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Publicação Mensal Vol. XXII - Nº <strong>254</strong> Maio de 2019<br />
Auxiliadora maternal e ápice<br />
de todas as maravilhas
Teodoro Reis<br />
Um varão de dores<br />
Francisco Barros<br />
OProfeta Jeremias foi aquele que mais<br />
chorou a queda de Jerusalém e, profeticamente,<br />
a Paixão e Morte de<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo. Neste sentido, é<br />
um dos profetas mais cheios de tristeza e de<br />
lamentações. Foi o profeta das lágrimas que<br />
melhor profetizou o pranto e a dor do Redentor<br />
e de sua Mãe Santíssima.<br />
Não há profeta que possa ser tomado a sério<br />
se não for um varão de dores. Ele tem<br />
que sofrer, mas não como os outros, porque<br />
precisa ser um ponto de atração e de concentração<br />
das dores. Estas confluem nele, e ele<br />
deve recebê-las e abraçá-las como Nosso Senhor<br />
abraçou a sua Cruz. O Profeta Jeremias<br />
abraçou esse sofrimento imenso para, de fato,<br />
realizar os desígnios da Providência.<br />
(Extraído de conferências de<br />
11/8/1967 e 16/9/1967)<br />
Profeta Jeremias - Notre-Dame de Montreal, Canadá.<br />
Ao fundo, Jesus atado à coluna da flagelação<br />
Catedral de Santa Maria, Ontário, Canadá.
Sumário<br />
Publicação Mensal Vol. XXII - Nº <strong>254</strong> Maio de 2019<br />
Vol. XXII - Nº <strong>254</strong> Maio de 2019<br />
Auxiliadora maternal e ápice<br />
de todas as maravilhas<br />
Na capa, Virgem com o<br />
Menino - Museu de Belas<br />
Artes de Lyon, França.<br />
Foto: Flávio Lourenço<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
ISSN - 2595-1599<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
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Tel: (11) 3932-1955<br />
Editorial<br />
4 Diante de Fátima,<br />
duas famílias de almas<br />
Piedade pliniana<br />
5 Viver para lutar ou<br />
morrer por Nossa Senhora<br />
Dona Lucilia<br />
6 União de almas entre<br />
Dona Lucilia e <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
De Maria nunquam satis<br />
9 Jesus vivendo em Maria<br />
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
14 O bom conhecimento da alma humana<br />
Perspectiva pliniana da História<br />
18 Considerações sobre o<br />
Brasil Império - III<br />
Calendário dos Santos<br />
24 Santos de Maio<br />
Preços da<br />
assinatura anual<br />
Comum .............. R$ 200,00<br />
Colaborador .......... R$ 300,00<br />
Propulsor ............. R$ 500,00<br />
Grande Propulsor ...... R$ 700,00<br />
Exemplar avulso ....... R$ 18,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
editoraretornarei@gmail.com<br />
Hagiografia<br />
26 Venerabilidade e espírito católico<br />
Apóstolo do pulchrum<br />
30 Contemplação do<br />
universo sideral<br />
Última página<br />
36 A mais fulgurante de todas as estrelas<br />
3
Editorial<br />
Diante de Fátima, duas<br />
famílias de almas<br />
Ante as afirmações, de uma grandeza apocalíptica, feitas por Nossa Senhora aos três pastorinhos<br />
de Fátima em 1917, o mundo vai se dividindo cada vez mais em duas famílias de almas. Uma<br />
considera que a humanidade é presa de um feixe de erros e iniquidades, as quais começaram<br />
na esfera religiosa e cultural com o humanismo, a Renascença e a Pseudo-Reforma protestante. Tais erros<br />
se agravaram com o iluminismo e o racionalismo, culminando na esfera política com a Revolução<br />
Francesa. Do terreno político passaram para o campo social e econômico, no século XIX, com o socialismo<br />
utópico e o socialismo dito científico. Com o advento do comunismo na Rússia, toda essa congérie<br />
de erros passou a ter um começo de transposição, incipiente, mas maciça, para a ordem concreta<br />
dos fatos, nascendo daí o império comunista, desde o coração da Alemanha até o Vietnã, e cuja unidade<br />
é indiscutível. Ao mesmo tempo, sobretudo a partir da Grande Guerra, a moralidade se pôs a declinar<br />
com rapidez espantosa no Ocidente, preparando-o para a capitulação ante o comunismo, o qual é<br />
a mais audaciosa expressão doutrinária e institucional da amoralidade. Para incontáveis almas de todos<br />
os estados, condições de vida e nações, que adotam este modo de pensar, a mensagem de Fátima é tudo<br />
quanto há de mais coerente com a Doutrina Católica e com a realidade dos fatos.<br />
Há também outra família de almas para a qual os problemas do mundo contemporâneo pouca ou<br />
nenhuma relação têm com a impiedade e a imoralidade. Nascem eles exclusivamente de equívocos<br />
involuntários resultantes de carências econômicas, e que uma boa difusão doutrinária e um conhecimento<br />
objetivo da realidade podem dissipar. Com o auxílio da ciência e da técnica a crise da humanidade<br />
se resolverá. Não havendo, como nota tônica das catástrofes e dos perigos em meio aos quais<br />
nos debatemos, o fator culpa, a noção de um castigo universal se torna incompreensível.<br />
Entre essas famílias de almas há muitas gamas. À medida que qualquer das correntes intermediárias<br />
se aproxima de um polo ou de outro, para ela se vai tornando compreensível ou incompreensível<br />
a mensagem da Santíssima Virgem. Fátima se encontra, pois, neste sentido, como um verdadeiro divisor<br />
de águas das mentalidades contemporâneas.<br />
Dar-se-ão os acontecimentos previstos em Fátima, e ainda não realizados até aqui? Em princípio,<br />
não há como duvidar. Pois o fato de uma parte das profecias já se haver realizado com impressionante<br />
precisão prova o caráter sobrenatural delas.<br />
Sobreleva notar que, na Cova da Iria, Nossa Senhora formulou duas condições, ambas indispensáveis<br />
para que se desviassem os castigos com que Ela nos ameaçava: a consagração da Rússia ao seu<br />
Coração Puríssimo e a divulgação da prática da Comunhão reparadora dos cinco primeiros sábados.<br />
Há ainda outra condição, implícita na mensagem, mas também indispensável: a vitória do mundo sobre<br />
as mil formas de impiedade e de impureza que o vêm dominando. Tudo indica que esta vitória não foi alcançada<br />
e, pelo contrário, nos aproximamos cada vez mais do paroxismo nesta matéria. E à medida que caminhamos<br />
para esse paroxismo, mais provável se vai tornando que rumemos para a efetivação dos castigos.<br />
A não serem vistas as coisas assim, a mensagem de Fátima seria absurda. Pois, se Nossa Senhora<br />
afirmou em 1917 que os pecados do mundo haviam chegado a tal cúmulo que clamavam pelo castigo<br />
de Deus, não pareceria lógico que esses pecados continuassem a crescer, o mundo se recusasse obstinadamente<br />
e até o fim a ouvir o que lhe foi dito em Fátima, e o castigo não viesse.<br />
Desde que não se operou no orbe a imensa transformação espiritual pedida na Cova da Iria, vamos cada<br />
vez mais caminhando para o abismo, e aquela transformação se vai tornando sempre mais improvável*<br />
* Cf. Bifurcação do mundo, em Última hora, 4/6/1982.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Piedade pliniana<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Viver para<br />
lutar ou<br />
morrer<br />
por Nossa<br />
Senhora<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> venera a imagem milagrosa de<br />
Nossa Senhora de Fátima, por ocasião de sua<br />
primeira peregrinação ao Brasil, em 1973<br />
ÓSenhora de Fátima, Rainha combatida e, por ora, aparentemente derrotada; Rainha<br />
das lágrimas hoje, Rainha vitoriosa amanhã; Virgem Imaculada, assim predestinada<br />
por Deus antes de todos os séculos, e venerada no tempo e na eternidade!<br />
Dai-nos a graça de que a consideração de vossa Mensagem, de vosso semblante e de vosso<br />
pranto desperte em nós a convicção de que a hora presente tem toda a gravidade trágica<br />
simbolizada por vossas lágrimas.<br />
Tornai presente às nossas almas a infâmia do pecado imenso de Revolução e a gravidade<br />
apocalíptica do castigo que este merece. E não permitais que essas considerações desfechem<br />
num sentimentalismo vago, o qual – hoje mais do que nunca – seria criminoso.<br />
Fazei-nos compreender que por vossas lágrimas quereis estimular-nos à luta entusiástica,<br />
heroica e incessante. De tal forma, ó Senhora, que desapareçam as escórias da Revolução em<br />
nossas almas e, em face de vossos inimigos, sejamos guerreiros inflexíveis, leões de Judá, verdadeiros<br />
continuadores, na Terra, dos Anjos que expulsaram do Céu os espíritos rebeldes.<br />
Fazei-nos homens de Fé, inteiramente puros, entusiasmados com as desigualdades harmônicas<br />
que constituem a ordem do universo; homens de disciplina e de abnegação, cujo<br />
pensamento dominante até a implantação de vosso Reino seja só este: É melhor morrer a viver<br />
numa Igreja e num mundo devastados e sem honra. Viver, minha Mãe, é viver para lutar<br />
ou morrer por Vós. Amém.<br />
(Composta em 1973)<br />
5
Dona Lucilia<br />
União de almas entre<br />
Dona Lucilia e <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Dona Lucilia produzia grande<br />
efeito sobre seu filho e, como mãe<br />
modelar, procurava estimular<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> naquilo que ele tinha<br />
de parecido com ela e incentivar<br />
o que possuía de diferente dela.<br />
Vendo-a, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> melhor<br />
compreendia as coisas da Igreja<br />
e da Civilização Cristã.<br />
Graças a Deus, a união entre<br />
mamãe e mim era realmente<br />
muito grande. Se eu a tomasse<br />
como pessoa e depois como<br />
minha mãe, eu notaria que enquanto<br />
pessoa, abstraindo da relação entre<br />
mãe e filho, havia entre nós afinidades<br />
enormes. Entretanto, existiam<br />
também alguns pontos que não eram<br />
de contraste, mas de diferença e que<br />
se explicavam por aquilo que a Providência<br />
queria de cada um de nós<br />
no decurso desta vida mortal.<br />
Uma espécie de<br />
telegrafia sem fio<br />
Ela deveria levar a vida na santa<br />
campânula do ambiente familiar e doméstico,<br />
com piedade e oração como<br />
era naquele tempo, educar os filhos,<br />
etc., com a elevação de vistas que lhe<br />
6
era própria. Eu, porém, era chamado<br />
para as borrascas e tempestades.<br />
É evidente que havia na alma dela,<br />
legitimamente, um movimento<br />
para concentrar, fechar, preservar,<br />
isolar, proteger; enquanto o meu<br />
movimento era o ímpeto para andar<br />
dentro da ventania, para atacar, ser<br />
atacado, enfim, para tocar a nossa<br />
gesta para a frente.<br />
O que criava, naturalmente, não<br />
entrechoques, mas diferenças de<br />
modo de ser que entram pelos olhos.<br />
Acontece que somando a condição<br />
de pessoa, de alma muitíssimo afim à<br />
minha, à condição de mãe, eu era levado<br />
a achar que ela era dotada de<br />
uma espécie de cognição exatíssima,<br />
muito delicada, de uma precisão extraordinária<br />
daquilo que era eu enquanto<br />
eu, e mesmo no que era diferente<br />
dela. E aquilo ela queria, mesmo<br />
quando não entendia inteiramente.<br />
E fazia um esforço para apoiar e<br />
incentivar que eu fosse eu. Procurava,<br />
por esta forma, completar-me de<br />
dois modos: estimular-me no que eu<br />
tinha de parecido com ela e estimular<br />
no que possuía de diferente dela.<br />
Entrava aí uma graça qualquer<br />
que não era apenas a dela como católica,<br />
mas é a graça como mãe.<br />
Uma mãe modelar, muito extremosa<br />
e na qual esse relacionamento mãe e<br />
filho tomava alguma coisa de parecido<br />
com causa e efeito. Ela via até o<br />
fundo o que estava em minha alma.<br />
Às vezes por um olhar, um timbre<br />
de voz, uma pequena oferta: “Você<br />
quer aquilo?”, ou por uma carícia<br />
quando eu passava... Era toda uma<br />
espécie de telegrafia sem fio, que tinha<br />
o efeito que ela e eu nos entendíamos.<br />
Mamãe produzia um efeito<br />
sobre mim, mesmo quando ela estava<br />
numa outra sala e eu a ouvia falar;<br />
quando ela se encontrava numa outra<br />
casa, mas eu tinha conhecimento<br />
de que ela estava lá; e até mesmo<br />
quando ela se encontrava noutra cidade<br />
ou noutro país, mas eu sabia<br />
que ela estava sobre a face da Terra.<br />
Graças recebidas junto à<br />
sepultura de Dona Lucilia<br />
É curioso que quando ouço alguém<br />
me contar esta ou aquela graça<br />
que recebeu junto à sepultura dela<br />
no Cemitério da Consolação, não<br />
digo nada, mas fico prestando atenção<br />
e me lembrando. Enquanto a<br />
pessoa descreve como a graça se fez<br />
sentir nela, como a guiou, a apaziguou,<br />
a estimulou, numa palavra, a<br />
iluminou e a ordenou, eu me recordo<br />
enormemente da ação de presença<br />
que ela desenvolvia sobre mim.<br />
Muito parecida com isso.<br />
Portanto, para mim tem um duplo<br />
sentido: o benefício feito às pessoas,<br />
mas também algo por onde ela como<br />
que me diz: “Meu filho, você se lembra?<br />
Eu continuo sempre a mesma, estou<br />
lá, ajudo você e um dia nos veremos<br />
juntos. Esteja tranquilo, sereno, vá para<br />
a frente. No momento, não pense<br />
