Livro Bélicas Letras
Trabalho realizado para a avaliação final da disciplina Projeto de Programação Visual: Design Editorial, do quatro período do curso de graduação em Design Gráfico da Universidade Estácio de Sá.
Trabalho realizado para a avaliação final da disciplina Projeto de Programação Visual: Design Editorial, do quatro período do curso de graduação em Design Gráfico da Universidade Estácio de Sá.
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Marcus Vinicius Quiroga<br />
LitBras
Marcus Vinicius Quiroga<br />
LitBras<br />
2018
Direitos<br />
C 2005 Marcus Vinicius Quiroga<br />
É proibida a reprodução e duplicação deste volume, no todo<br />
ou parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios<br />
(eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia, distribuição na WEB<br />
e outros)sem permissão expressa do autor.<br />
Ficha Técnica<br />
Editora: LitBras<br />
Revisão: Viviane Fernandes<br />
Projeto gráfico: Thamires de Oliveira Nogueira<br />
Diagramação: Thamires de Oliveira Nogueira<br />
Imagens retiradas da internet<br />
Ficha Catalográfica<br />
Catalogação-na-Publicação (CIP) - Brasil<br />
Q 84 b Quiroga, Marcus Vinicius<br />
<strong>Bélicas</strong> <strong>Letras</strong> / Marcus Vinicius Quiroga - Rio de Janeiro:<br />
LitBras, 2017.<br />
184 p. ; 21 cm.<br />
ISBN 978-85-68881-01-9<br />
1. Poesia Brasileira. I. Título.<br />
CDD: B869.8
9<br />
14<br />
18<br />
23<br />
27<br />
32<br />
37<br />
42<br />
49<br />
54<br />
58<br />
62<br />
67<br />
71<br />
75<br />
82<br />
87<br />
93<br />
100<br />
106<br />
112<br />
117<br />
121
Capítulo 1<br />
Sentiu, ainda na adolescência, a vocação para a literatura.<br />
Mas isto não era uma profissão, disse-lhe o pai, que não via com<br />
os olhos masculinos a opção pela poesia. A mãe, por sua vez,<br />
temia por sua qualidade de vida, expressão que repetia, entre<br />
suspiros e olhares de receio. Com o tempo, os pais tiveram êxito<br />
em parte: desviou-se da poesia e entregou-se à prosa, mesmo<br />
que sob as palavras de desestímulo e desaprovação familiar.<br />
Escrevia com frequência, porém sem método, narrativas<br />
curtas, que acumulava em pastas de forma desorganizada. Aos<br />
poucos, a pilha destas pastas pesava num canto da estante. É<br />
claro que nada mostrava e aos pais parecia que as horas gastas<br />
na escrivaninha se justificavam por ele ser um aluno dedicado,<br />
não um pretenso escritor. Escrevia em segredo, portanto, e não<br />
relia para melhorar o texto. Era matéria bruta que habitava seus
papéis. Jamais teve a ideia de que suas histórias poderiam ser<br />
melhoradas, seu personagens aprofundados ou, pelo menos,<br />
suas incorreções gramaticais corrigidas.<br />
Só quando já estava na universidade, por ocasião de<br />
um concurso exclusivo para estudantes, buscou um conto entre<br />
seus guardados e percebeu que era preciso reescrevê-lo,<br />
atualizá-lo, torná-lo mais atraente para a competição literária.<br />
Perdeu mais tempo do que supunha nesta tarefa e o prazo para<br />
a inscrição expirou. O conto ficaria para outra oportunidade,<br />
pensou consigo mesmo.<br />
Já formado e exercendo a carreira de advogado, um pouco<br />
a contragosto, lembrou que poderia retomar a literatura, como<br />
hobby, para compensar a leitura aborrecida do escritório e a redação<br />
burocrática de requerimentos e ações. Tirou o pó imaginários<br />
de seus textos e passou a reescrevê-los, quando se encontrava<br />
sozinho à noite em seu apartamento. Tornara-se agora um escritor<br />
com vagar e cuidado, demorando-se dias em só parágrafo,<br />
buscava a tal palavra exata, como lera uma vez em um ensaio crítico.<br />
Quanto à gramática, melhorava bastante e só um ou outro<br />
descuido acontecia. Afinal, o curso de Direito servira para algo: a<br />
aprendizagem da língua, talvez mais do que das leis.<br />
Uma vez, sem aparente razão, mostrou um conto a uma<br />
colega de escritório, que o incentivou a publicá-lo. Mas onde?<br />
Não sou da área, nem sei a quem me dirigir. Enviar para jornais<br />
e revistar e esperar respostas? Não, ela disse que gostou só por<br />
educação. Não é lá um texto digno de publicação. E para quê? Sou<br />
advogado e isto me basta.<br />
Desta forma, a história permaneceu quase inédita.<br />
Seja lá como for, casou-se mais tarde com sua única leitora<br />
e se mudou para um apartamento maior. Apesar da receptividade<br />
que teve na primeira vez, quase não mostrava seus rabiscos<br />
– era assim que designava suas obras – à mulher, que, com o<br />
tempo e a vida doméstica, foi se esquecendo de que seu marido<br />
era, além de advogado trabalhista, um contista amador. Até que<br />
10 Marcus Vinicius Quiroga Capítulo 1
um dia leu no jornal um anúncio de uma oficina literária e, para<br />
sua própria surpresa, matriculou-se na semana seguinte. Manteve,<br />
entretanto, segredo e disse em casa que entrara em um<br />
curso de Espanhol, língua que sempre o atraíra, só que se dedicara<br />
ao Inglês por motivos profissionais. Agora, sim, tinha tempo<br />
e poderia realizar seu sonho: ler Cortazar e Borges no original.<br />
