Orion 3 & 4
Sci-Fi fantasy web-zine
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ORION É UM FANZINE DE SCI-FI E FANTASIA COM UMA VERSÃO ELECTRÓNICA (WEB) E UMA IMPRESSA (APENAS<br />
PARA OS COLABORADORES)<br />
COORDENAÇÃO E EDIÇÃO: RENATO ABREU<br />
COLABORAÇÃO NESTE NÚMERO: RENATO ABREU, ORNELLA MICHELI, LUÍS LOURO, SOFIA GONÇALVES LOBO,<br />
NICOLA RETTINO, JOSÉ DE MATOS-CRUZ, BERNARDINO COSTANTINO, JEREMY SMOOKLER, MARCO LIMBO<br />
MARAGGI, LUÍS FILIPE SILVA, LÉO QUIÈVREUX, FRANÇOISE DUVIVIER, ANDRO MALÍS, SHARA FISTHOLE, JOAN<br />
BLAISSE<br />
MAIL: ZORION@SAPO.PT<br />
ACESSO Á VERSÃO ELECTRÓNICA: HTTPS://ZORION2.WIXSITE.COM/WEBSITE<br />
FACEBOOK (COM INFORMAÇÃO SOBRE AS COLABORAÇÕES E AUTORES): HTTPS://WWW.FACEBOOK.COM/ZORION-<br />
257337514876298/<br />
C \ - B C<br />
2ª 3ª - Marco Limbo Maraggi<br />
Sofia Gonçalves Lobo - (pag. 2)<br />
Joan Blaisse - (pag. 6)<br />
Léo Quiévreux - (pag. 14)<br />
José de Matos-Cruz/Luis Louro - , , <br />
(págs 21, 22, 23)<br />
Françoise Duvivier - (págs. 24; 25; 26; 27)<br />
Luís Filipe Silva/Ornella Micheli - , 2.0 (pág. 28)<br />
Bernardino Costantino - “ ?” (Pág. 32)<br />
José de Matos-cruz/Renato Abreu - . (Pág. 60)<br />
Renato Abreu - “ - “ texto por José de Matos-Cruz (pág, 62)<br />
Renato Abreu - “-” (págs 85 e 122)<br />
Bernardino Costantino - " " story by "Nervous Gender Reloaded" (Edward Stapleton-Matt<br />
Comeione). (Pág, 74)<br />
José de Matos-Cruz/Renato Abreu - (pág, 86)<br />
Andro Malis - “ " (pág. 88)<br />
José de Matos-Cruz/Renato Abreu - - , (pág. 98)<br />
Nicola Rettino- “ ” (pág. 100)<br />
José de Matos-Cruz/Shara Fisthole - (pág. 116)<br />
José de Matos-Cruz/Nicola Rettino - (pág.118)<br />
José de Matos - Cruz/Jeremy Smookler - (pág.120)<br />
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Mãe Biónica<br />
Sofia Guilherme Lobo<br />
Anôa era a mais velha residente da Casa das Mães e não parecia ter intenções de mudar para a Casa Sénior tão<br />
cedo. A azáfama das mães e das pequenas crianças não a incomodavam, pelo contrário. Naquele dia em especial a<br />
confusão era maior do que o normal, uma criança tinha apanhado, de alguma forma, uma bactéria contagiosa comum<br />
e as mães juntaram todas as que ainda não a tinham apanhado e o resultado foi uma choradeira sem fim e o cheiro de<br />
leite azedo, fezes e infeção. Uma das mães colocou um pequeno chorão no seu quarto, um convite para ela sair. Não<br />
resultou e a noite foi de insónia.<br />
Entre uma muda de fralda e um vómito de leite azedo, Anôa lá adormeceu, com o pequeno moleque em cima<br />
do peito, de polegar na boca, a chupar um pouco mais consolado, a mãe, em pé, ao lado da cama... nunca dormia; e<br />
acordou assim… a mãe continuava ali, alerta, sempre, sem questionar, sem um queixume, sempre pronta para atender<br />
quem dela necessitava.<br />
- Acordáste. – Disse a mãe numa voz complacente, a repreender sem recriminar. – Estás atrasada para as aulas,<br />
o teu Educador já perguntou por ti eu disse que estavas a dormir com um ovo e que não o podias partir.<br />
O comentário originou uma risada forte de Anôa que acordou o dito ovo. Mali, assim se chamava a menina,<br />
bocejou. Estava com melhor cara, o sono foi reconfortante e apaziaguador. O ponto alto da infeção já tinha passado e<br />
tal como Mali todas as outras crianças iam melhorar.<br />
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Anôa pegou em Mali, que tinha saído de dentro<br />
dela, e devolveu-a à mãe, uma das mães, uma mãe biónica<br />
com uma inteligência artificial cujo único objetivo era ser<br />
mãe, saltou da cama, cobriu-se com um vestido de linho<br />
com pequenas flores pintadas na bainha, calçou as<br />
sandálias de corda e saiu com um beijo nas bochechas de<br />
Mali e outro no rosto metálico da mãe.<br />
Diziam que em tempos tinham sido pessoas de<br />
verdade, modificadas eletronicamente, fora-lhes<br />
incorporado uma inteligência artificial programada para<br />
o desempenho daquela função, tal como aos Educadores<br />
e aos Cuidadores.<br />
Anôa fazia isto muitas vezes, escapava das aulas a<br />
meio da manhã e dava uma corrida rápida até à praia no<br />
rio.<br />
Quinhentos metros de floresta fechada a<br />
separavam do recreio da escola até àquela pequena clareira<br />
de areia grossa salpicada por pedras. Ágil, ao primeiro pé<br />
na areia, desfazia-se da roupa em segundos e após dois<br />
saltos atirava-se de cabeça para o fundo do rio surgindo<br />
alguns metros mais baixo na curva onde a praia acabava e<br />
começava a formação côncava com a graça de um ilha ao<br />
centro.<br />
Anôa não precisava de grande esforço para chegar<br />
ao topo onde se deitava, deliciada, de rosto voltado para<br />
a superfície das águas calmas do rio, as pernas dançavam<br />
atrás da sua cabeça. Era uma menina quase mulher, tinha<br />
crescido de uma forma muito rápida, o que lhe<br />
proporcionou uma estranha magreza de ossos salientes e<br />
pouca carne. Era preocupação constante das mães que<br />
insistiam na sua alimentação.<br />
De olhos pequenos, redondos, curiosos, de um<br />
verde muito vivo e nariz aquilino num rosto em forma de<br />
coração onde os lábios pareciam que bailavam animados<br />
de boa disposição. Anôa não era bonita mas era<br />
engraçada, bem-humorada, cheia de vitalidade e boa<br />
disposição, uma força da natureza que cansava todos e era<br />
causa de distração.<br />
Ali era o seu lugar secreto, onde podia admirar um<br />
velho peixe de dentes afiados e que já considerava seu<br />
amigo. Acompanhava o seu ritual, diário, que consistia<br />
em apanhar conchas do fundo do rio e, depois,<br />
consecutivamente, atirava-as contra a rocha até se<br />
partirem para se alimentar do seu conteúdo. Fazia isto<br />
repetidamente, incansável, chegando a durar duas horas a<br />
partir as conchas mais rígidas e disso dependia a sua vida.<br />
Anôa sentia-se fascinada com aquela determinação.<br />