no dia em que nos encontraremos, mas<br />
sim neste resto de trajeto que você precisa<br />
percorrer, onde você ainda terá outras<br />
notícias minhas como essa.”<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1965<br />
Estou me lembrando de que há<br />
pouco tempo deu-se isso: era uma<br />
pessoa boa que eu encontrava de vez<br />
em quando, nos saudávamos, mas as<br />
coisas mantinham-se paradas. Num<br />
certo momento encontro com ele,<br />
noto que me olha de um modo especial<br />
e pensei: “Aqui tem uma graça<br />
da Consolação.”<br />
Eu nada lhe disse. Uns dias depois,<br />
ele se encontra comigo, me diz<br />
qualquer coisa e acrescenta: “O senhor<br />
sabe, estive no Cemitério da<br />
Consolação. Eu estava ali rezando –<br />
e pelo gesto dele deu a entender que<br />
eram orações de rotina – quando de<br />
repente, não sei o que se passou em<br />
mim, meu horizonte se abriu. Compreendi<br />
tão bem uma série de coisas<br />
que eu não tinha entendido, vi<br />
tão bem coisas que eu não tinha visto,<br />
que me sinto outro! E no convívio<br />
com o senhor sinto um outro convívio<br />
que não era o de antigamente.”<br />
E aí me disse algumas coisas a respeito<br />
dele. De fato, quando no primeiro<br />
momento eu notei nele essa<br />
transformação, pensei: “Aí tem graça<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
7
Dona Lucilia<br />
do Cemitério da Consolação”. Depois<br />
refleti: “Dir-se-ia que ele fisicamente<br />
viu mamãe durante um momento”.<br />
Vendo-a, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> melhor<br />
compreendia a Igreja e<br />
a Civilização Cristã<br />
Mas eu quero descrever o efeito<br />
de alma que senti inúmeras vezes<br />
vendo a ela. Para responder a uma<br />
pergunta de como era o meu relacionamento<br />
com ela, aqui fica bem encaixada<br />
a resposta.<br />
O fato concreto é que isso se desenvolveu<br />
da seguinte maneira: vendo-a,<br />
eu melhor compreendia as coisas<br />
da Igreja e da Civilização Cristã.<br />
Hoje em dia, em que cheguei a<br />
um longo convívio, graças a Deus<br />
e a Nossa Senhora, com a Igreja,<br />
compreendendo, portanto, melhor<br />
– também tal seria! – do que<br />
no tempo em que eu era pequeno,<br />
aquilo que em alguma medida foi<br />
reflexo de mamãe; hoje se reflete da<br />
sua memória e serve para me lembrar<br />
dela.<br />
Outro dia, quando estivemos na<br />
Igreja Coração de Jesus, quase que<br />
por todos os lugares eu contemplava<br />
primeiramente a igreja, mas depois<br />
me parecia ver os estados de alma de<br />
mamãe por toda parte. Isso compunha<br />
enormemente a recordação que<br />
eu levava dela.<br />
É preciso dizer que não são muitas<br />
as ocasiões em minha vida em<br />
que ela interveio para afastar ou resolver<br />
tal provação ou dificuldade,<br />
em que eu possa dizer que tenha pedido<br />
a intervenção de mamãe e senti<br />
que ela interveio. Mesmo em sua vida<br />
terrena, não são muitos os fatos<br />
em que ela interveio com um conselho,<br />
um ato ou qualquer coisa assim.<br />
Era muito mais uma ação sobre mim<br />
para me pôr em proporção com os<br />
acontecimentos, do que desviá-los.<br />
Mas isso é, de longe, o mais precioso!<br />
E ela o fazia intensamente.<br />
A palavra humana nunca<br />
esgota inteiramente a realidade<br />
Ser-me-ia difícil dizer mais do que<br />
eu disse. Realmente raspei o fundo<br />
das possibilidades da palavra humana.<br />
A minha palavra esbarra numa<br />
insuficiência de expressão. Seria como,<br />
por exemplo, quem tomasse um<br />
topázio azul e o pusesse contra a luz.<br />
O topázio de si não pode dar a não<br />
ser o que está nele!… Podem-se fazer<br />
jogos de luz com ele, mas dará<br />
somente o que está nele. Também no<br />
que diz respeito a meu convívio com<br />
mamãe, eu não saberia dizer mais.<br />
Imaginem que alguém lhes perguntasse<br />
que impressão tem olhando<br />
para a foto do Quadrinho 1 . São<br />
muitas impressões, mas que chegam<br />
ao indizível. Ao cabo de alguns momentos,<br />
não se sabe mais o que dizer.<br />
Tem-se muito que falar, mas não<br />
se sabe mais dizer, porque a palavra<br />
humana nunca esgota inteiramente a<br />
realidade.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na década de 1980<br />
Aliás, uma das coisas que torna<br />
bela a palavra humana é exatamente<br />
o fato de que ela, no fundo de tudo<br />
quanto diz, tem algo que não diz<br />
e que se entrevê com a ajuda do que<br />
ela diz. Isso dá à palavra uma beleza<br />
especial.<br />
Compreendo que me perguntem:<br />
“Mas entrando mais a fundo na floresta,<br />
o que existe?”<br />
Respondo: “Árvores!” O que posso<br />
dizer?<br />
Quem sabe se num outro dia essas<br />
recordações, postas debaixo de outra<br />
luz, com outro ângulo, apresentam<br />
novas refrações e eu possa dizer algo<br />
a mais.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
28/10/1980)<br />
1) Quadro a óleo, que muito agradou a<br />
<strong>Dr</strong> . <strong>Plinio</strong>, pintado por um de seus<br />
discípulos, com base nas últimas fotografias<br />
de Dona Lucilia. Cf. <strong>Revista</strong><br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 119, p. 6-9.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
8
De Maria nunquam satis<br />
Daniel Jolivet (CC3.0)<br />
Vista panorâmica de Blois,<br />
no Rio Loire, França<br />
Jesus vivendo<br />
EspéSiet (CC3.0)<br />
em Maria<br />
Nossa Senhora das Ajudas<br />
Igreja de Saint-Saturnin<br />
de Blois, França<br />
Nossa Senhora deseja conceder-<br />
-nos muito mais do que pedimos e<br />
até o que não sabemos pedir. Mas é<br />
preciso rogar a Ela com a intimidade<br />
e a certeza de sermos atendidos como<br />
se fôssemos uma criança de colo.<br />
Comemora-se em Blois, na França,<br />
a festa de Nossa Senhora<br />
das Ajudas, a respeito da qual<br />
há a seguinte nota aqui consignada:<br />
Cidade onde a heresia<br />
jamais penetrou<br />
A devoção à Santíssima Virgem da<br />
cidade de Blois, onde a heresia jamais<br />
penetrou, é grande e sincera.<br />
É importante que a heresia jamais<br />
tenha penetrado lá, porque houve<br />
um período de calvinismo agudo na<br />
França em que mais ou menos em todas<br />
as cidades, no século XVI, o protestantismo<br />
penetrou em quantidade<br />
maior ou menor. Que Blois tenha ficado<br />
isenta dessa lepra é uma coisa<br />
excelente e digna de nota, e se relaciona<br />
adequadamente com a grande<br />
devoção que essa cidade sempre teve<br />
para com Nossa Senhora.<br />
Seus habitantes, reconhecidos a tão<br />
magnânima Senhora, deram-Lhe o título<br />
de Nossa Senhora das Ajudas, pela<br />
proteção constante da Virgem que<br />
se faz sentir, não só nos tempos das<br />
heresias e pestes, mas também em outras<br />
circunstâncias trágicas.<br />
Portanto, a cidade sempre reconheceu<br />
ser especialmente protegida<br />
pela Santíssima Virgem. Assim constituiu-se<br />
a invocação de Nossa Senhora<br />
das Ajudas.<br />
Em 1784, as águas do Loire que<br />
banham Blois ameaçavam submergir<br />
a cidade. O povo, unido, recorreu à<br />
sua intercessora e, durante a Missa, no<br />
9
De Maria nunquam satis<br />
Flavio Lourenço<br />
uma palavra amiga. Eis porque, por<br />
exemplo, Nosso Senhor quis que seus<br />
Apóstolos estivessem acordados e vigiassem<br />
no Monte das Oliveiras. Ele<br />
desejava o apoio, a doçura da amizade<br />
na tribulação na qual estava.<br />
Assim, nas angústias Nossa Senhora<br />
é bondosa porque nos socorre<br />
nas tribulações e perigos.<br />
Há em São Paulo uma capelinha<br />
com um lindo título: Nossa Senhora<br />
dos Aflitos. É a Virgem Maria invocada<br />
enquanto tendo pena, sendo clemente<br />
e misericordiosa para aqueles que se<br />
encontram em toda espécie de aflições.<br />
Quando se trata de uma aflição que<br />
Nossa Senhora pode remover sem diminuir<br />
com isso o benefício espiritual<br />
da pessoa, Ela remove. Sendo uma<br />
aflição que, na sua sabedoria, Maria<br />
Santíssima julga necessária para essa<br />
mesma finalidade, Ela arranja um jeito<br />
de a pessoa ter mais força, de sentir<br />
a doçura d’Ela, de poder resistir melhor<br />
àquela aflição. Esta é a ideia que<br />
vem externada nesta e em tantas outras<br />
devoções à Mãe de Deus.<br />
Um ícone bizantino<br />
muito significativo<br />
Oração no Horto - Museu de Arte Sacra, Osuna, Espanha<br />
momento da elevação, as águas começaram<br />
a descer rapidamente, até o<br />
rio voltar ao seu leito normal.<br />
Ora, uma inundação decorre de<br />
causas complexas que atuam com<br />
certo vagar. De maneira que é difícil<br />
que a água desça tão rapidamente.<br />
Temos, pois, a conjunção de dois<br />
fatores: de um lado, Maria Santíssima<br />
protegendo nas necessidades<br />
materiais, e de outro, tomando essa<br />
proteção como um meio para encaminhar<br />
as almas à ideia de que Ela<br />
ampara também nas necessidades<br />
espirituais. Este é o auxílio de Nossa<br />
Senhora, o qual se manifesta aqui especialmente<br />
no dom inestimável da<br />
ortodoxia concedido a essa cidade<br />
preservada de modo insigne.<br />
Maria Santíssima nos<br />
socorre nas angústias,<br />
tribulações e perigos<br />
Relaciona-se com isso o seguinte<br />
pensamento de Santo Ildefonso:<br />
Ó Virgem Maria, sois clemente em<br />
nossas necessidades, doce em nossas<br />
tribulações, boa em nossas angústias,<br />
pronta a nos socorrer em nossos perigos.<br />
Esta frase está muito bem calculada,<br />
porque em relação às necessidades<br />
é preciso ter pena, de onde vem<br />
exatamente a clemência, pela qual<br />
uma pessoa é tocada pelo infortúnio<br />
e apuro que outrem está passando.<br />
Então, torna-se generosa.<br />
Nas tribulações, a pessoa quer doçura,<br />
encontrar um amparo, um apoio,<br />
Mais especialmente esta ideia se<br />
exprime no culto a Nossa Senhora<br />
Auxiliadora. Para compreendermos<br />
cada vez melhor esta devoção, seria<br />
interessante fazer aqui o comentário<br />
de uma oração composta pelo famoso<br />
Padre Condren, varão de alta espiritualidade<br />
da França, completada<br />
por Monsenhor Olier e enriquecida<br />
por Pio IX, em 1853, com trezentos<br />
dias de indulgência.<br />
Esta oração foi objeto de um comentário<br />
especial do venerável Padre<br />
Libermann, e também Dom Chautard<br />
tem alguns trechos em que ele<br />
a comenta lindamente, em função<br />
de um ícone bizantino que representa<br />
Nossa Senhora com um olhar recolhido<br />
em oração, onde se vê que Ela<br />
está contemplando ideias, conceitos,<br />
voltada para o mundo do espiritual e<br />
10
Helio G.K.<br />
do imponderável, e não para as coisas<br />
contingentes que A cercam.<br />
Ela está de mãos abertas, que era<br />
a atitude de quem rezava na antiga liturgia<br />
bizantina, e sobre o seu peito<br />
aparece um círculo, dentro do qual se<br />
encontra Jesus com o halo de santidade<br />
na cabeça, representado ainda como<br />
muito mocinho, quase um meninote,<br />
tendo um rolo de pergaminho<br />
na mão esquerda e a direita em atitude<br />
de quem está lecionando. É uma<br />
alusão à Encarnação do Verbo. Tendo<br />
em Si o Menino Jesus que, enquanto<br />
vivendo n’Ela é um Mestre, Nossa Senhora<br />
Se recolhe para ouvir os ensinamentos<br />
d’Ele em seu interior.<br />
Por outro lado, a atitude contemplativa<br />
da Santíssima Virgem é<br />
um ensinamento que Ela dá aos outros.<br />
De modo que aqui a mediação<br />
se exerce magnificamente. O Menino<br />
Jesus ensina a Nossa Senhora e,<br />
através d’Ela, instrui os de fora. O<br />
recolhimento d’Ela é docente.<br />
Este ícone representa precisamente<br />
o princípio de que, se temos vida interior<br />
e Jesus Cristo vive em nós pela<br />
piedade, pela vida sobrenatural, pela<br />
moral, pelo desejo de nos santificarmos,<br />
pela fidelidade à ortodoxia – que<br />
é um imperativo do primeiro Mandamento:<br />
amar a Deus sobre todas as<br />
coisas –, quando isto acontece, então<br />
Nosso Senhor Se serve de nós como<br />
de uma tribuna, um púlpito ou uma<br />
cátedra, e através de uma osmose que<br />
se nota em nossas palavras e em todo<br />
o nosso ser, Ele ensina aos outros.<br />
Jesus e Maria<br />
vivendo em outros<br />
Eu estava lendo uma biografia de<br />
São Francisco de Sales, na qual o autor<br />
Milagres de São João Maria Vianney - Ars, França<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na Fazenda de Amparo<br />
fazia observar que o Santo escreveu alguns<br />
livros excelentes, como a “Introdução<br />
à Vida Devota”, e outro muito<br />
bom, sem ser tão célebre, que é o “Tratado<br />
do Amor de Deus”. Pelas notas de<br />
sermões dele, verifica-se que eram exposições<br />
de pontos perfeitamente comuns<br />
da Doutrina Católica. Entretanto,<br />
as pessoas não se saciavam de ouvir.<br />
Um calvinista daqueles mais horrorosos<br />
foi ouvir o que ele dizia, e<br />
depois o interpelou, dizendo:<br />
— Ouvi o que o senhor disse. Quer<br />