Com um ano de oficina, decidira, com o incentivo do professor,<br />
pagar a publicação de um livro de contos. Fizeram juntos<br />
a seleção e até conseguiu um prefácio de um escritor renomado,<br />
graças a um pedido de seu professor. Quando a diagramação já<br />
estava sendo feita, mudou de ideia. Surgiram-lhe dúvidas quando<br />
à qualidade dos textos, não lhe pareceram suficientemente<br />
originais. Seria só um discípulo, um epígono? Ainda não tinha<br />
estilo próprio, argumentou com o professor, que perdia também<br />
naquele momento um aluno em sua oficina.<br />
Aos 40 anos, recebera no aniversário uma seleção de<br />
contos machadianos, e a ideia voltou como um pêndulo diante<br />
dele. Até que o movimento parou e o entusiasmo por publicar<br />
a primeira obra de uma carreira que agora iria se afirmar. Releu<br />
narrativas, fez anotações, correções, mudanças, preparou com<br />
zelo os originais e entregou a um pequeno editor. Quando a mulher<br />
percebeu a agitação, ele se viu forçado a confessar que iria<br />
finalmente iniciar sua história de escritor. Fizeram planos juntos:<br />
o lançamento, lista de convidados, o coquetel, notas em suplementos<br />
literários e até as variantes de autógrafos.<br />
Sorte que quanto os dois mil exemplares chegaram, ele<br />
já morava em uma casa, ampla, com vários quartos, e pôde,<br />
assim, guardá-los sem causar muito incômodo. Olhava diariamente<br />
aqueles pacotes de livros e não se animava a marcar a<br />
data do lançamento. Depois de três meses, a mulher se cansou<br />
da pergunta e nunca mais entrou no quarto em que os livros<br />
foram armazenados.<br />
Seu interesse pela leitura não diminuíra durante estes<br />
anos todos. Ainda que não tenha se tornado um escritor,<br />
Capítulo 1<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 11
permanecia um leitor cada vez mais voraz e seletivo. Lera os<br />
clássicos, os contemporâneos nacionais e, particularmente,<br />
os latino-americanos, além dos livros de teoria literária e de<br />
crítica passiva. Aprendera muito nestas quatro décadas, tornara-se<br />
um crítico severo e criterioso e fazia restrições fundamentadas<br />
a muitos autores de sucesso. A mulher fazia que<br />
sim com a cabeça para suas longas e frequentes explanações<br />
a respeito de como escrever um bom conto.<br />
Poucos meses após ter se aposentado, resolveu fazer obra<br />
em casa para se ocupar, dizia. Dali a um ano, tinha um cômodo<br />
para escritório e outro, bastante espaçoso para a biblioteca.<br />
Lá pôs em estantes de todo tipo um acervo que, nos seus 70<br />
anos, atingia os vinte mil volumes. Era lá também que seus netos<br />
sabiam encontrá-lo: cachimbo na boca, livro na mão e o ar<br />
quem falava sozinho. Nas gavetas de seu escritório os textos críticos,<br />
os pequenos ensaios e comentários sobre os lançamentos<br />
semanais ocupavam o lugar dos antigos contos. Mostrava<br />
alguns destes estudos na roda de escritores da terceira idade<br />
da qual participava num clube do bairro, mas a maioria habitava<br />
silenciosamente as gavetas e prateleiras.<br />
Com a morte da mulher, coube-lhe como ocupação organizar<br />
o material escrito durante toda a sua vida. Ao fim de meses,<br />
deparou-se com vinte volumes de contos, exaustivamente reescritos<br />
por décadas de criação e estudos literários, que somavam<br />
2348 páginas de excelente ficção, sejamos justos. Por que não<br />
publicá-los todos de uma vez? Seria o único autor a ter as obras<br />
completas inéditas editadas ao mesmo tempo. Como estratégia<br />
de marketing não era má ideia.<br />
Em pouco tempo, conseguiu um editor, que, além de<br />
gostar da parte do material lido, animou-se com o fato de que<br />
o autor financiaria dois mil exemplares das obras completas<br />
em três volumes. Mas estes, por exigência do escritor, teriam<br />
que ser lançados no mesmo dia. Os netos se encarregariam do<br />
coquetel, dos convites, da divulgação na imprensa e o levariam<br />
12 Marcus Vinicius Quiroga Capítulo 1
à livraria. Assinaria apenas o nome na primeira página dos livros<br />
para não se cansar com autógrafos.<br />
Com a perspectiva de uma prestação de serviço bem rentável,<br />
o editor aprontou os livros no prazo recorde de 4 meses e<br />
fez questão de levar pessoalmente um pacote com 50 exemplares<br />
para a casa do autor. Este esqueceu-se até da viuvez e, feliz,<br />
levou os livros para a biblioteca, depois da saída do editor. Colocou-os<br />
na estante do fundo e parou admirando a prateleira só<br />
com seus livros. Seu nome na lombada fazia com que se sentisse<br />
pela primeira vez um escritor de fato.<br />
Encantado com a sensação, não percebeu que a lenta e<br />
contínua ação dos cupins fez com que as estantes apodrecessem<br />
e caíssem feito um baralho de cartas sobre ele. Tentou ainda<br />
apanhar um de seus livros. Mas não conseguiu, o gesto parou<br />
no ar e o peso de milhares de outros livros o impediu. A vista<br />
exausta não reparou na infiltração que surgira há dois anos, nem<br />
nos cupins que vieram como consequência.<br />
Na manhã seguinte um neto, como o avô não atendia o<br />