Aquela tarefa tinha o fim de suprimir a<br />
necessidade do peixe se alimentar. Se deixasse de o fazer<br />
morreria de fome, chegou a essa conclusão como uma<br />
revelação.<br />
Executar uma tarefa. Seria isso possível?<br />
Extraordinário!! Tinha que experimentar.<br />
Atirou-se á água, apanhou duas conchas, partiu-as<br />
de encontro à rocha e engoliu a magra recompensa. Pulou<br />
e riu, cheia de orgulho em si própria, um novo<br />
sentimento se apoderava dela, uma autossatisfação<br />
impossível de ser descrita.<br />
Tinha executado uma tarefa que lhe<br />
proporcionou alimento. Isso era novidade.<br />
No reduto do Círculo Arco Íris os Cuidadores<br />
executavam todas as tarefas de subsistência enquanto as<br />
Mães cuidavam das crianças e os Educadores ensinavam.<br />
Era assim desde que aquela Colónia tinha<br />
chegado àquele planeta, uma nave com um exército de<br />
Cuidadores, Mães e Educadores, cuja única finalidade era<br />
defender, criar e educar uma centena de humanos, ainda<br />
em estado embrionário, ativados quando a chegada após<br />
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cento e cinquenta anos de viagem. Anôa já fazia parte da<br />
segunda geração, onde a inteligência artificial<br />
proporcionava todas as suas necessidades.<br />
E se um dia eles desaparecessem? Podia ir apanhar<br />
conchas e alimentar-se delas?<br />
Essa pergunta aterrorizou-a de repente. E se…?<br />
Lembrou-se de que uns dias antes um cuidador<br />
andava em círculos na praça do Reduto como se não<br />
soubesse o que devia fazer e continuou assim durante<br />
algum tempo até acabar inerte no chão e outros<br />
Cuidadores o levarem como algo de inútil.<br />
Tinha avariado, diziam os mais velhos. Já não<br />
tinha utilidade.<br />
E quando todos avariassem? Quem lhes ia prover<br />
alimentos? Manter as casas quentes, confortáveis e limpas?<br />
Os Cuidadores estavam desenvolvidos para<br />
executarem repetidamente determinadas tarefas que<br />
sustentavam o Reduto, sem eles, passariam a ser como<br />
aquele peixe. Parecia algo saído de um conto de horror,<br />
contudo, para Anôa, a ideia não lhe pareceu assim tão má.<br />
Afastou as nuvens escuras do medo, do eterno<br />
desconhecido, e voltou a nado até à praia para se vestir,<br />
sem pensar sequer de onde vinha aquela roupa de tecido<br />
quente e macio, que lhe surgia, todos os dias, dobrada e<br />
limpa, nas prateleiras do seu canto.<br />
O retorno até ao recreio demorou o seu tempo.<br />
Nunca havia pressa para nada, as Mães estavam na Casa<br />
das Mães, os Cuidadores faziam tudo e os Educadores,<br />
bem, não se incomodavam com ausências de participantes<br />
desde que soubessem onde eles andavam. Os Educadores<br />
parecia que sabiam sempre onde andavam todos.<br />
Ainda fez um pequeno desvio pelo caminho, até<br />
àquele lugar que todos consideravam sagrado e<br />
reverenciavam, mas sem terem muita coragem para se<br />
aproximarem.<br />
Um gigante de ferro já meio coberto por alguma<br />
vegetação e que foi a casa da primeira geração dos homens<br />
da Nova Terra, ‘o berço da terra, era assim que era<br />
chamada,’ a Nave, em forma de ovo, atravessou a galáxia<br />
até àquele ponto remoto no espaço de Oríon. Outras<br />
viriam, diziam as Mães, mas até as vozes delas se<br />
silenciaram das promessas. Ficou apenas um desejo e uma<br />
espera mal exprimida, porque ninguém sabia bem o que<br />
devia esperar. Contudo, era ali que os Cuidadores faziam<br />
a maioria das suas tarefas no mais profundo silêncio.<br />
Ao contrário dos Cuidadores, os Educadores<br />
falavam.<br />
- Anôa, voltaste. Como estava a água do rio hoje?<br />
Não muito fria, suponho, a temperatura não te impediu<br />
de mergulhar? Muito semelhantes aos seres humanos,<br />
estas inteligências artificiais tinham um corpo mecânico,<br />
revestido de pele, que cobriam com umas túnicas brancas.<br />
Os rostos eram os mais idosos que conheciam, visto que<br />
no Reduto ninguém tinha mais de cinquenta anos e<br />
gozavam de boa saúde. A voz era suave e assertiva, de uma<br />
paciência infinita, mas afinal, era essa a função deles.<br />
Alguns dos jovens do recreio acharam graça à<br />
chamada de atenção.<br />
- A água está gelada nesta altura do ano!!!<br />
- Não achei nada!!- Reclamou. – E sabem o que<br />
fiz? Apanhei conchas do fundo rio, parti-as e comi-as.<br />
Mas ninguém lhe prestou mais atenção e<br />
continuaram a desenhar-se uns aos outros, tarefa do<br />
recreio naquele dia. O seu lugar, no banco de pedra,<br />
estava à sua espera, com um bloco de folhas em branco e<br />
alguns lápis afiados. E de onde vinham as folhas e os lápis?<br />
Como eram feitos? Como seria se um dia acabassem?<br />
O Educador sentou-se a seu lado, pegou no bloco<br />
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e ele próprio desenhou, em traços rápidos, o rosto<br />
perturbado da aluna e virou-o para que ela o visse.<br />
- Que te perturba?<br />
- Que vai acontecer quando os Cuidadores caírem<br />
todos? – Perguntou finalmente.<br />
-Tudo. – Respondeu. – Como quando partiste a<br />
concha e te alimentaste do seu interior, um dia terás de<br />
partir outras conchas.<br />
- Mas eu não sei como fazer isso!<br />
- Mas podes aprender.<br />
- Como?<br />
- Não sei. Tens de ser tu a descobrir. Eu só tenho<br />
uma função, mas o homem tem todas as que quiser.<br />
Como aprendeste a partir a concha?<br />
- Observei e imitei até conseguir.<br />
- Então observa…<br />
Anôa olhou à sua volta, ao longe uma mãe<br />
destacava-se das outras, a Mãe, apesar de serem todas<br />
iguais, era a sua Mãe, e aquela criança embalada nos seus<br />
braços metálicos, devia estar nos seus braços. Era assim<br />
que devia ser. Determinada, levantou-se e disse:<br />
- Vou ser Mãe, vou ser Cuidadora e um dia vou<br />
ser Educadora.<br />
O Educador já tinha um discurso preparado, mas<br />
ela nem lhe deu tempo de responder, algures na sua<br />
