Chicos 57 - 21.06.2019
Chicos é uma e-zine que circula apenas pelos meios digitais. A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.
Chicos é uma e-zine que circula apenas pelos meios digitais.
A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.
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Nº <strong>57</strong><br />
21 de junho de 2019<br />
e-zine de literatura e ideias de<br />
Cataguases – MG<br />
Um dedo de prosa<br />
Esta é a nossa edição <strong>57</strong><br />
<strong>Chicos</strong> é uma e-zine que circula apenas pelos meios digitais.<br />
Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar<br />
nossas edições ou visite-nos nos links listados nesta<br />
página.<br />
A linha editorial é fundamentalmente voltada para a<br />
literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno<br />
e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números,<br />
uma diversidade temática.<br />
Neste número, a poeta da primeira página é Blanca Varela.<br />
A poesia peruana não escapa do isolamento imposto<br />
pelas grandes editoras que só têm olhos para a<br />
produção europeia e norte-americana.<br />
Vincent Mengeot, radicado em Cataguases, esteve recentemente<br />
em sua Bélgica, onde apresentou seus trabalhos<br />
em duas exposições por lá. Mostramos um pouco<br />
do seu trabalho (óleos s/tela na página 2 e quarta<br />
capa) e dos eventos.<br />
Neste número de início de inverno, quem reaparece por<br />
aqui é Cunha Leiradella, numa narrativa “nua e crua”<br />
no Acaiaca, o primeiro arranha-céu de Belo Horizonte.<br />
Uma agradável leitura para todos! E até o início da primavera<br />
Capa: Foto Vicente Costa<br />
Os <strong>Chicos</strong><br />
Editores:<br />
Emerson Teixeira Cardoso<br />
José Antonio Pereira<br />
Colaboradores:<br />
Projeto gráfico - Gabriel Franco<br />
Fotografia - Vicente Costa<br />
Fale conosco: cataletras.chicos@gmail.com<br />
Visite-nos em:<br />
https://independent.academia.edu/<strong>Chicos</strong>Cataletras<br />
https://www.yumpu.com/pt/chicos_cataletras<br />
http://chicoscataletras.blogspot.com/<br />
01
<strong>Chicos</strong><br />
37 ALBERTO PEREIRA<br />
Um poema<br />
O cortador de cana<br />
03 BLANCA VARELA<br />
Segredos de família + 11 poemas<br />
16 RONALDO WERNECK<br />
rosato nel caffè rosati + 2 poemas<br />
22 INEZ ANDRADE<br />
PAES<br />
Ao maledicente + 1 poema<br />
25 HELEN MASSOTE<br />
Balada do corpo solar<br />
26 JORGE PRATA<br />
O OLEIRO n° 1 + 3 poemas<br />
30 GISELA GRACIAS<br />
Provocação + 1 poema<br />
RAMOS ROSA<br />
32 ACIR SIMÕES<br />
A palavra é concreta + 2 poemas<br />
35 FLAUSINA MÁRCIA<br />
Meu limão meu limoeiro + 1<br />
poema<br />
40 RONALDO CAGIANO<br />
Viver: rio litígioso<br />
43 LUIZ RUFFATO<br />
O verão tardio (fragmento)<br />
46 CUNHA DE<br />
02<br />
LEIRADELLA<br />
Consequência imprevista de alguém<br />
seriado<br />
52 JOSÉ VECCHI DE<br />
CARVALHO<br />
Incompatibilidade de gênios<br />
54 JOSÉ ANTONIO<br />
Desmemórias<br />
PEREIRA<br />
56 ANDRESSA<br />
Primeira hora<br />
BARICHELLO<br />
<strong>57</strong> EMERSON TEIXEIRA<br />
Moram todos na Linha<br />
Trabalhador rural<br />
CARDOSO<br />
A alegria<br />
58 RACHEL NAVEIRA<br />
Conhece-te<br />
60 ANTÔNIO JAIME<br />
Dinheiro no chão<br />
SOARES<br />
62 LUIZ RUFFATO<br />
Lendo os clássicos: Sob o sol de<br />
Satã<br />
64 EMERSON TEIXEIRA<br />
Tecidos & Letras<br />
CARDOSO<br />
66 LUCÍLIA GARCEZ<br />
Os rios de Ronaldo Cagiano<br />
68 ADELTON<br />
GONÇALVES<br />
Para tirar Rosário Fusco do esquecimento<br />
71 PASOLINI<br />
O poder sem rosto<br />
75 CLIPS
<strong>Chicos</strong><br />
Blanca Varela<br />
Blanca Varela, poeta peruana nascida em<br />
Lima em 10.08.1926, falecida em 12.03.2009.<br />
Muito jovem ingressou na Universidade de San<br />
Marcos para estudar Letras travando amizade<br />
com importantes intelectuais da época. Em<br />
1949 radicou-se em Paris, onde conheceu Octavio<br />
Paz, que foi determinante em sua carreira<br />
literária, conectando-a ao círculo de intelectuais<br />
latino-americanos e espanhóis radicados na<br />
França. Publicou obras inscritas no Movimento<br />
Surrealista e na chamada Geração dos 50 da<br />
poesia peruana. Blanca Varela pode ser considerada<br />
uma das vozes mais significativas da<br />
lírica hispano-americana no século XX.<br />
Em 1959 publicou seu primeiro livro, Ese<br />
puerto existe, em 1963, Luz de día, em 1971<br />
Valses y otras confesiones. Em 1978, realizou a<br />
primeira recompilação fundamental de sua escritura<br />
em Canto villano. Finalmente sua antologia<br />
de 1949 a 1998 com o título Como Dios<br />
en la nada.<br />
“Si em seu início Blanca Varela parece<br />
assumir uma poesia de corte mais ou menos<br />
universal seguida pelo selo do macho ao empregar<br />
um eu poético masculino, como já assinalei,<br />
os primeiros traços de uma linha de escrita<br />
claramente feminina, marcada por uma abordagem<br />
incomum e peculiar do corpo, logo aparecerão<br />
nela. Isso se dará por meio da poetização<br />
de experiências íntimas da mulher, como a<br />
maternidade ou o parto...", - Roland Forgues<br />
A Geração dos 50, grupo de poetas peruanos,<br />
cuja expressão lírica é definida por Andityas<br />
Soares de Moura Costa Matos: “A poesia<br />
gestada nos últimos anos 50 por peruanos (...)<br />
constitui uma experiência estética ao mesmo<br />
tempo profunda e desigual, tendo atingido momentos<br />
de grande intensidade lírica e, paradoxalmente,<br />
em outras oportunidades, tendo recorrido<br />
a uma expressividade de salão bastante<br />
formalista, quase amadora (...). Tal contradição<br />
reflete de maneira clara as perplexidades que<br />
perpassam a história recente do Peru, que, no<br />
fundo, correspondem à narrativa essencial da<br />
América Latina: golpes militares, ditaduras, pobreza<br />
generalizada, violência (...) busca de identidade<br />
nacional (...).” em El río hablador / O<br />
rio que fala - Antologia da poesia peruana / Antología<br />
de la poesía peruana de Everardo Norões<br />
“esta infinita e rebelde ferida<br />
de tempo que sou”<br />
(Malevitich en su ventana, p. 18)<br />
03
<strong>Chicos</strong><br />
Segredo de família<br />
Sonhei com um cão<br />
com um cão esfolado<br />
seu corpo cantava rubro silvava<br />
perguntei ao outro<br />
ao que apaga a luz do açougueiro<br />
que foi que aconteceu<br />
por que estamos às escuras<br />
é um sonho estás só<br />
não há outro<br />
a luz não existe<br />
tu és o cão tu és a flor que late<br />
afia docemente tua língua<br />
tua doce negra língua de quatro patas<br />
a pele do homem queima com o sonho<br />
arde desaparece a pele humana<br />
só a rubra polpa do cão é limpa<br />
a verdadeira luz habita sua remela<br />
tu és o cão<br />
tu és o desolado cão de cada noite<br />
sonha contigo mesma e basta<br />
04
<strong>Chicos</strong><br />
Parque<br />
Cinza a aranha<br />
de sonho a sonho,<br />
Lerdeza da aranha,<br />
cristal sem alma.<br />
O besouro bebe,<br />
sangra a flor.<br />
O jardim é a morte<br />
detrás da janela.<br />
05
<strong>Chicos</strong><br />
Vitória<br />
Virar o rosto,<br />
mas por pouco tempo.<br />
Foi o ocaso de sempre<br />
Ou a alba deixada para trás?<br />
Amor,<br />
paisagem que o tempo corrige sem trégua.<br />
A primavera é breve<br />
em ambas margens do caminho.<br />
06
<strong>Chicos</strong><br />
Fonte<br />
Junto ao poço cheguei,<br />
Meu olho pequeno e triste<br />
se fez fundo, interior.<br />
Estive junto a mim,<br />
plena de mim, ascendente e profunda,<br />
minha alma contra mim,<br />
golpeando minha pele,<br />
afundando-a no ar,<br />
até o fim.<br />
A escura poça aberta pela luz.<br />
Éramos uma só criatura,<br />
perfeita, ilimitada,<br />
sem extremos para que o amor pudesse agarrar-se.<br />
Sem ninhos e sem terra para o domínio.<br />
07
<strong>Chicos</strong><br />
A rose is a rose<br />
Imóvel devora luz<br />
se abre obscenamente rubra<br />
é a detestável perfeição<br />
do efêmero<br />
infesta a poesia<br />
com seu arcaico perfume<br />
08
<strong>Chicos</strong><br />
Cruci-ficção<br />
de nada saem seus braços<br />
sua cabeça<br />
suas mãos abertas<br />
suas palmípedes mãos<br />
feito pela metade<br />
um menino<br />
um deus esquecidiço<br />
deixa-o sem coração<br />
sem fígado<br />
sem pernas para fugir<br />
em um aperto deixa-o<br />
assim pendurado no ar<br />
no ar arrasado do açougue<br />
nenhuma linha para agarrar<br />
nem um ponto<br />
nenhuma cagada de mosca<br />
onde encostar a cabeça<br />
09
<strong>Chicos</strong><br />
Currículo vitae<br />
digamos que ganhaste a corrida<br />
e que o prêmio<br />
era outra corrida<br />
que não bebeste o vinho da vitória<br />
apenas teu próprio sal<br />
que jamais escutamos aplausos<br />
apenas latidos de cães<br />
e que tua sombra<br />
foi tua única<br />
/desleal adversária<br />
10
<strong>Chicos</strong><br />
Exercício<br />
I<br />
Um poema<br />
como uma grande batalha<br />
me lança nesta arena<br />
sem mais inimigo do que eu<br />
Eu<br />
eu e o grande grande ar das palavras<br />
11
<strong>Chicos</strong><br />
Poderes mágicos<br />
Não importa a hora nem o dia<br />
fecham-se os olhos<br />
dão três golpes com o<br />
pé no chão,<br />
abrem-se os olhos<br />
e tudo continua exatamente igual<br />
12
<strong>Chicos</strong><br />
Assim deve ser<br />
assim deve ser o rosto de deus<br />
o céu raivosamente cruzado<br />
pelas nuvens cinzas violetas e alaranjadas<br />
e sua voz<br />
o mar de baixo<br />
dizendo sempre o mesmo<br />
tão monótono<br />
como o primeiro<br />
e o último dia<br />
Poemas traduzidos por Antonio Miranda<br />
13
<strong>Chicos</strong><br />
Conversa com Simone Weil<br />
— Os meninos, o oceano, a vida silvestre, Bach.<br />
— O homem é um animal estranho.<br />
Na maior parte do mundo<br />
metade dos meninos vão para a cama com fome.<br />
Renuncia o anjo às suas plumas, a íris,<br />
à gravidade e a graça?<br />
Se acabou para nós a esperança de sermos melhores agora?<br />
A vida é de outros.<br />
Só ilusões e erros.<br />
A palavra fatigada.<br />
Já nem te atreves a comer um pêssego.<br />
Para algo fechei a porta<br />
dei-lhe as costas<br />
e entre a raiva e o sono esqueci muitas coisas.<br />
Metade dos meninos vão para a cama com fome.<br />
— Os meninos, o oceano, a vida silvestre, Bach.<br />
— O homem é um estranho animal.<br />
14
<strong>Chicos</strong><br />
Os sábios, em quem depositamos nossa confiança,<br />
nos traíram<br />
— Os meninos vão para a cama com fome.<br />
— Os velhos vão morrer de fome.<br />
O verbo não alimenta. As cifras não saciam.<br />
Me lembro. Me lembro?<br />
Lembro-me mal, admito às tontas. Me equivoquei<br />
Vem uma menina ao longe. Dou-lhe minhas costas<br />
Me esqueço da razão e do tempo.<br />
E tudo deve ser mentira<br />
porque não estou no lugar de minha alma.<br />
Não me queixo da maneira certa.<br />
Estou farto da poesia.<br />
Fecho a porta.<br />
urino tristemente sobre o miserável fogo da graça.<br />
— Os meninos vão para a cama com fome.<br />
— Os velhos vão morrer de fome.<br />
As palavras não alimentam.<br />
As notas não saciam.<br />
— O homem é um estranho animal.<br />
por Antônio Perin<br />
15
<strong>Chicos</strong><br />
Ronaldo Werneck<br />
Nasceu em Cataguases, onde mora atualmente. Poeta<br />
e jornalista, colaborou em vários jornais e revistas<br />
cariocas. Publicou entre outros os livros: Poesia -<br />
Selva Selvaggia (1976), Pomba Poema (1977), Minas<br />
em mim e o mar este trem azul (1999) Minerar o<br />
Branco (2008), Cataminas Pomba e outros Rios<br />
(2012) e O Mar de Outrora e Poemas de Agora<br />
(2014). Prosa - Há Controvérsias 1 (2009) , Há Controvérsias<br />
2 (2011), Rosário Fusco por Ronaldo Werneck/<br />
Sob o signo do imprevisto (2017) e o ensaio<br />
biográfico “Kiryrí Rendáua Toribóca Opé” Humberto<br />
Mauro Revisto por Ronaldo Werneck<br />
rosato nel caffè rosati<br />
no rosati<br />
un rosato<br />
penso eu<br />
enquanto<br />
nel caffè rosati<br />
e quando<br />
la bella-bellezza<br />
di una tazza di rosato<br />
sobre a mesa<br />
pasolini não veio<br />
nem moravia<br />
nem calvino<br />
nem fellini<br />
– nessuno<br />
só a trôpega<br />
turistidão<br />
de tontos<br />
hunos<br />
tantos<br />
Piazza del Popolo, Roma/12 de maio 2018<br />
16
<strong>Chicos</strong><br />
shangri-la<br />
para Patrícia<br />
mar<br />
mar<br />
mar de morros<br />
gerais<br />
verde<br />
verde<br />
ver de pastos<br />
gerais<br />
verdes morros<br />
mar de mundos<br />
gerais<br />
um pássaro pia<br />
longe-perto<br />
o céu amplia<br />
o azul<br />
daqui<br />
de cima<br />
do alto<br />
daqui<br />
o mundo<br />
esse mar de morros<br />
verde aveludado<br />
o pasto<br />
vacas vagueiam<br />
e mugem o beijaflor<br />
e seu ninho<br />
uma floresta<br />
vive atrás<br />
eucaliptos<br />
no alto<br />
palmeiras<br />
angicos<br />
lá embaixo<br />
a encosta<br />
em flor<br />
aqui<br />
a casa<br />
17
<strong>Chicos</strong><br />
que se faz<br />
que se ergue<br />
maritacas<br />
esvoaçam<br />
estridentes<br />
que faço<br />
que fizemos<br />
que pasto<br />
nesse mundo<br />
macio e sestroso?<br />
estamos aqui<br />
como nunca<br />
um sabiá<br />
um tico<br />
tico de sol<br />
que desce<br />
e some<br />
e se desvanece<br />
e se desvanecem<br />
as cores<br />
da encosta e ainda<br />
crescem<br />
angico<br />
espatodea<br />
pau-ferro<br />
braquiária<br />
o boi come<br />
o mundo some<br />
o dia<br />
desce-desaparece<br />
no alto<br />
nas costas<br />
do mar de morros<br />
e tudo<br />
parece<br />
18
<strong>Chicos</strong><br />
para sempre<br />
como para sempre<br />
essa voz<br />
a surgir de súbito<br />
viva voz de satchmo<br />
I see trees of green, red roses too.<br />
I see them bloom for me and you.<br />
And I think to myself<br />
words<br />
words<br />
a nos lembrar<br />
words<br />
agora e sempre<br />
What a wonderful world.<br />
Do Shangri-la em Cataguases, setembro 2018<br />
19
viajor<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Só sei que nada sei<br />
Sócrates<br />
se apreende uma cidade<br />
penso eu enquanto<br />
em firenze aguardo<br />
aguardo e aguardo<br />
o voo que não vem<br />
e vai e vamos pra barcelona<br />
é quando a jovem chinesa<br />
oferece seu lugar<br />
– grazie mille!<br />
é quando mais vecchio<br />
mais ainda mais vecchio<br />
que il é revendo que se aprende<br />
ponte vecchio<br />
me vejo<br />
já agora e aqui<br />
acima das nuvens<br />
no azul desatino<br />
viva il vino rosato<br />
faustino<br />
um tempranillo<br />
e as nuvens-nuvem<br />
o céu embaixo<br />
o céu em mim<br />
céu céu assim<br />
céu azul<br />
em mim<br />
tão perto do azul<br />
20
<strong>Chicos</strong><br />
da morte azul<br />
e do fim<br />
il vino mário<br />
faustino rosato<br />
asa decepada<br />
ave augusto<br />
azul o céu<br />
o céu azul<br />
se desprende<br />
se de repente<br />
e cai como<br />
já no aeropuerto<br />
di barcelona passos<br />
estrangeiros<br />
que se apressam<br />
apressados<br />
Bruselas Amsterdam<br />
Munich Moscu Tenerife<br />
Ginebra Madrid<br />
Casablanca Roma<br />
Paris Dubai Estambul<br />
Londres Ibiza Nantes<br />
Oran Sevilla<br />
Marrakech Argel<br />
Bilbao Granada<br />
pra onde eu vou<br />
enfim<br />
eu não sei<br />
que sei eu<br />
de mim<br />
Firenze-Barcelona, maio de 2018<br />
21
<strong>Chicos</strong><br />
Inez Andrade Paes<br />
Nasceu em Pemba (Moçambique), é autora de<br />
O Mar que Toca em Ti (Crônica de viagem -<br />
2002); Paredes Abertas ao Céu (Poesia - 2011);<br />
Libreto em três atos, consti-tuindo a Cantoriana<br />
Marítima - Acto I Mar falan-te, Acto II<br />
Transparente Luva de Água, Acto III Flores de<br />
Acanto em Marfileno Lençol ; D Estrada Vermelha<br />
(Poesia 2015); Da Eterna vontade (Poesia<br />
2015) : À Margem de Todos os Rostos (2017).<br />
Coordena desde 2012 o Prêmio Literário Glória<br />
de Sant”Anna.<br />
Ao maledicente<br />
quantas cobras se enrolam e desenrolam<br />
entre teus dentes?<br />
quantas vigas se preservam na tua estrutura<br />
quando inicias a construção<br />