telefone, nem a campainha da casa, arrombou algumas portas<br />
até avistar as estantes roídas e vinte e três mil livros espalhados<br />
no chão. O corpo do avô, este jamais foi encontrado.<br />
Capítulo 1<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 13
Capítulo 2<br />
O filósofo dedica 10 minutos ao planejamento diário<br />
de suas especulações e as anota em sua agenda. Respeita o<br />
acordo feito consigo mesmo: caso alguma ideia surja durante o<br />
expediente que não tenha sido previamente agendada será posta<br />
de lado, isto é, anotada para as especulações do dia seguinte.<br />
Ele dá sempre prioridade a pensar sobre o que foi destinado<br />
para aquele dia. Obedece ao cronograma cartesianamente.<br />
Ao fim do dia, sempre avalia o tempo gasto nas tarefas, para<br />
verificar se não houve desperdício ou mau uso do tempo, de forma<br />
a mudar sua conduta e aproveitar melhor o passar do tempo com<br />
suas tarefas filosóficas. Sabe que o exercício da razão é fundamental,<br />
especialmente sua utilização para refletir sobre ela mesma.<br />
Na agenda matinal das tarefas inclui-se a hora destinada<br />
a avaliação do tempo gasto nas demais tarefas. São dados va-
liosos para o replanejamento diário e contínuo. Com a prática,<br />
o filósofo passa a fazer as mesmas reflexões em menos tempo<br />
ou, em alguns casos, prefere abandonar determinada linha de<br />
raciocínio por ela demandar um tempo extra, não conveniente<br />
para o desempenho especulativo cotidiano.<br />
Sim, é preciso fazer escolhas. Aliás, há pensadores que<br />
fazem deste capítulo – o das escolhas permanentes – o alvo de<br />
suas obras. Tais autores devem ser lidos com atenção, mas deve-se<br />
também evitar a influência de sua linguagem e de suas<br />
preferências temáticas. Bergson sabe que deve se ater à questão<br />
do tempo, pois esta é a encomenda de seu editor e ele não<br />
tem muito tempo extra para divagações. A entrega da obra fora<br />
do prazo pode lhe acarretar multa contratual, dor de cabeça e<br />
aborrecimentos com o editor. Por exemplo, nesta estação seria<br />
mais aconselhável ele cancelar o curso de ginástica, enquanto<br />
não terminar os capítulos programados. Os exercícios físicos podem<br />
esperar, já a palavra dada, não.<br />
Quanto a reuniões e entrevistas particulares, muitas vezes<br />
solicitadas por seus discípulos, há uma pasta em seu gabinete à<br />
disposição de qualquer um, para agendamento. Deste modo, o<br />
pupilo, o fã ou o repórter poderá marcar uma hora sem ter que<br />
entrar em contato com sua secretária ou com ele mesmo, o que<br />
lhe acarreta mais uns minutos úteis para a auto inquirição.<br />
Desde que aprendeu a respeitar seu ritmo, ele prefere fazer<br />
a maior parte das tarefas pela manhã, pois se encontra mais<br />
disposto e com melhor humor. Com o passar das horas, cansa-<br />
-se com suas ideias múltiplas, e não raras vezes contraditórias,<br />
sobre o objeto em estudo. No íntimo, pergunta-se como os leitores<br />
têm paciência para a leitura de seus textos, uma vez que<br />
reconhece ser dado a digressões com acentuada frequência.<br />
Não gosta de telefonar para outros filósofos à noite,<br />
pois, sendo eles estrangeiros, pensam em fuso horário diferente.<br />
Isto o incomoda, a ponto de preferir mudar algumas noções<br />
de sua filosofia a ter que permanecer acordado até muito<br />
Capítulo 2<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 15
tarde, para dialogar com pensadores afins, mas que moram em<br />
países muito distantes. Daí ter surgido certa teoria feita de que<br />
cidadãos que vivem em fusos horários diversos não serem propensos<br />
ao diálogo, já que as palavras proferidas encontram-se<br />
em tempos diferentes, o que, racionalmente, anula a ideia de<br />
simultaneidade desejada em um diálogo. Ainda que tal teoria<br />
esteja por ora na categoria de suposição já lhe rendeu fama e<br />
a expulsão do círculo filosófico oriental.<br />
Argumenta a seu favor que as reuniões às quais vai acontecem<br />
sempre na mesma hora para todos os participantes, o<br />
que pode ser verificado pelo mesmo índice de tédio e de epistemologia<br />
apresentado ao final das reuniões. Há tempos só<br />
coordena reuniões de no máximo meia hora, com pauta pré-fixada,<br />
sem intervalo e sem café. Quando por alguma razão, não<br />
pode dirigir tais encontros, envia um ator com a sua máscara e<br />
com a recomendação de que permaneça em silêncio o tempo<br />
todo, com um olhar de profunda meditação para inibir qualquer<br />
pergunta inoportuna.<br />
Quanto à correspondência, o filosofo sabe que a maior<br />
parte é mesmo de credores e de tarifas e tributos do Estado,<br />
portanto deixa que se acumulem na pasta de entrada. Esta tarefa<br />
é delegada à secretária e evita a perda de apetite. Claro, a<br />
boa alimentação é recomendada para quem tem que lidar com<br />
tantos axiomas e premissas por dia.<br />
Um mestre disse-lhe para criar uma hierarquia antes de<br />
se entregar às atividades de especulação pura. Deveria atribuir-<br />
-lhes uma nota em função da urgência com que teriam que ser<br />
abordadas. Há soluções que podem esperar mais do que outras<br />
