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Livro Bélicas Letras

Trabalho realizado para a avaliação final da disciplina Projeto de Programação Visual: Design Editorial, do quatro período do curso de graduação em Design Gráfico da Universidade Estácio de Sá.

Trabalho realizado para a avaliação final da disciplina Projeto de Programação Visual: Design Editorial, do quatro período do curso de graduação em Design Gráfico da Universidade Estácio de Sá.

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Marcus Vinicius Quiroga<br />

LitBras


Marcus Vinicius Quiroga<br />

LitBras<br />

2018


Direitos<br />

C 2005 Marcus Vinicius Quiroga<br />

É proibida a reprodução e duplicação deste volume, no todo<br />

ou parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios<br />

(eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia, distribuição na WEB<br />

e outros)sem permissão expressa do autor.<br />

Ficha Técnica<br />

Editora: LitBras<br />

Revisão: Viviane Fernandes<br />

Projeto gráfico: Thamires de Oliveira Nogueira<br />

Diagramação: Thamires de Oliveira Nogueira<br />

Imagens retiradas da internet<br />

Ficha Catalográfica<br />

Catalogação-na-Publicação (CIP) - Brasil<br />

Q 84 b Quiroga, Marcus Vinicius<br />

<strong>Bélicas</strong> <strong>Letras</strong> / Marcus Vinicius Quiroga - Rio de Janeiro:<br />

LitBras, 2017.<br />

184 p. ; 21 cm.<br />

ISBN 978-85-68881-01-9<br />

1. Poesia Brasileira. I. Título.<br />

CDD: B869.8


9<br />

14<br />

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117<br />

121


Capítulo 1<br />

Sentiu, ainda na adolescência, a vocação para a literatura.<br />

Mas isto não era uma profissão, disse-lhe o pai, que não via com<br />

os olhos masculinos a opção pela poesia. A mãe, por sua vez,<br />

temia por sua qualidade de vida, expressão que repetia, entre<br />

suspiros e olhares de receio. Com o tempo, os pais tiveram êxito<br />

em parte: desviou-se da poesia e entregou-se à prosa, mesmo<br />

que sob as palavras de desestímulo e desaprovação familiar.<br />

Escrevia com frequência, porém sem método, narrativas<br />

curtas, que acumulava em pastas de forma desorganizada. Aos<br />

poucos, a pilha destas pastas pesava num canto da estante. É<br />

claro que nada mostrava e aos pais parecia que as horas gastas<br />

na escrivaninha se justificavam por ele ser um aluno dedicado,<br />

não um pretenso escritor. Escrevia em segredo, portanto, e não<br />

relia para melhorar o texto. Era matéria bruta que habitava seus


papéis. Jamais teve a ideia de que suas histórias poderiam ser<br />

melhoradas, seu personagens aprofundados ou, pelo menos,<br />

suas incorreções gramaticais corrigidas.<br />

Só quando já estava na universidade, por ocasião de<br />

um concurso exclusivo para estudantes, buscou um conto entre<br />

seus guardados e percebeu que era preciso reescrevê-lo,<br />

atualizá-lo, torná-lo mais atraente para a competição literária.<br />

Perdeu mais tempo do que supunha nesta tarefa e o prazo para<br />

a inscrição expirou. O conto ficaria para outra oportunidade,<br />

pensou consigo mesmo.<br />

Já formado e exercendo a carreira de advogado, um pouco<br />

a contragosto, lembrou que poderia retomar a literatura, como<br />

hobby, para compensar a leitura aborrecida do escritório e a redação<br />

burocrática de requerimentos e ações. Tirou o pó imaginários<br />

de seus textos e passou a reescrevê-los, quando se encontrava<br />

sozinho à noite em seu apartamento. Tornara-se agora um escritor<br />

com vagar e cuidado, demorando-se dias em só parágrafo,<br />

buscava a tal palavra exata, como lera uma vez em um ensaio crítico.<br />

Quanto à gramática, melhorava bastante e só um ou outro<br />

descuido acontecia. Afinal, o curso de Direito servira para algo: a<br />

aprendizagem da língua, talvez mais do que das leis.<br />

Uma vez, sem aparente razão, mostrou um conto a uma<br />

colega de escritório, que o incentivou a publicá-lo. Mas onde?<br />

Não sou da área, nem sei a quem me dirigir. Enviar para jornais<br />

e revistar e esperar respostas? Não, ela disse que gostou só por<br />

educação. Não é lá um texto digno de publicação. E para quê? Sou<br />

advogado e isto me basta.<br />

Desta forma, a história permaneceu quase inédita.<br />

Seja lá como for, casou-se mais tarde com sua única leitora<br />

e se mudou para um apartamento maior. Apesar da receptividade<br />

que teve na primeira vez, quase não mostrava seus rabiscos<br />

– era assim que designava suas obras – à mulher, que, com o<br />

tempo e a vida doméstica, foi se esquecendo de que seu marido<br />

era, além de advogado trabalhista, um contista amador. Até que<br />

10 Marcus Vinicius Quiroga Capítulo 1


um dia leu no jornal um anúncio de uma oficina literária e, para<br />

sua própria surpresa, matriculou-se na semana seguinte. Manteve,<br />

entretanto, segredo e disse em casa que entrara em um<br />

curso de Espanhol, língua que sempre o atraíra, só que se dedicara<br />

ao Inglês por motivos profissionais. Agora, sim, tinha tempo<br />

e poderia realizar seu sonho: ler Cortazar e Borges no original.<br />

Com um ano de oficina, decidira, com o incentivo do professor,<br />

pagar a publicação de um livro de contos. Fizeram juntos<br />

a seleção e até conseguiu um prefácio de um escritor renomado,<br />

graças a um pedido de seu professor. Quando a diagramação já<br />

estava sendo feita, mudou de ideia. Surgiram-lhe dúvidas quando<br />

à qualidade dos textos, não lhe pareceram suficientemente<br />

originais. Seria só um discípulo, um epígono? Ainda não tinha<br />

estilo próprio, argumentou com o professor, que perdia também<br />

naquele momento um aluno em sua oficina.<br />

Aos 40 anos, recebera no aniversário uma seleção de<br />

contos machadianos, e a ideia voltou como um pêndulo diante<br />

dele. Até que o movimento parou e o entusiasmo por publicar<br />

a primeira obra de uma carreira que agora iria se afirmar. Releu<br />

narrativas, fez anotações, correções, mudanças, preparou com<br />

zelo os originais e entregou a um pequeno editor. Quando a mulher<br />

percebeu a agitação, ele se viu forçado a confessar que iria<br />

finalmente iniciar sua história de escritor. Fizeram planos juntos:<br />

o lançamento, lista de convidados, o coquetel, notas em suplementos<br />

literários e até as variantes de autógrafos.<br />

Sorte que quanto os dois mil exemplares chegaram, ele<br />

já morava em uma casa, ampla, com vários quartos, e pôde,<br />

assim, guardá-los sem causar muito incômodo. Olhava diariamente<br />

aqueles pacotes de livros e não se animava a marcar a<br />

data do lançamento. Depois de três meses, a mulher se cansou<br />

da pergunta e nunca mais entrou no quarto em que os livros<br />

foram armazenados.<br />

Seu interesse pela leitura não diminuíra durante estes<br />

anos todos. Ainda que não tenha se tornado um escritor,<br />

Capítulo 1<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 11


permanecia um leitor cada vez mais voraz e seletivo. Lera os<br />

clássicos, os contemporâneos nacionais e, particularmente,<br />

os latino-americanos, além dos livros de teoria literária e de<br />

crítica passiva. Aprendera muito nestas quatro décadas, tornara-se<br />

um crítico severo e criterioso e fazia restrições fundamentadas<br />

a muitos autores de sucesso. A mulher fazia que<br />

sim com a cabeça para suas longas e frequentes explanações<br />

a respeito de como escrever um bom conto.<br />

Poucos meses após ter se aposentado, resolveu fazer obra<br />

em casa para se ocupar, dizia. Dali a um ano, tinha um cômodo<br />

para escritório e outro, bastante espaçoso para a biblioteca.<br />

Lá pôs em estantes de todo tipo um acervo que, nos seus 70<br />

anos, atingia os vinte mil volumes. Era lá também que seus netos<br />

sabiam encontrá-lo: cachimbo na boca, livro na mão e o ar<br />

quem falava sozinho. Nas gavetas de seu escritório os textos críticos,<br />

os pequenos ensaios e comentários sobre os lançamentos<br />

semanais ocupavam o lugar dos antigos contos. Mostrava<br />

alguns destes estudos na roda de escritores da terceira idade<br />

da qual participava num clube do bairro, mas a maioria habitava<br />

silenciosamente as gavetas e prateleiras.<br />

Com a morte da mulher, coube-lhe como ocupação organizar<br />

o material escrito durante toda a sua vida. Ao fim de meses,<br />

deparou-se com vinte volumes de contos, exaustivamente reescritos<br />

por décadas de criação e estudos literários, que somavam<br />

2348 páginas de excelente ficção, sejamos justos. Por que não<br />

publicá-los todos de uma vez? Seria o único autor a ter as obras<br />

completas inéditas editadas ao mesmo tempo. Como estratégia<br />

de marketing não era má ideia.<br />

Em pouco tempo, conseguiu um editor, que, além de<br />

gostar da parte do material lido, animou-se com o fato de que<br />

o autor financiaria dois mil exemplares das obras completas<br />

em três volumes. Mas estes, por exigência do escritor, teriam<br />

que ser lançados no mesmo dia. Os netos se encarregariam do<br />

coquetel, dos convites, da divulgação na imprensa e o levariam<br />

12 Marcus Vinicius Quiroga Capítulo 1


à livraria. Assinaria apenas o nome na primeira página dos livros<br />

para não se cansar com autógrafos.<br />

Com a perspectiva de uma prestação de serviço bem rentável,<br />

o editor aprontou os livros no prazo recorde de 4 meses e<br />

fez questão de levar pessoalmente um pacote com 50 exemplares<br />

para a casa do autor. Este esqueceu-se até da viuvez e, feliz,<br />

levou os livros para a biblioteca, depois da saída do editor. Colocou-os<br />

na estante do fundo e parou admirando a prateleira só<br />

com seus livros. Seu nome na lombada fazia com que se sentisse<br />

pela primeira vez um escritor de fato.<br />

Encantado com a sensação, não percebeu que a lenta e<br />

contínua ação dos cupins fez com que as estantes apodrecessem<br />

e caíssem feito um baralho de cartas sobre ele. Tentou ainda<br />

apanhar um de seus livros. Mas não conseguiu, o gesto parou<br />

no ar e o peso de milhares de outros livros o impediu. A vista<br />

exausta não reparou na infiltração que surgira há dois anos, nem<br />

nos cupins que vieram como consequência.<br />

Na manhã seguinte um neto, como o avô não atendia o<br />

telefone, nem a campainha da casa, arrombou algumas portas<br />

até avistar as estantes roídas e vinte e três mil livros espalhados<br />

no chão. O corpo do avô, este jamais foi encontrado.<br />

Capítulo 1<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 13


Capítulo 2<br />

O filósofo dedica 10 minutos ao planejamento diário<br />

de suas especulações e as anota em sua agenda. Respeita o<br />

acordo feito consigo mesmo: caso alguma ideia surja durante o<br />

expediente que não tenha sido previamente agendada será posta<br />

de lado, isto é, anotada para as especulações do dia seguinte.<br />

Ele dá sempre prioridade a pensar sobre o que foi destinado<br />

para aquele dia. Obedece ao cronograma cartesianamente.<br />

Ao fim do dia, sempre avalia o tempo gasto nas tarefas, para<br />

verificar se não houve desperdício ou mau uso do tempo, de forma<br />

a mudar sua conduta e aproveitar melhor o passar do tempo com<br />

suas tarefas filosóficas. Sabe que o exercício da razão é fundamental,<br />

especialmente sua utilização para refletir sobre ela mesma.<br />

Na agenda matinal das tarefas inclui-se a hora destinada<br />

a avaliação do tempo gasto nas demais tarefas. São dados va-


liosos para o replanejamento diário e contínuo. Com a prática,<br />

o filósofo passa a fazer as mesmas reflexões em menos tempo<br />

ou, em alguns casos, prefere abandonar determinada linha de<br />

raciocínio por ela demandar um tempo extra, não conveniente<br />

para o desempenho especulativo cotidiano.<br />

Sim, é preciso fazer escolhas. Aliás, há pensadores que<br />

fazem deste capítulo – o das escolhas permanentes – o alvo de<br />

suas obras. Tais autores devem ser lidos com atenção, mas deve-se<br />

também evitar a influência de sua linguagem e de suas<br />

preferências temáticas. Bergson sabe que deve se ater à questão<br />

do tempo, pois esta é a encomenda de seu editor e ele não<br />

tem muito tempo extra para divagações. A entrega da obra fora<br />

do prazo pode lhe acarretar multa contratual, dor de cabeça e<br />

aborrecimentos com o editor. Por exemplo, nesta estação seria<br />

mais aconselhável ele cancelar o curso de ginástica, enquanto<br />

não terminar os capítulos programados. Os exercícios físicos podem<br />

esperar, já a palavra dada, não.<br />

Quanto a reuniões e entrevistas particulares, muitas vezes<br />

solicitadas por seus discípulos, há uma pasta em seu gabinete à<br />

disposição de qualquer um, para agendamento. Deste modo, o<br />

pupilo, o fã ou o repórter poderá marcar uma hora sem ter que<br />

entrar em contato com sua secretária ou com ele mesmo, o que<br />

lhe acarreta mais uns minutos úteis para a auto inquirição.<br />

Desde que aprendeu a respeitar seu ritmo, ele prefere fazer<br />

a maior parte das tarefas pela manhã, pois se encontra mais<br />

disposto e com melhor humor. Com o passar das horas, cansa-<br />

-se com suas ideias múltiplas, e não raras vezes contraditórias,<br />

sobre o objeto em estudo. No íntimo, pergunta-se como os leitores<br />

têm paciência para a leitura de seus textos, uma vez que<br />

reconhece ser dado a digressões com acentuada frequência.<br />

Não gosta de telefonar para outros filósofos à noite,<br />

pois, sendo eles estrangeiros, pensam em fuso horário diferente.<br />

Isto o incomoda, a ponto de preferir mudar algumas noções<br />

de sua filosofia a ter que permanecer acordado até muito<br />

Capítulo 2<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 15


tarde, para dialogar com pensadores afins, mas que moram em<br />

países muito distantes. Daí ter surgido certa teoria feita de que<br />

cidadãos que vivem em fusos horários diversos não serem propensos<br />

ao diálogo, já que as palavras proferidas encontram-se<br />

em tempos diferentes, o que, racionalmente, anula a ideia de<br />

simultaneidade desejada em um diálogo. Ainda que tal teoria<br />

esteja por ora na categoria de suposição já lhe rendeu fama e<br />

a expulsão do círculo filosófico oriental.<br />

Argumenta a seu favor que as reuniões às quais vai acontecem<br />

sempre na mesma hora para todos os participantes, o<br />

que pode ser verificado pelo mesmo índice de tédio e de epistemologia<br />

apresentado ao final das reuniões. Há tempos só<br />

coordena reuniões de no máximo meia hora, com pauta pré-fixada,<br />

sem intervalo e sem café. Quando por alguma razão, não<br />

pode dirigir tais encontros, envia um ator com a sua máscara e<br />

com a recomendação de que permaneça em silêncio o tempo<br />

todo, com um olhar de profunda meditação para inibir qualquer<br />

pergunta inoportuna.<br />

Quanto à correspondência, o filosofo sabe que a maior<br />

parte é mesmo de credores e de tarifas e tributos do Estado,<br />

portanto deixa que se acumulem na pasta de entrada. Esta tarefa<br />

é delegada à secretária e evita a perda de apetite. Claro, a<br />

boa alimentação é recomendada para quem tem que lidar com<br />

tantos axiomas e premissas por dia.<br />

Um mestre disse-lhe para criar uma hierarquia antes de<br />

se entregar às atividades de especulação pura. Deveria atribuir-<br />

-lhes uma nota em função da urgência com que teriam que ser<br />

abordadas. Há soluções que podem esperar mais do que outras<br />

para virem à luz e há muitas que jamais virão, pois nós, filósofos,<br />

não temos a menor ideia de como encontrá-las. Não se deve<br />

também registrar urgência em mais de duas delas ou algo vai<br />

mal com o método utilizado para questionar o universo. Aconselhou-o<br />

ainda este mestre a que ele aprendesse a dizer não,<br />

mas que procurasse achar o equilíbrio para não ser julgado um<br />

16<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 2


filósofo pessimista ou sombrio, o que faz com que os pedidos de<br />

suas obras por parte das livrarias caia vertiginosamente.<br />

Bergson acredita que sua filosofia se encaminha para surpresas<br />

e formulações inéditas, depois que, em seu último aniversário,<br />

sua mulher presenteou-lhe com um relógio de bolso.<br />

Capítulo 2<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 17


Capítulo 3<br />

Marcada a data da inauguração do labirinto, disse a secretária<br />

para o assessor do secretário de arquitetura do município.<br />

Avise aos superiores sobre a temperatura prevista para<br />

o dia e as roupas recomendáveis para tal ocasião, de acordo<br />

com o parecer pertinente do código de vestimentas para solenidades<br />

e festas relativas a abismos, aquedutos, passagens<br />

subterrâneas e labirintos.<br />

O assessor faz a anotação em estilo burocrático em sua<br />

agenda de serviço e em estilo sintético na agenda pessoal. Levava<br />

uma vida dupla, como observamos. Ainda naquela manhã,<br />

o secretário seria avisado por memorando e bilhete manuscrito<br />

por peculiar caligrafia. O assessor tinha a vaidade de ser reconhecido<br />

pela letra, embora esta não fosse exemplar, apenas era<br />

inconfundível. Ora, toda vez que alguém no ministério lia um de


seus muitos bilhetes, sabia quem ser o autor e se lembraria de<br />

sua eficiência e, mais, de sua onipresença.<br />

Discreto em seus escritos, não dava a perceber a intenção<br />

de esperar o reconhecimento. Não usava um artigo a mais do<br />

que o preciso. Aliás, adorava ser visto como discreto, ainda que<br />

presente em todas as situações de serviço, desde as festinhas de<br />

aniversário nas diversas repartições como as de mais relevância,<br />

como era o caso da inauguração de um labirinto.<br />

Sua secretária já providenciara o regimento protocolar para<br />

o evento e já avisara ao chefe de cerimonial que cuidasse dos preparativos.<br />

Não teriam muito tempo, só uns dez dias. Isto significa<br />

que não haveria material impresso alusivo à data, só divulgação<br />

pela mídia. Mais tarde, sugeriram, fariam um selo comemorativo<br />

do labirinto. Um funcionário, primo de deputado, lembrou que<br />

poderiam instituir o dia do labirinto e que seu parente levaria de<br />

bom grado a ideia para a aprovação na câmara.<br />

Um gerente, categoria 3, de outro ministério, que tinha veleidades<br />

literárias, enviou um e-mail para o assessor, elogiando<br />

seus bilhetes e dizendo serem dignos de publicação pela gráfica<br />

oficial, uma vez que revelavam um estilo jornalístico contemporâneo<br />

de inegáveis méritos. O assessor surpreendeu-se com as<br />

palavras do colega, principalmente por não saber de quem se<br />

tratava. E, na dúvida, entregou-se a pensamentos a respeito do<br />

título fantasia para uma eventual publicação dos bilhetes, agora<br />

já vistos como material fictício.<br />

A expressão “inegáveis méritos” é que o preocupava. Era-lhe<br />

favorável, admitia, mas pecava pela falta de objetividade. Qualquer<br />

um, quando se aposenta, recebe uma placa e um discurso que fazem<br />

referência aos inegáveis méritos de sua atuação profissional.<br />

Todos os aposentados se parecem ou todos os discursos. O certo é<br />

que não queria ser tido como idêntico aos outros funcionários. Daí<br />

os bilhetes, a quantidade e o envio oportuno. Almejava ser objeto<br />

de comentários pelo maior número de salas do serviço público da<br />

capital. Caso a ideia se tornasse papel impresso, faria uma alusão<br />

Capítulo 3<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 19


ao tal gerente, categoria 3, em agradecimento à sugestão dada,<br />

mas jamais o convidaria para prefaciador.<br />

Em casa, a mulher perguntou-lhe se o livro não poderia<br />

ser editado sem prefácio, evitando, assim, o risco de expressões<br />

vagas e lugares-comuns desagradáveis. O assessor gostou<br />

do cuidado da mulher e percebeu que, sem prefácio, pareceria<br />

mais discreto ainda. Tomou uma resolução, portanto: o livro seria<br />

sem prefácio, sem orelha, sem quarta capa. E até sem dados<br />

biográficos. Discretíssimo.<br />

O marido de sua secretária, durante a janta, lamentou a<br />

ausência dos dados biográficos, pois esta página é sempre uma<br />

oportunidade para divulgar o autor, com fotografia e palavras.<br />

Quem sabe se ele fizesse uma exceção e pusesse três frases e uma<br />

pequena foto, com fisionomia séria e terno cinza, mas uma foto.<br />

Surgiu, assim, a dúvida na cabeça do assessor: a tentação<br />

em ser identificado para o leitor ou a opção pelo reconhecimento<br />

de sua discrição. E se ela não fosse reconhecida? Se o leitor<br />

pensasse que a falta de dados biográficos representasse o fato<br />

de o autor não ter currículo ou histórico? E se achassem que ele<br />

não passa de um iniciante, um neófito? Ser um neófito é pior do<br />

que ter “inegáveis méritos”, até porque muitos desconhecem o<br />

significado deste vocábulo.<br />

Um irmão mais velho trouxe-lhe outra questão. O conjunto<br />

de bilhetes escritos em circunstâncias profissionais, com<br />

finalidades específicas e de caráter exclusivamente pragmático<br />

seria julgado literatura? E, em caso afirmativo, de que gênero?<br />

Ora, ele jamais se pretendeu um autor de ficção, seu propósito<br />

seria o de ter sua obra distribuída pelas repartições públicas,<br />

manuseadas por funcionários e técnicos de carreira, ter seu<br />

nome gravado em alguma da memória de seus pares. Nada de<br />

autógrafos, entrevistas, holofotes. Isto entraria em confronto direto<br />

com sua discrição.<br />

Agora a tarefa seria pesquisar nas pastas as cópias destes<br />

bilhetes e os arquivos no computador, fazer uma seleção, estabe-<br />

20<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 3


lecer a cronologia, dividi-los talvez por temas, numerá-los, catalogá-los<br />

e preparar o material definitivo para a edição. Mas todo<br />

este serviço deveria ser feito fora dos olhares dos colegas e, de<br />

preferência, fora do horário do expediente. A edição deveria ser<br />

uma surpresa para todos. Aliás, teria que ser tratada como segredo<br />

militar, como se houvesse o risco de espionagem e de traição.<br />

Acontece que a excitação em realizar o livro e publicá-lo o<br />

modificou, as horas a menos de sono trouxeram-lhe olheiras, e<br />

o descaso com as refeições o emagreciam. Logo o secretário de<br />

arquitetura do município observou tais mudanças e indagou-lhe<br />

as causas. Ele, que não reparara nas próprias mudanças nem<br />

esperava pelas perguntas, respondeu de forma pouco convincente<br />

que não era nada, que sua vida era a mesma, que os serviços<br />

continuavam sendo feitos normalmente, com empenho e<br />

presteza. Não queria, como era de hábito, ser motivo de preocupação<br />

para seu superior. Desculpou-se sem jeito e em seguida<br />

retirou-se da sala.<br />

Uma cunhada, ainda estudante de Psicologia, lembrou-lhe<br />

a hipótese de que alguém poderia concluir que todos os bilhetes<br />

escritos ao longo de anos teriam um só motivo: a publicação de<br />

um livro pela gráfica oficial, ou seja, com o dinheiro público, e que<br />

a utilidade administrativa seria vista como secundária. Tal comentário<br />

não só provocaria um gradual afastamento do convívio com<br />

esta jovem, como tirou-lhe de imediato outras horas de sono, prejudicando-lhe<br />

ainda mais a aparência.<br />

Com o tempo, outras inquietações foram surgindo na forma<br />

de dúvidas, hipóteses, comentários, observações, perguntas.<br />

E, por mais que ele tentasse manter o controle, não era mais<br />

o mesmo. Seus colegas e superiores percebiam uma alteração<br />

na conduta, mas não sabiam precisar de que natureza e ordem<br />

ela era. Seria uma pré-mudança, a véspera de uma mudança<br />

mais decisiva. Mas em qual direção? Entreolhavam-se diante<br />

dele e nada diziam, afinal ele merecia a confiança de todos, não<br />

tinham motivos para suspeitas. De qualquer maneira, eram unâ-<br />

Capítulo 3<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 21


nimes em achar que o assessor se tornara outra pessoa, ainda<br />

que não perdera o costume dos bilhetes. Só um funcionário de<br />

autarquia diversa percebeu que os bilhetes estavam mais lacônicos,<br />

como se fossem mais burilados para fazerem uso de menos<br />

palavras. Se fosse mais atento, perceberia que o assessor de uns<br />

tempos para cá optava sempre por um sinônimo de menos sílabas,<br />

quando o encontrava.<br />

Em alguns momentos, a distração vencia a queda de braço<br />

e em um destes ele não notou que a secretária havia posto<br />

em sua pasta de assuntos urgentes um texto sobre a inauguração<br />

do labirinto, com uma foto. Nela era visível a inadequação<br />

das roupas usadas pelas autoridades, observada a elevada<br />

temperatura do dia. O suor das fisionomias e a expressão de<br />

desagrado eram evidentes. Só o chefe do cerimonial com roupas<br />

leves destoava. É claro que, em consequência, teve que<br />

responder a um inquérito, inquérito este que finalmente chamou<br />

a atenção do assessor, quando ele escreveu um bilhete<br />

em estilo profissional recomendando a demissão sumária daquele<br />

funcionário negligente.<br />

22<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 3


Capítulo 4<br />

Procurara o analista por recomendação, como quase todo<br />

mundo. Não há quem abra os classificados ou as páginas amarelas<br />

e anote o número de um terapeuta ou analista e marque uma<br />

consulta. Aliás não sei por que eles anunciam em tais lugares. Até<br />

porque se eu fosse um analista, acharia muito estranho alguém ir<br />

bater a minha porta por causa de um anúncio deste tipo. Olharia<br />

para o analisando com suspeita. Como seria um sujeito que apanha<br />

um papelzinho na saída do metrô oferecendo análises rápidas<br />

em três meses, com satisfação garantida? Nem cartomante.<br />

A qualquer hora você pode iniciar uma análise, mas as estatísticas<br />

assinalam o fato óbvio: 90% procuram a análise na hora<br />

da dificuldade aguda. Eu não era uma exceção. Há uns meses<br />

tive a primeira sensação de estranhamento, parecia que não cabia<br />

direito no corpo. Se fosse espírita, pensaria em viagem para


além da matéria e teria recuperado o sono no dia seguinte, sem<br />

inquietações. Acontece que sou um indivíduo racional e pouco<br />

dado a leituras esotéricas da vida. Daí a dificuldade de conversar<br />

com alguém sobre este assunto: não era só receio de me julgarem<br />

desequilibrado, era também o de ser aceito. Aceito, desde que<br />

claramente acreditasse em outras vidas, espíritos à solta, desmaterialização<br />

etc. Não, eu sou um engenheiro. Lá sobre a minha<br />

mesa há uma régua de cálculo, há o universo dos números, sua<br />

lógica e correspondência.<br />

O fato é que eu sentia mesmo a tal desmaterialização:<br />

as ideias saiam do corpo e se sentiam incomodadas, como se<br />

a matéria fosse sem significância. Com o tempo, fui emagrecendo<br />

a olhos vistos, já que me alimentava pouco. Não tinha<br />

apetite, não tinha cuidado com aquele corpo do qual com frequência<br />

me distanciava. Esta era a palavra. Na primeira consulta<br />

percebi isto, quando relatava minhas sensações para o<br />

analista. Distanciamento. Esta era a palavra. Melhor que desmaterialização.<br />