partes do telhado<br />
não vês no solo a humidade que avança?<br />
enterra-te entre os futuros escombros<br />
dos espaços dos teus dentes<br />
quando os caibros deixam passar<br />
as mentiras saltam<br />
como migalhas<br />
nem os pássaros as querem<br />
22
Submissão<br />
<strong>Chicos</strong><br />
entre paredes abertas ao céu<br />
entre aspas de ódio e fel<br />
entre todos os sentidos<br />
amargos ácidos<br />
da miséria humana<br />
sabes que as paredes calam-se contigo<br />
porque amam iluminam<br />
no mais íntimo de ti<br />
são de pedra godo estuque cal<br />
e alguma areia de um mar qualquer<br />
lavada entre águas dos rios aonde correm<br />
ventres doridos e sangue<br />
partes não consentidas<br />
são as guerreiras<br />
dos matrimónios mal falados<br />
do respeito só de um lado<br />
julgando-se em reinados<br />
donos de mandatos desta vida<br />
labregos que não sabem acolher nobres<br />
de mãos calejadas de sombra e mágoa<br />
23
<strong>Chicos</strong><br />
das mãos pequenas que tens<br />
duas folhas de videira crescem para os lados<br />
na ponta a gota de chuva<br />
acompanha as dores do passado<br />
24
<strong>Chicos</strong><br />
Helen Massote<br />
Nasceu em Belo Horizonte (MG) e mora no<br />
Rio de Janeiro (RJ). Redatora, poeta e cronista<br />
trabalha no Portal Fiocruz.<br />
Balada do corpo solar<br />
Em tempos de maturação<br />
O mar vai tomando corpo<br />
E cola na pele uma<br />
Certa salinidade<br />
Papel de seda que<br />
Se agrega e adere<br />
Para que a luz nos<br />
Extremos do sol<br />
Seja mais suave<br />
Nas pontas do verão.<br />
25
<strong>Chicos</strong><br />
Jorge Prata<br />
Nasceu em Cataguases (MG). É historiador,<br />
professor e poeta.<br />
“ Escrevo pouco porque creio que poesia é puro<br />
pensamento, às vezes, ela toma corpo em<br />
palavras e as palavras são poucas. Metade delas<br />
é nada.”<br />
O OLEIRO n° 1<br />
O oleiro molda o tempo<br />
a mão movimenta<br />
a respiração flui<br />
e dentro do que molda<br />
o universo.<br />
O oleiro molda o silencioso<br />
oco e vago<br />
mas, se dou-lhe vida,<br />
grito, assovio ou gemido<br />
o universo<br />
nem oco e nem vago<br />
respira, soa e vibra<br />
O oleiro molda com o que fora vida,<br />
Feito pó poeira<br />
a própria vida.<br />
26
<strong>Chicos</strong><br />
O OLEIRO n° 2<br />
A vida mesmo, quando bem vivida<br />
dela, restos sobram.<br />
Às vezes, como esquecidos ou perdidos<br />
uns cacos - detalhes esquecidos na trilha.<br />
E quando tudo se ajunta<br />
recompõe o que, vida, um dia fora.<br />
E o que sobra, o olho do oleiro não estranha.<br />
27
<strong>Chicos</strong><br />
O OLEIRO n° 3<br />
(O tempo presente esvai-se em fatias de tempo, soterrado e<br />
compactado. O tempo presente esvai-se até ser tempo antigo,<br />
relíquia, antiquário, tempo perdido. Um sopro, um vento<br />
desencobre o pó sobreposto no tempo. O trabalho do oleiro<br />
ressurge).<br />
28
<strong>Chicos</strong><br />
O OLEIRO n° 4<br />
O olho do olheiro<br />
vê o todo disperso.<br />
Vê o ôvo, o vôo, o lôdo.<br />
Vê o todo despedaçado até<br />
onde e quando o todo é pó.<br />
O oleiro junta o todo disperso em um só todo.<br />
Que é tudo o começo.<br />
29
<strong>Chicos</strong><br />
Gisela Gracias<br />
Ramos Rosa<br />
Nasceu em Maputo (Moçambique). O seu primeiro<br />
livro foi um diálogo de poesia com António Ramos<br />
Rosa, Vasos Comunicantes (publicado em 2006).<br />
Colaborou em várias Antologias e Revistas de poesia.<br />
Publicou também entre outros As palavras<br />
mais simples (2014) , O livro das mãos (2017) e A<br />
pedra e o corpo (2018)<br />
Provocação<br />
Atravessamos o abismo da página em branco<br />
compondo manchas com as mãos<br />
libertamos o barro maleável em ciente transgressão<br />
longe dos sinónimos homónimos antónimos parónimos<br />
numa leve formação desafiamos o inaudito esboço<br />
o risco desalinhado que provoca a palavra alta<br />
a mais vazia a que inaugura o espaço e as mãos<br />
desabrigando o sentido da composição.<br />
30
<strong>Chicos</strong><br />
A Ronaldo Cagiano e Eltânia André<br />
A palavra<br />
espelho truncado da verdade<br />
verso da percepção em qualquer mão<br />
ramo fecundo fundido na derme do poeta<br />
lava grito na boca, trago de um vinho abandonado<br />
pela sede de um verso transparente que se une<br />
à pedra, à parábola que sedimenta a casa.<br />
De A pedra e o corpo (2018)<br />
31
<strong>Chicos</strong><br />
Acir Simões<br />
Acir Simões, nasceu em Cataguases (MG), mora<br />
em Belo Horizonte (MG). É poeta e contista<br />
A palavra é concreta<br />
É preciso esculpir<br />
A palavra-pedra.<br />
Do pó que sobra,<br />
Se moldado,<br />
Outras surgem,<br />
Num círculo eterno.<br />
A palavra é concreta;<br />
O Verso, abstrato.<br />
O anverso vai ao vento.<br />
A Poesia é etérea.<br />
32
<strong>Chicos</strong><br />
Sobre gatos, gordinis e acordeons<br />
O cego Everaldo era acordeonista.<br />
Enchia a mormacenta<br />
Tarde de verão com acordes<br />
Tristes e monótonos.<br />
Todos os sons eram para Doralice,<br />
Que todavia se entretinha com seus gatos,<br />
E se enroscava com o namorado,<br />
Vindo de outra planície.<br />
Não podia competir<br />
Seus acordes melancólicos<br />
Com o ronco diabólico do motor<br />
Do “Gordini” do namorado de Doralice.<br />
Assim sofria o cego Everaldo.<br />
E seu cantar<br />
Era a cada verão mais triste.<br />
Nós meninos, amávamos a todos:<br />
Os gatos, o Gordini e sobretudo o Acordeon.<br />
33
Caracóis<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Um caracol escutando o silêncio.<br />
Uns vermes devorando<br />
Um besouro.<br />
Lá longe muge um touro.<br />
Uma vaca surda amamenta<br />
Seu filhote,<br />
Que brinca que é forte.<br />
Eu sentado na sombra de uma mangueira<br />
Escutando o silêncio que escuta o caracol.<br />
Será o mesmo?<br />
E o verme que saciará sua fome com as minhas carnes<br />
Será o mesmo?<br />
O bezerro um dia.<br />
Lá longe mugirá adulto,<br />
Perto do abate.<br />
E seus gritos abafarão<br />
Silêncio que escuta um caracol.<br />
34
<strong>Chicos</strong><br />
Flausina Márcia<br />
Nasceu em Cataguases (MG) e mora em Belo<br />
Horizonte (MG) onde trabalhou na Secretaria<br />
de Cultura de Minas Gerais.<br />
Publicou entre outros: Vagalume (2002), Sua<br />
Casa Minha Cruz (2003) e Poemas Declives<br />
(2014).<br />
Hoje é tempo outro<br />
não passaram pássaros<br />
de estações mudadas<br />
Hoje teve lua, áspera<br />
inundada de nuvens<br />
muito avermelhadas<br />
Hoje é céu de maio<br />
no fim, mas azuuuul<br />
abóboda, manto , saia<br />
Hoje divinizei-me<br />
estou fora do tempo<br />
no espaço sou meme<br />
Hoje verdaderei<br />
para todo o sempre<br />
eu não sou deus!<br />
35
Meu limão meu limoeiro...<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Cataguases<br />
Pátria amada<br />
jogo de queimada<br />
picolé de limão em<br />
forma de empada<br />
Cataguases<br />
espinho do limoeiro<br />
palito do empadado<br />
tudo pomba e pataca<br />
oitizeiros, magnólias<br />
calor endemonhado<br />
Cataguases<br />
Enchentes, que haja reza<br />
Vazantes, que haja verde<br />
Avemaria dos pássaros.<br />
Doidinhos de estimação!<br />
36
<strong>Chicos</strong><br />
Alberto Pereira<br />
Alberto Pereira nasceu em Lisboa. É membro<br />
do PEN Clube Português. Publicou: O áspero<br />
hálito do amanhã (2008), Amanhecem nas rugas<br />
precipícios (2011), Poemas com Alzheimer<br />
(2013), O Deus que matava poemas<br />
(2015), Biografia das primeiras coisas<br />
(2016), Viagem à demência dos pássaros<br />
(2017). Em 2017, foi editado no Brasil Bairro<br />
de Lata, na coleção Dulcineia Catadora. Entre<br />
vários prêmios em 2018 Menção Honrosa no<br />
Prémio Internacional de Poesia Glória de<br />
Sant´Anna.<br />
I<br />
Para Ruy Belo<br />
Era uma idade de lâmpadas interiores.<br />
Sobre os andaimes do espanto,<br />
um pomar absoluto de vulcões,<br />
salmos e acácias.<br />
Havia Deus na geografia da candura<br />
e nenhum céu forrado<br />
com mil graus centígrados<br />
de vocação maligna.<br />
Havia um país de teares<br />
na febre dos gestos<br />
37
<strong>Chicos</strong><br />
e, sobre as lajes da boca,<br />
aves acesas.<br />
Era um tempo<br />
de fulminantes geometrias<br />
no alpendre das pálpebras<br />
e os rostos,<br />
harpas a prumo.<br />
O sangue ganhava barcos<br />
quando os pais diziam:<br />
és tu quem está nos começos do mar<br />
e as nossas palavras vão molhar-te os pés.<br />
Nas virilhas de Agosto<br />
os miúdos despejavam com seus baldes<br />
pianos no crepúsculo.<br />
As ondas, teclas costeiras,<br />
embebedando de sal<br />
a benignidade das quilhas.<br />
Havia o ciclo dos medos<br />
e no longo corrimão da noite,<br />
as mães,<br />
remando coreografias com gume.<br />
38
<strong>Chicos</strong><br />
Vi a idade curvar-se para dentro da lepra.<br />
Ficou para trás o preâmbulo do assombro.<br />
Cresceram nos ombros<br />
os terríficos aquedutos do labor<br />
e o amianto fundou<br />
a assimetria dos homens potáveis.<br />
A infância,<br />
branco Poema em brasa.<br />
39
<strong>Chicos</strong><br />
Ronaldo Cagiano<br />
Nascido em Cataguases, autor, dentre outros,<br />
de Dezembro indigesto (Contos, Prêmio Brasília<br />
de Produção Literária 2001), O sol nas feridas<br />
(Poesia, Finalista do Prêmio Portugal Telecom<br />
2012) e Eles não moram mais aqui<br />
(Contos, Prêmio Jabuti 2016), vive atualmente<br />
em Portugal.<br />
Viver: Rio litigioso<br />
A vida é uma forma de estupidez!<br />
Fernando Cesário em Alma de violino<br />
Na há metáfora possível<br />
No cativeiro da fé<br />
A ruminação das enfermidades,<br />
a obstinação das guerras,<br />
o fetiche do deus mercado,<br />
a trânsfuga certeza das verdades,<br />
o litígio da favela<br />
os maxilares da violência<br />
a cegueira dos rebanhos<br />
a tara alucinógena dos evangélicos<br />
a vassalagem da globalização.<br />
40
Na contumácia da mentira<br />
<strong>Chicos</strong><br />
residem a inexatidão da vida,<br />
a persuasão da morte.<br />
Nas vísceras do pranto<br />
a denuncia do que não sabemos.<br />
Minha vida só reconhece<br />
o matraquear das duvidas<br />
e sua rumorosa oficina de desacertos.<br />
Pastores avançam pelas praças<br />
erguendo templos, passando as burras<br />
com a mesma voracidade dos vermes<br />
com a trágica energia<br />
dos sucos gástricos<br />
excrementando<br />
a última refeição.<br />
Nem por isso a vida se torna melhor,<br />
nem por isso os homens se desanimalizam,<br />
nem por isso evitamos Columbine ou Carandiru<br />
porque essa fé não beatifica,<br />
senão bestifica e aliena<br />
Porque cevada no vazio<br />
na falsa panaceia<br />
que tropeça na falácia,<br />
41
<strong>Chicos</strong><br />
que trapaça na audácia<br />
de um deus onisciente e autoritário,<br />
mas duvidoso<br />
e impotente.<br />
E a consciência esquelética,<br />
esse ventre povoado de besouros<br />
na pele do homem em sua solidão vertical,<br />
sucumbe às neves do Kilimanjaro<br />
e arde<br />
como o sol nas feridas.<br />
42
Luiz Ruffato<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Nasceu em Cataguases MG, reside em<br />
São Paulo SP. Entre tantas obras de sua autoria<br />
destacam-se: Eles eram muitos cavalos,<br />
de 2001, ganhou o Troféu APCA oferecido<br />
pela Associação Paulista de Críticos de Arte e<br />
o Prêmio Machado de Assis da Fundação<br />
Biblioteca Nacional. Esse livro o tornou<br />
um escritor reconhecido no país. Em 2011<br />
concluiu o projeto Inferno Provisório, com a<br />
publicação do romance Domingos Sem Deus,<br />
iniciado com Mamma, son tanto Felice em<br />
2005, composto por cinco livros sobre o operariado<br />
brasileiro.<br />
O verão tardio<br />
Marcim Fonseca... Vou procurar o Marcim Fonseca!<br />
Será que lembra de mim? Nunca imaginei<br />
o Marcim Fonseca envolvido com política.<br />
Estivemos na casa dele uma vez por causa do<br />
trabalho sobre a Revolução Francesa pedido<br />
pela Malu. Marcim morava na Vila Minalda. O<br />
pai tecelão, o irmão mais velho tecelão, a irmã<br />
tecelã. A mãe, baixinha, tímida, óculos fundode-garrafa,<br />
olhos tristíssimos, nos recebeu com<br />
uma jarra de refresco de framboesa com pedras<br />
de gelo, igual à ilustração que aparecia<br />
nos pacotinhos de Q-Suco, e uma cestinha de<br />
bambu, coberta por um pano de prato com<br />
duas galinhas bordadas, cheia de bolinhos-dechuva.<br />
Marcim mostrava-se visivelmente incomodado.<br />
Com a pequenez da sala, com os rasgos<br />
na napa do sofá, com os retratos empoeirados<br />
na parede, com a folha de plástico colorido<br />
cobrindo a tela da televisão, com o descaramento<br />
dos dois gatos que se esfregavam nas<br />
nossas pernas miando, com a música alta que<br />
reboava do rádio da casa vizinha, com a irmã<br />
caçula que desfilava suas coxas aos nossos<br />
olhos lascivos, com a gulodice com que o Graciano<br />
e eu atacamos os bolinhos-de-chuva e o<br />
quissuco. Durante as pouco mais de duas horas,<br />
Marcim manteve-se emburrado, impaciente<br />
para que terminássemos logo, desgostoso<br />
por ter consentido em nos receber naquele correio<br />
de casas geminadas, tão perto do rio que,<br />
da poltrona onde estava sentado, eu conseguia<br />
ver através da janela as águas mansas correndo<br />
além das goiabeiras raquíticas do quintalzinho,<br />
numa das quais, amarrado, um vira-lata amarelo-encardido<br />
balançava o rabo e as orelhas,<br />
jururu, espantando as moscas. Não pusemos<br />
mais os pés lá. Nossos encontros passaram a<br />
ocorrer ou na biblioteca do colégio ou na minha<br />
casa — na do Graciano, nunca, devia ter<br />
vergonha de nós, o pai dele dono de um posto<br />
de gasolina. A mãe estimava o Marcim, mas<br />
ela não desagradava de ninguém. O pai, no entanto,<br />
turrão, falava que o Marcim tinha olhos<br />
manhosos — e talvez, mais que todos, fosse<br />
ele o sensato. Quem pensei que pudesse se<br />
interessar por política era o Cesinha. Cesinha<br />
tinha sido colega da Lígia, um ano a mais que<br />
eu. Estava no terceiro científico quando uniu<br />
ao Aladim, professor de química, para editar<br />
um jornalzinho. Aladim era apelido, todos<br />
chamavam ele assim porque usava truques<br />
de mágica para ensinar a matéria. Simpático,<br />
43
<strong>Chicos</strong><br />
cabelos pretos encaracolados caídos nos ombros,<br />
contava piadas engraçadas, tocava guitarra<br />
no The Revolution Band, conjunto que<br />
imitava os Beatles, provocava suspiros no mulherio,<br />
embora muitos alegassem que ele era<br />
veado. O professor Aladim, Cesinha e mais<br />
dois ou três alunos espalharam cartolinas coloridas<br />
no colégio anunciando, em breve, a chegada<br />
de O Intrépido. Numa manhã de agosto,<br />
logo depois das férias, eles se posicionaram no<br />
portão de entrada para distribuir o jornalzinho,<br />
papel-ofício datilografado em estêncil e<br />
rodado em mimeógrafo a álcool. Mal começaram<br />
a entregar os exemplares, surgiram o Zé<br />
Leal e o Zé Adão, bedéis cupinchas do professor<br />
Carvalho Sá, que com truculência confiscaram<br />
O Intrépido e tacaram fogo ali mesmo,<br />
causando um princípio de tumulto, logo debelado.<br />
Disseram que o jornal pregava o naturismo,<br />
o vegetarianismo, a legalização da maconha<br />
e o amor livre, o que já seria motivo suficiente<br />
para despertar a fúria do professor Carvalho<br />
Sá — mas a gota d’água teria sido uma<br />
charge, feita pelo Cesinha, na qual o professor<br />
aparecia, cabeça enorme em corpo diminuto,<br />
sentado na beira da cama, apenas de cueca, a<br />
cara assustada, com a legenda: Meu deus, onde<br />
eu ‘tava com a cabeça? Naquele dia, o professor<br />
Aladim já não deu aulas e na semana<br />
seguinte o Arruda, professor-substituto, avisou<br />
que ele havia mudado para o Rio de Janeiro,<br />
em busca de novos desafios profissionais.<br />
Não ouvi mais falar do professor Aladim. Cesinha<br />
recebeu suspensão de uma semana e a<br />
mãe dele, a dona Alice, foi vista saindo da sala<br />
do diretor, o professor Guaraciaba dos Reis,<br />