para virem à luz e há muitas que jamais virão, pois nós, filósofos,<br />
não temos a menor ideia de como encontrá-las. Não se deve<br />
também registrar urgência em mais de duas delas ou algo vai<br />
mal com o método utilizado para questionar o universo. Aconselhou-o<br />
ainda este mestre a que ele aprendesse a dizer não,<br />
mas que procurasse achar o equilíbrio para não ser julgado um<br />
16<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 2
filósofo pessimista ou sombrio, o que faz com que os pedidos de<br />
suas obras por parte das livrarias caia vertiginosamente.<br />
Bergson acredita que sua filosofia se encaminha para surpresas<br />
e formulações inéditas, depois que, em seu último aniversário,<br />
sua mulher presenteou-lhe com um relógio de bolso.<br />
Capítulo 2<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 17
Capítulo 3<br />
Marcada a data da inauguração do labirinto, disse a secretária<br />
para o assessor do secretário de arquitetura do município.<br />
Avise aos superiores sobre a temperatura prevista para<br />
o dia e as roupas recomendáveis para tal ocasião, de acordo<br />
com o parecer pertinente do código de vestimentas para solenidades<br />
e festas relativas a abismos, aquedutos, passagens<br />
subterrâneas e labirintos.<br />
O assessor faz a anotação em estilo burocrático em sua<br />
agenda de serviço e em estilo sintético na agenda pessoal. Levava<br />
uma vida dupla, como observamos. Ainda naquela manhã,<br />
o secretário seria avisado por memorando e bilhete manuscrito<br />
por peculiar caligrafia. O assessor tinha a vaidade de ser reconhecido<br />
pela letra, embora esta não fosse exemplar, apenas era<br />
inconfundível. Ora, toda vez que alguém no ministério lia um de
seus muitos bilhetes, sabia quem ser o autor e se lembraria de<br />
sua eficiência e, mais, de sua onipresença.<br />
Discreto em seus escritos, não dava a perceber a intenção<br />
de esperar o reconhecimento. Não usava um artigo a mais do<br />
que o preciso. Aliás, adorava ser visto como discreto, ainda que<br />
presente em todas as situações de serviço, desde as festinhas de<br />
aniversário nas diversas repartições como as de mais relevância,<br />
como era o caso da inauguração de um labirinto.<br />
Sua secretária já providenciara o regimento protocolar para<br />
o evento e já avisara ao chefe de cerimonial que cuidasse dos preparativos.<br />
Não teriam muito tempo, só uns dez dias. Isto significa<br />
que não haveria material impresso alusivo à data, só divulgação<br />
pela mídia. Mais tarde, sugeriram, fariam um selo comemorativo<br />
do labirinto. Um funcionário, primo de deputado, lembrou que<br />
poderiam instituir o dia do labirinto e que seu parente levaria de<br />
bom grado a ideia para a aprovação na câmara.<br />
Um gerente, categoria 3, de outro ministério, que tinha veleidades<br />
literárias, enviou um e-mail para o assessor, elogiando<br />
seus bilhetes e dizendo serem dignos de publicação pela gráfica<br />
oficial, uma vez que revelavam um estilo jornalístico contemporâneo<br />
de inegáveis méritos. O assessor surpreendeu-se com as<br />
palavras do colega, principalmente por não saber de quem se<br />
tratava. E, na dúvida, entregou-se a pensamentos a respeito do<br />
título fantasia para uma eventual publicação dos bilhetes, agora<br />
já vistos como material fictício.<br />
A expressão “inegáveis méritos” é que o preocupava. Era-lhe<br />
favorável, admitia, mas pecava pela falta de objetividade. Qualquer<br />
um, quando se aposenta, recebe uma placa e um discurso que fazem<br />
referência aos inegáveis méritos de sua atuação profissional.<br />
Todos os aposentados se parecem ou todos os discursos. O certo é<br />
que não queria ser tido como idêntico aos outros funcionários. Daí<br />
os bilhetes, a quantidade e o envio oportuno. Almejava ser objeto<br />
de comentários pelo maior número de salas do serviço público da<br />
capital. Caso a ideia se tornasse papel impresso, faria uma alusão<br />
Capítulo 3<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 19
ao tal gerente, categoria 3, em agradecimento à sugestão dada,<br />
mas jamais o convidaria para prefaciador.<br />
Em casa, a mulher perguntou-lhe se o livro não poderia<br />
ser editado sem prefácio, evitando, assim, o risco de expressões<br />
vagas e lugares-comuns desagradáveis. O assessor gostou<br />
do cuidado da mulher e percebeu que, sem prefácio, pareceria<br />
mais discreto ainda. Tomou uma resolução, portanto: o livro seria<br />
sem prefácio, sem orelha, sem quarta capa. E até sem dados<br />
biográficos. Discretíssimo.<br />
O marido de sua secretária, durante a janta, lamentou a<br />
ausência dos dados biográficos, pois esta página é sempre uma<br />
oportunidade para divulgar o autor, com fotografia e palavras.<br />
Quem sabe se ele fizesse uma exceção e pusesse três frases e uma<br />
pequena foto, com fisionomia séria e terno cinza, mas uma foto.<br />
Surgiu, assim, a dúvida na cabeça do assessor: a tentação<br />
em ser identificado para o leitor ou a opção pelo reconhecimento<br />
de sua discrição. E se ela não fosse reconhecida? Se o leitor<br />