que eu lhe diga francamente? Não<br />
compreendo sua fama. Não entendo,<br />
sobretudo, porque essas senhoras<br />
procuram tanto pelo senhor. Analisando<br />
suas palavras, afinal de contas,<br />
escrevendo, muitos já disseram o que<br />
o senhor afirma. O que há, portanto,<br />
de novo no que o senhor diz?<br />
Pois bem. O que havia era Jesus e<br />
Maria vivendo em São Francisco de<br />
Sales. Existia tal unção, tal vida interior,<br />
tal osmose da graça naquilo que<br />
ele dizia, que Deus falava através dele<br />
e dava uma fecundidade extraordinária.<br />
De onde vinha a fecundidade?<br />
Exatamente deste fato: a presença<br />
de Jesus e Maria em alguém,<br />
passando por osmose para outrem.<br />
São João Batista Maria Vianney<br />
era exatamente assim. Dom Chau-<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
11
De Maria nunquam satis<br />
tard conta que uma vez um advogado<br />
de Paris foi ver o Cura de Ars e,<br />
voltando para a sua cidade, alguém<br />
lhe perguntou:<br />
— O que você viu em Ars?<br />
Ele respondeu:<br />
— É muito simples. Eu vi Deus<br />
num homem.<br />
Aqui está a ideia da “inabitação”<br />
que não é física, evidentemente, não<br />
tem relação nem sequer com a presença<br />
real, mas é receber a graça e<br />
irradiá-la. A graça vem exatamente<br />
desta “inabitação” de Deus que Nossa<br />
Senhora teve com presença física,<br />
real e sobrenatural, em todos os<br />
graus e modos possíveis.<br />
Devemos ser leões que<br />
rugem contra o mal<br />
A este propósito, pediram-me<br />
para comentar a seguinte oração, e<br />
depois falarei de Nossa Senhora como<br />
Auxílio dos Cristãos, em função<br />
disso.<br />
Ó Jesus, que viveis em Maria, vinde<br />
e vivei em vossos servos: no espírito<br />
de vossa santidade, na plenitude de<br />
vossas forças, na perfeição de vossas<br />
vias, na verdade de vossas virtudes, na<br />
comunhão de vossos mistérios. Dominai<br />
sobre toda potestade inimiga em<br />
vosso espírito, para a glória do Padre.<br />
Amém.<br />
Jesus viveu em Maria e, por Maria,<br />
Ele se comunica aos homens.<br />
Nossa Senhora é o sacrário, o santuário<br />
de dentro do qual todas as<br />
graças se difundem para os homens.<br />
Ela é o templo do Espírito Santo,<br />
o tabernáculo onde está Nosso<br />
Senhor, e por causa disso devemos<br />
pedir a Jesus, enquanto vivente<br />
em Maria, pois é de dentro deste<br />
Templo que Ele quer receber nossas<br />
orações.<br />
Pedir o quê? Que Ele viva em nós.<br />
Ou seja, que tenhamos o espírito de<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo, um espírito<br />
todo ele santo, que é o espírito<br />
da Santa Igreja Católica Apostólica<br />
Romana. Portanto, o espírito contrarrevolucionário,<br />
expressão mais<br />
característica e radical do espírito da<br />
Santa Igreja.<br />
Além disso, roguemos a plenitude<br />
das forças de Nossa Senhora. Maria<br />
Santíssima é a Virgem forte, combativa,<br />
intransigente e absolutamente<br />
inflexível diante do demônio, do<br />
mundo e da carne. Devemos pedir<br />
essa força, que é intransigência, vigilância<br />
e iniciativa dentro da combatividade.<br />
Contra o quê? Primeiro, contra o<br />
que há de mal dentro de nós. Em segundo<br />
lugar, contra o mal que está<br />
fora. De maneira tal que sejamos leões<br />
rugindo contra o mal, como exatamente<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
foi o Leão de Judá, e como sua Mãe<br />
Santíssima, de Quem se diz que, sozinha,<br />
esmagou todas as heresias do<br />
mundo inteiro.<br />
Seguir de modo perfeito<br />
as vias de nossa vocação<br />
Depois, pedir a perfeição das vias<br />
de Jesus. Nosso Senhor é quem traça<br />
a via para cada um. E para nós indicou<br />
a via de nossa vocação. Muitos<br />
não sabem qual é a sua vocação e rolam<br />
pela vida como seixos do fundo<br />
de um rio. Nós, graças a Deus, sabemos<br />
qual é a nossa . A via para nós<br />
está clara. Devemos pedir a graça de<br />
segui-la de um modo perfeito, “na<br />
verdade de vossas virtudes”, portanto,<br />
não uma virtude fofa, balofa, inconsistente,<br />
mas autêntica, verdadeira<br />
e sincera. Esta é a vida de Jesus<br />
que se comunica a nós.<br />
Agora vem o pedido de uma ação<br />
contra nosso adversário:<br />
Dominai sobre toda potestade inimiga...<br />
Dominai o demônio, as forças do<br />
mundo que tentam arrastar-nos para<br />
o mal. Nós pedimos para nosso bem,<br />
é evidente, mas para a maior glória<br />
de Deus, pois queremos isto por<br />
amor a Ele.<br />
Mais do que o êxito do<br />
apostolado, precisamos<br />
querer nossa santificação<br />
Que relação tem esse comentário<br />
com a festa de Nossa Senhora<br />
Auxiliadora? O maior dos auxílios<br />
que Maria Santíssima pode nos<br />
dar é exatamente o de nos comunicar<br />
este espírito de santidade, esta<br />
força, esta perfeição de via, esta<br />
autenticidade de virtudes, esta<br />
comunhão de mistérios, esta vitória<br />
contra o demônio; e comunicar-nos<br />
tudo isso para nossa santificação.<br />
Acima de tudo, mais até<br />
do que o êxito do apostolado, queremos<br />
que cada um de nós se santifique.<br />
E para esta santificação, o<br />
auxílio de Nossa Senhora se opera<br />
por essa forma.<br />
O pensamento “Jesus vivendo<br />
em Maria” está muito ligado à noção<br />
de Nossa Senhora Auxiliadora.<br />
Ela apresenta-Se a nós, na imagem,<br />
com o Menino Jesus no braço<br />
para indicar a relação materna<br />
que Ela tem com seu Divino Filho,<br />
aquela relação de intimidade absoluta,<br />
de atender as últimas e menores<br />
dificuldades de uma criança,<br />
com aquele afeto, aquela bondade,<br />
que se tem, não para com o grande<br />
e o forte, mas para com o pequenino<br />
e o fraco.<br />
Já pensaram o que representava<br />
para Nossa Senhora ver uma criança<br />
chorar? Perceber que ela tinha frio<br />
ou fome, e saber que era Deus infinitamente<br />
poderoso, nobre, Criador<br />
d’Ela, ali chorando dentro do berço<br />
e pedindo o auxílio d’Ela, querendo<br />
ser tratado e adorado por Ela enquanto<br />
pequenino?<br />
De tal maneira está entranhada<br />
nessa intimidade entre ambos a ideia<br />
de que Ele é Filho d’Ela, que Jesus<br />
quis receber de Maria um culto meigo,<br />
miúdo, acessível, todo feito de<br />
carinho, porque na essência divina<br />
há um fundamento para isso.<br />
12
Como se fôssemos uma<br />
criança de colo...<br />
Isto fez da Santíssima Virgem a<br />
Mãe de todo o gênero humano. Nossa<br />
Senhora, Mãe de Jesus Cristo e<br />
de todos os cristãos, é Mãe do Corpo<br />
Místico de Cristo. E em relação<br />
a cada um de nós, a posição d’Ela é<br />
de querer que sejamos como meninos,<br />
como o filho carregado no colo<br />
que Lhe pede toda espécie de coisas,<br />
e a quem Ela dá muito mais do<br />
que pede, até mesmo o que não sabe<br />
pedir. Mas a condição é de rezar<br />
com aquela intimidade, com a certeza<br />
de ser atendido por Ela, como<br />
se fôssemos uma criança de colo. É<br />
a este título que Maria nos auxilia. É<br />
aquela multidão de auxílios concedida<br />
aos pequenos, muito mais do que<br />
aos grandes.<br />
Aqui está bem o traço filial da devoção<br />
a Nossa Senhora Auxiliadora<br />
e que estabelece uma linha de comunicação,<br />
de afinidade ou de identidade<br />
com a pequena via de Santa Teresinha<br />
do Menino Jesus. É a criança,<br />
o pequeno que cultua a Virgem<br />
Maria por esta forma, e com quem<br />
Ela quer ter relações assim. Debaixo<br />
deste ponto de vista se poderia dizer<br />
que o Reino dos Céus é dos meninos,<br />
e quem não for pequenino não<br />
entra nele.<br />
Na Igreja, as almas mais grandiosas,<br />
mais majestosas, mais fortes,<br />
mais extraordinárias, sempre que<br />
trataram da Santíssima Virgem Maria,<br />
falaram nesse diapasão. Mesmo<br />
quando disseram as coisas mais altas<br />
sobre Ela, tinham bem em mente ser<br />
a Mãe que desejava tratar a cada um<br />
deles com aquela bondade, aquela<br />
solicitude, aquele sorriso com que se<br />
trata um menino. Aqui está um aperçu<br />
da devoção a Nossa Senhora enquanto<br />
Auxiliadora. v<br />
Daniel A.<br />
(Extraído de conferência de<br />
23/5/1966)<br />
Nossa Senhora Auxiliadora<br />
13
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
O bom conhecimento<br />
da alma humana<br />
Tratando com o próximo, não devemos desde logo considerar<br />
seus defeitos, mas precisamos ter um conhecimento exato<br />
de quais são seus lados positivos, e pensar como seria<br />
aquela alma se correspondesse ao que deve ser.<br />
Para se ter um bom conhecimento<br />
da alma humana não<br />
se deve ir desde logo aprofundando<br />
na consideração dos defeitos.<br />
Essa é uma concepção detetivesca<br />
que para efeito de polícia terá sua<br />
utilidade, mas para nós não é a verdadeira.<br />
Procurar ver no outro o<br />
que ele tem de melhor<br />
É preciso, tratando com o próximo,<br />
ter um conhecimento exato de<br />
quais são os lados positivos, o que seria<br />
aquela alma se correspondesse ao<br />
que deve ser. A partir daí se faz uma<br />
medida do que a alma deveria ser e o<br />
que ela é, e se vê a diferença no que<br />
está faltando. Depois pode-se ter a<br />
consideração do que a pessoa infelizmente<br />
é, do que pode vir a ser, do mal<br />
para o qual ela tende. Mas a vista primeira<br />
que elucida todo o resto é o conhecimento<br />
do melhor aspecto da pes-<br />
14
soa. Eu acho que o espírito dos ditos<br />
argutos não vê isto, e por essa razão<br />
eles acabam vendo muito pouca coisa.<br />
Isso não é ingenuidade, porque não<br />
quer dizer que se imagine ser a pessoa<br />
como ela deveria ser, mas vê-se como<br />
ela deveria ser e não é. O que supõe na<br />
base da perspicácia uma generosidade<br />
de alma pela qual se é propenso a ver<br />
no outro o que ele tem de melhor, e<br />
não um rival, mas uma complementação<br />
de si próprio. Se a pessoa não tem<br />
esse estado de alma nunca chegará à<br />
verdadeira perspicácia.<br />
Há, portanto, um certo discernimento<br />
na base de todo conhecimento,<br />
por onde se vê, antes de tudo, o<br />
melhor aspecto da pessoa e algo que<br />
tocaria quase na pessoa utópica, em<br />
que ela fosse a plena medida de si<br />
própria, na promessa de Deus. A<br />
partir disso, então, é que vêm os vários<br />
graus de conhecimento.<br />
É muito importante esta impostação<br />
para conhecer as pessoas e saber<br />
agir em face delas, e ter assim o espírito<br />
retamente construído. Daí nasce<br />
um primeiro passo no caminho de<br />
uma ordem ideal realizável, que consiste<br />
em não se contentar com a vulgaridade,<br />
com a trivialidade, como sendo<br />
a própria face autêntica das coisas.<br />
Ao contrário, entender que a vulgaridade<br />
e a trivialidade são sempre deformações,<br />
pois nada é, ex natura propria,<br />
vulgar e trivial a não ser certas<br />
coisas materiais feitas por Deus para<br />
nos despertar a repulsa, pensar no Inferno,<br />
outras coisas assim; mas, de si,<br />
nada deve ser visto a não ser numa ordem<br />
cumeada que faz com que o justo<br />
viva de esperança e nunca perca, ao<br />
longo de sua vida, esse movimento de<br />
alma pelo qual ele trabalha continuamente<br />
para que todos e tudo se aproximem<br />
daquele ponto alto ideal.<br />
A arte, a cultura, o<br />
verdadeiro progresso<br />
Decorre daí uma visão de um plano<br />
de Deus sobre o conjunto das<br />
pessoas, das instituições, que é uma<br />
espécie de primeira elevação, primeiro<br />
salto que ainda não é voo, mas<br />
um ensaio de voo. A partir desse primeiro<br />
salto começa-se a subir para<br />
os saltos superiores.<br />
A arte, a cultura, o progresso no<br />
sentido bom da palavra são uma tendência<br />
para isso. E o encanto da Europa<br />
esteve em que ela intensamente<br />
teve isso, foi muito modelada para<br />
que no contato com cada coisa se visse<br />
o ideal dela e que cada uma, sem<br />
ser idêntica ao ideal, participasse em<br />
algo do ideal que ela tinha consigo.<br />
E a alma assim como estou dizendo<br />
já acolhe essas participações com<br />
simpatia, com bondade, ela não olha<br />
para a coisa que apenas participa do<br />
seu próprio ideal e afirma frustrada:<br />
“Porcaria! Você não participa inteiramente.”<br />
Não, ela diz: “É pena você<br />
não participar inteiramente, mas em<br />
tal ponto eu me encanto.”<br />
Há, portanto, uma espécie de posição<br />
benévola da alma que é o ponto<br />
inicial. A influência da Igreja ajuda<br />
fabulosamente as almas a serem<br />
assim. Eu conheci uma pessoa ou<br />
outra enormemente assim, que representava<br />
um convite contínuo a se<br />
colocar em função do próprio ideal.<br />
Não com repreensão, mas um convite<br />
generoso, bondoso, sem, contudo,<br />
ocultar o amargo da decepção.<br />
Assim, há um primeiro movimento<br />
de alma por onde se constrói um<br />
mundo para o qual se deve tender<br />