chorando. A vida dela era chorar. Chorava,<br />
chorava, chorava, sem entender por que perseguiam<br />
o seu Vevé, que assim ela chamava o<br />
marido, homem bom, trabalhador, que só queria<br />
o bem das pessoas, como Jesus Cristo, ela<br />
o comparava a Jesus Cristo... Dona Alice não<br />
compreendia porque as pessoas condenavam<br />
seu Venâncio por ser comunista, se ser comunista,<br />
na visão dela, era a mesma coisa que ser<br />
católico, só que sem padre e sem missa. Naquela<br />
época, o marido andava preso na Penitenciária<br />
de Linhares, em Juiz de Fora. Quando<br />
voltou, alguns anos mais tarde, houve peregrinação<br />
à casa deles, três ruas antes da nossa,<br />
porque, apesar de tudo, dona Alice e o seu<br />
Vevé eram queridos da vizinhança. Causou comoção<br />
o estado em que ele reapareceu: magríssimo,<br />
cego de um olho, vários dentes faltando<br />
e tremores nas mãos. Seu Venâncio nunca<br />
mais conseguiu trabalho, passou o pouco<br />
tempo que restava com medo de sair do quarto,<br />
desperto, de todos desconfiado, mijando<br />
sangue e recusando tratamento, como lamentava<br />
a dona Alice quando encontrava a mãe<br />
varrendo o passeio, Uma desgraça, dona Stella,<br />
uma desgraça. O professor Guaraciaba dos<br />
Reis lembrou à dona Alice que, da próxima<br />
vez, se houvesse próxima vez, teria que expulsar<br />
o Cesinha do colégio, Já pensou a tragédia,<br />
dona Stella?!, e ela, desesperada, não bastasse<br />
o seu Vevé, lá longe, preso que nem bicho, e<br />
agora o Júlio César, minha nossa senhora, o<br />
que vai ser deste menino?!<br />
(...)<br />
Em frente ao prédio da Prefeitura, um cachorro<br />
preto, de pelagem lustrosa, abana o rabo. Subo<br />
lentamente a escadaria, penetro no salão.<br />
Um segurança, alto e forte, me intercepta,<br />
“Posso ajudar?”, pergunta, ríspido. Digo,<br />
“Bom dia”, ele se perturba, e, desconcertado,<br />
responde, “Bom dia. O senhor deseja...”, “...<br />
falar com o prefeito”, completo. “O senhor tem<br />
audiência marcada?”. “Não... Sou amigo... Vim<br />
de São Paulo... Só queria dar um oi...”. O segurança<br />
coça a cabeça, me conduz a uma mesa<br />
com dois telefones brancos, caderno escolar e<br />
conjunto de acrílico fosco, porta-canetas e<br />
porta-clipes, “Espere aqui”. Ele atravessa perpendicularmente<br />
o salão e entra numa porta<br />
lateral. De pé, observo os móveis — duas poltronas<br />
puídas, uma mesinha-de-centro, algumas<br />
revistas empilhadas num cesto — e a larga<br />
escada de madeira escura que leva ao segundo<br />
andar, ao Gabinete do Prefeito. Aguardo<br />
paciente, o silêncio só turvado pela gargalhada<br />
feminina que nasce da toca onde o segurança<br />
se meteu. Sem pressa, caminho até a<br />
porta entreaberta, empurro e deparo com um<br />
44
<strong>Chicos</strong><br />
cubículo apertado, muito limpo. O segurança e<br />
duas mulheres, uma jovem, outra mais velha,<br />
me olham, espantados. Digo, “Bom dia”, e o<br />
segurança fala, “É esse, Michele”. Michele deve<br />
ter vinte e poucos anos. Muito bonita, cabelos<br />
pretos, lisos, escorridos. “O senhor é<br />
amigo do prefeito?”. Quem pergunta, debochada,<br />
é a mulher baixinha, magra, bermuda,<br />
camiseta sem mangas, sandálias de dedo, fios<br />
de cabelos brancos fugindo da touca higiênica<br />
— com certeza, a dona da risada gostosa.<br />
“Bem”, digo, “conheci ele quando tínhamos<br />
uns dezesseis anos. Depois disso, nos afastamos...”.<br />
“Ah”, ela murmura, como se tivesse<br />
ganhado uma aposta. “O prefeito não recebe<br />
ninguém fora da agenda”, Michele avisa, sisuda.<br />
“Eu falei”, o segurança como que se desculpa<br />
com ela. “O senhor já tomou café?”, a<br />
mais velha pergunta. “Já, acabei de passar naquela<br />
padaria, ali perto da ponte velha”. O segurança<br />
enfia um pedaço de broa de fubá na<br />
boca e engole o resto do café. “Que pena”, a<br />
mulher diz, “Não vai poder comer a broa da<br />
Michele”, conclui, maliciosa, fazendo a colega<br />
corar. O segurança contém o riso. “Então, quer<br />
dizer que o senhor é amigo do prefeito...”, a<br />
mulher mais velha repete. “Ele é um bom prefeito?”,<br />
pergunto. “Ô, meu senhor, somos gente<br />
humilde”, gargalha. O segurança deposita o<br />
copo vazio na pia e se vai. “O senhor é daqui<br />
mesmo?”, ela continua. Michele tem as unhas<br />
pintadas de vermelho, segura a xícara com o<br />
dedo mindinho levantado. “Sou, mas moro há<br />
muitos anos fora, em São Paulo”. “Mas sua família<br />
é daqui...”. “É... a minha irmã, a Rosana,<br />
é diretora de escola... E a minha mãe era costureira...<br />
no Beira-Rio...”. “Ah, fui nascida e criada<br />
no lado de cá do rio. Matadouro, Pampulha,<br />
não sei se conhece”. “Claro que conheço. Gostava<br />
de ir de bicicleta até lá. Era o fim da cidade.<br />
Dali pra frente não havia mais nada...”.<br />
“Michele”, ela diz, “Será que a dona Iara não<br />
arruma um encaixe não?”. “Ih, lá vem a senhora,<br />
dona Ivete! Eu, heim! Não é assim também<br />
não!”. Michele coloca a xícara na pia e sai,<br />
zangada. Dona Ivete cochicha, travessa: “O<br />
prefeito entra pelos fundos. Umas sete, sete e<br />
meia... Fica lá acoitando ele...”. Sorrio em<br />
agradecimento e me despeço. Ela liga o radinho<br />
de pilha, abre a torneira e, cantarolando,<br />
começa a lavar as vasilhas. Aproximo da Michele.<br />
“Será que posso deixar um recado pro<br />
Marcim?”. Ela está arrimada por detrás da mesa.<br />
Sem responder, pega um bloco de papel na<br />
gaveta, uma caneta no conjunto de acrílico,<br />
“Anota aí que eu passo pra dona Iara. Ela que<br />
tem contato com o prefeito. Eu sou só recepcionista”.<br />
Rabisco um bilhete: “Como vai Marcim?<br />
Sou o Peninha, seu amigo de infância,<br />
queria ver se podíamos nos encontrar para dar<br />
um alô. Volto aqui amanhã de novo”. Dobro o<br />
papel duas vezes, devolvo para a Michele. “Se<br />
você passar por ele, fala que o Peninha esteve<br />
aqui. Peninha sou eu. Não é nome não, é apelido,<br />
porque pelo nome mesmo, Oséias, ele não<br />
vai saber quem é. Ao menos, com o apelido...”.<br />
Michele diz, “É, quem sabe”, e atende o telefone,<br />
“Bom dia, Prefeitura de Cataguases!”. Ando<br />
na direção da porta, despeço do segurança,<br />
desço as escadarias. Assim que me vê, o cachorro<br />
preto acerca-se, o rabo abanando. Faço<br />
festas para ele, afago sua cabeça, cruzo a rua.<br />
Este trecho é parte do romance<br />
O verão tardio<br />
lançado pela Companhia das Letras.<br />
45
<strong>Chicos</strong><br />
Cunha de Leiradella<br />
Nasceu em Póvoa de Lanhoso, Braga Portugal.<br />
Após residir por mais de 40 anos no Brasil voltou<br />
a morar em Portugal. A sua obra literária<br />
reparte-se por vários géneros, como o teatro,<br />
os contos e o romance. Residiu em Belo Horizonte<br />
(MG) de 1980 a 2003, onde, em 1985,<br />
fundou e presidiu o Sindicato dos Escritores do<br />
Estado de Minas Gerais.<br />
Consequência imprevista de alguém seriado<br />
Ontem, a merda de um dos elevadores<br />
do Acaiaca enguiçou. E bem no meio de dois<br />
andares. Tava todo mundo descendo pra almoçar<br />
e a porra tava mais cheia do que saco de juiz de<br />
futebol. Mas tava tudo joia, descendo legal, sabe<br />
como? Só que, de repente, ó, a porra dá um<br />
tranco e quem diz que mexe? Mexe nada. O<br />
Eduardo, meu xará, é que tava naquele turno.<br />
Gente fina, só de cabineiro daquele carro já tem<br />
pra mais de ano, e já tá habituado. Vira e mexe,<br />
aquela porra tá enguiçando. Mas, mesmo assim,<br />
o xará ficou puto. E eu não tiro a razão dele,<br />
não. Quem que gosta de ser aporrinhado? Mas o<br />
xará até que foi maneiro. Quem que apertou a<br />
emergência? Ninguém tinha apertado a porra da<br />
emergência, aquela merda enguiça à toa, todo<br />
mundo sabe. Só que, quando o xará perguntou,<br />
quem que apertou a emergência?, foi aquela<br />
merda. Logo, logo, todo mundo olhou pra mim.<br />
Toda vez que tem pepino na porra daquele edifício,<br />
é sempre a mesma merda. Todo mundo diz<br />
logo que sou eu. Mas eu sei por quê que nego<br />
fala isso. É porque eu não sou chefe, sou boy.<br />
Se fosse chefe podia era torrar todo mundo que<br />
ninguém falava nada. Que nem o puto do meu<br />
chefe, que fode todo mundo e, ó, todo mundo<br />
lambendo a bunda dele, numa boa, senão já viu,<br />
sifu. Ah, mas eu não tou nem aí, foda-se. Pro<br />
que o filho da puta me paga, não merece nem a<br />
metade do que eu faço. E olha que eu só faço,<br />
porque comigo é ali na chincha, na moral, senão<br />
fazia era o cacete. Por isso, é que fiquei puto<br />
quando o xará me encarou, sabe como? Mas<br />
não adiantou ele encarar, não, que eu também<br />
encarei. E encarei firme. Firme mesmo. Cara<br />
feia, pra mim, sempre foi cu de mico. E, além<br />
do mais, desta vez, eu não tava nem perto da<br />
porra do painel. Por isso, encarei firme, até que<br />
ele se mancou e deixou eu. Cara, se tem porra<br />
que me torra é nego vir pra cima de mim sem<br />
moral. Torra mesmo. E o xará sabe disso. E tanto<br />
sabe, que se virou pro outro lado e, ó, não era<br />
nem mais com ele, só mexe que mexe na porra<br />
dos botões e o pessoal, olha que olha, se cagando.<br />
Mas a porra não desenguiçava, nem por um<br />
cacete, e, aí, uma dona gordona, com um par de<br />
mamas maior do que a bunda da Marilene, se<br />
cagou. Não vai andar, não, moço? Tava bem na<br />
minha frente e o suor escorria no rego dos mamões,<br />
que nem quando a Marilene me pede pra<br />
46
<strong>Chicos</strong><br />
mijar na bunda dela, sabe como? E a gordona<br />
se cagando, e aqueles mamões ali, treme que<br />
treme, bem na minha frente. Cara, vou te contar,<br />
fiquei dum jeito, doidão mesmo, sabe como? E a<br />
gordona, ó, só naquela de tremedeira. Moço,<br />
moço. Mas o xará, não era nem com ele. Larga<br />
de apertar a merda dos botões e encosta na porra<br />
do painel. É. Enguiçou mesmo. E a gordona<br />
treme que treme. E agora, moço? A voz tremia<br />
igual às mamas e eu já tava que tava. Sou vidrado<br />
em mamas, daquelas grandes, que a gente<br />
aperta e sobra tudo, sabe como? Marilene fica<br />
puta, não tem mesmo. Mas o que salva, é que<br />
ela gosta de ser comida daquele jeito e, aí, sabe<br />
como é que é, a bunda salva a pátria. Mas, aí, a<br />
gordona dana de mexer e as mamas, já viu, naquela<br />
de mexe que mexe, cola firme no meu<br />
braço. Cara, foi a conta. O pau ficou daquele<br />
jeito e eu ali, sabe como? A porra é que todo<br />
mundo tava vendo e, aí, sabe como é que é, eu<br />
tive que manerar. Mas a gordona tava que tava.<br />
Moço, moço, pelo amor de Deus. Cagava de<br />
medo e o meu braço, ó, cada vez mais metido<br />
naquele rego. Cara, que bunda de Marilene, que<br />
nada. Mil vezes aquelas mamas, feito que nem<br />
geleia, puta que pariu. E, aí, não deu mais pra<br />
manerar. Deixei o pau rolar e dei uma geral. Todo<br />
mundo enfiado, que nem bacana flagrado<br />
chupando pau de michê dentro do carro. E tinha<br />
um do outro lado, já mais pra lá do que pra cá,<br />
gravatinha daquelas, sabe como? Daqueles que<br />
bota moral até na mãe, mas na hora do vamos<br />
ver, adora é cacetão. Conheço o jeitão desse gado,<br />
cara. Por isso que falo. E o coisinha, pra lá<br />
de machão, não é que vai e mete os peitos, o<br />
merdinha? O senhor não pode verificar o defeito,<br />
não? Cara, o xará pulou feito pipoca. O defeito?<br />
Aí, o vaselina, não teve jeito, derreteu.<br />
Será que não haveria um jeitinho... Mas o xará<br />
não deu nem bola. Mas que jeito? Não tá vendo<br />
que o jeito é abrir a porta, pô? Aí, cara, a gordona<br />
danou-se. Joga o corpão todo pra cima de<br />
mim e abre as pernas, e, ó, foi aquele barulhão.<br />
Mas peidão mesmo, cara, que saiu até zoando.<br />
Moço, pelo amor de Deus, abre logo. Aí, cara, o<br />
xará, não teve como. Engrossou mesmo. Abre<br />
como, dona? Não tá vendo que esta merda enguiçou,<br />
não? E vê se toma jeito, viu?, que isto<br />
aqui não é privada, não. Dava até pena, meu<br />
irmão. A gordona enfiou e eu, mas quê que eu<br />
podia fazer, hem? Só aproveitar, é ou não é?<br />
Lasco o pau no coxame e as mãos por baixo do<br />
braçal, e mandei ver, foda-se. Mas, aí, o xará<br />
melou tudo. Olha aí, gente. O jeito, agora, é esperar<br />
os bombeiros, viu? Aquela porra tinha ventilador,<br />
mas o fedor do peidão, vou te contar,<br />
fodia tudo. E o pessoal suava, que suava, melecado<br />
feito que nem porra. Mas eu tava na minha<br />
e fiquei, sabe como? Mandando ver nas mamas<br />
da gordona, me esbaldando. Mas aí, uma moça<br />
magrinha, que eu conhecia lá do meu andar, resolveu<br />
dar uma de gostosa. E como é que chama<br />
os bombeiros? Cara, não teve jeito, o xará descabelou.<br />
Descabelou mesmo. Como é que chama?<br />
Ora, dona, chamando, qual que é? Cara, a<br />
magrinha era só osso, mas era carne de pescoço,<br />
sabe como? E quem que vai chamar? Você? Aí,<br />
cara, o xará nadou de peito. Qual que é, dona?<br />
Tá me estranhando, é? Quem que vai chamar é a<br />
portaria. Ou tá pensando que isto nunca aconteceu?<br />
Nós tamo no Brasil, dona, não tamo... Se<br />
fosse eu, sabe o quê que eu falava? Nós tamo é<br />
na puta que a pariu, viu, dona? Mas o xará, vai<br />
ver, precisa daquela porra, e já viu, deixou pra<br />
lá. E foi aí que a D. Dores resolveu entrar na<br />
dança. A D. Dores é a secretária do meu chefe,<br />
conheço ela, ó, pior do que tricha malcomida.<br />
Mesmo quando pegaram ela chupando o pau do<br />
chefe, lá no gabinete dele, nem aí ela tremeu.<br />
Diz que botou a pica dele na braguilha, como se<br />
não fosse nem com ela, e botou todo mundo pra<br />
rodar. Numa boa. D. Dores é foda, cara. Se ti-<br />
47
<strong>Chicos</strong><br />
vesse pica seria macho, isso eu garanto, porque<br />
culhão, cara, ela tem mesmo, viu? E, vou te contar,<br />
quando ela olhou pro xará, cara, ela já tava<br />
era bufando. O senhor veja como fala. Aqui não<br />
tem gente da sua laia, não. Ah, mas o xará matou<br />
no peito. Matou mesmo, cara. Ah, D. Dores,<br />
não enche, tá? Não enche, não, que senão... Cara,<br />
do jeito que o xará olhou a pirua, tenho certeza<br />
que tava lembrando direitinho ela chupando<br />
o pau do chefe. Ah, tava. Todo mundo no Acaiaca<br />
sabia da porra da chupada, cara. E teve gente<br />
bateu punheta, ó... Até eu. E foi aí, cara, que<br />
um bostinha, cabelinho daquele jeito e voz fininha,<br />
sabe como? Foi aí que o putinha deu pra<br />
dar chilique, vê se pode. Este elevador é sempre<br />
assim, é? Aí, cara, o xará pulou a cerca. Às vezes,<br />
cai no poço. Por quê? Mas o merdinha não<br />
medrou, não. Encarou, cara. Perguntei com educação,<br />
viu? Aí, não deu. Até o xará teve que rir.<br />
Fica frio, cara. Desmunheca não, tá? Mas o merdinha<br />
tava que tava e mandou ver. Tava só perguntando,<br />
eu, hem? Falta de educação. Aí, cara,<br />
não teve jeito. O xará se queimou mesmo. E eu<br />
tava só respondendo, falou? Se manca. Se manca,<br />
vai. Cara, o xará engrossou tanto, que até a<br />
gordona se mancou. Não sei se eu tava pegando<br />
firme demais na mamoada ou se o pau tava machucando,<br />
sei lá, mas ela me olhou dum jeito,<br />
cara, que eu até pensei que ela ia era botar a<br />
boca no trombone. E fiquei na minha, sabe como?<br />
Se a gordona armasse berreiro ia ser aquela<br />
merda. Ah, ia. Ia mesmo, cara. Mas sabe o quê<br />
que a filha da puta faz? Só me encara e continua<br />
firmando a bunda no meu pau, vê se pode. E, aí,<br />
cara, aí eu liberei geral e deixei ela se esbaldar.<br />
E a filha da puta sabia como, sabe como? Pra<br />
não dar bandeira fingiu até que deu chilique.<br />
Moço, moço. Cara, eu não sabia nem se apertava<br />
ou se enfiava, e nem sei se o xará matou a<br />
jogada, tá entendendo? Mas que ele foi cem por<br />
cento, isso foi. Calma, dona. Calma, que dá. E<br />
vai que pisca pra mim, o filho da puta. E foi aí,<br />
meu irmão, que eu percebi que ele tava na minha,<br />
deu pra entender? Mas até estranhei. E estranhei,<br />
