06.05.2019 Views

Alem-mar Maio2019

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Revista mensal | Nº 691 | Ano LXIII | Preço 1,50 € (IVA incluído)<br />

além-<strong>mar</strong><br />

Perspectiva Missionária<br />

Maio 2019 | www.alem-<strong>mar</strong>.org<br />

Perspectiva Missionária<br />

argélia<br />

a liberdade<br />

está a passar por aqui


MISSIONÁRIOS COMBONIANOS<br />

ao serviço do evangelho no mundo<br />

O missionário comboniano<br />

P. e Alexandre Ferreira no Quénia<br />

CASAS EM PORTUGAL


Perspectiva Missionária<br />

além-<strong>mar</strong><br />

Ano LXIII | Nº 691<br />

sumário<br />

Propriedade:<br />

Missionários Combonianos<br />

do Coração de Jesus<br />

Pessoa Colectiva nº 500139989<br />

Redacção<br />

Director: Bernardino Frutuoso (CP 6411 A)<br />

Redacção: Carlos Reis (CP 2790 A);<br />

Fernando Félix (CP 1902 A)<br />

Correspondentes: Arlindo Pinto (Roma);<br />

Feliz Martins (Sudão); Jairo García<br />

(Colômbia); António Carlos Ferreira<br />

(Filipinas)<br />

Colaboradores: Ana Glória Lucas;<br />

António Marujo; Fernando Domingues;<br />

Fernando Sousa; Filipe Messeder;<br />

Francisco Sarsfield Cabral; José Vieira;<br />

Manuel Augusto Ferreira; Marco Bello;<br />

Margarida Santos Lopes; Paolo Moiola;<br />

Susana Vilas Boas<br />

Revisão: Helder Guégués<br />

Paginação: Luís Ferreira<br />

Arquivo: Amélia Maria Neves<br />

Redacção:<br />

Calçada Eng. Miguel Pais, 9<br />

1249-120 LISBOA<br />

Tel. 213 955 286<br />

E-mail: alem-<strong>mar</strong>@netcabo.pt<br />

Estatuto Editorial: www.alem-<strong>mar</strong>.org<br />

ADMINISTRAÇÃO<br />

Administrador: Manuel Ferreira Horta<br />

Sede do editor e Administração:<br />

Calçada Eng. Miguel Pais, 9<br />

1249-120 LISBOA<br />

Tel. 213 955 286 | Fax 213 900 246<br />

E-mail: editalem<strong>mar</strong>@netcabo.pt<br />

Assinaturas<br />

Normal: € 15,00<br />

De amigo: € 25,00<br />

À cobrança: € 16,50<br />

Avulso: € 1,50<br />

Europa: € 20,00<br />

Resto do Mundo: € 30,00<br />

IBAN: PT50 0007 0059 0000 0030 0070 9<br />

Pagamento por multibanco:<br />

Entidade: 20105<br />

Referência: o número de assinante<br />

(por cima do nome na folha com a sua<br />

direcção)<br />

Produção gráfica e impressão:<br />

Jorge Fernandes, Lda.<br />

Quinta Conde Mascarenhas, L 9<br />

2825-259 CHARNECA DA CAPARICA<br />

Registo na ERC com o n. o 100668<br />

Depósito legal: 7934/85<br />

ISSN 0871 – 5661<br />

Tiragem do número anterior:<br />

18 000 exemplares<br />

além-<strong>mar</strong> tem o exclusivo para Portugal dos<br />

serviços das seguintes revistas estrangeiras:<br />

Nigrizia (Verona) | Mundo Negro (Madrid)<br />

| Esquila Misional (México) | Misión sin<br />

Fronteras (Lima) | Iglesia Sinfronteras<br />

(Bogotá) | World Mission (Manila) | New<br />

People (Nairobi) | Worldwide (Pretória)|<br />

| Afriquespoir (Kinshasa).<br />

A nossa página<br />

em Internet:<br />

www.alem-<strong>mar</strong>.org<br />

16<br />

30<br />

34<br />

44<br />

ARGÉLIA – SUDÃO<br />

Duas décadas de poder de Abdelaziz Bouteflika<br />

e três de O<strong>mar</strong> al-Bashir chegaram<br />

ao fim. Não tombaram os regimes, mas os<br />

milhares de manifestantes que nas ruas<br />

exigem democracia também não arredam<br />

pé.<br />

BRASIL<br />

O Conselho Indígena de Roraima (CIR)<br />

reúne nove etnias. Encontrámo-nos<br />

com o coordenador-geral da organização,<br />

Enock Batista Tenente.<br />

MUNDO<br />

O crescente sentimento de ódio contra<br />

jornalistas e a hostilidade à imprensa<br />

de referência ameaçam as democracias.<br />

NÍGER<br />

O Níger é um país de origem, mas sobretudo<br />

de trânsito de migrantes. A<br />

Igreja Católica organizou-se para lhes<br />

dar assistência.<br />

Foto de capa: © Lusa/Mohamed Messara<br />

04 Fórum<br />

05 Editorial<br />

06 Actualidades<br />

11 África minha<br />

12 Igreja em missão<br />

13 Contraponto<br />

14 Do alto dos Andes<br />

26 Alimentação<br />

42 Vida missionária<br />

50 Livros<br />

51 Discos<br />

52 Povos e Culturas<br />

55 Apontamentos<br />

56 Vocação & Vida<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


fórum<br />

Nigéria<br />

Gostei muito do especial sobre<br />

a Nigéria, que publicaram no<br />

número de Abril da Além-Mar. Um<br />

artigo muito completo, que nos apresenta<br />

a realidade e os desafios que<br />

enfrenta o maior país de África, que<br />

voltou a eleger como presidente a<br />

Muhammadu Bhuari e manterá a<br />

situação actual. Continuem com o<br />

vosso excelente trabalho, fazendo um<br />

jornalismo de excelência sobre temas<br />

e países que outras publicações em<br />

Portugal não põem na agenda.<br />

José M. Felgueiras | Correio electrónico<br />

A alegria da água<br />

Escrevo da República Democrática<br />

do Congo, onde continuo a ler<br />

cada mês a Além-Mar.<br />

Conto-vos que em Butembo, região<br />

onde temos a nossa casa de<br />

formação, os Combonianos fizeram<br />

um poço para terem água limpa.<br />

Foi elaborado um acordo com o<br />

chefe do bairro para que as famílias<br />

possam aceder a este bem, que<br />

vai melhorar a saúde a todos: cada<br />

pessoa que quer desta água inscreve-se<br />

e recebe um caderno com o<br />

seu nome. Paga uma quantia simbólica<br />

para a manutenção da bomba:<br />

o equivalente a trinta cêntimos de<br />

euro e pode levar 80 litros por dia<br />

todos os dias do mês.<br />

Hoje, foi o primeiro dia. Era uma<br />

alegria e um grande agradecimento.<br />

Sobre os 500 francos, as mães diziam<br />

estar muito bem, porque é poucochinho...<br />

Até nós ficámos impressionados<br />

com a alegria das pessoas. Por isso,<br />

caricato<br />

Manutenção da paz<br />

e com o acordo do chefe do bairro,<br />

começaram imediatamente os trabalhos<br />

para serem quatro – e não<br />

apenas uma – as bicas a fornecerem<br />

água, no horário matinal, que é o que<br />

mais convém às mamãs.<br />

P. e Claudino Gomes | Correio electrónico<br />

agenda de maio<br />

intenção do papa<br />

01<br />

03<br />

05<br />

06<br />

17<br />

21<br />

Dia do Trabalhador<br />

Dia Internacional da<br />

Liberdade de Imprensa<br />

Papa Francisco faz visita à<br />

Bulgária e Macedónia do<br />

Norte<br />

Dia da Mãe<br />

Dia Mundial das<br />

Telecomunicações<br />

Dia Mundial da<br />

Diversidade Cultural<br />

para o Diálogo e o<br />

Desenvolvimento<br />

22<br />

25<br />

26<br />

29<br />

31<br />

Dia Internacional da<br />

Biodiversidade<br />

Dia Internacional das<br />

Crianças Desaparecidas<br />

Dia da África<br />

Exposição em Fátima:<br />

75 anos dos Missionários<br />

da Consolata em Portugal<br />

Dia Internacional dos<br />

Soldados da Paz da ONU<br />

Papa Francisco visita<br />

a Roménia<br />

Maio<br />

Para que, através do empenho dos próprios<br />

membros, a Igreja na África seja<br />

fermento de unidade entre os povos,<br />

sinal de esperança para este continente.<br />

Veja o comentário do Papa Francisco em:<br />

www.apostoladodaoracao.pt/o-video-do-papa<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


editorial<br />

lógica evangélica<br />

© Lusa/Vatican Media<br />

Bernardino Frutuoso<br />

Director<br />

O gesto<br />

profético de<br />

Francisco,<br />

surpreendente<br />

e comovedor,<br />

fala mais<br />

eloquentemente<br />

do que muitos<br />

discursos.<br />

Estamos no tempo pascal e<br />

no nosso coração e na nossa<br />

memória continua a sussurrar<br />

a Boa Notícia do Ressuscitado<br />

e a brilhar a esperança da Vida que não<br />

conhece ocaso. Dias antes da sua Paixão,<br />

num gesto inaudito, o Mestre tinha lavado<br />

os pés aos discípulos, dizendo-lhes<br />

que os seus discípulos devem ser humildes,<br />

viver a fraternidade e estar sempre<br />

dispostos a a<strong>mar</strong>, perdoar e servir, pois<br />

esse é o novo mandamento do Evangelho.<br />

O Papa Francisco, seguindo o exemplo<br />

de humildade do Mestre de Nazaré,<br />

surpreendeu-nos recentemente com<br />

um gesto revolucionário: beijou os pés<br />

dos dirigentes políticos do Sudão do Sul<br />

e pediu que o processo de paz não se<br />

detenha.<br />

O gesto ocorreu no contexto da visita<br />

dos responsáveis religiosos e civis do<br />

mais jovem país<br />

africano ao Vaticano<br />

nos dias 10 e 11<br />

de Abril. Tinham<br />

sido convidados por<br />

Francisco para um<br />

tempo de oração e<br />

reflexão pela paz e<br />

reconciliação naquela<br />

nação, independente<br />

desde Julho de<br />

2011, mas mergulhada<br />

numa guerra<br />

civil desde 2013, que<br />

causou mais de 400<br />

mil vítimas e milhões<br />

de deslocados.<br />

O presidente Salva<br />

Kiir e o ex-vice-presidente<br />

Riek Machar<br />

assinaram um acordo<br />

de paz em 2018<br />

e vão constituir em<br />

Maio um governo<br />

de transição, mas<br />

a paz é frágil. Por<br />

isso, como referiu o<br />

Santo Padre, o retiro<br />

espiritual tinha<br />

como propósito «reflectir sobre a própria<br />

vida e sobre a missão comum» dos chefes<br />

religiosos e civis do Sudão do Sul, para<br />

todos ganharem consciência da «enorme<br />

responsabilidade pelo presente e pelo<br />

futuro» do país. No final do encontro,<br />

depois de ter pedido «como irmão» aos<br />

dirigentes do Sudão do Sul para preservar<br />

a paz, o Papa Francisco inclinou-se,<br />

inesperadamente e com visível dificuldade,<br />

diante de Salva Kiir, Riek Machar<br />

e Rebecca Nyandeng de Mabio e beijou-<br />

-lhes os pés.<br />

O gesto profético de Francisco, surpreendente<br />

e comovedor, com carácter e<br />

simbolismo profundamente evangélicos<br />

e sentido de inculturação – em muitas<br />

culturas africanas o acto de prostrar-se<br />

aos pés de alguém é sinal de agradecimento,<br />

de pedido de perdão ou de uma<br />

graça – fala, sem dúvida, mais eloquentemente<br />

do que muitos discursos. No<br />

seu papel de mediador do conflito e<br />

chefe espiritual da Igreja, o papa altera a<br />

dinâmica da diplomacia e expressa que<br />

a paz e a reconciliação só podem surgir<br />

de uma atitude de humildade, perdão e<br />

serviço recíprocos. Um apelo que o Santo<br />

Padre lança ao coração destes políticos<br />

católicos do Sudão do Sul e que interpretamos<br />

como um chamamento a colocar<br />

Deus no centro da vida e a assumir um<br />

programa de conversão que lhes permita<br />

superar as divergências pessoais, as rivalidades<br />

étnicas, a cultura da violência, do<br />

prestígio e do poder social e a assumir no<br />

quotidiano – nomeadamente na acção<br />

política – os valores e a lógica do Evangelho.<br />

Um convite que se estende a todos os<br />

baptizados, chamados a configurar a vida<br />

com Jesus Cristo (cf. Fl 2,5; Rm 13,14; Gl<br />

3,27), conscientes de que só desse modo<br />

podem discernir os sinais dos tempos,<br />

optar por alternativas em favor da vida e<br />

da paz – compromisso importante neste<br />

tempo de eleições para o Parlamento<br />

Europeu – e ser fermento das bem-aventuranças<br />

e do amor fraterno no mundo<br />

de hoje. am<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


foto do mês<br />

Foto: © Lusa/John Moore<br />

u Histórias que importam<br />

exposição World Press Photo 2019 exibe em Maio, no Museu<br />

Nacional de História Natural e da Ciência, em Lisboa, as<br />

A<br />

fotografias de imprensa premiadas na 62. a edição do mais prestigiado<br />

concurso internacional de fotojornalismo. No concurso<br />

foram atribuídos prémios em nove categorias a 43 fotógrafos de<br />

25 nacionalidades. A imagem «A menina que chora na fronteira»,<br />

captada pelo fotógrafo norte-americano John Moore, eleita<br />

World Press Photo of the Year 2019 – a foto apresenta o drama<br />

das crianças das famílias de migrantes que eram separadas<br />

quando chegavam à fronteira dos Estados Unidos, causou indignação<br />

pública em relação a essa política de separação das famílias<br />

e forçou o presidente Donald Trump a rever as disposições<br />

a esse respeito – é exposta, juntamente com duas centenas de<br />

fotografias premiadas.<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


&<br />

pessoas factos<br />

u<br />

u<br />

u<br />

u<br />

O antigo presidente moçambicano<br />

Joaquim Chissano preside<br />

ao comité consultivo internacional<br />

do Instituto China-África,<br />

fundado em Abril pelo governo<br />

do presidente chinês Xi Jinping.<br />

Com sede em Pequim, o Instituto<br />

China-África vai «aprofundar<br />

o conhecimento mútuo entre<br />

os povos africanos e chinês e<br />

apresentar ideias e recomendações<br />

para a cooperação bilateral».<br />

A intensificação das sanções<br />

contra o petróleo iraniano «não<br />

ficará sem resposta», adverte<br />

o líder supremo do Irão, Ali<br />

Khamenei. A política de «pressão<br />

máxima» dos Estados Unidos<br />

elimina as excepções que<br />

permitiam ainda a oito países<br />

importar petróleo iraniano sem<br />

sofrerem as sanções norte-americanas<br />

impostas contra a República<br />

Islâmica.<br />

O presidente da Indonésia,<br />

Joko Widodo, do partido social-<br />

-democrata PDI-P, declara ter<br />

vencido as eleições de Abril,<br />

enquanto o seu rival, Prabowo<br />

Subianto, do partido de direita<br />

nacionalista GIR, denuncia<br />

fraude eleitoral. Mais de 192<br />

milhões de indonésios votaram<br />

na terceira maior democracia<br />

do mundo. O país do Sudeste<br />

Asiático defronta-se com a crescente<br />

influência do Islão radical.<br />

O presidente interino argelino<br />

<strong>mar</strong>ca eleições presidenciais<br />

para Julho. Abdelkader Bensalah<br />

ocupa a presidência do país<br />

do Norte de África na sequência<br />

da demissão do presidente<br />

Abdelaziz Bouteflika, e não se<br />

poderá candidatar às eleições.<br />

A população manifesta-se pela<br />

«ruptura com o sistema» e por<br />

uma nova República democrática<br />

e social.<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


actualidades<br />

© Lusa/M.A.Pushpa Ku<strong>mar</strong>a<br />

© Lusa/Ghulamullah Habibi<br />

SRI LANKA<br />

Violência cruel<br />

Governo do Sri Lanka mantém o estado de emergência, depois dos<br />

O atentados de Abril, que fizeram 253 mortos, vítimas de explosões em<br />

quatro hotéis de luxo e três igrejas católicas. O governo do presidente Maithripala<br />

Sirisena sustenta que os ataques foram realizados por fundamentalistas<br />

islâmicos em retaliação à chacina na mesquita da Nova Zelândia, em<br />

Março, mas avança que os sete bombistas suicidas eram do Sri Lanka.<br />

Os ataques contra minorias religiosas na ilha do Sul da Ásia vêm-se repetindo<br />

junto de uma população dividida entre budistas (70 %), hinduístas<br />

(15 %), muçulmanos (11 %) e católicos (7 %). «Espero que todos condenem<br />

estes actos terroristas, actos desumanos, não justificáveis», expressa o Papa<br />

Francisco.<br />

AFEGANISTÃO<br />

Mortes aliadas<br />

As tropas afegãs e internacionais mataram mais civis do que os fundamentalistas<br />

islâmicos (talibãs) nos primeiros três meses de 2019, a maioria<br />

em ataques aéreos. Esta é a primeira vez que as mortes causadas pelo<br />

governo do presidente Ashraf Ghani e pelos seus aliados superam as dos<br />

seus inimigos, segundo a Missão de Assistência das Nações Unidas no Afeganistão<br />

(UNAMA), que pede que se «façam investigações e indemnizem as<br />

vítimas». A guerra causou no ano passado um número recorde de 3804 civis<br />

mortos, enquanto os Estados Unidos tentam negociar um acordo de paz.<br />

© Lusa/Rayner Pena © European Union<br />

UNIÃO EUROPEIA<br />

Vozes no Parlamento<br />

s eleições para o Parlamento<br />

A Europeu escolhem em<br />

Maio os 705 deputados de 28<br />

Estados, mantendo Portugal<br />

os 21 eurodeputados no<br />

orgão legislativo. Os Europeus<br />

enfrentam os desafios da<br />

migração, alterações climáticas,<br />

desemprego, privacidade dos<br />

dados e da ameaça à democracia.<br />

VENEZUELA<br />

Declaração de Santiago<br />

Grupo de Lima exorta as<br />

O Nações Unidas a to<strong>mar</strong><br />

atitudes para evitar o progressivo<br />

avanço da crise na Venezuela<br />

e garantir a ajuda humanitária.<br />

Os países-membros do grupo,<br />

criado em 2017 para abordar<br />

exclusivamente a situação na<br />

Venezuela, pedem ainda na<br />

Declaração de Santiago que a<br />

Rússia, China, Cuba e Turquia<br />

«favoreçam o processo de<br />

transição e restabelecimento da<br />

democracia». A crise política,<br />

económica e humanitária na<br />

Venezuela já provocou a migração<br />

de mais de 3,7 milhões de<br />

pessoas.<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


© Lusa/ Julien de Rosa<br />

FRANÇA<br />

Papa visita catedral<br />

Papa Francisco visitará, «no momento<br />

O que considerar adequado», a Catedral<br />

de Norte-Dame de Paris, na sequência do<br />

incêndio devastador de Abril e a convite<br />

do presidente francês, Emmanuel Macron.<br />

O pontífice manifesta uma grande dor<br />

e deseja a mobilização de todos para<br />

a reconstrução da «jóia arquitectónica<br />

de uma memória colectiva». O chefe de<br />

Estado francês já garantiu a reconstrução<br />

da catedral gótica do século XII.<br />

UCRÂNIA<br />

“Servo do Povo”<br />

actor e comediante Vladimir<br />

O Zelenski, novo presidente da<br />

Ucrânia, declara a intenção de<br />

relançar o processo de Minsk, o<br />

acordo de paz com a Rússia. O país<br />

da Europa Oriental vive uma grave<br />

crise económica e um conflito entre o<br />

Exército ucraniano e as milícias pró-<br />

-russas no Leste do país. A eleição de<br />

Vladimir Zelenski, do partido liberal-<br />

-populista CH, é «uma oportunidade<br />

para melhorar a cooperação com<br />

Moscovo», prevê o primeiro-ministro<br />

russo, Dmitri Medvdev.<br />

© Lusa/Stepan Franko<br />

ANGOLA<br />

Malária mata crianças<br />

Cerca de 51 % das 11 814 mortes<br />

provocadas pela malária em<br />

2018 em Angola foram de crianças<br />

entre os zero e quatro anos.<br />

Em 2018, o país registou 5,9<br />

milhões de casos de malária, que,<br />

somando aos dados de 2016 e<br />

2017, totalizam 16,16 milhões<br />

de casos, um período em que,<br />

segundo o responsável, morreram<br />

no país mais 40 mil pessoas<br />

vítimas da doença.<br />

© Lusa<br />

© Lusa/Prabhat Ku<strong>mar</strong> Verma<br />

ÍNDIA<br />

Maiores eleições<br />

Cerca de 900 milhões<br />

de eleitores estão registados<br />

para votar nas legislativas de<br />

Maio na Índia, a democracia mais<br />

populosa do planeta. O primeiro-<br />

-ministro Narendra Modi, do partido<br />

nacionalista hindu BJP, aspira<br />

a um segundo mandato, sendo<br />

provável que o partido social-liberal<br />

INC, chefiado por Rahul Gandhi,<br />

impeça a renovação da maioria<br />

absoluta. A Índia defronta-se com<br />

o desemprego, pobreza rural e um<br />

crescimento económico insuficiente.<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


actualidades<br />

© 123RF<br />

MUNDO<br />

Sobreexposição do<br />

petróleo<br />

s projectos das companhias<br />

O de petróleo contrariam a luta<br />

contra o aquecimento global, destaca<br />

o relatório Overexposed, publicado<br />

pela Global Witness. Estes<br />

planos «estão muito longe de ser<br />

compatíveis com o objectivo de<br />

limitar a elevação da temperatura<br />

global a 1,5 ºC e são contrários<br />

ao que necessitamos», considera<br />

Murray Worthy, autor do relatório.<br />

A Global Witness aponta que «é<br />

preciso reduzir a produção do petróleo<br />

em 40 por cento até 2030»,<br />

advertindo que a produção crescerá<br />

12 por cento.<br />

MUNDO<br />

Tsunami tóxico<br />

Organização Internacional do<br />

A Trabalho alerta para o rápido<br />

crescimento do lixo electrónico no<br />

mundo, de que se produzem cerca<br />

de 50 milhões de toneladas por<br />

ano. «As nações devem aumentar e<br />

promover investimento em infra-<br />

-estrutura de gestão de resíduos»,<br />

alerta aquela agência das Nações<br />

Unidas. Tóxico e perigoso, o lixo<br />

electrónico provoca danos aos trabalhadores<br />

e ao meio ambiente.<br />

O estudo A New Circular Vision<br />

for Electronics, promovido pela<br />

PACE (Platform for Accelerating<br />

the Circular Economy), revela que<br />

apenas 20 % do e-lixo é reciclado<br />

e que mais de 80 % destes resíduos<br />

globais seguem para países como a<br />

China, Índia, Gana e Nigéria.<br />

NIGÉRIA<br />

Expande horizontes<br />

maior plataforma de comércio online do continente africano, a Jumia<br />

A Technologies, apelidada de “Amazon de África”, estreia-se na bolsa de<br />

valores norte-americana NYSE. Fundada em 2012, a empresa de comércio<br />

electrónico opera em 14 países do continente africano, incluindo Gana, Quénia,<br />

Costa do Marfim, Marrocos e Egipto. A Jumia, com sede na Nigéria e<br />

presidida por Juliet Anannah, trabalha com empresários locais e empresas de<br />

logística para entregar os produtos. Cerca de metade das entregas é para as<br />

grandes cidades e a outra parte para as cidades secundárias e rurais.<br />

MUNDO<br />

Florestas tropicais diminuem<br />

mundo perdeu 12 milhões de hectares de florestas tropicais em 2018, o<br />

O tamanho da Nicarágua, segundo o World Resources Institute (WRI).<br />

Em termos globais, os países mais afectados são o Brasil, a Indonésia, a<br />

República Democrática do Congo, a Colômbia e a Bolívia.<br />

No relatório especifica-se ainda que o Brasil é o país que perdeu a maior<br />

área de florestas tropicais primárias, à frente da República Democrática do<br />