pensasse que a falta de dados biográficos representasse o fato<br />
de o autor não ter currículo ou histórico? E se achassem que ele<br />
não passa de um iniciante, um neófito? Ser um neófito é pior do<br />
que ter “inegáveis méritos”, até porque muitos desconhecem o<br />
significado deste vocábulo.<br />
Um irmão mais velho trouxe-lhe outra questão. O conjunto<br />
de bilhetes escritos em circunstâncias profissionais, com<br />
finalidades específicas e de caráter exclusivamente pragmático<br />
seria julgado literatura? E, em caso afirmativo, de que gênero?<br />
Ora, ele jamais se pretendeu um autor de ficção, seu propósito<br />
seria o de ter sua obra distribuída pelas repartições públicas,<br />
manuseadas por funcionários e técnicos de carreira, ter seu<br />
nome gravado em alguma da memória de seus pares. Nada de<br />
autógrafos, entrevistas, holofotes. Isto entraria em confronto direto<br />
com sua discrição.<br />
Agora a tarefa seria pesquisar nas pastas as cópias destes<br />
bilhetes e os arquivos no computador, fazer uma seleção, estabe-<br />
20<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 3
lecer a cronologia, dividi-los talvez por temas, numerá-los, catalogá-los<br />
e preparar o material definitivo para a edição. Mas todo<br />
este serviço deveria ser feito fora dos olhares dos colegas e, de<br />
preferência, fora do horário do expediente. A edição deveria ser<br />
uma surpresa para todos. Aliás, teria que ser tratada como segredo<br />
militar, como se houvesse o risco de espionagem e de traição.<br />
Acontece que a excitação em realizar o livro e publicá-lo o<br />
modificou, as horas a menos de sono trouxeram-lhe olheiras, e<br />
o descaso com as refeições o emagreciam. Logo o secretário de<br />
arquitetura do município observou tais mudanças e indagou-lhe<br />
as causas. Ele, que não reparara nas próprias mudanças nem<br />
esperava pelas perguntas, respondeu de forma pouco convincente<br />
que não era nada, que sua vida era a mesma, que os serviços<br />
continuavam sendo feitos normalmente, com empenho e<br />
presteza. Não queria, como era de hábito, ser motivo de preocupação<br />
para seu superior. Desculpou-se sem jeito e em seguida<br />
retirou-se da sala.<br />
Uma cunhada, ainda estudante de Psicologia, lembrou-lhe<br />
a hipótese de que alguém poderia concluir que todos os bilhetes<br />
escritos ao longo de anos teriam um só motivo: a publicação de<br />
um livro pela gráfica oficial, ou seja, com o dinheiro público, e que<br />
a utilidade administrativa seria vista como secundária. Tal comentário<br />
não só provocaria um gradual afastamento do convívio com<br />
esta jovem, como tirou-lhe de imediato outras horas de sono, prejudicando-lhe<br />
ainda mais a aparência.<br />
Com o tempo, outras inquietações foram surgindo na forma<br />
de dúvidas, hipóteses, comentários, observações, perguntas.<br />
E, por mais que ele tentasse manter o controle, não era mais<br />
o mesmo. Seus colegas e superiores percebiam uma alteração<br />
na conduta, mas não sabiam precisar de que natureza e ordem<br />
ela era. Seria uma pré-mudança, a véspera de uma mudança<br />
mais decisiva. Mas em qual direção? Entreolhavam-se diante<br />
dele e nada diziam, afinal ele merecia a confiança de todos, não<br />
tinham motivos para suspeitas. De qualquer maneira, eram unâ-<br />
Capítulo 3<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 21
nimes em achar que o assessor se tornara outra pessoa, ainda<br />
que não perdera o costume dos bilhetes. Só um funcionário de<br />
autarquia diversa percebeu que os bilhetes estavam mais lacônicos,<br />
como se fossem mais burilados para fazerem uso de menos<br />
palavras. Se fosse mais atento, perceberia que o assessor de uns<br />
tempos para cá optava sempre por um sinônimo de menos sílabas,<br />
quando o encontrava.<br />
Em alguns momentos, a distração vencia a queda de braço<br />
e em um destes ele não notou que a secretária havia posto<br />
em sua pasta de assuntos urgentes um texto sobre a inauguração<br />
do labirinto, com uma foto. Nela era visível a inadequação<br />
das roupas usadas pelas autoridades, observada a elevada<br />
temperatura do dia. O suor das fisionomias e a expressão de<br />
desagrado eram evidentes. Só o chefe do cerimonial com roupas<br />
leves destoava. É claro que, em consequência, teve que<br />
responder a um inquérito, inquérito este que finalmente chamou<br />
a atenção do assessor, quando ele escreveu um bilhete<br />
em estilo profissional recomendando a demissão sumária daquele<br />
funcionário negligente.<br />
22<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 3
Capítulo 4<br />
Procurara o analista por recomendação, como quase todo<br />
mundo. Não há quem abra os classificados ou as páginas amarelas<br />
e anote o número de um terapeuta ou analista e marque uma<br />
consulta. Aliás não sei por que eles anunciam em tais lugares. Até<br />
porque se eu fosse um analista, acharia muito estranho alguém ir<br />
bater a minha porta por causa de um anúncio deste tipo. Olharia<br />
para o analisando com suspeita. Como seria um sujeito que apanha<br />
um papelzinho na saída do metrô oferecendo análises rápidas<br />