Lembrei-me da teoria do distanciamento usada<br />

por um dramaturgo alemão. Talvez quisesse também criar<br />

uma boa impressão no analista. Fazia citações. Mostrava que<br />

era um engenheiro, mas não um técnico. Apreciava a dramaturgia<br />

e tinha até algumas noções de teoria, além de leituras e<br />

idas com regularidade ao teatro.<br />

Senti que o analista gostou da palavra: distanciamento.<br />

Eles sempre gostam quando encontram pacientes menos tediosos,<br />

diferentes dos que vão lá como se fossem a um confessionário<br />

e querem apenas desabafar. Depois não sabem por que se<br />

sentem infelizes. Um paciente que é capaz de discutir teoria do<br />

teatro alemão e paga em dia não é mal. De qualquer forma, ele<br />

olhou por cima dos óculos e nada disse. Era a minha primeira<br />

consulta, logo o tempo seria pequeno para eu explicar o porquê<br />

de estar ali, enumerar as causas e os objetivos que me levaram a<br />

seu consultório. Na prática eles esperam que se digam as causas<br />

e não perguntam pelos objetivos. Não querem criar expectati-<br />

24<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 4


vas no paciente. Nada é mais constrangedor do que frases como<br />

“Dr., em quanto tempo o senhor acha que estarei bom?”<br />

Na ocasião eu tive medo, medo de não retornar ao corpo,<br />

medo de cair na indiferença, de isolar-me em depressão, Era<br />

uma fase pouco sensorial: odores, sons, gostos não me atraíam.<br />

Tornava-se puro espírito ou intelecto. Habitava só pensamento.<br />

Pensava, não meditava, como supunham alguns familiares<br />

que me viam horas ensimesmado. Sim, era preferível julgar que<br />

eu estava fazendo ioga ou qualquer prática oriental a me terem<br />

como doido, ou, pelo menos, esquisito.<br />

Certa vez, logo que entrei no consultório, reparei um<br />

exemplar de obras escolhidas de Edgar Alan Poe e passei a sessão<br />

inteira conversando sobre seus contos e poemas. Quando<br />

percebi que só sobravam dez minutos, desisti de mudar de assunto<br />

e pedi a sua opinião sobre o escritor. Nesta ocasião ele falou<br />

sem parar como um crítico literário e não um analista. Quando<br />

terminou os comentários, lembrei-lhe que os dois, o analista<br />

e o crítico, têm em comum não só a análise de pessoas e textos,<br />

mas a tendência a enxergar fantasmas. Nenhum dos dois pode<br />

optar pelo silêncio em suas funções, logo se veem constrangidos<br />

a interpretar o que há e o que não há. Não creio que ele tenha<br />

apreciado a minha observação, pois nas sessões seguintes voltou<br />

a interferir pouco durante o meu discurso.<br />

Com o tempo, fui recuperando a sensação de me sentir<br />

dentro do meu corpo. Não sei a que atribuir o fato, se a análise<br />

ou se a outra causa. O sentimento de estrangeiro que aparece<br />

em tantas obras não era mais uma questão literária, era existencial.<br />

Mais ainda: era físico. Não gostaria de repetir a experiência,<br />

embora não me agrade usar esta palavra, pois esta sensação<br />

não foi intencional. Não sei explicar. Parece que o cotidiano me<br />

trouxe de volta ao cotidiano e aos poucos me vi tendo pensamentos<br />

e gestos banais de novo. Os questionamentos foram<br />

dando lugar a discussões sobre as mudanças de clima ou a estreia<br />

de um filme.<br />

Capítulo 4<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 25


Em nenhum momento o doutor dissera que eu era incoerente<br />

ou fantasioso. Sempre pareceu acreditar em minhas<br />

palavras e não por conveniência profissional. Tratou do tema<br />

como trataria de uma fobia qualquer, de uma fixação. Não duvidara<br />

de mim. Por convicção e não por estratégia. Chegara<br />

uma vez até a pedir mais detalhes da desmaterialização que eu<br />

sentia, como se temesse que o mesmo pudesse acontecer um<br />

dia com ele. E tomara notas demoradamente, como não era de<br />

seu costume.<br />

Ora, outros assuntos então iam surgindo nas sessões.<br />

Questões afetivas, profissionais, familiares...Era como se estivesse<br />

iniciando outra análise, agora que meu pensamento já<br />

começava a coincidir com meu corpo, eu não me sentia mais<br />

distanciado. Quem sabe agora eu entenderia racionalmente o<br />

que me acontecera. Não faltava às sessões, mas ia sem a ansiedade<br />

de antes, sem desespero.<br />

Este seria meu décimo mês de tratamento. Mas ontem<br />

quando entrei no prédio, como faço duas vezes por semana, o<br />

porteiro me perguntou para onde eu ia. Expliquei-lhe que para<br />

o consultório do 803. Então ele disse que não seria possível, pois<br />

há mais de um ano o doutor parara de dar consultas e a porta do<br />

consultório nunca mais fora aberta. Só restavam a plaqueta e o<br />

nome ali no quadro de aviso da portaria.<br />

26<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 4


Capítulo 5<br />

As mulheres ainda falam de paixão como palavra mágica.<br />

Como se ignorassem a história, usam as mesmas palavras<br />

do século XIX e se sentem justificadas. Se o aluguel não foi<br />

pago, é porque acabou a paixão. Não, não se trata de má-<br />

-fé, muitas acreditam nisto, apesar de parecer inverossímil. O<br />

caso é que há três meses o aluguel do apartamento de dois<br />

quartos em Todos os Santos, subúrbio da Central, ainda não<br />

fora pago. Primeiro, foram os telefonemas da administradora,<br />

depois do proprietário mesmo e, por fim, uma carta assinada<br />

por um advogado. Uma técnica de intimidação como<br />

qualquer outra. O dono do imóvel está no direito dele. Um<br />

capitalista sujo não adquire um imóvel de dois quartos num<br />

lugar como este, para ter uma renda mensal, provavelmente<br />

para compensar as perdas da aposentadoria.


Seja lá como for, a mulher não queria ouvir. Só olhava com<br />

olhos de acusação. Como você deixou as coisas chegarem neste<br />

ponto? Se nos despejarem, vamos para onde? Tem que gastar<br />

menos dinheiro com cerveja e cigarro. E se já tivéssemos uma<br />

criança? Por que não procura o seu pai e pede o dinheiro de dois<br />

meses? Se pagarmos uma parte, o senhorio se acalma. Então<br />

você terá mais tempo para conseguir o dinheiro todo.<br />

Barreto era um romântico. Escrevia para pequenos jornais<br />

e vivia do pagamento de seus textos, normalmente crônicas<br />

sobre o cotidiano da cidade. Não tinha emprego fixo, como a<br />

mulher tanto queria. E há três meses não recebia do jornal que<br />

mais pedia suas colaborações.<br />

Os outros eram jornais alternativos, que mal pagavam a<br />

passagem e a refeição do dia. Escrevia mais por amor ao jornalismo<br />

e as letras. Isso lá era vida? Por que não pedia a um político<br />

uma colocação no serviço público? Será que não precisam de alguém<br />

que saiba escrever como ele em alguma repartição dessas?<br />

A mulher tinha pouca instrução e não trabalhava. Com<br />

o ensino médio apenas, só conseguira vaga de balconista, mas<br />

não gostava de lidar com o público. Preferiu se acomodar em<br />

casa e fazer uns artesanatos para uma prima vender na feira.<br />

Mas suas obras não só eram baratas, como ela também não era<br />

a artesã tão boa quanto se dizia ser. O fato é que a renda do casal<br />

era baixa e agora era insuficiente para as despesas mensais.<br />

Ser tratado pelo sobrenome é coisa de empresário ou militar.<br />

Pobre normalmente é tratado pelo primeiro nome e por<br />

um só. Barreto não gostava de ser Barreto, mas era chamado<br />

assim desde a quinta série, quando um professor de Português<br />

percebeu a sua semelhança física com um escritor homônimo. A<br />

semelhança não foi um acaso, foi uma maldição. Ele acabou se<br />

interessando pela literatura e, mais particularmente, pelo jornalismo.<br />

Gostava de escrever, mas sem estilo acadêmico, sem muitas<br />

intenções “literárias”. Queria a palavra a serviço de alguma<br />

causa, embora não fosse filiado a nenhum partido político, nem<br />

28<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 5


tivesse pretensões. Motivavam-no mais as causas sociais do que<br />

as políticas. Parecia estranho, no entanto, até se poderia dizer<br />

que ele era um cético, quando a matéria era política.<br />

O sobrenome não ajudou. Não se tornou militar, doutor,<br />

empresário, nem dono de coisa alguma. Como jornalista freelancer,<br />

jamais tivera estabilidade nem renda satisfatória. Morava ali<br />

em Todos os Santos há 20 anos. Acostumara-se com o bairro, os<br />

aluguéis eram menores e o comércio, mais barato. O único problema<br />

era o trem. Aliás, ele tinha fixação por este tema: via no<br />

trem o símbolo dos que moravam no subúrbio. Diferente do que<br />

acontece em outras metrópoles, só pobre viaja de trem no Rio de<br />

Janeiro. Nem classe média. E rico só viaja de trem na Europa por<br />

curiosidade, para tirar foto e mostrar depois o fato excêntrico.<br />

Frequentava uma biblioteca municipal perto de casa, cujo<br />

acervo pequeno e disperso oferecia-lhe a oportunidade de ler no<br />

máximo duas obras do mesmo autor. Logo lia autores de épocas<br />

e nacionalidades diferentes, sem nenhum método. Não tinha, assim,<br />

escritores preferidos.<br />

Gostava evidentemente do estilo jornalístico da literatura.<br />

Linguagem enxuta, direta. Nada de preciosismos ou modismos europeus.<br />

Usava a mulher como parâmetro: quando ela não entendia<br />

seu texto, ele não o publicava. Queria ser claro, lido por todos. Portanto,<br />

jamais ousou a poesia, gênero em que tinha pouca leitura.<br />

Há seis meses publicava artigos em um jornal de bairro com<br />

circulação restrita ao subúrbio da Central defendendo a aprovação<br />

de uma lei que obrigasse qualquer empresa com mais de 100 funcionários<br />

a ter uma sala de leitura e uma pequena biblioteca com<br />

sistema de empréstimo. Queria também que na hora de atender<br />

a um pedido do funcionário ou até mesmo em caso de promoção,<br />

que o patrão olhasse a ficha na biblioteca: se ele tivesse levado<br />

emprestado mais livros, seria melhor atendido. Era um visionário.<br />

Muito patrão tem medo de funcionário inteligente. Funcionário é<br />

para ser obediente e produtivo. As leituras muitas vezes fazem mal.<br />

Vocês não se lembram da história daquele leitor quixotesco?<br />

Capítulo 5<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 29


Sua mulher acha que é perda de tempo. Que se quer uma<br />

causa, escolha ao menos algo que seja palpável e não leituras. Diz<br />

que ele não entende o mercado, que faz um produto para o qual<br />

não há cliente. Que esta história de se dedicar a defender a popularização<br />

da leitura é coisa de doido. Que ele deste jeito ainda<br />

acaba num sanatório. Escreva sobre o barateamento de remédios<br />

e sua distribuição e seus artigos terão mais repercussão.<br />

Barreto de fato não tem espírito pragmático, nem entende<br />

que problemas com aluguel, condomínio ou cartão de crédito signifiquem<br />

que ele não gosta mais dela. Se não era esta a vida que<br />

ela esperava, a culpa não é sua. Será que não vê que a política<br />

econômica do governo é que tem levado o cidadão ao endividamento?<br />

Mas não é de seu estilo jornalístico abordar a influência<br />

das medidas econômicas nos problemas conjugais. Que outro escreva<br />

sobre este tema.<br />

Em toda reunião na associação de bairro pedia a palavra<br />

para expor suas ideias. Seu discurso era objetivo, nada panfletário.<br />

Dava a impressão de ser a voz de um técnico. Mostrava dados,<br />

argumentava com fatos, sem adjetivos, sem grandiloquência.<br />

Queria a biblioteca pública funcionando todo dia até mais tarde<br />

e durante o fim de semana. Sugeria ainda uma biblioteca móvel,<br />

que fosse de rua em rua, oferecendo livros a leitores mais preguiçosos.<br />

Suas ideias eram muitas e todas coerentes, mas esbarravam<br />

na falta de vontade dos políticos e dos eleitores. Os ouvintes<br />

aplaudiam sempre o seu discurso e só. Não conseguia a mobilização<br />

necessária para pôr seus planos em funcionamento. Nestas<br />

reuniões e depois delas é que bebia. Não sei se bebia para falar<br />

com mais entusiasmo ou se já era o entusiasmo que o levava à<br />

bebida. O certo é que, pouco a pouco, foi bebendo mais e mais.<br />

Algumas vezes embriagara-se mesmo.<br />

Curiosamente não recorria ao álcool para se esquecer das<br />

dificuldades, do aluguel e das outras dívidas. Só bebia quando<br />

discursava. E ultimamente aproveitava toda oportunidade para<br />

divulgar suas ideias que eram uma só: o livro. Variava o subte-<br />

30<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 5


ma, que podia ser a divulgação, a distribuição, o barateamento,<br />

a publicação de livros. Sua figura discreta não fazia dele um doido<br />

aceito pelo bairro ou um messias fora de hora. Não. Até que<br />

era respeitado na vizinhança. Um idealista, diziam os mais velhos;<br />

um obcecado, pensavam os jovens. De qualquer forma, gostavam<br />

dele e lamentaram, quando souberam de sua morte repentina.<br />

Fora encontrado perto da linha do trem. E não estava bêbado,<br />

como supunha a mulher. Parece que foi coração. O corpo<br />

caído de bruços, o rosto de lado, olhando o muro da estação.<br />

Trem era a sua imagem preferida para explicar a vida no subúrbio.<br />

Num dos bolsos da calça havia um papel saindo, era o texto<br />

de uma crônica intitulada Bagatelas. Um vizinho que passava e<br />

puxou o papel por curiosidade, teve a confirmação de que Barreto<br />

era um romântico. As mulheres ainda falam de paixão como<br />

palavra mágica.<br />

Capítulo 5<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 31


Capítulo 6<br />

I<br />

21 h - Estavam no Maçã Dourada já na quarta cerveja.<br />

Ao fundo, a música calma de uma rádio. Da mesa podiam ver<br />

a praça do Largo das Neves: só um cão deitado e ao longe uma<br />

fatia de lua. Vozes vinham da calçada e do bar Goyabeira ao<br />

lado. Ele mexia no cabelo de Marcela, cujo olhar girava pelo<br />

pequeno bar, como se para conferir se nada mudara: as mesas<br />

antigas com tampo de mármore, os cartazes na parede, a escadinha<br />

para o mezanino. Santa Teresa cabia numa metonímia.<br />

8 h - Sentados num banco em frente à igrejinha, as frases<br />

saíam como se quisessem dizer outra coisa. Ela lhe mostrou o<br />

arranhão de um gato na perna esquerda e passou a discorrer<br />

sobre as motivações felinas para agredir o dono. Ele tocou no


arranhão e esqueceu-se acariciando a perna. Ela era alta, morena,<br />

cabelos encaracolados e tinha as coxas fartas. O tempo<br />

passava lentamente e se sentiam numa pracinha de cidade do<br />

interior. Um sobrado em frente estava vazio. E se alugasse um<br />

apartamento aqui? Seria só descer para o bar, a praça, a festa, a<br />

noite. Depois, quando já estivesse bêbada, fazer como os gatos<br />

daquela casa que retornam por uma portinhola. A vida podia<br />

ser simples.<br />

1:40 h - O Goyabeira fechava as portas e a praça se esvaziava.<br />

Só outro casal sentado no meio-fio. Teriam uns vinte, vinte<br />

e dois anos. E olhavam para a rua de paralelepípedos e trilhos<br />

como se para uma estrada capaz de levá-los para todos os lugares<br />

e amanhãs. Ainda não tinham pesos. Recordações de Mauá,<br />

Ouro Preto, Paraty convergiam para a ladeira da Paula Mattos.<br />

Qualquer esquina era mundo.<br />

1.53 - Subiram pela rua Oriente de mãos dadas e rindo.<br />

Desejavam-se.<br />

II<br />

16 h - Encontraram-se no Museu Castro Maya. Primeiro dia<br />

de uma exposição sobre a história da Lapa, antes de terem destruído<br />

seu quarteirão em 1968. Dali ela sugeriu que fossem ao concerto<br />

com o Homem de Bem, no casarão da Laurinda Santos Lobo. No<br />

salão de pé direito alto a música flutuava. A plateia parecia cúmplice<br />

de uma cerimônia mística. Os mantras relaxavam os corpos e<br />

os incensos se espalhavam pelo ar. Agora ele entendia por que ela<br />

escolhera um vestido indiano para aquela tarde. O tecido diáfano<br />

fazia com que sua pele parecesse mais próxima. Seguiram a pé até<br />

Le Cave de Paris, onde um grupo se reunia para dizer poemas. Além<br />

dos autores presentes, um poeta era escolhido para leitura. Naquela<br />

noite seria João Cabral. Qualquer um pode sonhar coisas claras:<br />

superfícies, tênis, um copo de água. Ou outra enumeração a seu<br />

gosto. Paredes de tijolinho, um copo de vinho, o sorriso de Marcela.<br />

Capítulo 6<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 33


24.57h - Paris um dia foi uma festa. Santa Teresa também.<br />

Quando o bar fechou, alguém propôs que descessem à Lapa para<br />

jantarem no Capela. No restaurante, sentaram-se de frente um<br />

para o outro, mas os temas eram vários, os brindes se sucediam e<br />

os olhares se dispersaram. Tardaram os acalantos da noite.<br />

III<br />

15.14 h Iniciaram o passeio nas Paineiras. O dia de outono<br />

tornava as horas mais agradáveis. Patins e bicicletas cruzavam à<br />

frente dos dois. Iam batendo papo, enquanto caminhavam: música,<br />

política, viagens, literatura...Difícil não fazer um comentário<br />

sobre a cidade, vista do alto. Mais difícil ainda não encontrar afinidades.<br />