Congo e da Indonésia.<br />

A situação pode piorar ainda no Brasil, segundo a organização não-governamental<br />

Imazon, porque o desmatamento na Amazónia brasileira aumentou<br />

54 % entre em Janeiro de 2018 e Janeiro de 2019, também devido à alteração<br />

de políticas ambientais defendida pelo presidente Jair Bolsonaro.<br />

© 123RF © Jumia<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


áfrica minha<br />

o drama do ébola<br />

P. e José Vieira<br />

Missionário comboniano<br />

A RD Congo<br />

está a braços<br />

com o surto<br />

mais grave<br />

de ébola em<br />

quarenta anos.<br />

As províncias de Kivu-Norte<br />

e Ituri, no Leste da República<br />

Democrática do Congo,<br />

vivem sob ameaça mortal<br />

do vírus do ébola desde 1 de Agosto de<br />

2018. A epidemia de febre hemorrágica<br />

foi declarada no Verão passado e a Organização<br />

Mundial da Saúde diz que, até<br />

Abril, havia 1168 casos registados (1102<br />

foram confirmados e 66 são suspeitos) e<br />

741 mortes (675 confirmadas e 66 prováveis),<br />

incluindo 85 casos e 30 mortes de<br />

prestadores de cuidados de saúde. Mais<br />

de metade das vítimas são do sexo feminino,<br />

e 30 por cento são crianças.<br />

O vírus do ébola foi identificado em<br />

1976 em dois surtos distintos: em Nzara<br />

(no então Sul do Sudão) e Yambuku, uma<br />

área florestal junto ao rio Ébola, no Zaire,<br />

de onde recebeu o nome.<br />

O morcego-da-fruta é o hospedeiro do<br />

vírus (de que se conhecem cinco estirpes)<br />

e transmite-o aos humanos através<br />

do sangue e outros fluidos e secreções de<br />

animais selvagens (chimpanzés, gorilas,<br />

macacos, antílopes<br />

e porcos-espinhos) que<br />

comem fruta contaminada<br />

com a sua saliva. Os humanos<br />

transmitem o vírus<br />

uns aos outros através dos<br />

fluidos corporais.<br />

A República Democrática<br />

do Congo (este surto é<br />

o décimo e o mais mortífero<br />

desde 1976), o Uganda,<br />

a República do Congo<br />

e o Gabão são os países<br />

mais afectados pelo ébola.<br />

Normalmente os surtos<br />

surgem nas florestas tropicais.<br />

Contudo, o evento<br />

mais mortífero que infectou<br />

quase 29 mil pessoas<br />

e matou mais de 10 mil<br />

entre 2013 e 2016 na Serra<br />

Leoa, Guiné e Libéria, na<br />

África Ocidental, ocorreu<br />

em meios urbanos e rurais.<br />

© Lusa/Lindsay Mackenzie<br />

O surto no Kivu-Norte está longe de<br />

estar dominado, apesar dos esforços das<br />

organizações internacionais de saúde e<br />

do Governo – que montaram uma dúzia<br />

de centros de tratamento e campanhas<br />

de vacinação. Dois elementos dificultam<br />

o combate ao vírus e a assistência<br />

às vítimas: a desconfiança por parte das<br />

populações e os elementos armados<br />

– que atacaram vários centros de tratamento.<br />

«É das coisas mais complicadas<br />

daqui», afirma o P. e Claudino Ferreira<br />

Gomes, um missionário comboniano que<br />

vive em Butembo, sobre os ataques. «Não<br />

se sabe bem quem ataca. Hoje houve<br />

mais um ataque, com incêndio e a morte<br />

de um polícia. Um dos assaltantes foi ferido,<br />

está no hospital e vai ser interrogado<br />

para se saber donde vem, quem são os<br />

mandantes, etc. Há vozes que acusam os<br />

que vêm tratar o vírus como sendo eles<br />

quem o trouxe! Outros não acreditam<br />

que essas equipas sanitárias se interessem<br />

pelo ébola, mas que andam a fazer tráfico<br />

de órgãos.»<br />

Um dos envolvidos na polémica do<br />

ébola é o bispo católico de Beni-Butembo.<br />

Escreveu uma mensagem a encorajar<br />

as populações a colaborar com os técnicos<br />

de saúde e a to<strong>mar</strong> os medicamentos,<br />

criticando quem propõe as rezas em vez<br />

dos remédios para tratar a doença (até<br />

por interesses económicos, porque uma<br />

bênção paga-se). Em resposta, grupos armados<br />

começaram a assaltar instituições<br />

ligadas à Igreja Católica, incluindo um<br />

centro de retiros dos Combonianos.<br />

Os ataques aos centros de tratamento<br />

põem a região em risco: sem equipas<br />

sanitárias, o vírus pode matar mais de 60<br />

por cento dos habitantes de Butembo e<br />

levar à quarentena da região. Representa<br />

ainda uma ameaça mortal para as áreas<br />

fronteiriças do Uganda, Ruanda e Sudão<br />

do Sul (sobretudo Yei, onde combates<br />

entre forças do Governo e da oposição<br />

não permitem a presença de equipas de<br />

saúde no terreno). am<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


igreja em missão<br />

BANGLADESH<br />

«A missão é a nossa<br />

vocação»<br />

Igreja do Bangaldesh está a<br />

A preparar-se para celebrar o<br />

Mês Missionário Extraordinário<br />

de Outubro. Nesse contexto, Dom<br />

Moses Costa (na foto, à esquerda),<br />

arcebispo de Chattogram e secretário<br />

da Conferência Episcopal do<br />

Bangladesh, refere numa carta pastoral<br />

escrita à sua comunidade diocesana<br />

que «hoje podemos dizer<br />

com certeza, com alegria e emoção<br />

que os católicos no Bangladesh são<br />

o fruto do trabalho missionário e<br />

que a missão é a nossa vocação».<br />

O arcebispo recorda que 2018 foi<br />

um ano cheio de alegria para os<br />

católicos no Bangladesh, pois celebraram<br />

os 500 anos da chegada da<br />

fé cristã a Bengala Oriental (1518-<br />

-2018). Por isso, afirma D. Moses,<br />

«uma vez que recebemos a fé cristã<br />

de missionários estrangeiros, hoje<br />

é a hora de nos tornarmos missionários<br />

ad gentes e difundir a Boa<br />

Nova».<br />

MÉXICO<br />

Igreja Católica apoia os migrantes<br />

Odrama das caravanas de migrantes que não param de chegar à fronteira<br />

mexicana com os Estados Unidos continua. Actualmente, sob a nova política<br />

de imigração do Governo mexicano, o Instituto Nacional de Migração<br />

(INM) fechou os centros estaduais de migrantes em Morélia, Acapulco, Nogales<br />

e Reynosa.<br />

Perante essa situação, a responsabilidade de oferecer comida e abrigo aos<br />

migrantes ao longo de sua rota, do Sul para a fronteira do Norte, agora recai<br />

sobre as poucas ONG presentes e na Igreja Católica. Os responsáveis pelos<br />

centros de acolhimento estimam que, em geral, atendem cerca de 1200 pessoas,<br />

entre mexicanos e estrangeiros. Por exemplo, o centro salesiano do Padre<br />

Chava oferece entre 800 e 1500 refeições todos os dias, apenas graças à<br />

solidariedade da comunidade mexicana, que doa comida, remédios, dinheiro<br />

e serviço voluntário. Outro exemplo é oferecido pela Igreja Embaixadora de<br />

Jesus, que se tornou um dos maiores abrigos em Tijuana e acolhe actualmente<br />

250 pessoas: haitianos, guatemaltecos, hondurenhos, salvadorenhos, venezuelanos,<br />

chilenos e até africanos.<br />

© Lusa/Daniel Ricardez<br />

FILIPINAS<br />

Rádio Veritas<br />

Com a presença de numerosos<br />

bispos asiáticos, realizou-se<br />

em Manila no passado 12 de Abril<br />

a celebração dos 50 anos da Rádio<br />

Veritas, a estação de rádio dirigida<br />

pela Igreja Católica na Ásia, que<br />

tanto contribui para a evangelização<br />

do continente.<br />

© 123RF<br />

EGIPTO<br />

Igrejas regularizadas<br />

N<br />

o Egipto, avança o processo de<br />

regularização de locais cristãos<br />

de culto construídos no passado<br />

sem as autorizações necessárias,<br />

juntamente com a concessão de licenças<br />

para a construção de novas<br />

igrejas. São 984 as igrejas cristãs<br />

regularizadas, restauradas ou construídas<br />

em menos de três anos, depois<br />

da aprovação da nova lei sobre<br />

a construção e gestão de locais de<br />

culto (30 de Agosto de 2016).<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


© 123RF<br />

Rita Figueiras<br />

Universidade Católica<br />

Portuguesa<br />

Os estudos<br />

científicos<br />

destacam<br />

que as redes<br />

sociais podem<br />

proporcionar<br />

uma sensação de<br />

poder, segurança<br />

e solidariedade,<br />

mas também de<br />

isolamento<br />

e solidão.<br />

contraponto<br />

ligações tecnológicas,<br />

implicações sociais<br />

O<br />

Facebook popularizou um<br />

novo termo na sociedade, o<br />

de «redes sociais». Esta designação<br />

tornou-se a forma<br />

vulgar de nomear este media social. Enquanto<br />

os meios de comunicação social<br />

se edificaram num modelo de comunicação<br />

vertical, unidireccional e de um para<br />

muitos, os media sociais distinguiram-se<br />

por serem meios de ligação e interacção<br />

entre as pessoas, assentes numa estrutura<br />

horizontal de um para muitos e de<br />

muitos para muitos em rede.<br />

A expressão «redes sociais» foi, deste<br />

modo, associada à Internet, que, de facto,<br />

tem uma arquitectura em rede. Todavia,<br />

esta associação levou ao esquecimento<br />

de algo fundamental: as redes sociais<br />

precedem a tecnologia, são parte constitutiva<br />

da sociedade e não algo criado por<br />

ou dependente de plataformas como o<br />

Facebook, cuja retórica<br />

foi construída em<br />

torno de termos como<br />

“amizade” e “amigos”.<br />

Esta plataforma<br />

tornou-se numa sala<br />

de estar (onde se<br />

acompanha a vida dos<br />

amigos e se conversa<br />

sobre temas do<br />

quotidiano), numa<br />

tribuna (onde se disserta<br />

sobre problemas<br />

públicos, tantas vezes<br />

com níveis de ódio e<br />

ofensas alarmantes),<br />

num palco (onde se<br />

exibe física e emocionalmente),<br />

num parapeito<br />

(onde se espreita<br />

de modo voyeurista o<br />

que se passa na vida<br />

de terceiros próximos,<br />

conhecidos ou<br />

distantes) e, também,<br />

num espelho (onde,<br />

de modo narcisístico,<br />

o emissor se tornou o principal receptor<br />

de si próprio).<br />

Os estudos científicos que analisam o<br />

modo como as novas mediações tecnológicas<br />

reconfiguram o espaço público e<br />

o espaço privado, bem como a comunicação<br />

interpessoal e os relacionamentos<br />

humanos, destacam que as redes sociais<br />

podem proporcionar uma sensação de<br />

poder, segurança e solidariedade, mas<br />

também de isolamento e solidão. Recentemente,<br />

investigadores do Instituto<br />

Superior de Psicologia Aplicada (ISPA)<br />

analisaram o impacto da Internet nas<br />

relações amorosas, de amizade e familiares<br />

em adolescentes e jovens dos 16 aos<br />

26 anos. Concluíram que o uso excessivo<br />

das redes e da Internet contribui para<br />

um sentimento de solidão, ansiedade e<br />

depressão, mesmo quando se têm boas<br />

relações familiares e sociais. De acordo<br />

com os autores do estudo, a comunicação<br />

online não proporciona a riqueza sensorial<br />

que o cérebro necessita para que se<br />

gerem sentimentos de conexão social.<br />

O sentimento de solidão pode, inclusive,<br />

gerar um círculo vicioso de dependência<br />

das tecnologias de comunicação, porque<br />

os utilizadores podem achar que<br />

precisam de mais contactos online para<br />

ultrapassarem a angústia.<br />

No âmbito do 53.º Dia Mundial das<br />

Comunicações, sob o título «“Somos<br />

membros uns dos outros” (Ef 4,25): das<br />

comunidades de redes sociais à comunidade<br />

humana», a mensagem do Papa<br />

Francisco chama a atenção para isto mesmo<br />

e alerta para o facto de as redes terem<br />

de ser encaradas como complementares<br />

e não centrais na vida. É que importa<br />

não esquecer que os relacionamentos e<br />

os laços sociais são os elementos básicos<br />

da experiência humana e que as relações<br />

entre as pessoas têm consequências para<br />

os indivíduos, a interacção social e as<br />

estruturas sociais. Deste modo, estar off<br />

pode ser, muitas vezes, a melhor forma<br />

de estar on na vida. am<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


do alto dos andes<br />

Fernando Sousa | Jornalista<br />

© Jeff Reed<br />

p Germán Caravano<br />

(direita) recebe os discos<br />

com os documentos<br />

argentina<br />

eua divulgam a guerra suja<br />

Houve um tempo em que a Argentina foi dominada por “tiranos que viveram<br />

de sangue e de rapina” – com a compreensão dos Estados Unidos, que agora<br />

tornam públicos milhares de documentos para que a justiça ocupe o lugar até<br />

agora do ódio e do ressentimento.<br />

Germán Caravano, o ministro<br />

argentino a quem coube<br />

a tarefa de ir a Washington<br />

receber os segredos que os Estados<br />

Unidos guardaram durante quarenta<br />

anos sobre a ditadura de Videla, não<br />

escondeu a emoção quando os recebeu<br />

sob a forma de discos compactos.<br />

As palavras saíram-lhe a custo, metade<br />

em inglês e a outra metade em<br />

castelhano. Mas percebeu-se tudo.<br />

Falou de um «acontecimento histórico»<br />

e de informações que vão permitir<br />

continuar com processos, uns a<br />

derrapar, outros parados, outros por<br />

começar, sobre o lado mais «obscuro»<br />

da história do seu país, onde, afinal,<br />

é titular da pasta da Justiça.<br />

Foi em meados de Abril, poucos<br />

dias depois de o presidente norte-<br />

-americano, Donald Trump, ter<br />

mandado uma carta ao homólogo<br />

argentino, Maurício Macri, anunciando-lhe<br />

que ia divulgar milhares<br />

de documentos sobre o golpe militar<br />

de 1976 e o que se seguiu durante<br />

sete anos. A «maior divulgação de<br />

documentos da história do Governo<br />

dos Estados Unidos» cedida a um<br />

governo estrangeiro, disse ele.<br />

Milhares de páginas<br />

E é verdade. Houve uma, em 2002,<br />

mas esta é muito maior. São mais<br />

de 43 mil páginas, 97 por cento sem<br />

qualquer censura, uma percentagem<br />

muito alta dentro do género, arrumadas<br />

em seis discos rígidos, num<br />

trabalho de contornos ciclópicos<br />

que envolveu 16 agências e departamentos<br />

federais norte-americanos,<br />

incluindo o FBI e a CIA, e o afã de<br />

400 funcionários durante mais de 30<br />

mil horas.<br />

Trump só não disse que a iniciativa<br />

fora do antecessor, Obama, depois de<br />

uma visita que este fez à Argentina,<br />

em 2016, para sanar a tensão entre os<br />

dois países.<br />

A entrega foi evidentemente o<br />

tema forte da imprensa argentina,<br />

que tentou trazer logo a lume o máximo<br />

de coisas escondidas. O diário<br />

Clarín, por exemplo, escreveu que os<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


© Lusa/David Fernandez<br />

Estados Unidos sabiam tudo o que<br />

Jorge Videla, Emilio Massera, Leopoldo<br />

Galtieri, Armando Lambruschini<br />

e Orlando Agosti preparavam<br />

– e que se saldaria por uma das mais<br />

ferozes ditaduras do nosso tempo.<br />

Um telegrama de 27 de Fevereiro de<br />

1976 da CIA já dizia que «as Forças<br />

Armadas estavam prontas para afastar<br />

a desastrada María Estela Perón,<br />

“Isabelita”, da presidência», que foi<br />

o que aconteceu um mês depois, no<br />

dia 24 de Março.<br />

Ordem para matar<br />

Noutro documento, com data de 24<br />

de Julho de 1976, este publicado pelo<br />

diário norte-americano The New<br />

York Times, o director da CIA para as<br />

Américas, Raymond Warren, alerta<br />

um supervisor sobre planos de um<br />

esquadrão para «liquidar» pessoas<br />

suspeitas de serem de esquerda no<br />

estrangeiro e da necessidade de um<br />

debate que levasse os Estados Unidos<br />

a «impedir actividades ilegais deste<br />

tipo». Era o Plano Condor, que jun-<br />

q As Avós da Praça de Maio lutam para<br />

encontrar as pessoas desaparecidas<br />

durante a ditadura argentina<br />

tou, além da Argentina, o Chile e o<br />

Uruguai; o Brasil ajudou em matéria<br />

de informações.<br />

Os Argentinos esperam que o<br />

acervo documental, que atravessa<br />

quatro presidentes americanos, o republicano<br />

Gerald Ford (1974-1977),<br />

o democrata Jimmy Carter (1977-<br />

-1981) e os republicanos Ronald<br />

Reagan (1981-1989) e George W.<br />

Bush (1989-1983), traga mais luz<br />

sobre o golpe e a guerra suja, que se<br />

arrastou até 1983, e justiça. Assassínio,<br />

tortura, desaparecimentos, toda<br />

a espécie de perseguições, raptos, os<br />

ditadores recorreram a tudo na sua<br />

loucura sanguinária. Chegando mesmo<br />

a prender padres como os jesuítas<br />

Orlando Virgílio e Francisco Jalics,<br />

libertados por pressão também<br />

do então superior-geral dos Jesuítas<br />

no país, Jorge Mario Bergoglio, o futuro<br />

Papa Francisco.<br />

Balanço (ainda provisório) de<br />

mortos e desaparecidos: 30 mil.<br />

E apesar do muito caminho já feito,<br />

muito outro está por fazer.<br />

Uma justiça exemplar<br />

De todos os países da América Latina<br />

vítimas de ditaduras, a Argentina<br />

foi a que mais perseguiu os torcionários<br />

uma vez regressada a democracia.<br />

Mas foi uma corrida de obstáculos.<br />

Videla, Massera, Galtieri,<br />

Lambruschini e Agosti chegaram a<br />

ser condenados a pesadas penas de<br />

prisão, em 1985, mas a fraqueza do<br />

primeiro presidente pós-ditadura,<br />

Raúl Alfonsin, e certamente a escandalosa<br />

cumplicidade do que veio a<br />

seguir, Carlos Menem, levou os militares<br />

a imporem por meio de revoltas<br />

e ameaças as leis ditas da Obediência<br />

Devida, em 1986, e Ponto Final, no<br />

ano seguinte.<br />

Com os peronistas Kirchner, Néstor<br />

(2003-2007) e Cristina, tudo<br />

mudou. O último balanço da Procuradoria<br />

dos Crimes contra a Humanidade<br />

refere 575 processos contra<br />

repressores, com 3002 arguidos.<br />

Desde 2006 até Setembro passado,<br />

os tribunais argentinos ditaram 209<br />

condenações contra 862 arguidos.<br />

À espera de conhecer as sentenças<br />

estão 715 militares. Nunca uma justiça<br />

foi tão longe no julgamento de<br />

uma guerra suja. Mas há muito ainda<br />

por descobrir sobre esta, que, de todas<br />

as do seu tempo, na sua maioria<br />

ditaduras clássicas, foi a mais <strong>mar</strong>cada<br />

pela maldade pura e simples.<br />

A coincidir com a divulgação, aí<br />

esteve, no dia 10 do mês passado, o<br />

anúncio, por parte das Avós da Praça<br />

de Maio, da descoberta de mais uma<br />

pessoa, uma mulher de 42 anos, nascida<br />

num centro de detenção militar<br />

argentino, a “neta 129”. Tirada à mãe,<br />

Norma, que os militares viriam a matar,<br />

foi dada depois em adopção a outras<br />

pessoas. Foram pelo menos 500<br />

as crianças nascidas de mães a seguir<br />

executadas. Falta encontrar muitas.<br />

Em 1985, depois da condenação<br />

daqueles quatro responsáveis militares,<br />

com base nas investigações<br />

da comissão chefiada pelo escritor<br />

Ernesto Sábato, que já identificara<br />

9 mil vítimas, o procurador Júlio César<br />

Strassera citou Dante Alighieri<br />

e chamou aos condenados «tiranos<br />

que viveram do sangue e da rapina».<br />

Nunca também uma verdade foi<br />

tão forte. am<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


meargélia e sudão<br />

a liberdade está<br />

© Lusa/Mohamed Messara<br />

a passar por aqui<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


Duas décadas de poder de Abdelaziz Bouteflika e três de<br />

O<strong>mar</strong> al-Bashir chegaram ao fim. Não tombaram os regimes,<br />

mas os milhares de manifestantes que nas ruas<br />

exigem democracia também não arredam pé.<br />

Texto: Margarida Santos Lopes, jornalista<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


argélia e sudão<br />

É<br />

a segunda temporada das<br />

«primaveras árabes» de<br />

2011 ou a continuação da<br />

luta pela independência de<br />

1954-1962? Rachid Tlemçani, um<br />

dos mais notáveis académicos argelinos,<br />

escusa-se a classificar a revolta<br />

popular que obrigou Abdelaziz<br />

Bouteflika a renunciar a um quinto<br />

mandato depois de vinte anos na<br />

presidência.<br />

«Não tenho tempo para me envolver<br />

em definições», responde, em entrevista<br />

à Além-Mar, o professor de<br />

Ciência Política na Universidade de<br />

Argel. «O que está a acontecer é uma<br />

nova fase de um movimento social.<br />

É o acumular de lutas passadas que<br />

moldaram o país. É um movimento<br />

de massas que chegou à fase da maturação.»<br />

«Não gostamos da analogia com<br />

as “primaveras árabes”», diz-nos<br />

também a argelina Dalia Ghanem-<br />

-Yazbeck, analista no Carnegie Middle<br />

East Center em Beirute, Líbano.<br />

«Preferimos cha<strong>mar</strong>-lhe “revolução<br />

dos sorrisos”. Esta é uma sequência<br />

única de acontecimentos jamais<br />

vista desde os anos 1990», quando o<br />

Exército anulou a vitória eleitoral da<br />

Frente Islâmica de Salvação Nacional<br />

(FIS), abrindo caminho a uma guerra<br />

civil que causou cerca de 200 mil<br />

mortos.<br />

«Bouteflika saiu do poder por<br />

pressão do povo e do Exército», refere<br />

a especialista em radicalização,<br />

islamismo e jiadismo na Argélia. «Se<br />

os Argelinos não tivessem saído à<br />

rua durante semanas consecutivas,<br />

Bouteflika ainda estaria no poder e<br />

o Exército não o afastaria. O poder<br />

popular apanhou o regime desprevenido<br />

e o Exército foi forçado a to<strong>mar</strong><br />

decisões.»<br />

Tlemçani, autor de duas obras de<br />

referência, Élections et élites en Algérie<br />

(2003) e State and Revolution in<br />

Algeria (1986), concorda que os militares,<br />

«como toda a gente» – incluindo<br />

o que Dalia Ghanem-Yazbeck<br />

qualifica de «desacreditada oposição»<br />

–, foram surpreendidos.<br />

© Lusa/Mohamed Messara<br />

Não tiveram alternativa a deixar<br />

cair o discípulo protegido do herói<br />

da resistência Houari Boumediène;<br />

o sedutor de olhos azuis que atraía<br />

celebridades europeias; o revolucionário<br />

que abraçou as causas de Che<br />

Guevara, Nelson Mandela, Eldridge<br />

Cleaver e Yasser Arafat; o mais jovem<br />

ministro dos Negócios Estrangeiros<br />

(aos 26 anos) que amplificou a<br />

voz dos não-alinhados; o presidente<br />

que, em 1999, depois de um exílio<br />

forçado, ajudou a pacificar um país<br />

exangue.<br />

«O que importa à classe dominante<br />

na Argélia não é a ideologia, mas o<br />

rendimento», comenta o politólogo<br />

Tlemçani. «A queda das receitas do<br />

petróleo desde 2014 exacerbou as lutas<br />

dentro desta classe. Porque o movimento<br />

popular tem sido gigantesco<br />

© Lusa/Jayden Joshua<br />

p NigeriaDaura, Katsina<br />

e nacional, atraindo pessoas de todas<br />

as idades e sexos, de todos os estratos<br />

sociais, a classe dominante não<br />

foi capaz de o confrontar. Nestas circunstâncias,<br />

cada grupo tenta agora<br />

salvar os seus interesses. Por isso, foi<br />

fácil ao Exército afastar Bouteflika.»<br />

Humilhação nacional<br />

Era uma rebelião inevitável. «No período<br />

pós-colonial, o novo poder político<br />

apostou tudo num processo de<br />

construção de um Estado em detrimento<br />

da construção de uma nação e<br />

da promoção de uma sociedade civil<br />

e liberdades colectivas», critica o ex-<br />

-investigador nas universidades americanas<br />

de Georgetown e Harvard.<br />

«O antigo poder colonial ofereceu<br />

plena assistência a elites corruptas,<br />

que puseram em prática este modelo<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