Inteligência Artificial concluiu que era uma escolha lógica<br />
e continuou a lição do dia aos restantes alunos. Desta vez<br />
mudou completamente o tema para algo inesperado.<br />
- Vamos para o rio!<br />
- Fazer o quê Mestre?<br />
- Vamos aprender a pescar. – E se pudesse teria<br />
rido das expressões confusas daqueles jovens…<br />
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A FRONTEIRA ESQUECIDA<br />
Não havia transições, muito menos limites. Entre aquém e além, de outrora ao futuro, espaço e presente eram só a<br />
mesma, contínua presença. Uma actualidade fluida, fundida em memórias e anseios de quem então, ali habitara,<br />
sobrepondo vivências com instantes, sob o suspenso equilíbrio dos desígnios ante as referências. Ciclos. Nexos.<br />
Ainda porém, ou talvez assim, algo parecia oscilar, ou alguém tendia a vacilar. O instinto de origem. O<br />
desafio da distância. Lapsos e tensões que instilavam a amplitude ou o isolamento. Vestígios ou destroços que<br />
aludiam uma paradoxal volúpia de opulência, fascínio, supérflua e superficial. Sobre ídolos e cultos, desafios ou<br />
infinitos…<br />
Uma turbulência herdada, que já se dissipara. Uma vertigem ávida, que logo se<br />
despenhou em cascata regeneradora, dos precários artifícios à floresta perpétua. Tais<br />
pulsão e pulmão retinham, afinal, o despojo de civilizações perdidas, a génese de<br />
fenómenos volúveis. Ou o improviso de um viajante insólito, ao exortar a magia<br />
telúrica.<br />
Relâmpago, lampejo. Transfigurando a noite primordial. Por prodígios e<br />
invenções. Recriando a escuridão em que lhe brilha a mente. E parte pois, para si, o<br />
visionário explorador. Inconstante, inacessível. Algures, no firmamento de maravilhas<br />
vãs. Concebendo uma paisagem imaginária. Sublimando uma irrealidade persistente…<br />
José de Matos-Cruz<br />
As Crónicas do Livro Livre<br />
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O PRECEDENTE ORIGINAL<br />
Havia um mundo que ficou retido na ilusão da permanência, logo petrificado na ansiedade de quem poderia<br />
regressar. Tantos que partiram sem objectivo, visitantes que ali voltassem com um destino. Desígnio. Orientação.<br />
Todos os sinais e sortilégios pairavam virtuais, expectantes, embora contaminados pelo próprio arbítrio de erosão.<br />
Também, eram fragmentos dispersos, aspirações latentes. No auspício da composição global, pois apenas essa<br />
lhes conferia enleio e consistência. Um elã que avassalava ou esmorecia, ao flagrante de impressões fortuitas. Som<br />
límpido, luz sibilante, frémitos convulsos. Paroxismo disseminado. Domínio espectral, em mútuas resistências.<br />
Projecção e saudade, sob uma alienação magnificente. Atrair o inesperado, sagrando a ausência. E a solidão<br />
astral, ao arrepio da partilha satélite. Esqueletos de animais fantásticos serpenteando nas colinas ancestrais,<br />
surpreendendo a mineral intensidade que a outros tempos correspondiam propensas divindades. Paradoxos<br />
suspensos.<br />
Afinal, perpetuara-se um sobressalto inextrincável, entre os estigmas da aparente lassidão e os estímulos<br />
voláteis quanto aos mais notórios, dos que optaram em seguir, irradiar… Afoitos, deixando o devir e a deriva na<br />
intuição dos pontos cardeais. Um só se cumpriu, evoluindo. Ou diluindo-se, ensimesmado pelo privilégio de<br />
imaginar.<br />
José de Matos-Cruz<br />
As Crónicas do Livro Livre<br />
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A VITALIDADE EXTREMA<br />
Se houvesse um desígnio que poderia inspirá-lo, era pois alcançar a utopia. Um destino motivado pela superação do<br />
impasse, alheio no turbilhão da aparência. Etapas e universos que serpenteavam, de píncaros profundos a vertiginosas<br />
plenitudes. Qual nómada atónito, seguia. Sem paciência para a lentidão, sem prontidão para a urgência.<br />
Êxodos e atalhos. Obstáculos. Precipícios. Atraindo sombras silenciosas. Irradiando cores acrobáticas.<br />
Envolvendo peixes alares. Expondo pontes suspensas. Evoluindo, ele, ao enleio das torrentes íntimas, surpreendentes.<br />
Assim, cotejando o ímpeto premonitório de tais adventos em recriação, com o auge mutante dos seus arquétipos.<br />
Átomos e atmosferas, afinal coincidiam. Vibrando a profusão luxuriante, sob o signo da catarse sobrenatural.<br />
Níveis e escalas, logo se conciliavam. Pairando o esplendor integral, em subtil arquitectura onírica. Um emaranhado<br />
intrínseco às suas extravagâncias. Egoísmo prenhe, já que só ele lograsse contemplar aquela incessante quimera.<br />
Então, solitário ou totalitário, atingiria um dilema culminante. Apenas fugaz. Ou para sempre. Um desafio<br />
forjado a perdurar. Um prodígio consumado na inversão dos artifícios. A essência volúvel, que o libertaria, ou<br />
transcendesse… Ao flutuar, sobre tal fascinação mirífica. Ainda instável, qual reflexo espúrio das vivências originais.<br />
José de Matos-Cruz<br />
As Crónicas do Livro Livre<br />
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Ton regard est d'encre<br />
(Françoise Duvivier)<br />
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Les vacances d'un temps sans rives<br />
(Françoise Duvivier)<br />
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Tremblante de pureté<br />
(Françoise Duvivier)<br />
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Le vomissement du miroir<br />
(Françoise Duvivier)<br />
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Ai, Mouraria 2.0<br />
Luís Filipe Silva<br />
Amália, gigante e intermitente, desenhada no céu,<br />
entra em força pela janela do quarto de Dulce,<br />
despertando-a do torpor gerado pelo capacete de sono.<br />
Estremunhada, Dulce ordena aos vidros que escureçam,<br />
para suavizar o brilho daquela imagem emitida pela<br />
poeira inteligente hoje lançada sobre o bairro. A fadista<br />
canta a plenos pulmões numa língua invulgar: ultimam-se<br />
os preparativos do Chuseok, que este ano também se<br />
