabelos<br />

escuros e lisos, envergonhados, nem sequer<br />

olhavam pra nós. Se lhes oferecia<br />

algo, aceitavam, e ficavam longe, de tanta<br />

timidez. Suas terras só produziam café.<br />

Em frente à nossa casa tinha uma<br />

cruz. Conta-se que um índio morreu de<br />

febre preta e o padre não deixou que fosse<br />

enterrado no cemitério, foi então enterrado<br />

ali na beira da estrada. Também<br />

conheci Maria Mirna, índia puri. Meu pai<br />

dizia que tinha várias mangueiras e vendia<br />

mangas ainda verdes e ela mesma as<br />

colhia. Andava sempre a cavalo e diziase<br />

que morreu com 104 anos”.<br />

Sobre a timidez de que fala Eva,<br />

pode-se interpretar como um ato instintivo<br />

de defesa, levando em conta o massacre,<br />

quase extinção, da raça, pela ganância<br />

do homem branco. Quanto a mim, só<br />

conheci dois, tendo sido apresentado, no<br />

Rio, ao cacique Raoni. E no Mato Grosso<br />

do Sul, morei próximo à rodoviária de<br />

Campo Grande, onde vez ou outra tomava<br />

uma cerveja. Numa delas, um índio<br />

sentou perto. Pediu laranjada e um pedaço<br />

de bolo, comida de branco que, para<br />

ele, deveria ter um sabor todo especial.<br />

Perguntei se a tribo ficava perto. Sim. Se<br />

era possível visitá-la. Sim. Para onde estava<br />

indo? Brasília. Chegou seu ônibus,<br />

pagou a conta e me deu as costas.<br />

Achei divertido, lembrando que<br />

algumas crianças, na sua pureza de espírito,<br />

também agem dessa maneira.<br />

60


<strong>Chicos</strong><br />

De Bucéfalo ao Acéfalo<br />

Bucéfalo, o cavalo de Alexandre, suportava<br />

seu destemido dono nas frenéticas<br />

investidas de conquistador mundo afora.<br />

Não reclamava. Tinha curiosidade sobre os<br />

diferentes tipos de pasto que ia conhecendo<br />

ao longo das planícies e estepes helenizadas.<br />

As éguas persas eram interessantes. Já as<br />

hindus eram matreiras: ao perceberem o interesse<br />

do macho, aguardavam ele se posicionar<br />

para então darem coice. Mas Bucéfalo<br />

entendia, pois ele mesmo havia dado certo<br />

trabalho. Não queria ser montado ou domado<br />

de jeito maneira. Aquele cavalo das estepes<br />

dos Urais, presente de Filipe II da Macedônia<br />

ao filho, era presente de grego. Reza<br />

a lenda que tinha medo de sua própria sombra.<br />

Quem viu o filme do Oliver Stone sabe<br />

como Alexandre fez para o domar. Quem<br />

não viu pode ler no verbete da Wikipedia.<br />

Depois de morrer em batalha, Bucéfalo foi<br />

imortalizado por Alexandre na cidade de Bucéfala,<br />

no atual Paquistão.<br />

De tantas andanças, a montaria de Alexandre<br />

disseminou seu material genético de<br />

garanhão reprodutor. Sempre foi raça difícil<br />

de domar e adestrar, mas com um pendor<br />

por chefes de estado. Os generais que repartiram<br />

o império após a morte de Alexandre<br />

também se encarregaram de manter os quadrúpedes<br />

ativos nas diversas guerras intestinas<br />

e nas fronteiras de cada domínio. Herdeiros<br />

da estirpe imperial chegaram a colônias<br />

helênicas na Itália, e de lá para regiões<br />

do império agora romano, como a Hispânia.<br />

Genitor, cavalo de César na conquista da Gália,<br />

era descendente daquele que temia sua<br />

própria sombra. Incitatus, nomeado senador<br />

por Calígula, havia sido trazido da Hispânia.<br />

O impetuoso quadrúpede chegou a ser considerado<br />

para o cargo de cônsul pelo não menos<br />

impetuoso imperador.<br />

61


<strong>Chicos</strong><br />

A raça perdurou, apreciada por conquistadores,<br />

como Carlos Magno e Carlos V.<br />

Uma das vertentes foi levada à América por<br />

Cortez, e a prole se espalhou pelas pradarias.<br />

O general Custer os adorava, pois eram fortes<br />

e velozes. Os Cheyenne também, pelas<br />

mesmas razões. Quando as tribos lideradas<br />

por Crazy Horse trucidaram Custer e seu regimento<br />

em Little Bighorn, o único sobrevivente<br />

da cavalaria foi um equino chamado<br />

Comanche. O exército o aposentou com todas<br />

as honrarias. Nunca mais foi montado, e<br />

adorava beber cerveja. Seu funeral foi repleto<br />

de pompa e hoje Comanche está empalhado<br />

num museu.<br />

Destino menos feliz teve Hans, o cavalo<br />

esperto. Seu professor, o alemão Von Osten,<br />

dedicara-se a ensiná-lo a realizar operações<br />

aritméticas. Hans na verdade aprendera a ler<br />

a linguagem corporal do dono para saber<br />

quando tinha de parar de bater a pata ou inclinar<br />

a cabeça e assim dar a resposta esperada.<br />

Apesar do sucesso, o exército do império<br />

alemão, talvez por não prezar tanta esperteza<br />

num equino, acaba por alistar Hans para<br />

a I Guerra Mundial, e este morre em combate<br />

em 1916. Seu fim foi um pouco diferente<br />

do de Comanche, sua carne tendo sido consumida<br />

pela tropa faminta nas trincheiras.<br />

Hans talvez tenha sido o último descendente<br />

direto da linhagem de Bucéfalo, que chegou<br />

muito alterada a nossas paragens verdejantes.<br />

O alazão tupiniquim suspeita-se seja um<br />

cruzamento do cavalo imperial com a linhagem<br />

de Rocinante, o cavalo de Don Quixote,<br />

trazido por camponeses espanhóis para a Plata<br />

e depois cruzado com raças aculturadas<br />

pelos portugueses. Ainda assim, o pangaré<br />

traz o mesmo traço genético do seu nobre<br />

ancestral, de ter medo da própria sombra, e<br />

detestar ser montado, exceto por gente bélica.<br />

É muito apreciado pelos militares brasileiros,<br />

que apaziguam a fobia do quadrúpede<br />

instalando viseiras. Dado o terreno vastamente<br />

irregular do ambiente local, o cavalo<br />

exacerbou alguns dos traços do ancestral.<br />

Chucro, duro para galopar, não trota, relincha<br />

à bel prazer, dá coice à torto e a direito,<br />

morde, e adora empinar para derrubar seu<br />

cavaleiro. A fobia de sombra fez de sua<br />

mente um matagal de conspirações e paranoias.<br />

Parece até que viu a mula sem cabeça.<br />

Atesta-se que um expoente atual da raça,<br />

Roçonalbo, possui três rebentos que não<br />

fogem às características do progenitor. Juntos,<br />

se cooptados pelos quatro cavaleiros do<br />

apocalipse, não fariam feio: cumpririam a<br />

missão com louvor. Eles eram muitos cavalos,<br />

mas esta cavalgadura é nossa.<br />

62


Luiz Ruffato<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Nasceu em Cataguases MG, mora em São Paulo<br />