com uma esperança infatigável, pois<br />
vendo existir ali um plano de Deus,<br />
tem-se sempre a esperança da misericórdia<br />
d’Ele e da realização.<br />
A partir daí a pessoa pode subir,<br />
não digo cronologicamente, mas logicamente,<br />
para a utopia e depois<br />
para o sobrenatural. Há, pois, uma<br />
gradação que me parece interessante,<br />
mesmo porque não importa só à<br />
criança, uma vez que cada idade tem<br />
diante de si, a seu modo, essa encruzilhada<br />
e essa possibilidade que se<br />
abre.<br />
Autêntico idealismo<br />
Por exemplo, o modo de entender<br />
a vida de família pode comportar<br />
intimidades degradantes como também<br />
um respeito mútuo nobilitante,<br />
por mais pobre que seja, pois não<br />
entra em cena questão de dinheiro.<br />
Enfim, o convívio familiar pode<br />
elevar ou rebaixar, ter um dinamismo<br />
para cima ou para baixo, como<br />
também ter cruzadas algumas coisas<br />
muito altas e outras muito baixas onde,<br />
em geral, o muito baixo prevalece,<br />
naturalmente.<br />
Ora, o feitio de espírito bem construído<br />
não omite nada disso. Ao pensar<br />
em morar no céu azul, não deixa<br />
de considerar, em concreto, o ambiente<br />
onde está, mas deseja o modelo<br />
ideal de todas as coisas que vê,<br />
e tende para ele, batalha por ele e<br />
é, portanto, um homem imerso nesta<br />
vida concreta. É muito diferente<br />
do utopista que se lança num voo<br />
com uma espécie de horror desta vida<br />
concreta, um indivíduo que entre<br />
duas leituras de Saint-Exupéry 1 poderia<br />
perfeitamente estar numa estrebaria<br />
malcheirosa, e para quem<br />
a utopia faz as vezes de uma droga.<br />
Não é isso! É do alto de uma vida<br />
concebida nos seus modelos ideais,<br />
na sua arquetipia – os arquétipos<br />
têm um grande papel nisso – que se<br />
situa o idealismo, palavra conspurcada<br />
de todos os modos, mas cujo sentido<br />
bom encontra-se nessa faixa; esse<br />
é autêntico idealismo.<br />
O indivíduo que, fazendo uma reta<br />
análise de si mesmo, tem a noção<br />
do que ele deveria ser e procura participar<br />
do seu próprio papel na medida<br />
em que suas condições lhe permitam,<br />
não é um impostor, não visa<br />
inculcar a ideia de ser ele o que não<br />
é, mas procura ser tudo quanto deve,<br />
fazendo-o notar às outras pessoas,<br />
não para se estadear, mas por fidelidade<br />
aos seus próprios princípios.<br />
Isto é o oposto da teatralidade. O teatral<br />
procura fingir ser o que não é, não<br />
tem nenhuma vontade séria de ser o<br />
15
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
que deve e procura até aparentar o que<br />
ele não deve ser nem foi feito para ser.<br />
Modos de enfrentar a<br />
vida no mundo atual<br />
É preciso levar em conta que o<br />
mundo moderno corrente – não o<br />
da quarta Revolução, mas da terceira<br />
Revolução expirante em que nos<br />
encontramos – apresenta a seguinte<br />
máxima: olhar para baixo é um pesadelo,<br />
olhar para cima é um sonho.<br />
Nós devemos rejeitar o pesadelo e o<br />
sonho, e viver nessa realidade chata<br />
e lisa. Mais ainda, ter sonhos atrapalha<br />
uma postura prática da alma por<br />
onde se pode evitar o pesadelo.<br />
Eu vejo, por exemplo, o modo de<br />
um indivíduo conduzir uma doença.<br />
O sujeito tem uma enfermidade<br />
qualquer e considera isso um pesadelo<br />
e uma inferioridade. Entretanto,<br />
uma vez que tem essa doença, ele<br />
precisa formar a ideia mais lúgubre<br />
de tudo quanto possa lhe suceder de<br />
pior e viver na espreita para evitar<br />
que isso aconteça. Então, ele transforma<br />
sua vida numa batalha contra<br />
as hipóteses-pesadelo que o espreitam<br />
ao longo da enfermidade. Mas a<br />
mesma coisa se dá em relação à carranca<br />
que lhe fez o diretor da repartição<br />
onde ele trabalha; idem com o<br />
tédio que o cliente decisivo sentiu<br />
quando conversou com ele e que talvez<br />
o faça abandonar o escritório...<br />
De tudo isso o indivíduo prevê as<br />
coisas piores que podem acontecer,<br />
e fica lutando contra aquilo para evitar<br />
uma ruína na sua vidinha e conseguir<br />
os interstícios de umas férias gostosas,<br />
numa viagem de transatlântico<br />
para não sei onde. Isso não é vida,<br />
não é ideal, mas é o mundo atual.<br />
Eu vi pessoas dos antigos tempos<br />
adoecerem. Elas sabiam que havia as<br />
hipóteses extremas, mas as hipóteses<br />
médias eram sempre as mais prováveis.<br />
Então, preparavam-se para estas<br />
e viviam confortavelmente dentro da<br />
doença. O que se pode fazer a não ser<br />
isso? Hoje, não: consultam-se quinze<br />
médicos, fazem não sei mais o quê,<br />
conversam entre si sobre Medicina<br />
para saber se há mais uma invenção...<br />
Um apelo para o<br />
mais elevado<br />
A inocência é uma visão global<br />
das coisas que contém o que estou<br />
dizendo. Portanto, não estou fazendo<br />
outra coisa senão traçar um pormenor<br />
da inocência. Por causa disso<br />
também, a alma verdadeiramente<br />
inocente é benévola, com boa vontade<br />
se dá, acolhe, se abre. Com as<br />
agruras da vida, a inocência comporta<br />
uma decepção muito triste, mas<br />
não uma amargura antiaxiológica.<br />
Ela vê a realidade, mas tem esperança<br />
de que isso se recomponha, se<br />
reconstitua, pelo menos em alguma<br />
medida, e trabalha generosamente<br />
neste sentido, sem ilusões e sem se<br />
deixar arrastar nem calcar aos pés.<br />
Quer dizer, a inocência espera do<br />
mal todo o mal, e quando vê em alguém<br />
uma pontinha de mal, começa<br />
a recear que aquilo tome conta da<br />
pessoa à maneira de um câncer; isto<br />
é positivo. Contudo, mesmo na pior<br />
decepção aquela esperança fica.<br />
Neste sentido é muito bonito o<br />
modo de Nosso Senhor tratar Judas.<br />
Aquela pergunta: “Judas, com<br />
um ósculo trais o Filho do Homem?”<br />
(Lc 22, 48) ainda tem algo, como<br />
quem diz: “Eu vejo tudo quanto há<br />
em você e lhe dou uma graça suprema<br />
para ser o que deveria.” “Amigo,<br />
a que vieste?” (Mt 26, 50). Pode<br />
haver uma coisa que indique mais a<br />
perseverança d’Ele na esperança de<br />
que Judas ainda viesse a ser o que<br />
deveria? Entretanto, Ele media também,<br />
sem ilusões, a infâmia aonde o<br />
traidor estava se atirando.<br />
Isso gera um convívio no qual está<br />
presente o vislumbre de todo o bem,<br />
até o máximo a que pode chegar<br />
uma pessoa, e de todo o mal, também<br />
até o extremo onde pode afundar,<br />
o que traz um relacionamento<br />
ao mesmo tempo sem ilusões e nunca<br />
desesperançado, que tem sempre<br />
algo de condicional, de quem pensa:<br />
“Levarei a minha esperança até o<br />
último limite do ‘amigo, a que vieste?’,<br />
mas não me iludirei e saberei<br />
por que escadas tu desces, e o que<br />
de ti devo esperar, e também saberei<br />
tomar as precauções para me defender.”<br />
O que supõe, naturalmente,<br />
muito equilíbrio.<br />
Como a maior parte das pessoas<br />
não leva em consideração a existência<br />
da graça, não interpreta bem<br />
o que se passa dentro de si. Quando<br />
A caridade de visitar os enfermos - Museu de Belas Artes, Lyon, França<br />
Flávio Lourenço<br />
16
Flávio Lourenço<br />
O beijo de Judas - Museu Episcopal de Vic, Espanha<br />
alguém tem numa parte da alma algum<br />
elemento de virtude sobrenatural,<br />
que não recusou inteiramente,<br />
olha para si e pensa ter reservas morais<br />
ilimitadas e muito nobres, sente<br />
com isto um apelo para subir, o qual,<br />
de fato, vem da graça.<br />
Papel da bondade<br />
Por outro lado, quem tem experiência<br />
da vida espiritual é levado a<br />
reconhecer o papel da graça neste<br />
ponto: não há quem não tenha fossas<br />
dentro da alma e que não se sinta<br />
incapaz de vencê-las sem um milagre.<br />
Uso a palavra “fossas” de propósito.<br />
São infâmias, torpezas desconcertantes<br />
que a pessoa sente que<br />
não tem condições de vencer a não<br />
ser pelo milagre. Ora, para isso entra<br />
uma ação da graça, e a pessoa espera<br />
que esse milagre se opere.<br />
Até vou dizer mais: isso se presta,<br />
com certa frequência, a abusos porque<br />
acaba dando uma noção errada<br />
da estabilidade à beira do precipício,<br />
e a pessoa não se dá conta de<br />
que, habituando-se a viver à borda<br />
do precipício, pode até não cair nele,<br />
mas o solo debaixo dos pés pode ir<br />
afundando cada vez mais, constituindo<br />
um outro modo de afundar num<br />
precipício sem se dar conta.<br />
Cada um de nós carrega fossas asquerosas<br />
dentro da alma, e é justo,<br />
normal, que alguém receie cair nessas<br />
fossas. Como é natural também que<br />
outro tenha em nós a grande esperança<br />
de que alcancemos altos píncaros,<br />
e que no relacionamento conosco<br />
ele deseje enormemente que atinjamos<br />
o nosso píncaro, mas não sem<br />
um olhar atento para nos ajudar e se<br />
proteger, caso estejamos facilitando<br />
com a fossa. Não podemos ter a menor<br />
ilusão a esse respeito.<br />
Aqui entra o papel curioso da<br />
bondade: quando alguém se aproxima<br />
muito de sua própria fossa, mas<br />
sente que o outro persevera em esperar<br />
que ele suba, recebe um impulso<br />
para cima. É uma baforada<br />
vinda de fora para dentro que levanta<br />
o homem todo; isto devemos fazer<br />
com o outro. Por isso Nosso Senhor<br />
disse a Judas: “Amigo, a que<br />
vieste?” Por que Ele disse “amigo”?<br />
Porque se naquela hora Judas dissesse<br />
“sim”, entrava na condição de<br />
amigo de Nosso Senhor, diretamente.<br />
O convite que entrou nesse “amigo”<br />
é o que devemos ter para todos,<br />
até depois de tudo consumado.<br />
Infelizmente, as pessoas se tornaram<br />
insensíveis a esta forma de bondade<br />
como, aliás, Judas o foi. Pode-se<br />
usar esta bondade como se queira, as<br />
pessoas não se incomodam. Elas preferem<br />
a cumplicidade. Como não recebem,<br />
tornam-se inimigas. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
2/6/1982)<br />
1) Antoine Jean-Baptiste Marie Roger<br />
Foscolombe, Conde de Saint-Exupéry.<br />
Escritor, ilustrador e piloto francês<br />
(*1900 - †1944).<br />
17
Perspectiva pliniana da História<br />
Considerações sobre o<br />
Brasil Império - III<br />
No fim do período imperial, a cidade do Rio de Janeiro<br />
se tornou comparável às muito boas urbes da Europa. O<br />
bom gosto foi aparecendo, a urbanização se tornando mais<br />
bonita. Pessoas de sociedade começaram a importar modas<br />
muito elegantes, vindas principalmente da França.<br />
Quando Dom João VI mudou-<br />
-se para o Brasil, instalou-se<br />
no Palácio dos Vice-Reis. Esse<br />
edifício ainda existe e, com a proclamação<br />
da República foi convertido<br />
na Central de Correios e Telégrafos.<br />
O prédio é uma característica construção<br />
portuguesa do século XIX,<br />
cuja arquitetura tem certo “sabor”,<br />
mas não creio que seja qualquer povo<br />
que apanhe o “sabor” que isso possui.<br />
À primeira vista, é a arquitetura<br />
que muitas casas apalaciadas e de fazenda<br />
do Brasil vão tomar também, e<br />
da qual posso falar livremente, porque<br />
dando uma impressão, à primeira<br />
vista desfavorável, estarei me referindo<br />
ao meu País.<br />
O Palácio dos Vice-Reis<br />
Lembro-me muito dessa impressão<br />
quando era pequeno e via certas construções<br />
brasileiras. Eu passava diante<br />
daquilo, olhava e pensava: “Mas, afinal<br />
de contas, isso aqui no que é diferente<br />
de uma caixa de sapatos? É um<br />
quadrilátero enorme, com uma ponta<br />
um pouco mais enfeitada em ci-<br />
ma, uma fileira de janelas iguais, cada<br />
uma com uma pequena sacada<br />
e, entre janela e janela, um braço de<br />
ferro com uma lâmpada dependurada.<br />
Embaixo, outra porta ornamentada<br />
e mais janelas. Percebe-se como<br />
é a planta interna disso: um corredor<br />
no centro e, em cima, quartos que dão<br />
para a frente e para o fundo. Onde está<br />
a arquitetura? Onde está a arte?<br />
Onde está o bonito disso?”<br />
Não se poderia imaginar uma<br />
planta que desse menor dor de cabeça<br />
a um arquiteto do que essa. Eu tinha<br />
Palácio dos Vice-Reis em 1818<br />
Karl Wilhelm von Theremin<br />
18
Construções francesas do século XIX<br />
ABACA (CC3.0)<br />
ABACA (CC3.0)<br />
objeções sérias contra isso, sobretudo<br />
porque fazia a comparação entre esse<br />
estilo de construção e os edifícios que,<br />
naquele tempo, via em fotografias da<br />
França. Eu me extasiava com as construções<br />
francesas e, em consequência,<br />
vendo essa simplicidade quase elementar,<br />
estranhava e ficava objetante.<br />
Recordo-me, entretanto, de que,<br />
às vezes, no momento de virar a página<br />
de um álbum de fotografias, eu<br />
pensava: “Curioso, na hora de virar<br />
a página estou achando isso bonito...<br />
E percebia que, de vez em quando,<br />
daquilo desprendia certa beleza que<br />