Exército nos quartéis<br />

Ao abrigo do Artigo 102 da Constituição,<br />

o presidente da Câ<strong>mar</strong>a Alta<br />

do Parlamento, Abdelkader Bensalah,<br />

foi nomeado presidente interino<br />

durante 90 dias, até um próximo<br />

escrutínio em 14 de Julho. Mas estas<br />

medidas não acal<strong>mar</strong>am a efervescência<br />

nas ruas, onde se erguem<br />

cartazes e gritam palavras de ordem<br />

exigindo novos líderes, eleições sem<br />

fraudes e um Estado de direito.<br />

No dia 17, demitiu-se Tayeb Belaiz,<br />

presidente do Conselho Constitucional<br />

– um dos 3BB protegidos por<br />

Bouteflika (os outros são Bensalah<br />

e o primeiro-ministro, Noureddine<br />

Bedoui) cujo afastamento é exigido<br />

pelos manifestantes. E assim continua<br />

o impasse.<br />

O Exército esforça-se por não ser<br />

excluído para proteger os seus interesses,<br />

mas os Argelinos não parecem<br />

dispostos a aceitá-lo como interlocutor<br />

legítimo. Aprenderam com os erp<br />

NigeriaDaura, Katsina<br />

p Manifestantes em Argel exigem mudanças<br />

radicais do sistema. Os protestos<br />

começaram em Fevereiro, depois de<br />

o ex-presidente anunciar a sua candidatura<br />

para o quinto mandato<br />

de desenvolvimento, de cima para<br />

baixo. O Estado nas sociedades pós-<br />

-coloniais tem sido um mero aparelho<br />

repressivo – há quem lhe chame<br />

deep state; eu prefiro cha<strong>mar</strong>-lhe “security<br />

state”.»<br />

Foi contra este «Estado de segurança»,<br />

e não apenas contra Bouteflika,<br />

que os Argelinos se revoltaram<br />

depois de, em 10 de Fevereiro,<br />

o quase invisível chefe de Estado ter<br />

anunciado que se candidatava às presidenciais<br />

de 18 de Abril.<br />

«Claro que já não tenho a mesma<br />

força física de outrora [...], mas a<br />

vontade inquebrantável de servir a<br />

pátria nunca me abandonou», informou<br />

Bouteflika, debilitado por um<br />

AVC e um cancro no estômago, há<br />

anos imobilizado numa cadeira de<br />

rodas, a maior parte do tempo internado<br />

no estrangeiro, as funções oficiais<br />

delegadas a um círculo restrito.<br />

Na sexta-feira, 22 de Fevereiro,<br />

em resposta a apelos anónimos nas<br />

redes sociais, e apesar de as manifestações<br />

estarem proibidas desde 2001<br />

na capital, dezenas de milhares de<br />

argelinos saíram à rua. Não apenas<br />

em Argel, mas por todo o país, protestando<br />

pacificamente contra uma<br />

«humilhação nacional».<br />

A 3 de Março, um dia depois de<br />

festejar 83 anos numa clínica em Genebra,<br />

Bouteflika insistiu em apresentar<br />

a sua candidatura ao Conselho<br />

Constitucional. Na mesma noite,<br />

porém, numa carta lida na televisão<br />

nacional, prometeu que, caso fosse<br />

eleito, não cumpriria o novo mandato<br />

até ao fim e anteciparia eleições.<br />

Enganou-se se esperava silenciar<br />

os manifestantes. E teve outra surpresa<br />

ao regressar à pátria, no dia 10,<br />

após mais duas semanas de ausência:<br />

o chefe de Estado-Maior do Exército,<br />

Ahmed Gaïd Salah, por ele nomeado,<br />

declarou-se «orgulhoso de pertencer<br />

a [este] povo autêntico e de partilhar<br />

os mesmos valores e princípios».<br />

No dia 11, o presidente desistiu do<br />

quinto mandato e adiou as eleições<br />

sine die. Os manifestantes regozijaram-se,<br />

mas recusaram o que pressentiram<br />

como «o prolongamento<br />

do quarto mandato», e mantiveram<br />

a pressão. Em privado e em público,<br />

o general Salah exigiu a demissão<br />

do chefe de Estado. Em 2 de Abril,<br />

o homem por todos conhecido por<br />

Boutef saiu de cena. No dia 4, numa<br />

carta de despedida, pediu desculpa<br />

aos compatriotas por ter falhado o<br />

seu dever.<br />

u<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


argélia e sudão<br />

© Lusa/Amel Pain<br />

p Ninguém prevê o futuro da Argélia.<br />

Sabe-se apenas que a revolução<br />

pacífica, encabeçada por jovens [45%<br />

da população tem menos de 25 anos],<br />

homens e mulheres, reclama uma mudança<br />

profunda do regime<br />

ros cometidos no Egipto, no Iémen,<br />

na Líbia e na Síria (ver texto “Arábia<br />

Infeliz”, página 24 e seguintes).<br />

«A questão crucial é o que irá acontecer<br />

no futuro imediato», salienta<br />

Rachid Tlemçani. «Ninguém sabe.<br />

Sabemos apenas que esta revolução<br />

pacífica, encabeçada por jovens [45%<br />

da população tem menos de 25 anos],<br />

homens e mulheres, reclama uma<br />

mudança profunda do regime: Système<br />

dégage! [Sistema, põe-te a andar!»]<br />

Mas não podemos descartar,<br />

teoricamente falando, o risco de a<br />

Argélia se tornar um novo Egipto.»<br />

«O Exército e o establishment político<br />

querem uma mudança cosmética,<br />

a purga de apenas algumas personalidades<br />

corruptas e visíveis. Mas a<br />

Argélia insiste em empurrar o Exército<br />

para os quartéis. Enquanto os<br />

exércitos no Médio Oriente e Norte<br />

de África se envolverem na política,<br />

as sociedades não terão garantias de<br />

liberdade e democracia.»<br />

O dilema do Sudão<br />

Como evitar o cenário egípcio é<br />

também o dilema do Sudão, onde<br />

milhares de manifestantes pacíficos<br />

forçaram o Exército a derrubar<br />

O<strong>mar</strong> al-Bashir – o único presidente<br />

que, em exercício, foi acusado pelo<br />

Tribunal Penal Internacional de genocídio,<br />

crimes de guerra e contra a<br />

Humanidade.<br />

Tal como os Argelinos, os Sudaneses<br />

continuam vigilantes nas ruas<br />

e praças, exigindo o fim do regime<br />

e não apenas do déspota que os<br />

governou durante três décadas.<br />

Além de Bashir, de 75 anos, afastado<br />

em 11 de Abril, a pressão popular<br />

forçou igualmente a demissão de<br />

Awad Ibn Auf, ministro da Defesa e<br />

mentor do golpe, no dia 12; e de Salah<br />

Abdallah Gosh, que comandava o<br />

odiado Serviço de Segurança e Informação<br />

Nacional (NISS), no dia 13.<br />

O novo homem-forte é agora<br />

outro general, Abdel Fattah Abdelrahman<br />

Burhan, 60 anos, que sobe<br />

na hierarquia, aparentemente, graças<br />

ao apoio das Forças de Apoio Rápido<br />

(RSF). Este grupo paramilitar é<br />

visto como a nova face das antigas<br />

milícias Janjaweed, que cometeram<br />

atrocidades em massa no Darfur.<br />

Segundo a ONU, ali foram mortas<br />

quase 400 mil pessoas e 2,7 milhões<br />

deslocadas depois de rebeldes negros<br />

se terem insurgido, em 2003,<br />

contra o governo de maioria árabe<br />

em Cartum, acusando-o de discriminação.<br />

Não admira que os manifestantes<br />

não baixem a guarda, apesar do tom<br />

conciliatório de Burhan e de algumas<br />

concessões que já fez: a libertação de<br />

centenas de prisioneiros políticos, a<br />

prisão de ex-dirigentes ou a transferência<br />

de Bashir para uma penitenciária<br />

de alta segurança onde ele encarcerava<br />

os inimigos.<br />

Em 21 de Abril, a Associação dos<br />

Profissionais Sudaneses (SPA) – médicos,<br />

professores, engenheiros,<br />

advogados e outras classes –, que<br />

organiza os protestos desde 2018,<br />

suspendeu os contactos com o Conselho<br />

Militar chefiado por Burhan.<br />

Acusa-o de integrar «os restos» do<br />

regime de Bashir e de não responder<br />

às reivindicações de uma transferência<br />

imediata de poder para um<br />

governo civil durante um período de<br />

transição de quatro anos. E enquanto<br />

os militares apelaram ao regresso<br />

à vida normal, a SPA exortou a uma<br />

escalada das manifestações.<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


© Lusa<br />

Burhan, por seu turno, prometeu<br />

responder aos manifestantes no<br />

prazo de uma semana, depois de conhecer<br />

os nomes propostos para um<br />

«conselho civil com um representante<br />

militar».<br />

Um ditador intocável<br />

A grande vitória da SPA até agora foi<br />

a queda de um homem que se julgava<br />

intocável. Nascido em 1944 numa<br />

família de camponeses, em Hosh<br />

Wad Banaqa, quando o Norte árido<br />

e desértico fazia parte do Reino do<br />

Egipto e do Sudão, O<strong>mar</strong> al-Bashir<br />

muito jovem sentiu o apelo da vida<br />

militar. Formado numa academia no<br />

Cairo, combateu na Segunda Guerra<br />

Israelo-Árabe de 1973.<br />

Em 1981, de regresso a Cartum, foi<br />

promovido a comandante de um regimento<br />

de pára-quedistas, assumindo<br />

um papel central na guerra contra<br />

os rebeldes cristãos e animistas do<br />

Exército de Libertação do Povo do<br />

Sudão, de John Garang, no Sul.<br />

Em 1989, com a patente de coronel,<br />

Bashir encabeçou o golpe que<br />

derrubou Sadiq al-Mahdi, o primeiro<br />

chefe de um governo democraticamente<br />

eleito. Aliado de Hassan<br />

al-Turabi, líder da Frente Islâmica<br />

© Lusa<br />

Nacional, dissolveu o Parlamento,<br />

ilegalizou os partidos políticos, prendeu<br />

opositores e introduziu a Sharia<br />

(lei islâmica).<br />

Em 1993, aboliu a junta que chefiava<br />

e autoproclamou-se presidente.<br />

Três anos depois, concorrendo sozinho,<br />

venceu eleições com 75,7 %<br />

dos votos, mas só em 1999 é que<br />

restabeleceu o multipartidarismo<br />

e cortou relações com Turabi. Foi<br />

sempre uma figura controversa. Deu<br />

refúgio aos terroristas Abu Nidal,<br />

Carlos, o Chacal, e Osama bin Laden.<br />

Apoiou Saddam Hussein na invasão<br />

iraquiana do Kuwait e os rebeldes<br />

p Sudaneses protestam em frente à<br />

sede do Exército em Cartum, no Sudão,<br />

no passado 13 de Abril. Ao lado, o ex-<br />

-presidente do Sudão, O<strong>mar</strong> al-Bashir<br />

que derrubaram Muam<strong>mar</strong> Kadhafi<br />

na Líbia. Foi dos primeiros a reabilitar<br />

Bashar al-Assad na Síria.<br />

«Não tem medo do TPI [que emitiu<br />

contra ele dois mandados de captura<br />

em 2009 e 2010]?», perguntou-<br />

-lhe um jornalista em 2015, o ano em<br />

que foi reeleito com 95 % dos votos.<br />

«Só tenho medo de Deus», foi a resposta<br />

do fugitivo.<br />

Colapso da economia<br />

A revolução que selou o destino de<br />

Bashir começou com protestos estudantis<br />

em 2011 – o ano das «primaveras<br />

árabes», mas sobretudo o ano<br />

em que o Sul do Sudão se tornou Estado<br />

independente, levando consigo<br />

¾ dos campos petrolíferos que sustentavam<br />

o vizinho Norte, o maior<br />

país de África antes da secessão.<br />

A partir de Setembro de 2013,<br />

quando Cartum extinguiu os subsídios<br />

ao gasóleo e ao gás doméstico,<br />

o país irrompeu em motins contra<br />

uma acentuada subida de preços.<br />

«Nessa altura, o uso da força foi u<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


líbia<br />

líbia<br />

argélia e sudão<br />

do coronel kadhafi ao <strong>mar</strong>echal haftar<br />

Enquanto Argelinos e Sudaneses fazem cair déspotas, os Líbios temem o advento de<br />

outra ditadura que ameaça transfor<strong>mar</strong> o seu país num Iémen do Mediterrâneo.<br />