em três meses, com satisfação garantida? Nem cartomante.<br />
A qualquer hora você pode iniciar uma análise, mas as estatísticas<br />
assinalam o fato óbvio: 90% procuram a análise na hora<br />
da dificuldade aguda. Eu não era uma exceção. Há uns meses<br />
tive a primeira sensação de estranhamento, parecia que não cabia<br />
direito no corpo. Se fosse espírita, pensaria em viagem para
além da matéria e teria recuperado o sono no dia seguinte, sem<br />
inquietações. Acontece que sou um indivíduo racional e pouco<br />
dado a leituras esotéricas da vida. Daí a dificuldade de conversar<br />
com alguém sobre este assunto: não era só receio de me julgarem<br />
desequilibrado, era também o de ser aceito. Aceito, desde que<br />
claramente acreditasse em outras vidas, espíritos à solta, desmaterialização<br />
etc. Não, eu sou um engenheiro. Lá sobre a minha<br />
mesa há uma régua de cálculo, há o universo dos números, sua<br />
lógica e correspondência.<br />
O fato é que eu sentia mesmo a tal desmaterialização:<br />
as ideias saiam do corpo e se sentiam incomodadas, como se<br />
a matéria fosse sem significância. Com o tempo, fui emagrecendo<br />
a olhos vistos, já que me alimentava pouco. Não tinha<br />
apetite, não tinha cuidado com aquele corpo do qual com frequência<br />
me distanciava. Esta era a palavra. Na primeira consulta<br />
percebi isto, quando relatava minhas sensações para o<br />
analista. Distanciamento. Esta era a palavra. Melhor que desmaterialização.<br />
Lembrei-me da teoria do distanciamento usada<br />
por um dramaturgo alemão. Talvez quisesse também criar<br />
uma boa impressão no analista. Fazia citações. Mostrava que<br />
era um engenheiro, mas não um técnico. Apreciava a dramaturgia<br />
e tinha até algumas noções de teoria, além de leituras e<br />
idas com regularidade ao teatro.<br />
Senti que o analista gostou da palavra: distanciamento.<br />
Eles sempre gostam quando encontram pacientes menos tediosos,<br />
diferentes dos que vão lá como se fossem a um confessionário<br />
e querem apenas desabafar. Depois não sabem por que se<br />
sentem infelizes. Um paciente que é capaz de discutir teoria do<br />
teatro alemão e paga em dia não é mal. De qualquer forma, ele<br />
olhou por cima dos óculos e nada disse. Era a minha primeira<br />
consulta, logo o tempo seria pequeno para eu explicar o porquê<br />
de estar ali, enumerar as causas e os objetivos que me levaram a<br />
seu consultório. Na prática eles esperam que se digam as causas<br />
e não perguntam pelos objetivos. Não querem criar expectati-<br />
24<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 4
vas no paciente. Nada é mais constrangedor do que frases como<br />
“Dr., em quanto tempo o senhor acha que estarei bom?”<br />
Na ocasião eu tive medo, medo de não retornar ao corpo,<br />
medo de cair na indiferença, de isolar-me em depressão, Era<br />
uma fase pouco sensorial: odores, sons, gostos não me atraíam.<br />
Tornava-se puro espírito ou intelecto. Habitava só pensamento.<br />
Pensava, não meditava, como supunham alguns familiares<br />
que me viam horas ensimesmado. Sim, era preferível julgar que<br />
eu estava fazendo ioga ou qualquer prática oriental a me terem<br />
como doido, ou, pelo menos, esquisito.<br />
Certa vez, logo que entrei no consultório, reparei um<br />
exemplar de obras escolhidas de Edgar Alan Poe e passei a sessão<br />
inteira conversando sobre seus contos e poemas. Quando<br />
percebi que só sobravam dez minutos, desisti de mudar de assunto<br />
e pedi a sua opinião sobre o escritor. Nesta ocasião ele falou<br />
sem parar como um crítico literário e não um analista. Quando<br />
terminou os comentários, lembrei-lhe que os dois, o analista<br />
e o crítico, têm em comum não só a análise de pessoas e textos,<br />
mas a tendência a enxergar fantasmas. Nenhum dos dois pode<br />
optar pelo silêncio em suas funções, logo se veem constrangidos<br />
a interpretar o que há e o que não há. Não creio que ele tenha<br />
apreciado a minha observação, pois nas sessões seguintes voltou<br />
a interferir pouco durante o meu discurso.<br />
Com o tempo, fui recuperando a sensação de me sentir<br />
dentro do meu corpo. Não sei a que atribuir o fato, se a análise<br />
ou se a outra causa. O sentimento de estrangeiro que aparece<br />
em tantas obras não era mais uma questão literária, era existencial.<br />
Mais ainda: era físico. Não gostaria de repetir a experiência,<br />
embora não me agrade usar esta palavra, pois esta sensação<br />
não foi intencional. Não sei explicar. Parece que o cotidiano me<br />
trouxe de volta ao cotidiano e aos poucos me vi tendo pensamentos<br />
e gestos banais de novo. Os questionamentos foram<br />
dando lugar a discussões sobre as mudanças de clima ou a estreia<br />
de um filme.<br />
Capítulo 4<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 25
Em nenhum momento o doutor dissera que eu era incoerente<br />
ou fantasioso. Sempre pareceu acreditar em minhas<br />
palavras e não por conveniência profissional. Tratou do tema<br />
como trataria de uma fobia qualquer, de uma fixação. Não duvidara<br />