não era a de uma coisa francesa, de<br />
deixar o olhar encantado, mas tinha,<br />
por vezes, uma chispa de pulcritude.<br />
Mais tarde acabei percebendo que<br />
essa chispa estava em alguma coisa<br />
Luiz Ferreira (CC3.0)<br />
Povo aclama a Princesa Isabel após a<br />
assinatura da Lei Áurea em 1888<br />
que sentimos depois de nos termos<br />
habituado à monotonia. Então aparece<br />
uma grandeza, uma seriedade,<br />
uma distinção que nos encanta. Esse<br />
era o Palácio dos Vice-Reis onde<br />
Dom João VI se instalou.<br />
A Quinta da Boa Vista<br />
Não muito tempo depois, ele recebeu<br />
o oferecimento de um comerciante<br />
rico, português que morava<br />
no Rio de Janeiro, pondo à sua disposição<br />
uma grande propriedade<br />
chamada Quinta da Boa Vista. Era<br />
um lugar mais fresco, mais arejado<br />
do que a cidade do Rio, que é terrível<br />
no tempo de calor. Não havia<br />
estrada de ferro para Petrópolis naquele<br />
tempo. Então, naturalmente,<br />
era preciso fugir do calor indo para<br />
lugares mais arejados. A Quinta da<br />
Boa Vista correspondia a essa necessidade<br />
e Dom João VI foi residir lá.<br />
Com o tempo, a Quinta foi sendo<br />
ampliada e muito bem decorada.<br />
Muitos anos atrás, eu tinha ido passar<br />
uns dias de repouso no Rio de Janeiro<br />
e fui visitar a Quinta da Boa Vista,<br />
que havia sido transformada em Museu<br />
de Ciências Naturais. Pela disposição<br />
das salas, percebi que nem tudo<br />
estava acessível aos visitantes, e<br />
que eu poderia tentar visitar a parte<br />
que não era mostrada ao público.<br />
Com jeito, perguntei a um funcionário<br />
o que havia além de algumas portas<br />
trancadas e manifestei meu desejo<br />
de conhecer aqueles recintos.<br />
— Não, não pode! Essas salas estão<br />
fechadas... – asseverou.<br />
— Mas o que é que têm? Se estão<br />
vazias, então não há razão para mantê-las<br />
fechadas...<br />
Depois de uma boa conversa, consegui<br />
que ele me abrisse as portas.<br />
Eram os aposentos da Princesa Isabel.<br />
Encontrava-se ainda ali algo do<br />
antigo mobiliário, mas pouca coisa.<br />
Havia de encantador os vitrais do século<br />
XIX trazidos da Europa, representando<br />
personagens célebres do<br />
tempo da Renascença: músicos e poetas,<br />
principalmente italianos. Tenho<br />
a impressão de que eram vitrais de<br />
fabricação italiana. Percebia-se, pelo<br />
acabamento das paredes e do teto,<br />
que a quinta do português comerciante<br />
tinha sido transformada gradualmente<br />
no interior de um palácio<br />
19
Perspectiva pliniana da História<br />
Karl Robert (CC3.0)<br />
Litografia da Quinta da Boa Vista em 1840<br />
principesco, com muito espaço, muita<br />
largueza, com bonitos móveis, etc.<br />
Afinal, consegui entrar também na<br />
Sala do Trono, onde havia um trono<br />
e alguns móveis bonitos, dignos.<br />
Foi na Quinta da Boa Vista que<br />
grande parte do reinado de Dom Pedro<br />
II se exerceu. Para as proporções<br />
do Brasil daquele tempo, era um palácio.<br />
O Monarca aumentou-o muito,<br />
deu-lhe dignidade e esplendor.<br />
Sedes de fazendas apalaciadas<br />
Demetrius William Lima (CC3.0)<br />
Quinta da Boa Vista em 2011<br />
De outro lado, o corpo diplomático<br />
no Rio de Janeiro foi crescendo.<br />
Naquele tempo, a diplomacia era<br />
um ofício dos nobres. A Europa estava<br />
cheia de monarquias, e eram<br />
nobres europeus que constituíam<br />
quase sempre o corpo diplomático<br />
no Rio. Famílias da primeira nobreza<br />
europeia, com seus próprios palácios<br />
de embaixadas existentes no Rio<br />
de Janeiro, tudo isso dava muito brilho<br />
à Corte.<br />
Ademais, o plantio de café foi se<br />
desenvolvendo muito no Rio de Janeiro.<br />
Mais tarde, da cana-de-açúcar<br />
também. As antigas famílias, que<br />
desde o começo do povoamento do<br />
Estado do Rio moravam lá, eram<br />
as fundadoras da zona e se tornaram<br />
muito ricas por causa da grande<br />
plantação e exportação realizada,<br />
precisamente por causa da ótima<br />
marinha mercante que o Brasil<br />
possuía, dotada de navios fabricados<br />
com esplêndida madeira brasileira<br />
e constituindo a segunda frota<br />
do mundo, como contei na conferência<br />
anterior 1 . Exportávamos para<br />
o mundo inteiro! Mas exportar significa<br />
entrar dinheiro. Com o dinheiro<br />
que entrava, essas famílias ricas do<br />
Estado do Rio, do Sul de Minas, do<br />
Norte de São Paulo formavam uma<br />
só rede. Mandavam vir móveis muito<br />
custosos da Europa, tecidos finos para<br />
revestir paredes, vitrais, maçanetas<br />
de porta, lustres muito bonitos,<br />
enfim, tudo o que faz o encanto da<br />
vida interna.<br />
No próprio Estado do Rio de Janeiro<br />
foram aparecendo sedes de fazendas<br />
a tal ponto apalaciadas que<br />
até figuram em álbuns especializados.<br />
Eu conheci até duas dessas casas<br />
apalaciadas muito interessantes e<br />
bonitas.<br />
Uma linda casa nos<br />
arredores de Campos<br />
dos Goytacazes<br />
Uma é a que serve de abrigo de<br />
idosos, o Asilo do Carmo, nos arredores<br />
de Campos dos Goytacazes,<br />
pertencente outrora a uma grande<br />
família aristocrática de plantadores<br />
de cana-de-açúcar. É uma casa linda!<br />
Com a forma de luxo que o Brasil<br />
podia e ainda pode proporcionar<br />
Sala do Trono no Palácio da Quinta da Boa Vista<br />
Halley Pacheco de Oliveira (CC3.0)<br />
Walter1809 (CC3.0)<br />
20
aos que desejarem: salões e outros<br />
compartimentos enormes.<br />
Mas o que tem uma beleza especial<br />
é o fato de, nas salas nobres pelo<br />
menos, todo o chão estar coberto,<br />
de ponta a ponta, por tábuas largas<br />
de árvores com madeiras bonitas abatidas,<br />
com certeza, da floresta virgem<br />
daquele tempo. Para um país como o<br />
Brasil é mais bonito ter, por exemplo,<br />
uma mesa ou um assoalho de grandes<br />
árvores que mostram a pujança de<br />
nossas florestas, a riqueza de nosso<br />
território. Uma beleza própria a essas<br />
coisas é mostrar como ainda estamos<br />
perto do mato, de nossas origens, até<br />
que ponto somos ancestrais de um futuro<br />
que nos vai seguir.<br />
Quando se olha para o passado<br />
e se diz: “Olhe aqui o meu remoto<br />
quinto, oitavo, décimo avô”, é bonito!<br />
Mas sentir-se como na origem de<br />
uma coisa que vai deitar muitas gerações,<br />
é mais bonito ainda! Em última<br />
análise, é mais belo ser antepassado<br />
do que ser descendente. Daí a<br />
beleza daquelas toras enormes de<br />
madeira, falando da possibilidade e<br />
a força de nosso solo e, com isso, a<br />
possibilidade e a força da Nação.<br />
Logo depois da proclamação da<br />
República, houve uma crise financeira,<br />
e com isso grande parte das famílias<br />
rurais perdeu a fortuna da noite<br />
para o dia. Então, tiveram que abandonar<br />
essas casas. E não havia quem<br />
as ocupasse.<br />
Essa de Campos, em concreto,<br />
foi tomada por uma obra de caridade,<br />
creio que pela Associação de São<br />
Vicente de Paulo, que estabeleceu lá<br />
um limpíssimo e modelaríssimo asilo<br />
para idosos. Impressionou-me ver os<br />
pobres velhinhos que não têm mais<br />
com quem estar, às vezes pelo fato<br />
de seus descendentes terem morrido<br />
ou, coisa mais cruel, não querem o<br />
velho e a velha, e jogam-nos lá, porque<br />
dão despesa, obrigam a acordar<br />
durante a noite para tratar deles, outras<br />
coisas assim... Então, empurram-nos<br />
de lado.<br />
Sentir o ambiente do Brasil<br />
no tempo de Dom Pedro II<br />
Olha-se então para o pátio interno<br />
da propriedade, onde outrora<br />
pessoas com bonitas roupas conversavam<br />
coisas agradáveis, há um velhinho<br />
comendo, sentado no chão.<br />
Mais adiante, uma velhinha... Quase<br />
não conversam, a vida está esgotada...<br />
São os últimos e preciosos anos<br />
da vida em que o homem, pela conformidade,<br />
repara seus pecados e se<br />
prepara para o Céu.<br />
E se vê um granito não-polido, cinzento,<br />
e não-bonito. Parecido com o<br />
granito que se encontrava antigamente<br />
em todas as ruas de São Paulo, antes<br />
de haver asfalto. Agradava ver pedaços<br />
grandes desse granito nos peitorais<br />
das janelas e enquadramentos<br />
das portas. Pode-se imaginar a bela<br />
vida, ao mesmo tempo de família e de<br />
sociedade, que ali se levava, quando<br />
fazendeiros de outras bonitas casas<br />
visitavam esta, e os desta iam visitar<br />
outras. Havia festas. Percebe-se pelo<br />
tamanho a cozinha que foi um local<br />
de gastronomia caipira, mas opulenta.<br />
E a gastronomia caipira tem coisas<br />
bem boas, que também fazem parte<br />
do charme do Brasil e não devem<br />
ser escondidas. Os pratos meio cheirando<br />
à África que há aqui, a meu ver<br />
seria uma imbecilidade ocultar: cus-<br />
Asilo do Carmo<br />
cuz, vatapá, feijoada, pratos excelentes<br />
com um gosto forte, uma tropicalidade<br />
boa. Percebe-se quanto de tudo<br />
isso se comeu por lá...<br />
Os diretores do asilo que me levaram<br />
a visitar as várias partes do estabelecimento<br />
contaram-me que todos<br />
os anos, em certa data, aparecia uma<br />
senhora idosa, de condições modestas,<br />
e pedia licença para visitar a casa.<br />
Ela nunca dizia que nexo tivera com<br />
a propriedade, mas talvez tivesse sido<br />
dona ou filha da dona, e sentia vergonha<br />
de contar. Como era uma pessoa<br />
respeitável, muito direita, abriam<br />
a casa e ela andava por onde queria.<br />
Visitava tudo, e em alguns aposentos<br />
ela parava e chorava. Depois saía<br />
e, na escadaria do lado de fora da casa,<br />
sentava-se e chorava longamente<br />
também. Por fim, ia embora e no ano<br />
seguinte, na mesma data, ela voltava.<br />
Alguém me dirá: “Isso não é História<br />
do Brasil!” Mas é inegável que<br />
em algo isso faz sentir o ambiente do<br />
Brasil no tempo de Dom Pedro II.<br />
Canal ligando o Rio de<br />
Janeiro a Campos<br />
Há também restos desse tempo<br />
precisamente em Campos, onde existia<br />
um canal que Dom Pedro II mandara<br />
fazer para ligar, em linha reta,<br />
com a cidade do Rio de Janeiro. Na-<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
21
Perspectiva pliniana da História<br />
Caiocapelari (CC3.0)<br />
Adilson concerva (CC3.0)<br />
Claudio Weliton Rodrigues Lima (CC3.0)<br />
Argenz (CC3.0)<br />
Rio Tietê<br />
Rio Tocantins<br />
Rio Araguaia<br />
Rio Paraná<br />
quele tempo, fazer estradas<br />
era uma dificuldade,<br />
e uma “estrada” de água<br />
era um luxo. Então, ia-se<br />
e vinha-se de Campos ao<br />
Rio nesse canal que com<br />
o tempo deixou de ter interesse<br />
comercial e, pela<br />
falta de cuidado, foi se<br />
encolhendo. Ora, o planejamento<br />
dos rios que<br />
desembocavam no canal<br />
para alimentá-lo com suas<br />
águas era uma obra<br />
de engenharia e, tendo-<br />
-se relaxado na manutenção<br />
disso, só chegava<br />
um pouquinho de água<br />
ao Rio de Janeiro ou para<br />
a ponta de Campos.<br />
No Rio de Janeiro entrava<br />
num bueiro qualquer.<br />
Em Campos, nem percebi<br />
onde morria o canal.<br />
Contudo, vendo esse<br />
canal poderíamos ter<br />
uma ideia de Dom Pedro<br />
II com a Imperatriz Dona<br />
Teresa Cristina e toda a<br />
corte chegando em vários<br />
barcos. Que poesia tem<br />
uma viagem como essa e<br />
quanto a navegação por<br />
um canal é diferente das<br />
viagens pelas estradas de<br />
ferro ou de rodagem!<br />
É preciso dizer que o<br />
Brasil sempre negligenciou<br />
uma coisa que tem<br />
seu encanto próprio: a navegação<br />
fluvial. Nós aproveitamos<br />
muito as nossas<br />
praias. Se o fizéssemos<br />
dentro da moral, faríamos<br />
muito bem, pois são praias<br />
maravilhosas. Mas não se<br />
ressalta que o Brasil tem<br />
várias redes fluviais enormes,<br />
as quais percorrem o<br />
país quase de ponta a ponta.<br />
Enquanto na Europa,<br />
por exemplo, a navegação<br />
fluvial é muito aproveitada. Hoje,<br />
na era do automóvel, do trem, do avião,<br />
ainda se anda naqueles rios à vontade.<br />
É a forma de transporte mais cômoda<br />
que se possa imaginar, porque o rio trabalha<br />
por nós e nos leva para onde quisermos.<br />
Pelo menos metade da viagem<br />
é feita gratuitamente pelo rio, ele nos<br />
carrega sem gasto de combustível ou de<br />
braços humanos.<br />
A navegação fluvial é um tesouro<br />
que durante algum tempo – no fim do<br />
Império e mesmo no começo da República<br />
– se cultivou no Brasil. Depois,<br />
a mania das estradas de ferro e<br />
do progresso fez decair esse costume.<br />
A riqueza, o bom gosto<br />
e a cultura geral do<br />
Brasil iam subindo<br />
Mas voltando às considerações sobre<br />
o tempo do Império, com a elevação<br />
geral da sociedade no Rio de Janeiro,<br />
começaram a importar modas<br />
muito elegantes e finas vindas principalmente<br />
da França. O bom gosto foi<br />