As Nações Unidas esperavam que, depois<br />

de anos de conflito e anarquia<br />

desde a queda de Muam<strong>mar</strong> Kadhafi,<br />

os senhores da guerra na Líbia estariam<br />

dispostos a negociar uma partilha de<br />

poder e a unificar o país.<br />

Uma conferência nacional estava <strong>mar</strong>cada<br />

para 14 de Abril, mas foi indefinidamente<br />

adiada quando, no dia 5, Khalifa<br />

Haftar, o homem-forte em Cirenaica<br />

(Leste) e Fezã (Sul) decidiu avançar<br />

sobre Trípoli, a capital, na Tripolitânia<br />

(Oeste). O seu objectivo declarado é<br />

derrubar o primeiro-ministro, Fayez al-<br />

-Sarraj, do Governo do Acordo Nacional<br />

(GAN), até agora reconhecido pela maior<br />

parte da comunidade internacional.<br />

Haftar diz que quer “livrar a Líbia dos<br />

extremistas”, mas o enviado especial da<br />

ONU, Ghassan Salamé, prefere qualificar<br />

a ofensiva em curso como «golpe de Estado».<br />

Muitos desconfiam que o objectivo<br />

primordial do general de 75 anos<br />

que se promoveu a <strong>mar</strong>echal-de-campo<br />

é tornar-se o próximo Kadhafi. Ele próprio<br />

deixou claro que «a Líbia não está<br />

preparada para ser uma democracia».<br />

À hora do fecho desta edição, Haftar<br />

ainda não entrara em Trípoli – porque<br />

milícias aliadas de Sarraj mobilizaram<br />

combatentes e equipamento noutras<br />

cidades e, numa feroz resistência, têm<br />

forçado o recuo do autoproclamado<br />

Exército Nacional Líbio (ENL).<br />

Em 23 de Abril, violentos combates,<br />

ataques aéreos e, pela primeira vez,<br />

aparentemente, drones armados já tinham<br />

causado 264 mortos, 1266 feridos<br />

e mais de 35 mil deslocados, segundo<br />

estimativas da ONU.<br />

«A guerra em Trípoli entrou oficialmente<br />

numa fase mais perigosa, e<br />

tornou-se um ataque por parte de uma<br />

potência invasora – os Emirados Árabes<br />

Unidos [que têm uma base de drones<br />

em Al Khadim, a sul da cidade]», critica<br />

Anas El Gomati, director do think tank<br />

líbio Sadeq Institute, citado pelo diário<br />

britânico The Guardian. «A Líbia está à<br />

beira de se tornar num Iémen no Mediterrâneo.»<br />

Islamistas vs. salafitas<br />

Haftar, reconhecido como líder por um<br />

parlamento/governo rival do GAN em<br />

Tobruk (Leste), conta com o apoio não<br />

© Lusa<br />

p Até ao dia 23 de Abril, 264 pessoas<br />

morreram e 1266 ficaram feridas desde<br />

o início da ofensiva do Exército Nacional<br />

Líbio do <strong>mar</strong>echal Khalifa Haftar para<br />

conquistar a capital líbia, segundo a<br />

Organização Mundial de Saúde<br />

apenas dos Emirados, mas também da<br />

Arábia Saudita, do Egipto, da França,<br />

da Rússia e agora de Donald Trump,<br />

que mudou abruptamente a política dos<br />

EUA para a Líbia. Deixou de condenar<br />

a campanha unilateral do homem que<br />

foi cúmplice de Kadhafi e cliente da CIA<br />

para dar luz verde ao que designa por<br />

«batalha contra o terrorismo».<br />

A decisão de Trump, depois de Washington<br />

e Moscovo terem chumbado<br />

uma proposta de cessar-fogo no Conselho<br />

de Segurança das Nações Unidas,<br />

surpreendeu analistas regionais. Porque<br />

as forças de Haftar, que prometeram<br />

uma «vitória rápida e decisiva», não só<br />

têm vindo a perder terreno como dificilmente<br />

conseguirão obter legitimidade e<br />

impor a sua autoridade na capital.<br />

Em Trípoli, um dos alvos do ENL é o<br />

Banco Central, nas mãos de um cartel<br />

de milicianos que impõem a sua própria<br />

versão da lei e ordem e enriquecem de<br />

forma ilícita. Haftar, que já tem domínio<br />

sobre os campos de petróleo líbios,<br />

precisa das instituições financeiras na<br />

capital para continuar a comprar a lealdade<br />

dos vários e imprevisíveis grupos<br />

armados que compõem o seu exército.<br />

A guerra de Haftar é também uma<br />

contenda entre os islamistas da Irmandade<br />

Muçulmana, que supostamente<br />

apoia Sarraj por intermédio do Qatar<br />

e da Turquia, e os salafitas seguidores<br />

do xeque saudita Rabi’ bin Hadi al-<br />

-Madkhali, por sua vez abençoados por<br />

Riade, Abu Dhabi e Cairo.<br />

Um dos princípios fundamentais do<br />

madkhalismo é obedecer cegamente a<br />

qualquer chefe muçulmano por mais injusto<br />

e cruel que seja. Os madkhalistas,<br />

que se opuseram à queda de Kadhafi,<br />

recusam eleições e qualquer participação<br />

política, alegando que «isso dá<br />

primazia ao indivíduo sobre Deus» – o<br />

contrário do que defende a confraria<br />

que Sauditas, Emiradenses e Egípcios<br />

vêem como obstáculo aos seus interesses<br />

regionais.<br />

No Leste da Líbia, os madkhalistas<br />

apoiam devotamente Haftar, não apenas<br />

com fatwas [éditos religiosos] a seu<br />

favor, mas integrando brigadas do ENL.<br />

A sua motivação nada tem que ver com<br />

o movimento reformista, secular e democrático<br />

na Argélia e no Sudão.<br />

Margarida Santos Lopes<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


© Lusa<br />

p No passado dia 21 de Abril os Sudaneses<br />

congregaram-se em Cartum, em<br />

frente da sede do Exército, para ouvir<br />

o anúncio da criação de um conselho<br />

presidencial civil<br />

imediato e maciço», recorda, em<br />

entrevista à Além-Mar, o académico<br />

americano Eric Reeves, que há quase<br />

duas décadas estuda e analisa o<br />

Sudão. «Mais de 200 pessoas foram<br />

mortas. Segundo a Amnistia Internacional,<br />

Bashir deu ordens para<br />

atirar a matar.»<br />

«Em 2016 [durante uma campanha<br />

de desobediência civil e greves<br />

contra aumentos de preços dos combustíveis,<br />

da luz e de medicamentos],<br />

Bashir recorreu aos mesmos métodos»,<br />

acrescenta Reeves. «Mas, em<br />

Dezembro de 2018 [quando o preço<br />

do pão triplicou], a fúria do povo<br />

superou o medo da repressão, dos<br />

espancamentos, das detenções, da<br />

tortura.»<br />

Apesar de os EUA terem levantado<br />

as sanções em 2017, «a economia<br />

sudanesa está à beira do colapso»,<br />

afirma o autor de A Long Day’s<br />

Dying: Critical Moments in the Darfur<br />

Genocide e Compromising with<br />

Evil: An archival history of greater<br />

Sudan, 2007-2012. «A inflação está<br />

altíssima, assim como o desemprego.<br />

Diminuíram as reservas de<br />

moeda estrangeira. Não há capacidade<br />

para importar quantidade suficiente<br />

de trigo para fazer farinha<br />

e pão, para importar óleo alimentar<br />

ou medicamentos. A vida tornou-se<br />

impossível para os menos afortunados.»<br />

Período de incerteza<br />

Reeves, senior fellow no François-<br />

-Xavier Bagnoud Center for Health<br />

and Human Rights da Universidade<br />

de Harvard, está convencido de que<br />

Bashir «foi o bode expiatório de um<br />

golpe palaciano». Não confia nos<br />

militares, que «consomem 70 % do<br />

orçamento do Estado», mas tem esperança<br />

que, num país onde 2/3 da<br />

população tem menos de 30 anos, a<br />

SPA sairá triunfante do «mais importante<br />

acontecimento político da história<br />

pós-colonial sudanesa».<br />

Outros analistas mostram-se menos<br />

optimistas, depois de verem as<br />

reacções de Abu Dhabi e Riade (que<br />

prometeram 3000 milhões de dólares)<br />

e do Cairo, céleres a declarar<br />

apoio a Burhan, que esperam venha<br />

a salvaguardar os seus interesses no<br />

Corno de África.<br />

Bashir era um negociador hábil.<br />

Afastou-se da Al-Qaeda para se<br />

aproxi<strong>mar</strong> da América. Tinha boas<br />

relações com o Egipto de Abdel Fattah<br />

El Sisi e com a némesis deste, a<br />

Irmandade Muçulmana, financiada<br />

pelo Catar. Cortou laços com o Irão<br />

para receber fundos dos Sauditas, rivais<br />

de Teerão, em troca do envio de<br />

centenas de soldados sudaneses para<br />

a guerra do Iémen.<br />

Sauditas e Emiradenses concluíram<br />

que, no Sudão e na Argélia, «a<br />

mudança tornou-se inevitável, mas<br />

querem que a transferência de poder<br />

seja supervisionada pelos militares»,<br />

conclui Mustafa Alani, do Gulf<br />

Research Center, citado pelo diário<br />

libanês L’Orient-Le Jour. Burhan, tal<br />

como Haftar na Líbia (ver caixa), é<br />

visto como um novo Sisi – o sucessor<br />

de Mubarak que também recebeu<br />

milhões de emiradenses e sauditas<br />

para abortar as aspirações revolucionárias<br />

dos Egípcios. am<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


primavera<br />

primavera<br />

árabe<br />

árabe<br />

primavera árabe<br />

argélia e sudão<br />

arábia infeliz<br />

O Egipto trocou um ditador, Hosni Mubarak, por outro, Abdel Fattah<br />

El Sisi. No Bahrain, a família Al Khalifa continua<br />

a reinar, com protecção saudita. No Iémen, Abdullah Saleh foi<br />

morto e o país morre numa guerra invencível. Na Síria,<br />

o tirano Bashar al-Assad recuperou o controlo graças<br />

a Russos e Iranianos. Que “primavera” foi esta?<br />

Texto: Margarida Santos Lopes, jornalista<br />

De origem europeia, o termo<br />

“Primavera Árabe” evoca a<br />

“Primavera dos Povos” de<br />

1848, a vaga de revoluções<br />

que derrubou regimes de França à<br />

Suíça, de Itália à <strong>Alem</strong>anha; a “Primavera<br />

de Praga” de 1968, que foi a<br />

luta contra o domínio de Moscovo<br />

sobre a Checoslováquia; ou a “Primavera<br />

da Europa de Leste” de 1989,<br />

que fez cair um Estado (a URSS), um<br />

império (o Pacto de Varsóvia) e uma<br />

ideologia global (o comunismo soviético).<br />

Muitos viram um paralelo entre<br />

estas sublevações e as revoltas populares<br />

de 2011 que levaram à queda de<br />

Zine El Abidine Ben Ali, na Tunísia,<br />

de Hosni Mubarak, no Egipto, de<br />

Muam<strong>mar</strong> Kadhafi, na Líbia, e de Ali<br />

Abdullah Saleh, no Iémen. Muitos<br />

esperavam que os islamistas fossem<br />

<strong>mar</strong>ginalizados e que, numa era de<br />

novas tecnologias, o poder ficasse<br />

nas mãos de uma nova geração de<br />

democratas e seculares. Não foi isso<br />

o que aconteceu.<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


Bahrain<br />

© hypnocreative/123RF<br />

Tunísia<br />

mundo árabe incendiou-se quando,<br />

em 17 de Dezembro de 2010,<br />

O<br />

o vendedor ambulante Tarek al-Tayeb<br />

Mohamed Bouazizi se imolou pelo fogo<br />

na cidade tunisina de Sidi Bouzid, incapaz<br />

de suportar humilhações diárias<br />

por parte de corruptas autoridades municipais.<br />

No dia 29, os protestos na Tunísia<br />

chegaram à vizinha Argélia. A 14 de Janeiro,<br />

quando Zine El Abidine Ben Ali,<br />

no poder desde 1987, foi obrigado a<br />

demitir-se e a fugir para a Arábia Saudita,<br />

começaram protestos na Jordânia.<br />

Seguiu-se Omã, no dia 17, o Egipto, no<br />

dia 25 e o Sudão no dia 30. No dia 12<br />

de Fevereiro, foi a vez do Iraque, no dia<br />

14, do Bahrain, no dia 19, do Kuwait, no<br />

dia 20 de Marrocos.<br />

Oito anos depois da queda do ditador,<br />

a corrupção e o desemprego continuam<br />

o mal maior, mas a “Revolução<br />

de Jasmim” ofereceu à Tunísia um certo<br />

grau de democracia. Realizaram-se duas<br />

eleições nacionais – em 2011 para a Assembleia<br />

Constituinte e em 2014 para o<br />

Parlamento e Presidente da República.<br />

A próxima será em Novembro.<br />

Em 2012, muitos grupos seculares for<strong>mar</strong>am<br />

um único partido, Nidaa Tounes,<br />

fundado por Beiji Caid Essebi, hoje com<br />

92 anos. Em 2014, o Nidaa Tounes foi o<br />

partido mais votado; dois meses depois,<br />

Essebi tornou-se o primeiro presidente<br />

democraticamente eleito, para um cargo<br />

em grande medida protocolar. Sem<br />

uma maioria clara, os secularistas e os<br />

“democratas muçulmanos” do Ennahda<br />

(eles recusam a etiqueta “islamistas”,<br />

porque, dizem, não encaixam na categoria<br />

do Daesh) for<strong>mar</strong>am uma coligação<br />

que, devido a profundas divergências,<br />

em pouco tempo se transformou<br />

num governo minoritário, chefiado pelo<br />

primeiro-ministro, Youssef Chahed, um<br />

dissidente do Nidaa Tounes, que formou<br />

o seu Tahia Tounes.<br />

A Freedom House reconhece que os<br />

Tunisinos beneficiam agora de mais<br />

liberdades cívicas e direitos políticos.<br />

Numa escala em que 1 é o país mais<br />

livre e 7 o menos, a Tunísia saltou do<br />

lugar 6 para 2,5 em 2010. É o único país<br />

árabe que merece a classificação de “livre”.<br />

A democracia não trouxe prosperidade<br />

e os protestos, contra a austeridade<br />

ou a falta de trabalho, são frequentes<br />

e ruidosos. O desespero e a frustração<br />

continuam a crescer. Nas últimas eleições<br />

municipais, em 2018, apenas um<br />

terço do eleitorado foi às urnas – uma<br />

descida de 60% em relação a 2014.<br />

E os candidatos independentes ganharam<br />

mais votos do que qualquer partido,<br />

um sinal de alarme.<br />

© Lusa/Mazen Mahdi<br />

Há muito que a maioria xiita do Reino<br />

do Bahrain, pobre e discriminada<br />

pela minoria sunita no trono que a considera<br />

“uma quinta-coluna do Irão”, reclamava<br />

mais direitos. Mas só em 2011<br />

é que as suas reivindicações ganharam<br />

dimensão nacional.<br />

Em Fevereiro, os manifestantes começaram<br />

por pedir um Parlamento eleito e<br />

uma nova Constituição. Quando alguns<br />

deles foram mortos, dezenas de milhares<br />

concentraram-se na (entretanto demolida)<br />

Rotunda da Pérola, em Manamá,<br />

a capital, para exigir o afastamento<br />

da família real.<br />

Em Março, o rei Hamad Al Khalifa<br />

pediu ajuda à Arábia Saudita e aos<br />

Emirados Árabes Unidos, que enviaram<br />

cerca de 1500 militares para salvar uma<br />

dinastia que existe há 200 anos (desde<br />

que a tribo Utub migrou do Najd para o<br />

Kuwait no início do século xviii). Foi uma<br />

intervenção apoiada pelos EUA, que<br />

têm neste país a sua Quinta Esquadra.<br />

A sublevação foi duramente reprimida:<br />

milhares de pessoas foram detidas e<br />

torturadas. Pelo menos 50 terão sido<br />

mortas.<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


primavera<br />

primavera<br />

árabe<br />

árabe<br />

primavera árabe<br />

argélia e sudão<br />

Egipto<br />

© mhanno/123RF<br />

Hosni Mubarak, tal como Ben Ali, não<br />

mais voltou ao poder que ocupou<br />

durante três décadas, depois da sublevação<br />

que obrigou o Exército a afastá-lo<br />

em 10 de Fevereiro de 2011. Mas o que<br />

hoje vigora no Egipto não é a democracia<br />

pela qual clamavam milhares de<br />

manifestantes na Praça Tahrir, no Cairo,<br />

mas o “regime contra-revolucionário”<br />

de Abdel Fatah El Sisi, que acaba de<br />

obter licença do Parlamento para se<br />

manter no poder até 2030.<br />

Depois de Mubarak, os Egípcios tiveram<br />

um presidente democraticamente<br />

eleito (em 2012, com 52% dos votos),<br />

Mohammed Morsi, dirigente da Irmandade<br />

Muçulmana. Em Julho de 2013, depois<br />

de um mês de protestos nas ruas contra<br />

a má governação de Morsi, este foi destituído<br />

e preso pelo Exército, comandado<br />

por Sisi.<br />

Em Agosto, centenas de apoiantes do<br />

presidente deposto concentrados em<br />

dois acampamentos no Cairo foram mortos<br />

a tiro por forças de segurança no que<br />

organizações de direitos humanos classificam<br />

como “a pior chacina da história<br />

moderna do Egipto”. Desde que assumiu<br />

o lugar de Morsi que tem sido este o método<br />

de Sisi. Não tolera a mínima crítica.<br />

São proibidas manifestações. Centenas<br />

de websites foram bloqueados. Quase<br />

todos os media independentes foram<br />

silenciados. Jornalistas, bloggers e académicos<br />

têm sido detidos.<br />

A ONU acusa Sisi de usar leis antiterroristas<br />

para deter activistas que lutam pelos<br />

direitos das mulheres ou fazem campanha<br />

contra a tortura e as execuções<br />

extrajudiciais. Haverá no país dezenas de<br />

milhares de prisioneiros políticos.<br />

O regime justifica estas medidas com<br />

“a necessidade de restaurar a estabilidade<br />

e de combater a insurreição” islamista<br />

ligada ao Daesh na península do Sinai.<br />

© 123RF/AnasALhjj PHOTOGRAPHY<br />

Iémen<br />

Ao contrário do que aconteceu noutros<br />

países árabes, no Iémen “foram<br />

divisões e rivalidades entre elites políticas<br />

da poderosa confederação tribal<br />

Hashid que moldaram a trajectória da<br />

revolta”, dizem os autores de “Revolution<br />

Suspended”, um dos capítulos do<br />

livro The New Middle East, coordenado<br />

por Fawaz A. Gerges.<br />

Em 2011, os rivais do presidente, Ali<br />

Abdullah Saleh, “juntaram-se ao movimento<br />

de protesto popular e assumiram<br />

o seu controlo”. Contestado desde<br />

Janeiro, Saleh aceitou, em Novembro,<br />

assinar um acordo de transição, negociado<br />

pelo Conselho de Cooperação<br />

do Golfo (CCG), que o obrigou a ceder<br />

três décadas de poder ao seu adjunto,<br />

Abd-Rabbu Mansur Hadi, em troca de<br />

imunidade.<br />

Isto permitiu que, “em alguns aspectos,<br />

o velho regime se mantivesse”.<br />

Mansour Hadi deveria ser chefe de Estado<br />

interino até à realização de eleições,<br />

mas teve de enfrentar um crescendo de<br />

ataques da Al-Qaeda, um movimento separatista<br />

no Sul, corrupção, desemprego<br />

e escassez alimentar num país que<br />

já era o mais pobre do Médio Oriente.<br />

Aproveitando-se da fraqueza do novo<br />

presidente, o movimento Houthi, que<br />

defende a minoria xiita zaidita do Iémen<br />

e já várias vezes se rebelara contra<br />

Saleh, conquistou a província de Saada,<br />

no Norte.<br />

Muitos iemenitas, incluindo sunitas e<br />

responsáveis militares leais a Saleh, desiludidos<br />

com a transição que os <strong>mar</strong>ginalizava,<br />

apoiaram os Houthis quando<br />

eles atacaram Sanaa, em 2014, e avançaram<br />

sobre Áden, em 2015, obrigando<br />

Hadi a fugir do país.<br />

Alarmados com a ascensão dos Houthis,<br />

uma milícia xiita com ligações ao<br />

Irão e ao Hezbollah libanês, a Arábia<br />

Saudita e outros oito Estados árabes<br />

– com apoio logístico de Washington,<br />

Londres e Paris – lançaram uma campanha<br />

de bombardeamentos aéreos para<br />

que Hadi retomasse o poder. Mas ele<br />

continua exilado e o seu governo reinstalado<br />

em Áden é incapaz de fornecer<br />

os serviços mais básicos à população.<br />

Os Houthis continuam em Sanaa (onde<br />

assassinaram Ali Abdullah Saleh em<br />

2017) e mantêm o cerco à cidade de<br />

Taiz, de onde lançam mísseis contra território<br />

saudita.<br />

Uma guerra que deveria “durar algumas<br />

semanas” prolonga-se, invencível,<br />

desde há quatro anos na antiga Arabia<br />

Felix, cobiçada pela sua localização estratégica.<br />

Situa-se num estreito que liga<br />

o <strong>mar</strong> Vermelho ao golfo de Áden, por<br />

onde passa a maior parte dos fornecimentos<br />

mundiais de petróleo.<br />

As estimativas da ONU apontam para<br />

mais de 7000 civis mortos e mais de<br />

11 mil feridos desde 2015 – 65% causados<br />

pelos ataques dos Sauditas e aliados.<br />

Os números recolhidos pelo grupo<br />

internacional Armed Conflict Location &<br />

Event Data Project, com sede nos Estados<br />

Unidos, são mais elevados: pelo<br />

menos 67 650 civis e combatentes mortos<br />

desde 2016.<br />

Outros milhares de civis morreram de<br />

má nutrição e doenças. Cerca de 80%<br />

da população – 24 milhões – precisa de<br />

ajuda humanitária. Mais de 3,3 milhões<br />

são deslocados internos.<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


Síria<br />

Em 31 de Janeiro de 2011, numa entrevista<br />

ao Wall Street Journal, o presidente<br />

Bashar al-Assad dizia-se convencido<br />

de que a onda de protestos na<br />

Tunísia não chegaria ao seu país. “Enfrentamos<br />

circunstâncias mais difíceis<br />

do que a maioria dos Estados árabes,<br />

mas a Síria é estável.”<br />

Excesso de confiança. No dia 6 de<br />

Março, um grupo de rapazes foi preso<br />

em Deraa, por grafitar os muros da cidade<br />

com os slogans revolucionários<br />

gritados na Praça Tahrir no Cairo. Seria<br />

o “momento Mohamed Bouazizi sírio”,<br />

como anota Christopher Phillips no seu<br />

livro The Battle for Syria.<br />

No final do mês, milhares de sírios<br />

enchiam as ruas de várias cidades, primeiro<br />

exigindo reformas e, depois, a<br />

queda do regime, quando este optou<br />

por uma brutal repressão e não pelo<br />

diálogo.<br />

“A revolução síria não era liderada<br />

por um partido de vanguarda nem estava<br />

sujeita a um controlo centralizado”,<br />

lê-se em Burning Country, uma obra<br />

fundamental de Robin Yassin-Kassab e<br />

Leila al-Shami. “Não se cindiu, porque<br />

nunca foi monolítica. Começou nas ruas<br />

entre pessoas de diferentes origens.”<br />

Nas primeiras semanas desta revolução,<br />

foram criados em bairros, aldeias e<br />

cidades comités de coordenação locais<br />

(CCL) ou tanseeqiyat, que organizavam<br />

actos de desobediência civil, considerando<br />

que a resistência armada ou uma<br />

intervenção militar estrangeira “seria<br />

inaceitável política, nacional e etnicamente.”<br />

O objectivo dos CCL não era apenas<br />

a queda de um sistema injusto, mas<br />

a liberdade de todos os sírios. Se Assad<br />

– que em 2002, quando sucedeu<br />

ao pai, alimentara a esperança vã de<br />

uma “Primavera de Damasco” – fosse<br />

derrubado pela força, alegavam os comités,<br />

“seria quase impossível estabelecer<br />

as bases legítimas” de um país<br />

democrático. Não foi esta a posição<br />

que prevaleceu.<br />

Seguiu-se uma guerra civil, um conflito<br />

sectário que se tornou o maior desastre<br />

humano do século xxi. Exacerbado<br />

pela minoria alauita no poder, criou as<br />

condições para a emergência do terror<br />

sunita salafita e abriu a porta a seis protagonistas<br />

externos, todos defendendo<br />

© Lusa/SANA<br />

diferentes agendas (Rússia, EUA, Irão,<br />

Arábia Saudita, Turquia, Qatar).<br />

Quase meio milhão de sírios foram<br />

mortos e quase dois milhões feridos.<br />

Mais de 5,6 milhões são refugiados e<br />

outros 6,2 milhões são deslocados internos<br />

– metade dos quais são crianças.<br />

No final de 2013, segundo a ONU, o desenvolvimento<br />

humano na Síria regredira<br />

quatro décadas. Dois anos depois,<br />

metade dos hospitais públicos estavam<br />

encerrados, menos de metade das<br />

crianças frequentava a escola e mais<br />

de 80% dos sírios viviam na pobreza.<br />

A esperança média de vida baixou<br />

de 70 para 55 em quatro anos. Quase<br />

12 milhões de sírios precisam de assistência,<br />

ou seja 65% dos que permanecem<br />

no país.<br />

Graças a Moscovo e a Teerão, Assad<br />

recuperou o domínio de 60% do país.<br />

Países que antes exigiam a sua demissão<br />

como condição prévia para a paz,<br />

reconstrução e reconciliação mostram-<br />

-se agora receptivos a reabilitá-lo. Mas<br />

os Sírios, animados pelas sublevações<br />

na Argélia e no Sudão, continuam a<br />

acreditar que Bashar terá o mesmo destino<br />

de Bouteflika e Bashir. Em Abril,<br />

manifestantes voltaram às ruas, sobretudo<br />

em Deraa, berço da revolução, e<br />

em Ghouta Oriental.<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


me áfrica<br />

autocratas em queda<br />

Em África e no Médio Oriente, 2/3 os dos líderes nacionais que perderam o<br />

poder, entre 1960 e 1980, foram derrubados ou morreram de causas naturais,<br />

mas desde então a maioria tem saído de cena porque perde eleições ou não<br />

se recandidata. Esta é a conclusão de um estudo realizado por investigadores<br />