Logo adiante, a parada numa cachoeira. Embora não estivessem<br />

com roupas de banho, não hesitaram diante da atração<br />

da força da água. Desceram alguns degraus até o lugar em que de<br />

um tubo a água jorrava e batia nas pedras. Molharam-se vestidos<br />

e a blusa colada marcou-lhe os seios. Alisou os cabelos de Marcela<br />

e, puxando sua cabeça, beijou-a com leveza. Olharam-se como<br />

se surpresos e tornaram a se beijar com avidez. E riram.<br />

18 h - Sentados no chão, ele a abraçava por trás, enquanto<br />

assistiam a um concerto de música instrumental no<br />

Parque das Ruínas. O sol desaparecia lá embaixo. Os olhares<br />

se satisfaziam de paisagem em todas as direções. Os sons de<br />

desdobravam e os pensamentos convergiam para a magia do<br />

instante. Há lugares que têm tanta energia que parece que são<br />

eles que escolhem as pessoas, e não o contrário. Ali as pessoas<br />

não estavam por acaso. A música, as pedras, a vista, o fim de<br />

tarde as havia escolhido. Marcela pensava consigo mesma que<br />

um lugar é também as pessoas que ele escolhe.<br />

19.48 h - Desceram a rua até o Largo do Curvelo. Lá subiram<br />

num bondinho que passava e foram para o ateliê do Pedro, na rua<br />

Almirante Alexandrino, lá no alto. Como ele tinha viajado, Marcela<br />

ficara com a chave da casa para regar as plantas. A decoração<br />

34<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 6


do ateliê parecia um quadro feito por Frida Khalo, mas sem a dor<br />

da pintora. Marcela, quando abria aquela porta, se sentia em um<br />

cenário, como se dentro de tempo e espaços diferentes. As cores<br />

vivas exerciam um encantamento sobre ela. Alice ou Teseu?<br />

20.10 - Marcela tirou detrás de um armário um quadro envolto<br />

em panos. Mostrou-lhe como o seu preferido. Tinha um carinho<br />

particular com aquele quadro, olhava-o terna entre suas mãos.<br />

Era como se o quadro ofertasse a ele segredos seus. Fez questão de<br />

apresentá-los, uma vez que tinham algo semelhante: ambos eram<br />

seus favoritos. Ele observou atentamente o casarão colonial com<br />

janelas verdes no quadro e teve a impressão de já ter vivido ali. Sem<br />

querer, perguntou a Marcela se ao lado esquerdo do casarão não<br />

havia uma escada de degraus largos. Ela não entendeu a pergunta<br />

nem o barulho de botas em pedras molhadas. Que passos são estes<br />

que nós repetimos ao longo do tempo?<br />

20.36 h - Da varanda do segundo andar, ele olhava a noite<br />

e a neblina. Ela descera para pegar uma garrafa de vinho tinto<br />

para aquecê-los um pouco. Na sala, encontrou um disco importado<br />

de Saint-Preux e o pôs para tocar. Seus passos na escada de<br />

madeira avisavam sua volta. A casa, apesar de ser de alvenaria,<br />

tinha muita madeira e vidro. E isto a agradava. Um brinde aos<br />

que não desertam!<br />

21.5 - A rede quase não balançava. Os dois corpos rentes,<br />

olhos voltados para o silêncio da semiescuridão. Há um dia<br />

em que se deixa tudo de lado e se parte. Na mão só os objetos<br />

de uso particular: livros, sonhos, discos, prazeres. Finalmente a<br />

vida pessoal e intransferível. O vinho parecia melhor do que de<br />

fato era. Já a noite era o que parecia na moldura de um sono.<br />

O torpor se apoderava dos corpos. E um vento abria as janelas,<br />

induzia aos saltos sem paraquedas.<br />

22.43 - O caleidoscópio girava: gosto de vinho na boca,<br />

quadro de Frida Khalo, cabelos soltos, cerveja no Maçã Dourada,<br />

pele morena, ladeiras, coxas rígidas, loja de artesanato, língua<br />

nos seios, bondinho no Silvestre, riso desentranhado, jogo<br />

Capítulo 6<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 35


de capoeira, afago na praça, música new age, beijo na cachoeira,<br />

língua nos pelos, exposição de portas abertas, mão no púbis, festa<br />

no Largo dos Guimarães, tremor das mãos, Castelinho, olhos<br />

dentro do outro, baile no Lagoinha, corpo dentro do corpo. Ele<br />

penetrava Marcela seguidamente. Como alguém que partiu sem<br />

olhar para trás.<br />

36<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 6


Capítulo 7<br />

Não se lembra do dia em que entrou no asilo. Faz tempo.<br />

Os pijamas são outros, não são mais os que trouxe. Ou terá se<br />

esquecido? Dos pertences na cômoda só o porta-retrato em que<br />

aparece junto da mulher. Ainda bem que ela morreu antes. Não<br />

gostaria daqui do asilo. Era tão asseada. Punha tudo em ordem.<br />

Em ordem demais. Afinal, por que se incomodava tanto com o<br />

jornal espalhado pela casa, se o jornal era do dia? Se fosse de<br />

um mês atrás, até entenderia. Aqui também não tem flores. Não<br />

sei nem por que chamam de jardim. Pátio, seria melhor dizer<br />

pátio. Acho que pátio lembra escola e velhice não é coisa que se<br />

aprende. É fruta que dá sem que se plante. Fruta preste a morrer.<br />

Por isso não dizem pátio.<br />

Repete que não tomou banho. O enfermeiro desmente:<br />

já tomou, sim, não se lembra. Será que está gastando muito


sabonete ou velho cheira mal mesmo? Tomava sempre dois<br />

banhos ao dia: antes de sair de casa e antes de dormir. Agora<br />

não precisa mais sair. No asilo, não faz diferença se é de manhã<br />

ou de noite, que a paisagem é a mesma. O rádio, tinha um<br />

rádio de pilha quando chegou aqui. A pilha deve ter acabado,<br />

mas e o rádio? Será que o sobrinho levou para o conserto e se<br />

esqueceu de trazer de volta? Rádio bom. Já estava com ele há<br />

vinte anos. A mulher ainda era viva. Que mania de ficar com o<br />

radinho no ouvido. Parece que gosta mais dele do que de mim.<br />

Era ciumenta a mulher. Ele ria. Essa velha diz cada coisa! Só<br />

queria acompanhar o jogo de futebol. Não se acostumara com<br />

a televisão. Fazia mal as vistas. E ouvir ele sempre ouviu bem.<br />

Melhor o rádio que ele imaginava as jogadas e não via o gol do<br />

time adversário.<br />

De uns tempos para cá, reclamava que ninguém ia visitá-<br />

-lo. Velho é assim mesmo ranzinza, só porque o seu Plínio recebe<br />

parentes três vezes por semana. Sorte dele que a família é<br />

grande e podem fazer rodízio. Assim ele nem percebe que está<br />

só, que daqui a pouco vai morrer, que há muito esta vida já não<br />

faz sentido. Sorte dele que tem dinheiro e menciona sempre o<br />

testamento para os parentes. Com certeza, eles vêm visitá-lo<br />

tanto para que ele não esqueça o nome de nenhum na hora da<br />

herança. Velho esquece as coisas muito fáceis. Velho é ingrato:<br />

o parente está do lado todo o tempo, mas um dia se afasta um<br />

pouquinho e o velho, de cabeça fraca, esquece o bendito nome<br />

do parente e deixa todo o dinheiro para um outro, só porque<br />

tinha um nome mais fácil. João, José, Pedro.<br />

Emagrecera. O pijama sobrava no corpo. O enfermeiro disse<br />

que foi o sobrinho que comprara um número grande mesmo,<br />

que era para servir quando ele crescesse. O velho não entendia a<br />

piada. Vá fazer piada com a sua mãe, que também deveria estar<br />

num asilo. Não, ela não precisava. Era só pagar para o filho enfermeiro<br />

ficar as noites na casa dela. Assim ela não teria medo. Mas<br />

será que a camisola dela também não era larga? Vai ver não teria<br />

38<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 7


mais nenhum dente. Que adianta ser mãe de enfermeiro, se não<br />

tem mais dente. O filho ia ter que escovar todo dia a dentadura.<br />

Que vergonha. Ele tinha os dentes, quase todos. Quando jovem<br />

tinha até um sorriso bonito. Pelo menos a mulher dizia que se casara<br />

com ele por causa do sorriso. Ele acreditou. É bom acreditar<br />

em palavras de elogio e de afago. Quanto tempo! Quando se lembrasse,<br />

iria perguntar a moça da faxina por que não tinham animais<br />

ali no asilo. Quem gosta de animal é criança. Bicho de estimação,<br />

de brinquedo, e aqui, seu Horácio, não tem criança. Dizem<br />

que velho volta a ser criança só porque urina nas calças também.<br />

Ele se entristecera com a mulher. Então jamais veria um cachorro<br />

novamente. E ele chegara a ter quatro uma vez. Havia terreno, a<br />

ração era mais barata e era sempre uma distração. Verdade que a<br />

mulher cuidava mais dos cães que ele. O velho gostava era de sair<br />

pelas ruas do bairro com dois cães de cada vez. Ia puxado por eles<br />

como um trenó. A mulher se queixava de que a ela cabiam a limpeza<br />

e a alimentação, e ele, o senhor da casa, o divertimento com<br />

os cães. Até que foram morrendo. Acho que o terreno também<br />

morreu. Para onde levaram o seu quintal? Ali não tinham flores,<br />

só cimento. Um cimento irregular que insistiam em chamar de<br />

jardim. Essa gente mais jovem tem muito que aprender!<br />

Às vezes, sentia uma dorzinha no estômago, no entanto o<br />

médico examinava, examinava e dizia que não era nada. Ele era lá<br />

homem de mentira. Naquela idade não iria mentir. Como o médico<br />

podia afirmar que não doía? Doía nele, no estômago, do lado<br />

direito. Não era todo dia, mas quando doía, doía. E estetoscópio<br />

não fazia passar a dor. Lá fora é que médico passa receita para<br />

você ir aviar na farmácia. Aqui, não. Médico diz que não é nada<br />

e dá um comprimido de água com açúcar para enganar. Morrer<br />

já não fazia diferença, mas dor não gostava de sentir. Que dessem<br />

uma injeção, dessas para cavalo, como diziam, e pronto. Ele<br />

dormiria em paz. Com sorte até despertaria no dia seguinte. Não<br />

sei se com sorte. Não há mais nada para fazer, a não ser jogar baralho,<br />

dominó, olhar para o vazio e cuspir. Quem disse que velho<br />

Capítulo 7<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 39


gosta de carteado? Ele não tinha esse vício. Cansava a vista ter<br />

que ficar olhando o tempo todo para as cartas, como se elas fossem<br />

fugir de suas mãos.<br />

Há uma capela nos fundos do asilo. E lá que ficam os que<br />

morrem, esperando a ambulância. Para que ambulância, se já<br />

morreram? Só para dar despesa. A moça diz que o carro da funerária<br />

iria impressionar os outros velhos. No dia seguinte, todo<br />

mundo acaba sabendo de uma forma ou de outra. Parece que<br />

existe um acordo: aos poucos não se fala mais o nome do que<br />

morreu, como se ele nunca tivesse estado aqui. Velho esquece<br />

fácil, tem memória nublada. Sobrinho também esquece. Há<br />

dois meses não vem visitá-lo. Os biscoitos acabaram. As pilhas<br />

estão muito baixas. E o rádio? Onde está o rádio? Tem que pedir<br />

emprestado ao Júlio do 202 aos domingos para ouvir o futebol.<br />

Que bom o Júlio não gostar de futebol. E ele que tinha sido atleta,<br />

campeão de natação em várias modalidades. Com foto na<br />

parede e tudo. E agora aquele cuspo grosso, escuro. Já não tem<br />

forças para dar braçadas, a morte vai alcançá-lo antes que ele<br />

chegue à areia.<br />

Tocam a campainha às nove da noite, para todos se recolherem.<br />

Isto não é colégio interno, reclama o Costa, que tem<br />

sempre história do tempo de colégio interno em Petrópolis. A<br />

família tinha dinheiro, deu boa formação até aos 20 anos. Súbita<br />

a falência do pai e a interrupção dos estudos. Fora obrigado a<br />

trabalhar sem ter nenhuma experiência. Não se formou depois.<br />

De fato, nunca aceitou a traição da vida. Via-se na adolescência<br />

sentado com os pés na mesa da sala da presidência da indústria<br />

do pai. Este morreu dois anos depois da falência. Costa culpa a<br />

política da época. Deve ter razão.<br />

A campainha é coisa de colégio. Parem com isto, repete-<br />

-se Costa pelo corredor. Velhice é coisa que não se aprende. Já se<br />

nasce sabendo. Já se nasce envelhecendo. Agora não é oportuno<br />

este tipo de pensamento. Se o Costa não for logo para o quarto,<br />

uns enfermeiros vêm e lhe aplicam um calmante. À força, é<br />

40<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 7


em verdade. Na gaveta de cada quarto eles põem sempre um<br />

caderno pautado e uma caneta esferográfica. Não sei se é para<br />

nós desenharmos ou mandarmos bilhetes uns para outros. Não<br />

sou muito de escritos. Minha mulher tinha mais estudo, por isso<br />

era ela quem preenchia os cheques, enviava as cartas, fazia apontamentos.<br />

Ainda bem que ela já morreu. Ela não ia ter o que regar<br />

neste jardim. O meu caderno eles nunca trocaram, é o mesmo de<br />

quando cheguei aqui. Se eu tivesse netos e se eles viessem me<br />

ver, eu faria aviõezinhos com estas folhas do caderno para distrai-<br />

-los. É, acho que seria uma boa ideia. Deve ser tarde. É melhor<br />

que eu durma também. Fecho a gaveta de novo. Para que tanto<br />

papel? Velho já não tem mais nada a dizer.<br />

Capítulo 7<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 41


Capítulo 8<br />

Quando ele acendeu um cigarro já no ponto de ônibus,<br />

não sabia o que iria acontecer em duas horas. Conferiu as horas<br />

no relógio de camelô. Esses ônibus não passam nunca no<br />

horário. Mas o patrão nem queria saber. Achava que tudo era<br />

desculpa, indolência. No final do mês, o salário menor: vinte<br />

minutos um dia, quinze no outro...Olhou ao redor, como se<br />

todos estivessem esperando pelo ônibus da mesma linha. Tinha<br />

que adivinhar onde o ônibus ia parar para ser o primeiro a<br />

entrar. Caso contrário, viajaria nos degraus, o que, aliás, era o<br />

mais frequente. Andava na calçada lentamente, como um ator<br />

que busca a marcação e não quer que a plateia perceba seus<br />

movimentos. E ônibus lá tinha lugar para parar? Às vezes, nem<br />

parava. Motorista é tudo doido. A maioria se aposenta por invalidez,<br />

psiquiatria. Um ou outro ainda goza a aposentadoria


numa casa de um subúrbio longe. Televisão, rádio, rede, essas<br />

coisas. Orçamento pequeno para mercado, contas de casa,<br />

desde que a mulher não venha com história de presente para<br />

aniversário, cabeleireiro. O pior é a despesa extra com remédio.<br />

Uma nota gasta para depois o sujeito morrer da mesma<br />

forma numa enfermaria pública.<br />

A mulher tinha acordado às cinco horas como sempre.<br />

Meio sonâmbula, não fazia a menor ideia do que se daria dali<br />

a horas. Fez o almoço que ele levaria na marmita. Quando ele<br />

acordou, pôs o café. Não se falaram muito. Que teriam para dizer<br />

um para o outro, que já não tivessem dito. As mesmas recomendações.<br />

Não deixe de se alimentar direito. Como se houvesse<br />

iguarias na marmita, pensou consigo. E tinha que esperar<br />

o domingo para dormir até mais tarde, sentir-se mais senhor.<br />

Depois a macarronada que repetia, apesar da advertência da<br />

mulher. À tardinha, um carteado com os vizinhos e os mesmo<br />

comentários. Este Zeca não toma jeito. Não sabe perder. Reclama<br />

muito. Ninguém quer ele mais como parceiro. E o riso superior<br />

de quem ganhou no jogo. Dois mil pontos de diferença. A<br />

mulher ligaria o rádio lá pelas oito horas e o programa favorito ia<br />

até meio-dia. Música brega, notícias ruins, debates inúteis. Quatro<br />

horas contra o tédio. A mulher, antes dele sair, ajeitara-lhe a<br />

gola e lhe dera um beijo na face. Dezoito anos de casados. Será<br />

que faria bodas de ouro como seu avô?<br />

Pedro estava na rua desde às quatro, no volante do ônibus.<br />

Antes funcionário de repartição pública. Com salário baixo, pagamento<br />

irregular, mas sem freada, buzina, acidentes. Pensam que<br />

é fácil? Oito horas sentado neste banco, como se estivesse preso,<br />

ouvindo reclamação e desaforo dos usuários e sendo anotado<br />

por fiscais e guardas. O que leva um sujeito a ser fiscal? Mesmo<br />

sem dinheiro, é preciso não ter dignidade alguma para ficar com<br />

uma caneta e um bloquinho fazendo-se de alcaguete. Motorista é<br />

melhor. Pelo menos o sono é justo. Essa avenida Brasil é que não<br />

presta. Toda manhã é um engarrafamento sem fim. Só dá para<br />

Capítulo 8<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 43


fazer duas viagens. A das sete então é a pior: duas horas até a<br />

praça Tiradentes. Pedro não tinha noção de que este dia a viagem<br />

iria demorar menos, e a praça vai se encontrar mais longe. Nunca<br />

mais o alívio do copo de mate no ponto final. Seu ônibus rasteja<br />

pela avenida num dia quente de março. Pedro passa a flanela ensebada<br />

pela testa e tira o suor das rugas e das marcas de expressão.<br />

Sonha com as férias numa pousada em Ibicuí. Vinte dias sem<br />

óleo diesel.<br />

Dentro do ônibus, no degrau perto da roleta, ele pensa<br />

na família. As crianças careciam de brinquedo e ele adiando<br />

para o mês seguinte. Várias datas e aniversários se passaram<br />

e ele se desculpando: despesa com obra, a doença da avó, o<br />

material didático... Televisão só serve para estragar criança.<br />

Elas veem tanto anúncio que dão de querer o que não podem.<br />

Vá explicar isto a elas. Só sabem chorar e fazer jeito de tristeza,<br />

de abandono. Como se não tivessem pais. E eu aqui neste<br />

degrau. Nem consigo me mexer. O ônibus só esvazia a partir<br />

da Presidente Vargas. Vida de merda. Uma cozinha americana<br />

que quebra à toa e é quase a metade do salário. Se ao menos<br />

conseguisse um biscate no fim de semana, daria. Carolina que<br />

espere. Na idade dela não tinha brinquedo, nem caderno, nem<br />

afago. Já não têm a televisão, que mais querem? Televisão gasta<br />

energia. É, eles precisam entender que todo mês ele dá a<br />

energia de presente. Para que brinquedo?<br />

A mulher se olha no espelho que fica acima do tanque.<br />

Às vezes, o marido faz barba ali, se o banheiro está ocupado.<br />

Limpa o aparelho e guarda. Olha-se outra vez. O cabelo está sem<br />

jeito. O riso também não é mais o mesmo. Se fosse ao dentista,<br />

mas com que dinheiro? Deve estar com muitas cáries. Por<br />

sorte nenhum dente dói. Já teve que arrancar três. Por isso o<br />

riso enfeou. Seria bom ser da rádio, pois ia poder ir ao dentista<br />

todo ano. Acho que pagam bem na rádio. Também é tudo<br />

famoso. Mas mulher em rádio não é bem vista. Melhor assim,<br />

ela tem filhos. Não é uma qualquer. Somos pobres. Temos que<br />

44<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 8


dar exemplo para as crianças. Só que deve ser bom ter dinheiro<br />

para roupas, cabelo, dentes, viagens. Ela nunca saiu da cidade.<br />

Só uma vez foi a Araruama. Uma praia de dar gosto, pena que<br />

ela não saiba nadar. Tinha feito uns sanduíches de carne assada,<br />

um refresco de caju. Que passeio agradável. Faz tanto tempo.<br />

Ainda não tinha se casado. Coisa de namoro. Foi num feriado<br />

distante com o atual marido e uns amigos. Mas para que locutor<br />

de rádio vai gastar dinheiro com dentista, se o público não vê o<br />

riso deles. Devem gastar com carro, casa de veraneio, mobília,<br />

roupa da moda, discos. Dizem que quem é da rádio tem muito<br />

disco. E o espelho lá, inoportuno. O rosto envelhecido para a<br />

idade. Ninguém vai me tirar para dançar no baile mesmo. Para<br />

que se pentear e se pintar em casa? Se fosse a um cinema, à festa<br />

da igreja, a Petrópolis... Não sei por que, mas queria tanto ir<br />

a Petrópolis. Uma irmã passou a lua-de-mel lá e sempre repetia<br />

que a cidade era um encanto. Mas o marido é arredio, não gosta<br />

de sair. Nem de visitar parente. Um dia iria a Petrópolis, escondida.<br />

Dizem que é perto, poderia ir e voltar no mesmo dia Ajeitou<br />

o espelho com pena de si mesma. Não seria capaz de imaginar<br />

o final da manhã. Tudo parecia tão trivial que ninguém temeria<br />

ventania, tempestade. Muito menos a morte.<br />

Se o patrão desse um aumento. Nada. Era uma vez por<br />

ano e olhe lá. E servia para alguma coisa, com a inflação, o custo<br />

de vida daquele jeito. Brinquedo, para que brinquedo? Em<br />

primeiro lugar, o aluguel, as contas do mês, o mercado, a farmácia...E<br />

às vezes não dava nem para isto. A salvação eram os<br />

biscates. Um servicinho aqui, outro acolá. E mês que não tinha,<br />

que era só salário. Mês duro de ser engolido. A despensa vazia.<br />

A mulher esticando o feijão e a expressão de aborrecimento.<br />

Mulher, estamos gastando muita luz. Tem que controlar. Só está<br />

saindo dinheiro. Entrar que é bom nada. É torneira aberta, é cômodo<br />

com luz acesa, é esse rádio o dia inteiro. Eu sou um só.<br />

No ônibus lotado, o suor escorria. O tempo custava. O engarrafamento<br />

iniciava na Baixada e se estendia pela avenida Brasil<br />

Capítulo 8<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 45


inteira. Desaguava na cidade. Lá parece que os ônibus despejavam<br />

a multidão e desapareciam. O trânsito não tinha lógica. O<br />

trocador olhava para ele como quem dissesse: ”Se quiser viajar<br />

sentado, acorde mais cedo. Vá para o ponto final” Agora não<br />

reclame. Daqui a pouco estamos na Presidente Vargas. Acontece<br />

que o trocador não pensava em nada. Sequer fazia ideia do que<br />

iria acontecer. Ainda tinha quatro prestações da geladeira para<br />

pagar. Depois, sim, iriam comprar um televisor. Por enquanto,<br />

que a mulher fosse ver a novela na casa da vizinha. O patrão<br />

disse que, se passasse no exame, daria a ele um cargo de motorista.<br />

Com o salário maior, daria para comprar, além da maldita<br />

televisão para a mulher, um ventilador. Pavuna era um bairro<br />

muito quente. O apartamentozinho no conjunto era do pai. Pelo<br />

menos não pagava aluguel. O pai morrera cedo, mas deixou dois<br />

imóveis: em um moravam a mãe e uma irmã; no outro, ele com<br />

a mulher e um menino. Vida de merda. E os colegas só porque<br />

moravam em São Cristóvão faziam hora com ele. Tem muito índio<br />

em Pavuna? Que língua vocês falam lá? Não vai me dizer que<br />

é português também? O ônibus se arrastava, como se quisesse<br />

adiar a morte, o irreversível.<br />

Houve um pequeno acidente mais adiante. Um menino<br />

com uma bicicleta foi jogado a metros de distância. E interrompeu<br />

o trânsito. O guarda só apareceu dez minutos depois.<br />

E levou mais outros dez até se decidir a arrastar o corpo para<br />

a calçada. Já estava morto mesmo. E a bicicleta? Quem cuida<br />

da bicicleta? Pode ser que algum parente venha reclamá-la.<br />

Mais hesitação. Enfim subiu na bicicleta e foi pedalando até<br />

um botequim, onde pediu que a guardassem e telefonou para<br />

uma ambulância. O motorista assistira à cena de sua janela,<br />

olhando inquietamente para o relógio. Estranhara a bicicleta<br />

de último tipo nas mãos de um menino pobre. O pai deve ter<br />

feito horas e horas de serão para poder dar uma bicicleta como<br />

aquela, de marcha e tudo. Para quê? Para o moleque ir andar<br />

no meio da Avenida Brasil. Olhou para os prédios industriais e<br />

46<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 8


percebeu que estava na altura de Olaria. O menino podia ter<br />

andado nas ruas do bairro. Avenida não é lugar para bicicleta.<br />

E há os que vão de bicicleta pela passarela. Não têm medo<br />

de altura. Eu nem gosto de olhar. Não sou ave para viver no<br />

alto. O homem nasceu para o chão ou no máximo sentar neste<br />

banco, dois metros acima. Se o moleque tivesse juízo, não<br />

estaria morto. Agora é caixão, flor, enterro. E o pobre do pai<br />

arrependido do presente. Era franzino e devia ter lá seus doze<br />

anos. Como é que nós vamos saber a hora da morte. Acontece<br />

sem aviso. Você sai de casa um dia e pronto, não volta mais.<br />

Fica o prato sobre a mesa te esperando. A mulher depois joga<br />

fora a sopa.<br />

De vez em quando, tem uma rádio que diz o trânsito nas<br />

ruas principais da cidade. E a mulher muda de estação para escutar.<br />

Não vai fazer diferença para a vida dela, se o congestionamento<br />

está maior ou menor. Se houve acidente, blitz, explosão<br />

de bueiro. Talvez seja uma forma de pensar no marido. Ele está<br />

lá, em algum ponto dessas ruas, com o volante na mão, feito<br />

um cavaleiro. A ponte Rio-Niterói apresenta a pista engarrafada<br />

na direção do Rio. Não há o que fazer. Só se os motoristas desesperados<br />

se atirarem da ponte. Não há retorno. A esta hora<br />

o marido ainda deve estar indo para o centro da cidade. Não<br />

passa pela cabeça da mulher que não o verá mais. O gesto de<br />

ajeitar a sua gola, o beijo na face. Sobre a mesa uma faca enfiada<br />

numa goiaba. A vida interrompida. Nesta estação agora só<br />

música e temas femininos: dieta, moda, horóscopo, conselhos<br />

sentimentais, orientação familiar. De uma psicóloga ela gosta<br />

muito. Ela usa umas palavras difíceis. Deve ser bom poder ter<br />

estudo e saber tanta coisa. Aposto que ela não sabe fazer doce<br />

de abóbora com coco. Elas não têm tempo para essas coisas de<br />

casa. No intervalo um anúncio de uma cozinha completa em dez<br />

prestações. Até que não ia mal. Os armários são do tempo do<br />

casamento. Tão gastos, com a fórmica saindo em várias partes.<br />

Mas, se falasse em trocá-los, o marido não ia gostar. Ele anda<br />

Capítulo 8<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 47


tão esquisito. Deve ser o serviço: patrão, fiscais, colegas invejosos.<br />

Aquela mulher que põe cartas bem que avisou. Homem<br />

é descrente. Não lhe dá atenção. Aposto que é inveja de algum<br />

colega que quer o horário dele, as horas extras que ele faz. Que<br />