SP. Entre tantas obras de sua autoria destacam-se:<br />

Eles eram muitos cavalos, de 2001,<br />

ganhou o Troféu APCA oferecido pela Associação<br />

Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio<br />

Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional.<br />

Esse livro o tornou um escritor reconhecido<br />

no país. Em 2011 concluiu o projeto Inferno<br />

Provisório, com a publicação do romance<br />

Domingos Sem Deus, iniciado com Mamma,<br />

son tanto Felice em 2005, composto por cinco<br />

livros sobre o operariado brasileiro.<br />

Lendo os Clássicos<br />

Short cuts - Cenas da vida<br />

Raymond Carver (1938-1988) - Estados Unidos<br />

Tradução: : Rubens Figueiredo<br />

Rio de Janeiro: Rocco, 1994, 179 páginas<br />

63


<strong>Chicos</strong><br />

Este volume, que reúne 10 contos, escolhidos<br />

pelo cineasta Robert Altman, retrata excelentemente<br />

bem o universo típico do Autor e<br />

sua visão de mundo. As histórias contemplam,<br />

na maioria das vezes, famílias de classe média,<br />

preocupadas com questões bastante concretas,<br />

ligadas à sobrevivência mais comezinha. As<br />

narrativas flagram momentos singulares de<br />

suas vidas cinzentas, ou seja, situações em<br />

que a precária estabilidade - financeira, emocional<br />

- parece desmoronar. O curioso é que,<br />

para o Autor, esses instantes - que James<br />

Joyce (1882-1941) chamava de epifanias, termo<br />

tomado do vocabulário religioso - não são<br />

iluminações que transformam o sujeito, como<br />

compreendido pelo Autor irlandês, mas, ao<br />

contrário, apenas evidenciam a terrível armadilha<br />

ontológica na qual o ser humano está preso.<br />

Ou, como afirma Claire, protagonista de<br />

"Tanta água tão perto de casa": "(...) certas<br />

coisas à nossa volta vão modificar-se, ficar<br />

mais fáceis ou mais difíceis (...), mas nada vai<br />

ser realmente diferente, nunca mais. (...) Tomamos<br />

nossas decisões, pusemos nossas vidas<br />

em movimento, e elas vão seguir e seguir adiante<br />

até parar. (...) até que um dia acontece<br />

uma coisa que deveria modificar alguma coisa,<br />

mas aí a gente vê que no final nada vai mudar"<br />

(p. 88). Essa verdade, talvez, seja ainda<br />

mais terrível, porque, vista desta maneira - e<br />

todos os contos projetam esse ponto de vista -<br />

é como se estivéssemos vivendo uma vida<br />

inautêntica, como se fôssemos meros atores<br />

representando papéis previamente escritos<br />

por outro - Deus? O Destino? Assim, o que<br />

resta de felicidade é a idealização de um passado,<br />

como no conto "Jerry, Molly e Sam":<br />

"Al gostaria de poder ir em frente, dirigindo o<br />

carro sem parar, a noite inteira, até que fosse<br />

sair nos paralelepípedos da velha rua principal<br />

de Toppenish, virar à esquerda no primeiro<br />

sinal, depois virar à esquerda de novo, parar<br />

quando chegasse ao lugar onde sua mãe vivia,<br />

e nunca, nunca mais, por nenhuma razão no<br />

mundo, sair de lá outra vez" (p. 144). As soluções<br />

dadas para essas vidas apagadas podem<br />

parecer, numa primeira visada, positivas, pois<br />

à exceção de um conto - "Diga às mulheres<br />

que a gente já vai" - ocorre, após a crise, uma<br />

rearrumação das coisas, portanto, não há rupturas.<br />

Mas trata-se de uma falsa premissa - é<br />

como numa tempestade: depois que passa,<br />

constatamos que a paisagem permanece a<br />

mesma, mas no fundo sabemos que não é verdade.<br />

Houve mudanças substantivas na essência,<br />

embora a aparência continue a mesma. E,<br />

neste caso, nem mesmo a morte é solução, já<br />

que, como afirma Howard Sears, de<br />

"Limonada": "(...) morrer é para os puros<br />

(...)" (p. 177).<br />

Avaliação: OBRA-PRIMA<br />

64


<strong>Chicos</strong><br />

Clara Arreguy<br />

Nasceu em Belo Horizonte MG, mora em Brasília<br />

DF. Escritora e jornalista Entre outros publicou:<br />

Segunda divisão (2005), Fafich (2005)<br />

Tempo Seco (2009) Rádio Beatles (2012) Dia de<br />

sol em tempo de chuva (2015).<br />

Mecanismos do mal descortinados<br />

Depois da obra-prima que foi "O indizível<br />

sentido do amor", o novo trabalho de Rosângela<br />

Vieira Rocha vinha revestido de responsabilidade.<br />

E "Nenhum espelho reflete seu rosto"<br />

(Editora Arribaçã) deu conta do recado à<br />

altura da autora e de seus antecessores. Romance<br />

calcado num tipo de personagem doentio,<br />

requereu da escritora pesquisa, mergulho profundo<br />

no tema, ao mesmo tempo espinhoso e<br />

necessário.<br />

O grande barato da melhor literatura contemporânea,<br />

de Rosângela Vieira Rocha, inclusive, é<br />

justamente a mescla de memória, pesquisa e ficção.<br />

A autora já havia feito isso brilhantemente<br />

em "O indizível". Agora, com "Nenhum espelho",<br />

isso se reforça no distanciamento entre<br />