aparecendo, a cidade do Rio de Janeiro<br />
se tornando mais bonita. Já no<br />
tempo colonial havia lindas igrejas,<br />
mas se foram construindo novas. Assim,<br />
o Rio de Janeiro foi se transformando<br />
gradualmente de maneira a<br />
dar, no fim do Império, numa cidade<br />
que não se compararia com as principais<br />
cidades da Europa, mas entre cidades<br />
europeias bem boas, de segundo<br />
nível, o Rio ocupava confortavelmente<br />
uma bela posição, o que representava<br />
um progresso, uma evolução.<br />
Foi nesse tempo que também os<br />
estilos da Corte foram se aperfeiçoando.<br />
Por exemplo, os deputados<br />
e senadores, para participarem das<br />
reuniões da Câmara e do Senado,<br />
não iam vestidos de qualquer jeito,<br />
mas usavam um uniforme de veludo,<br />
com galões dourados.<br />
Meu bisavô materno era deputado<br />
no tempo do Império, e nós conservávamos<br />
em casa – depois isso entrou para<br />
outros ramos da família – um objeto<br />
22
Victor Meireles de Lima (CC3.0)<br />
Marc Ferrez (CC3.0)<br />
que era um encanto: um bonequinho<br />
que ele mandou um alfaiate do Rio<br />
vestir de deputado, com um chapeuzinho<br />
feito da mesma matéria com que<br />
eram confeccionados os chapéus dos<br />
deputados, no estilo do chapéu napoleônico,<br />
com dois bicos e um galão dourado.<br />
Num cabeleireiro, ele mandou<br />
fazer uma peruca igual à que ele usava.<br />
Já não era uma peruca branca, como<br />
no Ancien Régime, mas castanha e com<br />
cachos dos dois lados, como o deputado<br />
devia usar com o chapéu bicorne.<br />
Esse meu bisavô era muito afeiçoado<br />
à sua mãe e, como não havia fotografia<br />
naquele tempo, para que ela<br />
guardasse a recordação dele vestido de<br />
deputado, enviou-lhe o bonequinho.<br />
Estes pequenos pormenores mostram<br />
como o nível da vida do Rio foi<br />
se elevando, como expressão da riqueza,<br />
do bom gosto e da cultura geral<br />
do País que subiam também.<br />
Razões pelas quais<br />
o Império caiu<br />
Ao lado disso, o território brasileiro<br />
foi sendo ocupado por estradas de<br />
ferro enormes, muito razoáveis em<br />
lugares ou itinerários onde não havia<br />
possibilidade de navegação fluvial,<br />
algumas atravessando precipícios.<br />
Eram estradas que se mandavam vir<br />
inteiras de Londres – mas inteiras! –<br />
Trajes usados pelos deputados no Brasil Império<br />
porque não havia metalúrgica aqui.<br />
Então, os trilhos vinham da Inglaterra,<br />
que era a melhor fabricante dessas<br />
coisas naquele tempo. Faziam-se<br />
obras de engenharia ousadas. Naquela<br />
época eram coisas importantes que<br />
acentuavam a ideia de progresso.<br />
Entretanto, o Império caiu por<br />
três razões. Em primeiro lugar, porque<br />
a Europa inteira estava varrida<br />
por revoluções republicanas. A República<br />
era a forma de Revolução<br />
mais avançada naquele tempo, pois<br />
o comunismo era pouco frequente e<br />
não se tinha espraiado pelo mundo.<br />
Era, portanto, elegante ser republicano.<br />
Ser ateu e republicano denotava<br />
ser uma pessoa com ideias fortes.<br />
Assim, nas Faculdades de Direito<br />
do Brasil, principalmente em São<br />
Paulo, Recife e Rio de Janeiro, os<br />
professores eram quase todos republicanos,<br />
ou então monarquistas que<br />
queriam reformar a Monarquia, reduzindo-a<br />
quase a um papel puramente<br />
decorativo, deixando as portas<br />
abertas para a República.<br />
Ademais, os monarquistas não<br />
tinham coragem de defender suas<br />
convicções, enquanto os republicanos<br />
tinham. Tudo isso fazia da República<br />
a forma de governo do futuro.<br />
Outro dado que concorreu para<br />
a proclamação da República foi<br />
o próprio feitio pessoal do Imperador.<br />
Ele se dizia religioso, e talvez<br />
fosse, mas não era católico praticante.<br />
Parecia um homem de bons<br />
costumes. Pelo menos na aparência,<br />
levava uma vida de família modelar:<br />
esposo respeitoso e pai excelente.<br />
Mas tinha toda espécie de preconceitos<br />
anticlericais, de onde nasceu<br />
a famosa questão religiosa com<br />
Dom Vital, da qual trataremos em<br />
outra ocasião.<br />
v<br />
(Continua no próximo número)<br />
(Extraído de conferência de<br />
30/11/1985)<br />
Halley Pacheco de Oliveira (CC3.0)<br />
Estrada de ferro na cidade de Petrópolis em 1885<br />
1) Cf. <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 253, p. 19-20.<br />
23
Flávio Lourenço<br />
C<br />
alendário<br />
1. São José Operário.<br />
São Jeremias, profeta. Prenunciou<br />
a destruição da Cidade Santa e a deportação<br />
do povo judeu. Sofreu muitas<br />
tribulações, por isso a Igreja o<br />
considera como figura de Cristo padecente.<br />
Ver página 2.<br />
2. Santo Atanásio, bispo e Doutor<br />
da Igreja (†373).<br />
Santo Antonino, bispo (†1459).<br />
Religioso dominicano, aplicou-se<br />
à reforma da Ordem promovida<br />
pelo Beato Raimundo de Cápua.<br />
Foi mais tarde nomeado Arcebispo<br />
de Florença.<br />
3. São Filipe e São Tiago Menor,<br />
Apóstolos.<br />
Beato Tomás de Olera, religioso<br />
(†1631). Capuchinho franciscano,<br />
grande mestre espiritual falecido em<br />
Innsbruck, Áustria. Foi beatificado<br />
no ano 2013, em Bergamo, Itália.<br />
4. Beato Ladislau de Gielniow,<br />
presbítero (†1505). Religioso franciscano<br />
falecido em Varsóvia, pregou<br />
Santo Antonino<br />
dos Santos – ––––––<br />
Flávio Lourenço<br />
São Gregório VII<br />
com zelo a Paixão de Nosso Senhor e<br />
compôs piedosos hinos em seu louvor.<br />
5. III Domingo de Páscoa.<br />
Santo Avertino, diácono (†1189).<br />
Acompanhou São Tomás Becket no<br />
exílio e após a morte deste santo, regressou<br />
para Vençay, França, onde se<br />
fez ermitão.<br />
6. Santa Benedita, virgem (†s. VI).<br />
Monja romana, de quem São Gregório<br />
Magno conta que, tal como pedira<br />
a Deus com insistência, morreu um<br />
mês após a morte de sua venerada<br />
amiga, Santa Gala.<br />
7. Beato Francisco Paleári, presbítero<br />
(†1939). Sacerdote do Instituto<br />
Cottolengo, dedicou sua vida ao ensino<br />
e ao cuidado dos pobres e enfermos<br />
da Pequena Casa da Divina Providência,<br />
em Turim, Itália.<br />
8. São Bento II, Papa (†685). Sucessor<br />
de Leão II, foi insigne pelo seu amor<br />
à pobreza, humildade, afabilidade, paciência<br />
e liberalidade nas esmolas.<br />
9. Beato Benincasa de Montepulciano,<br />
religioso (†1426). Religioso da<br />
Ordem dos Servos de Maria, retirou-<br />
-se numa gruta do Monte Amiata, Itália,<br />
onde levou uma vida penitente.<br />
10. São Guilherme, presbítero<br />
(†1195). De origem inglesa, foi pároco<br />
em Pontoise, França, destacando-<br />
-se por sua piedade e zelo das almas.<br />
11. São Mamerto, bispo (†c. 475).<br />
Perante a eminência de uma calamidade,<br />
instituiu em Vienne, França, o<br />
tríduo solene de ladainhas e rogações<br />
antes da festa da Ascensão do Senhor.<br />
12. IV Domingo da Páscoa.<br />
São Nereu e Santo Aquiles, mártires<br />
(†s. III).<br />
São Pancrácio, mártir (†s. IV).<br />
Santa Rictrudes, abadessa (†c. 688).<br />
Após a violenta morte de seu marido,<br />
aconselhada por Santo Amando, tornou-se<br />
religiosa e com sabedoria dirigiu<br />
o mosteiro de Marchiennes, França.<br />
13. Nossa Senhora de Fátima.<br />
Santo André Huberto Fournet,<br />
presbítero (†1834). Embora proscrito<br />
pelas autoridades civis durante a Revolução<br />
Francesa, continuou fortalecendo<br />
os fiéis na Fé. Fundou, junto<br />
com Santa Isabel Bichier des Âges, o<br />
Instituto das Filhas da Cruz.<br />
14. São Matias, Apóstolo.<br />
Santa Teodora Guérin, virgem<br />
(†1856). Religiosa da Congregação<br />
das Irmãs da Providência, na França.<br />
Enviada aos Estados Unidos para fundar<br />
uma nova comunidade, enfrentou<br />
diversas dificuldades, demonstrando<br />
caridade com suas irmãs de hábito.<br />
15. São Caleb ou Elesbão, rei<br />
(†c. 535). Para desagravar os mártires<br />
de Nagran empreendeu o combate<br />
contra os inimigos de Cristo e, se-<br />
24
––––––––––––––––––– * Maio * ––––<br />
gundo a tradição, depois de ter enviado<br />
o seu diadema régio para Jerusalém,<br />
abraçou a vida monástica.<br />
16. São Simão Stock, presbítero<br />
(†1265).<br />
Beato Miguel Wozniak, presbítero<br />
e mártir (†1942). Deportado da Polônia<br />
ao campo de concentração de Dachau,<br />
Alemanha, onde sofreu cruéis<br />
torturas antes de morrer.<br />
17. Beato João (Ivã) Ziatyk, presbítero<br />
e mártir (†1952). Religioso redentorista,<br />
que em tempo de perseguição<br />
foi enviado ao campo de concentração<br />
de Oserlag, Rússia, onde faleceu.<br />
18. São João I, Papa e mártir (†526).<br />
Santo Érico IX, rei e mártir (†1161).<br />
Enviou à Finlândia o Bispo Santo Henrique<br />
para propagar o Evangelho. Foi<br />
apunhalado por seus inimigos, enquanto<br />
participava da Santa Missa.<br />
19. V Domingo da Páscoa.<br />
Beato Rafael Luís Rafiringa, religioso<br />
(†1919). Religioso lassalista,<br />
que, convertido do paganismo, manteve<br />
a presença e a vitalidade da Igreja<br />
em Madagascar quando todos os<br />
sacerdotes tinham sido expulsos.<br />
20. São Bernardino de Siena, presbítero<br />
(†1444).<br />
Beata Colomba de Rieti, virgem<br />
(†1501). Nascida de família nobre em<br />
Perúgia, Itália, fez-se religiosa da Congregação<br />
das Irmãs da Penitência de<br />
São Domingos e promoveu a paz entre<br />
as facções em conflito nessa cidade.<br />
21. São Cristóvão Magalhães,<br />
presbítero, e companheiros, mártires<br />
(†1927).<br />
São Carlos Eugênio de Mazenod, bispo<br />
(†1861). Fundador do Instituto dos<br />
Missionários Oblatos de Maria Imaculada,<br />
em Aix-en-Provence, França, sendo<br />
depois eleito Bispo de Marselha.<br />
22. Santa Rita de Cássia, religiosa<br />
(†c. 1457).<br />
Beato João Forest, presbítero e<br />
mártir (†1538). Religioso franciscano,<br />
queimado vivo no reinado de Henrique<br />
VIII na Inglaterra, por defender<br />
a unidade católica.<br />
23. São Guiberto, monge (†962).<br />
Abandonando a carreira militar,<br />
construiu um mosteiro nas terras que<br />
possuía em Gembloux, Bélgica, e retirou-se<br />
ao Mosteiro de Gorze, França.<br />
24. Nossa Senhora Auxiliadora.<br />
Ver página 9<br />
São Simeão Estilita, o jovem,<br />
presbítero e eremita (†592). Durante<br />
quarenta e cinco anos viveu sobre<br />
uma coluna no Monte Admirável, Síria.<br />
Escreveu vários tratados sobre a<br />
vida ascética.<br />
25. São Gregório VII,<br />
Papa (†1085).<br />
São Beda, o Venerável,<br />
presbítero e Doutor da<br />
Igreja (†735). Ver página 26.<br />
Santa Maria Madalena<br />
de Pazzi, virgem (†1607).<br />
26. São Filipe Néri, presbítero<br />
(†1595).<br />
São José Chang Song-<br />
-jib, mártir (†1839). Farmacêutico<br />
coreano convertido<br />
à Fé cristã. Foi preso e<br />
morto em Seul após sofrer<br />
cruéis tormentos.<br />
27. Santo Agostinho de<br />
Cantuária, bispo (†604/605).<br />
São Gonzaga Gonza,<br />
mártir (†1886). Servo do<br />
rei da Uganda, traspassado<br />
pela lança de um verdugo<br />
quando era conduzido acorrentado<br />
para a fogueira.<br />
28. São Justo de Urgel,<br />
bispo (†s. VI). Bispo de<br />
Urgel, Espanha, que escreveu<br />
um comentário alegó-<br />
rico do “Cântico dos Cânticos” e tomou<br />
parte nos concílios hispânicos.<br />
29. Santa Úrsula Ledóchowska,<br />
virgem (†1939). Nobre polonesa, fundadora<br />
do Instituto das Irmãs Ursulinas<br />
do Coração Agonizante de Jesus.<br />
Morreu em Roma.<br />
30. São José Marello, bispo<br />
(†1895). Bispo de Acqui, no Piemonte,<br />
Itália, fundador da Congregação<br />
dos Oblatos de São José.<br />
31. Visitação de Nossa Senhora.<br />
Beato Nicolau Barré, presbítero<br />
(†1686). Professor de Teologia e fundador<br />
em toda a França das Escolas<br />
Cristãs e da Caridade, bem como das<br />
Irmãs Mestras do Menino Jesus.<br />
São Filipe Néri<br />
Flávio Lourenço<br />
25
Hagiografia<br />
Venerabilidade e<br />
espírito católico<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
A Santa Igreja<br />
comunica uma nota de<br />
venerabilidade a tudo.<br />
O contrário disso é a<br />
influência exercida<br />
pela “heresia branca”<br />
e pela superficialidade<br />
otimista de nossos dias.<br />
26<br />
São Beda - Museu do Prado, Madri, Espanha<br />
Segundo a ficha que tenho em<br />
mãos, São Beda, o Venerável 1 ,<br />
foi um dos sábios mais ilustres<br />
do seu tempo. Tal era a sua santidade<br />
que, por não poderem chamá-lo<br />
de Santo ainda em vida, deram-lhe o<br />
título de Venerável, que não perdeu<br />
depois da morte.<br />
Título atribuído às<br />
pessoas cujo processo de<br />
canonização está em curso<br />
Seria interessante fazermos um<br />
comentário não tanto considerando<br />
o Santo, mas o seu título. Ele era<br />
reputado como um dos homens de<br />
maior instrução e tão virtuoso que,<br />
não ousando os seus contemporâneos<br />