festeja na Europa. A transmissão em directo ocorrerá<br />
dentro de poucas horas, e pretende juntar centenas de<br />
bairros de vários países, em que cada qual se propõe<br />
misturar o regional com o estrangeiro, honrando assim o<br />
acordo económico recém-celebrado com os novos amigos<br />
asiáticos.<br />
Irritada por não ter concluido o ciclo REM, o<br />
primeiro pensamento de Dulce vai para os resultados do<br />
leilão internacional de emprego, que confere de imediato<br />
no seu assistente pessoal, mas nem aí tem boas notícias:<br />
um grupo sul-americano tomou de assalto as ofertas mais<br />
procuradas com um dumping de salários. É a segunda vez<br />
nesta semana. Novamente desempregada até ao meio-dia,<br />
hora do próximo leilão, decide levantar-se e dar início a<br />
um dia que começa mal – ao menos que acabe em alegria,<br />
pois aguarda a chegada do filho de quatro anos,<br />
despachado ontem pelo segundo marido em contentor<br />
privado e selado cuja senha de abertura só os pais<br />
conhecem. Acede à imagem do rapaz, que dormita<br />
placidamente no avião de carga, algures sobre a baía da<br />
Biscaia. Em breve aterrará em Beja, e o contentor será<br />
colocado no camião dispensador que o trará a Lisboa.<br />
Até naquele aspecto a crise mundial faz mossa,<br />
espalhando a família pelo mundo – um dos maridos na<br />
Indonésia, o outro em Amsterdão até concluirem as suas<br />
empreitadas, e a necessidade de despachar rotineiramente<br />
os filhos pelo mundo para matar saudades. Será de<br />
considerar o aumento do agregado com um terceiro<br />
marido, ou uma segunda esposa? Vai fazer cálculos e pesar<br />
rendimentos, para abordar o assunto na próxima reunião<br />
virtual com os maridos. Escaldado pelas sucessivas crises<br />
e progresso trôpego, o mundo impõe cada vez mais um<br />
pensamento utilitário em áreas que em deviam imperar os<br />
sentimentos. A verdade é que, lembra-se Dulce,<br />
casamentos arranjados, sempre os houve…<br />
Mas não quer pensar mais nisso. Encomenda uma<br />
limpeza básica aos serviços do bairro. Em poucos<br />
minutos, uma sombra tapa a janela-interface e um alarme<br />
suave anuncia a chegada dos electrodomésticos<br />
dependurados nas calhas exteriores do prédio. Abrindo a<br />
portinhola, Dulce entrega a roupa suja da semana para<br />
lavagem a seco, enquanto balões rotativos com seis<br />
tentáculos sobem ao tecto de modo a aspergir<br />
desinfectantes aromáticos e alegres ratinhos saltam para a<br />
carpete e se põem a capturar poeiras e matérias orgânicas<br />
nos bigodes sensíveis e extra-longos, que prontamente<br />
devoram.<br />
Clareando novamente as janelas para as máquinas<br />
se conseguirem orientar, Dulce sai momentaneamente<br />
para a varanda. Suspensa no ar, comandada por impulsos<br />
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electromagnéticos, a poeira inteligente consolida-se,<br />
forma uma barreira mais densa contra o vento e a imagem<br />
da cantora volta a surgir, desta vez mais nítida, repetindo<br />
a gravação. Ao fundo, brilham os condóminos dos ricos<br />
da zona ribeirinha, local exclusivo e muralhado em que<br />
poucos entram – experimenta-se a nova forma ecológica<br />
de construir, usando betão orgânico repleto de tecido<br />
vegetal: prédios que se confundem com arvoredo, cujas<br />
amplas ramagens dão sombra a espaços de lazer,<br />
entrelaçando-se com ribeiros que formam piscinas<br />
naturais. Se ali não residir a felicidade, é porque não<br />
existe.<br />
Por baixo de Dulce, na apertada rua do bairro,<br />
magotes de turistas enfileiram-se para darem passagem<br />
uns aos outros, enquanto procuram não perder de vista os<br />
drones que lhes servem de guias. Máscaras electrónicas<br />
permanentemente ligadas à internet escondem-lhes as<br />
nacionalidades, como se tornou hábito, embora Dulce<br />
duvide que entre eles se encontre algum ocidental.<br />
Agitam bastões eléctricos para repelir a insistência dos<br />
anúncios-varejeiras que os massacram com sugestões de<br />
restaurantes, ofertas de pílulas de sonhar, doces da região,<br />
computadores auriculares, guarda-chuvas<br />
monolaminares, ramos de flores sintéticas; fazem vista<br />
grossa aos empregados das tascas da rua, que também os<br />
incitam com cartazes escritos em mandarim e urdu.<br />
Ocorre subitamente a Dulce que talvez haja ali uma<br />
oportunidade: Bruxelas pretende reabrir o Programa de<br />
Preservação da Cultura Local – talvez possa montar uma<br />
loja típica e ganhar um subsídio. Unir forças contra a<br />
globalização, mesmo que seja uma formiga a nadar contra<br />
a corrente.<br />
Por ora, engolirá o orgulho e solicitará uma ração<br />
estatal à fábrica do bairro – conhece as instalações, sabe<br />
que usam o melhor gel e cumprem as devidas vistorias das<br />
estirpes de nanobôs regulamentares, ao contrário de<br />
muitos outros bairros. Um direito básico e gratuito de<br />
cada cidadão europeu ao qual não recorre há anos, mas é<br />
o melhor a fazer. O que dizem os slogans? «Um<br />
empresário em cada um de vós». Peças da grande<br />
engrenagem económica. Sim, pensou ela, mas jamais<br />
esquecer que as peças, quando se avariam, são<br />
substituidas. Ser repetidamente preterida nas ofertas de<br />
emprego começa a preocupá-la. Apesar da legislação que<br />
protege, até certo ponto, os independentes, há quem<br />
consiga contornar estes impedimentos com soluções<br />
criativas de grupos de pressão, as «centopeias». Já esteve<br />
mais longe de se unir a uma destas, para ter uma<br />
vantagem nas selecções – não obstante o facto destes<br />
aglomerados de exclusividade profissional consumirem<br />
uma fatia importante dos pagamentos sem acrescentarem<br />
valor, a não ser a ilusão de uma garantia de cumprimento<br />
para quem contrata.<br />
No limite, terá de abandonar este pouso<br />
privilegiado num dos bairros mais antigos da capital e sair<br />
da cidade, ir para as periferias, encontrar uma zona menos<br />