da Universidade de Rochester (Nova Iorque), citados pela revista britânica<br />

The Economist. Há agora maior esperança de transições democráticas.<br />

Texto: Margarida Santos Lopes, jornalista<br />

os que já partiram...<br />

TUNÍSIA<br />

Zine El<br />

Abidine<br />

Ben Ali<br />

EGIPTO<br />

Hosni<br />

Mubarak<br />

SENEGAL<br />

Abdoulaye<br />

Wade<br />

Presidente durante 24 anos. Ascendeu<br />

ao poder, em Novembro de 1987, com<br />

um golpe palaciano que afastou o líder<br />

da independência Habib Bourguiba. Foi<br />

derrubado em Janeiro de 2011 na primeira<br />

revolta das “primaveras árabes”.<br />

Presidente durante três décadas. Em<br />

1981, sucedeu a Anwar El Sadat. Em<br />

2011, o Exército deixou-o cair, pressionado<br />

por uma sublevação popular inspirada<br />

na revolta tunisina.<br />

Presidente de 2000 até 2012, ano em<br />

que foi impedido de se candidatar a um<br />

terceiro mandato. Aos 91 anos, ainda<br />

concorreu às eleições legislativas de<br />

2017 e ganhou um lugar (que não ocupou)<br />

no Parlamento.<br />

BURKINA<br />

FASO<br />

Blaise<br />

Compaoré<br />

SUDÃO<br />

O<strong>mar</strong><br />

al-Bashir<br />

ANGOLA<br />

José<br />

Eduardo<br />

dos Santos<br />

Presidente do antigo Alto Volta durante<br />

vite e sete anos, chefiou os golpistas<br />

que assassinaram o herói nacionalista<br />

Thomas Sankara em 1987. Clamou vitória<br />

nas eleições de 1991, 1998, 2005 e<br />

2010, mas quando tentou rever a Constituição<br />

para, em 2014, obter novo mandato,<br />

o povo rebelou-se obrigando-o a<br />

demitir-se.<br />

Presidente durante trinta anos, de 1989<br />

a 2019, acusado de genocídio, crimes<br />

de guerra e contra a Humanidade, foi<br />

afastado num golpe militar depois de<br />

gigantescas manifestações populares.<br />

Presidente durante trinta e oito anos,<br />

de 1979 até 2017 – a sua longevidade<br />

no poder só era ultrapassada por Teodoro<br />

Obiang, na Guiné Equatorial. Do<br />

seu legado, fica o fim da guerra civil,<br />

em 2002, mas também um país empobrecido<br />

apesar dos imensos recursos,<br />

que apenas beneficiaram os mais próximos<br />

do poder – sobretudo a família<br />

de “Zédu”.<br />

ZIMBABUÉ<br />

Robert<br />

Mugabe<br />

GÂMBIA<br />

Yahya<br />

Jammeh<br />

Presidente de 1987 a 2017, foi forçado<br />

pelo Exército e pelo seu partido, ZANU-<br />

-PF, a pôr fim a quarenta anos de poder,<br />

quando preparava a mulher, Grace, para<br />

ser a sua herdeira. O sucessor, Emmerson<br />

Mnangagwa, prometeu uma “era<br />

de democracia”, mas em Janeiro deste<br />

ano o país viveu os piores abusos de<br />

direitos humanos desde há uma década.<br />

Soldados foram acusados de raptos,<br />

violações, assassínios, depois de protestos<br />

organizados por sindicatos contra<br />

o aumento do preço dos combustíveis.<br />

O seu regime assemelha-se cada vez<br />

mais ao do antecessor.<br />

Presidente da Gâmbia durante vinte e<br />

três anos, de 1994 até 2017. Perdeu as<br />

eleições em 2016, mas só deixou o poder<br />

depois de forçado pela União Africana<br />

e pela ONU, que se recusaram a<br />

reconhecê-lo.<br />

RD CONGO<br />

Joseph<br />

Kabila<br />

ARGÉLIA<br />

Abdelaziz<br />

Bouteflika<br />

ÁFRICA<br />

DO SUL<br />

Jacob<br />

Zuma<br />

Presidente da RDC (ex-Zaire) de 2001,<br />

quando sucedeu ao defunto pai, Laurent<br />

Désiré, até 2019. Terá manipulado<br />

as últimas eleições para que o sucessor<br />

fosse Félix Tshisekedi, o mais fraco líder<br />

da oposição. Continua a viver no palácio<br />

presidencial em Kinshasa, a capital,<br />

e mantém-se influente como senador<br />

vitalício.<br />

Presidente de Argélia de 1999 até 2019,<br />

há muito que estava fisicamente incapacitado<br />

de governar. Quando tentou<br />

candidatar-se a um quinto mandato, o<br />

povo e o Exército – que tudo controla –<br />

interromperam duas décadas de poder.<br />

Presidente de 2009 até 2018, ano em<br />

que um crescendo de pressões, suspeitas<br />

de corrupção e uma moção de<br />

censura no Parlamento o forçaram a<br />

demitir-se.<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


...os que (ainda) cá estão<br />

CAMARÕES<br />

Paul Biya<br />

GUINÉ<br />

EQUATORIAL<br />

Teodoro Obiang<br />

JIBUTI<br />

Ismaïl Guelleh<br />

CHADE<br />

Idriss Déby<br />

COMORES<br />

Azali Assoumani<br />

RUANDA<br />

Paul Kagamé<br />

UGANDA<br />

Yoweri Museveni<br />

Presidente desde 1982, este cristão francófono<br />

tem afastado todos os adversários desde que<br />

sucedeu a Ahmadou Ahidjo, um muçulmano que<br />

foi o primeiro chefe de Estado. Clama ter vencido<br />

as eleições de 1992, 1997, 2004, 2011 e 2018.<br />

Considerado um dos mais brutais ditadores do<br />

mundo, é suspeito de ter ordenado um genocídio<br />

(violações, assassínios, aldeias queimadas)<br />

na região separatista anglófona do sul dos Ca<strong>mar</strong>ões.<br />

Presidente desde 1979, ano em que, num golpe<br />

militar, derrubou e executou o tio, o primeiro<br />

chefe de Estado, Francisco Macías Nguema. Um<br />

ditador que exige ser venerado como um deus<br />

e governa por decreto um país rico em petróleo<br />

e gás, membro da Comunidade dos Países de<br />

Língua Portuguesa (CPLP), Obiang é acusado de<br />

corrupção e abuso de poder, incluindo raptos,<br />

prisões arbitrárias, tortura e assassínios extrajudiciais.<br />

Presidente desde 1999, era chefe dos serviços<br />

secretos quando foi escolhido para suceder ao<br />

tio Hassan Gouled Aptidon, o primeiro chefe de<br />

Estado pós-independência em 1977. Guelleh foi<br />

reeleito em 2005, em 2011 (depois de mudar a<br />

Constituição para conseguir um terceiro mandato<br />

e apesar de gigantescos protestos populares)<br />

e em 2016.<br />

Presidente desde 1990, ano em que derrubou<br />

Hissène Habré (condenado a prisão perpétua,<br />

no Senegal, em 2016, por violações de direitos<br />

humanos, como a ordem para matar 40 mil pessoas).<br />

Déby tem sobrevivido a várias rebeliões.<br />

Reivindica vitórias eleitorais em 1996, 2001,<br />

2006, 2011 e 2016, após ter mudado as leis a<br />

seu favor.<br />

Presidente da República Federal Islâmica das<br />

Comores – um arquipélago no extremo norte do<br />

canal de Moçambique em que a chefia do Estado<br />

é assumida rotativamente pelos líderes das três<br />

principais ilhas –, chegou ao poder pela primeira<br />

vez em 1999 num golpe de Estado. Ganhou eleições<br />

em 2002, 2016 e 2019 – estas últimas consideradas<br />

fraudulentas por vários observadores<br />

africanos. O último escrutínio gerou uma grave<br />

crise política, com tiroteio em Moroni, a capital,<br />

em Março último, na sequência da ordem de prisão<br />

do chefe da oposição, Soilihi Mohamed, que<br />

recusou reconhecer a reeleição do presidente.<br />

Presidente desde 2000. Comandou a força rebelde<br />

que pôs fim ao genocídio ruandês em<br />

1994. Reeleito em 2017, com 98,79% dos votos,<br />

é um ditador amigo de governos ocidentais.<br />

Internamente, é visto como um dos mais repressivos<br />

líderes africanos – muitos dos seus<br />

críticos têm sido mortos ou desaparecem misteriosamente.<br />

Presidente desde 1986, é um antigo líder rebelde<br />

que ajudou a derrubar dois tiranos, Idi<br />

Amin (1971-79) e Milton Obote (1980-85), mas<br />

também se envolveu na guerra civil na RDC e<br />

em conflitos na região dos Grandes Lagos. De<br />

74 anos, já vai no quinto mandato, depois de<br />

mudar as leis que o obrigavam a retirar-se.<br />

CONGO<br />

Denis<br />

Sassou-Nguesso<br />

TOGO<br />

Faure Gnassingbé<br />

ERITREIA<br />

Isaias Afwerki<br />

MAURITÂNIA<br />

Mohamed Ould<br />

Abdel Aziz<br />

BURUNDI<br />

Pierre Nkurunziza<br />

GABÃO<br />

Ali Bongo<br />

eSWATINI<br />

Mswati III<br />

Presidente do Congo-Brazaville, primeiro num<br />

regime de partido único, de 1979 a 1992, e depois<br />

a partir de 1997, quando as suas forças<br />

rebeldes destituíram o primeiro chefe de Estado<br />

democraticamente eleito, Pascal Lissouba. Em<br />

2016, depois de mudar a Constituição, ganhou<br />

um terceiro mandato. A sua governação está,<br />

alegadamente, envolta em vários escândalos de<br />

corrupção.<br />

Presidente desde 2005, sucedeu ao pai, Gnassingbé<br />

Eyadéma, que governou do golpe de<br />

1967 até à morte. Faure conquistou um terceiro<br />

mandato nas eleições de Abril de 2015, que a<br />

União Europeia considerou fraudulentas. Uma<br />

coligação de partidos da oposição mobilizou<br />

protestos em massa. A repressão matou mais<br />

de mil manifestantes. Cerca de 40 mil pessoas<br />

fugiram para o Benim e o Gana.<br />

Primeiro presidente após a independência que<br />

pôs fim a trinta anos de guerra, em 1993. É líder<br />

do partido único (Frente Popular para a Justiça e<br />

Democracia) e de um regime acusado pela ONU<br />

de “sistemáticas violações dos direitos humanos<br />

que podem configurar crimes contra a Humanidade”.<br />

A Amnistia Internacional estima em mais<br />

de 10 mil o número de presos políticos no país.<br />

Presidente desde 2009, ajudou a derrubar dois<br />

chefes de Estado, Maaouya Ould Sid’Ahmed Abdallahi,<br />

em 2005, e Sidi Ould Cheikh Abdallahi,<br />

em 2008. Em 2012, este aliado do Ocidente contra<br />

a Al-Qaeda teve de ser hospitalizado depois<br />

do que uns dizem ter sido uma tentativa de<br />

assassínio. Ele alega que soldados o alvejaram<br />

num “acidente”. Em 2014, foi eleito para um segundo<br />

mandato de cinco anos. Em 2017, impôs<br />

um referendo para abolir o “inútil” Senado e,<br />

segundo a oposição, perpetuar o seu poder.<br />

Presidente desde 2005, está a cumprir um terceiro<br />

mandato que expira em 2020. A sua candidatura<br />

às eleições de 2015 gerou protestos<br />

que duraram dois meses. A repressão por parte<br />

das forças de segurança causou pelo menos<br />

cem mortos. Em 15 de Maio, fracassou um golpe<br />

quando ele estava no estrangeiro. Foi eleito em<br />

Julho, o que levou muitos opositores a fugir do<br />

país, juntando-se a um êxodo de mais de 400<br />

mil burundianos.<br />

Presidente desde 2009, sucedeu ao pai, O<strong>mar</strong><br />

Bongo, que governou durante quarenta e um<br />

anos, de 1967 até à morte. Ali renovou o mandato<br />

em Agosto de 2016, após eleições fraudulentas.<br />

Em Outubro de 2018, sofreu um AVC<br />

na Arábia Saudita. Em 7 de Janeiro deste ano,<br />

oficiais militares tentaram derrubá-lo, enquanto<br />

ele convalescia em Marrocos. O golpe falhou e<br />

o Governo em Libreville mantém-se em funções.<br />

Rei da antiga Suazilândia, foi coroado em 1986,<br />

quando tinha 18 anos – tem agora 50. Governa<br />

como monarca absoluto. Com 15 mulheres<br />

(o pai teve 70), 23 filhos e 210 irmãos, o seu<br />

reinado tem sido caracterizado por corrupção,<br />

luxo, excentricidade, o que deixa o país à beira<br />

do desastre económico. É também criticado por<br />

abusos de direitos humanos como raptos, prisões<br />

arbitrárias, tortura, expropriação de bens,<br />

restrições à liberdade de expressão e associação,<br />

ataques à comunidade LGBT, líderes sindicais<br />

e activistas contra o trabalho infantil.<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


apo brasil<br />

«pela terra<br />

e pelo respeito»<br />

O Conselho Indígena de Roraima (CIR) reúne nove etnias.<br />

No Brasil, é considerado uma das organizações indígenas<br />

mais activas. Como testemunha também a vitória obtida pelo<br />

reconhecimento e a defesa da terra indígena Raposa Serra do<br />

Sol. Encontrámo-nos com o coordenador-geral do CIR, Enock<br />

Batista Tenente, um taurepangue de 29 anos.<br />

Texto e fotos: Paolo Moiola, jornalista<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


Boa Vista. No mural, no centro<br />

do desenho com as plumas<br />

coloridas, encontra-se<br />

inscrita a sigla CIR. Significa<br />

«Conselho Indígena de Roraima»,<br />

a principal organização indígena de<br />

Roraima. Formalmente, existe desde<br />

1990, mas na realidade ela está activa<br />

desde os anos 70.<br />

O CIR tem como finalidade garantir<br />

os direitos e a autonomia dos povos<br />

indígenas de Roraima, um Estado<br />

que conta (pelo menos) com nove<br />

etnias: Macuxi, Vapixana, Ingaricó,<br />

Patamona, Sapará, Taurepangue,<br />

Uaiuai, Ianomâmi e Yekuana.<br />

Esta variedade de sujeitos faz com<br />

que a estrutura organizativa do CIR<br />

seja orientada para a máxima participação.<br />

Anualmente há uma grande<br />

assembleia geral que constitui o<br />

maior órgão deliberativo. A última<br />

– a 48.ª – decorreu no Lago do Caracaranã,<br />

na terra indígena Raposa<br />

Serra do Sol, de 11 a 14 de Março.<br />

q Placa que <strong>mar</strong>ca o início da terra<br />

indígena Raposa Serra do Sol e interdita<br />

o acesso a estranhos. Página anterior,<br />

Enock Batista Tenente, taurepangue, em<br />

frente à sede do CIR em Boa Vista<br />

Para falar da organização e da actual<br />

situação política, na sede do CIR,<br />

em Boa Vista, capital de Roraima,<br />

falámos com Enock Batista Tenente,<br />

que desde há dois anos desempenha<br />

o papel de coordenador-geral, ajudado<br />

pelo vice Edinho Batista de Sousa<br />

e por Maria Betânia Mota de Jesus,<br />

em representação do movimento das<br />

mulheres indígenas.<br />

Enock, de 29 anos, com três filhos<br />

pequenos, recebe-nos no seu escritório<br />

envergando o chapéu de plumas<br />

coloridas.<br />

Enock, quem teve a ideia do Conselho<br />

Indígena de Roraima?<br />

O CIR foi criado pelos nossos líderes<br />

com a participação importantíssima<br />

da Igreja Católica. Hoje ele coordena<br />

237 comunidades em onze regiões<br />

do Estado de Roraima.<br />

Que etnias estão representadas na<br />

actual coordenação geral do CIR?<br />

A junta é composta por dois macuxis,<br />

Edinho e Maria Betânia, e por<br />

mim, que sou taurepangue.<br />

Mas a organização engloba outros<br />

grupos indígenas?<br />

u<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


pe brasil<br />

Como? Percorrendo que caminho?<br />

Não atirando flechas, porque é preciso<br />

respeitar sempre a vida do próxip<br />

Uma delegação da Comissão Interamericana<br />

de Direitos Humanos (CIDH)<br />

esteve numa reunião na sede do CIR<br />

em 7 de Novembro de 2018; ao lado,<br />

Edinho Batista de Souza, indígena macuxi,<br />

vice-coordenador do CIR, dá o seu<br />

depoimento durante o encontro<br />

Com certeza. O CIR reagrupa nove<br />

diferentes etnias sob uma só bandeira<br />

e com três objectivos: terra, educação<br />

e saúde. É uma luta árdua uma<br />

vez que a actual conjuntura política<br />

não é favorável para os povos indígenas.<br />

Mesmo se, pela primeira vez,<br />

elegemos uma deputada federal, Joênia<br />

Wapichana.<br />

A terra permanece sempre a vossa<br />

prioridade?<br />

O nosso território é para nós o bem<br />

mais precioso. Sem território, não<br />

podemos ter nem saúde, nem educação.<br />

Numa palavra, não existimos.<br />

Por isso estamos sempre prontos a<br />

dar a vida pela terra.<br />

mo, seja ele um indígena ou um não<br />

indígena.<br />

Nós pedimos que sejam assegurados<br />

os direitos garantidos pela<br />

Constituição federal de 1988. Temos<br />

pessoas preparadas em leis para nos<br />

ajudar nisso.<br />

Nós não invadimos a terra de ninguém:<br />

pedimos somente respeito. Ser<br />

respeitados no direito a viver no nosso<br />

território. Ser respeitados como<br />

sociedade, como seres humanos e<br />

como indígenas. E aqui pretendo dizer<br />

Macuxis, Vapixanas, Ingaricós,<br />

Patamonas, Saparás, Taurepangues,<br />

Uaiuais, Ianomâmis e Yekuanas.<br />

É correcto dizer que a diversidade<br />

indígena é também uma diversidade<br />

entre indígenas?<br />

O CIR não tem apenas uma identidade.<br />

Por isso foi capaz de unir as<br />

identidades de nove povos diferentes.<br />

Porque não podemos esquecer<br />

que nós somos diferentes: um taurepangue<br />

é diferente de um macuxi,<br />

um macuxi é diferente de um vapixana,<br />

e assim por diante. E, no entanto,<br />

esta organização é capaz de unir-nos<br />

a todos num lugar, numa sala para<br />

debater sobre a nossa vida. O CIR é<br />

uma universidade e um tribunal: é<br />

tudo para nós.<br />

De fora, isto é, do mundo não indígena,<br />

vêm os garimpeiros e as grandes<br />

obras. Que pensa o CIR disso?<br />

Pensa que não queremos os grandes<br />

projectos que destroem a Natureza.<br />

Não queremos extracções mineiras<br />

nos nossos territórios. Se o grande<br />

Criador pôs o petróleo debaixo da<br />

terra, é para o deixarmos lá.<br />

Acusam-vos de não querer o progresso,<br />

a civilização, o futuro.<br />

Os governantes consideram-nos<br />

atrasados. Mas estes nunca se sentaram<br />

connosco para nos perguntar<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


joênia baptista de carvalho wapichana<br />

mulher, indígena, deputada<br />

Muitos anos depois de Mário Juruna Xavante, um outro indígena<br />

entra no Congresso brasileiro. E, pela primeira vez, é uma mulher.<br />

Nascida em 1973, a advogada Joênia Batista de Carvalho detém uma série de<br />

primados. Pertencente ao povo Vapixana, em 1997 é a primeira indígena<br />

do país a obter a licenciatura em Direito (primeiro na Universidade federal de<br />

Roraima e, anos depois, também na Universidade do Arizona, nos Estados<br />

Unidos). Em 2018 é a primeira a defender um caso perante o Supremo Tribunal<br />

Federal, o órgão máximo da justiça do Brasil. Em 2018, apresenta-se às<br />

eleições para o Congresso federal com a Rede Sustentabilidade, o partido fundado<br />

pela candidata presidencial e antiga ministra do Ambiente Marina Silva.<br />

Apesar do escasso êxito do seu partido, Joênia Wapichana obtém 8267 votos,<br />

um número suficiente para se tornar a primeira deputada indígena na História<br />

do Brasil. Anteriormente, a Brasília tinha chegado somente um indígena: Mário<br />

Juruna, do povo Xavante, no cargo de 1982 a 1986.<br />

Para a nova deputada, 2018 conclui-se em beleza: no dia 25 de Outubro é-lhe<br />

atribuído pelas Nações Unidas o prestigioso prémio para os direitos humanos<br />

United Nations Prize in the Field of Human Rights, pela sua actividade em<br />

defesa das comunidades indígenas.<br />

Joênia provém da Terra Raposa Serra do Sol, homologada pelo presidente Lula<br />

da Silva em 2005. Durante mais de dez anos o seu trabalho de responsável<br />

legal do Conselho Indígena de Roraima (CIR) teve que ver com a defesa da<br />

de<strong>mar</strong>cação e a saída daqueles territórios dos fazendeiros (arrozeiros, mais<br />

precisamente). Hoje encontra-se a defender esta conquista perante a vontade<br />

do novo presidente Bolsonaro e do novo Congresso que desejam pôr tudo<br />

novamente em causa. No passado 4 de Abril, em Brasília, Joênia Wapichana<br />

apresentou a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos<br />

Indígenas, formada por 248 congressistas (219 deputados e 29 senadores).<br />

Este grupo, que Joênia vai coordenar, é um pequeno sinal de rebelião contra<br />

a política anti-indígena do Governo de Bolsonaro. Se for bem-sucedido, o que<br />

é difícil de prever.<br />

Paolo Moiola<br />

o que queremos como sociedade,<br />

povos e indivíduos. Nós não pedimos<br />

coisas que venham de fora: não<br />

precisamos delas para sermos felizes.<br />

Queremos valorizar o que existe<br />

nas nossas comunidades: a nossa<br />

cozinha, a nossa medicina, as nossas<br />

canções, as nossas danças. Somente<br />

isto e nada mais.<br />

Fale-nos de Joênia.<br />

Na eleição da doutora Joênia reflectiu-se<br />

a nossa força e unidade. É um<br />

resultado obtido com muita luta,<br />

mas sobretudo sem comprar votos e<br />

sem corrupção. Ela é a nossa deputada.<br />

A sua eleição é uma coisa muito<br />

boa para nós.<br />

Como a quase totalidade dos líderes<br />

indígenas, também o Enock parece<br />

ter uma péssima opinião dos<br />

políticos brasileiros. Agora também<br />

a Joênia é uma representante<br />

política.<br />

Tratá-la-emos não como uma política,<br />

mas como uma mulher indígena.<br />

Ela não tem o perfil, a palavra ou os<br />

sorrisos de um político. Os políticos<br />

enganaram não somente a sociedade<br />

indígena, mas também a branca.<br />

Por isso pedimos a Joênia para se<br />

comportar como uma líder indígena<br />

e não como uma líder política. Ela<br />

nasceu no movimento indígena. Foi<br />

a primeira mulher a defender-nos no<br />

Supremo Tribunal Federal no julgamento<br />

sobre a Raposa Serra do Sol.<br />

Recebeu recentemente o mesmo prémio<br />

que foi atribuído a Martin Luther<br />

King [Enock refere-se ao United<br />

Nations Prize in the Field of Human<br />

Rigts, que lhe foi atribuído a 25 de<br />

Outubro de 2018, ndr]».<br />

© Carlo Zacquini<br />

Enock, com um presidente como<br />

Bolsonaro e um Congresso tão<br />

anti-indígena, Joênia não terá vida<br />

fácil.<br />

Joênia é filha do movimento indígena<br />

de Roraima. É precisamente por<br />

isso que a gente acredita no seu trabalho.<br />

Ela nunca estará só. Porque<br />

nós somos Joênia. am<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


ap mundo<br />

fúria à<br />

informação<br />

O crescente sentimento de ódio<br />

contra jornalistas e a hostilidade à<br />

imprensa de referência ameaçam<br />

as democracias. A informação livre,<br />

pluralista e independente é necessária<br />

ao desenvolvimento das sociedades.<br />

Texto: Carlos Reis, jornalista<br />

Na última década, observam-<br />

-se profundas mudanças<br />

na liberdade dos média.<br />

A independência dos meios<br />

de comunicação social é limitada<br />

por numerosas restrições ao direito<br />

de divulgar informações e ideias.<br />

Ainda que as fontes de informação<br />

se tenham multiplicado nos últimos<br />

anos, a concentração de propriedade<br />

dos meios de comunicação e serviços<br />

online levanta sérias preocupações.<br />

As tendências revelam que a independência<br />

dos meios de comunicação<br />

está a enfraquecer e que os<br />

padrões profissionais do jornalismo<br />

estão a ser corroídos, tanto pelas forças<br />

económicas como pela falta de<br />

reconhecimento da classe política.<br />

Ao intensificarem-se as críticas hostis<br />

aos média e à prática do jornalismo,<br />

é promovida a intolerância para<br />

com a liberdade de expressão e minada<br />

a credibilidade do jornalismo<br />

independente.<br />

A liberdade de informação é o<br />

alicerce de qualquer democracia.<br />

No entanto, cerca de metade da população<br />

mundial continua a não ter<br />

acesso a uma informação livre. «O<br />

ódio contra os jornalistas é uma das<br />

piores ameaças às democracias»,<br />

aponta o secretário-geral da organização<br />

de defesa da liberdade de<br />

imprensa Reporters sans Frontières.<br />

«Os líderes políticos que alimentam<br />

a hostilidade ao jornalismo carregam<br />

uma pesada responsabilidade,<br />

pois favorecem o surgimento de uma<br />

sociedade de propaganda. Contestar<br />

a legitimidade do jornalismo é jogar<br />

com o fogo político», alerta Christophe<br />

Deloire.<br />

As rápidas mudanças políticas,<br />

tecnológicas e económicas que estão<br />

a ocorrer criam novos desafios para a<br />

liberdade de informação. Os políticos<br />

nacional-populistas estão a tornar<br />

comum que governos autoritários<br />

monitorizem e solicitem a remoção<br />

de conteúdos online e coloquem sob<br />

pressão a autonomia das autoridades<br />

reguladoras independentes. Muitos<br />

governos justificam estas acções<br />

com a segurança nacional, contudo,<br />

frequentemente, o controlo não visa<br />

o discurso do ódio, extremismo,<br />

violência, racismo e misoginia, mas<br />

posições políticas e sociais legítimas.<br />

O objectivo é silenciar.<br />

u<br />

© Lusa/Lynn Bo Bo<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


p Kyaw Zaw Linn, editor-chefe da Eleven Media é<br />

levado para a prisão, em Mian<strong>mar</strong> (Outubro de 2018).<br />

Ele e outros dois jornalistas foram acusados de fazer<br />

“circular um rumor com o objectivo de alar<strong>mar</strong> o público”,<br />

como previsto no artigo 505b do Código Penal<br />

dos tempos coloniais, utilizado pela junta militar quando<br />

estava no poder para censurar qualquer crítica<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


áfrica<br />

Tempos de desinformação<br />

Nos jornais de referência, os cortes<br />

em profissionais afectaram a diversidade<br />

de conteúdos, particularmente<br />

na cobertura internacional. A circulação<br />

de jornais impressos foi reduzida<br />

a nível global na última década,<br />

afectando a capacidade de oferecer<br />

informações verificáveis ​e promover<br />

debates públicos efectivos e abertos.<br />

Em contrapartida, títulos com reputação<br />

estão a distinguir-se pelo seu<br />

valor como fontes confiáveis ​de informação<br />

e opinião.<br />

«A independência dos meios de<br />

comunicação sofre crescente pressão<br />

como resultado de interconexões<br />

complexas entre poder político e autoridades<br />

reguladoras, tentativas de<br />

influenciar ou deslegiti<strong>mar</strong> os média<br />

e jornalistas e a redução de orçamentos.<br />

Esta deterioração é reflectida na<br />

diminuição da confiança do público<br />

nos meios de comunicação», revela<br />

o relatório Freedom of Expression<br />

and Media Development 2017/2018<br />

promovido pela Organização das<br />

Nações Unidas para a Educação, a<br />

Ciência e a Cultura (Unesco).<br />

O direito do acesso público à informação<br />

ganhou maior reconhecimento<br />

devido à sua inclusão como meta<br />

nos Objectivos de Desenvolvimento<br />

p Homens leêm as capas dos jornais<br />

numa rua de Zanzibar, Tanzânia<br />

Sustentável 2015-2030 das Nações<br />

Unidas. «Media livres, independentes<br />

e pluralistas nunca foram tão importantes,<br />

para empoderar cada mulher<br />

e cada homem, fortalecer a boa<br />

governança e o Estado de direito»,<br />

observa a Unesco.<br />

Actualmente, quase metade da população<br />

mundial tem acesso à informação<br />

online, com o rápido aumento<br />

da conectividade com a Internet móvel<br />

na África, Ásia e América Latina.<br />

Da mesma forma, a televisão por satélite<br />

multiplicou o leque de canais<br />

de notícias disponíveis em vários<br />

idiomas.<br />

Todavia, uma das tendências mais<br />

negativas é o crescimento da dependência<br />

da população mundial<br />

de fontes de informação publicadas<br />

pelas redes sociais, dominadas pelas<br />

notícias falsas (fake news) e manipuladas.<br />

Algoritmos ordenam e segmentam<br />

as notícias e compartimentam<br />

os artigos de opinião de acordo<br />

com os grupos de pertença, o que<br />

vem criando um pluralismo polarizado<br />

que tem perturbado o debate<br />

público nos períodos eleitorais.<br />

© Lusa/Lynn Bo Bo<br />

Média e democracia<br />

prémio UNESCO World Press<br />

O Freedom Prize homenageia<br />

quem se notabiliza na defesa e<br />

promoção da liberdade de imprensa.<br />

Em 2019, são distinguidos os<br />

jornalistas birmaneses Kyaw Oo e<br />

Wa Lone (na foto, atrás e à frente,<br />

respectivamente), a cumprirem penas<br />

de sete anos de prisão, por infor<strong>mar</strong>em<br />

para a agência Reuters<br />

a violação de direitos humanos<br />

em Mian<strong>mar</strong>. O prémio é entregue<br />

em Maio, na Etiópia, como parte<br />

da celebração do Dia Mundial da<br />

Liberdade de Imprensa.<br />

© 123RF<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


© FAO<br />

© Lusa/Ernesto Guzman Jr<br />

Predadores da liberdade de imprensa<br />

Autocratas, “líderes fortes” e modelos político-sociais como os da Rússia e<br />

China sufocam os media independentes e bloqueiam a informação dentro<br />

das suas fronteiras. Os conflitos ajudam a transfor<strong>mar</strong> os países em buracos<br />

negros de informação livre.<br />

O índice Classement Mondial de la Liberté de la Presse 2018, elaborado<br />

pelos Reporters sans Frontières (RSF), revela que a Europa é, simultaneamente,<br />

a região onde a liberdade de imprensa é menos ameaçada e onde a<br />

deterioração é maior. A lenta erosão do modelo europeu regista-se em Malta,<br />