porque teve um tempo aí que a gente<br />
não se cruzou lá muito, não, sabe? Não foi por<br />
nada, não, mas eu bem que desconfiei que o filho<br />
da puta tava querendo era comer a Marilene.<br />
Mas manerou e coisa e tal, a Marilene me dizendo<br />
que eu tava era vendo chifre de boi em cabeça<br />
de cavalo, e o caso esfriou. E, de lá pra cá, a<br />
gente se respeita. A Marilene, cada dia, mais<br />
grudada e eu levando, sabe como? Por isso, estranhei<br />
aquela piscada do xará, tá entendendo?<br />
Mas como ele piscou e virou pro outro lado, deixei<br />
pra lá. O meu negócio não era esquentar à<br />
toa, não, era a gordona, sabe como? E deixei ela<br />
se esbaldar. E foi aí, cara, que a D. Dores pensou<br />
que ainda tava no gabinete do chefe, vê se<br />
pode. Este elevador não tem telefone, não? Cara,<br />
eu só queria que tu visse o xará. Mais puto<br />
do que um puto, tá entendendo? Claro que tem.<br />
Só que não funciona. Ou a senhora não sabe,<br />
hem? Mas a pirua, cadê que a pirua se calou?<br />
Calou nada. Mas isso é um absurdo. Cara, aí,<br />
danou tudo. O xará botou pra foder mesmo, sabe<br />
como? A senhora sabe o quê que é um absurdo,<br />
D. Dores? Olha que eu sei, e muita gente<br />
também sabe, tá bom? Cara, naquela hora, fissurei<br />
na porra do xará. Fissurei mesmo. Se tivesse<br />
filmado a porra da chupada, dava até uma cópia<br />
pra ele. Dava mesmo. O cara merecia, cara. Enfrentar<br />
um trem feito que nem a D. Dores não é<br />
mole, não. É troço paca. Mas que ela também já<br />
tava, ó... Depois das catucadas do xará e do calorão<br />
que fazia naquela porra, não era mais<br />
aquela, não. Já tava muito mais pra boi ladrão<br />
do que pra onça, sabe como? As pelancas borradas<br />
que nem cocô e a tal da piruca que parecia<br />
até pentelho de cachorro. Mas não era problema<br />
48
<strong>Chicos</strong><br />
meu, e, aí, larguei da pirua e mandei ver foi na<br />
gordona. Cara, vou te contar. A bunduda tava<br />
que tava. Bufa que bufa e a bunda lasca que lasca<br />
no meu pau. Cara, mais um sei lá o quê e eu,<br />
ó, fodia era a cueca. Não dava mais nem pra parar,<br />
sabe como? E tou eu no quase, quase, e não<br />
é que a filha da puta abre um berreiro do caralho<br />
e vai de tapa na cara dum coitado, que tava<br />
do lado dela, e fode tudo? Cara, tu conhece<br />
aquela estória do tal do elefante que comeu a<br />
formiguinha, troço doido pra caralho? Pois é. A<br />
gordona armou uma zorra que nem a porra da<br />
formiguinha, nunca vi. E foi aquela confusão,<br />
cara. Pisão, cotovelada, o caralho, sabe como? E<br />
o berreiro? Cara, só a gordona parecia que tava<br />
era gozando no cu e no caralho, puta que pariu.<br />
E, aí, não teve jeito. O xará teve que sair na moral<br />
mesmo. Senão virava zorra, sabe como? Porra,<br />
dona. Vê se cala a boca, puta merda. O xará,<br />
vou te contar, tava pior do que cabaço no cacete.<br />
E tava certo. Na hora da cobra fumar quem<br />
se fode é quem dá fogo. Na hora de D. Dores<br />
chupar o pau do chefe quem se fodeu foi D. Ló.<br />
E olha que D. Ló, coitada, já não via pica, ó, só<br />
a minha já fazia mais de ano. E tu sabe quem<br />
que fodeu ela? Seu Pedro, um escroto dum viado,<br />
peixinho da pirua, que falou que foi ela que<br />
inventou. Inventou nada, cara. Todo mundo viu<br />
foi a porra da chupada. Meu irmão, diz que<br />
Deus é grande e é mesmo, sabe como? O filho<br />
da puta tava ali na minha frente e tava, ó, fodidão<br />
mesmo. Que nem cu depois de peido, sabe<br />
como? Mas como tava do lado da filha da puta,<br />
deu pra dar uma de machão, vê se pode. O senhor<br />
tem que abrir essa porta. Tem senhoras<br />
aqui dentro. Cara, o xará encara o puto de um<br />
jeito, que eu até pensei que fosse matar ele, puta<br />
merda. E por quê que tu não vem abrir, hem,<br />
seu viado? Diz que, eu nunca vi, mas a Marilene<br />
é que diz que Seu Pedro andou chupando o xará,<br />
troço rapidinho, entra no banheiro, sai do<br />
banheiro, sabe como? E diz que ele não pagou e<br />
o xará ficou puto, e pegou ele. E diz que deu<br />
até, ó. Mas como o puto tava ali escorado na<br />
pirua, aí pensou que era hora de tirar a diferença,<br />
sabe como? Mas sifu, cara. Sifu. Sifu mesmo.<br />
Mas o mais gozado não foi só isso, não. O<br />
mais gozado foi aquele gravatinha, lembra dele?<br />
Aquele que perguntou pro xará se o xará não<br />
tinha jeito de dar um jeito, lembra, e o xará pulou<br />
em cima? Agora, vê se pode, o xará puto<br />
com o escroto do viado e vem o porra do gravatinha<br />
e mete bronca. Vê se pode, cara. Mais<br />
educação, viu? Não tá vendo que tem senhoras<br />
aqui dentro, não? Cara, o merdinha sapateava e<br />
ciscava que só vendo, vai ver, assim, ó, com o<br />
escroto do viado, comida dele, só pode, e o xará<br />
tá que tá, só olhando, sabe como? Aí, cara, o<br />
merdinha, vai ver, pensando que tá escorado no<br />
escroto, estufa os peitos e manda ver. O senhor<br />
sabe com quem está falando? Assim mesmo,<br />
cara, o senhor sabe com quem está falando? Cara,<br />
tu tinha que tá lá só pra ver. O xará passa a<br />
mão no colarinho do puto e, ó, não quer nem<br />
saber. Tou falando com um viado, e aí? Cara, tu<br />
tinha que tá lá mesmo, sabe? O merdinha dá<br />
uma de peitudo e vai pra cima do xará, mas não<br />
deu nem prá saída. Foi a mão do xará encostar<br />
nele e o porrinha cafunga que cafunga, que nem<br />
eu quando arrumo uma legal, sabe como? Cara,<br />
taí, gostei do xará. Todo mundo só querendo<br />
pisar firme e o cara, ó, segurando as pontas numa<br />
boa, só na moral mesmo. Era a gordona, era<br />
a pirua, era o escroto, era o gravatinha, todo<br />
mundo ali calado, ó, que nem cu de surubim.<br />
Mas, aí, o putinha, aquele que tinha dado chilique,<br />
lembra dele? Aquele do cabelinho daquele<br />
jeito, que tinha perguntado se aquela porra era<br />
sempre assim, sei lá o quê, e o xará mandou ele<br />
se mancar, lembra? Cara, que trem esquisito que<br />
49
<strong>Chicos</strong><br />
deu nele, puta que pariu. Sem mais nem menos,<br />
mete os pés na parede e empurra todo mundo, e<br />
pega de berrar que nem puta em camburão. Me<br />
deixa. Me deixa. Me larga, que eu abro... Abriu,<br />
porra nenhuma. Desmilinguiu foi na hora. E, aí,<br />
cara, foi que zoneou mesmo, puta que pariu. Era<br />
grito, era empurrão, era pernada, ai, meus Deus,<br />
aperta, não, calma, gente, quê que é isso, empurra,<br />
não, vai se foder, o caralho, sabe como? E<br />
eu só rindo. A gordona tava que parecia de pedra,<br />
dura mesmo, e a pirua, cara, essa tu precisava<br />
era de ver. Se o chefe tivesse ali, duvido que<br />
deixasse ela chupar o pau dele. Duvido. Duvidêódó.<br />
A filha da puta fodidona e eu só rindo,<br />
sabe como? Aí, sua vaca. Chupa aqui, sua puta.<br />
Ou tu pensa que só chefe é que tem pica, hem?<br />
Mas não deu nem pra levantar a merda do cacete.<br />
Quando eu tava vai que vai, não é que a porra<br />
do gravatinha se escora em duas moças e<br />
manda ver no colo delas? Cara, eu não sei se tu<br />
já viu um porra vomitar na tua frente. Cara, é do<br />
caralho. Um nojo mesmo. Mas, aí, cara, quando<br />
as moças bota a boca no trombone, cara, nem te<br />
conto. Liberou geral e foi aquela zoneada. Era<br />
outra vez grito, era empurrão, era pernada, era o<br />
cacete, sabe como? E o pior foi a gordona. Mete<br />
os pés em todo mundo e, ó, não sei nem se<br />
foi o vestido que rasgou ou que porra que ela<br />
fez, as mamas fica tudo cá de fora. Aí, cara, aí<br />
não teve nem jeito. Puxo a mamoada pra mim e<br />
não tou nem aí. Quem quisesse que se fodesse,<br />
sabe como? E foi do caralho, cara. Quando a<br />
filha da puta bota aquela mamoada toda na minha<br />
cara, cara, nem te conto. Foi a maior gozada<br />
que eu já dei na minha vida. Sinceramente. Que<br />
bunda de Marilene, que nada, cara. Aquela peitaria<br />
não tem outra. Mas sabe o quê que aconteceu,<br />
ainda eu tava mamando na gordona? Isso<br />
aí, cara. Isso aí. A chupadora de chefe parte pra<br />
cima do xará e quer meter a mão na cara dele,<br />
vê se pode. Cara, foi a conta. O xará segura a<br />
filha da puta e a filha da puta berra, e não é que<br />
o escroto do viado de Seu Pedro quer dar outra<br />
de machão? Larga a D. Dores, cafajeste. Aí, cara,<br />
fodeu tudo. Fodeu mesmo. O xará manda o<br />
puto pra puta que o pariu e mete a mão nos cornos<br />
dele, e joga a pirua pra cima da gordona.<br />
Óqui, gente. Ou todo mundo se manca, ou esta<br />
merda vai pro poço. Cara, quando o xará falou<br />
aquilo, tu tinha era que ver. Uma lourona que<br />
tava lá do outro lado, daquelas que até santo<br />
quer comer, sabe como?, não sei que dá nela,<br />
ranca a piruca e empurra todo mundo, e, ó, vai<br />
que é mole pra cima do escroto do viado. Para<br />
com isso. Para com isso. Aí, cara, pra mim danou-se.<br />
Ah, já tava de saco cheio, sabe como? E<br />
aí, sabe quê que eu fiz, só pra zonear de vez<br />
aquela porra? Hem? Isso aí. Mando ver mesmo<br />
e, ó, sai que lá vai peido. Sério, cara. Lembra do<br />
peidão da gordona? Foi pinto, cara. E, aí, meu<br />
irmão, aí fodeu tudo. Fodeu mesmo. A porra da<br />
luz apaga e a merda do ventilador vai pro cacete,<br />
e foi aquele fuzuê. Mas aí, cara, nem te conto,<br />
viu? Baixa um troço em mim, cara, que não<br />
tem nem como segurar. Passo as mãos na gordona<br />
e, ó, o berro foi até na casa do cacete. Vai<br />
cair. Cara, foi do caralho. Fim de mundo mesmo,<br />
cara. Nego berrando, nego rezando, nego<br />
chorando, nego, sei lá, se cagando e mijando, do<br />
escambau, cara. E eu, ó, na minha, sem essa de<br />
medo, só rindo. Só esperando baixar a poeira<br />
pra mandar outra zoneada, sabe como? Mas, aí,<br />
cara, fodeu tudo. Cada um é como é e eu sou do<br />
meu jeito, sabe como? Depois da gozada, mulher,<br />
pra mim, é home. Marilene fica puta, mas é<br />
assim que eu sou, quê que eu posso fazer? Gozei,<br />
cabou. Cada um pra seu canto, até o pau<br />
levantar outra vez, sabe como? E eu tava nessa,<br />
cara, e não é que a gordona cisma de aprontar?<br />
Vem pra cima de mim e bota a mão onde não<br />
50
<strong>Chicos</strong><br />
deve, e foi aquela merda. Se tem troço que me<br />
torra é filha da puta saliente, sabe como? E ia<br />
meter o pé na bunda da filha da puta e quê que<br />
a filha da puta faz, cara? Se joelha e pega no<br />
meu pau, e, ó, cai de boca em cima dele. Aí,<br />
cara, não deu pra segurar. Eu tava puto, tava<br />
mesmo, mas não deu pra segurar. Quanto mais a<br />
filha da puta mamava, mais eu ria. E era riso,<br />
cara, do caralho. Aí, deixei rolar, sabe como? A<br />
gordona mama que mama e eu só rindo. E quanto<br />
mais eu ria, mais o pessoal se calava, sabe<br />
como? E ri tanto, mas tanto, cara, que o pessoal<br />
todo se calou. E quando o pessoal se calou, aí,<br />
cara, aí eu tava pronto. Prontinho. Peguei os braços<br />
e cresci eles, e abracei todo mundo, sabe<br />
como? A gordona, a pirua, a lourona, o xará,<br />
todo mundo. Todo mundo se borrando e eu<br />
abraçando todo mundo, cara. E quanto mais o<br />
pessoal se borrava, mais os meus braços crescia<br />
e mais eu abraçava todo mundo. E numa boa.<br />
Numa de irmão mesmo, sabe como? Mas, aí,<br />
cara, a gordona larga a minha pica e dá aquele<br />
berro. Ai, meu Deus, que eu vou morrer. Aí, cara,<br />
foi a conta. Fiquei puto. Puto mesmo. Ah, vá<br />
pra porra. Se não quer acabar, não começa, é ou<br />
não é? Cara, cresci o corpo todo e foda-se. E<br />
quanto mais os puto se cagava, mais eu crescia,<br />
sabe como? E cresci tanto, e tão puto, cara, que<br />
o xará mela na minha frente e pede perdão da<br />
Marilene. Cara, nem te conto. Garrei a cabeça<br />
do filho da puta e, ó, cabei a raça dele. Cabei<br />
mesmo. Aí, foi a pirua. Filha da puta, por quê<br />
que tu nunca me chupou, hem, filha da puta? O<br />
escroto, esse, não deu nem pra saída. Cagou tudo<br />
e morreu de boca aberta, como se fosse me<br />
chupar, o escroto do viado. Os outros, foi mais<br />
ou menos. As moças mija nas calcinhas, a lourona<br />
quer me dar e eu não quero, o gravatinha pede<br />
pra rezar não sei o quê, e fui levando, sabe<br />
como? Nem meia hora depois, todo mundo tava<br />
morto. Caladão mesmo, cara. Aí, meu irmão, aí<br />
eu tive que decidir. Ou mandava aquela porra<br />
pro poço, ou me mandava, sabe como? Aí, me<br />
mandei. A Marilene tava me esperando e ela fica<br />
puta quando eu não apareço. Aí, cara, acendi a<br />
luz, liguei o ventilador, e saí. Subi pela escada e<br />
fui à sala do chefe. Cara, foi só o puto olhar pra<br />
mim e, ó, foi aquela tremedeira. Mas eu não tou<br />
nem aí, sabe como? Mando uma porrada nos<br />
cornos do filho da puta e tu sabe o quê que o<br />
puto faz? Joelha na minha frente e quer chupar<br />
o meu pau, vê se pode. Cara, aí, já viu, ganhei o<br />
dia. Mijei na boca do filho da puta e vim embora,<br />
sabe como? Aí, cara, fui à lanchonete do térreo<br />
e mandei vir um bauru e um refresco. Cara,<br />
eu merecia. Eu era mais eu, sabe como?<br />
do livro Fractal em duas línguas<br />
51
José Vecchi de<br />
Carvalho<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Nasceu em Cataguases, após morar por muito<br />
tempo em Viçosa vive hoje em Paula Candido<br />
todas cidades mineiras. Coautor de A casa da<br />
Rua Alferes e outras crônicas (2006), e autor de<br />
Duas Cruzes (contos 2018).<br />
Incompatibilidade de gênios<br />
Inspirado na música de mesmo<br />
nome de João Bosco e Aldir Blanc<br />
Doutor, não posso admitir uma<br />
coisa dessas. Eu sei que de vez em quando<br />
pego pesado, mas ninguém é de ferro. Ele<br />
passou dos limites. Acha que é um rapazinho<br />
ainda, tirando onda com uma tal de Tininha,<br />
uma piriguete, o senhor sabe, dessas que todo<br />
mundo põe a mão.<br />
A desculpa dele é sempre a mesma. Jogando<br />
sinuca, tomando umas com os amigos pra<br />
relaxar. Mentira, pensa que me engana!<br />
Nunca vi isso, já é um relaxado, não para em<br />
emprego nenhum. Agora fala que tô dando<br />
gelo nele, bobagem, ele é que chega tarde,<br />
bêbado, cai na cama e apaga. Tem vez que<br />
fica no sofá de tão ruim. Fiz de tudo, reza,<br />
benzição, mandinga, tudo que o senhor imagina.<br />
Ele não era assim, não. Sempre foi boa pessoa,<br />
quieto em casa, mas não sei o que deu<br />
na cabeça, de uns tempos pra cá endoidou,<br />
uns amigos esquisitos, sinuca todo dia, uma<br />
bebeção danada, farra e mais farra, nem vê<br />
as crianças direito, quem aguenta?<br />
Além do mais, uma implicância com a minha<br />
mãe, coitada, sozinha no mundo, velhinha,<br />
doente, remédio com hora certa, um monte,<br />
médico e farmácia pra lá e pra cá, não sabe<br />
lê, alguém tem que cuidar. Sou filha, não<br />
posso deixar ela assim. Levei pra casa e aluguei<br />
o barraco dela, sabe como é, uma graninha<br />
a mais, essa carestia! Aí ele pega a falar<br />
que eu não podia fazer isso, não tem<br />
mais liberdade, espaço, pisa duro pela casa,<br />
grita, as crianças choram. Passa pela geladei-<br />
52
<strong>Chicos</strong><br />
ra, pega minhas economias debaixo do<br />
pinguim, uns trocados, e sai resmungando.<br />
Aí, doutor, só tarde da noite, daquele jeito.<br />
Se falo, tem briga, manda eu calar a boca.<br />
Joga na minha cara um monte de bobagens,<br />
inventa até amante pra mim, vê se<br />
pode, eu, uma bobona. Ele fala da pobre<br />
da minha mãe, tudo culpa dela. Agora embirrou,<br />
disse que eu tenho que escolher: ele<br />
ou ela. O que faço, doutor? Acho que vou<br />
largar mesmo, mas aí, como fico? Preciso<br />
de ajuda. Vou ter pensão? E as crianças?<br />
Morrer de fome? Me diz, doutor. Crescer<br />
sem pai, ouvir zoeira de colegas na escola<br />
já é ruim, mas vá lá, dá-se um jeito, e a<br />
gente acaba acostumando com tudo, né? O<br />
que não posso fazer é deixar minha mãe,<br />
doutor. Eu me viro, dou um jeito, mas ela<br />
tá pior que uma criança, depende de mim<br />
pra tudo.<br />
Agora, se ele tá querendo liberdade, tem<br />
que assumir a obrigação. Três filhos, doutor,<br />
ele pensa que é fácil, que é só pôr no<br />