protagonista e autora. A joalheira Helen, ou melhor,<br />

designer de joias, pode não ter nada a ver<br />

com a escritora, jornalista, professora e advogada,<br />

mas é inevitável comparar, por exemplo, o<br />

lançamento da coleção de peças que a protagonista<br />

prepara ao longo da narrativa ao do livro<br />

"O indizível sentido do amor", obra mais preciosa,<br />

no meu entender, da coleção de joias da escritora.<br />

Quanto à urgência do tema, é impressionante<br />

como Rosângela consegue, ao contar a história<br />

de Helen e sua relação tóxica com o "príncipe<br />

encantado" que encontrou na internet, falar de<br />

uma realidade vivida por milhares de mulheres<br />

(e inclusive homens) que até então não se davam<br />

conta do grau doentio dessas relações. Não<br />

está nas redes sociais o problema, mas na teia<br />

tão bem urdida por personalidades identificadas,<br />

freudianamente, pelo narcisismo perverso. Sua<br />

capacidade de envolvimento, sedução, dominação.<br />

Sua inteligência brilhante casada à ausência<br />

de empatia. Sua incapacidade de perceber o outro<br />

senão como objeto a ser usado, controlado e<br />

descartado de acordo com seus interesses.<br />

A narrativa de Rosângela desvenda os mecanismos<br />

por meio dos quais isso se dá. A partir da<br />

experiência relatada por Helen ao médico de<br />

uma paciente que se saiu pior que ela, os fatos,<br />

casos, diálogos, "detalhes tão pequenos", mas<br />

tão significativos, descortinam o que, à vítima,<br />

muitas vezes parece um delírio persecutório,<br />

uma paranoia injustificada. Não é. Esse tipo de<br />

figura circula por aí, no dia a dia de qualquer<br />

pessoa, e é preciso estar alerta para entender<br />

que é possível não se deixar cativo da própria<br />

carência.<br />

"Nenhum espelho reflete seu rosto" contribui<br />

para jogar luz sobre tema tão delicado, e Rosângela<br />

Vieira Rocha o faz com a maestria de sua<br />

escrita direta, seca, sem arroubos de adjetivação.<br />

A aula de joalheria serve de contraponto ao universo<br />

do mal visitado pela protagonista e alivia<br />

o leitor do mal-estar. Há saída.<br />

65


<strong>Chicos</strong><br />

Emerson Teixeira<br />

Cardoso<br />

Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles<br />

(2001) poesia, coautor de A casa da Rua Alferes<br />

e outras crônicas (2006). Traduziu O retorno<br />

do nativo de Thomas Herdy. Sempre ativo<br />

em publicações literárias. Iniciou-se em Estilete<br />

(1967), mimeografado, editor/fundador do Delirium<br />

Tremens (1983) e Trem Azul (1997).<br />

Gaiola de vidro, de Gleison Dornellas<br />

[...] só no coração sempre<br />

ferido do poeta é que não<br />

vão depressa os que se vão...<br />

Para começar peço que reparem na<br />

epígrafe; foi o autor que a escolheu para<br />

abrir o seu livro. O autor do livro é Gleison<br />

Dornelas, da epígrafe não me lembra quem<br />

é o autor. É o Carpe Diem horaciano, preceito<br />

sempre presente na obra deste artista<br />

que fez sua estreia na literatura com o volume,<br />

Um minuto na eternidade. Gleison acaba<br />

de diplomar-se em letras, mas é professor<br />

de história da Secretaria de Estado da Educação,<br />

o que constitui apenas um detalhe,<br />

vou falar só do homem de letras.<br />

No seu discurso poético, o autor de Gaiola<br />

de vidro deixa transparecer o predomínio<br />

das questões da vida e da morte sem nunca<br />

perder as marcas que a meu ver lhe são próprias:<br />

a da poesia amorosa que tantas vezes<br />

visitou. O posicionamento do poeta é antes<br />

de tudo o do sonhador.<br />

“Eu tenho um sonho que excede o tempo<br />

Não jogaremos fora a aurora, nem tomaremos<br />

ventos comprimidos. Vamos ser o que<br />

sempre fomos, eternos sonhadores”.<br />

E aqui e ali, brotam sempre estas questões<br />

que são, afinal, as indagações de todo<br />

ser diante da vida e de seus mistérios e entre<br />

os mistérios, o maior deles: a morte. Para o<br />

poeta, “estranha luz, hieróglifo irregular que<br />

paira no céu”.<br />

Eu disse poesia amorosa como poderia dizer,<br />

ideal romântico. As duas afirmações são<br />

equivalentes. Mas sem esquecer de dizer que<br />

nos versos deste Gaiola de vidro mais que<br />

no primeiro livro seus versos vêm carregados<br />

de um lirismo, meio que - só para empregar<br />

expressão em voga - clássico nos moldes de<br />

um Camões, como neste “Idolatria à Musa”<br />

do qual destaco estes versos: “É outono, ó<br />

musa bela! / E os teus pomos de Cinderela /<br />

Intensificam esta estação. ”<br />

Ou estes: “No inverno a neve buscastes / E<br />

como se não a encontrastes / Mentira com<br />

grande persuasão”.<br />

66


<strong>Chicos</strong><br />

Também em “Ontem, hoje, amanhã e sempre”:<br />

“Ontem, hoje, amanhã e sempre / Verei<br />

com o olhar jamais obtuso / Um louco<br />

amando um pensador confuso”.<br />