ele tá meio estranho, lá isso ele está. A vidente foi recomenda<br />

pela vizinha da vila em frente. Moça direita. Não ia me enganar.<br />

Disse que tudo que a vidente leu nas cartas aconteceu. A doença<br />

do avô era um exemplo. E ele ainda se zangou comigo por causa<br />

do dinheiro da consulta. Chamou a vidente de vigarista. Homem<br />

de pouca fé. O que tem que ser, tem que ser. Era melhor se ele<br />

tomasse uns banhos de sal grosso. Sabe-se lá o que nos espera<br />

depois da esquina.<br />

48<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 8


Capítulo 9<br />

Chegaram aos poucos à cidade. Quando percebemos<br />

que havia presenças estranhas entre nós, já eram em número<br />

significativo e pareciam uma ameaça, embora não soubéssemos<br />

dizer por que razão. Não eram precisamente simpáticos<br />

ou extrovertidos, mas, não sei se seguindo uma estratégia, se<br />

aproximaram com cautela de nós, uma palavra aqui, outra acolá,<br />

um bom-dia, uma ferramenta emprestada e foram sendo<br />

aceitos pela vizinhança. Discretos, conseguiram a princípio não<br />

despertar suspeita em nenhum de nós quanto a sua conduta.<br />

Frequentavam até as mesmas igrejas, embora hoje haja quem<br />

os julgue ateus. Estes estrangeiros não têm religião. Como<br />

pode existir um deus em uma língua com tantas consoantes?<br />

Uns até participavam dos jogos na praça. Especialmente de bocha.<br />

Mas não faziam alardes nas vitórias, apenas estendiam


as mãos para os cumprimentos. Não por pudor para não se<br />

vangloriar sobre os adversários, mas por rigidez mesmo. Não<br />

sabiam ser alegres, observaram uma vez.<br />

Teriam decerto entrado para o registro das emigrações apenas.<br />

E seus netos um dia seriam como nós, nem repararíamos nas<br />

diferenças. A língua teria se amaciado e ririam mais amiúde. E alguns<br />

deles com alguns de nós teriam feito sexo, de forma que estes<br />

netos nasceriam com aparência mais familiar, mais morenos. Tudo<br />

hipóteses. Não acredito mais que isto aconteça. Talvez daqui a décadas<br />

não estejam por aqui. Quem sabe não são ciganos?<br />

Não podemos precisar quando aconteceu, só que um dia,<br />

meses ou anos depois, verificamos que eles vinham há muito demonstrando<br />

um curioso interesse e talvez já fosse um pouco tarde<br />

para nos protegermos de seus atos. Como quem não quer nada,<br />

passaram a nos perguntar por coisas velhas, algumas sem uso<br />

mesmo, abandonadas em garagens, depósitos, quintais. E ofereciam<br />

quantias pequenas, mas, de qualquer forma, atraentes, pois<br />

ninguém pensava que ainda valessem dinheiro. Simplesmente<br />

não se desfizeram destas coisas, por afetividade, displicência ou<br />

hábito. Em toda família sempre havia alguém que tinha a mania<br />

de guardar coisas velhas, pudor de se desfazer de objetos, roupas,<br />

aparelhos enguiçados, papéis... Simultaneamente, iam pelos<br />

bairros indagando de casa em casa se não tinham algo que não<br />

prestasse mais ou que não fosse de uso diário.<br />

Deixavam que as pessoas os tomassem por mascates, revendedores<br />

de quinquilharias, fornecedores de brechós ou ferros-velhos.<br />

De início, só compravam estas mercadorias dos vizinhos.<br />

Depois, esgotados os veios, dirigiram-se a desconhecidos.<br />

E saiam das ruas abarrotados de coisas velhas que levavam para<br />

algum galpão, cujo endereço jamais soubemos.<br />

De repente, pessoas de outros bairros ou até mesmo de<br />

outras cidades vinham procurá-los. Queriam saber por onde<br />

andavam os caixeiros viajantes, os sem-razão que pagavam por<br />

coisas inúteis. Um deles, mais prático, alojou-se em uma praça,<br />

50<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 9


ao contrário dos demais que eram nômades, e na sua tenda na<br />

praça recebia os que queriam lhe vender coisas sem utilidade.<br />

Em pouco tempo havia filas durante o dia inteiro, com a praça<br />

se tornando pequena. Um dos nossos, percebendo a clientela,<br />

colocou um cartaz para frete de lugares mais distantes. Viria a<br />

enriquecer neste ofício.<br />

Acostumou-se o povo com aquele comportamento estranho.<br />

Estrangeiros são todos idiotas. E como ganhavam dinheiro<br />

fácil com a falta de juízo alheia, pouco se importavam. Quando<br />

uma vez alguém teve a ideia de denunciá-los ao manicômio,<br />

quase foi morto a pedras. Até a polícia fazia vista grossa.<br />

Todos sabiam que policiais e mesmo delegados enviavam<br />

familiares para vender mercadorias aos estrangeiros. E nada<br />

de perguntas. De onde saía tanto dinheiro e para onde iam as<br />

compras ninguém sabia. Que fossem mágicos! O que importava<br />

era a oportunidade de lucro inesperado. Houve até quem fosse<br />

adquirir velharias em terras mais distantes para revender para<br />

eles. Outros abandonaram o serviço e, quando precisavam de<br />

um dinheiro, se desfaziam de algo menos útil que tivessem em<br />

casa. Entregaram-se ao ócio e, sempre que bebiam, brindavam<br />

aos bem-vindos estrangeiros.<br />

O comércio local também gostou. Com o dinheiro ganho<br />

com a venda dos trastes, as pessoas iam às lojas para comprar<br />

móveis, roupas, objetos de toda sorte que fossem novos. Aliás,<br />

a mania do novo se espalhara aos poucos. Todos passaram a ter<br />

vergonha de possuírem algo com mais de cinco anos. Isso só serve<br />

para os estrangeiros! E as casas aos poucos foram mudando a<br />

mobília, adquirindo equipamentos de última tecnologia, o guarda-roupa<br />

foi renovado e a moda passou a significar prestígio e<br />

reconhecimento social.<br />

Certo dia um adolescente levou um álbum de família<br />

para vender. Então um deles percebeu que os mais jovens se<br />

desfaziam por qualquer bagatela de coisas pessoais como fotos<br />

de família, cadernos de escola, objetos de valor afetivo, car-<br />

Capítulo 9<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 51


tas, filmes caseiros...Não tinham respeito pelo que não fosse<br />

contemporâneo e não exigiam muito na hora da negociação.<br />

Ora, deste momento em diante passaram a ser os vendedores<br />

preferenciais, pois até aceitavam encomendas. Aproveitavam<br />

as horas em que os pais saiam para o trabalho ou dormiam<br />

e faziam expedições a sótãos e porões, a gavetas e baús. No<br />

dia seguinte, apareciam com sacolas repletas de ninharias. A<br />

cidade, sem que percebesse, foi sendo esvaziada de antigos<br />

pertences e recordações. E o espírito do descartável foi se apoderando<br />

das pessoas. As latas de lixo enchiam-se diariamente<br />

de quantidades nunca vistas antes.<br />

Quando as pessoas passaram a ter dificuldades de encontrar<br />

material velho para a venda, um estrangeiro sugeriu a um<br />

funcionário de ministério que ele trouxesse papéis do arquivo<br />

morto. Em pouco tempo arquivos, despensas e depósitos de órgão<br />

públicos foram diminuindo, diminuindo. Requerimentos, fotos,<br />

documentos, relatórios, pareceres, tudo foi parar nas mãos<br />

do mascate da praça e, imediatamente, desapareciam. Se não<br />

estivessem queimando toda a papelada, teriam uma cidade só<br />

para armazenar aquelas milhares de caixas. Como se tivéssemos<br />

assinado um pacto, ninguém falava sobre as mercadorias em outra<br />

hora. Não sei se pensávamos que aquilo era mercado negro,<br />

sujeito a punições pela lei. Nos demais lugares convivíamos com<br />

os estrangeiros sem fazer menção ao comércio de antiguidades.<br />

De fato, sabíamos que não eram antiguidades, todavia preferimos<br />

usar tal expressão, para, em parte, valorizar as inutilidades<br />

vendidas e, em parte, para não criarmos embaraços para eles.<br />

O que eles explicariam, caso fossem perguntados por tais atos<br />

evidentemente insensatos? Melhor tratá-los como antiquários,<br />

exportadores de nossas preciosidades para longes terras.<br />

Intrigava-nos em silêncio o destino de tanto material.<br />

Haveria funcionários em algum lugar que receberiam as mercadorias,<br />

as identificariam com etiquetas, as separariam por<br />

gênero, classe e categoria, as armazenariam em galpões gigan-<br />

52<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 9


tescos e as trancariam para sempre. Fosse como fosse, nem<br />

mesmo em família falávamos sobre o assunto. Temíamos. Temíamos<br />

até que tudo aquilo acabasse de uma hora para outra<br />

e perdêssemos a oportunidade de um rendimento extra.<br />

Tempos depois, quando um parente idoso morria, era<br />

logo esquecido. Nem os netos guardavam mais retratos dos<br />

avós. Se não fosse a oralidade, não saberíamos sobre os familiares,<br />

a infância e as histórias do país. As pessoas passaram<br />

a se referir a um fato ocorrido há 5 ou 500 anos com uma só<br />

palavra: ontem. Tudo que nos causava dúvida e incerteza de<br />

recordar tinha acontecido ontem. Avós, pais e filhos, todos tinham<br />

nascido ontem. E alguns que já tinham morrido, tinham<br />

também morrido ontem.<br />

Muitos de nós já não se lembravam de quando os estrangeiros<br />

chegavam nem que eram estrangeiros. Consideravamnos<br />

só pessoas um pouco diferentes ou negociantes de quinta,<br />

pois não lidavam com produtos de primeira mão. Eu e mais alguns<br />

que ainda nos lembrávamos do início da venda de “antiguidades”<br />

tínhamos medo, embora não soubéssemos precisar de<br />

quê. Talvez seja uma questão de tempo e um dia também tenhamos<br />

nos esquecido dos estrangeiros. Todas as anotações feitas<br />

sobre eles desapareceram. Os papéis e fotos não duram muito<br />

nas gavetas. Outro dia ouvi dizer que estavam interessados em<br />

mapas, guias e placas de rua, folhetos de turismo e qualquer<br />

material que registrasse dados sobre a cidade.<br />

Talvez mais tarde não nos lembraremos de nossos endereços<br />

e não saibamos mais voltar para a casa. Ainda bem que há<br />

os estrangeiros. Nesta hora eles nos guiarão.<br />

Capítulo 9<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 53


Capítulo 10<br />

Eram os corredores atapetados do palácio que se desdobravam<br />

em corredores, com esquinas com outros corredores.<br />

Mal se ouviam os passos que se repetiam lentos, obcecados,<br />

na direção de uma porta, uma perspectiva de saída. Em um<br />

destes inúmeros quartos, o amigo do rei fumava um cigarro<br />

e espiava pela janela o dia desaparecer. Não pensava no labirinto<br />

dos corredores que davam voltas e voltas no palácio.<br />

Quando precisava de alguma coisa, bastava telefonar para a<br />

recepção. Lá todos tinham ordens de atender seus pedidos,<br />

fossem quais fossem: uma bicicleta, um burro brabo, um pau<br />

de sebo e até água do mar. A exigência do próprio mar a sua<br />

porta foi vista como extravagante e problemas operacionais<br />

impediram os funcionários do rei de satisfazer este desejo. Em<br />

compensação levaram baldes e baldes de água legítima do mar


mais próximo, o que não foi pouca coisa, se lembrarmos que o<br />

mar fica a 200 km do palácio.<br />

Naquela manhã, embora ele não saiba de que década, a<br />

rainha Joana, a louca de Espanha, teve a ideia de fazer um espetáculo<br />

de dança pelos corredores, argumentando que a acústica<br />

era excelente. Convidou, portanto, dançarinas de diversas partes<br />

do mundo, que se instalaram confortavelmente nos infinitos<br />

aposentos do palácio. Ao mesmo tempo em que as exibições de<br />

dança aconteciam, um congresso sobre genealogia ocorria nos<br />

salões contíguos. Joana tinha uma tese sobre o parentesco dos<br />

contraparentes que não tinham laço sanguíneo algum. Defendia<br />

tal tese com tanto brilhantismo que recebera a renovação do<br />

título de Louca da Espanha por mais 25 anos, sem a necessidade<br />

de depoimentos favoráveis por parte de amigos.<br />

Bons tempos, sem dúvida, ainda que ninguém se recorde<br />

com exatidão quanto tudo aconteceu naqueles corredores<br />

atapetados. Só a sensação de uma câmara serpenteando em<br />

travelling e a voz de um narrador monocórdia, repetindo de<br />

quando em quando as frases. Isto hoje em dia me parece uma<br />

aberração, pois todos sabem que em cinema não há narradores.<br />

A menos que fosse um filme sobre narradores que tinham<br />

o hábito de frequentar os corredores palacianos acompanhados<br />

de uma grua, de um fotógrafo com sua máquina, e que todos<br />

participassem de uma película, apesar da estranheza do fato.<br />

O amigo do rei interrompia sua ginástica em um dos muitos<br />

aparelhos de última geração, colocados à sua disposição pela<br />

incansável cortesia real. Mas quando ele se cansava de tanto exercício,<br />

solicitava a presença de mãe-d’água, o que era um problema<br />

para os funcionários, que recorriam a intérpretes, a tradutores, a<br />

brasilianistas para entenderem o que vinha a ser uma mãe-d’água<br />

e onde encontrar uma de sua espécie e a que preço. O amigo ignorava<br />

as dificuldades para ser atendido e, deitado à beira do rio,<br />

jogava pedrinhas na água, esperando pela súbita aparição de sua<br />

mãe-d’água, com suas histórias intermináveis.<br />

Capítulo 10<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 55


Uma de suas favoritas falava sobre o silêncio e os passos<br />

misteriosos, quase inaudíveis, pelos corredores de um palácio,<br />

cujos jardins não menos labirínticos davam vertigem só pela<br />

sua descrição. A simetria dos jardins criava uma falsa sensação<br />

de equilíbrio, de certeza. Quando a câmara se aproximava das<br />

plantas, podia-se perceber que não havia saída, que quem entrasse<br />

neste jardim estaria preso para todo o sempre, repetindo<br />

os movimentos em busca de uma saída, e só se deparando com<br />

esquinas de esquinas de esquinas.<br />

No seu tempo de eu menino, ele acaba adormecendo<br />

com esta história e por isso gostava tanto dela. De alguma forma,<br />

ela o levava ao prazer do sono. Jamais esqueceu a voz calma<br />

de mãe-d’água durante a sua infância em terra tão longínqua,<br />

onde havia um rio ou a ideia de um rio, o que não fazia diferença.<br />

Que o rei trouxesse Rosa de volta ao mundo dos vivos e a<br />

alojasse em um quarto contíguo ao seu, com direito a um fogão<br />

de lenha e a uma rede na árvore.<br />

Afinal, os engenheiros do palácio são regiamente pagos<br />

para darem soluções. Eles não têm truque de deus ex-machina e<br />

tramoias diversas? Pois então.<br />

Lá nas camas redondas de quartos espelhados ele se deitava<br />

com mulheres de todas as nacionalidades, com as quais se<br />

dirigia principalmente em javanês ou tupi guarani, por motivos<br />

que não cabem nesta pequena história. Não tinha medo de engravidá-las,<br />

pois naquela terra já havia métodos seguros de contracepção,<br />

o que facilitava a prática do sexo em excesso para fins<br />

não reprodutivos. As mulheres, por sua vez, quando não estavam<br />

fazendo sexo, gostavam de usar os telefones automáticos que ficavam<br />

distribuídos pelos corredores. Como eram todos gratuitos,<br />

elas passavam horas telefonando para todos os que tivessem o<br />

nome nas listas. O diálogo era a última invenção naquela terra e<br />

os telefones contribuíram em muito para a sua expansão.<br />

Além das estrangeiras com quem deitava por noites seguidas,<br />

nas horas vagas, ele convidava prostitutas para o exercício do<br />

56<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 10


eufemismo e do namoro. Era um gentleman e oferecia licores a todas.<br />

Uma vez por ocasião do congresso de dançarinas organizado<br />

por Joana, confundiu algumas concorrentes com as prostitutas e<br />

dormiu com elas, sem que elas percebessem que o sexo não fazia<br />

parte do número de dança para o qual haviam sido contratadas.<br />

E os gemidos se destacavam naqueles corredores silenciosos por<br />

onde passava um fotógrafo com a grua suavemente, tendo ao fundo<br />

a voz de um narrador, não de Rosa, a mãe-d´água.<br />

Já não se lembrava o amigo de quando ele entrou no palácio,<br />

nem por que escada, ou ala. Só sabia que havia festas com<br />

frequência e que as mulheres desfaziam os lençóis de sua cama<br />

a toda hora. E que às vezes ficava triste, triste de não ter jeito,<br />

acometido de nostalgia ou do sentimento de exílio, principalmente<br />

à noite, embora também tivesse dificuldade em distinguir<br />

a noite do dia, uma década da outra. Do lado de fora, nos<br />

jardins do palácio francês do século.<br />

XIV, ele vagava as noites - supondo pelo menos serem<br />

noites - com insônia. Não acreditava ser o efeito dos alcaloides,<br />

mas jurava para si mesmo que tudo aquilo tinha acontecido não<br />

naquele momento, mas no ano passado. Sua mão tentava alcançar<br />

o ano passado inutilmente. Ele fugia pelas dobras do jardim,<br />

deixando para trás uma paisagem irretocável e incompreensível.<br />

Pasárgada era uma cidade feita de corredores atapetados<br />

e a voz do narrador se perdia na lembrança pouco nítida de que<br />

um dia houve realmente um narrador. O silêncio prosseguia pelos<br />

corredores, dobrava as esquinas e ao longe, muito ao longe,<br />

a fotografia de um rei que nunca existiu. Isto faz diferença?<br />

Capítulo 10<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 57


Capítulo 11<br />

O papagaio pousou no ombro do funcionário do cemitério<br />

para acompanhar o enterro. Para os presentes a impressão<br />

é de que o papagaio era da instituição, com a diferença de que<br />

não usava uniforme. Se subitamente ele desse uma ordem ou<br />

fizesse um comentário, ninguém estranharia. O seu olhar era o<br />

de quem estava acostumado com caixões, mortes, flores, choro.<br />

E com o sol típico daquela estação na cidade. Só faltava tirar um<br />

lenço e enxugar a testa.<br />

Era a primeira vez que ia àquele tipo de enterro. Não sabia<br />

exatamente o que dizer nem como me comportar. Não pus coroas<br />

com flores, não dei pêsames. Apenas olhava a certa distância o<br />

velório. Macunaíma tinha se ido. Agora era a Constelação da Ursa<br />

Maior. Portanto não havia corpo dentro do caixão. Pauí-Pódole era<br />

o mestre de cerimônias. Fazia muitos gestos que pareciam feitiços,


mas nenhum com o propósito de ressuscitar o herói. Era só um ritual<br />

que os homens brancos não entendiam. A seu redor, boa parte<br />

da tribo repetia seus gestos de forma desencontrada e murmurava<br />

coisas incompreensíveis. O capelão oficial do cemitério manteve-se<br />

afastado, com olhar de censura e medo. As despedidas poderiam<br />

demorar mais meia hora ou dias. Índio tem outra noção de tempo.<br />

Do caixão saía um brilho inútil de estrela. Ora, quem diria,<br />

levar um brilho para debaixo da terra? Os funcionários, tão<br />

mecanizados, punham o caixão no carrinho sem prestar atenção<br />

ao que carregavam; os outros, mais tarde, fariam o mesmo, ao<br />

descer o caixão na sepultura. Estariam fechando uma luz e não<br />

perceberam. Não me cabia intervir, mostrar aos que se encontravam<br />

no velório a ausência do corpo. Pelo jeito só eu parecia<br />

surpreso com o inusitado enterro. Cedi às circunstâncias.<br />

No trajeto até a cova, muitos índios falavam alto e dançavam.<br />

Já os brancos comentavam coisas que não diziam respeito<br />

à morte, coisas do dia a dia, assuntos pendentes de reuniões<br />

familiares ou profissionais. A conversa ajudava o tempo a passar<br />

e a não se pensar no calorão que fazia. Macunaíma bem que<br />

podia ter escolhido um dia mais fresco para morrer. Mas não.<br />

Mesmo na morte tinha que trazer contrariedade. Que fosse em<br />

paz! Quem ocuparia seu lugar na academia de folclore Mário de<br />

Andrade? Seria difícil um substituto a sua altura. Ele se tornara<br />

o maior estudioso das coisas da nossa gente, um verdadeiro<br />

scholar, reconhecido internacionalmente, com discurso na ONU<br />

e tudo. E agora estava ali, brilho inútil.<br />

Graças às suas pesquisas arqueológicas, descobriu-se<br />

um depósito de consciências na ilha de Marapatá. De lá elas<br />

eram contrabandeadas para vários países da América Latina,<br />

com um lucro estupendo. Ou o governo não sabia das negociações<br />

ou tinha alguma participação e fazia vista grossa. Depois<br />

de suas denúncias na imprensa a polícia federal vasculhou a<br />

ilha e encontrou os galpões repletos de consciências já embaladas<br />

para serem transportadas no meio da noite.<br />

Capítulo 11<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 59


Outra ação sua de relevância foi a construção de taperas<br />

ao longo das fronteiras. O exército, encarregado de fazer o patrulhamento<br />

na área, respondeu pelo planejamento e execução<br />

da obra. Em pouco tempo, o país se viu defendido de supostos<br />

ataques pelas taperas, que, segundo Macunaíma, seriam<br />

de muita serventia em tática de guerrilha. Até agora ainda não<br />

foram usadas, mas é só uma questão de tempo. Os gênios antecedem<br />

os fatos, como sabemos, e o nosso herói fora um deles.<br />

Findo o enterro, os índios me convidaram para uma festa<br />

em Terra Grande, onde haveria dança, bebida e comida em<br />

homenagem ao morto. Além de cunhãs, é claro. Senti-me lisonjeado<br />

com o convite, mas tive que declinar, só pelo prazer de<br />

usar este verbo com este sentido pernóstico pela primeira vez.<br />

Aleguei tristeza e peguei uma lotação para casa.<br />

De noite pus um disco de atabaque na vitrola para me<br />

despedir do herói. Fiz sem pensar, instintivamente. Sabia que<br />

ele apreciava música de percussão e que gostava de dançar, embora<br />

totalmente sem jeito. Não repetia uma coreografia. Dança<br />

não era ginástica, dizia, desculpando-se. O ritmo foi tomando<br />

conta de mim e quase, sem querer, imitei-lhe os gestos e os passos.<br />

No entanto, parei. Percebi que era meu espírito, não o corpo,<br />

que queria dançar feito o Macunaíma.<br />

Fiquei imaginado como a notícia de sua morte seria dado<br />

nos noticiários. O repórter a quem caberia escrever o obituário<br />

diria que se tratava de um sujeito polêmico, mas muito benquisto<br />

pelos de sua tribo. Que falecera de causa ignorada e que não<br />

deixara viúva nem herdeiros. Com sua morte, acabaria um ciclo<br />

de especulações no país. Sem discípulos, pupilos ou epígonos, o<br />

modus vivendi e o modus operandi que lhe caracterizavam desapareceriam.<br />

O carnaval não seria mais o mesmo.<br />

Já era bem tarde, quando olhei para o céu e vi que detrás<br />

daquela escuridão, deveria haver uma estrela fazendo conjecturas<br />

e coçando a cabeça. Decerto estaria preocupado com o surto<br />

de consciências impróprias que se alastrava pelo continente.<br />

60<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 11


Todas sem autorização, feitas num fundo de quintal e com falsa<br />

autenticação. O papagaio sabia disto e por isso também tinha<br />

insônia. Mas quem na capital, com tanto contrato para assinar,<br />

daria atenção a um papagaio?<br />

Não sei se era a falta de lua, a música dos atabaques ou o<br />

conhaque, mas acontece que eu estava comovido como o diabo.<br />

Capítulo 11<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 61


Capítulo 12<br />

A família se reunira toda no apartamento de Copacabana.<br />

Até parentes de Pernambuco e da Ucrânia vieram, embora não<br />

fosse uma data redonda, dessas que, por alguma razão esotérica<br />

de numerologia, muitos privilegiam. Fazia 51 anos e era uma<br />

escritora reconhecida já há bastante tempo. Aparentemente não<br />

havia motivo para uma festa especial. Mas lá estavam todos os<br />

personagens de suas narrativas desde Perto do coração selvagem<br />

e você sabe como são estes personagens quando se encontram<br />

em algum coquetel de lançamento ou reunião social, parece que<br />

têm sempre muita coisa para falar um para o outro, como se as<br />

histórias deles já não fossem definitivas e sabidas por todos.<br />

A autora, apesar de não ser dada a este tipo de festa,<br />

parecia feliz com a surpresa organizada por seu editor e oferecia<br />

lugares para todos. Estejam em casa, repetia. Ora, todos já


habitaram antes esta casa, afinal, foram gerados em sua máquina<br />

de escrever portátil nos vários cômodos da casa. Clarice<br />

não usava um lugar fixo no escritório, circulava pela casa,<br />

datilografando na mesa da cozinha, no sofá da sala, na cama<br />

do quarto e até mesmo numa escrivaninha, que vivia quase<br />

sempre empilhada de livros. Não tinha métodos, nem disciplina;<br />

era uma intuitiva. Escrever não era uma profissão, mas um<br />

ato existencial.<br />

Como não costumava reler seus livros, jamais passara<br />

por sua cabeça que seus personagens nutrissem rivalidades,<br />

invejas, desafetos entre eles. Depois de publicá-los, julgava-os<br />

independentes e adultos para seguirem sozinhos mundo afora.<br />

Não lamentava que repetissem as mesmas inquietações e angústias,<br />

já que ela mesma as sentia. Haveria outro modo de ser<br />

que não fosse o da experiência física do pensamento? E o pensamento<br />

não era um tipo de dor mais sofisticada? Clarice não<br />

percebeu que alguns personagens sentavam-se em posições<br />

opostas, como se não quisessem se olhar de frente, em motivo<br />

de algum ressentimento. Diziam alguns críticos que os personagens<br />

de romance se sentem mais requisitados pelos alunos e<br />

professores de <strong>Letras</strong>, seus leitores mais fiéis, e que esta fama<br />