mundo. E a comida? E a roupa? E as contas<br />
todo mês? Os três na escola, material, uniforme.<br />
Vê aí, doutor, não dá mole pra ele,<br />
não. Liberdade? Espaço? Tudo bem, paga<br />
por isso. Paga e some da minha frente! Até<br />
levar um chute da outra e se arrepender um<br />
dia, se Deus quiser!<br />
53
José Antonio<br />
Pereira<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A<br />
casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006) e<br />
autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).<br />
Desmemórias<br />
– A pior dor meu filho? A pior dor...<br />
Respondeu minha avó e engasgou no silêncio.<br />
Um silêncio de banzo que redemoinha<br />
como vento fraco pela casa, ela raspou a memória<br />
em busca de uma resposta por lá perdida.<br />
E seguiu, apesar do ar distante, me acalentando<br />
em seu colo após curar mais uma<br />
ferida aberta no meu corpo moleque. Dor<br />
curada, beijei sua face e disparei casa afora<br />
rumo à rua. Nem escutei a voz embargada<br />
da avó, só os fiapos de sua fala. – É a dor<br />
do... Mas as dores... são as piores.<br />
O tempo passou eu nunca entendi direito as<br />
dores da avó. Aliás, nunca parei sequer para<br />
pensar em suas dores. Eram dores da velhice,<br />
imaginava na pressa de moleque e no desinteresse<br />
pelas coisas dos adultos. Cresci, corri<br />
mundo, conheci gente e apanhei de todo<br />
mundo, novas feridas que nem minha avó<br />
podia curar.<br />
É começo de noite, chega a notícia de que a<br />
avó está muito doente. – Vou passar o dia de<br />
amanhã lá na minha avó. – Não é nada, é<br />
exagero da sua irmã. Toda vez que ela liga é<br />
pra dizer que alguém está muito ruim. –<br />
Mulher! Ela não está bem. E faz anos que<br />
não a vejo. – Vai estrupício, vai chorar no<br />
colo da vovó e me largar aqui sozinha. Depois<br />
não reclama não! Mesmo contrariando<br />
a mulher, parto. Na rodoviária, embarco, não<br />
conheço nenhum dos passageiros; melhor<br />
assim. Depois do clima ruim que ficou em<br />
casa, eu não estou a fim de muita conversa.<br />
Muita não, eu não estou a fim de papo furado<br />
nenhum, com ninguém.<br />
O ônibus roda pela estrada, lá fora, as silhuetas<br />
arredondadas dos morros, não escondem<br />
o amiudado das estrelas. Uma brilha, é Aldebarã.<br />
Como um anjo da guarda ela me acompanha.<br />
Eu sempre a procuro aonde quer que<br />
eu vá. É a minha estrela da vida inteira. Lembro<br />
da primeira vez que fui ao Planetário Velho.<br />
Um orientador mostrou Aldebarã enquanto<br />
dizia, – É a principal e mais brilhante<br />
estrela da constelação de Touro. Seu nome<br />
vem do árabe e significa A Seguidora. Me<br />
apaixonei por aquela estrela. Por ela voltei<br />
várias vezes ao planetário.<br />
O pensamento mira a avó. Resisto. Não quero<br />
pensar nela doente, nestas horas só coisa<br />
ruim costuma varrer minha cabeça. Não tem<br />
jeito, o pensamento teima. E a infinidade de<br />
vezes que ela acudia minhas dores de moleque<br />
e eu ainda choroso cheio de medo de<br />
todas as dores perguntava, – Vó qual é a pior<br />
dor? Nunca prestei muita atenção ao que<br />
54
<strong>Chicos</strong><br />
ela falava. Mas ficava olhando sua face preta<br />
já com os vincos da idade, a testa em que as<br />
rugas mudavam com seus humores e seus<br />
rancores, se é que os tinha. Seus olhos sempre<br />
brilhando de ternura, as vezes brilhavam<br />
úmidos e nos silêncios engasgados minava<br />
uma gota que corria pela face. Eu nada entendia<br />
mas achava nestas horas que ela parecia<br />
Nossa Senhora Aparecida, santa de sua<br />
devoção. Mais tarde, fui a Aparecida do<br />
Norte e me decepcionei. A imagem era tão<br />
pequena e frágil, ao contrário da minha avó<br />
que era a minha fortaleza.<br />
Olho pela janela e lá está Aldebarã, algo<br />
oprime meu peito, respiro fundo. Começo a<br />
me indagar sobre a história da minha avó.<br />
Não sei nada. Só sei que ela nasceu numa<br />
fazenda Rio Pomba abaixo depois da Ponte<br />
do Sabiá. Ninguém estranhava, nunca perguntavam<br />
nada. A família, ao contrário, vivia<br />
o tempo todo indagando, repetindo exaustivamente<br />
sobre os bisavôs e os avôs do meu<br />
avô. Falavam de tudo. A fuga da pobreza em<br />
Beira, no Portugal. Cansara de ouvir sobre o<br />
desembarque do avô do meu avô em algum<br />
ponto da estrada do Sinimbu, com o meu<br />
avô no colo de sua avó.<br />
Não conheci meu avô, morreu antes do meu<br />
nascimento. Sempre foi assunto constante<br />
das conversas familiares. Mas da minha<br />
avó... nada. Acho o que incomoda o peito é<br />
isto. A mulher que cuidou de todas as minhas<br />
dores não tem passado para mim. Putaquepariu<br />
sei tudo sobre Aldebarã, quase tudo<br />
sobre meu avô, mas não sei porra nenhuma<br />
sobre a minha avó. Da avó de minha avó<br />
então? Não sei nem o nome.<br />
Chego em Cataguases. A caminho da casa<br />
de minha irmã, um conhecido de minha avó<br />
me aborda e para meu espanto, dá-me os<br />
pêsames pela morte da minha avó. Enfureço<br />
comigo mesmo, anos sem uma protocolar<br />
visita a minha avó. Apesar de acostumada a<br />
sempre ser deixada de lado, uma visita, mesmo<br />
que breve, com certeza a deixaria feliz.<br />
Minha irmã está na porta de casa, abraça-me<br />
e assim entramos casa adentro. Casa de<br />
meus pais, onde nasci e sempre morou minha<br />
avó. – Te telefonei, mas sua mulher disse<br />
que você já tinha saído de Juiz de Fora.<br />
Com a voz embargada, – Ela morreu duas<br />
horas depois do jantar. Ali naquela velha cadeira<br />
onde tantas vezes nos sentou no colo.<br />
Estou entalado, não consigo falar. Depois de<br />
um tempo abraçado a minha irmã que chora<br />
por mim e por ela. Consigo balbuciar, – E o<br />
velório? – O enterro é as oito horas da manhã.<br />
O choro retorna, respira ofegante e<br />
continua. – Ela sempre dizia que queria ser<br />
enterrada às primeiras horas da manhã. Num<br />
tom de voz mais firme, ela completava seu<br />
desejo. É muita maldade carregar caixão no<br />
sol desta cidade calorenta. Lembro da avó<br />
repetindo este seu desejo toda vez que morria<br />
alguém. E terminava rindo com gosto.<br />
Após as orações da Irmandade a que pertencia<br />
lá na igreja do Rosário, baixado o caixão<br />
todos se afastam. Já decidira pegar o ônibus<br />
de volta a Juiz de Fora num ponto ali perto<br />
do Cemitério. Todos já se foram, fico ali sozinho<br />
meio sem entender a morte. Para minha<br />
avó não era um ponto final. Ela volta<br />
aos meus pensamentos e só agora começo a<br />
perceber o que havia nas suas frases incompletas<br />
pela minha desatenção. E sua voz soa<br />
mansa no meio da minha cabeça. – A pior<br />
dor meu filho? Sabe a dor de quem perdeu<br />
um braço, aquela dor da mão que não existe<br />
mais mas teima em doer? A dor que rói minhas<br />
entranhas é a dor de não lembrar dos<br />
meus antepassados, de não saber de onde<br />
vieram. Do que e como falavam. Esta é a<br />
pior das dores meu filho, a dor da desmemória.<br />
Sinto um súbito ardor febril e ainda ali, junto<br />
a cova de minha avó, começo a sentir suas<br />
dores. As dores da desmemória.<br />
55
<strong>Chicos</strong><br />
Andressa Barichello<br />
Nasceu em São Paulo - SP, atualmente mora<br />
em Portugal. É autora do livro Crônicas do Cotidiano<br />
e outras mais (Scortecci, 2014). É cofundadora<br />
do projeto fotoverbe-se.com.<br />
Primeira hora<br />
Hoje pela primeira vez peguei um supermercado<br />
abrindo. Só conhecia os mercados<br />
na hortifrúti imprópria das segundas-feiras e<br />
nas faltas típicas dos sábados pós-almoço. Poderia<br />
ser sete da noite lá fora, numa estranha<br />
semelhança entre o que finda e o que principia.<br />
Do frescor e abundância supostos, apenas<br />
a intensidade clara das lâmpadas de halogênio,<br />
iguais a sempre, como todo resto, mas<br />
potenciadas pelos olhos àquela hora ainda<br />
despreparados para tanto dia.<br />
Mas se não vi o que procurei nos produtos,<br />
talvez tenha testemunhado qualquer outra coisa<br />
rara em lugar do veludo dos pêssegos e da<br />
firmeza dos aspargos: a aparição da mulher ao<br />
final do corredor da perfumaria. Nem santa<br />
nem fantasma, surpresa – de uma para outra,<br />
flagrante assemelhado ao que se faz aos corpos<br />
despidos quando dentro dos quartos fazse<br />
uma muda de roupa a portas entreabertas.<br />
Vi a mulher com as pálpebras entreabertas,<br />
os dedos das mãos afastados para envolver<br />
melhor o cilindro, o dedo indicador a pressionar<br />
a ponta à espera do jato, no peito a logo<br />
do supermercado. Um flagrante assemelhado<br />
ao que se faz aos corpos despidos quando<br />
dentro dos quartos... Quando os cabelos voaram,<br />
ela virou o rosto e olhou para mim. Depois<br />
devolveu o laquê à prateleira.<br />
Quando passei rente, ela escolheu um hidratante<br />
de mãos. Agitou, apertou, e esfregou<br />
a palma no dorso e o dorso na palma e a palma<br />
no dorso até que o rastro sumisse. Por entre<br />
as latas de conserva, buraco de fechadura,<br />
vi quando tirou da prateleira o desodorante<br />
roll-on.<br />
Fugi para o corredor das águas à procura<br />
de lacres.<br />
Ainda vou comprar um desodorante usado.<br />
Ainda vou comprar um perfume aberto. Coisas<br />
que não virão cheias nem completas. Nunca<br />
até a tampa. Já mordido, já lambido. E a<br />
ideia de posse como única garantia de exclusividade.<br />
Uma mulher a deslizar pela esteira tudo<br />
que, antes, já passou pelo seu corpo. Sem fazer<br />
diferença entre mais ou menos eficaz, em<br />
desatenção ao preço, em prol da experimentação<br />
ou da possibilidade de fazer com que seu<br />
corpo por vezes invisível passe por outros corpos.<br />
Trocamos apenas silêncios. Guardei o troco<br />
sem conferir.<br />
Hoje pela primeira vez peguei um supermercado<br />
abrindo. À primeira hora do dia um<br />
resto de luxúria se dissolve junto à madrugada.<br />
56
<strong>Chicos</strong><br />
Emerson Teixeira<br />
Cardoso<br />
Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles<br />
(2001) poesia, coautor de A casa da Rua<br />
Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O<br />
retorno do nativo de Thomas Herdy. Sempre<br />
ativo em publicações literárias. Iniciou-se em<br />
Estilete (1967), mimeografado, editor/fundador<br />
do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul (1997).<br />
Moram todos na Linha<br />
Por que Zezão masturba os cães?<br />
É que só assim a vizinhança dorme.<br />
Antonio Rachador de Lenha é moço trabalhador;<br />
não cobra por metro de lenha, mas<br />
por prato arrumado. Debaixo do angu tem<br />
carne.<br />
Água fresca de mina tomada em canecão de<br />
lata de doce de figo. Cabelo de franja na<br />
testa que nunca viu pente. Mais forte que<br />
Adão Peitudo a quem já venceu muitas vezes<br />
na queda de braço.<br />
Mas, Antonio só não pode com Dominguim<br />
Tarzan que tira tora de lenha no rio em dias<br />
de enchente grande. Com ele só pode Cincoenta<br />
que já tirou muitos corpos de afogados<br />
no rio.<br />
Moram todos na linha. Gente da hora; Antonio<br />
não larga o machado sempre afiado para<br />
a lida, com lima boa e pedra de esmeril. Zezão<br />
o estima, parceirão de pinga e de pândega.<br />
Boteco os viu pelos lados da Ilha na sextafeira<br />
à noite catando as vendas do Beira Rio.<br />
Você não faz ideia do que é um ensaio de<br />
sábado na quadra da Portela da Vila Leonardo,<br />
desde que o Abelhinha aceitou a diretoria<br />
da escola. Tem o Tertim no surdo, quem<br />
pode com ele? Tem Zé Urubu no cavaquinho,<br />
tem passistas a dar com o pau.<br />
Viva o carnaval de 1966!<br />
E onde estavam os dois?<br />
Antonio Rachador de Lenha não apareceu<br />
por lá. Nem o Zezão deu o ar da graça.<br />
O Abelha deu a falta deles. Os dois mulatos<br />
é quem davam contas de empurrar os carros<br />
alegóricos.<br />
Só ao amanhecer de domingo é que deram<br />
pela maçada. Os dois orelhas-secas se mandaram<br />
pra Leopoldina na manhã de sábado<br />
no ônibus da Viação Lux e depois de noite<br />
toda na esbórnia lá pros lados da Aldeia, se<br />
meteram em briga feia com uns mulatos que<br />
vinham de um baile no Cotubas.<br />
De lá saíram num “cavalo louco” perseguidos<br />
por meia dúzia de troncudos pela BR.<br />
Eram perto de seis horas da matina quando<br />
chegaram na Usina Diesel. De lá atravessaram<br />
o rio Pomba a nado até a margem, no<br />
Areião do Zezinho.<br />
Ouviram longe o apito alto, aflito do trem<br />
misto para Ubá, fazendo horário.<br />
<strong>57</strong>
<strong>Chicos</strong><br />
Raquel Naveira<br />
Raquel Naveira, nasceu em Campo Grande<br />
(MS), formada em Direito e Letras, doutoranda<br />
em Literatura Portuguesa na USP. Escreveu vários<br />
livros, entre eles: Abadia (poemas, editora<br />
Imago,1996) e Casa de tecla (poemas, editora<br />
Escrituras, 1999), indicados ao Prêmio Jabuti de<br />
Poesia.<br />
Conhece-te<br />
Veio lá de Mariana, Minas Gerais, a<br />
revista literária Conhece-te, editada pelo jornalista<br />
Marcelo Pereira Rodrigues. Crônicas,<br />
artigos, pensamentos e reflexões, entrevista,<br />
resenhas, indicações de livros, tudo que é<br />
necessário para fazer, com qualidade, a ponte<br />
entre leitor e obra.<br />
“Conhece-te” nos remete ao aforismo grego,<br />
atribuído ao filósofo Sócrates (469 a. C.<br />
ou 470 a. C.- 399 a. C.), máxima inscrita no<br />
pátio do Templo de Delfos, dedicado à adoração<br />
de Apolo, o deus do Sol. O pensamento<br />
completo seria: “Homem, conhece-te a ti<br />
mesmo, assim conhecerás os deuses.” Ali,<br />
numa das mais influentes e poderosas instituições<br />
da Antiguidade, onde ficava o<br />
“ônfalo” ou umbigo do mundo; onde a sacerdotisa<br />
Pítia proferia seus oráculos, instigava<br />
políticos, iniciava e punha fim a guerras,<br />
determinava a construção das cidades e da<br />
civilização, confirmava-se que o mais importante<br />
na caminhada humana é o autoconhecimento.<br />
Só através dele brilha a centelha do<br />
divino em nós. Conhecendo nossos desconhecimentos,<br />
chegamos ao cultivo das virtudes,<br />
uma espécie de inteligência. Sabedoria e<br />
virtude são inseparáveis.<br />
Sócrates, amante da verdade, profeta, figura<br />
enigmática, pagou um alto preço por suas<br />
ideias: a condenação à morte. Foi obrigado a<br />
beber veneno, a cicuta. Sentindo os efeitos<br />
da peçonha em seu corpo, partiu sereno,<br />
confiante que o justo triunfa dos seus carrascos.<br />
Alegre porque para o lugar onde iria,<br />
poderia fazer perguntas eternamente, pois<br />
era imortal em sua essência.<br />
58
<strong>Chicos</strong><br />
O autoconhecimento tem sido assunto preferido<br />
dos poetas em todos os tempos. A sondagem<br />
do próprio “eu”. O espanto e a perplexidade<br />
de sermos desconhecidos para nós<br />
mesmos. Diante da pergunta: “Quem sou<br />
eu ?”, o poeta hesita em responder dando<br />
seu nome, idade, nacionalidade ou profissão.<br />
Ele quer ir além, fazer uma viagem interior,<br />
desfiar suas incertezas e dúvidas. “Eu sou eu<br />
mais a minha circunstância”, afirmou o ensaísta<br />
espanhol Ortega y Gasset (1883-1955).<br />
Sou um ser vário, mutável, que se transforma<br />
como as borboletas, que dança conforme<br />
a música. Sou poeta e a poesia é uma atitude<br />
perante a vida, uma insubmissão, uma<br />
liberdade, um abrir da imaginação, um prazer,<br />
uma aventura, um desejo de plenitude e<br />
beleza. Ser poeta, intensamente, na Terra e<br />
nas nuvens.<br />
Fernando Pessoa (1888-1935), poeta que<br />
inaugurou um novo ciclo na literatura portuguesa,<br />
não se contentou em ser um só e inventou<br />
seus heterônimos: Alberto Caeiro, o<br />
sensacionista; o latinista Ricardo Reis; o angustiado<br />
e moderno Álvaro de Campos e outros.<br />
Dividiu-se para se autoconhecer.<br />
Certa vez, escrevi: “Sou uma fiandeira, /<br />
Aranha tirando de dentro/ A liga que emaranha”.<br />
A imagem da fiandeira que tece, fia,<br />
trama, urde, prepara textos como se fossem<br />