Ou noutro belo soneto; “Renúncia à Ninfa”:<br />

“O ímpeto ardente que em mim velas / Tanto<br />

quanto vos sois bonita / em trêmulo estampo<br />

na face. / A indubitável perene e certa<br />

denúncia / Sereis a gênese de nosso enlace /<br />

Não fosse minha breve renúncia”.<br />

Uma leitura apressada desse volume sintomaticamente<br />

intitulado Gaiola de vidro poderia<br />

levar a uma impressão errada, precipitada<br />

de que seu autor faz uso de linguagem<br />

derramada e nos levaria a crer que se trata<br />

de estilo de exagerado descabelamento lírico,<br />

enfim de uma excessiva retórica romântica,<br />

o que definitivamente não acontece. É o<br />

tipo de trabalho que exige de nós leitores<br />

uma observação mais cuidada, uma atenção<br />

mais demorada.<br />

No poema que abre o livro: Gaiola de vidro,<br />

pela boca do peixe, o poeta aborda a<br />

questão da liberdade humana – confinado<br />

em seu aquário (a gaiola de vidro) que o limita,<br />

o eu lírico conclui filosoficamente que<br />

a nossa vontade é ilusão. Mais do que nunca<br />

o poeta em Gleison Dornellas se afirma do<br />

que no poema o morceguinho que voa de<br />

mansinho, bicho mais feinho pretinho como<br />

carvão; ave mamífera que voa e ama (é claro)<br />

e que “dorme não na cama”. Novamente<br />

para usar uma palavra da moda: Show!<br />

Nem faltará neste singelo volume o olhar<br />

do autor para sua Princesinha da Mata, noutro<br />

belo e expressivo soneto “O Soneto à<br />

Cataguases”, sua ternura é expressa pela terrinha<br />

que evoca como na sextina: “Uma fábrica<br />

velha, fábricas belas / poesias que desaguam<br />

tudo / próxima à ponte nova do verso<br />

/ Tudo isso, céus, é Cataguases / De Santa<br />

Rita, à Santa Maria, ó noite! / Como explicam<br />

numa só vida. ”<br />

Não seria despropositado afirmar que Gleison<br />

seja por precipitação, seja por indiferença<br />

a essas convenções – quem já publicou<br />

sabe o que é sentir a dor do parto – desincumbiu-se<br />

de um prefaciador à guisa de explicação<br />

para o seu voo no Pégaso – talvez<br />

reclamando para si, o criador, a responsabilidade<br />

que enfim, em princípio é dele.<br />

A única restrição que faria a este curioso<br />

livro que nos dá Gleison Dornellas é quanto<br />

à quantidade de poemas contidos nele que<br />

pela profusão poderiam estar numa outra<br />

edição e ocasião e com outro título.<br />

Mas isso é lá com ele, que acredito sabe<br />

bem o que está fazendo. Eu por minha vez<br />

sou-lhe imensamente grato por nos prover<br />

de novo com o sabor peculiar de sua forte e<br />

essencial arte poética.<br />

O poeta cataguasense Francisco Marcelo<br />

Cabral ao autografar lhe um livro seu disse:<br />

“Espero que você vá mais longe na arte que<br />

me apresso”.<br />

A mim só compete dizer que com este<br />

livro confirma-se a intenção do autor de dar<br />

continuidade a seu projeto literário que começou<br />

em 2016 com Um minuto na eternidade,<br />

e que segundo ele, eu mesmo confirmo,<br />

mostra sua evolução.<br />

Para o alto, poeta, que o tempo passa<br />

quer o queiramos, quer não.<br />

67


<strong>Chicos</strong><br />

Ronaldo Cagiano<br />

Nasceu em Cataguases, autor, dentre outros,<br />

de Dezembro indigesto (Contos, Prêmio Brasília<br />

de Produção Literária 2001), O sol nas feridas<br />

(Poesia, Finalista do Prêmio Portugal Telecom<br />

2012) e Eles não moram mais aqui<br />

(Contos, Prêmio Jabuti 2016), mora atualmente<br />

em Portugal.<br />

Uma escritura demiúrgica<br />

Desde seu primeiro romance “Mentiras” (Ed.<br />

Nós, SP, 2016), lançado aos vinte e seis anos,<br />

Felipe Franco Munhoz, paranaense radicado em<br />

São Paulo, chamou a atenção por apresentar<br />

uma narrativa em que originalidade e ousadia<br />

pontuaram seu début literário. Com a segurança,<br />

maturidade e domínio raros num estreante,<br />

o autor realizou um sofisticado diálogo com a<br />

obra de Philip Roth, na expressão de um personagem<br />

que flertava com as histórias do escritor<br />

americano em interlocução primorosa em que a<br />

experiência do duplo em literatura foi levada,<br />

com habilidade, ao extremo<br />

Essa via intertextual e metalinguística encontra<br />

novas ressonâncias e atualização em seu<br />

segundo livro, “Identidades” (Ed. Nós, SP,<br />

2018), obra recepcionada com entusiasmo pela<br />

crítica. Se naquela primeira tentativa de exploração<br />

de universos temáticos e semânticos de um<br />

autor que é sua referência e inspiração, Munhoz<br />

conseguiu projetar sua própria voz e autenticidade,<br />

sem derrapar para o pastiche ou no paralelismo,<br />

construindo uma esmerada dicção, em<br />

“Identidades” esse processo se aperfeiçoa e<br />

agudiza, realçando a peculiaridade e sofisticação<br />

de um estilo narrativo que não encontra<br />

similar na literatura contemporânea brasileira.<br />