faz, às vezes, com que ajam de maneira mais prosa, olhando<br />

com superioridade os colegas de conto e com total desprezo<br />

os de crônica. O quê? Ele é protagonista de uma crônica? Que<br />

pena! Sai uma vez só no jornal e depois é esquecido. Nenhum<br />

crítico o analisa, ninguém o defende em tese universitária, não<br />

é traduzido em outras línguas.<br />

Os assessores da editora tinham preparado tudo: o bolo, os<br />

salgados, a bebida, os enfeites, os convites e os repórteres. Haveria<br />

reportagens do aniversário com direito à matéria na primeira<br />

página do segundo caderno, à citação na coluna social e a dois minutos<br />

na televisão, segundo uma rigorosa estratégia de marketing<br />

do editor, à revelia da autora. A surpresa da festa, mantida em absoluto<br />

segredo, era a presença da famosa epifania de sua obra. Em<br />

Capítulo 12<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 63


estilo prima-dona, ela aceitou participar, mas de forma reticente,<br />

não confirmando a que horas chegaria, numa nítida intenção de<br />

causar suspense. A assessora que tratou de sua ida achou a sua<br />

resposta com ares de superioridade e só não cancelou o convite,<br />

porque tinha recebido ordens do editor de negociar a qualquer<br />

preço a ida da epifania. Que aceitasse todas as exigências, fossem<br />

toalhas, água mineral, espumante, suíte em hotel com aparelho<br />

de ginástica, mas que ela comparecesse à festa. Câmaras estariam<br />

a postos para filmarem a chegada intempestiva da epifania numa<br />

festa privê, só com parentes e personagens.<br />

Segundo a crítica, a epifania faz sempre uma súbita aparição.<br />

Ela se esconde em uma situação aparentemente corriqueira<br />

e repentinamente traz à luz uma revelação, uma voz das profundezas<br />

do ser, ocasionando uma inquietação para todos. Diante<br />

desta explicação, houve um funcionário da editora que achou<br />

mais conveniente que ela não viesse à festa, pois, pela descrição,<br />

é do tipo desmancha-prazeres, não desejada em momentos<br />

alcoólicos e descontraídos. Fosse como fosse, todos deveriam<br />

estar atentos, uma vez que ninguém tinha visto a epifania antes<br />

e, portanto, não saberiam reconhecê-la. Quem sabe se, só para<br />

pregar uma peça, ela não entraria no apartamento como um<br />

nome falso, de óculos escuros, para não ser identificada?<br />

Clarice, apesar de não ser muito social nem apreciar reuniões,<br />

mostrava-se à vontade e, em uma roda pequena, discutia<br />

com muito desembaraço e satisfação o tema da morte. Como<br />

aniversariante, tinha a vantagem de que, naquele dia, ninguém<br />

iria contrariá-la e ela que escolhesse os temas mais inoportunos<br />

para uma festa que quisesse, desde que não parassem de servir<br />

o whisky. Com o efeito do álcool, deu-se a tolerância de uns personagens<br />

com outros; já havia até pares de romances diferentes<br />

dançando, rodinhas paralelas discutindo pontos de vista da narrativa<br />

e a narradora-personagem de Um sopro de vida fazendo<br />

discurso em cima de um sofá. O editor pensou se não era hora<br />

de pedir que os repórteres presentes iniciassem as entrevistas<br />

64<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 12


e a sessão de fotos, antes que todos enrolassem a língua e não<br />

pudessem responder às perguntas.<br />

Talvez já fosse tarde. Uma personagem de um conto pedia<br />

a Clarice que ela cuspisse no chão. Faz como a matriarca.<br />

Cospe no chão. Dá um arroto. Faz qualquer coisa intempestiva<br />

e mal-educada. A autora ria meio sem graça. Não foi para isto<br />

que criara os personagens. A culpa é dos escritores que dizem<br />

que eles têm vida própria e que saem pela narrativa com autonomia.<br />

Esta história de que o autor não tem controle sobre estes<br />

seres de ficção e de que dele escapolem é boa para entrevista.<br />

Faz efeito para leitor ou espectador mediano que acredita nesta<br />

balela. Ora, como o autor não tem os personagens em sua mão?<br />

É claro que há a intuição, o entregar-se à escrita, como a ondas<br />

do mar, o deixar a máquina levar a mão...Não sou uma arquiteta<br />

que planeja tudo antes da execução da obra, mas também não<br />

sou uma tonta que abre mão da razão na hora de escrever.<br />

Uma assessora, percebendo que aquele personagem tornara-se<br />

inconveniente, tentou afastá-lo da sala, levá-lo até a varanda,<br />

para que ele respirasse um pouco de ar, como se ar curasse<br />

embriaguez. Outra sugeriu que Clarice fosse para um quarto<br />

dar uma pequena entrevista a dois repórteres que já a aguardavam<br />

há horas. Educada, a autora atendeu o pedido e saiu da<br />

sala. No cômodo mais íntimo da casa, uma repórter depois de<br />

meia hora de bate-papo com Clarice, abandonou o gravador e o<br />

caderninho de notas, e desatou a fazer uma confissão para surpresa<br />

e certo desconforto da autora e de outros dois jornalistas.<br />

Ninguém percebera que a repórter, mal entrou no<br />

quarto, deparou com um cão míope, não sabia explicar como<br />

soubera que o cão era míope, nem mesmo se os veterinários<br />

diagnosticam miopia em cães, mas sentiu-se atraída por aquele<br />

animal, sendo ela míope também. Olharam-se fixamente<br />

como se não existisse mais ninguém por perto. O cão não latiu,<br />

não se aproximou. Não saberiam dizer se reagiu com afeto ou<br />

incômodo àquele olhar tão sedento de diálogo. Permaneceu<br />

Capítulo 12<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 65


simplesmente cão, de forma discreta, sem fazer alarde. Já a<br />

repórter olhava para ele como se um espelho, um espelho diferente,<br />

que revela não a imagem que põe diante de si, e, sim,<br />

a que se esconde atrás dos olhos que o miram. O cão acionou<br />

na repórter o desejo, até então contido, de pensar em si mesma,<br />

como uma identidade, uma existência singular, que pedia<br />

palavras próprias para elaborar sua autoanálise. O cão não se<br />

mexeu durante os longos cinco minutos que a repórter dedicou<br />

a mirá-lo. Todos ao redor acharam sua imobilidade estranha<br />

e esperavam que ela fosse falar sobre cães, narrar alguma<br />

história de algum cão de sua infância ou algo que o valha. Ela,<br />

no entanto, nada disse durante estes cinco minutos. De repente,<br />

segurou as mãos de Clarice entre as suas e pediu que a<br />

ouvisse. Tinha um segredo. Todos temos, consolou-a a escritora.<br />

Quem estava no quarto e a ouviu não saberia esclarecer<br />

ao certo de que tratava a sua narrativa. Fantasiosa, para uns;<br />

desesperada, para outros.<br />

Na sala, o editor olhou para o relógio e viu que já passava<br />

da meia-noite. Então comentou com sua secretária que àquela<br />

hora a epifania não viria mais e que seria melhor irem todos embora.<br />

Distraído, não reconheceu que a jovem míope que saía do<br />

quarto e que repetia sem parar a frase “Queixei-me de enredos”<br />

se parecia muito com uma das repórteres convidadas por ele.<br />

66<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 12


Capítulo 13<br />

Viera de baixo, como se diz, de uma cidade pequena,<br />

com poucas oportunidades de instrução, com colégio só até<br />

a quarta série. Então mudou-se para a casa de uns tios em<br />

outra cidade, para dar continuidade aos estudos. Era uma<br />

cidade maior, com duas bibliotecas: uma municipal e outra,<br />

estadual. E o colégio tinha um grêmio literário, em cujo periódico<br />

publicou seus primeiros textos, algo que ainda se assemelhava<br />

a redações escolares. Incentivado por professores<br />

e, tendo por parâmetro Coelho Neto e Rui Barbosa, já se imaginava<br />

um escritor, desses que usam terno e gravata, com um<br />

broche na lapela, como emblema de alguma entidade, como<br />

Rotary Club. Ali, adolescente, viu que era hora de vôos mais<br />

altos, tinha que planejar sua vida, sob o risco de não realizar<br />

a tempo seus propósitos. Se não saísse da província, a águia


morreria beija-flor. O passo seguinte seria ir para a capital,<br />

onde havia a faculdade de Direito, livrarias e bibliotecas de<br />

maior acervo, um cabedal que sua terra não oferecia.<br />

Aos vinte anos, sozinho na capital, teve que procurar<br />

emprego e morar em uma vaga de pensão. Se por um lado, as<br />

adversidades pesavam; por outro, sua história lembrava a de vários<br />

escritores em início de carreira. E ele apreciava um certo romantismo<br />

em enfrentar a solidão na metrópole, a falta de recursos,<br />

os obstáculos para a publicação do primeiro livro, a busca<br />

pelo reconhecimento. Sentia que estava no caminho certo, pois<br />

a maioria dos escritores passara pela mesma situação, mesmo<br />

na Europa e nos Estados Unidos.<br />

A imagem de sua volta à cidade natal, em carro aberto,<br />

sendo saudado pelos familiares e conterrâneos justificava as<br />

poucas horas de sono e as muitas de trabalho e leitura. Mais<br />

tarde, em sua autobiografia, iria se lembrar, nostálgico, daquele<br />

quarto pequeno e sujo da pensão, dos móveis velhos e mal conservados,<br />

das refeições feitas junto de operários, do chuveiro<br />

fraco e frio, e se olharia, no espelho de uma suíte presidencial,<br />

com orgulho por ser um vitorioso, um filho de Santa Ifigênia que<br />

subiu na vida e se tornou escritor de nomeada.<br />

Este sonho iria ressurgir sempre que se encontrasse diante<br />

dos revezes da vida e iria lhe servir de bálsamo. Sabia de antemão<br />

que muitos eram os degraus até alcançar o topo da glória.<br />

Sabia esperar, porque cria que esta espera seria recompensada,<br />

que a hora de colher os frutos de longo cultivo iria chegar. Mas<br />

o destino não tem tempo para dar ouvidos a todos, e ele pelo<br />

jeito estava no final da lista. Os anos se passaram e, apesar de<br />

alguns livros editados e de algumas menções a seu nome em<br />

suplementos literários alternativos, sua carreira parecia não ter<br />

asas. Teria tido uns duzentos leitores para seus contos, nem isto.<br />

Consolava-se dizendo que escrevia para um público seleto, daí<br />

ser pequeno. Esta ordem dos adjetivos na frase mostra como a<br />

linguagem pode ser útil a quem aprecia a mentira.<br />

68<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 13


Seu nome não se escreveu no panteão dos grandes escritores,<br />

como imaginara, e a coroa de louros com que pretendia desfilar<br />

na cidade natal era apenas uma surrada metáfora, que teimava<br />

em aparecer em seus textos. Diga-se que este era seu defeito, seu<br />

aleijão: adorava o ornamento da língua, tanto escrita quanto oral,<br />

e não se proibia de usar adornos estilísticos mesmo em seus discursos<br />

públicos, confiante de que, assim, angariaria os favores da<br />

plateia, nas agremiações lítero-esportivas que frequentava.<br />

Frustrado, recorria a latinismos e a citações, supondo que<br />

o reconhecimento não lhe adentrava a sua residência, por alguma<br />

falha retórica. Talvez não tenha se expressado bem o suficiente em<br />

seu último livro, ou tenha discursado de maneira franciscana no último<br />

sarau. Como os críticos não lhe saudavam a obra-prima da<br />

antologia de suas narrativas e não o indicaram para algum prêmio?<br />

Como professores não escolheriam seus textos para as seletas e florilégios<br />

que divulgavam entre seus alunos?<br />

Durante estes anos, escrevera para parentes dando uma<br />

versão falseada de sua vida, dizia-se assíduo das rodas literárias da<br />

capital, bem conceituado entre seus pares, e que, se não fosse pela<br />

inveja de alguns escritores medíocres e pela má formação moral e<br />

intelectual de dois ou três críticos, sua obra já teria atingido patamares<br />

nacionais. Era só questão de tempo e os bons ventos levariam<br />

notícias de sua imortalidade literária à Santa Ifigênia.<br />

Aos 65 anos, já se encontrava exausto de burilar adjetivos,<br />

de abusar de hipérbatos e anacolutos, e de não ter êxito.<br />

Nenhum prêmio, nenhum interesse de grande editora, nenhum<br />

reconhecimento de parte das instituições literárias, nenhum assédio<br />

de leitores. E por mais que distribuísse seus livros entre<br />

os amigos e vizinhos, ninguém se dirigia a ele como escritor;<br />

sempre fora tratado como técnico de contabilidade, profissão<br />

na qual se aposentou depois de quarenta anos de ofício. Temia<br />

a morte e receava que a esta altura seus conterrâneos já não<br />

acreditassem mais nele. Quem sabe se, quando se despedia nas<br />

raras vezes que visitou sua cidade, não riam dele pelas costas?<br />

Capítulo 13<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 69


A depressão parece que chegaria para roubar suas últimas<br />

forças, mas o acaso fez com que conhecesse um confrade do interior<br />

do estado que, com mais talento para as artes do golpe do<br />

que para a literatura, lhe fez uma tentadora proposta, logo que<br />

lhe percebeu os desejos e fraquezas. Que tal concorrer a Academia<br />

do Pastiche, recém-fundada em sua cidade e da qual era<br />

diretor cultural? Ora, naquela idade e sem perspectiva alguma,<br />

aceitou, ainda que a cidade fosse insignificante e o nome da academia<br />

um tanto excêntrico. Argumentos sobraram ao tal colega<br />

de armas para convencê-lo do bom negócio que fazia, pagando a<br />

joia e a primeira mensalidade para ter direito a concorrer à cadeira<br />

de imortal e ser membro de tão distinta e ilibada instituição.<br />

Um mês após ter feito os devidos depósitos na conta da<br />

suposta academia e de ter enviado um exemplar de cada uma de<br />

suas obras, veio-lhe o diploma de membro, eleito por unanimidade.<br />

E era com regozijo e júbilo que o presidente o convidava para<br />

a posse de sua cadeira nº 28, dali a dois meses, tempo suficiente<br />

para que ele preparasse um discurso de uma hora de duração.<br />

Santa Ifigênia finalmente terá um filho ilustre e adjetivos<br />

certamente não faltarão ao dia da posse.<br />

70<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 13


Capítulo 14<br />

Em um bar no Rocio, provavelmente na década de vinte,<br />

quatro amigos costumavam se encontrar, com o propósito de<br />

discutir literatura e beber um bom vinho.<br />

Ricardo — Fernando, estou preocupado com você. Este já<br />

é o quinto copo e estamos aqui apenas há uma hora. Há alguma<br />

coisa te inquietando? Diga-me lá.<br />

Alberto — Deve ser a proximidade do aniversário. Sempre<br />

nesta época do ano ele fica nostálgico. Acho que tem medo de<br />

envelhecer, de ser tornar o velho do Restelo deste bar.<br />

Fernando — Não se trata disto. De fato, não gosto de<br />

aniversários. Aliás já não faço aniversários há muito tempo. No<br />

tempo em que se comemoravam meus aniversários, era feliz...<br />

Alberto — Não disse que o gajo anda saudoso? Quem<br />

sabe alguma paixão secreta?


Fernando — Qual nada! Não disponho de tempo para estas<br />

coisas mundanas. Tenho uma obra a ser feita e que me exige<br />

todas as horas doa dia.<br />

Ricardo — Com exceção das que gasta no bar e que não<br />

são poucas.<br />

Fernando — Ora, você e suas censuras. Parece até que<br />

não aprecia um bom Porto. A propósito, um brinde.<br />

Ricardo — A que brindamos?<br />

Alberto — À Natureza. Não existe nada além da Natureza.<br />

Álvaro — Diz isto para o portuga dono da taberna. Diz que<br />

todas as despesas ficam debitadas na conta da natureza e vê se<br />

ele não lhe arremessa uma cadeira.<br />

Alberto — Você é um insensível. Imagino o tipo de poema<br />

que anda a fazer. Decerto só se refere a máquinas, arranha-<br />

-céus, cinemas...quando todo mundo sabe que a Natureza é o<br />

único tema.<br />

Álvaro — Você é um obcecado. Precisa viajar a Paris, ser<br />

mais cosmopolita. Existe um mundo além do rio que passa em<br />

sua aldeia...<br />

Alberto — Um rio de águas sujas pelo despejo das indústrias<br />

químicas, um rio de água envenenada. Vamos morrer de<br />

excesso de civilização. Planta será só uma palavra na memória<br />

do poema.<br />

Ricardo — Não discutem, por favor. Agora que o Alberto<br />

tem razão isto lá tem. O que são as geringonças modernas diante<br />

da Antiguidade? Todos os temas fundamentais do homem estão<br />

lá na Grécia e em Roma. Os temas eternos, os que merecem<br />

nossa atenção...<br />

Fernando — Ora, do modo como expõem suas ideias, parece<br />

que um poema se aprecia só pela temática. E a técnica?<br />

Álvaro — Técnica? Tenho técnica só dentro da técnica.<br />

Fora disto, queiram-me útil, tributável...casadoiro...<br />

Ricardo — Este pelo jeito já se excedeu também no álcool.<br />

Não diz coisa com coisa.<br />

72<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 14


Álvaro — Não é você quem repete que todas as coisas já<br />

foram ditas?<br />

Alberto — Tudo o que homem faz é uma forma depreciada<br />

do que já existe na Natureza, logo é possível que tudo já<br />

tenha sido dito. E melhor dito.<br />

Fernando — Quer dizer que estamos perdendo tempo<br />

sendo poetas nesta época? Seria melhor conseguirmos outras<br />

ocupações?<br />

Ricardo — Pelo menos alguma que pagasse suas despesas,<br />

incluindo as dos bares, é claro.<br />

Álvaro — Um brinde à liberdade! Um brinde à liberdade<br />

de expressão!<br />

Ricardo — E já que nos lembraram da liberdade, abaixo<br />

os versos livres!<br />

Alberto — Você é muito ranzinza. Que mal há nos versos<br />

livres? As flores, os rios, as pedras não têm medida e nem por<br />

isto são menos belas que os versos que faz.<br />

Fernando — Lá vem você com a mesma argumentação.<br />

Ninguém suporta mais ouvir falar em planta e pedra. Vá ao dicionário,<br />

há outras palavras.<br />

Alberto — Não se faça de tolo. Uso estas palavras para<br />

me fazer entender. Minhas animizações ou personificações facilitam<br />

a compreensão do leitor. Para um poeta de seu porte,<br />

você está sendo literal demais. Garçom, mais um copo ali para<br />

o gajo.<br />

Álvaro — Olhem aqui. Tenho quatro convites para um baile<br />

de máscaras. Que tal irmos juntos. Será no próximo sábado<br />

em Cascais. Cada um tem que ir com uma identidade falsa, além<br />

da máscara. À meia-noite haverá uma dramatização e todos terão<br />

que representar um personagem da história da literatura.<br />

Isto quer dizer que até lá temos que memorizar algumas passagens<br />

de uma obra.<br />

Alberto — Fernando, você pode fazer o Dom Sebastião. Ricardo<br />

você faz o Virgílio; Álvaro diz trechos do Whitmam ...<br />

Capítulo 14<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 73


Álvaro — E você? Vai ser o diretor de cena? Não é possível.<br />

Todos têm que fazer uma participação.<br />

Alberto — Tive uma ideia. Eu imito um pouco vocês três.<br />

Ricardo — Só ser for sem ironia, sem sarcasmo. Nada<br />

de paródias.<br />

Do fundo do bar, vem um garçom com um bolo para eles.<br />

No relógio da parede são dez minutos do dia 13 de junho. Já é<br />

aniversário de Fernando. O gerente e outros garçons se juntam<br />

para cantar o parabéns para aquele poeta, a esta altura um pouco<br />

embriagado, sentado sozinho à mesa próxima da janela.<br />

74<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 14


Capítulo 15<br />

Eustárquio era conhecido e respeitado para além dos muros<br />

da universidade. Há duas décadas escrevia uma crítica semanal<br />

no maior jornal do estado, seus livros de teoria eram referência<br />

obrigatória em qualquer concurso e tinham que ser citados<br />

em toda dissertação e tese de pós-graduação. Unanimidade indiscutível,<br />

independente de fazer jus a ela ou não. Circunstâncias<br />

políticas e acadêmicas fizeram dele o todo-poderoso catedrático<br />

da universidade oficial. Os outros professores o consultavam em<br />

busca de um aval, quando iam publicar algum ensaio crítico. Sem<br />

a sua aprovação, desistiam e o livro voltava para a gaveta. Os alunos<br />

o temiam, embora há muito ele já não lecionasse. Seu nome,<br />

no entanto, sempre constava da lista do início do ano nos cursos<br />

oferecidos. E habitualmente, um mês depois de iniciadas as aulas,<br />

vinha uma notícia de que o catedrático viajara, fora convidado de


última hora para um congresso em Paris, para dar um curso de<br />

verão em Londres ou para organizar seminários de literatura comparada<br />

em Salamanca. O fato é que há mais de uma década não<br />

ministra aulas na universidade, da qual permanece como catedrático<br />

e figura de maior proa.<br />

Adquiriu fama de pessoa reservada, o que lhe empresta<br />

mais dignidade, pois é visto como um estudioso contumaz, que<br />

não se permite perder tempo com reuniões sociais, festinhas de<br />

departamento, coquetéis e noites de autógrafos. Sua secretária<br />

diz sempre que ele viajou ou que está em reunião, e que não<br />

pode atender, mas que terá prazer em ler a solicitação do aluno<br />

ou do professor, à qual responderá no mais breve tempo possível.<br />

Fato é também que as respostas vêm e, creio eu, satisfazem<br />

os que as solicitam. Crítico rígido, ensaísta exigente, professor<br />

escrupuloso, mas cidadão amável, que trata tanto o corpo docente<br />

quanto o discente com a mesma atenção e presteza, apesar<br />

da falta de convívio direto.<br />

Os alunos não lhe negam elogios e diria até que se sentem<br />

orgulhosos de pertencerem à instituição dirigida por intelectual<br />

de tamanha envergadura. No entanto, toda vez que, no<br />

início do ano letivo, seu curso é suspenso, dá-se um alivio por<br />

parte dos alunos, que, embora inscritos, já aguardavam e desejavam<br />

o cancelamento, por temerem a opinião do catedrático, e<br />

a exposição de suas ignorâncias à sapiência do crítico maior. Os<br />

boatos, que fazem parte da tradição do estabelecimento, dizem<br />

que só 20% dos alunos são aprovados em seus cursos e que muitos<br />

abandonam, envergonhados de sua pequena leitura e inteligência,<br />

visíveis durante as aulas do mestre. Há casos de alunos<br />

que trancaram a matrícula e jamais retornaram à universidade,<br />

tão desapontados com eles mesmos ao fim do curso.<br />

Boato ou não, o melhor era ler seus livros, citá-los, mas<br />

manter uma saudável distância de suas aulas até do contato direto<br />

com o catedrático. Em que pese a sua fama de educado e<br />

cordial, não se sabe de aluno, e até mesmo de professor, que<br />

76<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 15


ouse bater à porta de seu gabinete. Só sua secretária é vista<br />

entrando e saindo, sempre com alguma pasta na mão. Ela é a<br />

única intermediária entre o saber e o cotidiano burocrático da<br />

universidade. Discreta, não herda a autoridade de seu superior.<br />

Ao contrário, prefere também o contato apenas através dos pareceres<br />

assinados por Eustárquio. Fora do expediente, também<br />

não é vista nas instalações do campus. Pouco se sabe dela e, por<br />

razões óbvias, ninguém pensa em aborrecê-la.<br />

O nome do catedrático se espalha em jornais, revistas, monografias,<br />

teses, cartazes. A onipresença das nove letras contrasta<br />

com sua ausência física. Seu nome é repetido inúmeras vezes<br />

diariamente dentro daqueles muros, mas ele jamais é visto, a<br />

não ser em raras fotografias dependuradas em algumas salas da<br />

instituição, como na secretaria, na biblioteca, na sala de leitura,<br />

no saguão de entrada. Parece um Deus, que está em toda parte,<br />

mencionado em toda aula de literatura, obrigatório em toda<br />

bibliografia acadêmica, e intangível. Sem dúvida, esta invisibilidade<br />

serve para engrandecer o mito, impor mais respeito e temor.<br />

Quem não gostaria de dizer que foi orientado pessoalmente pelo<br />

mestre ou que assise às suas aulas semanalmente? Mas quem<br />

também não teria receio de que isto acontecesse?<br />

Suas críticas no jornal já determinaram o fim de algumas<br />

carreiras literárias tidas como promissoras. Nenhum editor se interessa<br />

em reeditar o escritor mal visto pelo catedrático, por ter<br />

certeza do prejuízo. O público leitor segue fielmente suas orientações<br />

e abandona qualquer escritor que for depreciado em sua<br />

página. Dizem até que há uma expectativa sádica por parte de leitores:<br />

anseiam por seus comentários críticos, como se assistissem<br />

a um embate na arena entre os animais e o cristão. Dizem que há<br />

apostas sobre quem será o próximo poeta analisado ou o prosador<br />

que terá nota zero. Apesar de ser texto de jornal, o catedrático<br />

mantém o hábito escolar de atribuir notas, que normalmente<br />

são baixas. Um três, por exemplo, é recebido com satisfação pelo<br />

autor, pois não impede a edição de outra obra sua, apenas deixa<br />

Capítulo 15<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 77


o editor com certa cautela. Já o zero é o fim da vida literária, a certeza<br />

da recusa por parte de todas as editoras, as portas fechadas<br />

dos suplementos literários, o abandono dos demais escritores.<br />

Em uma só palavra, o esquecimento.<br />

Embora fosse curioso que ninguém visse chegar ou sair,<br />

ele com frequência se encontrava em seu gabinete despachando<br />

com a secretária, lendo pilhas de livros, escrevendo artigos,<br />

orientando teses, coordenando reuniões, atendendo a telefones<br />

de autoridades, etc. Assim, era consenso que a personalidade<br />

mais famosa da instituição era também a mais dedicada,<br />

pois era a que chegava mais cedo e que saía mais tarde. Certa<br />

vez um professor, ressentido com uma opinião desfavorável a<br />

um texto que seria publicado na revista do departamento de<br />

Línguas Latinas, quis investigar a vida do catedrático. Tentou subornar<br />

o vigia que, com medo, o denunciou. Graças ao espírito<br />

corporativista, o caso foi abafado e o professor permaneceu no<br />

exercício de suas funções, com o juramento de que jamais faria<br />

de novo qualquer ação contrária ao Dr. Eustárquio. O medo de<br />

ser despedido por justa causa silenciou o professor, que, para<br />

se vingar do vigia, escreveu conto sobre a delação e, zeloso, o<br />

guardou na gaveta.<br />

Outra vez, um aluno, cujo projeto de tese não fora aceito,<br />

pensou em riscar-lhe o carro, mas para tanto era preciso saber<br />

qual era o seu carro, o que, obviamente, não conseguiu. Então,<br />

pôs-se a esperá-lo, próximo a seu gabinete. Sem êxito, pensou em<br />

sequestrar a sua secretaria, afinal só ela poderia levá-lo ao paradeiro<br />

do catedrático. Esta, que só por fingimento fazia questão de<br />

passar despercebida, adivinhou-lhe as intenções e avisou a seus<br />

guarda-costas, que trabalhavam disfarçados de contínuos e serventes.<br />

O aluno foi detido e, por pouco, não teve que responder a<br />

uma acusação de assédio sexual. Como não saberia explicar o que<br />

fazia à noite na faculdade nem por que se atirou subitamente na<br />

secretária, quando ela saía de sua sala, pediu espontaneamente<br />

cancelamento de matrícula e se mudou de cidade.<br />

78<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 15


Certamente houve outras tentativas de aproximação do<br />

catedrático, que não foram registradas ou foram propositadamente<br />

esquecidas. Ou quem sabe, as duas relatadas, não aconteceram<br />

e serviram só como exemplo para intimidar quem, por<br />

ventura, ousasse, desrespeitar o acordo de se manter em paz o<br />

catedrático. Neste caso, o boato é útil à instituição, que se utiliza<br />

dele oficiosamente. Para alunos, por serem jovens e inexperientes,<br />

havia quase uma maldição sobre quem pensasse em ter um<br />

contato direto com Dr. Eustárquio e, quando em sala de aula,<br />

algum professor dizia, para se vangloriar, que fora seu discípulo<br />

ou orientando, eles, mesmo não acreditando em tais palavras,<br />

mostravam admiração pelo privilégio do mestre.<br />

Gerações se formavam na universidade sem ouvirem o<br />

discurso tão esperado do eminente crítico na noite de formatura.<br />

Mas havia sempre um substituto que lia um texto - segundo<br />

era sempre dito - elaborado pelo diretor especialmente para<br />

aquela turma. Todos se sentiam honrados e aplaudiam de pé o<br />

orador interino, que discursava, tendo por trás o retrato atualizado<br />

de Dr. Eustárquio. Se algum observador dissesse que a cena<br />

lembrava um número de marionetes não estaria sendo inexato.<br />

Os familiares dos formandos não indagavam por sua ausência.<br />

Creio que queriam ir logo para o bufê e esquecer os discursos,<br />

sempre parnasianos e enfadonhos, dos diversos oradores.<br />

Os pais talvez quisessem pôr logo as mãos no certificado<br />

de conclusão do curso universitário de seus filhos, com medo<br />

de que algum diretor autoritário, na última hora, voltasse atrás<br />

e alegasse uma nota baixa, um mau rendimento em alguma<br />

matéria e suspendesse a formatura e a entrega do diploma na<br />

colação de grau. Tal era a fama das atitudes arbitrárias de Eustárquio,<br />

que qualquer divagação, por mais inverossímil, seria<br />

aceita. A festa não só era pela conclusão de um ciclo de estudos<br />

e do direito de exercer uma profissão, era também a festa de<br />

despedida de um período de medo e intranquilidade. A sombra<br />

do maior ensaísta de literatura do país deixava de pesar. Que<br />

Capítulo 15<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 79


fossem dar suas aulas longe dali, que fossem escrever seus textos<br />

sem o temor de sua opinião!<br />

Um dia um funcionário antigo, fazendo os cálculos para se<br />

certificar de que já possuía o tempo de serviço necessário para se<br />

aposentar, comentou com um colega um fato estranho. Disse-lhe<br />

que, quando chegara à universidade, soubera que o Dr.Eustárquio<br />

era o diretor há umas três décadas e, embora nada entendesse de<br />

<strong>Letras</strong>, percebeu, durante estes 35 anos, como ele era admirado e<br />