chamá-lo de Santo – porque ninguém<br />
pode receber este título antes<br />
de ser canonizado pela Igreja –, chamavam-no<br />
de Venerável. Porque Venerável<br />
é o título atribuído pela Igre-
TRUONG-NGOC (CC3.0)<br />
ja às pessoas cujo processo de canonização<br />
está em curso.<br />
A aplicação desse título<br />
tem variado ao<br />
longo dos séculos,<br />
de acordo com os<br />
lugares e a disposição<br />
do Direito<br />
Canônico.<br />
Até algum tempo<br />
atrás, se chamava<br />
Venerável<br />
aquele cuja causa<br />
de canonização tinha<br />
sido introduzida,<br />
mas que ainda não havia<br />
sido beatificado. A beatificação<br />
se dava quando a Igreja,<br />
depois de examinar a vida e as obras<br />
de uma pessoa, concluía que ela havia<br />
praticado em grau heroico as virtudes<br />
teologais e cardeais. Deveria<br />
ser ratificada por um milagre e dava<br />
a certeza de que a pessoa estava<br />
no Céu. E importava a autorização<br />
para um culto local, ou no lugar onde<br />
a pessoa tinha vivido; “local” no<br />
sentido de circunscrito às capelas ou<br />
oratórios de uma Ordem Religiosa a<br />
que ela havia pertencido.<br />
Depois, com a canonização que<br />
dependia apenas de novos milagres,<br />
a pessoa era elevada à honra dos altares,<br />
apontada como exemplo e posta<br />
como objeto de culto pela Igreja<br />
universal. O Venerável era, portanto,<br />
aquilo que hoje se chama o Servo<br />
de Deus, havendo todas as razões<br />
para supor que ele vai ser canonizado,<br />
uma vez que o seu processo foi introduzido.<br />
Mas, de fato, o número de<br />
processos de canonização que encalham<br />
em curso é muito grande.<br />
Venerável era, portanto, uma pessoa<br />
digna de veneração, da qual se<br />
presumia a santidade. E eu queria<br />
me ater a esse título de Venerável<br />
para considerar um aspecto da Moral<br />
católica, o qual está muito pouco<br />
em foco hoje em dia, e que os costumes<br />
do mundo atual tornam especialmente<br />
ignorado e malvisto.<br />
Manuscrito de uma das obras de São Beda:<br />
“História Eclesiástica do Povo Inglês”<br />
Estrasburgo, França<br />
Perfil moral de uma<br />
pessoa venerável<br />
O que é propriamente uma pessoa<br />
venerável? Diz-se que alguém<br />
é venerável, por exemplo, quando<br />
atingiu uma idade provecta e tem a<br />
seriedade e a dignidade desta idade.<br />
Assim, um homem de oitenta anos<br />
que cumpriu sempre os seus deveres,<br />
teve uma prole numerosa, praticou<br />
alguma ação insigne pela Igreja ou<br />
pelo Estado; aquela longa continuidade<br />
na prática de uma virtude, embora<br />
não seja uma virtude extraordinária,<br />
incute respeito. Então, se<br />
diz que essa pessoa é venerável,<br />
nós a veneramos.<br />
Podemos dizer que<br />
é venerável um homem<br />
que, por<br />
exemplo, se portou<br />
heroicamente<br />
durante uma<br />
guerra e foi ferido<br />
em combate.<br />
Um general<br />
que ganhou muitas<br />
batalhas é um<br />
homem venerável. Por<br />
quê? Porque, evidentemente,<br />
ele praticou atos extraordinários,<br />
incomuns, que merecem<br />
respeito. Uma religiosa que durante<br />
muito tempo cuidou dos leprosos,<br />
com risco do próprio contágio, é<br />
venerável. Porque uma longa prática<br />
de uma abnegação num estado de vida<br />
sumamente respeitável, como é o<br />
religioso, enfrentando o risco de contágio,<br />
que aumenta a abnegação de<br />
que a religiosa deu provas, tornam-<br />
-na venerável. Então, de todas essas<br />
aplicações correntes da palavra “venerável”,<br />
que não são suas aplicações<br />
canônicas, nós traçamos o perfil moral<br />
de uma pessoa venerável.<br />
Venerável é uma pessoa que tem<br />
uma profundidade de espírito maior<br />
Túmulo de São Beda - Catedral de Durham, Inglaterra<br />
robert scarth (CC3.0)<br />
27
Hagiografia<br />
do que a comum, adquirida pelo estudo,<br />
pela experiência, pela meditação.<br />
Possui uma têmpera, uma força<br />
de vontade, uma constância incomum.<br />
Mesmo em circunstâncias adversas,<br />
com sacrifício de sua própria<br />
existência, sua saúde, de seu próprio<br />
conforto, de sua riqueza, ela traçou<br />
uma linha de conduta boa e a seguiu<br />
até o fim. Ela se faz notar por um<br />
modo de presença que incute o respeito.<br />
A pessoa venerável está presente,<br />
os outros amam de ver aquela<br />
respeitabilidade e a respeitam, têm<br />
uma tendência natural a se inclinar,<br />
a prestar reverência, a obsequiar; e<br />
fazem isso como quem pratica um<br />
ato de justiça devido.<br />
Como vemos, a ideia de venerabilidade<br />
tem na sua raiz o conceito de<br />
seriedade, e como corolário a ideia<br />
de força e de abnegação. Quem é sério,<br />
forte e abnegado, torna-se respeitável.<br />
Aqui está o conceito de venerabilidade.<br />
Seriedade, força, abnegação<br />
Há no centro de São Paulo uma<br />
imagem que dá uma ideia bonita de<br />
venerabilidade: a de São Bento localizada<br />
no pórtico do mosteiro beneditino.<br />
Tanto aquela imagem quanto<br />
a fachada devem ser consideradas<br />
no momento em que o sino grave<br />
do mosteiro anuncia<br />
seis horas da tarde,<br />
quando, sobre a<br />
zoeira idiota e superagitada<br />
da cidade,<br />
descem aqueles<br />
sons meditativos,<br />
compassados e nobres.<br />
Então, temos<br />
as torres imutáveis,<br />
perpétuas, de um<br />
granito em que nada<br />
toca, que resiste<br />
a todas as transformações<br />
da cidade e<br />
são sempre as mesmas;<br />
um sino vinculado<br />
a uma tradição<br />
que vem do fundo<br />
dos séculos, com<br />
timbre grave, solene;<br />
o pórtico bonito,<br />
nobre, que avança<br />
sobre a rua, e a<br />
torre em cujo ângulo<br />
figura um Anjo<br />
apoiado sobre um<br />
letreiro que diz: Ora<br />
et labora. É o símbolo<br />
da venerabilidade.<br />
“Reza e trabalha”<br />
é o lema da<br />
Ordem de São Bento:<br />
medita, conside-<br />
Imagem de São Bento na fachada do<br />
mosteiro beneditino em São Paulo<br />
Gabriel K.<br />
Maik Pereira (CC3.0)<br />
Mosteiro de São Bento, São Paulo, Brasil<br />
ra, contempla e trabalha com as suas<br />
próprias mãos.<br />
Na frente, a figura de São Bento: um<br />
homem já sexagenário ou mais, com<br />
uma grande barba, um ar de pastor,<br />
com um cajado, olhando a cidade que<br />
passa. É o próprio exemplo da estabilidade,<br />
da seriedade, da profundidade<br />
de vistas, da alma patriarcal, do espírito<br />
varonil desses homens que não têm<br />
prole material, mas possuem prole espiritual<br />
infinda, e cuja figura se impõe à<br />
veneração de todos os séculos. Esta é a<br />
venerabilidade. Ela, como eu disse, tem<br />
como fundo a seriedade, como prolongamento<br />
a força e como ponto terminal<br />
28
Ken Crosby (CC3.0)<br />
Mosteiro de São Paulo<br />
Mosteiro de São Pedro<br />
R J McNaughton (CC3.0)<br />
Mosteiros onde São Beda passou a maior parte de sua vida, em Monkwearmouth-Jarrow, Reino da Nortúmbria<br />
a abnegação. Quem é sério, forte, abnegado,<br />
este é respeitável.<br />
Quando virmos alguma coisa que<br />
não é venerável, tenhamos certeza<br />
de que ali não está o sinal distintivo,<br />
o espírito próprio da Igreja Católica.<br />
Ela comunica uma nota de respeitabilidade<br />
e de venerabilidade a tudo.<br />
A Igreja não toca em nada sem enobrecer<br />
aquilo em que tocou, e não há<br />
verdadeira nobreza que não se distinga<br />
pela nota da venerabilidade.<br />
As nocivas influências<br />
da “heresia branca”<br />
e do otimismo<br />
A sacralidade é a mais alta expressão<br />
da venerabilidade. Isto vale<br />
para formar o nosso espírito contra<br />
duas espécies de influências que recebemos:<br />
primeiro, a “heresia branca”<br />
2 expressa em certas imagens de<br />
Santos que olham com uma carinha<br />
sentimental e despreocupada. Não<br />
deveriam ser assim. As coisas santas<br />
precisam ser veneráveis, incutir respeito.<br />
É necessário defender Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo, Nossa Senhora,<br />
a Santa Igreja Católica contra isto.<br />
Em segundo lugar, contra outra<br />
forma de influência que reputo também<br />
muito inconveniente e nociva: essa<br />
espécie de otimismo cândido e engraçado<br />
de nossos dias, que não é senão<br />
uma espécie de bobeira oficializada.<br />
Pessoas corroídas de preocupação,<br />
que trabalharam o dia inteiro como<br />
mouros, de olho afiado para pegar o<br />
que puderam, e que, entretanto, chegando<br />
a hora do jantar, à noite, estão<br />
todas com umas carinhas de anjinhos<br />
inocentes e idiotas, não Anjos verdadeiros,<br />
mas uma caricatura.<br />
É contra essas influências que destaco<br />
o título de São Beda, o Venerável.<br />
Como eu gostaria de o ter conhecido,<br />
como me atrai imaginar seu<br />
porte que é mais de um monumento<br />
do que de gente; quando um homem<br />
adquire tal ar, fica parecido com uma<br />
catedral! Então, vendo São Beda, o<br />
Venerável, ajoelhar-me diante dele,<br />
oscular seus pés e implorar que ele<br />
me obtivesse de Nossa Senhora algo<br />
Morte de São Beda<br />
dessa venerabilidade, sem a qual não<br />
se tem o espírito católico. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
27/5/1970)<br />
1) Presbítero e Doutor da Igreja. Passou<br />
toda a sua vida no mosteiro de Wearmouth,<br />
na Nortúmbria, Inglaterra.<br />
Dedicou-se com fervor a meditar e<br />
expor as Sagradas Escrituras (†735).<br />
2) Expressão metafórica criada por <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> para designar a mentalidade<br />
sentimental que se manifesta na piedade,<br />
na cultura, na arte, etc. As pessoas<br />
por ela afetadas se tornam moles,<br />
medíocres, pouco propensas à<br />
fortaleza, assim como a tudo que signifique<br />
esplendor.<br />
The Project Gutenberg (CC3.0)<br />
29
Apóstolo do pulchrum<br />
NASA (CC3.0)<br />
Contemplação do<br />
universo sideral<br />
Deus poderia perfeitamente ter feito fogos de artifício<br />
magníficos e incomparáveis, perto dos quais os nossos<br />
fossem uma caipirada. Entretanto, criando os astros,<br />
deu-nos a ideia de um espetáculo pirotécnico, com<br />
a possibilidade de projetar no ar uma ordem que,<br />
debaixo do ponto de vista lógico e puramente estético,<br />
em algo é mais bonita do que a ordem que Ele fez.<br />
Ao considerarmos o universo sideral, vemos uma<br />
tão grande série de maravilhas que o maravilhoso<br />
se multiplica pelo maravilhoso e ficamos<br />
sem saber o que dizer à vista de tudo isso. Os comentários<br />
que mais saltam aos olhos são banais e morrem<br />
por incertos, indecisos, restando um vagido inexpressivo<br />
e insuficiente. Aquilo que é lindo pede uma exclamação:<br />
“Que lindo!” Mas isso todo mundo viu. E se começamos<br />
a descrever o lindo, quebra-se a impressão do conjunto<br />
que ele causa.<br />
Assim sendo, vou apenas esboçar três ou quatro comentários,<br />
dos quais um não é de caráter artístico, porém<br />
consiste mais em uma reflexão do que num comentário:<br />
é a analogia entre o inter-relacionamento dos corpos<br />
celestes e a sociedade humana.<br />
Imagem possante da sociedade orgânica<br />
Se formos ao centro de uma grande cidade, olharmos<br />
do alto de um prédio para baixo e virmos aquele “formi-<br />
Dhirajphotography (CC3.0)<br />
30
gueiro” de gente que anda de um lado para outro, nossa<br />
primeira impressão é de desordem. As pessoas correm<br />
com toda espécie de objetivos, entrecruzam-se e, contudo,<br />
não se chocam umas com as outras.<br />
Ora, a impressão que se tem ao contemplar os corpos<br />
celestes é de que estamos num arranha-céu, olhando<br />
muito de longe um mundo de gente andando. Tudo isso é<br />
posto em andamento por atrações diversas. Entretanto,<br />
nesse todo que parece um magma sem sentido nem estrutura<br />
que lhe dê uma significação especial, vemos que<br />
há grupos de corpos geminados, irmanados, em relação<br />
uns com os outros, formando galáxias e estas, por sua<br />
vez, constituindo outros conjuntos nos quais encontramos<br />
uma imagem possante da sociedade orgânica.<br />
A sociedade orgânica, como ela existiu nos tempos da<br />
Civilização Cristã, era assim. A partir da prodigiosa desordem<br />
dos indivíduos, começa a se notar a aglomeração<br />
em famílias, em corporações, em municípios, em regiões,<br />
em feudos. Depois, esses mesmos se reúnem em outros<br />
grupos até dar na estrutura de cúpula que era o Sacro Império<br />
Romano Alemão, o qual poderia ser comparado um<br />
pouco como uma visão de conjunto da abóbada celeste.<br />
Percebemos, assim, que, para ordenar os corpos do<br />
firmamento, Deus usou de um sistema parecido com<br />
aquele pelo qual Ele quis ordenar a sociedade humana,<br />
dando-nos uma noção de como o princípio da unidade<br />
na variedade pode ser aplicado de um modo sumamente<br />
conveniente.<br />
Essa unidade, considerada nos seus elementos mais fundamentais<br />
e mínimos, dá uma impressão de desordem.<br />