Nessa nova incursão ficcional sua prosa<br />

incorpora a inegável herança de suas leituras,<br />

influências e gurus literários , pois que bebe em<br />

muitas fontes e percorre outros territórios linguísticos.<br />

Felipe recorre a muitas vertentes literárias<br />

e processos de construção, sofisticadas<br />

associações e alusões, da palavra à imagem, do<br />

verso lírico aos domínios do drama teatral, da<br />

inflexão filosófica e do acento crítico às experimentações,<br />

da pauta musical às rupturas formais.<br />

Um sólido pout pourri ficcional de confecção<br />

híbrida, explorando com desenvoltura todas<br />

as possibilidades de comunicação e metamorfoses<br />

da palavra, fugindo à costumeira e tradicional<br />

estilística. A luz dessa linguagem deriva-se<br />

de uma percepção clara das suas tênues fronteiras,<br />

espectro da sociedade multissensorial, num<br />

mundo em permanente disfunção, com suas dicotomias<br />

e ausência de linearidade, tão bem<br />

representados nessa assinatura artística.<br />

68


<strong>Chicos</strong><br />

O leitor depara-se com uma escrita versátil e<br />

vertiginosa, nada ortodoxa, em que os diversos<br />

gêneros se alternam nos planos do romance,<br />

criando uma obra de inusitada arquitetura e<br />

plasticidade verbal e visual dadas as inserções<br />

gráficas, partituras musicais, grafismos e evocações<br />

imagéticas e outras sutilezas estilísticas<br />

de sua oficina.<br />

Se não é fácil definir a matriz dominante<br />

nesse trabalho com essa pluralidade de enfoques,<br />

por conta da ampliação do espectro estrutural<br />

do romance (aqui pontuado em clave<br />

poética na sua configuração espacial), no fundo<br />

há um chacoalhar ou uma desconstrução do<br />

próprio gênero - vai da prosa à música; da pintura<br />

ao teatro - também não é difícil perceber<br />

que tais elementos nascem de uma íntima relação<br />

do autor com o universo dos signos. Evidentes<br />

a sua articulação e manejo de uma sintaxe<br />

variada e sua familiaridade com a cultura<br />

clássica, principalmente com as mitologias greco-romanas,<br />

pois autor e obra parecem viver<br />

em plena conexão epifânica, numa linguagem<br />

que culmina no êxtase da palavra, esta se cosangrando<br />

como personagem intrínseca.<br />

“Identidades” lê-se como uma sequência<br />

de palimpsestos, percebe-se que o autor vai<br />

retirando de suas camadas criativas a pátina do<br />

tempo e isso traduz-se num mosaico de sensações<br />

e experimentações ao longo do texto, como<br />

numa procura obsessiva por essa(s) identidades(s)<br />

submersas, escondidas nos múltiplos<br />

eus dos protagonistas, Camila/Margarida, ou<br />

próprio Mefistófeles nelas redivivo. Essa linha<br />

de argumentação de que se utiliza o autor para<br />

fazer a transcriação desses mitos é fruto de um<br />

estreito convívio com uma miríade de personagens<br />

e nelas é que se inquire no palco de seu<br />

íntimo teatro de representações: “Suposto Mefistófeles<br />

pergunta-se Quem eu sou? Quem eu<br />

sou? Quem eu sou? O carro sai. Apagam-se as<br />

luzes – mas desta vez o palco não desaparece<br />

na escuridão porque fulgura o globo luminoso.<br />

Com a função de sugerir que a cena (a memória)<br />

desenrola-se fora de São Paulo. Na metade<br />

do poema Passados 3. Paris, Camila deixará<br />

seu esconderijo para juntar-se magoada?, enciumada?,<br />

a Suposto Mefistófeles; observando<br />

o jovem casal.”<br />

A passagem estética (ou também ética)<br />

por essas vivências de um passado cultural e<br />

ancestral da História da literatura e da humanidade<br />

vai construindo um caleidoscópio de registros<br />

e referencialidades, sobretudo funcionando<br />

como metáfora da vida e da sociedade<br />

contemporâneas, quando as crises identitárias<br />

estão na ordem do dia.<br />

Em “Identidades” o mito de Fausto e Mefistófeles<br />

ganha dimensão numa releitura atulizada<br />

diante dessas questões emergentes de gênero e<br />

num protagonismo associado aos nossos dilemas,<br />

instabilidades e distopias tão acentuados<br />

e prenhes na vida social, política, econômica e<br />

afetiva, seja nas instâncias pessoais, seja no<br />

paradoxal universo coletivo.<br />

Em cada página temos simbolizado um<br />

mundo abrupto, com suas assimetrias e descontinuidades,<br />

com seus fenômenos de dissonância<br />

e caos; e isso é preferencialmente uma<br />

tática da própria linguagem de Munhoz, ao<br />

ricochetear o desconforto da civilização e os<br />

atalhos da modernidade. Isso pode ser aferido<br />

no embalo de sua escrita, nos movimentos e<br />

sinuosidades que o texto sugere, levando o leitor<br />

a uma espécie de transe, tanto que de uma<br />

linha para outra pode mudar de idioma, de<br />

voz, de ritmo, de encadeamento frasal (por<br />

exemplo versos escritos ao contrário, notas de<br />