degradada que não esteja nem no extremo da anarquia<br />
com conflitos entre milícias e exército, como Alverca,<br />
nem no extremo oposto dos redutos religiosos e das suas<br />
insuportáveis normas de comportamento, como<br />
Montelavar. Dulce estremece ao pensar no filho, obrigálo<br />
a passar anos do período formativo mais importante da<br />
sua vida neste ambiente. No limite, tem a opção<br />
geograficamente contrária – mudar a família para o<br />
Enclave Autónomo da Margem Sul. Dizem que prospera,<br />
embora tenha regras muito restritas para conceder vistos<br />
de trabalho. Podem sempre aproveitar a nacionalidade<br />
estrangeira do segundo marido, que nasceu em Setúbal.<br />
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Mas seria uma mudança demasiado brusca; por muitos<br />
defeitos que lhe encontre, Dulce gosta do bairro, do país<br />
e, numa extensão maior, das oportunidades ainda<br />
concedidas pela Utopia Europa.<br />
A fadista estremece, translúcida, deixando ver as<br />
nuvens no céu. A boca aberta, o peito erguido, os braços<br />
esticados na pujança do acorde final da cantiga. Depois<br />
desaparece, substituída pelo logotipo da emissão. Haverá<br />
festança, logo à noite, revivalismo de bairro, animadores<br />
vestidos com trajes populares, água-pé, manjericos e<br />
chouriço assado – mas de soja, não aquele feito de carne<br />
de que Dulce ainda se recorda de comer quando era<br />
pequena. Podia ser nocivo para a saúde, mas ficou na<br />
memória. Talvez leve o petiz. Já tem idade para apreciar,<br />
e precisa de introduzi-lo aos poucos no mundo real. Eis<br />
outra preocupação e fonte de despesas. Até ao final do<br />
ano, inscrevê-lo numa escola de terapia presencial – foi<br />
demasiado intenso o ataque de ansiedade do rapaz,<br />
daquela vez em que se avariou o assistente pessoal, e<br />
deixou-a preocupada. A orientadora da escola adiantou a<br />
ausência prolongada dos pais como possível factor<br />
desinteressantes, e não conviver com gente da sua idade –<br />
e ela não se considera uma pessoa minimamente<br />
disfuncional. Lembra-se das dificuldades financeiras, das<br />
queixas com as crises e os apertos, de terem de mudar de<br />
casa algumas vezes, antes de voltar a estabilidade. Os pais<br />
sempre preocupados com ela, primeiro com a saúde e as<br />
alergias, e depois, na adolescência, com a sua constante<br />
rebeldia, exigindo que mantivesse activo o telemóvel, que<br />
usavam (sabia-o bem) para vigiarem a sua localização – e<br />
como não pretendia ser apanhada em flagrante com este<br />
e aquele namorado, pedia a uma amiga para o guardar<br />
durante um par de horas. Também o filho a enganará<br />
com aqueles pequenos truques. Por muito que lhe doa,<br />
será indício de saúde e normalidade. É um processo<br />
eterno, uma história que se repete. Aliás, é sempre a<br />
mesma história, mas contada com outros adereços,<br />
variações discretas que quebram a monotonia – mas no<br />
fundo, debaixo da roupagem, somos ainda macacos que<br />
ontem largaram as árvores, catando piolhos, tentando<br />
encontrar caminho, eternamente deslumbrados por este<br />
admirável mundo novo.<br />
contributivo daquela reacção, mas que não era nada<br />
incomum, mero sinal dos tempos, Dulce que não tivesse<br />
problemas, alguns meses na escola e o filho aprenderia a<br />
viver, algumas horas por dia, sem o recurso a sistemas<br />
electrónicos. É preciso ir aos poucos, dissera a<br />
orientadora. Dulce pretende fazer os possíveis para<br />
adiantar esta terapia, e talvez o espectáculo da noite seja<br />
tão apelativo que possa convencê-lo a desligar os óculos<br />
durante alguns minutos.<br />
Foi mais fácil para os meus pais?, questiona-se e não<br />
pela primeira vez. Mas lembra-se dos raspanetes<br />
constantes por andar sempre mergulhada nos seus<br />
pequenos dispositivos, hoje em dia básicos e<br />
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ENTRE AS TERRAS DO SOL<br />
E O REINO DAS TREVAS<br />
José de Matos-Cruz<br />
9 de Novembro de 1903<br />
Com o esbatido rosto em tristeza, Celeste pairou<br />
o olhar, de novo, sobre as palavras escritas ao vento.<br />
Apertou com quanta força podia e, pelo atrito do seu<br />
desespero, a folha mensageira entrou em combustão<br />
espontânea. Ou tê-lo-ia Hélio previsto? As frases<br />
inflamadas, desistindo embora de mais um encontro, iam<br />
esfumando as últimas expectativas íntimas à bela moça.<br />
Tal baile de revelação e ocultação animara todo<br />
um namoro de par destinado, desde que nasceram até à<br />
vertigem entre a vida e a morte.<br />
Quando Celeste não aguentou mais e decidiu-se,<br />
enfim, por um refúgio além das mágoas palpitadas do<br />
coração, tinha a ansiedade que Hélio assumisse, ele<br />
próprio, uma reunião sobrenatural. Contudo, o equívoco<br />
mancebo mantivera-se fiel às decepções esquivas. Furtivo<br />
ao enleio das Devesas, em que tinham crescido ambos,<br />
pela atracção desvairada do Porto.<br />
Heróica, Celeste resistira pela transcendência do<br />
seu amor, preservando-se então com um intenso apelo de<br />
relação corpórea. Materializado nesse anelo tão etéreo de<br />
correspondência que assim, e uma vez mais, Hélio<br />
caprichara agora em lhe frustrar... De que valeria, pois,<br />
sacrificar-se numa vacilação de alma penada, sem<br />
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esperança? Ai, Celeste era corroída pela melancolia.<br />
Hélio sempre fora expedito em praticar as suas<br />
omissões, inibindo-se porém na abstenção de iniciativas.<br />
Insinuava uma comunhão plena, para depois se<br />
acovardar em solitárias renúncias. E uma tal traição<br />
cavava o pior dos agravos, ante Celeste já espectral pelo<br />
supremo sacrifício.<br />
Celeste languescia numa realidade virtual, que<br />
era agonia a macerar a linha do horizonte entre o céu e a<br />
terra. Esse instante volúvel em que o espírito, em vão,<br />