República Checa, Sérvia e Eslováquia.<br />

Na América Central, a violência e a impunidade continuam a reinar e a impor<br />

medo e autocensura. Com mais de uma dezena de jornalistas mortos por ano,<br />

o México tornou-se o segundo país mais mortal do mundo para jornalistas.<br />

A Venezuela do presidente Nicolás Maduro regista a maior deterioração do<br />

continente.<br />

Em África, o índice dos RSF aponta a frequência de interrupções de Internet,<br />

especialmente nos Ca<strong>mar</strong>ões e RD Congo, além de agressões e detenções frequentes<br />

e novas formas de censura. A Mauritânia aprovou uma lei que pune<br />

a blasfémia e a apostasia com a aplicação da pena de morte.<br />

Na região da Ásia, o Camboja fecha uma dezena de meios de comunicação<br />

independentes. Os Estados pós-soviéticos e a Turquia permanecem na vanguarda<br />

da degradação global da liberdade de imprensa.<br />

É na zona do Médio Oriente e Norte de África que a degradação das condições<br />

em que trabalham os jornalistas é a mais forte, consequência dos conflitos<br />

armados na Síria e no Iémen e das acusações terroristas contra jornalistas<br />

no Egipto, Arábia Saudita e Bahrein.<br />

«Como podemos lutar contra a chacina de civis e o flagelo das crianças-<br />

-soldados, ou defender os direitos das mulheres e o meio ambiente se os<br />

jornalistas não forem livres de noticiar os factos, denunciar os abusos e questionar<br />

a consciência colectiva?», interroga-se a organização RSF.<br />

As sociedades precisam de jornalismo bem fundamentado e de educação<br />

em média de qualidade, num momento em que o jornalismo livre e independente<br />

nunca foi tão importante.<br />

p Jornalistas protestam pelo assassínio de três colegas<br />

equatorianos em Cali, Colômbia (Abril de 2018)<br />

Crimes impunes<br />

Nos últimos quinze anos, foram<br />

mortos 1035 jornalistas profissionais<br />

no mundo. Em média, são mortos<br />

dois jornalistas por semana no mundo,<br />

quase sempre repórteres locais.<br />

A impunidade por crimes cometidos<br />

contra jornalistas continua sendo a<br />

norma, já que apenas um em cada<br />

dez casos é levado à justiça. Também<br />

se tem registado um aumento significativo<br />

de outras formas de violência<br />

contra jornalistas, como o sequestro,<br />

desaparecimento forçado, detenção<br />

arbitrária e tortura. As mulheres<br />

jornalistas em particular sofrem um<br />

aumento de insultos, assédio e intimidação.<br />

O relatório World Press Freedom<br />

Index 2018, promovido pelos Reporters<br />

sans Frontières (RSF), avalia o<br />

estado do jornalismo em 180 países<br />

e revela um clima crescente de ódio<br />

contra jornalistas.<br />

A hostilidade dos líderes políticos<br />

para com os média não é mais uma<br />

prerrogativa de países autoritários<br />

como a Turquia ou o Egipto, que<br />

mergulharam na fobia aos media,<br />

generalizando as acusações de «terrorismo»<br />

contra jornalistas e aprisionando<br />

arbitrariamente todos aqueles<br />

que não prestam lealdade política.<br />

Nos Estados Unidos da América,<br />

os media são contestados pelo presidente<br />

Donald Trump, que acusa<br />

os jornalistas de serem «inimigos do<br />

povo». Nas Filipinas, o presidente<br />

Rodrigo Duterte insulta e ameaça os<br />

media e avisa que ser jornalista «não<br />

protege de assassínios». Na Índia, o<br />

discurso de ódio contra jornalistas<br />

é retransmitido e amplificado nas<br />

redes sociais por desestabilizadores<br />

de discussões (trolls) pagos pelo<br />

governo de Narendra Modi. Na República<br />

Checa, o presidente Milos<br />

Zeman participou numa conferência<br />

de imprensa com uma falsa arma<br />

automática com a inscrição “para<br />

jornalistas”. Cada vez mais os chefes<br />

de Estado democraticamente eleitos<br />

vêem a imprensa como um adversário<br />

a que têm aversão. am<br />

^<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


ap áfrica<br />

a nova colonização<br />

chega de comboio<br />

A China ressuscita o projecto europeu de traçar uma via-<br />

-férrea que ligue o Cairo à Cidade do Cabo. Um projecto<br />

titânico que entre 2000 e 2014 recebeu 10 mil milhões de<br />

dólares de financiamento por parte da potência asiática.<br />

Texto: Carolina Valdehíta<br />

p Parque Nacional do Quénia. Viaduto<br />

feroviário que une Nairobi a Mombaça<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


A<br />

revolução industrial mudou<br />

a forma de transportar<br />

mercadorias e pessoas na<br />

Europa, tornou evidente<br />

que o progresso estava estreitamente<br />

ligado à ferrovia. Após o êxito no Velho<br />

Continente, os colonos europeus<br />

rapidamente chegaram à conclusão<br />

de que África precisava de se dotar<br />

de vias-férreas para transportar com<br />

eficácia e rapidez as cobiçadas matérias-primas<br />

e a produção das plantações.<br />

Mas não apenas isso, o comboio<br />

ajudaria também a comunicar<br />

os seus domínios, facilitar a gestão<br />

política e manter as possessões. Neste<br />

sentido, o projecto mais ambicioso<br />

era o de completar uma infra-estrutura<br />

que fizesse a comunicação dos<br />

domínios-chave britânicos: Cidade<br />

do Cabo (África do Sul) e a capital<br />

do Egipto, Cairo.<br />

A ideia foi impulsionada por Cecil<br />

Rhodes, o político britânico cujo ego<br />

e obsessão pelo continente o levou<br />

a usar o seu apelido para renomear<br />

o actual Zimbabué como Rodésia.<br />

Contudo, a partilha africana entre<br />

as potências europeias, os conflitos<br />

regionais, a II Guerra Mundial e as<br />

diferenças topográficas entre países<br />

impediram que se concluísse o projecto<br />

de completar os mais de 10 mil<br />

quilómetros que separam ambas as<br />

cidades. Não obstante, construíram-<br />

-se quilómetros de linhas férreas em<br />

alguns Estados que continuam em<br />

funcionamento nos nossos dias. No<br />

Quénia, Uganda, Tanzânia, Zâmbia,<br />

Botsuana, Zimbabué, África do Sul e<br />

Moçambique existem linhas férreas<br />

que transportam mercadorias e pessoas,<br />

se bem que em escassas condições<br />

de comodidade e uma grande<br />

demora no transporte.<br />

O que veio depois do período colonial<br />

é por demais conhecido. Décadas<br />

de recessão nos projectos de infra-estruturas<br />

e corrupção em quase<br />

todas as nações, retardando o desenvolvimento<br />

nas comunicações internas.<br />

Algumas vias-férreas da época<br />

colonial desapareceram, e as que<br />

sobreviveram mal sofreram moder-<br />

nizações. Todavia, tudo mudou no<br />

início do século xxi com a chegada<br />

do novo sócio neocolonizador: China.<br />

O gigante asiático revolucionou<br />

em duas décadas o desenvolvimento<br />

das infra-estruturas em África, com<br />

milhares de quilómetros de estradas<br />

e melhoramentos no comboio. Este<br />

último projecto toma o testemunho<br />

daquele sonho colonialista de uma<br />

rede ferroviária que ligue o continente<br />

com uma maior mobilidade e<br />

rapidez no transporte de mercadorias.<br />

Um investimento milionário<br />

O que de início foram intercâmbios<br />

comerciais em determinados sectores<br />

acabou por se transfor<strong>mar</strong> numa<br />

relação consolidada entre a China e<br />

a quase totalidade dos Estados africanos,<br />

até ao ponto de que a maioria<br />

pondera aceitar o yuan chinês como<br />

moeda de câmbio em vez do dólar<br />

norte-americano. Esta nova forma<br />

de colonização é tudo menos secreta,<br />

e move montantes milionários cujas<br />

cifras é quase impossível determinar<br />

com exactidão. Um relatório da<br />

China, o gigante<br />

asiático, revolucionou<br />

em duas décadas o<br />

desenvolvimento das<br />

infra-estruturas em<br />

África, com milhares de<br />

quilómetros de estradas<br />

e melhoramentos no<br />

comboio. Este último<br />

projecto toma o<br />

testemunho daquele<br />

sonho colonialista de<br />

uma rede ferroviária que<br />

ligue o continente<br />

com uma maior<br />

mobilidade e rapidez<br />

no transporte<br />

de mercadorias.<br />

McKinsey & Company publicado em<br />

Junho de 2017 estima que o investimento<br />

chinês na África é de 180 mil<br />

milhões de dólares, que em 2025 poderão<br />

ser 250 mil milhões. O mesmo<br />

relatório precisa que a falta de transparência<br />

no momento de conseguir<br />

dados faz pensar que os números<br />

reais poderiam mesmo ser o dobro.<br />

Por outro lado, segundo estimativas<br />

do grupo de investigação SAIS China-Africa<br />

Research Initiative, entre<br />

2000 e 2014, o Banco de Exportação<br />

e Importação chinês emprestou 10<br />

mil milhões de dólares para projectos<br />

ferroviários na África.<br />

O primeiro troço financiado e<br />

construído pela China foi o conhecido<br />

TAZARA, herança dos Britânicos<br />

e que estabelece comunicação entre<br />

Dar-es-Salaam (Tanzânia) e Kapiri<br />

Mposhi (Zâmbia). No final dos anos<br />

70, completaram-se os 1860 quilómetros<br />

que dão à Zâmbia a sua única<br />

saída para o <strong>mar</strong>. É uma obra de interesse<br />

comercial já que o país possui<br />

grandes recursos minerais. Com o<br />

novo milénio chegaram novos projectos<br />

e inaugurações. Esperava-se<br />

que no fim de 2018 se tivessem construído<br />

3600 quilómetros ao longo do<br />

continente, mas os atrasos no momento<br />

de iniciar as obras tornaram<br />

impossível cumprir os prazos.<br />

Outro grande projecto financiado<br />

e construído pela China foi a linha<br />

de 782 quilómetros entre a capital do<br />

Sudão, Cartum, e Port Sudan, a sua<br />

principal saída para o <strong>mar</strong> Vermelho.<br />

Baptizado como Comboio do Nilo, a<br />

China terminou a sua construção em<br />

2014 com um custo de 1500 milhões<br />

de dólares, 1100 emprestados pelo<br />

país asiático. Na Nigéria, desde 2016<br />

as cidades de Abuya e Kaduna estão<br />

ligadas por um troço cuja construção<br />

envolveu 874 milhões de dólares, 500<br />

procedentes da China. Em Janeiro de<br />

2017, a capital da Etiópia, Adis-Abeba,<br />

ficava ligada por via-férrea com o<br />

<strong>mar</strong> Vermelho, a 765 quilómetros de<br />

distância, através do Jibuti. Espera-se<br />

que esta linha chegue ao Sudão do<br />

Sul, Uganda e ao Quénia.<br />

u<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


áfrica<br />

os minerais continuam a ser muito<br />

procurados, especialmente com o<br />

desenfreamento tecnológico asiático.<br />

A China encontrou na África um<br />

sócio comercial modelar que precisa<br />

de soluções a curto prazo para descolar<br />

para o ansiado progresso. Serão<br />

as mesmas vias-férreas, as que transportam<br />

mercadorias procedentes da<br />

China as que levarão as reservas africanas.<br />

Não há quase nenhum país africano<br />

em que não haja presença chinesa,<br />

embora existam alguns exemplos<br />

nos quais a incidência asiática é mais<br />

notável do que noutros, como, por<br />

exemplo, Quénia, Ruanda, Uganda,<br />

Zâmbia, Zimbabué, Malauí, Tanzânia,<br />

Moçambique ou Madagáscar.<br />

Desta maneira, há uma imagem que<br />

se repete na geografia africana: grandes<br />

máquinas procedentes da China<br />

com engenheiros chineses orquestrando<br />

as obras. «Não sabem inglês,<br />

mas logo que chegam à comunidade<br />

na qual vão trabalhar não tardam a<br />

aprender o idioma local», asseguraram-me<br />

em 2015 em Kibuye, uma<br />

cidade ruandesa nas <strong>mar</strong>gens do lago<br />

Kivu, onde também havia uma cenp<br />

Mulhedo vento e aju<br />

© 123RF<br />

Em Setembro desse mesmo ano,<br />

foi inaugurada a linha que liga Nairobi,<br />

a capital do Quénia, a Mombaça,<br />

a cidade mais importante da costa<br />

e um dos portos-chave do continente<br />

para a entrada de produtos asiáticos.<br />

Os Portugueses e os povos costeiros<br />

do Leste africano tornaram-se traficantes<br />

de escravos e comerciantes<br />

peritos em especiarias, chá e sedas<br />

que, posteriormente, deram lugar<br />

aos produtos que a globalização exportou<br />

para todo o globo. Este comboio<br />

liga os 485 quilómetros que<br />

separam ambas as cidades em cinco<br />

horas, e custou 4000 milhões de dólares<br />

(3600 financiados pela China).<br />

Não aspira unicamente a transportar<br />

mercadorias entre Mombaça e<br />

Nairobi, antes se espera que dentro<br />

de alguns anos chegue também<br />

a Campala, a capital do Uganda, e<br />

posteriormente à capital do Ruanda<br />

(Kigali) e do Sudão do Sul (Juba),<br />

país especialmente interessante pelas<br />

suas jazidas de petróleo localizadas<br />

na fronteira com o Sudão.<br />

Os desafios para África<br />

Fotos de chefes de Estado com representantes<br />

chineses, palavras de elogio<br />

mútuo e bandeiras e inscrições em<br />

mandarim em cada projecto in situ.<br />

As empresas orientais têm, no papel,<br />

um objectivo nos países africanos:<br />

uma relação na qual todos saiam beneficiados.<br />

Mas os projectos chineses<br />

não esperam uma compensação «no<br />

momento», pois sabem que se cobrarão<br />

os créditos com o tempo, levantando<br />

suspeitas sobre o espólio que<br />

esperam levar nas próximas décadas.<br />

Nesta relação, a China oferece o que<br />

melhor sabe fazer – venda de mercadorias<br />

e criação de infra-estruturas –,<br />

e África compensa com o que os colonizadores<br />

do passado sempre ansiaram<br />

– terras cultiváveis, matérias-<br />

-primas e recursos naturais.<br />

Um dado importante é que a China<br />

tem a maior população do planeta,<br />

que em 2020 alcançará os 1420<br />

milhões de habitantes, segundo o<br />

seu próprio Governo. Paralelamente,<br />

a ONU estima que na África vivem<br />

1200 milhões de pessoas, 16 % da população<br />

mundial – em 2100 poderão<br />

ser 40 % dos habitantes do planeta.<br />

O aumento da população mundial<br />

levanta um dilema no momento de<br />

tornar sustentáveis os recursos naturais<br />

que, em questão de décadas, é<br />

possível que comecem a escassear no<br />

gigante asiático.<br />

Muitos vêem na África o próximo<br />

abastecedor mundial de alimentos.<br />

Às suas férteis terras junta-se um dos<br />

subsolos mais ricos do mundo, onde<br />

p Comboio no Quénia. O investimento<br />

chinês na África inclui as linhas férreas<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


© 123RF<br />

tral de gás propano. Em Lusaca, a<br />

capital da Zâmbia, engenheiros chineses<br />

construíram o novo aeroporto<br />

internacional, cujos dizeres à entrada<br />

estão escritos em mandarim, e que<br />

aspira a tornar-se um dos mais modernos<br />

da região. Além disso, a China<br />

está a construir estradas no país para<br />

melhorar a deficiente comunicação<br />

interna. «O que leva a China em troca<br />

deste investimento?», foi a pergunta<br />

aos responsáveis locais que supervisionavam<br />

o projecto. «Vamos vê-lo<br />

com o tempo. Temos muitos recursos<br />

minerais», foi a resposta.<br />

À mesa, sem dúvida, estão apenas<br />

dois comensais, que são as elites<br />

locais e os investidores chineses.<br />

As consequências para a economia<br />

p A moderna estação ferroviária de<br />

Mtito, Quénia. Em cima, trabalhadores<br />

num projecto chinês de ferrovia em<br />

Adis-Abeba, Etiópia<br />

podem ser catastróficas para países<br />

débeis que já acumulam uma<br />

dívida pública milionária, pelo que<br />

é importante prestar atenção às<br />

condições do investimento chinês.<br />

A necessidade de terreno para que<br />

as obras possam desenvolver-se implicou<br />

também que muitos criadores<br />

de gado e agricultores tenham<br />

perdido as suas terras para dar lugar<br />

ao desenvolvimento. Como sempre,<br />

muitos queixam-se de que o Estado<br />

não os recompensou depois de os ter<br />

obrigado a abandonar as suas terras<br />

e muitos viram como as suas vidas<br />

mudaram por um projecto de que,<br />

provavelmente, não farão parte.<br />

Condições laborais injustas<br />

Tem-se criticado que a China beneficia<br />

de uma mão-de-obra barata quase<br />

sem direitos laborais. Costumam<br />

ser jornaleiros que se reclamam em<br />

função das necessidades do dia e trabalham<br />

de sol a sol por um salário de<br />

cinco dólares. O equipamento, que<br />

noutros países seria obrigatório para<br />

a protecção do trabalhador, na África<br />

brilha pela sua ausência. No Quénia,<br />

os trabalhadores locais queixaram-se<br />

da chegada de muito pessoal chinês<br />

para trabalhar nas infra-estruturas<br />

em vez de empregar quenianos e<br />

assim ajudar as suas economias e a<br />

criação de emprego. No Quénia, mas<br />

também na Tanzânia, teme-se que<br />

afecte o habitat dos animais selvagens<br />

que vivem nos parques localizados<br />

em ambos os países.<br />

Também não se deve esquecer<br />

como os conflitos no continente, em<br />

especial na zona dos Grandes Lagos,<br />

podem impedir que se levem a cabo<br />

as obras.<br />

Contudo, a chegada das vias-férreas<br />

construídas pela China <strong>mar</strong>ca uma<br />

era de progresso e abertura ao futuro<br />

por que tanto ansiava a África. am<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


aps vida missionária<br />

D. ANTÓNIO BARROSO<br />

caminhos novos de evangelização<br />

D. António Barroso [1854-1918] aliou a acção à reflexão e esboçou<br />

a figura do missionário para a África do seu tempo.<br />

Texto: Amadeu Gomes de Araújo | Vice-Postulador da Causa de Canonização de D. António Barroso<br />

O<br />

missionário deve levar<br />

«em uma das mãos a<br />

Cruz, símbolo augusto da<br />

paz e da fraternidade dos<br />

povos, e na outra a enxada, símbolo<br />

do trabalho abençoado por Deus.<br />

Deve ser padre e artista, pai e mestre,<br />

doutor e homem da terra; deve tão<br />

depressa pôr a sua estola, […] como<br />

empunhar a picareta para arrotear<br />

uma courela de terreno; deve tão<br />

depressa fazer uma homilia, como<br />

pensar a mão escangalhada pela explosão<br />

duma espingarda traiçoeira».<br />

Foi nesta linguagem expressiva que o<br />

padre António Barroso, ao regressar<br />

do Congo, em 7 de Março de 1889,<br />

esboçou a figura do missionário para<br />

a África do seu tempo. A Cruz associada<br />

à enxada. A fé cristã e o desenvolvimento.<br />

Era dotado de um espírito reformador:<br />

«É intenção minha refor<strong>mar</strong><br />

todos os serviços», afirmou em<br />

Meliapor, no ano em que ali chegou<br />

(1898). Aliou a acção à reflexão, foi<br />

missionário e missiólogo. O padre<br />

António Lourenço Farinha, que foi<br />

missionário em Moçambique e historiador,<br />

entende que D. António<br />

abordou a questão missionária como<br />

ninguém até então tinha feito, e refere-se-lhe<br />

como «o maior de todos os<br />

missionários modernos». O cónego<br />

Alcântara Guerreiro, também missionário<br />

e historiador de Moçambique,<br />

escreve que «o valor da sua obra<br />

reside no espírito reformador que a<br />

anima». E o académico padre Brásio<br />

considera-o um autêntico mestre de<br />

missionários, um teorizador da acção<br />

missionária, um missiólogo.<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


Considerava fundamental que os<br />

agentes da missão repensassem os<br />

seus métodos de trabalho. Entendia<br />

que a forma de preparar operários<br />

para a messe africana, dotados de<br />

uma mentalidade nova, passaria por<br />

criar uma instituição diferente do<br />

Colégio das Missões Ultra<strong>mar</strong>inas,<br />

onde se for<strong>mar</strong>a. Falava de uma congregação<br />

nova com membros ligados<br />

por sólidos laços de solidariedade,<br />

com o futuro assegurado em caso de<br />

doença ou de velhice e com a continuidade<br />

da obra também assegurada.<br />

É indispensável – afirmou – que<br />

o missionário que trabalha em África<br />

saiba que a sua obra não morre, que<br />

quando a faina lhe roubar a vida ou o<br />

inutilizar para o trabalho, veja chegar<br />

os que devem continuar a sua obra<br />

de paz e de progresso. Foi o precursor<br />

da Sociedade Missionária da Boa<br />

Nova.<br />

A partir da sua experiência no<br />

Congo, o bispo Barroso passou a<br />

prestar particulares cuidados à localização<br />

e centralização das missões<br />

em Moçambique. Entendia que, por<br />

razões de economia e de estratégia,<br />

as missões deviam estar organizadas<br />

a partir de uma missão central.<br />

Esta missão-mãe deveria localizar-se<br />

numa zona salubre e dominar uma<br />

p O Instituto Leão XIII, na Cabaceira,<br />

junto à Ilha de Moçambique. Criado por<br />

D. António Barroso (no centro, ao fundo)<br />

e por ele inaugurado em 1895, destinava-se<br />

a apoiar meninas «órfãs, abandonadas<br />

e pobres». Ao lado, o Padre<br />

António Barroso, no Colégio de Cernache<br />

do Bonjardim à partida para as Missões<br />

de Angola/Congo (1880)<br />

vasta população, donde fosse possível<br />

irradiar, contactar com as povoações<br />

circundantes, com as missões<br />

sucursais em redor.<br />

Na escolha da localização das missões,<br />

sempre prestou atenção às distâncias,<br />

de modo que permitissem aos<br />

padres visitarem-se e ajudarem-se<br />

mutuamente. Para evitar o isolamento,<br />

instaurou o regime de comunidades<br />

de padres e auxiliares. Com tais<br />

medidas, o espírito dos missionários<br />

mudou, melhorou significativamente.<br />

Foi notável a lucidez e a determinação<br />

de D. António Barroso para restaurar<br />

em Angola e em Moçambique<br />

o verdadeiro sentido da missionação<br />

como evangelização das populações<br />

locais, sendo de relevar a atenção<br />

que prestava ao ensino e à formação<br />

da juventude, o humanismo com que<br />

lidava com o homem africano e com<br />

que defendia os seus direitos, o valor<br />

que atribuía à honradez e ao civismo<br />

nas relações comerciais. É notória a<br />

importância que passou a atribuir-se<br />

às irmãs missionárias e aos irmãos<br />

leigos. É notável a valorização que<br />

passou a dar-se ao clero autóctone.<br />

Neste esforço, foi pioneiro entre o<br />

episcopado católico. am<br />

Publicação conjunta da Missão Press<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


ap níger<br />

as incríveis viagens dos migrantes no continente africano<br />

áfrica de costa a costa<br />

O Níger é um<br />

país de origem,<br />

mas sobretudo<br />

de trânsito dos<br />

migrantes. Muitos<br />

são os que passam<br />

por aqui para tentar<br />

a travessia do Sara.<br />

Acontece que não<br />

conseguem, ou<br />

então são rejeitados<br />

e levados para a<br />

fronteira. O fluxo<br />

dos «retornados»<br />

está a aumentar.<br />

A Igreja Católica do<br />

Níger organizou-<br />

-se para lhes dar<br />

assistência.<br />

Texto e fotos: Marco Bello, jornalista*<br />

* Com a colaboração de Sante Altizio<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