Mas à medida que vão se formando vistas arquitetônicas<br />
desses e daqueles seres, notamos como eles constituem<br />
conjuntos que, por sua vez, encaixam-se em conjuntos sucessivos,<br />
dando tudo numa grande ordem total que é a beleza<br />
e a sábia disposição de tudo quanto ali se encontra.<br />
Ora, não podia ser ignorada por Deus a possibilidade<br />
de, com o avanço da Ciência, o homem vir a conhecer<br />
o cosmo com riqueza de pormenores. E essa possibilidade<br />
ocorreria quando na Terra esse princípio acima enunciado<br />
estivesse mais negado e mais subvertido.<br />
Na ordem sideral há uma negação<br />
da mentalidade revolucionária<br />
Vemos na ordenação dos astros uma imagem impressionante<br />
dos céus e da Terra de fato cantando a glória de<br />
Deus, como diz o salmista (cf. Sl 18). Mas narram-na da<br />
seguinte maneira, entre outros aspectos: a ordenação orgânica<br />
de todo o universo, e como tudo corre bem sem<br />
trambolhões, nem choques, sem desastres e sem catástrofes.<br />
Por outro lado, na Terra, quando esse mesmo princípio<br />
é negado entre os homens, tudo corre mal. De fato,<br />
céus e Terra narram a glória de Deus porque esse princípio<br />
ordenativo, admitido no céu, causa essa ordem magnífica;<br />
negado aqui na Terra, dá nesse caos pavoroso. Então,<br />
no contraste podemos ver a afirmação da glória de Deus.<br />
NASA (CC3.0)<br />
31
Apóstolo do pulchrum<br />
NASA (CC3.0)<br />
Ademais, há na ordenação sideral uma negação da<br />
mentalidade revolucionária. Sempre me chamou a atenção<br />
o modo pelo qual certos problemas sociais, psicológicos,<br />
educacionais, pedagógicos são postos em nossa época.<br />
Vemos certos especialistas discorrerem, por exemplo,<br />
sobre o problema infantil: “Ah, o problema da criança é<br />
gravíssimo! Se, de fato, o Estado não tomar essas e aquelas<br />
medidas, vai acontecer tal coisa...”<br />
Eu penso: “Meu Deus, que pedagogia é essa que vê<br />
em cada criança exclusivamente uma bomba? É um contínuo<br />
apagar de incêndio. Tem que extinguir mil labaredas<br />
nesse ente, que quase se diria ser uma pequena<br />
hiena no mundo, e é uma<br />
criança que nasceu. Tudo<br />
isso é assim mesmo?”<br />
Além do problema do<br />
menor, tem o da velhice;<br />
depois dos salários, das<br />
comunicações. E a ordem<br />
nesta Terra, em vez de ser<br />
apresentada principalmente<br />
como algo que se liga<br />
e anda, embora sujeita<br />
a insucessos e catástrofes<br />
derivadas próxima ou remotamente<br />
da impiedade<br />
e do pecado, pelo contrário<br />
é vista como sendo por<br />
natureza uma coisa sempre<br />
em explosão, em perigo<br />
de choque. O corolário disso<br />
é a necessidade da inter-<br />
venção do Estado socialista,<br />
planejando e dirigindo<br />
tudo, para solucionar esse<br />
pânico contínuo provocado<br />
por certo tipo de Ciência<br />
ao considerar os fenômenos<br />
humanos.<br />
Um indivíduo dominado<br />
por esse espírito, ao analisar<br />
o que se passa nos astros,<br />
diria: “Há o problema<br />
das explosões no céu. Pensamos<br />
que de repente haja<br />
uma explosão e um corpo<br />
celeste pode mover-se em<br />
sentido contrário, ocasionando<br />
um desastre.”<br />
Nós olhamos encantados<br />
para essas explosões<br />
trágicas e lindas, sem saber<br />
se é a apoteose de um processo que foi se formando<br />
na aparência da desordem para dar um magnífico<br />
fogo de artifício, ou se, pelo contrário, é um verdadeiro<br />
desastre.<br />
Contudo, quer as explosões-desastre, quer as explosões-apoteose,<br />
triunfais, em que uma determinada situação<br />
se liquida no fulgor de uma bagunça magnífica,<br />
não há epidemias de desastres. Esses fenômenos se<br />
contêm, se circunscrevem, têm forças contrárias que os<br />
compensam, etc. Assim também a verdadeira sociedade<br />
orgânica, católica, em que a impiedade e o pecado estão<br />
contidos.<br />
Gabriel K.<br />
32
Crochet.david (CC3.0)<br />
Explosões da santidade, do gênio, do talento<br />
Por certo, mesmo em uma sociedade humana virtuosa<br />
e ordenada há desastres, choques, e convém<br />
atendê-los. Mas não é uma coisa que está a toda hora<br />
caindo, sendo preciso um Estado omnipotente, omnisciente,<br />
tomando conta de tudo, fazendo prodigiosos<br />
institutos, babéis securitárias para tomar conta disso.<br />
Deus nos livre dessas “camisas de força” administrativas,<br />
dentro das quais quase não se pode respirar<br />
nem piscar sem se deixar carimbar, estampilhar, fazer<br />
requerimento...<br />
Felizmente ainda não foi dada aos seres humanos a<br />
oportunidade de tentar controlar o movimento dos astros,<br />
porque se houvesse essa possibilidade, podem ter<br />
certeza de que caía o dirigismo por cima disso também.<br />
E com ele sairia besteira. Isso tudo corre por si, pois não<br />
tem ali o pecado, o mal, nem os fatores de desordem que<br />
conhecemos.<br />
Donde se tira uma conclusão que a mim agrada<br />
muito: uma sociedade humana da qual a impiedade e<br />
o pecado estivessem expulsos poderia ser nobremente<br />
livre, cheia de imprevistos magníficos e até, num<br />
certo sentido, de explosões benditas, que são as explosões<br />
da santidade, do gênio, do talento, da originalidade<br />
adequada, que de todos os lados se manifes-<br />
tariam. Originalidade aqui não é extravagância, mas<br />
novidade sadia.<br />
De outro lado, constatamos até que ponto a impiedade<br />
e o pecado organizaram a desordem para que o mundo<br />
pudesse chegar ao ponto em que está. Esse próprio<br />
equilíbrio das coisas humanas, pelo qual, dentro do âmbito<br />
da virtude, elas podem entrar em desordem, mas se<br />
compensam e se consertam; esse equilíbrio magnífico<br />
que se pode chamar de saúde do gênero humano, entretanto,<br />
foi destruído por uma obra científica intencional,<br />
com o intuito de levá-lo até onde rolou e caiu.<br />
Se não tivesse havido uma intenção e uma execução<br />
desse método, não teríamos chegado onde estamos em<br />
matéria de desordem, e não estaríamos ameaçados de<br />
descer ainda mais baixo. É esse o contraste que podemos<br />
notar entre o universo sideral e a sociedade humana, como<br />
ela nos aparece hoje em dia.<br />
Os céus de Versailles cruzados<br />
por fogos de artifício<br />
Imaginem o grande canal de Versailles, tendo ao fundo<br />
o castelo magnífico, o parque que se desenvolve ordenadamente<br />
de um lado e doutro do grande canal e se<br />
desdobra até um emolduramento de florestas, em que<br />
33
Apóstolo do pulchrum<br />
cada árvore é uma obra-prima de elegância, de graça,<br />
quase como se fosse um marquês ou uma marquesa, a<br />
ponto de se poder falar, de certo modo, das florestas como<br />
se fossem cortes.<br />
Sobre as águas transitam harmoniosamente as gôndolas<br />
douradas que Luís XIV ali mandou pôr; embarcações<br />
com magníficos veludos que ficam pairando sobre<br />
a massa líquida e constituem como que a cauda<br />
pomposa da gôndola, algumas delas com lanternas iluminadas.<br />
Em algumas se ri, em outras se canta, em outras<br />
se toca música, em quase todas se come ou se bebe<br />
um pouco.<br />
De repente, os céus de Versailles são cruzados por<br />
centenas de fogos de artifício magníficos que sobem e<br />
delineiam uma feeria de luzes e corpos celestes, lançados<br />
pelo homem para iluminar o firmamento, conforme<br />
o próprio homem imaginaria como o céu seria bonito.<br />
Portanto, uma imagem do firmamento toda ela artificial,<br />
construída pelo homem.<br />
Se confrontarmos esse espetáculo com as figuras que<br />
vemos formadas pelos astros na abóbada celeste, poderíamos<br />
nos perguntar o que é mais belo. E num primeiro<br />
momento responderíamos com ênfase que a obra saída<br />
diretamente das mãos de Deus é incomparavelmente<br />
mais bela. Entretanto, não se pode negar que a ordenação<br />
artística e visível que o fogo de artifício põe, efemeramente,<br />
nos aspectos do céu tem para a mente humana<br />
algo de mais belo do que nos apresenta o universo<br />
sideral.<br />
Esses astros, dispostos na desordem como alguém<br />
que enchesse a mão de farinha e esparramasse sobre um<br />
tecido, não têm para a concepção humana a beleza dos<br />
fogos de artifício, os quais formam geometrias magníficas<br />
quando lançados nos céus de Versailles ou de qualquer<br />
outro lugar.<br />
Estaremos errados? Há um choque entre a obra divina<br />
e a humana? Deus trata o homem com tanto respeito<br />
e delicadeza, que fez todas essas maravilhas, mas deu-<br />
-lhe a oportunidade de superar em algo aquilo que Ele<br />
mesmo criou. É um requinte de delicadeza e de misericórdia<br />
paterna, por onde o próprio Criador quer aparecer<br />
ao homem debaixo de outro aspecto, para que ele O<br />
ame mais inteira e plenamente.<br />
Creio que, se não houvesse estrelas no céu, o homem<br />
não teria imaginado os fogos de artifício. Deus poderia<br />
perfeitamente ter feito fogos de artifício magníficos e incomparáveis,<br />
perto dos quais os nossos fossem uma caipirada.<br />
Mas não fez. Entretanto, criando os astros, deu-<br />
-nos a ideia de um espetáculo pirotécnico, com a possibilidade<br />
de projetar no ar uma ordem que, debaixo do ponto<br />
de vista lógico e puramente estético, em algo é mais<br />
bonito do que a ordem que Ele fez.<br />
Nossa Senhora é o centro e o ápice de<br />
todas as maravilhas do universo<br />
Alguém poderá objetar: “Mas isso não O diminui?<br />
Não nos dá orgulho, fazendo-nos pensar que em algo somos<br />
mais do que Ele?”<br />
Ora, Deus é tão poderoso e é tão autêntica a infinitude<br />
do seu poder, que Ele fez tudo isso, mas muito mais do<br />
que isso: criou almas capazes de pensar, imaginar e compor<br />
algo em certo sentido melhor do que aquilo criado<br />
por Ele. Ao fazer isso, demonstra um poder incomparavelmente<br />
maior, com a delicadeza de quem diz: “Meu filho,<br />
complete o desenho!”<br />
Ao mesmo tempo, manifesta Ele essa grandeza fabulosa,<br />
como quem afirma: “Meu filho, veja o que tu és!<br />
És pensante e capaz de acrescentar uma nota de harmonia<br />
a tudo isso, porque és mais parecido comigo do que<br />
todo o universo. Essas são minhas semelhanças, tu és a<br />
minha imagem. Meu filho, como te amei quando assim<br />
te criei e quando aproximei as nossas naturezas, elevando<br />
a tua ao unir ambas numa só Pessoa! Veja como tudo<br />
isso é zero em comparação com as grandezas intelectuais,<br />
espirituais, morais, sobrenaturais para as quais foste<br />
criado. Quando um dia passeares por essas vastidões,<br />
em comparação com as quais és mais pequenino do que<br />
um micróbio, sentir-te-ás um verdadeiro rei, pois compreenderás<br />
que por teres existido, pensado, amado, sentido<br />
e agido conforme a Mim, teu Deus, te tornaste incomparavelmente<br />
mais belo do que todo o universo.”<br />
Ó Sol, ó Lua, ó universo, ó maravilha! Ó poeira... A<br />
menor das almas que está no Céu é mais maravilhosa do<br />
que tudo isso.<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo Se voltaria para Nossa Senhora<br />
e diria: “Vós sois minha Mãe, o centro e o ápice<br />
dessas maravilhas. Em Vós há mais beleza do que em toda<br />
a Criação. Quem contempla o vosso olhar, contempla<br />
todo o universo em um grau de beleza e de perfeição como<br />
não se pode imaginar.”<br />
Por fim, imaginemos a Santíssima Virgem, do alto do<br />
Céu, contemplando todas essas maravilhas e pedindo<br />
em nosso favor a graça de fazermos bem esta meditação,<br />
e Se interessando mais em ver o movimento da graça em<br />
nossas almas do que em conhecer o universo. Para Ela,<br />
cada um de nós vale muito mais do que essas imensidões<br />
que nos deslumbram. Com isso compreendemos quanto<br />
valemos, quanto Deus e Nossa Senhora nos amam, e<br />
que possibilidades magníficas, como também responsabilidades,<br />
há diante de nós. Assim, estaria feita uma reflexão,<br />
entre mil outras que a contemplação do universo<br />
sideral nos sugere.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 25/2/1977)<br />
34
35<br />
Gabriel K.
A mais fulgurante<br />
de todas as estrelas<br />
Flávio Lourenço<br />
Detalhe de um vitral<br />
em Notre-Dame de<br />
Dijon, França<br />
Nossa Senhora é chamada, muito a propósito, de Estrela Luminosíssima. Incontáveis<br />
astros reluzem no firmamento, porém Ela é o mais resplandecente de todos, ou seja,<br />
Maria é a mais luminosa das criaturas. E por que é simbolizada pela estrela? Porque<br />
é durante a noite que cintilam as estrelas, e esta vida é para o católico uma noite, um vale<br />
de lágrimas, uma época de provação, de perigo e de apreensões. Na eternidade teremos o dia,<br />
porém na vida terrena temos o escuro da madrugada. E nesta noite existe uma estrela que nos<br />
guia, que é a consolação de quem caminha nas trevas, olhando para o céu: Maria Santíssima,<br />
a mais fulgurante de todas as estrelas!<br />
(Extraído de conferência de 24/8/1965)