rodapé que se insinuam como o próprio capítulo),<br />

numa alternância de palcos, notas, cenas,<br />

cenários, fotografias e miragens.<br />

Os totens culturais, intelectuais e literários<br />

do autor vão emergindo numa intensa<br />

simbiose artística: Borges, Goethe, Antonioni,<br />

Van Gogh, Boticelli, Dostoiévski, Blake, Miles<br />

Davis, Hermeto Pascoal, Pollock, Faulkner,<br />

Milton Nascimento etc). Autoprojeções que se<br />

escalonam para reverberar a inquietação que<br />

marca a essência do livro, construído como se<br />

fosse um puzzle temático, dado o caráter multifacético,<br />

polifônico e polissêmico que projeta,<br />

transitando entre São Paulo, Macau, Berlim,<br />

Paris e outros recortes geográficos e psicológi-<br />

69


<strong>Chicos</strong><br />

cos, reais ou imaginários, oferecendo ao leitor<br />

o verdadeiro prazer de uma obra impactante.<br />

“Identidades” converte-se numa escritura<br />

visceral que vem, em boa hora, profanar o lugar<br />

bem comportado da literatura brasileira,<br />

sempre povoada pelo mais do mesmo, arejando<br />

esse cenário editorial e literário tão contaminado<br />

pelos fetiches do deus mercado, permeado<br />

de indulgências e camuflagens. O radicalismo<br />

formal e a riqueza de seu conteúdo<br />

deflagram um mergulho escrutinador nos dilemas<br />

existenciais, vem decodificar nossas perplexidades<br />

por meio de uma linguagem acentuadamente<br />

desmanteladora, mas profética em<br />

sua carga crítica que desafia e provoca nossas<br />

zonas de conforto, para expor a instabilidade<br />

geradora da arte, alcançando uma estatura demiúrgica<br />

com o sopro de seu tenso e denso<br />

repertório criativo.<br />

Trecho:<br />

AutoAuschwitz<br />

Outrora uma perna, a direita; um trem, outrora<br />

veloz – e foi tão repentino, o trem Cargueiro:<br />

meus passos arrastam caixões de ratos, chumbo.<br />

A perna direita, uma âncora, concreto:<br />

farpados arames em árvore neural<br />

(os ramos internos são galhos putrefatos,<br />

são fartos de ganchos com frutos venenosos),<br />

sem folhas, acácia de outono, a qual transcrevo<br />

no ritmo das sílabas tônicas: agulhas,<br />

faca!das em ca!da cruel! exclamação!<br />

A perna direita, um poleiro de aves mortas:<br />

o gato de Poe, confinado, que respira<br />

agônicos últimos sorvos rarefeitos –<br />

o bicho aproveita ridículos suspiros.<br />

Por dentro, penumbra, constante funeral;<br />

por dentro, esta perna pendura estearina<br />

(os nervos da perna são velas derretidas) –<br />

ao fim, condenada, cavando a própria vala,<br />

incônscia: o meu corpo, o meu campo de<br />

extermínio.<br />

70


José Antonio<br />

Pereira<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A<br />

casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006) e<br />

autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).<br />

Em agosto de 2007<br />

Revirando alguns papéis na gaveta,<br />

achei o esboço do texto que foi a ancoragem<br />

de ideias e conversas quando a <strong>Chicos</strong> era<br />

um punhado de folhas soltas que circulavam<br />

entre nós e amigos. Desengavetei e trago a<br />

vocês, em estado bruto. Desculpem as incorreções<br />

e imperfeiçoes. Acrescento apenas o<br />

poema de Sadako que fez parte dos poemas<br />

daquelas folhas.<br />

Sinto que o agosto de 2019 foi muito mais<br />

desalentador do que o de 2007.<br />

Apesar de inútil, a poesia<br />

é nossa arma de combate<br />

Neste agosto, em que se faz vinte anos<br />

da morte de Carlos Drummond, decidimos<br />

fazer na <strong>Chicos</strong> uma homenagem à poesia.<br />

Pedimos a licença e a benção ao maior poeta<br />

de Cataguases: Francisco Marcelo Cabral.<br />

Mas agosto é também o mês onde ocorreu o<br />

uso da mais pura e genuína burrice humana:<br />

A bomba de Hiroshima. Por isso vos oferecemos<br />

a poesia de Sadako. Mestre João Cabral<br />

nos disse em seu poema Anti-char:<br />

“Poesia intransitiva, /sem mira e pontaria: /<br />

sua luta com a língua acaba / dizendo que a<br />

língua diz nada. / É uma luta fantasma, / vazia,<br />

contra nada; / não diz a coisa, diz vazio;<br />

/ nem diz coisas, é balbucio. ” Mesmo<br />

sem mira, disparamos a poesia contra a estupidez<br />

atômica. Sabemos ser apenas o<br />

“balbuciar” das palavras, fruto da sensibilidade<br />

e emoção de nossos poetas. Por isso a<br />

poesia de Sadako.<br />

Durante o primeiro semestre deste ano,<br />

Emerson Teixeira Cardoso, Ronaldo Cagiano<br />

quando em Cataguases estava, Vanderlei<br />

Teixeira Cardoso, Altamir Soares, Vicente<br />

Costa, eu e outros amigos passamos trocando<br />

ideias entre cafés e cervejas nas esquinas<br />

da cidade. Tudo começou com a estúpida<br />

morte, lá no Rio, do menino João. Que João?<br />

Aquele que arrastaram pelas ruas do<br />

Rio de Janeiro como um boneco de Judas.<br />

Caminhou pela poesia do Paul Celan, nos<br />