Niamey. A capital arenosa do<br />

Níger está a mudar o rosto.<br />

Na sua zona central são<br />

bem visíveis alguns grandes<br />

estaleiros. Enormes prédios em<br />

construção, hotéis e edifícios governamentais<br />

de uma altura nunca vista<br />

por aqui, e depois a terceira ponte<br />

sobre o rio Níger.<br />

Observando bem, vemos nesses<br />

trabalhos muitos chineses com capacetes<br />

a<strong>mar</strong>elos, em alguns estaleiros<br />

hasteiam bandeiras turcas. São destes<br />

dois países os patrocinadores oficiais<br />

da especulação imobiliária em<br />

Niamey.<br />

Mas noutras zonas da capital há<br />

ainda bairros com as casas de tijolos<br />

de terra e palha (banko), quase<br />

«edifícios históricos», diríamos na<br />

nossa terra. Casas de aldeia, diz-se<br />

q Vista do centro de Niamey,<br />

com a Ponte Kennedy, que cruza o<br />

rio Níger. Na página anterior, Michael<br />

Johnson, liberiano, um verdadeiro<br />

globetrotter da África, por necessidade.<br />

Atravessou o continente de lés a lés<br />

procurando uma vida melhor<br />

no Níger. Avançamos para a periferia<br />

no Leste. Nesta zona relativamente<br />

recente existem casas baixas e<br />

alguns prédios mais altos, de bancos<br />

ou companhias telefónicas. Procuramos<br />

as instalações da paróquia São<br />

Gabriel Garbado, da Igreja Católica,<br />

minoritária no país de maioria muçulmana.<br />

Em São Gabriel a arquidiocese<br />

de Niamey – uma das duas do<br />

país, a outra é a diocese de Maradi –<br />

concentra as actividades de acolhimento<br />

e atendimento dos migrantes.<br />

Entramos nas instalações baixas de<br />

cor ocre, quase mimética, e no átrio<br />

interior encontramos Laurent Tindano,<br />

o animador principal da pastoral<br />

migrante. Laurent é também ele<br />

um migrante, burquinabê, mas vive<br />

aqui há décadas e sente-se nigerino<br />

para todos os efeitos.<br />

Um centro de atendimento<br />

«Este é um pequeno centro de acolhimento.<br />

Com poucos meios fazemos<br />

um acompanhamento dos migrantes.<br />

Ocupamo-nos daqueles que estão a<br />

retornar, depois de terem atravessado<br />

o deserto e tentado atravessar o <strong>mar</strong>,<br />

em vão, e agora gostariam de regressar<br />

às suas terras. Chegam a Niamey<br />

esgotados, privados de quaisquer<br />

meios, perdidos e traumatizados<br />

com uma experiência duríssima.<br />

Nós acolhemo-los, mas não fazemos<br />

um trabalho administrativo. Falamos<br />

com eles, recebemo-los como<br />

irmãos, não como estrangeiros, dando-lhes<br />

valor humano. Damos-lhes<br />

todo o tempo necessário para falar<br />

e procuramos criar uma relação de<br />

confiança. Assim, relatam-nos o que<br />

passaram. Acompanhamo-los no seu<br />

sofrimento. Quando um ser humano<br />

sente que é compreendido, confia e<br />

aceita abrir o seu coração e partilha<br />

muitas coisas. É diferente do fazer-<br />

-lhes perguntas para preencher um<br />

formulário», comenta-nos Laurent.<br />

No centro de Garbado é dado aos<br />

migrantes também uma pequena<br />

ajuda material «para facilitar a sua<br />

viagem»: algum dinheiro, uma manta,<br />

um estojo de higiene. Uma vez<br />

por semana, um médico voluntário<br />

consulta as pessoas de passagem.<br />

E, graças à convenção com uma farmácia<br />

e uma clínica, consegue-se<br />

u<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


níger<br />

fornecer medicamentos e tratar os<br />

casos mais graves.<br />

Muitos migrantes<br />

que não conseguem<br />

atravessar o Sara<br />

ou são rejeitados<br />

nos países vizinhos<br />

são levados para as<br />

fronteiras do Níger e,<br />

de lá, tentam<br />

chegar a Niamey.<br />

Um fenómeno novo<br />

Laurent conta-nos que tudo começou<br />

por volta de 2011. «Com os<br />

acontecimentos da Líbia, do Mali<br />

e da Costa do Marfim, alguns dos<br />

debandados chegaram a Niamey e<br />

procuravam uma paróquia, porque é<br />

sabido que onde está a Igreja é provável<br />

receber-se ajuda. O fenómeno<br />

era novo e criámos algumas comissões<br />

em cada paróquia. Mas depois<br />

demo-nos conta de que havia migrantes<br />

que corriam todas as igrejas.<br />

Decidiu-se concentrar a actividade<br />

em Garbado, que é um lugar logisticamente<br />

próximo das estações dos<br />

autocarros de longo curso.»<br />

Perguntamos-lhe porque é que o<br />

acolhimento é predominantemente<br />

a quem regressa da tentativa de travessia.<br />

«Os que partem para o deserto habitualmente<br />

estão em boa forma e<br />

têm ainda o moral em alta e meios<br />

económicos. Têm menos necessidade<br />

de nós. Além disso, nós somos<br />

pela liberdade de circulação. Se nos<br />

pedem informações sobre o caminho,<br />

damos-lhes pelo menos algumas<br />

indicações sobre os perigos da<br />

travessia.»<br />

Sentado num banco, um pouco<br />

mais afastado, sob o alpendre de chapa<br />

que agora abriga do sol implacável<br />

e durante (apenas) três meses por<br />

ano da chuva torrencial, está Michael<br />

Johnson. Liberiano, de 37 anos, é um<br />

s A mesquita de Zinder, ao entardecer<br />

verdadeiro globetrotter [trota-mundos]<br />

da África. Mas não por turismo.<br />

Michael, o globetrotter<br />

Durante os anos 1990 na Libéria<br />

grassa uma sangrenta guerra civil<br />

(de 1989 a 2003, com uma pausa entre<br />

1997 e 1998). Como muitos dos<br />

seus compatriotas, Michael fugiu e<br />

encontrou-se na Costa do Marfim,<br />

num campo de refugiados. No país<br />

trabalha durante dez anos. Fala muito<br />

bem também o francês. «Terminada<br />

a guerra, voltei para a minha terra,<br />

mas verifiquei que a situação era<br />

péssima. Queria algo mais da vida.<br />

Então parti de novo.»<br />

Michael passa pela Guiné, Senegal,<br />

Mali, Burkina Faso e depois Níger.<br />

Daqui chega ao Chade e dirige-se<br />

para o Sudão. «A este ponto foi muito<br />

difícil. Em Abéché encontrei muitos<br />

outros migrantes que faziam a mesma<br />

viagem. Partimos juntos num<br />

camião, mas passada a fronteira, pe-<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


s Transporte de produtos agrícolas no<br />

rio Níger<br />

las três da madrugada, assaltaram-<br />

-nos os rebeldes Janjawid.» Michael<br />

encontra-se no Darfur. Os rebeldes<br />

disparam para os pneus do camião,<br />

obrigam todos a sair do veículo e<br />

apontam uma arma à cabeça do motorista.<br />

Depois aparece uma patrulha<br />

de capacetes azuis da missão de Paz<br />

da ONU, Unamid, que disparam para<br />

o ar e põem em fuga os Janjawid. Michael<br />

e os outros são salvos.<br />

Os capacetes azuis socorrem-nos<br />

e levam-nos para a cidade de Al Fasher.<br />

«Viram que não tinha nada e<br />

pagaram-me o bilhete de autocarro<br />

para Cartum. O meu objectivo era ir<br />

para a Arábia Saudita.»<br />

Em Cartum, Michael não conhece<br />

ninguém, mas como viajante já<br />

especializado, infiltra-se no campus<br />

universitário, onde se consegue viver<br />

com pouco e se encontra sempre alguém<br />

que ajuda. «Sabia da existência<br />

da Universidade Jama África. Fiquei<br />

aqui durante algum tempo, entretanto<br />

arranjei um trabalho porque<br />

tinha-se acabado o dinheiro.» Logo<br />

que arranja dinheiro suficiente, retoma<br />

a viagem e chega a Port Sudan,<br />

cidade junto ao <strong>mar</strong> Vermelho.<br />

Uma passagem<br />

«Havia alguns barcos que faziam a<br />

travessia do <strong>mar</strong> em direcção à Arábia<br />

Saudita. Os barcos estavam sobrecarregados.<br />

Vi gente da Etiópia,<br />

Eritreia, Nigéria, Ca<strong>mar</strong>ões, Mali, Libéria.<br />

Paguei 1500 dólares e levaram-<br />

-me para um lugar no deserto, onde<br />

muitos outros estavam a aguardar.<br />

Descobri assim que havia muitos migrantes<br />

clandestinos. Disseram-nos<br />

para não passearmos pela cidade.<br />

Tínhamos de esperar até sermos 150<br />

para encher um barco e os traficantes<br />

haviam de vir procurar-nos. Entretanto<br />

traziam-nos comida e água<br />

comprada na cidade. Fiquei naquele<br />

lugar cerca de um mês.»<br />

Depois, um dia à uma da manhã,<br />

de repente os traficantes vêm ter<br />

connosco para partir. Mas Michael<br />

não tem sorte. Uma vedeta a motor<br />

da Guarda Costeira saudita bloqueia<br />

o seu barco. Não os deixa atracar e<br />

reenvia-os para o Sudão. Desde então<br />

Michael torna-se como um pacote,<br />

expulso dos diversos países que<br />

atravessou. Levam-no para Nguigmi,<br />

Níger, na fronteira com o Chade.<br />

Mas ele não se dá por vencido.<br />

«Então disse para comigo: “Passarei<br />

pela Argélia para ir para França”.»<br />

Depois de ter trabalhado, consegue<br />

atravessar o Sara e chegar a Orão,<br />

cidade argelina junto à costa. Aqui<br />

encontra trabalho para juntar algum<br />

dinheiro, mas «uma noite, ao sair do<br />

trabalho, detém-me uma patrulha<br />

da polícia. Eu não tinha documentos.<br />

Levaram-me ao departamento<br />

de imigração. Perguntei o que tinha<br />

feito, mas disseram-me que tinha de<br />

partir. Queria passar por casa para<br />

pegar nas minhas coisas, mas não<br />

mo permitiram». Fechado num lugar<br />

com outros clandestinos, depois<br />

de alguns dias Michael é metido num<br />

camião «dos que levam até 150 pessoas»,<br />

e transferido para Sul. u<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


níger<br />

Os migrantes rejeitados são depois<br />

descarregados no Níger, nas<br />

imediações da fronteira. De algum<br />

modo chega depois a Niamey. «Aqui<br />

a situação piorou, não consegui encontrar<br />

trabalho. Decidi voltar para a<br />

Libéria, mas não posso chegar lá sem<br />

dinheiro. Na minha terra a guerra<br />

devastou tudo, matou os meus pais.<br />

Também por isso me fui embora.»<br />

Família migrante<br />

Na paróquia de Garbado, esta manhã<br />

há uma dezena de pessoas. Todos<br />

homens ou jovens rapazes. A única<br />

excepção é uma família, pai, mãe<br />

e menina pequena. Aceitam falar<br />

connosco. Biko (nome fictício) fala<br />

muito bem francês. Ele e a família<br />

vêm do Chade, concretamente de<br />

N’Djamena, apesar de, faz questão<br />

de precisar, serem originários do Sul,<br />

Doba, onde se encontram os poços<br />

de petróleo. Ele tentou várias vezes<br />

estudar Direito na universidade,<br />

no vizinho Ca<strong>mar</strong>ões. Primeiro em<br />

2007, depois dez anos mais tarde.<br />

Em ambos os casos, teve de abandonar<br />

por causa das más condições de<br />

segurança.<br />

Biko é muito crítico com o seu país:<br />

«Nasci na guerra, cresci na guerra e<br />

as consequências são nefastas, não<br />

me permitiram estudar.» A família<br />

é composta ainda por outros três filhos,<br />

dizem-nos ambos, de 10, 6 e 4<br />

anos. A última, aqui com eles, tem 2.<br />

«Sabemos que é um risco lançar-<br />

-se numa migração com uma grande<br />

família. Mas obrigou-nos o facto<br />

de o nosso país não ser estável. Vivemos<br />

sempre no meio de conflitos<br />

armados, intercomunitários, existe a<br />

repressão dos governos, a má gestão.<br />

As riquezas do país não são divididas<br />

de modo que todos beneficiem delas<br />

para viver em paz.»<br />

A mulher, Evelyn, num francês<br />

menos fluente, acrescenta: «Deixámos<br />

o Chade para procurar uma vida<br />

melhor para nós e os nossos filhos.<br />

O nosso objectivo é procurar melhores<br />

condições de vida em Marrocos.»<br />

E continua a relatar a sua viagem,<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


s Numa zona comercial de Niamey, um<br />

placar patrocinado pela União Europeia<br />

avisa os Nigerinos sobre os perigos da<br />

migração: «Atenção! Viajar sem documento<br />

de identidade ou visto deixa-o<br />

vulnerável».<br />

Na página anterior: meninas num<br />

parque, num subúrbio de Niamey, nas<br />

<strong>mar</strong>gens do rio Níger; família no centro<br />

de acolhimento da paróquia de Garbado,<br />

na capital do Níger<br />

iniciada quase há um ano: «Partimos<br />

de N’Djamena num camião e<br />

chegámos à Nigéria. Depois dali foi<br />

complicado, até mesmo por causa<br />

da polícia. Tivemos muitas vezes de<br />

negociar e por fim perdemos até os<br />

documentos.» Entrados no Níger, dirigiram-se<br />

para o Norte, até Agadez,<br />

a cidade nigerina às portas do Sara,<br />

na qual todos os fluxos dos migrantes<br />

se encontram: de Leste, do Sul e<br />

do Oeste. E da qual se parte para a<br />

Argélia ou a Líbia. Aqui, alguém em<br />

«uniforme» teve compaixão da família<br />

e desaconselhou-os a prosseguir:<br />

«Com estas crianças, fareis a sua sepultura<br />

no deserto», disseram. E depois<br />

ajudou-os a voltar para Niamey.<br />

Entre a espada e a parede<br />

«Estamos aqui há quase oito meses<br />

– diz Biko –, as crianças não têm escola,<br />

e nem sequer temos uma casa.<br />

Vivemos ao ar livre. Quando chove,<br />

deixam-nos abrigar debaixo de um<br />

alpendre destinado à mesquita, mas<br />

depois temos de sair. Não tentamos<br />

pedir os vistos para Marrocos porque<br />

não sei como fazer e não temos<br />

dinheiro. Não temos mais nada.»<br />

Perguntamos ao casal se não<br />

acham que seja melhor voltar para<br />

o Chade. Responde Biko: «Sim, mas<br />

temos medo do que acontece no<br />

nosso país, em particular o terrorismo.<br />

Além disso, disseram-me que<br />

quem esteve no estrangeiro mais de<br />

três meses é suspeito de terrorismo.<br />

Tem de justificar o que é que fez,<br />

caso contrário, é suspeito de ligações<br />

ao Boko Haram. Estamos entre a espada<br />

e a parede.»<br />

O Chade faz parte da coligação<br />

militar com o Níger, Nigéria e Ca<strong>mar</strong>ões,<br />

que combate os terroristas do<br />

Boko Haram. A capital, N’Djamena,<br />

é muito próxima do Nordeste da Nigéria,<br />

zona histórica deste grupo que<br />

já intervém nos quatro países nas<br />

imediações do lago Chade.<br />

O a<strong>mar</strong>go de boca<br />

Depois de ter falado com muitos<br />

jovens, ouvido as suas histórias incríveis,<br />

de viagens e de atrocidades<br />

sofridas, pegamos na nossa câ<strong>mar</strong>a<br />

e despedimo-nos. Estão contentes<br />

por terem partilhado a sua história<br />

connosco, não obstante ao início<br />

houvesse uma certa desconfiança.<br />

Partimos dali com o a<strong>mar</strong>go de boca<br />

de não poder fazer nada mais do que<br />

trocar endereços de correio electrónico.<br />

Biko escrever-nos-á uma mensagem<br />

algum tempo depois. Por fim,<br />

regressaram ao Chade com a ajuda<br />

da Organização Internacional para<br />

as Migrações. Agora estão à espera<br />

das ajudas para a «reintegração». am<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


livros<br />

Autoconhecimento<br />

Ninguém pode esperar ser acolhido por outro tal como<br />

é se não se apresentar dessa forma; e não se exporá<br />

sem reservas, sem ter conhecimento próprio, sem estar<br />

bem na sua pele, consigo mesmo. De igual forma não se<br />

assume uma missão de corpo e alma sem estar seguro de<br />

que essa é a «sua» missão que dá sentido à sua existência;<br />

para isso é necessário conhecer-se e perceber o que<br />

valida a sua vida.<br />

Olhar para dentro de si, conhecer-se e aceitar-se é, por<br />

isso, fundamental para poder depois sair de si, dar-se a<br />

conhecer em verdade e esperar ser acolhido. O mesmo se<br />

passa com a Igreja. Neste livro, o P. e António Sílvio Couto<br />

convida a Igreja a olhar para si mesma, a descobrir-se<br />

naquilo que de facto é e porquê.<br />

Não sendo uma obra inacessível a quem esteja de fora,<br />

até porque a linguagem utilizada é simples, não deixa<br />

de ser claramente direccionada em primeiro lugar para<br />

a comunidade católica. «Nesta Igreja que amo e sirvo»<br />

transporta o leitor por meandros da Teologia à procura da<br />

origem, da doutrina, do papel na salvação, da disciplina<br />

deste corpo maior formado pelos cristãos. O itinerário parte<br />

do Catecismo da Igreja Católica, de 1992, para buscar<br />

os fundamentos para a Igreja ser una, santa, católica e<br />

apostólica.<br />

O leitor é também convidado a aprofundar a forma e os<br />

instrumentos da participação dos cristãos na vida eclesial.<br />

O P. e António Sílvio Couto recorda que «não é o homem<br />

que escolhe a Igreja; é antes chamado a uma Igreja, orientada<br />

para a comunhão com o outro, unidos a Deus [...] o<br />

homem é chamado por graça divina «Não fostes vós que<br />

me escolhestes, fui Eu que vos escolhi», disse Jesus aos<br />

discípulos na Última Ceia». O autor encara por isso vocações,<br />

dons, carisma e ministérios como «manifestações da<br />

Igreja nos fiéis» e dedica-lhes a segunda parte desta obra,<br />

começando numa análise minuciosa do Baptismo e indo<br />

até aos movimentos eclesiais.<br />

Título: «Nesta Igreja que Amo e Sirvo»<br />

Autor: António Sílvio Couto<br />

Editor: Paulinas | www.paulinas.pt | Tel. 219 405 640<br />

Porque é missão da Igreja entregar-se e anunciar a sua<br />

Boa Nova, o autor deixa, no final, «algumas pistas para<br />

um diálogo Igreja-mundo e vice-versa», consciente de que,<br />

se «para uns, a Igreja tem pouco a aprender com o mundo<br />

se este se considerar numa atitude secularista, para outros,<br />

o mundo também terá pouco a aprender com a Igreja<br />

se esta se entender de uma forma clerical».<br />

O P. e António Sílvio Couto encontra «necessidades prementes<br />

de mútuo conhecimento em campos como a cultura,<br />

economia, política ou construção da paz» e reconhece<br />

ser necessária outra forma de encarar este possível diálogo.<br />

Avança aliás que aqui poderá estar «temática para<br />

uma outra reflexão, proximamente». Depois do “olhar para<br />

dentro”, aguarda-se então a reflexão sobre o “sair de si”<br />

e ir para o mundo...<br />

Filipe Messeder<br />

Título: «Os meus pais estão a envelhecer»<br />

Autor: Maria José da Silveira Núncio<br />

Editora: Porto Editora<br />

www.portoeditora.pt | Tel. 226 088 300<br />

O livro ajuda a lidar com os<br />

problemas próprios do envelhecimento<br />

dos nossos pais.<br />

A obra apresenta testemunhos<br />

reais, fornece pistas e<br />

apresenta muitos conselhos<br />

práticos que ajudam, por<br />

exemplo, a comunicar com<br />

os pais, envolver a família<br />

no apoio, falar sobre temas<br />

difíceis, gerir as emoções e<br />

cuidar de si.<br />

Título: «Administrar com Sabedoria»<br />

Autor: Maria Cristina Bombelli<br />

Editora: Paulinas<br />

www.paulinas.pt | Tel. 219 405 640<br />

Nesta publicação, Maria Cristina<br />

Bombelli, fundadora<br />

e presidente da ONG Wise<br />

Growth e professora universitária,<br />

sublinha alguns dos<br />

desafios que o mundo da<br />

gestão enfrenta na actualidade<br />

e procura construir<br />

pontes com as tradições bíblicas,<br />

sobretudo os livros<br />

sapienciais, e a Regra de<br />

São Bento.<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


discos<br />

António Marujo<br />

gesto solidário<br />

Título: As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz<br />

Intérpretes: Quarteto Verazin; dramatização de Miguel Guilherme;<br />

textos de Pablo Lima<br />

Edição: Paulus | www.paulus.pt<br />

Talvez muitas pessoas<br />

não saibam<br />

que a obra de Joseph<br />

Haydn As Sete Últimas<br />

Palavras de Cristo na<br />

Cruz foi estreada em<br />

Cádis, na Andaluzia, depois<br />

de encomendada<br />

pelo cónego José Sáenz<br />

de Santa María, responsável<br />

da Irmandade<br />

da Santa Cova. A obra<br />

era destinada, como<br />

escrevia o compositor<br />

Quem já teve possibilidade<br />

de ver<br />

as Sopa de Pedra ao<br />

vivo (por exemplo, em<br />

Fevereiro, no Capitólio<br />

de Lisboa) percebeu a<br />

grande potencialidade<br />

Bassekou<br />

Kouyate,<br />

nome importante da<br />

música do Mali, na esteira<br />

de Ali Farka Touré<br />

ou do senegalês<br />

Youssou N’Dour, é um<br />

dos mestres do ngoni,<br />

alaúde tradicional que<br />

austríaco, à capela da irmandade, que na altura da<br />

Quaresma ficava com os pilares, paredes e janelas<br />

cobertos de preto. O concerto foi executado com as<br />

portas da capela fechadas, apenas com uma grande<br />

lâmpada no centro a quebrar a escuridão. Há dez<br />

anos, Jordi Savall gravou a obra, com o seu Le Concert<br />

des Nations, no mesmo local onde ela foi estreada,<br />

em 1787, recriando precisamente esse ambiente. Nesse<br />

disco, o teólogo Raimon Panikkar e o escritor José<br />

Saramago comentavam cada uma das sete palavras.<br />

Neste disco, as meditações são do padre e biblista<br />

Pablo Lima e o actor Miguel Guilherme empresta a sua<br />

voz às palavras de Jesus, dando-lhe uma intencionalidade<br />

dramática invulgar. Esta interpretação d’As Sete<br />

Últimas Palavras de Cristo na Cruz trazem essa veemência<br />

de uma obra <strong>mar</strong>cada, ao mesmo tempo, pelo<br />

seu carácter meditativo e que constitui uma das peças<br />

mais importantes sobre a Paixão. Mesmo depois da<br />

Páscoa, vale a pena aqui regressar.<br />

Título: Ao longe já se ouvia<br />

Intérpretes: Sopa de Pedra<br />

Edição: Turbina | www.sopadepedra.pt<br />

de recriação do cancioneiro popular – por exemplo,<br />

em temas como Os Bravos ou a Cantiga de la Segada<br />

(com uma fortíssima interpretação de José Manuel<br />

David no concerto de Lisboa). E também captou a<br />

capacidade inventiva de uma nova linguagem a partir<br />

do imenso património que é a música de raiz tradicional<br />

em temas como Fonte Pura, das próprias Sopa de<br />

Pedra, ou Pé de Sopa, de Amélia Muge (que, tal como<br />

Lula Pena e outros convidados, possibilitaram mais alguns<br />

extraordinários momentos no mesmo concerto).<br />

O disco vem numa caixa de madeira, com reproduções<br />

de fotos antigas a amparar os poemas. Um bom começo,<br />

já a preparar outras ementas. Bom apetite.<br />

Título: Miri<br />

Autor e intérpretes: Bassekou Kouyate & Ngoni Ba<br />

Edição: Outhere Records | vgm@plurimega.com<br />

se toca na África Ocidental. Na sua música e na forma<br />

como usa o ngoni, Kouyate alia a inspiração tradicional<br />

com a recriação contemporânea e a sua mestria.<br />

Este disco, cujo título (Miri) significa “sonho” ou<br />

“contemplação” em bambara, começa com o belo Kanougnon<br />

(Amor). Nele, diz a curta apresentação, Kouyate<br />

privilegia os temas do amor, da amizade e dos<br />

“valores verdadeiros em tempos de crise”. Originário<br />

de Garana, aldeia na <strong>mar</strong>gem do rio Níger, Bassekou<br />

Kouyate capta, nos diferentes temas, essa pureza que,<br />

sem nos deixar nostálgicos de um “bom selvagem”<br />

impossível, nos recorda gestos e silêncios de uma dimensão<br />

humana que por vezes esquecemos.<br />

Apoiar o centro<br />

juvenil de Hawassa<br />

(Etiópia)<br />

Os Missionários Combonianos<br />

da Etiópia estão a construir um<br />

centro de animação missionária,<br />

promoção vocacional e formação<br />

juvenil em Hawassa, uma<br />

cidade localizada a cerca de 300<br />

quilómetros a sul de Adis-Abeba,<br />

a capital. Será um espaço ao serviço<br />

dos jovens das paróquias da<br />

região e será utilizado para reuniões,<br />

encontros de oração, ateliês<br />

de formação religiosa, catequética<br />

e litúrgica. Procura-se, assim,<br />

colaborar na formação integral,<br />

humana e cristã, dos jovens e<br />

acompanhá-los no processo de<br />

discernimento vocacional.<br />

A revista Além-Mar gostaria de<br />

apoiar o centro juvenil de Hawassa<br />

(Etiópia). Com o Projecto<br />

2/2019, contando com a generosidade<br />

dos seus leitores, propõe-<br />

-se contribuir com 5000 euros.<br />

Os leitores que desejam participar<br />

podem mandar as suas contribuições,<br />

como habitualmente, por<br />

cheque bancário, vale postal ou<br />

transferência bancária para o IBAN<br />

PT50 0007.0059.0000.0030.0070.9<br />

(neste caso devem indicar-nos de<br />

imediato – editalem<strong>mar</strong>@netcabo.pt<br />

ou 213 955 286 – que a transferência<br />

se destina ao Gesto Solidário).<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


aps povos e culturas<br />

novela gráfica<br />

KUGALI: A ALTERNATIVA<br />

AFRICANA A MARVEL<br />

Cansados de serem outros a contar as histórias africanas,<br />

três amigos decidiram criar a própria antologia de heróis<br />

e heroínas em banda desenhada. Com um reportório<br />

procedente de dez países do continente, esperam que a<br />

colecção Kugali contribua para a criação de outros relatos<br />

sobre a África, construtivos e sem preconceitos.<br />

Texto: Sebastián Ruiz-Cabrera, jornalista<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