bordados, me define, delineia meu perfil de<br />
Penélope e pacifica a minha espera.<br />
Bem disse Benjamin Franklin (1706-1790)<br />
que “há três coisas extremamente duras: o<br />
aço, o diamante e conhecer-se a si mesmo “.<br />
Mais difícil ainda é a pessoa estar satisfeita<br />
em ser quem é. No poema “Círculo Vicioso”,<br />
Machado de Assis nos apresenta um<br />
vagalume que queria ser estrela, uma estrela<br />
que queria ser a lua, a lua que queria ser o<br />
sol e o sol que gostaria de ser um simples<br />
vagalume. A criação foi feita para louvar a<br />
Deus, para admirar a grandeza do Universo.<br />
O elefante louva sendo um elefante, a formiga<br />
sendo uma formiga, as árvores sendo árvores.<br />
Há, ao mesmo tempo, finitude, fulgor<br />
e potência, em cada célula, em cada átomo,<br />
em cada semente, em cada faísca. Tudo se<br />
move no Amor, entre fagulhas de sol, estrelas<br />
e pirilampos.<br />
Conheço-me quando me debruço sobre a<br />
folha de papel em branco, a face baixa e<br />
oculta, concentrada por dentro como um<br />
candelabro aceso. Conheço-me quando, antenada<br />
em minha arte e ofício, folheio uma<br />
revista que me desafia com seu título:<br />
“Conhece-te”.<br />
59
Antônio Jaime<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Soares<br />
Nasceu em Cataguases - MG, lá na Chave.<br />
Participou de um dos movimentos culturais<br />
mais ativos dos anos 60 em Cataguases, o CAC.<br />
Depois de morar um longo tempo no Rio de Janeiro,<br />
onde entre outras foi redator de publicidade.<br />
Retornou a Cataguases direto para a Vila.<br />
Poeta e cronista publicou Pedra que não quebra<br />
(crônicas - 2011)<br />
Dinheiro no chão<br />
Numa crônica, Fernando Sabino<br />
disse que voltou de visita àqueles países<br />
prósperos do sudeste da Ásia, impressionado<br />
com a limpeza das ruas. Já nas ruas<br />
do Rio, a impressão foi contrária, até pela<br />
enorme quantidade de moedas no chão,<br />
que ele teve a paciência de recolher: cento<br />
e quarenta, numa só caminhada. Nosso<br />
dinheiro, então, era o cruzado, obra do<br />
governo Sarney, na vã expectativa de conter<br />
uma inflação de três dígitos. Jogava-se<br />
dinheiro fora, literalmente.<br />
Muito antes, como todo menino,<br />
eu sonhava encontrar um tesouro e, um<br />
dia, achei uma nota de cinco cruzeiros em<br />
meio às “folhas secas, caídas de uma man<br />
gueira” (o trecho entre aspas é do samba<br />
de Nelson Cavaquinho e Guilherme de<br />
Brito). Entreguei-a a meu pai, para pôr na<br />
caixinha onde ele depositava minha<br />
“poupança”. Eu não tinha onde gastar, eis<br />
a questão, sendo da gente mesmo a única<br />
venda do lugar. Só nas festas da igreja<br />
gastava alguma coisa, comprando bombinhas.<br />
Pela mesma época, uma nota de<br />
cem, tinindo de nova, em meio aos dormentes<br />
da estrada de ferro. Aquela, contudo,<br />
tinha dono, que se apresentou. Dificuldade<br />
para localizar o dono teve Carlos<br />
Drummond de Andrade, quando achou<br />
uma bolsa dentro de um ônibus, no Rio.<br />
Guardou vagamente o perfil da passageira<br />
que saltara antes, a quem, por certo, a<br />
bolsa pertencia. Em casa, inventariou 35<br />
miudezas, de clips de prender papel a algum<br />
dinheiro, uma agenda e, como identificação,<br />
só uma carteira de estudante,<br />
sem retrato, em nome de Andréia de Poggia.<br />
Que, por sinal, ninguém conhecia na<br />
faculdade, nem entre os telefones constantes<br />
da agenda.<br />
Pôs anúncio no jornal, apareceram<br />
candidatas, nenhuma, porém, com o perfil<br />
de que o poeta se lembrava. E com o qual<br />
se cruzou, a muito custo, depois de percorrer<br />
ruas, quarteirões, bairros inteiros.<br />
Razão: era nome inventado, e a carteira,<br />
falsa, para pagar meiaentrada, “num cineminha”,<br />
ela disse. Livre do fardo, ele<br />
jurou nunca mais tocar em qualquer objeto<br />
alheio.<br />
60
<strong>Chicos</strong><br />
E veio minha vez de achar<br />
dinheiro em ônibus do Rio, no caso, uma<br />
carteira bem gorda. Nem abri e dei para<br />
a trocadora. Pensei que poderia ter sido<br />
“plantada” ali, por algum malandro, a<br />
fim de extorquir um otário. Carteira profissional,<br />
achei a de uma “doméstica”,<br />
que deixei com o porteiro do prédio em<br />
que ela trabalhava, em Copacabana.<br />
Lembro, agora, uma crônica de dona Ruymar<br />
Branco Ribeiro em que contava que<br />
um cataguasense encontrou a carteira de<br />
ninguém menos que Ormeo Junqueira<br />
Botelho, presidente da então Companhia<br />
Força e Luz Cataguazes-Leopoldina.<br />
Dinheiro à farta, que devolveu,<br />
ganhando um emprego naquela empresa,<br />
recompensa que a mim também<br />
não faria mal.<br />
No período natalino do ano 2000,<br />
em meio aos passantes, achei 50 reais<br />
em frente à Cobal, que embolsei no ato,<br />
pois era dinheiro vira-lata, ou seja, vadio<br />
e sem dono. E, no mesmo período, em<br />
2011, outra vez uma carteira cismou de<br />
aparecer no meu caminho, na Vila Domingos<br />
Lopes. Peguei, abri, continha 112<br />
reais. No meio da papelada, o nome do<br />
proprietário e da firma em que trabalha.<br />
Não o encontrei e deixei-a com o motorista,<br />
do qual é ajudante, desejando-lhes<br />
um Feliz Natal.<br />
Pensei que, subitamente privado<br />
de seus haveres, aquele rapaz teria que<br />
fazer vale ou empréstimo, para as compras<br />
de sábado, quiçá, o leite das crianças,<br />
além da trabalheira de tirar nova documentação.<br />
Com meu gesto, evitei as<br />
duas coisas e, de novo, penso que agi<br />
certo.<br />
Não levo o menor jeito para<br />
“apropriação indébita” e, certa vez, uma<br />
alta autoridade judiciária se ofereceu para<br />
me prestar um favor. Antes, vasculhara<br />
meu nome em todos os canais competentes<br />
e, ao constatar minha ficha limpa, ficou<br />
surpreso. Respondi com uma das<br />
máximas de Marco Aurélio, o imperador<br />
romano: “Cumpre ser direito, não desentortado”.<br />
Tudo bem, mas também espero<br />
agir certo quando achar uma capanga<br />
recheada de notas grandes. E papéis<br />
comprometedores, para tornar o achado<br />
ainda mais precioso. Aí, sim, pensarei<br />
duas vezes.<br />
62
Luiz Ruffato<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Nasceu em Cataguases MG, reside em<br />
São Paulo SP. Entre tantas obras de sua autoria<br />
destacam-se: Eles eram muitos cavalos,<br />
de 2001, ganhou o Troféu APCA oferecido<br />
pela Associação Paulista de Críticos de Arte e<br />
o Prêmio Machado de Assis da Fundação<br />
Biblioteca Nacional. Esse livro o tornou<br />
um escritor reconhecido no país. Em 2011<br />
concluiu o projeto Inferno Provisório, com a<br />
publicação do romance Domingos Sem Deus,<br />
iniciado com Mamma, son tanto Felice em<br />
2005, composto por cinco livros sobre o operariado<br />
brasileiro.<br />
Lendo os Clássicos<br />
Sob o sol de Satã (1926)<br />
Georges Bernanos (1888-1948) - França<br />
Tradução: : Hildegard Feist<br />
Rio de Janeiro: Globo, 1987, 279 páginas<br />
62
<strong>Chicos</strong><br />
Romance de tese, o autor defende a<br />
ideia da presença avassaladora do Mal no<br />
mundo e, mais que isso, da extrema inteligência<br />
de Satã, que age justamente onde<br />
ninguém supõe. O padre Donissan, homem<br />
pouco letrado, rude, vive sob proteção<br />
do deão de Campagne, pequena aldeia<br />
perdida no interior da França. As mortificações<br />
a que se submete, a vida simples<br />
baseada na oração, no jejum, no despojamento,<br />
acabam cobrindo-o com o manto<br />
da santidade, sob o qual ele se abriga vencido<br />
pela soberba, um pecado capital.<br />
Após um estranho encontro numa noite de<br />
trevas com alguém que poderia ser o próprio<br />
Diabo travestido em homem, o padre<br />
Donissan esforça-se com impaciência por<br />
salvar da queda uma jovem, Mouchette,<br />
que guarda um terrível segredo, e chega<br />
até mesmo a tentar ressuscitar uma criança<br />
- em ambas as tarefas fracassa de forma<br />
retumbante. Duas personagens secundárias<br />
do romance - Mouchette, uma garota de<br />
16 anos, cruel e voluntariosa, que protagoniza<br />
as 70 páginas iniciais do livro, e Antoine<br />
Saint-Marin, escritor septuagenário,<br />
cínico e descrente, que ocupa os cinco capítulos<br />
finais (32 páginas) - quase chegam<br />
a rivalizar em importância com o padre<br />
Donissan. O ponto negativo do livro é o<br />
caráter retórico que algumas vezes deixa-o<br />
extremamente maçante.<br />
Avaliação: BOM<br />
Entre aspas:<br />
Para muitos tolos vaidosos aos quais a vida decepciona, a família é uma instituição necessária,<br />
pois coloca-lhes à disposição e como que ao alcance da mão um pequeno número de seres frágeis,<br />
que a criatura mais covarde é capaz de amedrontar. Pois a impotência gosta de refletir<br />
sua nulidade no sofrimento alheio". (pág. 22-23)<br />
63
<strong>Chicos</strong><br />
Emerson Teixeira<br />
Cardoso<br />
Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles<br />
(2001) poesia, coautor de A casa da Rua<br />
Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O<br />
retorno do nativo de Thomas Herdy. Sempre<br />
ativo em publicações literárias. Iniciou-se em<br />
Estilete (1967), mimeografado, editor/fundador<br />
do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul (1997).<br />
Tecidos & Letras<br />
Surpresas diversas no capítulo<br />
dos esportes, revelações bombásticas nos<br />
bastidores da política. Algumas novidades<br />
no campo das artes.<br />
Fatos que estão ou estiveram na pauta de<br />
discussão, num raio de duzentos metros que<br />
compreende um estirão que principia no baixo<br />
calçadão até ao alto desse espaço comercial<br />
que dá na Praça Rui Barbosa.<br />
Lá estão o bar do Chinês, a sorveteria Sol<br />
e Neve e os dois cinemas agora lamentavelmente<br />
desativados.<br />
O que vem pela tevê, internet<br />
(principalmente) e outras mídias é aqui mesmo<br />
ruminado e digerido cotidianamente no<br />
bom estilo cataguasense (há priscas eras),<br />
desde que o cinematógrafo maureano ainda<br />
grassava na então modorrenta província ou<br />
que os verdes intelectos esperavam o trem<br />
que trazia, (sem demora) as notícias das vanguardas<br />
que vinham das capitais.<br />
Cataguases, em suma, será isto mesmo:<br />
uma cidade aberta, um tanto inchada pelo<br />
excesso de automóveis o que a torna quase<br />
intransitável nos horários de pico, até para<br />
pedestres.<br />
Desde que a imprensa surgiu por aqui depois<br />
da câmara receber em pagamento uma<br />
tipografia do Major Rebeldino José Batista, e<br />
que se inauguraram as primeiras fábricas pôde-se<br />
estabelecer um paralelo entre a sua<br />
vocação fabril e a literatura.<br />
Etimologicamente, texto e têxtil têm a<br />
mesma raiz.<br />
Cataguases é, portanto, mesmo para<br />
aqueles que só a conhecem de oitiva, uma<br />
cidade de tradição cultural.<br />
Quando a cidade era ainda bem pequena<br />
e estes dois movimentos: cinematográfico e<br />
literário aqui floresceram, outras atividades<br />
de valor cultural vieram em seguida.<br />
A partir da década de 40 foram se revelando<br />
em consequência desses valores uma<br />
nova guarnição de artistas que bem souberam<br />
estampar em prosa e verso suas experiências<br />
estéticas.<br />
Valores genuínos que tiveram como<br />
seus próceres o bardo Francisco Marcelo Cabral<br />
e Lina Tâmega Peixoto, cobrindo-lhes<br />
a retaguarda talentos como Celina Ferreira<br />
64
<strong>Chicos</strong><br />
e Maria do Carmo Ferreira.<br />
Na década de 60 depois de um curto período<br />
de paralisação dois novos grupos aparecem:<br />
O CAC, que primava pela experimentação e<br />
o movimento concreto também investido dos<br />
mesmos propósitos de renovação. Este por<br />
sua vez mais focado na poesia nova e nas<br />
suas infinitas possibilidades.<br />
O CAC notabilizou-se por suas incursões<br />
no tablado, embora também tivessem suas<br />
investidas na escrita que veiculavam de forma<br />
estranha, nervosa, tempestuosa no Seu<br />
Evolução.<br />
O Totem com estrutura mais evoluída no<br />
aspecto visual preconizava também a sua revolução.<br />
Até a década de 90 os concretistas, com<br />
passagem também pela poesia postal tiveram<br />
um suplemento mensal no Cataguases, o Caderno<br />
C.<br />
Os rapazes do Totem mantem-se ativos<br />
com publicações esporádicas alternando-se<br />
em temas que vão da poesia ao cinema.<br />
O CAC extinguiu-se depois de seus componentes<br />
terminarem sua última proposta,<br />
seu canto do cisne que foi O Anunciador,<br />
filme que saiu todo da cabeça de seu diretor,<br />
Paulo Martins.<br />
Atualmente novos grupos tem surgido e<br />
talvez por isto persista ainda a noção de que<br />
Cataguases é uma cidade culta ou que vá se<br />
perpetuando sua tradição de berço cultural<br />
O poeta Francisco Marcelo Cabral referindo-se<br />
certa vez a esta mística que caracteriza<br />
a cidade disse mais ou menos isto:<br />
“Cataguases exporta poesias que aqui ninguém<br />
lê e tecidos que ninguém veste.”<br />
O que, nos leva a perguntar. De que tecido,<br />
afinal, é Cataguases?<br />
65
<strong>Chicos</strong><br />
Lucília Garcez<br />
Lucília Garcez é escritora, Doutora em Linguística<br />
e professora aposentada do Instituto de<br />
Letras da UnB. É autora do romance Outono<br />
Os rios de Ronaldo Cagiano<br />
O poema é um objeto de arte feito<br />
de uma linguagem especial que chama a<br />
atenção do leitor sobre o seu próprio processo<br />
de elaboração. Embora muito se tenha<br />
questionado sua função social, ele é absolutamente<br />
necessário. Resultado de experiência<br />
estética com a palavra, de observação,<br />
de vivências, de sensibilidade e de memória,<br />
ele traz um significativo estranhamento para<br />
a percepção do mundo e para a elaboração<br />
das emoções essenciais. Barthes já disse que<br />
a poesia é a prática da sutileza num mundo<br />
bárbaro. Daí a necessidade de lutar hoje pela<br />
poesia: a poesia deveria fazer parte dos<br />
'Direitos do Homem’; ela não é decadente,<br />
ela é subversiva: subversiva e vital.<br />
Nesse sentido, Ronaldo Cagiano, poeta e<br />
escritor brasileiro que já morou em Brasília<br />
e agora está radicado em Portugal, nos oferece<br />
Os rios de mim, publicado originalmente<br />
na Espanha em 2018 e simultaneamente<br />
no Brasil pela Editora Urutau. Sua larga e<br />
consistente trajetória poética se confirma<br />
nos poemas aqui agrupados.<br />
Se o fazer poético se desdobra em duas vertentes,<br />
confissão individual e comunhão social,<br />
como afirma Octávio Paz, Cagiano<br />
transita entre essas duas veredas entrelaçando<br />
a condensação de suas memórias de infância<br />
e de suas experiências de vida a uma<br />
reflexão que, ao eternizar o efêmero, nos<br />
provoca e nos surpreende.<br />
Vem da memória da infância todo um acervo<br />
de imagens associadas ao velho Rio<br />
Pomba, o rio da sua aldeia, Cataguases:<br />
"Nas águas do velho rio/ navegam barcos da<br />
infância/ que lancei rumo às estrelas. Ah!<br />
como dói saber/ que o menino ainda sobrenada/<br />
na espera infundada /da margem dos<br />
sonhos (Resquícios)". Mas seu percurso na<br />
vida adulta está registrado em versos que de<br />
Cataguases passam por Buenos Aires, Paris,<br />
Roma e São Paulo.<br />
66
<strong>Chicos</strong><br />
Assim como os diversos rios servem para<br />
instigar sua imaginação e despertar emoções<br />
desencontradas: Meia Pataca, Tejo, Tibre,<br />
Tietê. A evocação desses rios constitui motivo<br />
para refletir sobre a passagem inexorável<br />
do tempo, sobre a degradação das cidades e<br />
da natureza, sobre a desumanização, sobre a<br />
condição humana em tempos de tanta imprevisibilidade<br />
e perplexidade.<br />
Cagiano transcende a intimidade da memória<br />
individual para alcançar a comunhão com as<br />
angústias dos homens do seu tempo. Assim,<br />
sutis denúncias se deixam revelar: "O chão<br />
sob essas águas/ me afaga/(ou me afoga)/<br />
entre mercúrio, bauxita e miasmas" (Rio do<br />