deixa de ser inspiração e palpitante, ao transfigurar-se<br />
como matéria imperceptível para a eternidade.<br />
Presença e ausência. Tocar-lhe ou ocultar-se?<br />
Não, por uma última vez, Celeste havia de<br />
manifestar a Hélio a sua ténue inquietude. Para que ele<br />
estremecesse. Ela, depois, reverteria à vacuidade essencial,<br />
de onde não provêm vestígios ou sortilégios…<br />
Subitamente, o alento de Hélio Alvorada foi<br />
percorrido por um soluço de quebranto. Gemia. Fechou<br />
os olhos, para atenuar, espairecer – e todavia, do seu<br />
vulcão interior, em catadupa, voltaria sempre a<br />
restabelecer-se o anseio vigoroso de Celeste Maldonado.<br />
Hélio estava sentado entre restos e detritos que<br />
ainda se amontoavam – ali, no Cunhal da Rua da<br />
Madeira onde, até pouco antes, existia o Mosteiro da<br />
Avé-Maria. A multidão já dispersava, antecipada pelos<br />
monarcas a quem aplaudiram. Ao longe, embora, Hélio<br />
lograra, ainda, lobrigar D. Adélia, sorrindo à colocação<br />
da pedra fundamental para a Estação de São Bento. Hélio<br />
correspondeu, inconsequente, abrindo uma greta entre<br />
os lábios, pois a rainha lembrara-lhe o vulto de sua<br />
própria mãe perdida.<br />
Hélio não era um místico, mas sentia-se inquieto.<br />
Hélio não tinha vontade própria, mas apetecia-lhe uma<br />
solução. Hélio sabia-se assombrado pelas mulheres, mas<br />
temia em si mesmo uma fatal feminilidade.<br />
Cedo cercado pela aura sensual de Celeste, Hélio<br />
derivara no seu labirinto umbilical com Estrela Alvorada.<br />
Pode um filho assumir-se viúvo? Pode um noivo<br />
desejar-se órfão?<br />
Hélio Alvorada, que tanta vez, num devaneio<br />
incerto e imaturo, suspirara por alívio e evasão,<br />
languescia agora, sobressaltado em tão mesquinha<br />
libertação, híbrida e solitária.<br />
Não, sem elas, já ele cá não estava – era um mero<br />
invólucro humano. Porém, Hélio também não<br />
correspondia – ao elã siderado com que o atraíam cada<br />
uma, Estrela ou Celeste irradiantes…<br />
Hélio ergueu-se. Compôs o jaquetão. Olhou para<br />
a biqueira dos sapatos – toda amassada, incerta, além de<br />
que ele metia os pés para dentro. Pôs o chapéu na cabeça<br />
– discretamente pois, naquele dia, até fazia sol.<br />
Em seu redor, tudo parecia rutilante. E o<br />
dividido havia de carrilar.<br />
Portanto, Hélio Alvorada tinha duas opções. Ou<br />
entrava no recém Túnel d’El-Rei – que ligava ao Pinheiro<br />
e, antes de ali chegar, desapareceria no âmago das trevas.<br />
Ou seguiria até à nova Ponte de D. Pia Maria, e lá havia<br />
de se soltar – qual precipício, para o vazio inanimado.<br />
Se bem o imaginou, pior o fez quanto à segunda<br />
função. Desfez-se o encantamento. E, ao tocar no Rio<br />
Douro, a lágrima prateada de Celeste Maldonado estava<br />
de tal modo seca, que se desintegrou em estilhaços.<br />
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Entre-linhas
COM PENAS DE ANJO<br />
E A EXPIAÇÃO DO DEMO<br />
José de Matos-Cruz<br />
29 de Agosto de 2002<br />
Subitamente, Rui Ruivo suspendeu o voo,<br />
girando sobre si mesmo para atenuar as sequelas da<br />
fricção. É certo que a envergadura como Infante Portugal<br />
lhe proporcionava, ainda, uma resistência inexpugnável.<br />
Porém, a brusca assunção da sua condição humana, por<br />
uma recorrência entre a textura física e a premência<br />
anímica, tornava-o já vulnerável. Quando o prodígio<br />
heróico se ia atenuando, o Infante Portugal debatia-se,<br />
então, como Rui Ruivo entre a sobrevivência e a<br />
imortalidade.<br />
Era o instante mais perigoso dessa extraordinária<br />
metamorfose. Uma vertigem em que, ao privilégio<br />
transcendente, se sobrepunha a identidade secreta, e o<br />
conflito de paladino - estrénuo defensor dos<br />
desprotegidos, incansável combatente pela justiça - cedia<br />
aos caprichos mesquinhos do estatuto burguês. Para o<br />
Infante Portugal, além de sucumbir a uma íntima<br />
rendição, era a vergonha dolorosa de estar circunscrito ao<br />
exibicionismo literal como Rui Ruivo. Afinal, o mito<br />
soçobrava em sua própria vitimação!<br />
Suavemente, o Infante Portugal poisou junto aos<br />
pés do Cristo-Rei, a contemplar Lisboa - quando o<br />
pôr-do-sol cumpria o leito coleante do Rio Tejo, até<br />
transformar-se na foz em Oceano Atlântico. Também ele<br />
era, já, Rui Ruivo na essência, embora com o trajo<br />
emulativo ainda a sujeitá-lo, qual colete-de-fraldas. Em<br />
tal persistência híbrida, bastava-lhe aguardar a mutação<br />
primordial - uma danse macabre em que o dínamo estelar<br />
se introvertia no crepúsculo dos seus transes mais<br />
aniquiladores.<br />
Pouco depois, pela calada da noite, um impecável<br />
Rui Ruivo estava ao volante do seu fogoso Matrix,<br />
sulcando a Marginal - até ao Condomínio Alípio Ayres<br />
onde residia, a poucos quilómetros de Cascais. Na manhã<br />
seguinte, o advogado distinto voltaria aos seus negócios<br />
para-jurídicos - com tanto recurso e prestígio, entre a<br />
clientela da alta finança ou da baixa política - a partir de<br />
um discreto palacete na Rua de Rufino Picão e Chagas,<br />
quase ao virar para o Largo de Camões... Até mais um<br />
apelo exacerbado, nacional, expiatório, que o arrebatasse<br />
como Infante Portugal.<br />
Aliás, a complexa consciência de Rui Ruivo não se<br />
transcendia pela normalidade - antes oscilava numa<br />
amálgama, sublimatória, dos seus excessos e contradições.<br />
Também, ele nada contribuíra para se virtualizar como<br />
Infante Portugal - tudo ocorrera durante uma visita<br />
trivial à Exposição 98, em que foi investido por um<br />
fenómeno de fervor ingente, telúrico, inexplicável.<br />
Porquê tal pessoa, e tanto assim?<br />
Qual a herança? Sob que sortilégio?<br />
- É o destino... - discorrera Pereira Dias ao<br />
deparar-se Rui Ruivo, em missão do Infante Portugal,<br />
com o seu errático antecessor, algures nos labirintos<br />