temido de todos por seu saber literário. Sem ser de muita instrução,<br />

sabia pelo menos as quatro operações e somando o seu tempo<br />

de serviço, o tempo da direção do Dr. Eustárquio e o tempo<br />

anterior à direção, ele teria talvez uns 80 anos de serviço público<br />

e mais de 100 de idade. O outro funcionário, servente como ele,<br />

pouco dado a conjecturas, lhe disse para esquecer isto, que ele<br />

deveria estar enganado e que, fosse lá o que fosse, o melhor seria<br />

não se intrometer com estes detalhes de tempo. As autoridades<br />

são diferentes, doutores fazem outro tipo de cálculo e não seria<br />

um servente que iria tirar o diretor do cargo por já estar idoso.<br />

Aliás, não era educado mencionar a idade dos outros, especialmente<br />

a de superiores. O outro servente, diante de tantos conselhos,<br />

cedeu e rasgou a folha em que fazia as contas. Concluiu que<br />

seria melhor mesmo se aposentar e o quanto antes.<br />

Não coube a este servente nem a outro qualquer funcionário,<br />

mais graduado, ler o dossiê de cinco volumes que jaz em um<br />

arquivo da polícia federal. Lê-lo na íntegra de suas 3478 páginas<br />

seria maçante e perda de tempo. Caso houvesse uma edição resumida<br />

deste dossiê, saberíamos que uma investigação foi feita<br />

há duas décadas sobre a figura do Dr. Eustáquio, mas não por motivos<br />

políticos. Nada havia em suas fichas que justificassem um<br />

veto por parte de alguma autoridade civil ou militar. Era um cidadão<br />

merecedor de respeito e nada constava que o desabonasse.<br />

Um diretor de uma universidade rival, situada em outro<br />

estado, com parentesco na câmara e em departamentos policiais,<br />

organizou à distância um levantamento da vida do ilustre<br />

80<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 15


ensaísta. As surpresas não foram poucas, sem nos referirmos<br />

às contradições: o doutor já teria morrido há 40 anos ou, para<br />

outros, nunca teria existido; a secretária, que também era substituída<br />

por outra com semelhanças físicas, seria a atriz principal<br />

da peça, cuja excelência do desempenho se dava na razão direta<br />

de sua discrição; haveria uma equipe de pelo menos dez professores<br />

exercendo todas as atividades atribuídas ao Dr. Eustárquio;<br />

e seus retratos envelhecidos eram truques de um fotógrafo<br />

cúmplice e bem pago.<br />

A autoridade competente, depois de ler outros relatórios<br />

que comprovavam o bom funcionamento da universidade,<br />

mandou que colocassem o dossiê no arquivo.<br />

Capítulo 15<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 81


Capítulo 16<br />

Era um prédio encardido do subúrbio, sem elevador. Pouca<br />

luz no corredor e paredes pichadas. Fazia calor a ponto da camisa<br />

ensopar. Passou o lenço na testa e no rosto para melhorar a impressão.<br />

Mas não fazia diferença. Suava e tinha um olhar de aflição que<br />

não podia disfarçar. Nem com maquilagem. Aflição de nascença,<br />

diziam os parentes próximos, na falta de outra explicação. Onde é<br />

que já se viu criança com angústia? Era como um sinal, cicatriz. Pior.<br />

No primário, a mãe era sempre chamada. Aquela perplexidade no<br />

olhar não era dificuldade de aprendizagem. Pelo contrário, era bom<br />

aluno. As professoras não entendiam. “Que menino estranho!”, diziam<br />

na ausência da mãe. Cresceu aflito, como um manco cresce.<br />

E a vizinhança o reconhecia na rua ou das janelas: “Lá vai o aflito!”<br />

Parou no segundo andar para uma pausa. Três lances de<br />

escadas e pouca ventilação. No subúrbio é assim: a prefeitura dá


licença para qualquer obra. O arquiteto não vai morar lá mesmo.<br />

Nem a mãe dele. Nem a mãe do funcionário que aprovou a planta.<br />

Nem a mãe do prefeito. O ar pesava. Tirou do bolso um papel<br />

rasgado para conferir mais uma vez o endereço: 308. Devia ser<br />

de fundos. Melhor que fosse de fundos. Tinha sujado o braço no<br />

corrimão do outro andar. Tentou limpar um pouco com o lenço<br />

já suado. Dane-se! É tudo só vida encardida.<br />

Bateu à porta com certa timidez. Talvez não fosse esse o<br />

apartamento. Pedro lhe dera o número errado. Atendeu uma<br />

mulher de uns trinta e cinco anos, de roupão azul, como se fosse<br />

uma dona de casa. Ele pigarreou sem graça.<br />

— É aqui que mora Paulete?<br />

— Sou eu mesma, disse, abrindo mais a porta para que<br />

ele entrasse.<br />

— Um amigo meu me recomendou. O Augusto. Não sei se<br />

lembra. Um alto, moreno...um bigode grande...<br />

— Sei, sei...pode ficar à vontade. O quarto é o primeiro à<br />

esquerda. Pode entrar, que eu vou só desligar a panela no fogão.<br />

Ele abriu devagar a porta, como se fosse encontrar algo<br />

de espantoso no quarto. Mas não. Uma cama, um armário,<br />

duas cadeiras, um pequeno espelho, um ventilador portátil e<br />

uma mesinha com um jarro de água e dois copos. Os olhos<br />

conferiram tudo uma segunda vez. Era isto, só isto. Por que<br />

diabos o amigo lhe indicara aquela mulher? Talvez fosse melhor<br />

ir embora antes que...Havia sempre um “antes que” na<br />

vida, a questão era saber identificá-lo. Fosse ele profeta, teria<br />

descido em outro ponto, entrado num bar, tomado uma cerveja,<br />

depois outra, e esquecido o que estava fazendo ali. Mania<br />

de ir atrás do equívoco, do irremediável.<br />

Dois minutos depois ela entrou, enxugando as mãos. Claro<br />

que Paulete era um codinome. O nome devia ser Paula. É comum<br />

este disfarce óbvio ou, então, é nome de fotonovela. Não, Paulete<br />

veio do cinema. Ela fora muito ao cinema, bibliotecas, teatros. Por<br />

isso Augusto a recomendara como especial. Mas ele jamais saberia<br />

Capítulo 16<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 83


disto. Ela falava coisas triviais, como qualquer dona de casa: cozinha,<br />

crianças, compras. Este era seu personagem. Não parecia interpretar,<br />

a não ser pelo fato de enxugar as mãos obsessivamente,<br />

como se repetisse um gesto de outra pessoa.<br />

Tirou a roupa e enfiou o membro dele na boca. Agiu<br />

profissionalmente, fingindo prazer, até que pressentiu que ele<br />

ia gozar. Então pediu para ele esperar. Olhou-o fundo. Parecia<br />

resgatar imagens do passado. Choro de criança. Choro e grito<br />

de criança. E ele parado, pensando que ela era doida. Tudo não<br />

passara de uma armadilha feita pelo amigo: levá-lo à cama com<br />

uma doente das ideias. Não.<br />

Ela recordava algo e chorava baixinho, de forma quase<br />

imperceptível. Então ele recomeçou os movimentos com mais<br />

força, preparando-se para o orgasmo. A mulher olhava para o<br />

teto e dizia: “Me chame de Medeia! Me chame de Medeia!”<br />

Depois de um mês, ele retornou ao prédio encardido. E<br />

foram para a cama outras vezes, sem muitas palavras. Não sabia<br />

por que voltava. Já ela não parecia surpresa. Esperava-o com<br />

um peixe, depois que soube ser este seu prato preferido. Ela<br />

preparava a refeição, adivinhando a sua vinda. Depois iam para<br />

o quarto e faziam sexo. Até que um dia quebraram o estrado<br />

da cama. Ele ficou sem jeito e deixou mais dinheiro do que o<br />

habitual. Já ela nem mandou consertar o estrado. Esta história<br />

de Medeia o inquietava. Ela não tinha leitura. De onde tirou o<br />

nome? Paulete vá lá. Serve pra puta.<br />

Em pouco tempo, sua aflição foi aumentando. E um clínico<br />

geral a quem recorrera não era a pessoa indicada para descobrir<br />

a causa. Insônia ou pesadelo. Perda de apetite e mal-estar.<br />

Só sabia que quando saía daquele apartamento doía-se mais. E<br />

voltava. E voltava. Ao prédio, ao distante bairro, às paredes descascadas.<br />

Com o peito cada vez mais estalado.<br />

Uma tarde passou a escutar uma música que se repetia,<br />

quando já estava perto do apartamento dela. Esta música obsessiva<br />

subia os andares mais veloz do que ele. Saltando de três em<br />

84 Marcus Vinicius Quiroga Capítulo 16


três, entrou no apartamento na sua frente e se espalhou pelos<br />

cômodos. Quando ele entrou depois, a mulher já estava à porta,<br />

à espera. Ele exausto, ofegante. Não havia mais como voltar<br />

atrás. A dor é um caminho sem volta. Parou por um momento, em<br />

seguida beijou-a, como se fosse mulher aguardando marido do<br />

serviço diário. Entrou. Ficou andando de um lado para outro, com<br />

cerimônia. Esta era também a primeira vez que estivera ali. Não<br />

reconheceu os quadros baratos na parede, o sofá rasgado, o aparelho<br />

de som no canto, os poucos discos, a planta quase murcha<br />

num vasinho. Não já estivera naquela sala? Seu pai tinha razão.<br />

Este menino com este olhar...deve ter saído a sua família. Vá pro<br />

quintal. Vá tomar sol!<br />

O coração batia mais descompassado. Tudo pelo anonimato.<br />

Tudo por andar nas ruas e não ser reconhecido por ninguém.<br />

Ser um estranho para a própria família, parentes, amigos,<br />

conhecidos, vizinhos... Agir como se invisível. Sem ter o aborrecimento<br />

de cumprimentar, fazer perguntas, responder... Nada<br />

de explicações. O mundo carecia de lógica e não cabia a ele naquele<br />

quarto de subúrbio dar sentido às coisas, nomear seres,<br />

justificar os acontecimentos. Só uma mulher a sua frente, de<br />

roupão azul e cabelo preso. Nenhuma perspectiva de felicidade.<br />

Foram para o colchão e treparam. Suaram e recomeçaram.<br />

E foram muitos os verbos praticados, quase mudos. Ela parecia<br />

satisfeita, mas só gozava se a chamassem de Medeia. Um<br />

dia, quando ele esqueceu, ela se aborreceu.<br />

— Egoísta! Só pensa em você. Também quero gozar. Se<br />

fizer de novo, me vingo...<br />

— Desculpe, Paulete, foi sem querer.<br />

Era falso falar Paulete. Naquele dia, ele se lembrou e<br />

berrou Medeia várias vezes até fazê-la cair numa gargalhada.<br />

Quando terminaram, fez questão que tomassem banho juntos<br />

no chuveiro apertado.<br />

Vestidos no quarto, ele sacou da arma. Um pequeno revólver<br />

usado. E disparou. A bala acertou o peito. Os olhos de<br />

Capítulo 16<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 85


espanto dela. Parecia que naquele último instante a sua aflição<br />

passara para ela. E se congelara. Iria para a sepultura com este<br />

olhar, intrigando os poucos que foram ao cemitério. Caiu lentamente<br />

sobre a cama desfeita, como se não quisesse fazer barulho<br />

e chamar a atenção dos vizinhos. Ofegava mais e mais. A<br />

sua angústia, no entanto, parecia que desaparecia. Embrulhou o<br />

corpo da mulher no lençol. Não podia deixá-la insepulta. Abriu<br />

o armário e começou a jogar todas as roupas sobre a morta,<br />

até formar uma pilha. Guardou o revólver no bolso secreto do<br />

paletó. Sentou-se numa cadeira por alguns minutos. O corpo ali<br />

tolamente escondido. Só a arma fora dele. Só a mão fora dele.<br />

A história ela a escrevera há muito tempo. Só o lenço tirando as<br />

impressões digitais da casa era dele. A morte era dela. Exclusivamente<br />

dela. Escrita com lentidão diária, gota a gota.<br />

Trancou a porta, desceu com passos normais a escada.<br />

Saiu do prédio, olhou para um lado, para o outro. Agora tinha<br />

uma certeza. Agora, sim.<br />

86<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 16


Capítulo 17<br />

Conseguira a arma com silencioso, como planejara.<br />

Agora era só esperar. Tinha agido com calma até o momento.<br />

Investigara os hábitos de Pedro durante três meses: horários,<br />

trajetos, lugares que frequentava. Não que ele fosse<br />

um sujeito metódico, mas obedecia a uma rotina por força da<br />

profissão e da família. Portanto, não era difícil prever onde<br />

estaria, por exemplo, às terças-feiras de manhã. Era só conferir<br />

nos apontamentos. Saía de casa às 6.30 h, chegava à<br />

repartição do Conselho Estadual de Arte, antes das sete, e lá<br />

permanecia até as 12 h. Almoçava com algum colega em um<br />

restaurante perto. E às 14 h já se encontrava na faculdade,<br />

dando aula. Merecia uma promoção por conduta exemplar<br />

como funcionário público. Mas para Caio merecia só uma<br />

bala, na testa, e com silenciador.