de mim. Por convicção e não por estratégia. Chegara<br />
uma vez até a pedir mais detalhes da desmaterialização que eu<br />
sentia, como se temesse que o mesmo pudesse acontecer um<br />
dia com ele. E tomara notas demoradamente, como não era de<br />
seu costume.<br />
Ora, outros assuntos então iam surgindo nas sessões.<br />
Questões afetivas, profissionais, familiares...Era como se estivesse<br />
iniciando outra análise, agora que meu pensamento já<br />
começava a coincidir com meu corpo, eu não me sentia mais<br />
distanciado. Quem sabe agora eu entenderia racionalmente o<br />
que me acontecera. Não faltava às sessões, mas ia sem a ansiedade<br />
de antes, sem desespero.<br />
Este seria meu décimo mês de tratamento. Mas ontem<br />
quando entrei no prédio, como faço duas vezes por semana, o<br />
porteiro me perguntou para onde eu ia. Expliquei-lhe que para<br />
o consultório do 803. Então ele disse que não seria possível, pois<br />
há mais de um ano o doutor parara de dar consultas e a porta do<br />
consultório nunca mais fora aberta. Só restavam a plaqueta e o<br />
nome ali no quadro de aviso da portaria.<br />
26<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 4
Capítulo 5<br />
As mulheres ainda falam de paixão como palavra mágica.<br />
Como se ignorassem a história, usam as mesmas palavras<br />
do século XIX e se sentem justificadas. Se o aluguel não foi<br />
pago, é porque acabou a paixão. Não, não se trata de má-<br />
-fé, muitas acreditam nisto, apesar de parecer inverossímil. O<br />
caso é que há três meses o aluguel do apartamento de dois<br />
quartos em Todos os Santos, subúrbio da Central, ainda não<br />
fora pago. Primeiro, foram os telefonemas da administradora,<br />
depois do proprietário mesmo e, por fim, uma carta assinada<br />
por um advogado. Uma técnica de intimidação como<br />
qualquer outra. O dono do imóvel está no direito dele. Um<br />
capitalista sujo não adquire um imóvel de dois quartos num<br />
lugar como este, para ter uma renda mensal, provavelmente<br />
para compensar as perdas da aposentadoria.
Seja lá como for, a mulher não queria ouvir. Só olhava com<br />
olhos de acusação. Como você deixou as coisas chegarem neste<br />
ponto? Se nos despejarem, vamos para onde? Tem que gastar<br />
menos dinheiro com cerveja e cigarro. E se já tivéssemos uma<br />
criança? Por que não procura o seu pai e pede o dinheiro de dois<br />
meses? Se pagarmos uma parte, o senhorio se acalma. Então<br />
você terá mais tempo para conseguir o dinheiro todo.<br />
Barreto era um romântico. Escrevia para pequenos jornais<br />
e vivia do pagamento de seus textos, normalmente crônicas<br />
sobre o cotidiano da cidade. Não tinha emprego fixo, como a<br />
mulher tanto queria. E há três meses não recebia do jornal que<br />
mais pedia suas colaborações.<br />
Os outros eram jornais alternativos, que mal pagavam a<br />
passagem e a refeição do dia. Escrevia mais por amor ao jornalismo<br />
e as letras. Isso lá era vida? Por que não pedia a um político<br />
uma colocação no serviço público? Será que não precisam de alguém<br />
que saiba escrever como ele em alguma repartição dessas?<br />
A mulher tinha pouca instrução e não trabalhava. Com<br />
o ensino médio apenas, só conseguira vaga de balconista, mas<br />
não gostava de lidar com o público. Preferiu se acomodar em<br />
casa e fazer uns artesanatos para uma prima vender na feira.<br />
Mas suas obras não só eram baratas, como ela também não era<br />
a artesã tão boa quanto se dizia ser. O fato é que a renda do casal<br />
era baixa e agora era insuficiente para as despesas mensais.<br />
Ser tratado pelo sobrenome é coisa de empresário ou militar.<br />
Pobre normalmente é tratado pelo primeiro nome e por<br />
um só. Barreto não gostava de ser Barreto, mas era chamado<br />
assim desde a quinta série, quando um professor de Português<br />
percebeu a sua semelhança física com um escritor homônimo. A<br />
semelhança não foi um acaso, foi uma maldição. Ele acabou se<br />
interessando pela literatura e, mais particularmente, pelo jornalismo.<br />
Gostava de escrever, mas sem estilo acadêmico, sem muitas<br />
intenções “literárias”. Queria a palavra a serviço de alguma<br />
causa, embora não fosse filiado a nenhum partido político, nem<br />
28<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 5
tivesse pretensões. Motivavam-no mais as causas sociais do que<br />
as políticas. Parecia estranho, no entanto, até se poderia dizer<br />
que ele era um cético, quando a matéria era política.<br />
O sobrenome não ajudou. Não se tornou militar, doutor,<br />
empresário, nem dono de coisa alguma. Como jornalista freelancer,<br />
jamais tivera estabilidade nem renda satisfatória. Morava ali<br />
em Todos os Santos há 20 anos. Acostumara-se com o bairro, os<br />
aluguéis eram menores e o comércio, mais barato. O único problema<br />
era o trem. Aliás, ele tinha fixação por este tema: via no<br />
trem o símbolo dos que moravam no subúrbio. Diferente do que<br />
acontece em outras metrópoles, só pobre viaja de trem no Rio de<br />
Janeiro. Nem classe média. E rico só viaja de trem na Europa por<br />
curiosidade, para tirar foto e mostrar depois o fato excêntrico.<br />