sórdidos da Musgueira. Aí, rebentado e, entretanto,<br />
reformado enquanto Condestável Lusitano, exilou-se<br />
aquele que por sua vez, desde a Exposição de Portugal no<br />
Mundo, vinha perpetuando uma ínclita estirpe em que se<br />
fundamentava o imaginário triunfal da irrealidade pátria.<br />
Celebração do fausto. Desígnio ancestral.<br />
Humildade e dignidade. Perante um Pereira Dias<br />
já catártico, Rui Ruivo transfigurou-se na autopremonição<br />
do desempenho aventuresco.<br />
Entre passado e futuro.<br />
Um povo em bruto. Iniciação do Infante<br />
Portugal. O gesto e a gesta. Incongruência como<br />
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Condestável Lusitano.<br />
A nata dos varões. Até que o espírito sobrevivesse ao simbolismo vácuo entre a esfera armilar e o escudo marcial.<br />
Estaria, então, preenchido o dilema fatal, que era a matriz da raça, em recessão.<br />
Os ciclos de depravação, ou a mística integral.<br />
Nunca. Ninguém. Nunca mais. Rui Ruivo anónimo. E o outro, em seu poder, sempre anacrónico. Ninguém<br />
mais nunca… Enfim!<br />
Escuro como breu, Rui Ruivo ia fazendo estrada, junto à Boca do Inferno. Então, sentiu a invadi-lo aquele<br />
clarão fulminante.<br />
Exposto, o Infante Portugal enfrentava o monstro elementar. Era retinto, asqueroso, banal, sem traços<br />
fisionómicos. Lutou, fruiu, despedaçou-o.<br />
Nem êxtase, nem agonia, mas vibrava. Incompleto, demasiado. Em frustração. Em prostração. As forças vivas<br />
que se encarregassem de o justificar.<br />
Puro engano. Cortaram-no ao meio. Logo, as distintas partes foram divididas entre o Panteão Imperial e o<br />
Cemitério Popular.<br />
Os SobreNaturais<br />
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SINTO-ME IMPOTENTE,<br />
EXPOSTO EM ESTA VIDA<br />
José de Matos-Cruz<br />
11 de Janeiro de 1911<br />
A sua história começa com o princípio do mundo.<br />
Naquele invernoso entardecer, em um qualquer<br />
lugarejo bravio, sem viv’alma, junto à Estrada de Sintra<br />
bordejada pelas penedias, a natureza em transe mais<br />
parecia um inferno frio e feio, húmido e indiferente.<br />
Exausto, entristecido, Folião enroscou-se ainda mais, no<br />
meio de umas silvas. Porém, antes assim, ao relento, do<br />
que ceder, cheio de vergonha, à desdita que o havia posto<br />
em tal situação, deslocado entre o destino e a existência. A<br />
simples consciência funesta era-lhe insuportável. E sofria,<br />
no próprio corpo, as consequências dum infortúnio tão<br />
abominável.<br />
O dorso de Folião foi sacudido, ao espirrar em<br />
convulsão. Os bigodes ficaram todos molhados, e não era<br />
capaz de controlá-los. Além disso, famélico e sedento, com<br />
os rins arrebentados, tinha urinado sem querer pelo pêlo e<br />
na terra em volta, que em vão tentou limpar com a patita.<br />
Mal conseguia aguentar a polpa já gasta de tanto andar, ou<br />
as unhas esfaceladas.<br />
Folião estava uma lástima. Sentia-se, em suma,<br />
uma ruína patética. Também, a sua tremenda jornada<br />
decorria, já, há muitas e muitas léguas, sem outra<br />
orientação que não o apurado faro, raro descansando<br />
precariamente, nas condições mais adversas. Seguindo<br />
arduamente apenas graças ao elã felino, furtivo e<br />
solitário, às vezes deixando soltar um miado suplicante,<br />
aos céus que apenas lhe correspondiam, fazendo suceder<br />
o dia e a noite.<br />
Ora, Folião continuara sempre, sem eira nem<br />
beira, apurando a ansiedade, bafejando a paciência,<br />
indiferente a atravessar montanhas e planícies, evitando<br />
povoados, instigado apenas pelo seu extraordinário<br />
instinto, exposto a mil ameaças e, às vezes, aturdido em<br />
ténue ou luxuriante fluir dos cheiros. Talvez, iludira-se,<br />
estivesse próximo de seu objectivo. E acabou por<br />
fraquejar, precisamente numa altura mais perigosa do<br />
caminho, acercando-se do bulício humano. Apesar do<br />
lusco-fusco, os carroceiros desfilavam com os cavalos sem<br />
freios, a trote e a galope, com as suas carruagens sem<br />
lanternas, de modo que os transeuntes a pé eram vítimas<br />
de contínuos abalroamentos. Quanto mais um pobre<br />
animal, furtivo e desprotegido...<br />
Folião inibira-se ao contacto com os da sua raça,<br />
prescindira dos rituais habituais e, em várias ocasiões,<br />
tivera que escapar aos dentes afiados dos implacáveis cães.<br />
E quando, ao longe, estes continuavam a ladrar, lá o<br />
bichano ia com uma pressa prudente, metido apenas<br />
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consigo mesmo, como se o instigasse uma missão. Como<br />
se tivesse esperança num reencontro - e, bem no fundo,<br />
não o inquietasse a dúvida se o teriam deixado,<br />
abandonado.<br />
Porventura, caso houvesse entre eles um laço<br />
umbilical, indestrutível, nunca Folião se deixaria abater. O<br />
pacto sensorial torná-los-ia unos, tribais, para além de<br />
todas acções, do tempo e da distância. Porém, corrompida<br />
a tradição, o elo ancestral apenas poderia regenerar-se com<br />
o sacrifício de Folião. Ou ainda era possível resgatá-lo, na<br />
persistência e na catástrofe? Até ao regozijo? Esfusiante de<br />
ternura? Confiança...<br />
Atónito, o paradoxal viajante pareceu, então,<br />
superar a infelicidade e o tormento físico, recuperando o<br />
seu ânimo original. Era o mais lindo de uma ninhada,<br />
como se diz, nascida em fatídico berço d’ouro. Sobre o<br />
castanho retinto pairavam-lhe umas manchas fulvas.<br />
Tinha os olhos penetrantes como o dourado solar. Era<br />
diferente dos irmãos. O único que escapara ao baptismo<br />
no Rio Mondego, com as outras crias metidas, ainda cegas<br />
e sem carinho, num velho saco de estopa. Ai, que dor<br />
cruel. A mãe quase alucinava, definhando naquele cíclico<br />
horror. E de nada lhe valiam as arranhadelas, os pffs<br />
lancinantes!<br />
Porque faziam eles aquilo? Escolhendo um eleito?<br />