Estudou as opções: a rua, o prédio do Conselho ou a faculdade.<br />

Nenhuma era propícia para um assassinato discreto.<br />

Além de trafegar por ruas movimentadas, Pedro trabalhava no<br />

centro da cidade e em um bairro próximo, também de bastante<br />

movimento. Em qualquer lugar haveria testemunhas e a fuga<br />

seria difícil. Tinha que encontrá-lo em recinto fechado e rezar<br />

para que não houvesse ninguém por perto. Logo a faculdade foi<br />

a opção escolhida. No horário de saída, na sala de aula, depois<br />

dos alunos terem ido embora ou em um corredor...<br />

Caio fizera simulações, fora a seus locais de trabalho e<br />

andara por lá sem levantar suspeita. Sabia que seu rosto não<br />

poderia ficar gravado na memória de um porteiro, um servente<br />

ou de um funcionário mais atento. Depois de visitar algumas<br />

vezes a faculdade e a repartição pública, ficara dois meses sem<br />

aparecer, tempo que julgara suficiente para ser esquecido, caso<br />

alguém tenha reparado nele em alguma ocasião.<br />

Sabia que precisava ter autocontrole. Talvez não fosse<br />

oportuno fazer o disparo na primeira tentativa, talvez só na<br />

quarta ou quinta. Tinha que esperar. Engenheiros têm fama de<br />

bons planejadores. E ali estava ele diante da planta baixa de um<br />

assassinato. Só que não dispunha de mestre de obras, nem de<br />

operários a seu serviço. A tarefa era só sua, cabiam a ele o planejamento,<br />

a supervisão e a execução. Pensou que planejamento<br />

não fosse uma palavra que desse conta do que fizera. Lembrou-<br />

-se de outra: estratégia. Coisa de militar e de polícia e ele não<br />

tinha experiência nem como um, nem como outro. Aliás polícia<br />

se tornara a palavra mais desagradável, pois todas as suas ações<br />

tinham como motivação não ser surpreendido na hora do tiro,<br />

nem depois descoberto pela investigação.<br />

Nunca pensara tanto nesta palavra. Primeiro com medo,<br />

em seguida com cuidado, finalmente com determinação para enfrentá-la.<br />

Não em tiroteio, mas nas ações de inteligência, como<br />

os policiais gostam de dizer hoje em dia. Agira como um detetive<br />

particular, levantando a vida de Pedro. Ensaiara os passos, os<br />

88<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 17


gestos e procedimentos necessários para o instante fatal, feito<br />

um ator profissional. Chegara até a pensar uma vez que os dois<br />

anos no teatro universitário do curso de engenharia tiveram serventia.<br />

Sentira mesmo prazer em se passar por aluno, entrar na<br />

faculdade com roupas mais modernas, fichário e livros na mão.<br />

Nesta instituição estudavam muitos alunos, logo qualquer um<br />

entraria lá sem ser notado. Já no Conselho era diferente. Havia<br />

poucos funcionários e o público que frequentava aquele andar<br />

era pequeno. Se fosse lá uma segunda vez, acabaria sendo reconhecido.<br />

Daí ter optado pela faculdade. Lá, fantasiou, poderiam<br />

atribuir o tiro a um aluno reprovado ou a outro professor que<br />

desejasse a sua chefia de departamento.<br />

Maldita hora em que Pedro aceitara o convite para fazer<br />

parte do júri de um concurso de contos para autores iniciantes. Se<br />

ele tivesse restringido a sua participação a ler os livros, dar notas,<br />

comparecer à festa da entrega de prêmios, nada disso aconteceria.<br />

Mas o acaso quis que ele encontrasse no metrô com uma jovem<br />

sentada lendo o regulamento do concurso. Com dez minutos<br />

de conversa, ficou sabendo que ela era escritora ainda não publicada<br />

e que tinha intenção de inscrever um livro neste concurso. E<br />

com o pretexto de lhe enviar o regulamento de outros concursos,<br />

conseguiu-lhe o e-mail. De e-mail em e-mail, acabou marcando<br />

um encontro, com a intenção de ter um caso com ela.<br />

A princípio se fez passar por conselheiro literário, exibiu-lhe<br />

os títulos de professor universitário, membro do Conselho Estadual<br />

de Arte, sócio de vários entidades na área de cinema e teatro, redator<br />

de uma revista...E ela, do outro, em seus vinte e cinco anos,<br />

era só uma estudante que queria ser um dia uma escritora famosa<br />

dessas que fazem artigos para revistas femininas e dão palestras<br />

por todo o país. Os dois não esconderam seus relacionamentos: ele<br />

tinha mulher e três filhos; e ela, um namorado. Não tinham nos<br />

primeiros encontros razão para esconder coisa alguma: ela, por inocência<br />

ou interesse, não o julgava um sedutor, mas um pai; e ele,<br />

por achar que convinha ao personagem paternal que representava.<br />

Capítulo 17<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 89


Num café de uma livraria no centro, ele jogou o trunfo na<br />

mesa. Confessou que fazia parte do júri do concurso em que ela<br />

inscrevera o livro de contos. Disse que não era ético o que fazia,<br />

mas que, por ética também, não poderia deixar de lhe fazer tal<br />

revelação. Este jogo de palavras, os gestos medidos, a falsa crise<br />

de consciência, tudo impressionou aqueles vinte e cinco anos. Pedro<br />

foi além da simples confissão, deu ao concurso uma dimensão<br />

que verdadeiramente não tinha, disse que era o segundo prêmio<br />

mais respeitado do país e que já tinha aberto as portas para vários<br />

autores iniciantes. Exagerou na cobertura que a mídia dedicava<br />

ao concurso, falou em fotos, reportagens e, quem sabe, televisão.<br />

Acentuou a responsabilidade do júri, o trabalho com a leitura de<br />

350 originais, a lisura necessária, o rigor dos critérios.<br />

Ela saiu do café satisfeita de ter conhecido alguém com tantos<br />

méritos intelectuais e profissionais e que, por sorte do destino,<br />

era o seu jurado. O trunfo funcionara. Pedro conseguira passar<br />

a imagem de intelectual competente, professor admirado e<br />

pessoa influente. Dali a uma semana, quando se viram novamente,<br />

o texto do homem atormentado entre o dever de ser imparcial<br />

e o desejo de ajudar uma jovem talentosa por quem se afeiçoara<br />

já estava pronto. E uma semana também tinha sido tempo suficiente<br />

para que a vaidade e a ambição minassem as ideias da<br />

jovem, que enxergou em Pedro a oportunidade do destino lhe dar<br />

uma mãozinha, em troca, talvez de outros favores. A fantasia do<br />

estrelado, as páginas do jornal, o orgulho da família, os parabéns<br />

da vizinhança, tudo justificava a traição e a conquista do prêmio.<br />

O desempenho do jurado, este, sim foi digno de prêmio.<br />

Depois de uma hora de papo no bar, foram direto para o motel.<br />

É claro que ela falou que ele a atraia, que apreciava homens que<br />

são pais, que se portam como provedores e conselheiros e seguiu<br />

adiante em seu polissíndeto. Neste dia iniciaram um caso<br />

que durou três meses. Satisfeito seu desejo, Pedro começou a<br />

alegar desculpas para rarear os encontros: doença da caçula, período<br />

de provas na faculdade, comissões especiais no conselho<br />

90<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 17


e até mesmo a leitura dos inúmeros originais do concurso. Mais<br />

tarde, quando o namorado soube do caso, afastou-se dela, que<br />

parecia, a princípio não sentir a sua falta, tão entretida que estava<br />

com o prêmio revelação de contista do ano. Não vieram as<br />

reportagens, muito menos a entrevista na televisão, mas saíram<br />

notas em suplementos literários, houve um almoço comemorativo<br />

em família, abraços de amigos e vizinhos e o apelido de<br />

“revelação” vingou em alguns ambientes.<br />

O dinheiro do prêmio não era muito, nada que a fizesse<br />

mudar de vida. Compensavam a edição do livro, prevista para<br />

dali a seis meses por uma editora de porte médio, e a glória efêmera<br />

na sua rua e no seu local de trabalho. Antes do lançamento<br />

do livro, ela já pensara em procurar de novo o ex-namorado. Sem<br />

as festas e sem o amante, as noites voltaram a ser vazias. Não<br />

era ainda uma estrela que não precisasse de companhia ou que<br />

a obtivesse com facilidade. Escreveu-lhe uma carta, uma longa<br />

carta, narrando todos os detalhes da traição e se dizia arrependida.<br />

A esta altura, acreditava tanto em seus dotes literários que<br />

presumia que uma bela narrativa assinada pela autora revelação<br />

fosse o bastante para trazer de volta o ex-namorado. Quem não<br />

desejaria sair com uma jovem escritora de tantos méritos?<br />

A carta, ao contrário de seu livro de contos, não recebeu<br />

prêmio algum. Não obteve resposta. No entanto, serviu para<br />

fazer nascer no ex-namorado a idéia de vingança, nutrida diariamente<br />

pela dor que sentia. Engenheiros normalmente não<br />

apreciam tanto a leitura quanto literatos. E ele não foi exceção:<br />

a carta não lhe despertou admiração como leitor, apesar do inegável<br />

talento descritivo da autora. Trouxe-lhe, talvez por esta<br />

mesma razão, motivos para que o engenheiro se dedicasse a outro<br />

tipo de construção.<br />

Naquela terça-feira de manhã, a quarta vez em que ele seguia<br />

Pedro até a universidade, não houve aula em duas turmas,<br />

que tinham ido a um congresso. Logo o professor, dispondo de<br />

tempo livre, dirigiu-se à sala de estudo de seu departamento,<br />

Capítulo 17<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 91


para corrigir algumas monografias do semestre. Era o momento.<br />

Apalpou a arma em sua calça com a mão direita, mais para se sentir<br />

seguro do que para confirmar o que seu corpo já sentia. Com a<br />

esquerda levava uma pasta com livros e papéis, adereço do disfarce.<br />

Vestia um figurino ambíguo: tanto podia ser confundido com<br />

um professor, quanto com um aluno. Em situações diferentes um<br />

papel seria melhor do que o outro, afinal não era tão jovem que<br />

não pudesse ser professor, nem tão velho que não pudesse mais<br />

ser aluno. O meio-termo no caso lhe era conveniente.<br />

Pedro nunca mais vira a contista premiada. Nem pensava<br />

muito nela. Fora justo: convenceu os outros jurados a dar<br />

o prêmio àquela jovem de promissora carreira, em troca de<br />

algumas tardes no motel. Agora se encaminhava para sua sala,<br />

pensando apenas na tarefa maçante de ler monografias cheias<br />

de paráfrase e erros gramaticais. Não teve tempo de fixar bem<br />

os olhos no rosto de quem se dirigiu a ele, à porta de sua sala.<br />

Caiu imediatamente, espalhando os papéis e livros no chão do<br />

corredor. Um tiro de tão perto é infalível. Na testa, como ele<br />

desejava. Rápido e sem ruído.<br />

O colega que dali a cinco minutos encontrou o corpo, ao<br />

se abaixar depois para recolher os papéis, reparou na capa de<br />

um livro respingada de sangue. Era a de um livro de contos policiais,<br />

com uma tira que indicava a premiação em um concurso<br />

do ano. O título Cine Noir não levaria a polícia à autora, pois<br />

em uma faculdade de Cinema é um título corriqueiro e o fato<br />

de estar nas mãos de um de seus professores é bem verossímil.<br />

Pena que Caio também não fosse escritor. Se o fosse, teria<br />

um estilo refinadamente irônico.<br />

92<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 17


Capítulo 18<br />

Consultando livros desde o século XVI na Torre do Tombo,<br />

na biblioteca de Coimbra ou, aqui mesmo, na Biblioteca Nacional,<br />

vai encontrar vários textos que tratam da matéria. Uns remetem<br />

à Inquisição e apresentam o poeta trasvestido de bruxo<br />

seus métodos mais sugerem o sadismo religioso do que um código<br />

de ética que visasse à extinção desta espécie. Seus detalhes<br />

nos escandalizam hoje em dia, quando já existem inúmeros tratados<br />

em defesa dos direitos humanos. Não me refiro à fogueira<br />

ou passeio sobre brasa, há procedimentos feitos a portas fechadas<br />

mais cruéis que levavam à morte do mesmo jeito, só que<br />

com mais vagar e mais prazer por parte da plateia.<br />

Ao longo dos séculos, antes de chegarmos à nossa década,<br />

tivemos regimes políticos diversos, alguns dados a práticas de violência,<br />

que variavam de acordo com a tecnologia da época. Muitos


sangrentos e eficazes. Gerações de poetas morreram e a causa não<br />

foi precisamente o mal do século. No entanto, eles parecem ter adquirido<br />

resistência diante da forca, da tortura, do esquartejamento,<br />

do pau-de-arara, da cadeira do dragão, do choque elétrico, do<br />

apedrejamento... e voltam a publicar livros, a dizer textos em praça<br />

pública, a distribuir panfletos com poemas, como se ignorassem a<br />

ordem histórica de extermínio.<br />

Adélia era formada pela Universidade de França, onde<br />

também fizera todos os cursos de pós-graduação. Data de lá o<br />

hábito de só se pronunciar em língua francesa, mesmo quando<br />

a sós com sua empregada, na discussão da lista do mercado.<br />

Mais ainda, se em presença de professores, escritores e intelectuais<br />

de um modo geral. Tem vergonha de sua língua, da<br />

pele de seus conterrâneos, dos modos dos pobres. Logo exprimir-se<br />

em francês é uma forma de purificar os que por felicidade<br />

se encontram a seu redor. Ocupa atualmente, além da<br />

cátedra da faculdade, o posto de crítica-mor do Diário das Artes,<br />

a mais prestigiada publicação literária do país. Neste cargo,<br />

há vinte anos, já se tornou a referência nacional através de<br />

seus ensaios e críticas: nenhum autor é reconhecido sem antes<br />

passar por seu crivo, nenhum ousa ser best-seller sem o seu<br />

aval, nenhum publica uma segunda obra sem a sua bênção.<br />

Sua voz é esperada semanalmente e as prateleiras das livrarias<br />

são rearrumadas, após a sua página dominical.<br />

Naquela tarde de quinta-feira, recebeu em sua casa a visita<br />

de uma orientanda recomendada por um colega de prestígio de<br />

famosa instituição de São Paulo. Ou seja: não poderia recusála.<br />

Além do mais, nem passou por sua cabeça que a aluna não<br />

estaria intelectualmente à altura de sua orientação. Depois<br />

de duas horas de conversa pródiga em citações e referências,<br />

que serviram para Adélia se certificar da bagagem de leitura de<br />

Márcia, pediu que ela agora lhe falasse sobre o seu projeto de tese<br />

que, afinal, era o motivo da visita. Ansiava por saber qual a linha<br />

teórica que seria seguida, a bibliografia levantada, as propostas<br />

94 Marcus Vinicius Quiroga Capítulo 18


de leitura, para pensar como poderia ser a sua colaboração.<br />

Estes pensamentos lhe vinham menos por interesse do que por<br />

zelo de sua reputação. No meio todos sabem que uma tese que<br />

fracassa não prejudica só o seu autor, mas também o orientador.<br />

Em muitas mais vezes este do que aquele, visto ser ele quem<br />

tem fama; já o outro, anônimo, não vê sua imagem ameaçada.<br />

Feitos os preâmbulos para a pergunta, Adélia, educadamente,<br />

quis saber qual o tema da tese e se ela já teria título, mesmo<br />

que provisório. Márcia respondeu, sem perder a naturalidade,<br />

que se tratava de uma tese mais sociológica do que literária<br />

propriamente dita. Que era sobre poesia, melhor, sobre poetas,<br />

sobre a situação dos poetas atualmente no país. A orientadora<br />

balançava a cabeça e murmurava um interessante, interessante.<br />

Mas súbito arregalou os olhos, quando ouviu de sua agora discípula<br />

que a sua tese era de fato um projeto, fundamentado em<br />

bases estéticas, para eliminar um número significativo de poetas.<br />

— Eliminar em que sentido?, perguntou Adélia, assustada.<br />

— Em todos, tirar seus livros de circulação, inibir seus encontros<br />

com os pares, proibir-lhes os saraus, cancelar suas publicações<br />

em jornais alternativos, e, em determinados casos, o<br />

degredo ou a morte.<br />

A primeira parte da tese estabeleceria quais os parâmetros<br />

literários para o julgamento das obras, depois teríamos a<br />

constituição de um grupo, altamente qualificado, para atribuir<br />

notas a tais obras antes da publicação. Caso a nota fosse abaixo<br />

de sete, a obra não iria para o prelo, afinal é preciso manter<br />

um mínimo de literariedade que justificasse a edição. Há muita<br />

árvore morrendo neste país para a vaidade de poetastros. Com<br />

esta ação, a literatura e o meio ambiente ganhariam: menos árvores<br />

virariam papel e menos papel viraria dejeto poético, se me<br />

perdoarem a expressão. Se fosse o caso de um mau autor reincidente,<br />

ele seria punido com alguns meses de reclusão, para que,<br />

no silêncio de uma cela, fizesse uma autocrítica e concluísse que<br />

deveria abandonar a literatura de uma vez por todas. Já se se<br />

Capítulo 18<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 95


tratasse de um autor com várias obras destituídas dos méritos<br />

estabelecidos pelo seleto grupo de críticos, não haveria perdão:<br />

o autor seria degredado, só depois de assinar um documento,<br />

registrado em cartório, de que jamais voltaria a este país. E, reconheço<br />

ser um ponto um pouco polêmico, alguns seriam indicados<br />

para a execução, se o número de obras medíocres fosse<br />

elevado, pois isto caracterizaria a total incompatibilidade de sua<br />

existência com a literatura. E, como os leitores não podem se<br />

expor a livros tão daninhos, o recomendável é a eliminação definitiva<br />

do autor.<br />

A segunda parte da tese, sei, extrapola a análise literária,<br />

mas é a sua razão de ser, seu objetivo último. Trata-se de definir<br />

como se dará a morte dos poetas e quem serão os beneméritos<br />

da arte que terão o privilégio de executar a sentença, em nome<br />

da qualidade permanente dos versos em nosso país. Penso, mas<br />

isto é só uma idéia mal alinhavada, que poderíamos instituir um<br />

concurso para este cargo, com provas teóricas e práticas, além<br />

do julgamento dos currículos. A propósito, acho este quesito<br />

fundamental. Só poderiam se candidatar à função de eliminador<br />

de poeta aquele que apresentasse uma folha invejável de<br />

serviços prestados à língua e à literatura da pátria. Depois, todos<br />

os aprovados na fase inicial fariam cursos apropriados ao<br />

desempenho desta nova profissão, como tiro ao alvo, técnicas<br />

de envenenamento indolor, métodos de breve afogamento etc.<br />

Sei que a ação pode ser mal compreendida por leigos, que<br />

não sabem dar a dimensão exata do valor da boa poesia para a formação<br />

moral dos jovens e deleite de todos, desde as crianças até<br />

os idosos. Mas tenho certeza de que no meio acadêmico, nas redações<br />

dos grandes jornais, nas rodas dos literatos de boa cepa e na<br />

mais fina elite intelectual, ela será abraçada com entusiasmo. Tão<br />

logo seja posta em prática, contabilizaremos os pontos positivos na<br />

coluna de crédito da boa arte de escrever. Significará, com certeza,<br />

uma contribuição mais relevante do que a dada por todos os estilos<br />

de época e movimentos literários que já ocorreram nesta terra.<br />

96<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 18


Adélia, apesar da fama de ter fleuma inglesa e de excelente<br />

jogadora de pôquer, mostrou-se um pouco abalada com<br />

o que ouvira. É certo que muitas vezes desejara eliminar alguns<br />

autores, e não só poetas; já rogou-lhes praga e ofendeu a árvore<br />

genealógica na intimidade de sua casa; fez-lhe críticas mortais,<br />

recomendara a editores a retirada de certas obras do catálogo...<br />

mas eliminar fisicamente um escritor lhe parecia algo inédito e<br />

no mínimo contrário à lei. Tal argumento foi rebatido com veemência<br />

por Márcia que, no segundo capítulo da tese, propunha<br />

a alteração de leis em caráter de urgência, facultando a certos<br />

críticos uma licença para determinarem qual poeta deveria ser<br />

eliminado e de que forma. Um serviço jurídico especializado<br />

defenderia a brevidade com que este projeto de lei deveria ser<br />

tratado e aprovado pela justiça, de modo que em meses o seu<br />

plano estaria em ação. Pensara até em um slogan para o lançamento<br />

da campanha contra os maus poetas “Menos poesia e<br />

mais silêncio!”<br />

Neste momento, a empregada doméstica entra com a bandeja<br />

de chá e brioche, interrompendo por uns minutos o discurso<br />

eloquente de Márcia, e dando tempo para Adélia se recompor e<br />

tentar recuperar o domínio da situação. Pensava rápido consigo<br />

mesma se a colega que indicara esta orientanda não saberia o<br />

conteúdo da tese e que, mesmo que tudo parecesse estranho,<br />

Márcia não poderia ser posta porta afora, de maneira deselegante.<br />

E como ser orientadora de um projeto que prevê a prisão,<br />

o banimento e a execução beneficente de centenas de poetas,<br />

apenas por critérios literários que os reprovassem? Passado o<br />

susto inicial, não considerava a ideia má, porém tinha um nome<br />

construído ao longo de anos e não poderia pô-lo em risco por<br />

modismos, ainda que reconhecesse a sua utilidade. Era jogadora<br />

de pôquer, não de sinuca. Tinha que ganhar tempo para preparar<br />

uma recusa que não se parecesse com uma recusa. Dependia da<br />

colega de São Paulo para a indicação de seu nome para intelectual<br />

do ano, pela terceira vez naquela década.<br />

Capítulo 18<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 97


Bebido o chá, Márcia retomou a explanação. Sabia que<br />

seu projeto era interdisciplinar: literatura, sociologia, psicologia,<br />

educação, todas estas matérias servem de fundamento para a<br />

sua proposta. Mas o aval do crítico literário seria o ponto inicial<br />

e nada melhor do que alguém como a senhora Amélia para emprestar<br />

o aval a este - admitamos - inusitado empreendimento<br />

artístico. Cuidadosa, já pensara em um modo de impedir que<br />

editores inescrupulosos usassem a execução do poeta como<br />

marketing para alavancar a venda de seus livros. Logo, todo poeta<br />

sentenciado ao silêncio eterno, teria todos os exemplares de<br />

sua obra queimados nas dependências da polícia, como fazem<br />

com entorpecentes apreendidos.<br />

Já fizera até uma projeção. Dez anos após a implantação de<br />

sua tese, o nível de leitura das crianças aumentaria 47% em qualidade,<br />

o silêncio urbano cresceria na ordem de 20% aproximadamente<br />

e o reflorestamento não precisaria ser feito com a velocidade<br />

que os dias de hoje requerem. Feitos os cálculos, só lucros e isto<br />

em apenas dez anos de eficiente execução de suas ideias.<br />

Adélia, percebendo a pausa da moça - ia dizer orientanda<br />

-, alegou um encontro na secretaria de educação da prefeitura<br />

e pediu que ela lhe deixasse o material que já fora escrito para<br />

que depois marcasse uma nova entrevista. Achara-a muito simpática<br />

e acreditava que tudo daria certo. Não quis fazer mais<br />

perguntas e despediu-a com modos vagos, sem dizer que aceitara<br />

a orientação e sem dizer o contrário. Não encontrara em<br />

tão pouco tempo um meio para não aceitar a tal tarefa, sem<br />

ficar embaraçada com a colega que a recomendara. Beijou-lhe<br />

as faces e fechou a porta.<br />

Dias depois, lendo o obituário no jornal, surpreendeu-se<br />

com o nome de Márcia Alves de Albuquerque. Telefonou para<br />

São Paulo e teve a confirmação: era ela, sim, tão jovem ainda,<br />

com uma carreira pela frente, profissional insubstituível, inteligência<br />

invulgar...Finda a ligação, respirou aliviada e grata ao<br />

destino por ter lhe dado a solução. A uma morta não se precisa<br />

98<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 18


dizer sim nem não. Muito mais fácil. Em seguida, olhou para a<br />

escrivaninha onde estavam os rascunhos da tese. Folheou-os<br />

com carinho e vagar, como se fosse uma despedida. Em parte,<br />

satisfeita de não perder o apoio da colega paulista, nem o seu<br />

voto para o prêmio de intelectual do ano; em parte, triste pelo<br />

desaparecimento prematuro da professora, sua quase orientanda.<br />

Seus olhos, agora fixos no título Como abater um poeta,<br />

pareciam se lamentar pela tese não ser defendida. Hesitou<br />

entre pôr a pasta na cesta de lixo ou numa gaveta. Cedeu à<br />

segunda opção, com um pensamento suspeito.<br />

Capítulo 18<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 99


Capítulo 19<br />

No sertão não era costume encontrar cartomante, quiromante<br />

ou qualquer outro tipo de vidente. Há vez por outra rezadeiras,<br />

que curam erisipela e asma, mas isto é ofício de outra ordem.<br />

Adivinhos lá não existem, até porque não teriam o que dizer de<br />

bom e adivinho que só vê desgraça não tem freguesia. Morre sem<br />

cliente. São os bons agouros que trazem os consulentes. Se uma<br />

vizinha foi a uma cartomante e esta disse que ela vai viajar de navio,<br />

a outra pede o endereço para se consultar também. E já vai com<br />

uma lista de desejos e pedidos à espera da confirmação da bola de<br />

cristal ou das cartas. Agora sertão é lá lugar de boa notícia? O que<br />

se vê é urubu a toda hora como sinal de morte, de seca, de ruína.<br />

Mas como o mundo está aí para ser contrariado, deu-se<br />

que num canto dos sertões, quase esquina da Bahia, instalouse<br />

um sujeito de nome Rosa, sobrenome, melhor que se diga


para evitar mal-entendidos. Aparência de bonachão, de profissão<br />

indefinida, idade para lá de quarenta, que gostava de pitar<br />

e prosear nas mesas dos botequins. Era mais de prosa do que<br />

de bebida. Jamais se embebedava, até porque falava tanto que<br />

não tinha tempo de levar o copo à boca. A aguardente era só um<br />

pretexto para que outros se sentassem a sua mesa e iniciasse<br />

seus casos. Apreciava, sim, a plateia e nem se importava se fosse<br />

de pouca instrução, desde que não o interrompessem nem duvidassem<br />

de tanta história torta. Este era o Rosa.<br />

Com o tempo, vinha gente de tudo que é canto para ouvir<br />

suas narrativas longas. Umas só acabavam dali a dias. Ele se sentava<br />

à mesa do canto e dizia “Dando prosseguimento...”, como<br />

se os ouvintes fossem os mesmos de antes, de ontem, de anteontem.<br />

Não importava. Continuava a história de onde tinha<br />

parado, às vezes, com a ajuda do dono do bar, que aumentara o<br />

número de fregueses, quando ele ia para o seu bar. Sem prévia<br />

combinação, Osório passou a desempenhar o papel de ponto de<br />

Rosa. No teatro de outras épocas, ponto era aquele sujeito que,<br />

escondido, soprava as falas dos atores, se eles as esquecessem.<br />

Se no teatro o ponto era um obscuro, que podia sair às ruas, sem<br />

ser reconhecido; ali dava-se diferente e Osório ganhou importância<br />

pela sua função, pois sua presença era a garantia de que<br />

não se perderia o fio da meada daqueles insuspeitados casos.<br />

Naquelas tarde e noites sem propósito, a cidade passou<br />

a ter ocupação: ouvir o mundo que se apresentava na voz mansa<br />

de Rosa. Uns apreciavam a sua memória e julgavam ser ele,<br />

apesar da aparência descuidada, homem de estudos e mistérios;<br />

outros desconfiavam de que ele criava tudo na hora mesmo<br />

e não saberia repetir o mesmo enredo dali a uma semana.<br />

Nunca se soube a quem dar razão; provavelmente às duas opiniões.<br />

Que a memória era louvável, isto era, mas não pareciam<br />

histórias lidas antes. Como ele também, pelo que foi verificado<br />

às escondidas, não tinha em casa livros nem manuscritos,<br />

concluía-se que ele não as escrevera primeiro. E mesmo se as<br />

Capítulo 19<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 101


tivesse feito, seria inverossímil alguém saber tanta frase de cor.<br />

Logo a nascente estava ali nele mesmo, na sua voz.<br />

Gostava de ouvinte, mas não de bajuladores, nem queria<br />

ser alvo de atenção, depois de terminada a narrativa. Que<br />

ninguém o interpelasse na rua com comentários sobre alguma<br />

história. Isto o desagradava e ele fugia do tema e do cidadão.<br />

Agora não, dizia. Mais tarde, vá ao bar. Agora estou ocupado. E<br />

seguia sozinho sabe-se lá para onde. Até que um dia veio a notícia<br />

de que Rosa fora visto em lugarejo próximo exercendo ofício<br />

de cartomante. Cartomante? Isto não é coisa de mulher? E são<br />

tudo vigaristas! Não acredito. Deve ser um tipo parecido com<br />

ele. O povo tem a mania de achar que todo gordo é a mesma<br />

pessoa. Boatos à parte, era o Rosa de fato. Só que não era cartomante,<br />

visto que ele não lia cartas. Não lia, antes escrevia. Creia<br />

você. Ele se sentava a uma mesinha de madeira velha e ficava<br />

escrevendo uns desenhos, coisa que parecia não ter sentido.<br />

A princípio, pensaram que era homem doido, desvairado, ou<br />

vagabundo que, por falta de útil ocupação, passava a tarde desenhando<br />

formas inexistentes, figuras que não tinham semelhança<br />

na realidade. Quando alguém perguntava o que fazia, respondia:<br />

”São enigmas”. E mais nada. Até que um sujeito resolveu lhe pedir<br />

um conselho, enquanto ele desenhava, supondo ser ele mestre em<br />

arte divinatória. Rosa não se fez de rogado e ofereceu-lhe meia hora<br />

de prosa sem intervalo. O homem entendeu o que entendeu e foi<br />

embora. Um mês depois voltou com a mulher e dois irmãos. Queria<br />

que o doutor desse umas palavrinhas para eles também, como se<br />

fosse uma consulta. Rosa achou graça, mas falou, já que falar nada<br />

custa. Os consultados espiavam perplexos os desenhos que não<br />

compreendiam e, aos poucos, foram espalhando que eram mágicos.<br />

As figuras substituíam as cartas e o vidro de cristal e ele via nos<br />

desenhos os fatos das vidas dos outros. Fazia adivinhações e dava<br />

orientações proveitosas. Além de tudo, não cobrava dinheiro nem<br />

favor. Aceitava de quando em quanto um presentinho, como um<br />

coelho ou um doce feito em casa, para não parecer mal-educado.<br />

102<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 19


A fama ainda não se excedia, quando recebeu ordem<br />

de prisão, por prática de charlatanismo e falso curandeirismo.<br />

Rosa foi levado por dois soldados até a cadeia e lá permaneceu<br />

para dar explicações. Na verdade, fora o prefeito o articulador<br />

da acusação, pois seu filho era médico e dono da única clínica<br />

da região. Com medo de perder seus clientes para Rosa, achou<br />

mais precavido afastá-lo da cidade. Deu-lhe o delegado, depois<br />

de três dias de detenção, ordem para sair da cidade e não voltar<br />

mais, senão seria preso de novo. E em caso de reincidência, haveria<br />

processo, gastos com advogado e, certamente, uma condenação.<br />

Para ser mais claro, o delegado admitiu que ele não<br />

era visto com bons olhos pelas autoridades locais e que fosse<br />

brincar de fazer desenhos em outro sítio, de preferência, bem<br />

distante. Rosa, que não era burro, entendeu as palavras pouco<br />

amáveis e partiu.<br />

No outro lugarejo, não desenhava, não dava opinião na<br />

vida alheia, só proseava continuamente. Parecia um rio falando<br />

na correnteza. Lá era admirado sem aborrecimentos. Embora<br />

não estivesse ali pela admiração de ninguém, nem pelo apreço<br />

ou afeto. Era mais forte do que ele: gostava de narrar, de contar<br />

histórias. Talvez para pensar que pudesse haver um mundo melhor,<br />

mais encantado. Uma espécie de fantasia que contrastava<br />

com o agreste. A língua que usava nem parecia a mesma dos<br />

compêndios e manuais de gramática.<br />

Nem tudo o povo entendia, mas não fazia diferença.<br />

Achavam graça nas expressões e no dia seguinte estavam repetindo<br />

em outros lugares. E quando na única escola do lugar<br />

uma criança repetia uma palavra esdrúxula e dizia que aprendeu<br />

com o Seu Rosa, a professora anotava em seu caderninho<br />

e não dava repreensão.<br />

Nesse tempo, deu-se que um viajante, sabendo do paradeiro<br />

de Rosa, veio à cidade à guisa de esclarecimentos. Embora<br />

tentasse disfarçar, o povo logo percebeu que era um jagunço, um<br />

matador decerto, desses que usam facão, revólver e fuzil num<br />

Capítulo 19<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 103


mesmo defunto, para ter certeza do feito. Tinha uma fisionomia<br />

desagradável e palavras poucas e ásperas. Tiveram receio, mas<br />

indicaram o bar onde encontraria Rosa. Em lá chegando, dirigiuse<br />

a ele, como se não houvesse mais ninguém ao redor. Ignorou<br />

a todos que, cabisbaixos, também fingiam não estar ali. Pediu a<br />

Rosa dois dedos de prosa, mas em particular, fora das vistas e<br />

ouvidos. Tentava ser educado, como lhe era possível, e disse que<br />

desse o preço da consulta que pagaria fosse o que fosse, sem<br />

regateios. Rosa respondeu que não tinha profissão de vidente,<br />

apenas desenhava enigmas e charadas no papel e falava o que<br />

vinha à cabeça. Que fossem para a mesa mais afastada do bar.<br />

Melhor, disse o jagunço. Pôs uma nota de valor alto no balcão<br />

e mandou o dono do bar dispensar a clientela por uma hora.<br />

O dinheiro no balcão e as armas à vista fizeram que fosse logo<br />

atendido. Sozinhos os dois no canto do bar, o viajante custou um<br />

pouco, até que desabafou.<br />

Vinha de longe, mais do que supunha, recomendado por<br />

compadre, homem sério, de palavra, competente no tiro de toda<br />

distância. Queria conversa iluminada com um tal de Rosa, homem<br />

de vereda certa, de leitura escorreita, sem deslize. Queria<br />

a verdade, a verdade de lâmina afiada. Se fosse enganado, voltaria<br />

para dar cabo dele. Outra coisa: a conversação era sigilosa. Se<br />

alguém soubesse meia palavra dali, voltaria da mesma forma e<br />

com a mesma intenção. Ele pagava pela verdade e pelo segredo,<br />

que não traísse sua alma, posto que em situações normais ele<br />

não usava daquelas educações e era o diabo. Quer dizer, pior.<br />

Rosa ouviu o discurso sem se abalar. Não tinha medo de<br />

grito nem de bala. Manteve a voz mansa, ao responder a ele<br />

que ficasse em paz, falaria sem medo do retorno. E se quisesse<br />

tirá-lo da vida, era só ir àquele bar, pois não tinha esconderijos.<br />

Dito isto, pôs-se a sua disposição.<br />

O jagunço então gaguejou um pouco. Custou a pegar a<br />

prosa, como se fosse de pedra. Enfim veio de uma vez. Era matador,<br />

com história de muitos tiros e facadas. Trabalhara para<br />

104<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 19


muitos coronéis e por conta própria. No momento chefiava um<br />

bando, tudo a suas ordens. Praticava longe dali, mais alto no<br />

mapa do sertão. Acontece que um dia achou que estava gostando<br />

de um capanga seu. Mais que afeto, coisa diferente, olhar<br />

de homem para mulher. E ele era matador, dos bons, macho sabido<br />

e respeitado. De repente esta sensação estranha por um<br />

igual. Ficou sem dormir. Queria explicação. Pensava que o outro<br />

cuidava da mesma forma, que lhe dava um carinho bruto, mas<br />

carinho. Como podia ser? Eles, dois matadores, machos sem<br />

concorrência e este sentimento de nuvens fechadas.<br />

Rosa se riu um meio riso e pegou a folha de papel. Desenhava<br />

coisas simbólicas, difíceis para letrado, quanto mais para<br />

jagunço. O outro olhava com respeito. E se Rosa contasse para<br />

alguém aquela confissão? Não seria melhor matá-lo e afiançar<br />

segredo de túmulo. Mas, sabe-se lá por qual razão, nem alisou<br />

as armas. Esperava adivinhação atento. Rosa desenhava mais e<br />

mais. Depois ocorreu o veredito. Vá em paz. Não tenha receio.<br />

Todos sabem que você é macho e de sua história. Ninguém vai<br />

pensar o diferente. E o que você quer de seu capanga é coisa boa,<br />

não é fraqueza, doença, ou mal de feitiço. Um gosta do outro. É<br />

de lei, é de eternidade. Não vai conseguir fugir. Não tenha medo.<br />

Ele também sente afeição. E não é coisa de homem fêmea. Vá em<br />

paz. Tem minha palavra e minha bênção. Você vai ter surpresa<br />

quando encontrar seu capanga a sós. Surpresa boa. Agora guarde<br />

bem esta palavra, coisa de mágica. Quando se encontrar com ele,<br />

diga: “Diadorim”. Entendeu? Basta dizer: “Diadorim”.<br />

Capítulo 19<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 105


Capítulo 20<br />

Há famílias que se dedicam à fabricação de relógios; outras,<br />

a concerto de violinos; outras ainda, ao cuidado de vinhas.<br />

Já a família de Oscar escolheu as biografias. Desde seu bisavô,<br />

os homens são educados para a profissão de biógrafos e o sobrenome<br />

Proença já se constitui uma marca. Quando o leitor vê<br />

a assinatura desta família, já sabe que tem nas mãos um livro<br />

feito com seriedade de pesquisa e redação exemplar. A editora<br />

que os encomenda e publica é a mesma, portanto não há dificuldade<br />

na renovação dos contratos. E os biógrafos sabem que, ao<br />

término de uma obra, podem escolher um nome da lista secreta<br />

e arregaçar as mangas. Aprenderam com o pai ou com o avô ou,<br />

normalmente, com ambos, os passos a serem dados e o método<br />

a ser seguido. Sentem-se orgulhosos pelo reconhecimento<br />

do método Proença de elaboração de biografias e, embora


não o revelem na íntegra, às vezes dão cursos e palestras sobre<br />

o tema. No meio editorial até as concorrentes admitem que o<br />

nome Proença já se tornou uma grife, sinônimo de qualidade,<br />

com clientela fiel.<br />

Cada membro da família, de acordo com a formação e<br />

conveniência, dedica-se a uma época, que pode ser só uma década<br />

ou até mesmo um século, pois sabem que a especialização<br />

é um dos segredos da profissão. Não só porque a pesquisa<br />

para um livro facilita a do outro, como também porque sempre<br />

recebem convites quando o seminário ou a mesa redonda for<br />

sobre aquele período específico. Na intimidade, passam a ser<br />

denominados de 30, 40, 50, 60, conforme a década na qual<br />

tenham se especializado. Logo, em família, todos entendem<br />

quando à mesa alguém diz “Passe o sal, 30” ou “Um pouco<br />

mais de vinho, 50”.<br />

No momento, eles se encontram em reunião por um motivo<br />

inusitado. Ao todo, são 12 homens, entre avô, filhos e netos,<br />

ao redor de uma mesa longa na casa de campo do velho<br />

Proença. Mas é um dos mais jovens quem lê a pauta do dia e<br />

faz a explanação para os demais. Com um relatório avalizado<br />

por entidades internacionais de respeito, ele mostra a projeção<br />

feita sobre o crescimento da população e os recentes estudos<br />

sobre a qualidade do ser humano. Primeiro, os casais estão tendo<br />

menos filhos, especialmente em países mais civilizados, o<br />

que, sob um ponto de vista, é muito bom, mas, como veremos<br />

mais adiante, este dado é desfavorável à atividade de biógrafo;<br />

segundo, e isto talvez seja mais alarmante, registra-se um<br />

menor número de nascimentos de pessoas com aptidões para<br />

a categoria de biografáveis. Se seguirmos um simples raciocínio<br />

matemático seria o oposto, pois, se a densidade demográfica<br />

aumenta, aumenta proporcionalmente o número de indivíduos<br />

possíveis de merecerem uma biografia. Engano, o mundo não<br />

é feito passivamente de números. A história tem mostrado nas<br />

últimas décadas - e não nos cabe aqui, por ora, discutirmos as<br />

Capítulo 20<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 107


causas - que não têm nascido líderes ou heróis, ou, digamos,<br />

pessoas cuja atuação pública sirvam de exemplo e mereçam a<br />

atenção dos leitores.<br />

As virtudes, os talentos têm rareado e muitos homens vêm<br />

sofrendo de doenças que fazem com que percam a capacidade<br />

de despertar interesse no outro. E o outro na nossa profissão,<br />

não nos esqueçamos, é sempre o leitor. Ora, apesar de algumas<br />

doenças já terem sido detectadas e até mesmo serem objeto<br />

de sérios estudos, a ciência ainda está longe de lhes encontrar<br />

a cura. Além do mais, não são, como autoridades médicas me<br />

informaram, doenças prioritárias. Dizem mais: são doenças polêmicas,<br />

muitas ainda não reconhecidas pelos organismos internacionais,<br />

ainda à espera de classificação e catalogação, ainda<br />

sem uma nomenclatura definitiva e única. Darei exemplos: temos<br />

atualmente epidemias de Mimetismo, surtos de Tautologia<br />

e casos isolados de Paráfrase obsessiva. Em outras palavras, segundo<br />

os cientistas, a perspectiva é de que nas próximas décadas,<br />

para não dizer em todo o século, não haja nascimento de<br />

homens que tenham méritos para se tornarem personalidades<br />

públicas. Ou seja, a nossa matéria-prima escasseia. Precisamos,<br />

portanto, com urgência analisar os fatos e elaborarmos uma estratégia<br />

para enfrentar os tempos difíceis que se aproximam.<br />

Um primo aflito aparteou: E os políticos? Alguém sempre<br />

terá que ocupar cargos públicos, com exposição diária na mídia,<br />

o que garante certa popularidade. Infelizmente, estes são os<br />

piores. As últimas safras têm demonstrado que a classe política,<br />

corrupta e venal em sua maioria, não tem a simpatia do povo,<br />

cujo interesse por suas vidas, a cada dia que passa, diminui.<br />

Para agravar a situação, ainda que a vaidade dos políticos<br />

aprecie a citação de suas obras, a cautela recomenda no<br />

momento que não se deixem entrevistar com tanta liberdade,<br />

pois o repórter ou o biógrafo pode encontrar fatos contrários<br />

a uma boa reputação, a ponta de algum escândalo ou um motivo<br />

justo para inquérito ou perda de mandato. O momento é<br />

108<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 20


crítico. Se este quadro não se reverter, nossos filhos terão que<br />

buscar outra profissão, pois não haverá mais quem sirva para<br />

ser biografado.<br />

Outro primo, bastante jovem e bem temeroso, pondera<br />

que poderiam seguir o exemplo dos norte-americanos e escreverem<br />

livros sobre atletas, cantores, artistas de televisão. Lá na<br />

América há um filão deste tipo de biografia. Parece que o povo<br />

de lá gosta de textos sensacionalistas e, quanto pior a história<br />

do sujeito, maior é a tiragem do livro. Para as editoras e autores<br />

é um bom negócio, não para o leitor, que permanece idiotizado.<br />

A intervenção do primo causou comentários controvertidos.<br />

Dois tios nem quiseram ouvir todas as suas palavras e se<br />

retiraram da sala, visto que não admitiam usar o nome honrado<br />

da família para assinar obras oportunistas que visassem<br />

exclusivamente ao lucro, sem trazer benefício algum ao leitor.<br />

Para eles a proposta era desrespeitosa. Os mais jovens mantiveram-se<br />

sentados à mesa, afinal eram os mais ameaçados<br />

com o gradual desaparecimento de homens biografáveis. Tinham,<br />

sim, que encontrar uma solução para não perderem o<br />

ofício de uma hora para outra.<br />

Alguém levantou a mão e pediu que o organizador do encontro<br />

explicasse melhor as doenças que se alastram e prejudicam<br />

suas carreiras. Desejava saber com mais clareza a relação<br />

entre doença e biografia.<br />

O primo do início retomou a palavra, surpreso que não<br />

tenham entendido o que significava as epidemias mencionadas:<br />

Na verdade, não são doenças novas nem restritas a nosso país.<br />

Se estudarmos os textos mais antigos, encontraremos os casos<br />

de Mimetismo e Tautologia, se bem que não usassem estes nomes.<br />

Ao longo de toda a história do homem, elas permaneceram<br />

vivas e atuantes e, como não são de certa forma fatais, só desaparecem<br />

com a morte do indivíduo infectado. Até médicos de<br />

outros séculos, despreparados para o exercício da ciência, não as<br />

identificaram, crendo que tais doenças fizessem parte da natu-<br />

Capítulo 20<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 109


eza humana. No século XX, o pensamento de que o homem é<br />

um ser mimético e tautológico é insultante. Só podemos aceitar<br />

estes fenômenos como doenças, que merecem os cuidados prioritários<br />

da tecnologia médica. O fato é que, graças ao crescimento<br />

da cultura de massa, a partir dos anos 50, elas se multiplicaram de<br />

tal forma que fugiram a qualquer tipo de controle, até porque já<br />

atingiram os aparelhos de estado que deveriam controlá-las, especialmente<br />

os setores políticos, jurídicos e médicos. Ora, o grau<br />

de infecção nestas áreas é bastante elevado, mas como isto não<br />

pode ser divulgado, para não arranhar a imagem do governo, nenhuma<br />

providência é tomada para combater os focos da doença.<br />

O tio que levantara a mão pergunta, ainda indócil: “Mas o que<br />

vêm a ser tais doenças, querido sobrinho?”<br />

Este olha para o tio com pesar, pois sabe que o desconhecimento<br />

da doença é o seu primeiro sintoma. Logo seu tio<br />

era um mimético ou tautológico, o que quer dizer também que<br />

as biografias escritas por ele estão sob suspeitas e podem prejudicar<br />

o bom nome da família nesta área literária. Mais tarde<br />

teria que afastar o tio da escrita. Por ora, preferiu responder,<br />

com inesperado medo de que mais alguém ali também estivesse<br />

contaminado. Pelo olhar dos parentes, perceberia quem, por<br />

ignorância das doenças, já as cultivasse em seu dia a dia.<br />

Pensado isto, deu continuidade às explicações. O mimetismo<br />

é facilmente verificado pela conduta de imitação e repetição,<br />

pela falta de originalidade, consagrado na expressão “hábitos e<br />

costumes”. O indivíduo que tem o seu vírus age como os outros,<br />

veste-se como os outros, repete as frases ouvidas, tende à concordância<br />

e a aceitação dos fatos, sem questioná-los. Desprovida<br />

de opinião, pauta suas ações pelos exemplos do pai, do político,<br />

do religioso, do ídolo artístico ou esportivo, ou do vizinho. É um<br />

anônimo nas ruas, um número nas estatísticas. Logo não há nada<br />

que o distinga dos demais homens, o que faz com que não tenha<br />

material para justificar uma biografia, já que a história de sua vida<br />

não tem a menor graça, por se parecer com a de milhares.<br />

110<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 20


Já a Tautologia é mais sutil e, por isso, sua identificação<br />

requer observação e inteligência, atributos nem sempre encontrados<br />

na classe médica, o que explica o número pequeno<br />

de internações por esta doença. Serei didático. Tautologia é o<br />

estado em que o indivíduo se encontra, quando define uma<br />

coisa pelo seu sinônimo. Explico ainda mais. Em virtude da<br />

acomodação existencial que o acomete, ele justifica todos os<br />

acontecimentos como se fossem naturais. Não tem, em consequência,<br />

tipo algum de inquietação ou angústia, pois vê o<br />

mundo perfeitamente ordenado. As coisas são as coisas que<br />

são e esta forma de estabelecer correspondências lhe basta.<br />

Reparou que a plateia tinha alguma dificuldade em compreendê-lo,<br />

o que o deixou de sobreaviso. Será que alguns daqueles<br />

parentes vinham fazendo pesquisas e entrevistas miméticas?<br />

Será que os textos das biografias eram tautológicos? O<br />

que fazer para preservar o nome da família?<br />

Pensou em finalizar a explanação. Assim como o Mimetismo,<br />

a Tautologia causa a dependência de opinião, o uso indevido<br />

das ideias alheias, a repetição de gestos e atos, a submissão<br />

às ideologias. Ora, se um indivíduo apresenta alguma destas características,<br />