sono). E o espanto em relação aos absurdos<br />
do mundo contemporâneo também se evidencia:<br />
"O homem apartado ou dividido,/<br />
sisudo e incomunicável/como um carrossel<br />
alucinado/ na confusão de rostos da babélica<br />
metrópole/tenta sobreviver ao contorcionismo<br />
da espécie,/ ilhado entre civilização e<br />
barbárie/( nessa geografia difusa com todos<br />
os fusos do mundo)/ numa época de trânsfugas<br />
certezas/ nesse ir-e-vir desencantado<br />
(Das ruas da pauliceia: domicílios que me<br />
cabem na desvairada rotina da cidade").<br />
Associações sofisticadas<br />
E o que nos eleva o pensamento e nos faz<br />
experimentar um prazer estético, às vezes<br />
um pouco melancólico diante de sua lúcida<br />
visão de mundo, é o extremo apuro de sua<br />
linguagem, que se opõe radicalmente à repetição<br />
mecânica, aos clichês, às frases feitas,<br />
às expressões gastas e cristalizadas, às fórmulas<br />
fáceis do coloquialismo, aos padrões<br />
convencionais canônicos. O poeta elabora<br />
sempre sofisticadas associações, renovando e<br />
reinaugurando sentidos e significados para o<br />
léxico selecionado.<br />
A cada verso nos deparamos com uma surpreendente<br />
e inesperada organização do pensamento<br />
que configura uma iluminação:<br />
"cardumes de sonhos/ rugosa poeira dos<br />
meus anos/águas andarilhas/ espelho insosso/<br />
cicatrizes de antigas procissões/ estamos vestidos<br />
de alfabetos/ cordilheira de livros/ explodem<br />
cogumelos de ofensas". E os seus<br />
jogos com as diversas possibilidades semânticas<br />
são extremamente criativos: "as lembranças<br />
funerárias da infância/ que o esmeril do<br />
tempo/ não conseguiu (di)lapidar" (Cartão<br />
postal).<br />
Na epígrafes dos poemas e no decorrer dos<br />
versos um vasto repertório cultural alicerça a<br />
estrutura sociocultural das ideias: Rawet,<br />
Kafka, Clarice, Céline, Poe, Augusto dos Anjos,<br />
Proust, Billie Holliday, Almodóvar, Kiarostami,<br />
Ginsberg, Dali, Wim Wenders, Fernando<br />
Pessoa entre outros.<br />
Ao final da leitura concordamos com o que o<br />
poeta diz a Murilo Mendes: "A poesia está<br />
em pânico, Murilo,/ diante desse mundo/ e<br />
seu quartel de demônios. Mas a aventura<br />
transfigurada da beleza da linguagem nos<br />
ajuda, por meio da emoção, a amar mais a<br />
arte e a enfrentar as contradições, dificuldades<br />
e obstáculos da vida, pois o poeta nos<br />
lembra que Existir/ é esse rio insone e tumultuado/(ora<br />
leito ressecado, ora água enxundiosa<br />
a nos desertar)/ com seu cardume de insolências".<br />
(Des(a)tino).<br />
67
<strong>Chicos</strong><br />
Adelto Gonçalves<br />
Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua<br />
e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e<br />
doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade<br />
de São Paulo (USP), é autor de Os Viralatas<br />
da Madrugada (José Olympio Editora,<br />
1981; Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um Poeta<br />
do Iluminismo (Nova Fronteira, 1999), Barcelona<br />
Brasileira (Nova Arrancada, 1999; Publisher<br />
Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido<br />
(Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga<br />
(ABL/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,<br />
2012), entre outros.<br />
Para tirar Rosário Fusco do esquecimento<br />
O romancista, poeta, dramaturgo, jornalista,<br />
crítico literário e advogado Rosário Fusco<br />
(1910-1977) foi uma figura ímpar na Literatura<br />
Brasileira, cujo esquecimento só pode ser<br />
atribuído à indigência mental que tem marcado<br />
a atuação da intelectualidade nacional nos últimos<br />
tempos.<br />
Basta ver que seu livro “Carta à Noiva” (1954)<br />
foi considerado à época de seu lançamento uma<br />
obra-prima por Millôr Fernandes (1923-2012) e<br />
listado pelo jornalista e ficcionista Ivan Ângelo<br />
como uma das dez mais importantes obras de<br />
nossa história literária.<br />
Além disso, o seu romance “O Agressor”<br />
(1939) teve seus direitos comprados por<br />
Orson Welles (1915-1985) à editora italiana<br />
Mondadori, que o lançou na década de 1960,<br />
com um prefácio que comparava o romancista<br />
brasileiro a Franz Kafka (1883-1924) e James<br />
Joyce (1882-1941). Já o professor e crítico Antonio<br />
Candido (1918-2017) o considerou um<br />
raro exemplo de romance surrealista no Brasil.<br />
Não é pouco.<br />
Que ainda não se tenha escrito a sua biografia é<br />
imperdoável lacuna que o poeta e cronista Ronaldo<br />
Werneck tenta minorar com “Sob o Signo<br />
do Imprevisto: Rosário Fusco por Ronaldo Werneck”<br />
(Cataguases-MG, Poemação Produções,<br />
2017), que reúne “lembranças, memórias, evocações<br />
e confissões que constituem um mosaico<br />
capaz de revelar a grandeza deste personagem<br />
intenso, polêmico e essencial”, como observa o<br />
escritor Luiz Ruffato na apresentação que escreveu<br />
para este livro.<br />
Reflexo e credibilidade<br />
Como se sabe, até a década de 1970, a crítica<br />
não levava em conta a vida pessoal dos autores,<br />
pois entendia que a obra era autônoma e valia<br />
por si mesma. Mas, de lá para cá, os críticos<br />
passaram a considerar a literatura também como<br />
reflexo da experiência pessoal do autor, o que<br />
resultou na valorização do gênero biográfico.<br />
Hoje, vive-se uma disputa surda entre jornalistas<br />
e acadêmicos para se apontar quem melhor<br />
produz livros de história e biografias. Os acadêmicos,<br />
obviamente, pesquisam mais e revelam<br />
68
<strong>Chicos</strong><br />
revelam detalhes mais importantes e verídicos<br />
que estavam perdidos em arquivos, mas, com<br />
raras exceções, escrevem com uma sisudez que<br />
afugenta leitores.<br />
Já os jornalistas, com base na experiência acumulada<br />
em redações de jornais e revistas, sabem<br />
como produzir textos atraentes, mas muitos deles<br />
sofrem de “alergia” ao pó dos arquivos. Ou<br />
seja, limitam-se a citar livros impressos, sem base<br />
documental.<br />
Assim, se um historiador publicou alguma invencionice<br />
ou boutade no século 19, por exemplo,<br />
aquela impropriedade é repetida indefinidamente.<br />
O ideal, portanto, seria sempre aliar o texto<br />
bem escrito e de fácil entendimento ao rigor da<br />
pesquisa acadêmica, ainda que as últimas páginas<br />
sejam repletas de citações das fontes consultadas.<br />
É o que dá credibilidade à obra.<br />
Iconoclasta<br />
Com a publicação, o mineiro de Cataguases, Ronaldo<br />
Werneck, poeta e cronista, tenta minorar<br />
uma imperdoável lacuna na fortuna crítica de<br />
Rosário Fusco<br />
No caso de Rosário Fusco, não se sabe ainda se<br />
os arquivos têm muito que revelar. O que se conhece<br />
é que Fusco guardava zelosamente em sua<br />
casa “quilos” de cartas recebidas do poeta Mário<br />
de Andrade (1893-1945), entre outras possíveis<br />
preciosidades, segundo Werneck.<br />
Quem sabe uma pesquisa no Arquivo Nacional<br />
do Rio de Janeiro possa revelar fatos inéditos de<br />
sua atuação no Departamento de Imprensa e<br />
Propaganda (DIP), órgão de censura e propaganda<br />
à época da ditadura de Getúlio Vargas (1882-<br />
1954), uma passagem de sua vida que não seria<br />
edificante, mas que não deve ser vista sob os<br />
olhos de hoje em que as ideologias de direita e<br />
esquerda fracassaram completamente. De fato,<br />
de 1941 a 1943, ele dirigiu, ao lado do jornalista<br />
Almir de Andrade (1911-1991), ideólogo do Estado<br />
Novo (1937-1946), a publicação Cultura<br />
Política: Revista de Estudos Brasileiros, mantida<br />
pelo DIP.<br />
Até por isso, como mostra Werneck, Fusco é<br />
uma personalidade perfeita para uma biografia<br />
de sucesso. Irreverente, iconoclasta, verborrágico<br />
e frasista, deve ter deixado impresso e manuscrito<br />
muito material, além dos livros publicados.<br />
A princípio, essa biografia deveria ser escrita pelo<br />
próprio Werneck ou por Joaquim Branco, nascidos<br />
em Cataguases, que, em sua juventude naquela<br />
mítica cidade do interior de Minas Gerais,<br />
conheceram o romancista já em seus últimos<br />
anos de vida. Ou por Luiz Ruffato, cataguasense<br />
de geração mais recente.<br />
Mas, pensando bem, dessa missão também poderia<br />
encarregar-se um pesquisador literário disposto<br />
a escrever uma tese de doutoramento em<br />
Letras na área de Literatura Brasileira. Nesse caso,<br />
Werneck, Branco e Ruffato seriam fontes indispensáveis.<br />
Até porque a essa altura da vida já<br />
não haveria contemporâneos da época de juventude<br />
de Fusco.<br />
Portanto, “Sob o Signo do Imprevisto” é, desde<br />
já, uma contribuição indispensável e valiosa para<br />
uma futura biografia de Fusco, pois traz não só<br />
as lembranças que Werneck guardou como a famosa<br />
entrevista que o romancista deu a ele e a<br />
Joaquim Branco e publicada pelo semanário Pasquim,<br />
do Rio de Janeiro, na edição de 19 a 25<br />
de março de 1976.<br />
O real independe da existência<br />
Naquela entrevista, depois de dizer que<br />
“ninguém vive de literatura”, Fusco dava como<br />
exemplo o escritor francês Louis-Ferdinand Céline<br />
(1894-1961), que, segundo ele, vivia à custa<br />
de uma jovem mulher e não podia admitir que<br />
um de seus romances pudesse vender apenas 30<br />
mil exemplares, enquanto as memórias de um ex<br />
-secretário da atriz Brigitte Bardot vendiam mais<br />
de 300 mil “só na chamada área parisiense”<br />
(página 102).<br />
Ainda naquela entrevista, esbanjando erudição,<br />
Fusco dizia-se precursor do “realismo fantástico”<br />
no romance sul-americano. Lembrava que Julio<br />
Cortázar (1914-1984) aprendera “a coisa” com<br />
Jorge Luis Borges (1899-1986), que começara<br />
a produzir textos de “realismo fantástico” em<br />
69
<strong>Chicos</strong><br />
em 1942. “Ora, em 39, eu escrevi ‘O Agressor’,<br />
que demorou quatro anos na José Olympio e só<br />
saiu em 43”, argumentava.<br />
Depois, ridicularizou o “realismo fantástico”,<br />
considerando-o “besteira”, lembrando que já<br />
existia o suprarrealismo de André Breton (1896-<br />
1966) e Guillaume Apollinaire (1880-1918). E<br />
acrescentava: “(…) o suprarreal, significando<br />
algo mais que o real ou o outro lado dele, diz<br />
mais do que realismo grudado a fantástico”.<br />
Dizia ainda que o real independe da existência,<br />
podendo até precedê-la. “Tomás de Aquino já<br />
associava a potência e o ato, ou distinguia o ser<br />
da existência (coisa que o vosso amigo Sartre<br />
explorou às pampas) pois que a essência precede<br />
a existência (Heidegger, Husserl etc.)”, afirmava<br />
aos entrevistadores.<br />
Para Fusco, vivia-se (e vivemos ainda!) um tempo<br />
semântico. “A mesma coisa e a mesmice se<br />
impondo com outros nomes. Inventa-se uma palavra<br />
(inventa-se ou valoriza-se) e logo vem uma<br />
teoria para lhe dar curso”, dizia (pp.91-92).<br />
Trajetória<br />
Rosário Fusco (1910-1977), cujo esquecimento<br />
só pode ser atribuído à indigência mental que<br />
tem marcado a atuação da intelectualidade nacional<br />
nos últimos tempos<br />
Rosário Fusco de Souza Guerra, nascido em São<br />
Geraldo-MG, filho de um comerciante italiano e<br />
de uma lavadeira, ficou órfão de pai logo em<br />
seus primeiros meses de vida e mudou-se com a<br />
família para Cataguases. Em 1925, com 15 anos<br />
de idade, iniciou intensa correspondência com o<br />
grupo modernista de São Paulo e começou, bastante<br />
cedo, a publicar seus poemas no jornal<br />
Mercúrio, da Associação Comercial de Cataguases.<br />
Ainda aluno do ginásio de Cataguases, frequentou<br />
as sessões do Grêmio Literário Machado de<br />
Assis e participou da fundação do grupo Verde,<br />
responsável pelo lançamento da revista “Verde”,<br />
importante publicação modernista editada entre<br />
1927 e 1929. Essa revista contou com a colaboração<br />
de poetas, escritores e ilustradores modernistas<br />
do Brasil e de outros países.<br />
Em 1932, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde<br />
concluiu, em 1937, o curso de Direito na Universidade<br />
do Brasil, atual Universidade Federal do<br />
Rio de Janeiro (UFRJ), e realizou intensa atividade<br />
na imprensa como crítico e jornalista. Nessa<br />
época, trabalhou também como publicitário, cronista<br />
de rádio, redator-chefe da revista “A Cigarra”,<br />
crítico literário do “Diário de Notícias”, do<br />
Rio de Janeiro, secretário da Universidade do<br />
Distrito Federal e procurador do Estado de Guanabara,<br />
cargo em que se aposentou.<br />
Depois de trabalhar, na década de 1940, como<br />
adido da Embaixada do Brasil em Santiago do<br />
Chile, candidatou-se a deputado federal pelo Estado<br />
do Rio de Janeiro, na década de 1950, mas<br />
não conseguiu se eleger, apesar do slogan criativo<br />
que exibia: “Não fique confuso, fique com<br />
Fusco”. Sua justificativa: “Os imbecis não me<br />
entenderam, o que, aliás, não é novidade”. Por<br />
volta de 1960, mudou-se para Nova Friburgo-RJ,<br />
onde permaneceu até 1968, tendo retornado em<br />
seguida para Cataguases, onde faleceu.<br />
Em 2000, a editora Bluhum, do Rio de Janeiro,<br />
relançou “O Agressor”. Em 2003, a Ateliê Editorial,<br />
de Cotia-SP, publicou um dos livros que<br />
Fusco deixou inédito, “A.S.A. – Associação dos<br />
Solitários Anônimos”, definido como “uma rapsódia<br />
surrealista” pelo crítico Manuel da Costa<br />
Pinto.<br />
Fusco publicou mais dois romances – “O Livro<br />
do João” (1944) e “Dia do Juízo” (1961) –, além<br />
de obras de poesia, ensaios e teatro. Segundo<br />
Werneck, existem ainda outros inéditos, como<br />
“Vacachuvamor”, romance; “Um Jaburu na Tour<br />
Eiffel”, livro de viagem; e “Creme de Pérolas”,<br />
poemas eróticos.<br />
70
Pasolini<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Pier Paolo Pasolini nasceu em Bolonha<br />
05.03.1922, morreu em Óstia, 02.11.1975. Cineasta,<br />
poeta e escritor italiano. Em seus trabalhos,<br />
demonstrou uma versatilidade cultural<br />
única, que serviu para transformá-lo numa figura<br />
controversa. Seu trabalho continua a gerar<br />
polêmica e controvérsia até hoje.<br />
O poder sem rosto<br />
O que é a cultura de uma nação? É crença<br />
corrente, também de parte de pessoas cultas,<br />
que esta é a cultura dos investigadores, dos<br />
políticos, dos professores, dos literatos, dos<br />
cineastas, etc.; ou seja, que é a cultura da<br />
intelligentsia. Todavia, não é assim. Nem tão<br />
pouco a cultura da classe dominante, que,<br />
precisamente através da luta de classes, procura<br />
impô-la pelo menos formalmente. Não é<br />
tão pouco, enfim, a cultura da classe dominada,<br />
isto é, a cultura popular dos operários<br />
e dos camponeses. A cultura de uma nação é<br />
o conjunto de todas estas culturas de classe:<br />
é a média delas. E seria por conseguinte abstracta<br />
se não fosse reconhecível – ou, a bem<br />
dizer, visível – na vida vivida e no existencial,<br />
e se não tivesse consequentemente uma<br />
dimensão prática. Durante muitos séculos em<br />
Itália estas culturas eram distinguíveis apesar<br />
de historicamente unificadas. Hoje – quase<br />
de repente, com uma espécie de Advento –<br />
distinção e unificação históricas cederam o<br />
lugar a uma homologação que concretiza<br />
quase miraculosamente o sonho entreclassista<br />
do velho Poder. A que se deve tal<br />
homologação? Evidentemente a um novo Poder.<br />
Escrevo “Poder” com maiúscula – coisa que<br />
Maurizio Ferrara acusa de irracionalismo em<br />
«l'Unità» (12-6-1974) – apenas porque sinceramente<br />
não sei em que consiste este novo<br />
Poder e quem o representa. Sei simplesmente<br />
que existe. Não o reconheço no Vaticano,<br />
nem nos poderosos cristãos, nem nas Forças<br />
Armadas. Já nem o reconheço na grande indústria<br />
porque esta deixou de ser constituída<br />
por um número determinado e limitado de<br />
grandes industriais: tenho para mim, pelo<br />
menos, que esta surge, pelo contrário, como<br />
um todo (industrialização total), e, além do<br />