Os obstáculos da indústria<br />

global são pesados e colocar<br />

nas estantes das lojas<br />

personagens que não sejam<br />

do mundo fantástico da Marvel<br />

ou de outras multinacionais semelhantes<br />

é uma tarefa difícil. Contudo,<br />

os criadores de novelas gráficas<br />

t Razor-Man, obra de Bill Masuku, do<br />

Zimbabué, apresenta a história de um<br />

super-herói que vigia a ordem estabelecida.<br />

Em baixo: Under a Jovian Sun,<br />

de Kenneth Shofela Coker (Nigéria),<br />

ambientada em Marrocos no ano de<br />

2125 e conta a história de um grupo<br />

de rapazes que tenta sobreviver nas<br />

ruas de Kebbah<br />

em África têm cada vez mais peso,<br />

graças sobretudo às novas estéticas<br />

e histórias que propõem. «Aos Africanos<br />

fascina-os a banda desenhada.<br />

No entanto, eles estão cansados de<br />

ver as suas culturas descritas num<br />

modo caricaturado e ofensivo», afirmam<br />

em colectivo e por correio electrónico<br />

os criadores de Kugali, uma<br />

obra antológica que reúne diferentes<br />

artistas e que apresenta diversas<br />

aproximações às realidades sociais<br />

africanas. Um trabalho com histórias<br />

que prestam homenagem ao passado,<br />

abraçam o presente e imaginam<br />

o futuro.<br />

A colecção, que se pode comprar<br />

pela Internet, apresenta mais de uma<br />

dúzia de criadores talentosos de dez<br />

países africanos e está dividida em<br />

dois produtos: uma edição geral, projectada<br />

para todas as idades, e uma<br />

chamada Raki, criado para leitores<br />

que preferem histórias um pouco<br />

mais obscuras e sangrentas. Definitivamente,<br />

um conjunto de histórias<br />

que engloba géneros como a fantasia<br />

urbana, a ficção científica, a mitologia<br />

africana ou os super-heróis.<br />

Mas faz-se boa banda desenhada<br />

na África? Ziki Nelson, um dos criadores<br />

deste projecto, responde: «Esta<br />

pergunta levou-nos a uma viagem<br />

de descobertas e, três anos depois,<br />

trouxe-nos até aqui. Kugali uniu alguns<br />

dos artistas mais talentosos do<br />

continente africano e da diáspora,<br />

nomeadamente da Nigéria, Quénia,<br />

Zimbabué, Zâmbia, Senegal, Ca<strong>mar</strong>ões,<br />

Uganda, Venezuela, Brasil, Estados<br />

Unidos ou Reino Unido.»<br />

Representar a África<br />

Tanto Ziki Nelson como os outros<br />

dois co-fundadores, Tolu Olowofoyeku<br />

e Maculay Alvarez, têm muitas<br />

razões para desenvolver Kugali;<br />

mas coincidem em que a motivação<br />

principal era que nenhuma das bandas<br />

desenhadas estrangeiras mais<br />

populares representava as múltiplas<br />

culturas africanas. E, então, em vez<br />

de cair na autocompaixão, Nelson<br />

e a sua equipa envolveram-se numa<br />

u<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


povos e culturas<br />

p Kayin and Abeni, de Juni Ba (Senegal),<br />

é uma banda desenhada de<br />

aventuras de ficção científica inspirada<br />

na cultura e na estética africana<br />

missão que procura juntar o melhor<br />

do cenário do lápis e da cor. «Senti<br />

um imenso orgulho ao ver tantos artistas<br />

e escritores da África e da sua<br />

diáspora a difundir as nossas culturas<br />

e criatividade por meio da arte<br />

e da narração de histórias», explica<br />

Nelson. Embora a maioria dos seus<br />

colaboradores sejam do Quénia, Nigéria<br />

e Zimbabué, este nigeriano é<br />

optimista e considera que, proximamente,<br />

poderá ampliar o projecto a<br />

mais países. «A coisa mais importante<br />

é que as bandas desenhadas que<br />

nós mostramos estão ambientadas<br />

na África e são criadas por africanos»,<br />

sublinha.<br />

Mas uma coisa é evidente: na Nigéria,<br />

pagar as facturas só com o que<br />

se ganha pela realização de novelas<br />

gráficas não é fácil. Com 25 anos,<br />

Etubi Onucheyo, o criador de Mumu<br />

Juju, explica que o apoio da família<br />

foi fundamental. «Eu queria fazer<br />

um curso de Economia ou algo semelhante,<br />

mas o meu pai olhou para<br />

as minhas qualificações e disse-me:<br />

“Vem cá, meu menino. Tu podes estudar<br />

Economia, mas de acordo com<br />

as notas da escola primária, aquilo<br />

em que mais te destacas são as artes.<br />

p Orò, criado por Gbenle Maverick<br />

(Nigéria), é uma distopia moderna ambientada<br />

na Nigéria e na qual se narra<br />

a história de um jovem príncipe que é<br />

enviado ao bosque pelo seu pai e ali<br />

aprende magia. Em baixo, Mumu Juju,<br />

obra de Etubi Onucheyo (Nigéria), que<br />

acompanha as aventuras rebeldes de<br />

Mortar e Pestle<br />

p Iku, da autoria de Ziki Nelson (Nigéria),<br />

é uma fantasia que se desenvolve<br />

na África Ocidental e narra a vida de<br />

um guerreiro africano amaldiçoado<br />

Faz, portanto, algo que te motive e<br />

apaixone e que te cause menos stress.”<br />

E assim fiz, mas, realmente, os começos<br />

foram muitos difíceis.»<br />

Outro exemplo é o artista Juni Ba,<br />

de 26 anos. Este senegalês gosta de<br />

duas coisas: sumo de laranja e desenhar<br />

monstros. Com a sua banda<br />

desenhada Kayin e Abeni, apresenta<br />

um mundo futurista, no qual a tecnologia<br />

e os dispositivos estão desgastados<br />

e, ao mesmo tempo, são resistentes.<br />

«De algum modo», explica,<br />

«o que represento é aquilo que Dacar<br />

simboliza para mim. Há carros que<br />

são destruídos, lugares com muito<br />

lixo, sol e calor... Mas isto não é, necessariamente,<br />

um problema, senão<br />

que, muitas vezes, é uma oportunidade<br />

e dá muita personalidade à história.»<br />

Bill Masuku, do Zimbabué, apresenta<br />

a história de Razor-Man, um<br />

super-herói que vigia a ordem estabelecida.<br />

Um piscar de olho às grandes<br />

personagens norte-americanas<br />

que salvaram o mundo dos vilãos<br />

em mais do que uma ocasião. Mas,<br />

além disso, relaciona-se com a situação<br />

que, actualmente, se vive no seu<br />

país. E porque decidiu usar a banda<br />

desenhada para contar esta história?<br />

«Há algo de íntimo na realização de<br />

uma banda desenhada», explica Masuku.<br />

«Cada vinheta é um momento<br />

suspenso no tempo no qual criamos<br />

um mundo que funciona como uma<br />

ponte entre a mente do leitor e o<br />

autor. De modo diferente de um romance,<br />

a banda desenhada leva-nos<br />

um passo mais adiante e eu quis seduzir<br />

as pessoas com Razor-Man.» am<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


apontamentos<br />

a páscoa veio tarde?<br />

© 123RF<br />

P. e Fernando Domingues<br />

Missionário comboniano<br />

Com a morte e<br />

ressurreição de<br />

Jesus<br />

Cristo, Deus<br />

beneficia toda<br />

a humanidade.<br />

Este ano a Páscoa caiu tarde! Era<br />

assim que costumávamos dizer<br />

quando calhava, como este ano,<br />

quase nos finais de Abril. E a<br />

propósito da Páscoa tarde ou cedo, estive<br />

numa discussão, há pouco, em que alguém<br />

tinha dificuldade em compreender<br />

como Deus tinha esperado tanto tempo<br />

antes de enviar Jesus Cristo ao mundo<br />

para nos salvar. Até há pouco tempo<br />

pensava-se que os primeiros seres humanos<br />

tinham vivido há cinco ou talvez<br />

sete mil anos, e alguém fazia contas para<br />

ver quantos milhões de pessoas viveram<br />

antes que a salvação de Cristo chegasse<br />

a este mundo. Outros argumentavam<br />

que mesmo se eram muitos, os membros<br />

da humanidade que vão viver depois da<br />

morte e ressurreição de Cristo serão muitíssimos<br />

mais.<br />

É fácil ver que uma discussão destas<br />

não tem solução possível. A verdadeira<br />

pergunta é: Jesus morreu e ressuscitou<br />

para salvar só uma parte da humanidade,<br />

ou para dar a toda a família humana,<br />

de todos os tempos e<br />

lugares, a possibilidade<br />

de entrar em comunhão<br />

com Deus? Porque o<br />

que chamamos “salvação”<br />

é isso mesmo: a<br />

possibilidade de entrar<br />

em comunhão com<br />

Deus de maneira tal que<br />

todos, gente de sucesso e<br />

também os falhados da<br />

vida, possamos chegar à<br />

plenitude da vida.<br />

Jesus disse-o um<br />

dia de maneira muito<br />

bonita: «Eu vim para que<br />

todos tenham vida e a<br />

tenham em plenitude.»<br />

Com a sua morte<br />

e ressurreição, Jesus<br />

introduziu a vida de<br />

Deus – que ele tinha em<br />

si (Col 1,19) – em todas<br />

as situações humanas,<br />

mesmo as do mais desgraçado<br />

e triste sofrimento, como a cruz<br />

que ele mesmo sofreu.<br />

Essa presença de Deus que dá vida<br />

beneficia só quem vive depois de Cristo?<br />

Parece que Deus estaria a cometer uma<br />

injustiça para com a parte excluída da<br />

humanidade! Beneficia só quem acredita<br />

nele? Outra injustiça: quanta gente que<br />

não acredita em Cristo e não tem culpa<br />

nenhuma disso!<br />

A verdade é que Jesus morreu e ressuscitou<br />

por todos, seja os que vivem depois<br />

da sua vinda, seja os que viveram antes.<br />

Quando era pequeno, gostava de subir<br />

a uma lomba de areia, muito alta, que<br />

ficava perto de casa. Lá de cima conseguia<br />

alcançar com a vista uma grande<br />

distância, olhasse para norte ou para sul,<br />

para o lado do <strong>mar</strong> ou em direcção à<br />

serra... A morte e ressurreição de Cristo<br />

é para Ele como aquela lomba alta, é um<br />

acontecimento que tem lugar na nossa<br />

História há pouco mais de dois mil anos,<br />

mas é um acontecimento que se coloca<br />

também “acima da História” porque é<br />

uma acção de Deus. E para Deus toda a<br />

História da humanidade é presente; Deus<br />

não tem passado nem futuro, Deus vive<br />

num eterno presente. Quando ressuscita<br />

Cristo, Deus “alcança com o seu olhar”<br />

todo o nosso passado e todo o nosso<br />

futuro. É por isso que podemos dizer<br />

que com a morte e ressurreição de Jesus<br />

Cristo, Deus beneficia toda a humanidade,<br />

quem viveu antes de Cristo, como<br />

quem vai viver muitos séculos mais tarde.<br />

O Calvário é como aquela lomba alta, no<br />

meio da nossa História.<br />

É claro que ainda fica a outra pergunta:<br />

se Cristo ressuscitou por todos, que diferença<br />

há entre os que acreditam nele e os<br />

que não acreditam porque seguem outra<br />

religião ou porque não seguem nenhuma?<br />

Já lá havemos de chegar. Por agora<br />

ficamos com a certeza de que Cristo veio<br />

na hora certa, nem cedo nem tarde. Era<br />

simplesmente aquela que Jesus gostava de<br />

cha<strong>mar</strong> «a minha hora» (Jo 2,4), a hora<br />

que o Pai do Céu tinha estabelecido (Jo<br />

17,1). E veio para todos! am<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


vocação e vida<br />

Susana Vilas Boas | Investigadora e leiga comboniana<br />

a vocação como garante<br />

de humanidade<br />

A vocação é dom para a humanidade e garantia de<br />

humanização de cada ser humano.<br />

Durante muito<br />

tempo, falar<br />

de vocação era<br />

falar apenas de<br />

algumas vocações específicas.<br />

Este era um conceito<br />

reservado para uma elite<br />

de santos que recebiam<br />

um chamamento especial<br />

e cuja santidade, que já<br />

lhes era inerente, lhes<br />

permitia responder afirmativamente<br />

ao chamado.<br />

No entanto, sabemos que<br />

a vocação é algo mais.<br />

Esta não se reduz nem a<br />

determinados caminhos<br />

de vida, nem a determinado<br />

género de pessoas.<br />

A vocação, porque dom<br />

de Deus, é (paradoxal<br />

e extraordinariamente)<br />

humana!<br />

A vocação é dom para<br />

a humanidade e é garantia<br />

de humanização<br />

de cada ser humano. Só<br />

assim se consegue atingir<br />

a amplitude da vocação<br />

como algo libertador, e<br />

não redutor, da própria<br />

existência humana.<br />

A vocação não é dirigida<br />

a uma elite, mas a todos e,<br />

se se pretender encontrar<br />

um denominador comum<br />

a toda a vocação (na sua<br />

pluralidade de caminhos),<br />

encontramos o próprio<br />

Deus e a característica<br />

indelével de esta existir<br />

sempre para o bem comum.<br />

De facto, a vocação<br />

não se compagina com o<br />

egocentrismo, antes nela<br />

habita intrinsecamente a<br />

dimensão do serviço, do<br />

amor a Deus e do amor a<br />

toda a humanidade.<br />

Neste sentido, São Daniel<br />

Comboni apresenta-<br />

-se na vanguarda desta<br />

essência da vocação ao<br />

afir<strong>mar</strong> que «chegou o<br />

tempo em que a humanidade<br />

inteira, que é o povo<br />

de Deus, já não deve for<strong>mar</strong><br />

mais que um só rebanho<br />

sob o cajado do Bom<br />

Pastor (Escritos, n.º 1643).<br />

Para ele, este é o segredo<br />

que se esconde e alimenta<br />

toda a vocação. Só assim<br />

se compreende que o missionário<br />

tenha percorrido<br />

tantas vezes a Europa em<br />

busca de vocações para a<br />

missão africana. Ele não<br />

procurava nenhuma elite<br />

específica, mas batia a<br />

todas as portas chamando<br />

tudo e todos a um serviço<br />

à missão, de acordo com<br />

a especificidade da vida e<br />

vocação de cada um.<br />

Se pensarmos bem, Jesus,<br />

ao longo da Sua vida<br />

terrena, chamou todos a<br />

Si, respeitando, porém,<br />

aquilo que cada um era.<br />

© jude-beck-unsplash<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


No seguimento do Seu<br />

chamamento, vemos<br />

jovens, velhos, crianças,<br />

homens e mulheres, em<br />

relação com Ele, independentemente<br />

do caminho<br />

de cada um (ricos, pobres,<br />

solteiros, casados, comprometidos<br />

com o templo,<br />

pagãos, etc.). O dom<br />

específico da vocação de<br />

cada um encontrava o seu<br />

clímax no encontro com<br />

Deus e na vida concreta<br />

ao serviço da humanidade<br />

(Mt 22,37-39). Hoje,<br />

o dinamismo vocacional<br />

rege-se pelo mesmo<br />

princípio, não existindo<br />

vocações iguais (apesar de<br />

algumas vocações se assemelharem),<br />

todas, pessoal<br />

e comunitariamente,<br />

convergem para Deus e,<br />

consequentemente, para<br />

a humanidade que nos<br />

habita e para aquela que<br />

nos rodeia.<br />

Vocação: selo<br />

de humanidade<br />

O que é a vocação senão<br />

aquilo que autentica a<br />

nossa existência? Que<br />

seríamos nós sem esta<br />

dimensão que dá sentido<br />

e configura a nossa vida?<br />

Estaríamos nós, por<br />

nós mesmos, à altura<br />

de nos realizarmos<br />

plenamente e mergulharmos<br />

no sonho<br />

de felicidade ao qual<br />

Deus nos chama?<br />

Sem o discernimento<br />

e vivência do<br />

dom da vocação, somos<br />

como barcos à deriva<br />

em alto-<strong>mar</strong>: estamos<br />

perdidos, sem orientação,<br />

não sabemos nem onde<br />

estamos nem para onde<br />

vamos... pouco a pouco,<br />

deixamos até de saber<br />

quem somos.<br />

A vocação autentica<br />

o ser humano enquanto<br />

pessoa que procura e se<br />

realiza nos diferentes<br />

momentos da sua vida.<br />

Esta autenticidade não<br />

advém, no entanto, de um<br />

caminho específico que se<br />

percorre. Antes, ela acontece<br />

em seguimento da essência<br />

de toda a vocação.<br />

Não é por acaso que São<br />

Paulo chama a atenção<br />

para que não existam<br />

rivalidades de caminhos<br />

(como se determinada especificidade<br />

fosse melhor<br />

que outra), uma vez que,<br />

por um lado, todas têm<br />

um dom particular que é<br />

único e necessário para<br />

o bem da humanidade<br />

(1Cor 12) e que, por outro<br />

lado, o importante não é o<br />

específico, mas a vivência<br />

e reconhecimento que<br />

todos somos simples servos<br />

e que cada um actua<br />

segundo a medida que<br />

o Senhor lhe concedeu<br />

(1Cor 3,5).<br />

Ser humano para uma<br />

maior humanidade<br />

Muitas vezes, somos<br />

levados a pensar que a vocação<br />

nos vai transfor<strong>mar</strong><br />

em algo que não somos:<br />

numa espécie de anjos<br />

ou de santos alheados da<br />

realidade que nos envolve<br />

e afastados daqueles<br />

que mais amamos. No<br />

entanto, o que acontece é<br />

precisamente o contrário.<br />

De facto, sem nos darmos<br />

conta, vamos crescendo e<br />

vivendo e ganhando uma<br />

certa propensão para nos<br />

considerarmos melhores<br />

do que outros, para<br />

desenvolvermos a convicção<br />

de que, senão sempre,<br />

temos normalmente razão<br />

naquilo que afirmamos<br />

u<br />

além-<strong>mar</strong> | Maio 2019


vocação e vida<br />

e nos posicionamentos<br />

que tomamos a respeito<br />

da vida e de quase tudo o<br />

que nos envolve.<br />

A vocação vem desconstruir<br />

esta ideia e, em<br />

vez de nos tornar mais<br />

“abstractos” ou alheios à<br />

realidade, leva-nos a uma<br />

descida interior, pouco<br />

a pouco, torna-nos mais<br />

humanos e, consequentemente,<br />

mais capazes de<br />

ouvir e de ir ao encontro<br />

do irmão, uma vez que,<br />

sem nos darmos conta,<br />

vivendo autenticamente a<br />

nossa humanidade (com<br />

todas as suas fragilidades<br />

e capacidades)<br />

conseguimos tocar<br />

e entrar em diálogo<br />

com a humanidade<br />

dos irmãos.<br />

Esta humanização<br />

conduz também a um<br />

reposicionar-se na<br />

relação com Deus, isto é,<br />

a uma nova configuração<br />

da própria relação, em<br />

que o que impera deixa<br />

de ser a vontade de que<br />

Deus se submeta às nossas<br />

vontades individuais,<br />

passando a existir, antes,<br />

o desejo de, com Ele,<br />

melhor realizar a própria<br />

existência ao serviço da<br />

humanidade.<br />

Este caminho da vocação<br />

só é possível, precisamente,<br />

porque esta não<br />

se reduz nem se destina a<br />

uma elite circunscrita. Ao<br />

contrário, ela é dom para<br />

todos, tornando todos<br />

extraordinariamente mais<br />

humanos, suscitando<br />

a cada um uma vivência<br />

mais autêntica «em<br />

benefício da humanidade<br />

e para a difusão e incremento<br />

da glória de Deus»<br />

(Escritos, n.º 512).<br />

A vocação: epifania<br />

do divino no coração<br />

humano<br />

Não podemos enganar-<br />

-nos e andar atrás de uma<br />

vocação que “vem de<br />

fora”, que se apresenta, de<br />

alguma maneira, virtualizada<br />

e, por isso mesmo,<br />

inalcançável. Nem podemos<br />

continuar a acreditar<br />

que ela está reservada só<br />

para alguns ou que a vocação<br />

à qual pensamos ser<br />

chamados a viver é uma<br />

vocação menor comparada<br />

com outras que, aos<br />

nossos olhos, parecem ser<br />

mais extraordinárias…<br />

Se a vocação fosse algo<br />

de abstracto ou apenas<br />

algo transcendente,<br />

nenhum ser humano<br />

poderia discerni-la,<br />

vivê-la ou amá-la.<br />

Por isso mesmo, a<br />

vocação reveste-se<br />

de humanidade na sua<br />

plenitude, permitindo,<br />

consequentemente, que<br />

nela se manifeste a acção e<br />

a magnificência de Deus.<br />

Se repararmos bem, como<br />

é que Deus levou a cabo a<br />

Sua missão Salvífica? Através<br />

da incarnação. Através<br />

da Sua humanização que<br />

se tornou capaz de resgatar<br />

toda a humanidade,<br />

libertando-a inclusive da<br />

escravidão da morte.<br />

É no coração humano<br />

que o divino acontece.<br />

É nele que a vocação tem<br />

espaço para ser acolhida,<br />

discernida e vivida. Negar<br />

a humanidade inerente à<br />

vocação é negar a própria<br />

possibilidade da sua existência,<br />

na medida em que<br />

é fechar as portas àquilo<br />

que verdadeiramente somos.<br />

É nesta humanidade<br />

que nos habita que Deus<br />

continua a oferecer-nos o<br />

dom da vocação e nos vai,<br />

incessantemente, segredando:<br />

«Tranquilizai-<br />

-vos! Não temais!» (Mt<br />

14,27). «No mundo, tereis<br />

tribulações; mas, tende<br />

confiança: Eu já venci o<br />

mundo!» (Jo 16,33) «E sabei<br />

que Eu estarei sempre<br />

convosco até ao fim dos<br />

tempos» (Mt 28,20). am<br />

Centro Vocacional Juvenil<br />

(CVJ)<br />

© 123RF<br />

Estão disponíveis para acompanhamento<br />

espiritual e vocacional:<br />

O P. e Ricardo Gomes, na Maia.<br />

Tlm: 916 656 857<br />

Correio electrónico:<br />

jovemissio@gmail.com; www.jim.pt<br />

O P. e Jorge Brites, em Lisboa.<br />

Correio electrónico:<br />

jimsulmccj@gmail.com<br />

<br />

2019 Maio | além-<strong>mar</strong>


campanha de solidariedade<br />

Em Moçambique, os Missionários<br />

Combonianos continuam a<br />

apoiar as vítimas do ciclone Idai,<br />

que deixou destruição, morte e<br />

sofrimento. Com a generosidade<br />

dos portugueses, já angariámos,<br />

até ao momento, 37 mil euros,<br />

que foram enviados para aquele<br />

país irmão. Na Beira, os Combonianos<br />

estão a assistir os afectados,<br />

nomeadamente através da<br />

distribuição de medicamentos,<br />

alimentos, lonas, material escolar<br />

para crianças órfãs e outros<br />

bens de primeira necessidade.<br />

A revista Além-Mar e os Missionários Combonianos continuam com esta campanha de<br />

solidariedade. Os donativos podem ser feitos para a conta bancária:<br />

PT50 0007 0059 0000 0030 0070 9.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!