quando não acontece, de apresentar todas, ele se<br />

despersonaliza, perde a identidade e jamais terá uma biografia.<br />

Desanimados, os parentes nada disseram. Entreolhavam-se<br />

assustados. Se não restavam mais homens para serem<br />

biografados, a lista da editora já deveria estar bem pequena,<br />

embora os editores não tenham avisado à família. Um tio, mais<br />

experiente, coçou a barba e pensou que pelo menos ainda haveria<br />

algumas biografias a serem feitas, as dos médicos que elaboraram<br />

a teoria das doenças do Mimetismo e da Tautologia.<br />

Alegando uma ida ao mercado com sua mulher, pediu para sair<br />

mais cedo e se dirigiu imediatamente à editora. Não custava oferecer<br />

a ideia antes que talvez alguém a tivesse.<br />

Capítulo 20<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 111


Capítulo 21<br />

Depois de dez anos na prisão não se tem mais noção de<br />

tempo. A memória embaralha tudo, o que houve, o que não<br />

houve, o que precisaria ter havido. A outra prisão é esta: a de<br />

não sabermos mais quem somos. Sair daqui é voltar para alguém<br />

que não sabemos quem é. Lá fora todos nos olham com<br />

distância, como quem tenha vindo do mundo dos mortos. O que<br />

não deixa de ser verdade. Dez anos de morte. O juiz deveria ler<br />

a sentença assim: Fulano de Tal, culpado. Pena de 20 anos de<br />

morte no pavilhão C do presídio Y.<br />

A repetição dos dias faz com que o passado se apague. Perde-se<br />

a lembrança das pequenas coisas. Poucas fotografias sobram<br />

depois de alguns anos. E elas eram o fio que nos conduziria de volta<br />

às pessoas. Mas hoje só duas ou três me visitam. Pais mortos. Mulher<br />

casada de novo. Com certa frequência só mesmo um irmão e


um amigo. Não sei como aconteceu, mas, a partir de um dia, paramos<br />

de falar sobre os outros parentes. Não fiz mais perguntas, nem<br />

eles comentários. Acordo silencioso. Para evitar tristezas e frustrações.<br />

Como se houvesse o contrário disto dentro das celas.<br />

No cinema, eu usaria decerto uma fisionomia abatida, com<br />

barba por fazer, uniforme desleixado. Aqui, não. Tenho que fazer<br />

a barba todos os dias, como se fosse me preparar para um encontro<br />

que nunca acontece. Talvez seja esta uma técnica de tortura:<br />

alimentar a espera, a espera de qualquer coisa. Porque aqui não<br />

há coisa alguma. Estamos longe da cidade. Todos os barulhos que<br />

ouvimos nos pertencem. São feitos aqui dentro mesmo. Às vezes,<br />

um avião. Para nos lembrar de uma fuga improvável.<br />

Ainda bem que não tive filhos. Foto só a de meus pais,<br />

juntos. E basta. A da mulher rasguei logo que soube que ela estava<br />

com outro. É destino. Advogado só serve para tirar dinheiro.<br />

Dos dois lados. Ou de quantos lados houver. Muito discurso<br />

e livro para provar que você não tem razão, que a vida é<br />

assim mesmo. Quem mandou desobedecer à lei? Se você tiver a<br />

mente fraca acaba acreditando que eles detêm a verdade e que<br />

o mundo é feito de um deus, um pai, um policial, um patrão,<br />

um juiz, um fiscal. E você está do outro lado, portanto tem que<br />

pagar pedágio, tributo, multa, bênção, reza, vênia.<br />

Todo preso, quando fosse solto, deveria ter como missão<br />

matar os inspetores do mundo. Todos que apitam, anotam, fazem<br />

relatórios, usam palavras de ordem. Todos estes parasitas<br />

que preenchem folhas e folhas sobre a conduta alheia. Os olhos<br />

do rei tinham que ser arrancados a dente. Em cada árvore a cabeça<br />

de um delator. Esta lei da prisão tinha que valer lá fora. O<br />

mundo livre também tem o que aprender com os presos. Até<br />

porque eles estão presos do jeito deles. O medo lá fora não é<br />

muito diferente do que o que existe aqui dentro. Todos os animais<br />

têm medo do homem, principalmente ele.<br />

O ócio obrigatório entre quatro paredes acaba com qualquer<br />

um. A autoestima desaparece. Embora a maioria na prisão<br />

Capítulo 21<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 113


seja pobre e nem sabe que tem autoestima. É palavra que nunca<br />

ouviram. Todos os seus pertences são confiscados quando você<br />

entra em uma prisão. São colocados em um saco que você recebe<br />

de volta quando é solto. Pelo menos este é o procedimento. Mas<br />

a identidade que lhe é tirada é para sempre. Não cabe em saco<br />

plástico. Não apodrece em armários úmidos. E nem sempre outra<br />

é forjada durante a pena. Você pode sair vazio.<br />

Na prisão tudo tem preço, tudo é mercadoria. A esperança<br />

é a de preço mais elevado. A esperança de reverem sua<br />

pena. De você ser transferido. De receber visita. De ter indulto.<br />

De permanecer vivo. De ser liberto. Quantos pacotes de cigarro<br />

custa uma esperança?<br />

Nisto os dois mundos se parecem: a fábrica da esperança.<br />

Como você sabe que um dia você pode ser escolhido pelas<br />

loterias, enche de dinheiro os donos das casas lotéricas e, mais<br />

do que todos, o governo. Compra bilhetes de mudança de vida e<br />

espera. E envelhece. E morre.<br />

Aqui é mais fácil enlouquecer. Lá você se ocupa o dia inteiro,<br />

dorme pesado e acorda com dívida. E recomeça tudo: sai<br />

desesperado para cumprir tarefas, projetos, destinos. Embora<br />

saiba que provavelmente não terá êxito. Na contracorrente, encontra<br />

traições, doenças, injustiças, opressões, arbitrariedade.<br />

Como não se afogar no diário? Como não sacar de um revólver<br />

num dia claro de outono e fazer um, dois, três disparos? Como<br />

não escutar o assoalho estalando até arrebentar após os nossos<br />

passos? Então põem em você uma camisa-de-força, ou algo que<br />

a valha e degredam você para o limbo de um hospício ou presídio.<br />

Até segunda ordem.<br />

Às vezes, uns repórteres vêm aqui para fazer reportagens<br />

com presos. É claro que os diretores não gostam muito.<br />

Temem que se diga algo contra a sua administração. Aí eles<br />

escolhem quem vai dar entrevista e, antes, subornam o preso<br />

com cigarros, doces, direito a mais visitas íntimas... No fim, os<br />

jornalistas fazem matérias a favor do sistema e as reclamações<br />

114 Marcus Vinicius Quiroga Capítulo 21


são arquivadas na cesta de lixo do gabinete do diretor. E há<br />

preso que fica todo satisfeito com a foto no jornal e a expressão<br />

de animal para quem se joga alimento.<br />

Do outro lado dos muros, temos que partir do zero. Nada.<br />

Não existe esta história de zerar a vida. Temos é que arrastar a<br />

prisão pelos dias. Mentir para que não saibam que somos expresidiários.<br />

Pois, quando sabem, se afastam. Temem a nossa<br />

violência a qualquer momento. E é fato: somos ou nos tornamos<br />

violentos. Não há escapatória. A maioria reincide. Os que não<br />

morrem a bala voltam. E vão acumulando penas. Já não sabem<br />

viver fora desta engrenagem. A vida é só chicote e você tem que<br />

estar de um dos lados. Açoitando ou sendo açoitado. Sem tréguas.<br />

Até a morte. Por cansaço ou desistência.<br />

Avisam que é hora do banho de sol. Que devemos sair das<br />

celas em cinco minutos. Mas não portamos óleo, binóculo, jornal,<br />

cadeira de praia, boné. No máximo uma toalha de rosto. De qualquer<br />

forma pode ser perigoso. Alguém pode querer estrangular<br />

o outro com a toalha. É desses medos que a prisão se alimenta.<br />

Sem eles, isto seria uma hospedaria de quinta e só. Sem sangue<br />

entranhado no chão não teria graça para eles. Como é que fariam<br />

denúncias, alegariam o desrespeito e a omissão das autoridades?<br />

Daí criarem as arenas e soltarem os leões para o delírio da imprensa<br />

e aumento da audiência. Há lá fora uma plateia ansiosa<br />

por violência. Qualquer coisa que os afaste do tédio. E não nos pagam<br />

cachê. Somos números em estatísticas. Números anônimos.<br />

Estranho termos um segundo banho de sol no mesmo<br />

dia. Será que é visita de alguma ONG? Para quem o diretor quer<br />

fazer teatro? Só falta avisarem que o cardápio hoje será diferente:<br />

teremos salmão ou trutas no jantar. Que nada. Deve ser<br />

o boato de motim. Eles não estão tendo mais tolerância com<br />

rebelião por aqui. Houve cinco só neste estado no último mês.<br />

A ordem agora é atirar primeiro e recolher os corpos depois.<br />

Nada de imprensa por perto. Para que preso precisa de tanto<br />

sol? Aliás, todos os dias aqui são sem sol.<br />

Capítulo 21<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 115


Por que este silêncio repentino? Será que ninguém vem<br />

abrir minha cela? Dá a impressão de que a ala inteira já desceu<br />

para o pátio. O que está havendo? Será que há uma rebelião em<br />

curso e não estou sabendo? Mas Pedro ou Júlio teriam me dito<br />

algo, eles não me deixariam de fora. Eles precisam de mim. Eu<br />

consegui outro advogado para eles. Isto sem falar nos cigarros<br />

que meu irmão traz. Não. Está muito esquisito. Já dá para ouvir<br />

alguém fazendo discurso no pátio. E esses latidos de cães. Cão<br />

não costuma tomar banho de sol. Finalmente vão abrir a porta.<br />

Mas por que esta lentidão? Ei, espere, o que esse preso da ala<br />

norte está fazendo aqui. E este estilete?<br />

116<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 21


Capítulo 22<br />

Quatro professores de língua portuguesa se reuniam para<br />

almoçar de quatro em quatro meses, mais ou menos. Tinham lecionado<br />

num cursinho há vinte anos e desde então mantiveram<br />

o hábito de almoços para se reverem e colocarem a conversa em<br />

dia. Os almoços não são longos, porque precisam voltar para o<br />

serviço, mas é tempo suficiente para recordarem fatos da época<br />

em que eram colegas. Carlos é que mais gosta de trazer lembranças<br />

à mesa. Não há um encontro em que ele não cite um<br />

ex-colega ou ex-aluno, um caso da vasta antologia que habita a<br />

sua memória. Além do afeto que os traz sempre ao restaurante,<br />

há um passado comum, tempo de mais dificuldade, em que tinham<br />

uma carga horária excessiva. Não foram profissionais bem<br />

sucedidos, não subiram na vida, como se diz, mas, de qualquer<br />

forma, a situação de todos melhorou. Hoje lecionam em colégios


particulares da elite e em faculdades; o tempo de aula com 200<br />

alunos ficou para trás. A idade, visível nos cabelos grisalhos, mudou<br />

o ritmo de vida de todos.<br />

Vez ou outra um traz um livro de presente para os demais:<br />

uma gramática, um novo manual de redação e até um livro de<br />

ficção. Acontece que todos são especializados em redação, mas<br />

em redação não literária. Então é inevitável discutirem um caso<br />

gramatical entre um e outro copo de cerveja. Nada como uma<br />

regência dúbia, uma concordância particular para animar o apetite<br />

dos quatro. Talvez nem percebam o prato pedido, alimentados<br />

com a discussão vernacular, afinal onde eles encontrariam<br />

interlocutores para tal debate? Em qualquer mesa ao lado, a<br />

simples referência a um hipérbato seria capaz de estragar a refeição<br />

ou tornar, pelo menos, a digestão mais difícil.<br />

Finda a sessão acadêmica, passam com naturalidade aos<br />

assuntos mais íntimos, como projetos pessoais e famílias; ou<br />

mais corriqueiros como lançamento de filmes e livros. O quinto<br />

copo de cerveja facilita a mudança de tema, mas não a ponto de<br />

muitas franquezas. Se estivessem só dois, isto talvez ocorresse,<br />

mas quatro já é uma reunião social. O fato é que o encontro<br />

jamais se aproximou de uma análise em grupo. Um certa seriedade<br />

e distância sempre tem sido mantida, apesar das piadas.<br />

Há seis meses, porém, Fábio, o menos gramatical do grupo,<br />

propôs uma tese: a das pessoas discursivas e narrativas,<br />

cujas características não precisaria explicar para professores de<br />

redação. A maioria das pessoas era do tipo narrativo e, portanto,<br />

menos interessante. São pessoas que, quando encontram<br />

outras, só contam fatos acontecidos em sua vida ou vistos no<br />

jornal e na televisão. E dá sempre a sensação ao ouvinte que<br />

aquela não é a primeira vez que conta aquela história, nem será<br />

a última. Adoram a repetição e confundem vida com enredo.<br />

Nelas o mundo exterior predomina sobre o interior. São quase<br />

sempre pouco originais e muitas vezes cansativas. Sua companhia<br />

pode levar ao aborrecimento.<br />

118<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 22


Já as pessoas dissertativas são as que gostam de uma discussão,<br />

no bom sentido do termo, é claro. Pensam, analisam,<br />

questionam, propõem ideias novas. Têm espírito crítico e não<br />

raramente ironia na abordagem dos temas. Era fácil ver que Fábio<br />

estava argumentando em causa própria. Daqui a pouco, seria<br />

capaz de se citar como exemplo. Mas quem apontaria como<br />

pessoa narrativa? Naquele momento, Carlos se lembrou da sogra;<br />

Chico, da mulher; e Mário, da humanidade.<br />

Surpreendidos com a tese defendida, ninguém discordava,<br />

tampouco mostrava entusiasmo em aderir a tal bipartição<br />

dos homens: os dissertativos e narrativos. Para eles as palavras<br />

faziam sentido e não replicavam os fundamentos da superioridade<br />

dos primeiros sobre os segundos. Fábio enumera fatos a<br />

favor de seus pensamentos: mesmo quem não gosta de redigir é<br />

capaz de fazer uma narrativa; quando damos liberdade de escrever<br />

ao aluno, a maioria faz uma narração; em concursos, pedem<br />

sempre dissertação, porque avalia melhor o candidato...Exaltado<br />

com a cerveja, ele chegou a ponto de chamar as pessoas narrativas<br />

de medíocres e que Drummond tinha razão em citar Valéry,<br />

dizendo que “os acontecimentos o aborreciam”. Terminou<br />

com a frase “Os poetas sabem das coisas!” e propôs um brinde.<br />

Houve um silêncio mais prolongado depois da fala eloquente<br />

de Fábio. Parecia que todos temiam falar alguma coisa<br />

que não fosse um tema mais filosófico, e não mais uma questiúncula<br />

gramatical. Talvez se sentissem envergonhadas por<br />

debater casos sintáticos ou morfológicos. E como falar da ida<br />

a Belo Horizonte para um congresso, a estrada, o hotel, as reuniões?<br />

Seria ele um medíocre? Que tese mais desagradável!<br />

Já se passaram seis meses e ninguém telefonou marcando<br />

novo encontro, talvez ainda traumatizados com as diferenças de<br />

modalidade de redação na identificação das pessoas. Carlos um<br />

dia se viu reclamando com a mulher, que nada entendeu, do<br />

filho mais velho. Ele era muito narrativo, ela não achava? Chico<br />

foi pouco a pouco diminuindo as aulas de narração, e deixando<br />

Capítulo 22<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 119


mais tempo para discutir quase que exclusivamente a dissertação.<br />

E Mário tem exposto a tese em ambientes fora do magistério,<br />

longe de professores, especialmente os de português.<br />

Quando percebe admiração na plateia pela originalidade e pertinência<br />

da analogia, apresenta-se como o seu autor.<br />

120<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 22


Capítulo 23<br />

Fazia quinze anos que dedicava como médico as manhãs<br />

pares àquele sanatório. Ia ainda a duas clínicas particulares e a um<br />

hospital público. Ali era sem dúvida a clientela mais doente de que<br />

cuidava. Muitos pacientes eram casos perdidos, para os quais qualquer<br />

tratamento era inútil. Não tinha ilusões quanto a métodos mais<br />

modernos: a insanidade era terra de ninguém. O estranho era pensarem<br />

que ele, ou qualquer outro médico, sabia o que fazer diante<br />

das manifestações ilógicas da vida. Porque se fosse dentro da lógica,<br />

haveria remédios, discursos e expectativas. A razão, aprendera ainda<br />

como estagiário, só tem utilidade para os casos racionais.<br />

E as classificações que surgiram a partir do século XIX<br />

são dignas de obras de ficção. Mas tiveram seu propósito e o<br />

atingiram. Conseguiram, primeiro, mais verba; depois, valori-


zaram o médico da saúde mental e deram a ele mais controle<br />

sobre o saber. O cinismo não mencionou. Este veio naturalmente<br />

durante as reuniões, os congressos e seminários. Por<br />

que a empáfia, quando estavam a sós, sem testemunhas? Não<br />

precisavam mentir entre eles.<br />

Quinze anos e nenhum paciente recuperado. Na sua<br />

maioria dopavam os doentes, que se mostravam mais calmos<br />

durante as visitas para as famílias, o que dava sempre a sensação<br />

de esperança. Dentro de seis meses, quem sabe, terão<br />

alta e estarão em casa. Como seu horário não incluía as tardes<br />

de domingo, não tinha o constrangimento de lidar com os familiares,<br />

não precisava fingir para eles nem assistir ao recíproco<br />

fingimento deles. Tinha apenas suas observações nas fichas dos<br />

pacientes lidas por outros médicos, que explicavam suas palavras,<br />

conforme o entendimento e a conveniência.<br />

Quando em Outubro, surgiu a ideia de organizarem uma<br />

dramatização com os internos para as festas de Natal, alguém<br />

lembrou que ele, quando jovem, tivera experiência em teatro<br />

amador e talvez pudesse dirigir o espetáculo, ou colaborar de outra<br />

forma. Requisitado com elogios e na frente de outros médicos,<br />

não conseguiu recusar. De tal sorte, que na semana seguinte<br />

já andava às voltas com cenário, figurino, e correções no texto<br />

que ia surgindo aos poucos, durante os ensaios. Seria uma criação<br />

coletiva, mas caberia a ele também a redação final. Euforia não<br />

seria a palavra adequada para definir seu estado de espírito naqueles<br />

dias; entusiasmo também significava mais do que sentia.<br />

No entanto, tantas eram as tarefas que ele parecia animado. Um<br />

estagiário, com o idealismo típico dos iniciantes, sugeriu fazerem<br />

sessões de psicodrama, para que os ensaios tivessem uma dupla<br />

utilidade. Dali a cinco anos, ele com certeza já saberá distinguir as<br />

teorias ouvidas em sala de aula de um pátio de hospício. No terceiro<br />

ensaio, uma coisa era evidente: os doidos não conseguiam<br />

repetir o texto e muitos nem se lembravam quais os personagens<br />

que interpretaram na véspera. Feita uma reunião só com a equipe<br />

122<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 23


médica, ficou estabelecido que não haveria texto fixo, os personagens<br />

seriam escolhidos minutos antes da apresentação, as roupas<br />

seriam postas à disposição dos atores, e o palco seria delimitado<br />

por cordões. Tais determinações foram ditas com clareza e repetidas<br />

vezes, mas em vão. Havia quem fizesse perguntas sobre o<br />

significado das palavras texto, cenário, figurino, contrarregra etc.<br />

Acontece que as famílias já tinham sido avisadas das festas<br />

e do teatrinho. Não seria conveniente, portanto, cancelá-lo.<br />

Para elas seria uma satisfação assistir ao parente em cena, pois<br />

a peça daria a falsa ideia de que estão se recuperando. Aplaudiriam<br />

de pé ao final e entregariam flores ou doces caseiros como<br />

recompensa pelo desempenho, além das palavras de elogio.<br />

Diante disto, não tinham muito tempo para acertarem como seria<br />

a representação.<br />

Um servente sugeriu que dessem vários uniformes brancos<br />

para os internos e que eles dramatizassem como se fossem<br />

médicos. Ora, como não tinham noção do que era teatro, a ideia<br />

era deixar que eles se motivassem a falar, a gesticular e a andar<br />

nos limites do espaço cênico, motivados apenas pela sugestão<br />

dos uniformes. Seria uma reação sensorial, acrescentou um<br />

estagiário. O diretor não viu a proposta com bons olhos. E se<br />

algum doido, não tão doido, faz alguma crítica embaraçosa só<br />

com a imitação dos médicos, mesmo sem palavras? Naquele<br />

momento, a festa estava marcada para dali a dez dias, ou seja, o<br />

prazo era bem pequeno para qualquer alteração.<br />

Três dias antes do natal, na data prevista, às 16h, lá estavam<br />

familiares e pacientes sentados em uma sala espaçosa, à<br />

espera da peça de teatro, que aconteceria antes da festinha de<br />

confraternização e da distribuição de presentes. Dez minutos<br />

depois levantaram o pano que servia para delimitar o que seria<br />

o palco, a uma distância da plateia, mais por precaução do que<br />

por razão cênica. Os doidos, como era de se prever, não diziam<br />

coisa com coisa, apenas se movimentavam de um lado para o<br />

outro, vestidos com as mais disparatadas roupas, apanhadas<br />

Capítulo 23<br />

Béicas <strong>Letras</strong> 123


ao acaso de baús cedidos por um grupo circense que se apresentava<br />

ali perto.<br />

O diretor estipulou meia hora no máximo de espetáculo,<br />

caso tudo se desse de modo satisfatório. O difícil seria julgar o que<br />

é satisfatório para um doido e/ou para um diretor de manicômio.<br />

Caso surgisse algum problema, a ordem era descer o pano e pôr<br />

a gravação de músicas de circo em volume bem alto. Aliás, este<br />

seria o final, de qualquer maneira, já que não havia uma peça coerente<br />

com final verdadeiro.<br />

Havia dois enfermeiros a postos, atentos ao sinal do diretor:<br />

um soltaria uma corda, outro acionaria o botão do aparelho<br />

de som. Estes, sim, eram os protagonistas daquela tarde. Na cabeça<br />

deles a dúvida. O que seria motivo para interromper a peça,<br />

afinal nada no palco fazia o menor sentido? Seria a impaciência<br />

ou desagrado da plateia? Mas, se eram todos parentes dos internos,<br />

tinham que mostrar educação e paciência. Que em breve teriam<br />

refrigerantes e sanduíches. E daqui a duas horas os portões<br />

seriam abertos e poderiam ir embora, com o sentimento de dever<br />

familiar cumprido e em paz com a consciência natalina.<br />

De repente, um doido vestido como um atirador de facas,<br />

se pôs no centro do palco e, para surpresa e temor dos médicos,<br />

tirou lentamente três facas e as arremessou com precisão,<br />

acertando homens de uniforme que caíram imediatamente. A<br />

plateia, que supunha ser tudo ensaiado, aplaudiu de pé o realismo<br />

da cena e o desempenho do paciente. Já a música animada<br />

de circo, a todo volume, impedia que escutassem os gritos de<br />

desespero do único médico sobrevivente.<br />

124<br />

Marcus Vinicius Quiroga<br />

Capítulo 23


Este livro foi impresso no papel offset, de gramatura 90. Texto corrido<br />

diagramado na fonte Calibri, formato regular, corpo 11, entrelinha 14. Título<br />

do livro e títulos dos capítulos diagramados na fonte Allura, formato regular,<br />

corpo 20, entrelinha 20. <strong>Livro</strong> impresso na gráfica Tesouro Laser.


ISBN 978-85-68881-01-9<br />

9 788568 881019

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