A salvo, o mimado Folião tinha-se exuberado,<br />
excepcional. Todo em dádivas, em caprichos. Agregado<br />
à família, devotara seus privilégios de sedutor miniatural<br />
a um certo Vaz de Moraes – que, regressado à pátria<br />
madrasta, após anos de penúria filosofal pelo Oriente, se<br />
remetera a um exílio lírico e rústico, na propriedade<br />
d’uns parentes com os ares de Quinta das Lágrimas. Ali<br />
se afeiçoara a Folião, numa cumplicidade displicente. Até<br />
que os superiores cânones da vaidade e da cultura haviam<br />
chamado à capital o dito poeta em ascensão. Que lhe<br />
podia interessar o resto - um mero tareco que,<br />
escorraçado ou suavizado pela expectativa de<br />
reconciliação, logo partiu em busca do amigo?<br />
Alvor. Ocaso. Entre o estremecer selvagem e o<br />
estertor da civilização.<br />
Do soberbo e fascinante Folião restaria,<br />
interminável, uma melancolia trágica. Assim, apenas –<br />
como um gato pingado, com o rabo entre as pernas.<br />
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VIVÊNCIAS PARTILHADAS<br />
Fundem-se os dedos e as estrias – como braços e troncos, num abraço frondoso.<br />
Prodígio telúrico, conciliando humano e natureza, entre os ciclos da alternidade e da<br />
subsistência. Um auspício assumido, exposto desde a fruição original, quando se<br />
desvendavam territórios e persistiam florestas. Até o instante mágico, irreversível, de<br />
uma integral recriação…<br />
Eu sei, ainda não sou – senão, uma minúscula semente. Dispersa, esparsa, com<br />
algum princípio e sem qualquer destino. Depois, ao acaso, o meu voo suspende-se, e<br />
caio sobre a terra. Entranho-me. Em torpor, ganho apoio e pulsação. Emirjo do subsolo.<br />
Eis-me a respirar. A minha seiva impele-me. Vulto me faço, irradio em ramos. E os<br />
nódulos doem.<br />
Cresço. Enrijeço. Visto-me de folhas – exuberante, logo exposta. Ora, passam a<br />
notar-me. Ao sol, extasio. Irmanada com outras árvores, a minha sombra recorta-se na<br />
relva. Aparatosa, habitam-me os pássaros. Habituo-me. Desafio a tempestade, que quase<br />
me verga. Resisto. Assim, estou. Envelheço e permaneço, estiolando avara, num torpor<br />
sem tempo.<br />
Enfim, retraio-me – disforme, já coberta de fungos e de musgos. Ávida. Farta,<br />
esmoreço. Começo a definhar. A partir das raízes exaustas. O sangue seca-me, estala. O<br />
corpo é flácido. Restam-me, da carne, uns estilhaços esqueléticos. Nua, em vertigem,<br />
soçobro. E sucumbo, com o cerne a estremecer. Então, estendo as mãos… Enquanto<br />
estiver, existirei.<br />
José de Matos-Cruz<br />
As Crónicas do Livro Livre<br />
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O CANTO DOS PRODÍGIOS<br />
Em vão… Aquelas palavras destilavam desafios e tormentos, que seu espírito<br />
expectante conciliava, com híbrida assombração. O anseio de sentir por carne, sangue e<br />
nervos. A náusea ao sofrer sem alma, aura ou emoções. Vagueando, apenas, sob um<br />
estímulo existencial, que havia colhido das matrizes e motivações implícitas no íntimo<br />
mistério original.<br />
Através de si próprio, à deriva em labirinto de espelhos. No qual não se reconhecia,<br />
pois debatia-se entre a ausência de reflexos. Então, ensaiava aspectos mirabolantes, para<br />
adquirir identidade. Ou encenava insólitas excentricidades, suplicando referências. Porém,<br />
lastimaria um invólucro fosco. Lamentaria uma fraca exuberância. Paradoxo espectral.<br />
No auge da imaginação, mais ansiedade estiolava. A mecânica do espírito. A utopia<br />
de um corpo. Confinado ao espectáculo exuberante de uma catártica coreografia. Ao garbo<br />
complacente dos artifícios e das vibrantes apatias. O requinte onírico de se exibir, desde um<br />
mirífico e visceral vazio. A matéria frágil, trágica, que o predispunha, transfigurava.<br />
Eis a escala e o condão. Suscitar um fantástico burlesco, para se reinventar. Semear<br />
uma fanática libertação, que o inteirasse. Recriado, antes de nascer. Uma, e ainda outra vez.<br />
Implantando um infinito de probabilidades. Sintonizando uma melodia suspensa. Talvez<br />
despertasse, ou sonharia. Uma aspiração vivente. Um sopro humano. Para sempre…<br />
José de Matos-Cruz<br />
As Crónicas do Livro Livre<br />
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FASCÍNIOS E PARADOXOS<br />
Um enigma enovela a espiral de olhares: quem espreita para além de si, pondo à mostra a<br />
sua imagem? A indiscrição é um sortilégio mudo no auge do pasmo, tecendo o indescritível.<br />
Logo se mesclam as versões e as visões, excedendo o foco de referências. E, quando a retina<br />
óptica não basta, abastece-se a compulsiva exibição com uma captação mecânica.<br />
Assim, maquinal, o processo simultâneo reproduzirá, fielmente, o instante exposto.<br />
Espelhos da alma contaminando o reflexo dos corpos. Mas o flagrante, que trai a atenção alheia<br />
ou humana, também atrai por outros motivos e volúveis comparsas. Ornamento. Observação.<br />
Carnais, selvagens, à estilizada flor das peles digitais. O apetite em representação.<br />
Mosaico entre elipse e catarse, sob assombro e turbilhão. Quem guarda o momento<br />
efémero, acaso aguarda um movimento que o defina? Ansiedade, expectativa. Logrando vigiar,<br />
divaga? Ou habita um labirinto desfigurado de máscaras, de sinais anacrónicos? E ver, virá para<br />
o caso em frenético alerta, ou qual feitiço arcaico? Ritual doméstico, alienígena.<br />
Os símbolos contrapostos à vibração. A curiosidade é instintiva, natural, ou emana de<br />
um capricho fatal? Manchas esparsas, inexauríveis. Inexoráveis, soturnos arrepios. Ora, o<br />
predador visado enreda-se a que gosto na própria teia de aparências e artifícios? Aliás, ou<br />
reparando bem: a aranha antecipa seu festim? E, por que custo, a vítima precipita a caça?<br />
José de Matos-Cruz<br />
As Crónicas do Livro Livre<br />
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Entre-linhas<br />
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