mais, como um todo não italiano<br />
(transnacional).<br />
71
<strong>Chicos</strong><br />
Conheço, também porque as vejo e as vivo,<br />
algumas das características deste novo Poder<br />
ainda sem face: a recusa pelo antigo sanfedismo<br />
(1) e pelo antigo clericalismo, a decisão<br />
de abandonar a Igreja, a determinação<br />
(coroada como triunfo) de transformar camponeses<br />
e sub-proletários em pequenos burgueses,<br />
e sobretudo a mania, cósmica, por<br />
assim dizer, de executar até ao fim o<br />
“Progresso”: produzir e consumir.<br />
O retrato deste novo rosto ainda em branco<br />
do novo Poder atribui-lhe traços vagamente<br />
“moderados”, devidos à tolerância e a uma<br />
ideologia hedonista auto-suficiente; mas também<br />
traços ferozes e substancialmente repressivos:<br />
a tolerância é falsa, pois nunca nenhum<br />
homem foi obrigado a ser tão normal<br />
e conformista como o consumidor. Quanto<br />
ao hedonismo, este esconde evidentemente<br />
uma decisão de pré-ordenar tudo com tal impiedade<br />
que a história jamais conheceu até<br />
hoje. Portanto, este novo Poder ainda sem<br />
representantes, que se deve a uma<br />
«mutação» da classe dominante, é na verdade<br />
– se quisermos preservar a velha terminologia<br />
– uma forma total de fascismo. Mas<br />
esse Poder também “homologou” culturalmente<br />
a Itália: trata-se, portanto, de uma homologação<br />
repressiva, apesar de ter sido alcançada<br />
através da imposição do hedonismo<br />
e da joie de vivre. A estratégia da tensão é<br />
um indício, ainda que substancialmente anacrónico,<br />
de tudo isto.<br />
Maurizio Ferrara, no artigo citado (tal como<br />
Ferrarotti, em « Paese Sera », 14-6-1974),<br />
acusa-me de estetismo. E com isto tende a<br />
excluir-me, a circunscrever-me. Muito bem: a<br />
minha pode ser a óptica de um « artista »,<br />
isto é, como pretende a boa burguesia, de<br />
um louco. Mas o facto que dois representantes<br />
do velho Poder (que agora servem, na<br />
verdade, ainda que interlocutoriamente, o<br />
Poder novo) se tenham chantageado mutuamente<br />
a propósito de financiamentos aos<br />
partidos e dos caso Montesi, pode ser também<br />
um bom motivo para enlouquecer: ou<br />
seja, desacreditar totalmente uma classe dirigente<br />
e uma sociedade diante dos olhos de<br />
um homem, a ponto de o fazer perder o sentido<br />
de oportunidade e dos limites, lançandoo<br />
num verdadeiro e autêntico estado de<br />
«anomia». Vai dito, aliás, que o ponto de<br />
vista dos loucos é de tomar em séria consideração:<br />
a menos que se queira progredir em<br />
tudo salvo no problema dos doidos e limitarse<br />
comodamente a mantê-los à margem.<br />
Há certos loucos que olham para a cara das<br />
pessoas e para o seu comportamento. Mas<br />
não porque sejam epígonos do positivismo<br />
lombrosiano (2) (como grosseiramente insinua<br />
Ferrara), mas porque conhecem a semiologia.<br />
Sabem que a cultura produz códigos;<br />
que os códigos produzem o comportamento;<br />
que o comportamento é uma linguagem; e<br />
que em determinado momento histórico em<br />
que a linguagem verbal é totalmente convencional<br />
e estéril (técnica) a linguagem do<br />
comportamento (físico e mímico) assume<br />
uma importância decisiva.<br />
Voltando assim ao início do nosso discurso,<br />
parece-me que temos boas razões para afirmar<br />
que a cultura de uma nação (em concreto<br />
a Itália) é hoje exprimida sobretudo através<br />
da linguagem do comportamento, a linguagem<br />
física, mais uma determinada quantidade<br />
– completamente convencional e extremamente<br />
pobre – de linguagem verbal.<br />
É a este nível de comunicação linguística que<br />
se manifestam: a) a mutação antropológica<br />
dos italianos; b) a sua completa homologação<br />
a um modelo único.<br />
Portanto: decidir deixar crescer o cabelo até<br />
às costas, ou mesmo cortar o cabelo e deixar<br />
crescer o bigode (numa evocação prénovecentista);<br />
decidir pôr uma banda na cabeça<br />
ou enfiar uma boina até aos olhos; decidir<br />
sonhar com um Ferrari ou com um<br />
Porsche; seguir com atenção os programas<br />
televisivos; conhecer os títulos de alguns<br />
72
<strong>Chicos</strong><br />
best-seller; vestir-se com calças e camisolas<br />
prepotentemente na moda; ter relações obsessivas<br />
com mulheres postas de lado como<br />
meros adornos, mas, ao mesmo tempo, com<br />
a pretensão de que são «livres» etc. etc. etc.:<br />
tudo isto são actos culturais. Hoje, todos os<br />
jovens italianos cumprem estes mesmo actos,<br />
têm a mesma linguagem física, são permutáveis;<br />
uma coisa velha como o mundo, se estiver<br />
limitada a uma classe social, a uma categoria:<br />
mas o facto é que estes actos culturais<br />
e esta linguagem somática são interclassistas.<br />
Numa praça repleta de jovens, já<br />
ninguém poderá distinguir, pelo corpo, um<br />
operário de um estudante, um fascista de um<br />
antifascista; algo que ainda era possível em<br />
1968.<br />
Os problemas de um intelectual pertencente<br />
à intelligentsia são diferentes dos de um<br />
partido e de um homem político, ainda que a<br />
ideologia seja a mesma. Gostaria que os<br />
meus actuais opositores de esquerda compreendessem<br />
que estou em condições de dar-me<br />
conta que, caso o Progresso sofresse detenção<br />
e tivesse uma recessão, se os Partidos de<br />
Esquerda não apoiassem o Poder vigente, a<br />
Itália simplesmente se desmantelaria; se pelo<br />
contrário, o Progresso continuasse tal como<br />
começou, seria indubitavelmente realista o<br />
chamado «compromisso histórico», o único<br />
modo para tentar corrigir esse Progresso no<br />
sentido indicado por Berlinguer na sua relação<br />
com o CC do partido comunista (cfr.<br />
«l’Unità », 4-6-1974). Todavia, como a Maurizio<br />
Ferrara não competem as «caras», a<br />
mim não compete esta manobra de prática<br />
política. Aliás, eu tenho, quando muito, o<br />
dever de exercitar sobre ela a minha crítica,<br />
quixotescamente e talvez de maneira extrema.<br />
Quais são, então, os meus problemas?<br />
Eis um, por exemplo. No artigo que suscitou<br />
esta polémica («Corriere della sera», 10-6-<br />
1974) lia-se que os reais responsáveis pelos<br />
atentados de Milão e de Brescia (3) são o<br />
governo e a polícia italiana: porque se o governo<br />
e a polícia tivessem querido, estes<br />
atentados não teriam tomado lugar. É um<br />
lugar comum. Pois bem, por esta altura vão<br />
fazer pouco de mim se disser que os responsáveis<br />
destes atentados somos também nós<br />
progressistas, antifascistas, homens de esquerda.<br />
De facto, em todos estes anos não<br />
fizemos nada:<br />
1) para que falar de «atentados de Estado»<br />
não se tornasse num lugar comum e que ficasse<br />
por ali;<br />
2) (e mais grave) não fizemos nada para que<br />
os fascistas não existissem. Apenas os condenámos<br />
gratificando a nossa consciência com<br />
a nossa indignação; e quanto mais forte e<br />
petulante era a indignação, mais tranquila<br />
estava a nossa consciência.<br />
Na verdade, comportámo-nos com os fascistas<br />
(falo sobretudo dos jovens) de maneira<br />
racista: quisemos apressada e impiedosamente<br />
acreditar que eles estavam predestinados<br />
racialmente a serem fascistas e, perante esta<br />
decisão do destino deles, não havia nada a<br />
fazer. E não o escondamos: todos sabíamos,<br />
no fundo da nossa consciência, que quando<br />
um daqueles jovens tomava a decisão de tornar-se<br />
fascista, era puramente casual, não era<br />
um gesto desmotivado ou irracional: talvez<br />
tivesse bastado uma só palavra para que isso<br />
não tivesse acontecido. Mas nenhum de nós<br />
falou com eles ou a eles. Aceitámo-los imediatamente<br />
como representantes inevitáveis<br />
do mal. E talvez fossem rapazes e raparigas<br />
adolescentes nos seus dezoito anos, que não<br />
sabiam nada de nada, e atiraram-se de cabeça<br />
nesta horrenda aventura por simples desespero.<br />
Mas não conseguíamos distingui-los dos outros<br />
(não digo dos outros extremistas: mas de<br />
todos os outros). É esta a nossa aterradora<br />
justificação.<br />
O padre Zósima (a literatura pela literatura!)<br />
soube de imediato distinguir, entre todos<br />
aqueles que se amontoavam na sua cela,<br />
73
<strong>Chicos</strong><br />
Dimitri Karamazov, o parricida. Então levantou-se<br />
da sua cadeira e foi prostrenar-se diante<br />
dele. E fê-lo (como diria mais tarde ao<br />
Karamazov mais novo) porque Dimitri estava<br />
destinado a cometer o mais terrível acto e<br />
a suportar a mais desumana dor.<br />
Pensem (se tiverem forças) naquele rapaz ou<br />
naqueles rapazes que foram plantar bombas<br />
na praça de Brescia. Não era de nos levantarmos<br />
e de irmos prosternar-nos diante deles?<br />
Mas eram jovens de cabelos compridos,<br />
ou com bigodes à século XX, tinham bandas<br />
na cabeça ou boinas enfiadas até aos olhos,<br />
eram pálidos e presunçosos; o problema deles<br />
era vestirem-se à moda e todos da mesma<br />
maneira, ter um Porsche ou um Ferrari,<br />
ou mesmo motas para as conduzirem como<br />
pequenos arcanjos idiotas com mulheres ornamentais<br />
atrás, sim, mas modernas, e a favor<br />
do divórcio, da libertação da mulher, e<br />
em geral do progresso... Eram, enfim, jovens<br />
como todos os outros: nada os distinguia<br />
fosse como fosse. Mesmo que o tivéssemos<br />
pretendido não teríamos sido capazes de nos<br />
prosternarmos diante deles. Porque o velho<br />
fascismo, ainda que através da degeneração<br />
retórica, distinguia: enquanto que o novo<br />
fascismo – que é toda outra história – deixou<br />
de distinguir: não é humanamente retórico,<br />
é americanamente pragmático. O seu<br />
objectivo é a reorganização e a homologação<br />
brutalmente totalitária do mundo.<br />
(1) O Sanfedismo, cujo nome deriva de<br />
“Exército da Santa Fé”, foi um movimento<br />
religioso anti-republicano nascido no final<br />
do séc. XVIII na Itália meridional quando as<br />
monarquias tradicionais foram depostas e<br />
substituídas pelas repúblicas napoleónicas.<br />
Os sanfedisti eram grupos e associações religiosas<br />
que lutavam pela defesa da Santa Fé<br />
e das monarquias tradicionais.<br />
(2) Marco Ezechia Lombroso, também conhecido<br />
por Cesare Lombroso, um dos expoentes<br />
do positivismo, foi o fundador da antropologia<br />
da criminalidade. As suas teorias,<br />
influenciadas pela fisiognonomia, pelo darwinismo<br />
social e pela frenologia, baseavamse<br />
no conceito de “criminoso à nascença”;<br />
teorias que defendiam que a criminalidade<br />
era hereditária e que partir da identificação<br />
de certas características anatómicas à nascença,<br />
se poderia deduzir que determinado<br />
indivíduo se tornaria num criminoso.<br />
(3) Pasolini refere-se aos atentados de Piazza<br />
Fontana em Milão (12/12/1969) e de Piazza<br />
della Loggia em Brescia (28/05/1974), dois<br />
actos terroristas neofascistas. O primeiro é<br />
considerado o ponto de partida e o momento<br />
incandescente dos “anos de chumbo” em<br />
Itália, que culminou em vários atentados terroristas<br />
até ao início dos anos 80; o segundo,<br />
foi um atentado terrorista fascista que<br />
teve lugar no decurso de uma manifestação<br />
contra o terrorismo neofascista, onde uma<br />
bomba explodiu e provocou a morte de 8<br />
pessoas e feriu outras 102.<br />
Publicado originalmente no «Corriere della<br />
Sera» a 24 de Junho de 1974 com o título<br />
"O poder sem rosto”.<br />
Tradução: João Coles<br />
Esta tradução foi publicada originalmente no blog;<br />
http://www.enfermaria6.com<br />
74
<strong>Chicos</strong><br />
Clips<br />
caráter introdutório da obra, que constitui a primeira<br />
fonte sistemática da poesia peruana para o<br />
público brasileiro.<br />
El río hablador / O rio que fala - Antologia<br />
da poesia peruana / Antología de<br />
la poesía peruana<br />
Everardo Norões<br />
Editora 7letras<br />
ano de edição: 2007<br />
O Rio que Fala, uma tradução do nome<br />
do rio Rimac, de origem quíchua, essa antologia<br />
apresenta um panorama da poesia peruana produzida<br />
nos últimos cinquenta anos como uma<br />
corrente de múltiplas vozes, numa tentativa de<br />
expor a tradição poética do Peru, geralmente,<br />
desconhecida do público brasileiro.<br />
Em O Rio que Fala, o leitor terá contato com<br />
uma seleção de poemas que, se restringe a visão<br />
de um objeto tão vasto por conta dos critérios<br />
subjetivos próprios das antologias, oferece, por<br />
outro lado, uma perspectiva relevante pela organização<br />
dos autores segundo a geração e o projeto<br />
poético a que pertencem, demarcando o<br />
Como num naufrágio interior morremos<br />
Alberto Pereira<br />
Editora Urutau<br />
ano de edição: 2019<br />
Um monólogo interior torrencial à procura<br />
do espaço do poema. O que me agrada<br />
na poesia de Alberto Pereira é o fulgor da palavra,<br />
o tapete poético que ele estende para o<br />
pensamento. A poesia portuguesa contemporânea<br />
renova-se, cruza-se num rio de vozes e é aí,<br />
nessa fissura de encontros, que Alberto Pereira<br />
tece a sua rede de palavras, de referências e de<br />
invocações, numa elegância e num envolvimento<br />
singulares em que predomina a metáfora, a<br />
imagem corpórea e a reflexão filosófica. Uma<br />
poesia que surpreende, agita, questiona e comove,<br />
o que para o leitor é uma matéria luminosa.<br />
Jaime Rocha<br />
75
<strong>Chicos</strong><br />
Fundamentos de ventilação e apneia<br />
Alberto Bresciani<br />
Editora Patuá<br />
ano de edição: 2019<br />
Em Fundamentos de Ventilação e Apneia, Alberto<br />
Bresciani materializa o flerte que manteve com a<br />
temática dos animais, nos seus livros anteriores,<br />
Incompleto Movimento e Sem Passagem para Barcelona.<br />
Equipado pelo refinamento imagético próprio<br />
de sua poesia, o poeta embrenha-se no universo<br />
de ursos, golfinhos, hienas, carpas, corujas, entre<br />
outros, como um taxidermista da palavra, ávido<br />
por ressignificar a si, o outro e seu tempo.<br />
Da mesma forma, nos poemas que escapam à ideia<br />
central da obra, Bresciani parece inspirar-se na observação<br />
acurada dos movimentos, da respiração,<br />
da inteligência estratégica e do comportamento<br />
nem sempre comezinho dos bichos, para compor<br />
um technicolor sobre solidão, medo, incredulidade,<br />
estranhamento e dor, “que nenhum glóbulo branco<br />
desfaz”; um filme que não termina com um final<br />
feliz, ou a superação do conflito poético, mas com<br />
a aceitação inconvicta da pequenez humana.<br />
Procedamos, então, à leitura da poesia brescianiana,<br />
porquanto “às vezes é melhor não dizer nada,<br />
ou quase”.<br />
Brasília, janeiro de 2019<br />
Noélia Ribeiro<br />
Estórias Pitorescas de Cataguases<br />
Washington Magalhães<br />
Editora TicTac<br />
ano de edição: 2019<br />
Com humor e ironia Washington Magalhães<br />
narra acontecimentos “inenarráveis”, coisas<br />
cabeludas como ele diz que a história oficial<br />
não conta. Nem poderia contar.<br />
Contatos com o autor (032) 9 8848-7502<br />
Emerson T. Cardoso, Juca Fusco e alunos do Clóvis Salgado<br />
Dia desses no Clóvis Salgado, escola aqui de<br />
Cataguases, celebrando o modernismo. A presença<br />
de Vicente Rosário Fusco (Juca Fusco)<br />
falando do pai Rosário Fusco, o Enfant Terrible<br />
da Revista Verde.<br />
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<strong>Chicos</strong><br />
Vincent Mengeot retorna a Bélgica para mostrar sua obra<br />
O artista plástico, que com sua esposa Jussara, mora<br />
num sítio em Itamarati de Minas. Ali, além de<br />
cuidar da pequena propriedade, dedica-se a pintar<br />
suas telas. As paisagens da região, cenas do cotidiano<br />
e personagens da lida diária rural lhe inspira e<br />
seus pinceis registram nas telas. Senhor de uma técnica<br />
apurada consegue como poucos traduzir a luz<br />
da zona da mata mineira.<br />
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