chocamos com um kamikaze coreano em<br />

mais uma matança escolar norte-americana,<br />

até chegarmos a poesia de Kurihara Sadako.<br />

71


<strong>Chicos</strong><br />

O poeta romeno Paul Celan (1920-1970),<br />

judeu de expressão alemã e sobrevivente do<br />

Holocausto, ao falar do motivo de sua escrita:<br />

“No meio de tantas perdas, uma coisa<br />

permaneceu acessível, próxima e salva – a<br />

língua. Sim, apesar de tudo, ela, a língua,<br />

permaneceu a salvo. (...) nesses anos e nos<br />

seguintes tentei escrever poemas nesta língua:<br />

para falar, para me orientar, para saber<br />

onde me encontrava e aonde isso me iria levar,<br />

para fazer o meu projeto de realidade. ”<br />

Celan é um dos poetas mais importantes do<br />

pós-guerra alemão.<br />

“A rosa de Hiroshima” de Vinícius de Moraes<br />

é, para nós, das poucas se não única expressão<br />

poética feita sobre a bomba atômica.<br />

Fala-se muito no Brasil da literatura de Auschwitz.<br />

Mas e a produção japonesa pós<br />

Hiroshima?<br />

Kurihara Sadako (1913-2005), poetisa<br />

hibakusha (vítima da bomba atômica) nascida<br />

em Hiroshima e sobrevivente da bomba,<br />

produziu sua poesia a partir da traumática<br />

morte instantânea de milhares de seres humanos<br />

e sobreviventes com sequelas hereditárias<br />

provocadas pela exposição à radioatividade.<br />

Nas palavras de Kurihara Sadako, em<br />

artigo de 1985, “A poesia e a prosa da bomba<br />

atômica começaram a ser escritas por<br />

anônimos que experimentaram, em primeiro<br />

lugar, a impossibilidade da fala, e só podiam<br />

permanecer emudecidos em meio àquela<br />

morte em massa; foram escritas porque eles,<br />

seres humanos, não poderiam não falar disso”<br />

No Japão, Kurihara Sadako surge como uma<br />

das vozes poéticas mais expressivas da literatura<br />

pós-bomba. Dedicou sua vida à memória<br />

do dia 6 de agosto. Sua poesia não é somente<br />

literatura da bomba atômica, é também<br />

poesia do pacifismo. Sadako foi não<br />

somente escritora como também incentivadora<br />

da literatura de Hiroshima, o que o fazia<br />

por meio de edições de antologias poéticas<br />

relativas ao tema, como por exemplo O<br />

Rio da Corrente em Chamas no Japão<br />

(1960).<br />

Além de poetisa, Sadako foi ensaísta, ativista<br />

e líder do movimento antinuclear. Tinha fortes<br />

convicções políticas, o que a levou a protestar<br />

contra ações do governo japonês durante<br />

a Segunda Guerra, contra o tratado de<br />

segurança entre Japão e Estados Unidos<br />

(1960), além de fazer parte de um grupo de<br />

mulheres que se manifestavam publicamente<br />

contra os testes nucleares em todo o mundo.<br />

– Ela escreveu cerca de 400 poemas e 100<br />

ensaios sobre a experiência de Hiroshima<br />

Seu livro de poemas de maior repercussão,<br />

Ovos Negros (em japonês, Kuroi tamago, de<br />

1946), lançado imediatamente após a bomba<br />

de Hiroshima, teve poemas censurados, pelo<br />

órgão censor da Ocupação Americana no Japão.<br />

O poema “Respeito pela humanidade” clarifica<br />

a imagem dos “ovos negros” do título,<br />

quando a poetisa protesta contra a política<br />

demográfica estipulada em 1941 pelo Ministério<br />

do Bem-Estar Social para o período da<br />

guerra, que proibia o aborto e a contracepção:<br />

No pós-guerra, com a escassez de moradias<br />

e de alimentos, o ministério suspendeu a<br />

proibição do aborto. Esse controle populacional,<br />

baseado nas ideias nazistas de eugenia, é<br />

alvo de ataque no poema. A sistematização<br />

da vida e da morte – os que são enviados<br />

para a morte nos campos de batalha, e os<br />

que são convocados a procriar – é denunciada<br />

como desrespeito à humanidade.<br />

As mulheres são convocadas a não terem filhos<br />

até que se extinga o militarismo, pois a<br />

maternidade não deve estar vinculada à política,<br />

pois, afinal de contas, ter filhos não deve<br />

ser comparável às galinhas que precisam<br />

botar mais ovos.<br />

A metáfora “ovos negros” se assemelha à<br />

imagem de “leite negro” do poema “Fuga da<br />

morte” de Paul Celan: “Leite negro da<br />

madrugada / bebemo-lo ao entardecer / be-<br />

72


<strong>Chicos</strong><br />

bebemos ao meio-dia e / pela manhã bebemo-lo<br />

de / noite / bebemos e bebemos /(...) a<br />

morte é um mestre / que veio da Alemanha/<br />

azuis são os seus olhos /(...) os teus cabelos<br />

de oiro Margarete...”<br />

A própria postura de Sadako sinaliza seu<br />

amor à vida. Diversos escritores sobreviventes<br />

da bomba atômica e do Holocausto europeu<br />

se suicidaram, entre eles Celan, aos 50<br />

anos de idade. Até pouco antes de sua morte<br />

natural, aos 92 anos, Sadako se empenhava<br />

em agir a favor da paz, da conscientização<br />

antinuclear, do não esquecimento de Hiroshima,<br />

pois, conforme afirma, “Hiroshima não<br />

é, de modo algum, algo que ocorreu no passado.<br />

(...) Hiroshima é um lugar no futuro<br />

onde podemos ver até onde pode nos levar o<br />

militarismo, a corrida armamentista, sua destinação;<br />

é o maior ponto cego da espécie humana,<br />

que serve como referência para o<br />

mundo”. Vocês verão, muitos outros poetas<br />

tratando com indignação da violência humana.<br />

Pensem nesta poesia como nestes versos<br />

do Drummond: “É feia. Mas é uma flor.<br />

Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. ”<br />

Eu vi Hiroshima<br />

Nada se vê em Hiroshima.<br />

Hiroshima: cidade de prédios e carros.<br />

Casais de blue jeans cochilam<br />

em bancos situados nos parques<br />

uma criancinha corre atrás dos pombos sobre a relva.<br />

O cogumelo atômico,<br />

o cenotáfio -<br />

São apenas gotas para instantâneos.<br />

Não, isto é o que eu vi.<br />

Pessoas sentadas em grupos como ascetas<br />

sobre o meio-fio defronte ao cenotáfio.<br />

Movendo-se lenta<br />

e silenciosamente,<br />

ligados em testes nucleares subterrâneos<br />

no deserto de longínquos países<br />

e no silencioso ruído das cinzas mortíferas<br />

que explodem no ar,<br />

gente que já viram o inferno atômico.<br />

73


<strong>Chicos</strong><br />

Pessoas sentadas no meio-fio<br />

que conversam com mortos,<br />

reúnem-se aos mortos<br />

para clamar pela paz.<br />

Isto foi o que vi.<br />

Gente em Hiroshima<br />

sentados nos meios-fios<br />

clamando pela paz.<br />

Tradução: Emerson Teixeira Cardoso<br />

Altamir Soares<br />

74


<strong>Chicos</strong><br />

Clips<br />

cronicabrasileira.org.br<br />

Graças ao Instituto Moreira Salles em associação<br />

com a Casa de Rui Barbosa, criou-se um site da<br />

crônica brasileira. Um formidável acervo à disposição<br />

do grande público. Estão lá as crônicas de Rubem<br />

Braga, Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector,<br />

e tantos outros grandes nomes publicadas<br />

pelos jornais.<br />

Rubem Braga 1913 — 1990<br />

Nenhum espelho reflete seu rosto<br />

Rosângela Vieira Rocha<br />

Editora Arribaçã<br />

ano de edição: 2019<br />

www.arribacaeditora.com.br<br />

Clarice Lispector 1920 — 1977<br />

Helen é dona de uma joalheria. Um psiquiatra de<br />

uma cidade distante, que atende uma mulher internada<br />

em estado grave, vê na joalheira sua última<br />

possibilidade de ajuda à paciente. Convida-a<br />

para dividir, com ele, sua história vivida com<br />

Ivan, na expectativa de que, através dos detalhes,<br />

possa acessar sua paciente e retirá-la de seu torpor.<br />

75


<strong>Chicos</strong><br />

momento vivo – 71 poemas favoritos &<br />

21 novos<br />

Ronaldo Werneck<br />

Editora Tipografia Musical<br />

ano de edição: 2019<br />

Ronaldo Werneck é poeta de décadas e livros. Suas<br />

obras amalgamam cidades, rios, amores, mares,<br />

sóis e poetas com a tipografia da letra, o branco da<br />

página, o estilhaçamento do verso. Tudo levado à<br />

plasticidade máxima do encontro do eu-lírico com<br />

o signo-significante-significado. Neste momento<br />

vivo é com este encontro que nos (re)<br />

encontramos. De selva selvaggia (1976), seu primeiro<br />

livro de poesia, a o mar de outrora & poemas<br />

de agora, de 2014, Werneck, num processo<br />

cabralino de catar seus feijões, revisita aqui toda<br />

sua obra poética, com um plus de 21 novos poemas.<br />

Brasileiro vence o mais importante prêmio<br />

literário da Lusofonia<br />

Itamar Vieira Junior, baiano<br />

de Salvador, é o vencedor<br />

do Prémio Leya 2018<br />

com o romance inédito Torto<br />

Arado. O juri composto por<br />

Manuel Alegre (presidente),<br />

Isabel Lucas, José Carlos Seabra e Nuno Júdice<br />

(Portugal), Ana Paula Tavares (Angola), Lourenço<br />

do Rosário (Moçambique) e Paulo Werneck<br />

(Brasil), premiou pela segunda vez, depois de<br />

dez anos, um autor brasileiro. O mesmo prêmio<br />

havia sido concedido em 2008 ao mineiro Murilo<br />

Carvalho, pelo romance "O rastro do jaguar".<br />

O prêmio de 100 mil euros foi atribuído, por<br />

unanimidade, à obra "pela solidez da construção,<br />

o equilíbrio da narrativa e a forma como<br />

aborda o universo rural do Brasil, colocando ênfase<br />

nas figuras femininas, na sua liberdade e na<br />

violência exercida sobre o corpo num contexto<br />

dominado pela sociedade patriarcal”. O vencedor<br />

concorreu com outros 347 candidatos, tendo<br />

sido escolhido entre os 7 finalistas.<br />

Itamar é autor de dois livros de contos:<br />

"Dias” (vencedor do XI Projeto de Arte e Cultura)<br />

e “A oração do carrasco” (que conquistou o<br />

Prêmio Humberto de Campos da UBE/RJ em<br />

2016, obteve o 2º lugar no Prêmio Bunkyo de<br />

Literatura 2018, sendo ainda finalista do Prêmio<br />

Jabuti 2018).<br />

76

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