Frequentava uma biblioteca municipal perto de casa, cujo<br />
acervo pequeno e disperso oferecia-lhe a oportunidade de ler no<br />
máximo duas obras do mesmo autor. Logo lia autores de épocas<br />
e nacionalidades diferentes, sem nenhum método. Não tinha, assim,<br />
escritores preferidos.<br />
Gostava evidentemente do estilo jornalístico da literatura.<br />
Linguagem enxuta, direta. Nada de preciosismos ou modismos europeus.<br />
Usava a mulher como parâmetro: quando ela não entendia<br />
seu texto, ele não o publicava. Queria ser claro, lido por todos. Portanto,<br />
jamais ousou a poesia, gênero em que tinha pouca leitura.<br />
Há seis meses publicava artigos em um jornal de bairro com<br />
circulação restrita ao subúrbio da Central defendendo a aprovação<br />
de uma lei que obrigasse qualquer empresa com mais de 100 funcionários<br />
a ter uma sala de leitura e uma pequena biblioteca com<br />
sistema de empréstimo. Queria também que na hora de atender<br />
a um pedido do funcionário ou até mesmo em caso de promoção,<br />
que o patrão olhasse a ficha na biblioteca: se ele tivesse levado<br />
emprestado mais livros, seria melhor atendido. Era um visionário.<br />
Muito patrão tem medo de funcionário inteligente. Funcionário é<br />
para ser obediente e produtivo. As leituras muitas vezes fazem mal.<br />
Vocês não se lembram da história daquele leitor quixotesco?<br />
Capítulo 5<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 29
Sua mulher acha que é perda de tempo. Que se quer uma<br />
causa, escolha ao menos algo que seja palpável e não leituras. Diz<br />
que ele não entende o mercado, que faz um produto para o qual<br />
não há cliente. Que esta história de se dedicar a defender a popularização<br />
da leitura é coisa de doido. Que ele deste jeito ainda<br />
acaba num sanatório. Escreva sobre o barateamento de remédios<br />
e sua distribuição e seus artigos terão mais repercussão.<br />
Barreto de fato não tem espírito pragmático, nem entende<br />
que problemas com aluguel, condomínio ou cartão de crédito signifiquem<br />
que ele não gosta mais dela. Se não era esta a vida que<br />
ela esperava, a culpa não é sua. Será que não vê que a política<br />
econômica do governo é que tem levado o cidadão ao endividamento?<br />
Mas não é de seu estilo jornalístico abordar a influência<br />
das medidas econômicas nos problemas conjugais. Que outro escreva<br />
sobre este tema.<br />
Em toda reunião na associação de bairro pedia a palavra<br />
para expor suas ideias. Seu discurso era objetivo, nada panfletário.<br />
Dava a impressão de ser a voz de um técnico. Mostrava dados,<br />
argumentava com fatos, sem adjetivos, sem grandiloquência.<br />
Queria a biblioteca pública funcionando todo dia até mais tarde<br />
e durante o fim de semana. Sugeria ainda uma biblioteca móvel,<br />
que fosse de rua em rua, oferecendo livros a leitores mais preguiçosos.<br />
Suas ideias eram muitas e todas coerentes, mas esbarravam<br />
na falta de vontade dos políticos e dos eleitores. Os ouvintes<br />
aplaudiam sempre o seu discurso e só. Não conseguia a mobilização<br />
necessária para pôr seus planos em funcionamento. Nestas<br />
reuniões e depois delas é que bebia. Não sei se bebia para falar<br />
com mais entusiasmo ou se já era o entusiasmo que o levava à<br />
bebida. O certo é que, pouco a pouco, foi bebendo mais e mais.<br />
Algumas vezes embriagara-se mesmo.<br />
Curiosamente não recorria ao álcool para se esquecer das<br />
dificuldades, do aluguel e das outras dívidas. Só bebia quando<br />
discursava. E ultimamente aproveitava toda oportunidade para<br />
divulgar suas ideias que eram uma só: o livro. Variava o subte-<br />
30<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 5
ma, que podia ser a divulgação, a distribuição, o barateamento,<br />
a publicação de livros. Sua figura discreta não fazia dele um doido<br />
aceito pelo bairro ou um messias fora de hora. Não. Até que<br />
era respeitado na vizinhança. Um idealista, diziam os mais velhos;<br />
um obcecado, pensavam os jovens. De qualquer forma, gostavam<br />
dele e lamentaram, quando souberam de sua morte repentina.<br />
Fora encontrado perto da linha do trem. E não estava bêbado,<br />
como supunha a mulher. Parece que foi coração. O corpo<br />
caído de bruços, o rosto de lado, olhando o muro da estação.<br />
Trem era a sua imagem preferida para explicar a vida no subúrbio.<br />
Num dos bolsos da calça havia um papel saindo, era o texto<br />
de uma crônica intitulada Bagatelas. Um vizinho que passava e<br />
puxou o papel por curiosidade, teve a confirmação de que Barreto<br />
era um romântico. As mulheres ainda falam de paixão como<br />
palavra mágica.<br />
Capítulo 5<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 31
Capítulo 6<br />
I<br />
21 h - Estavam no Maçã Dourada já na quarta cerveja.<br />
Ao fundo, a música calma de uma rádio. Da mesa podiam ver<br />
a praça do Largo das Neves: só um cão deitado e ao longe uma<br />
fatia de lua. Vozes vinham da calçada e do bar Goyabeira ao<br />
lado. Ele mexia no cabelo de Marcela, cujo olhar girava pelo<br />
pequeno bar, como se para conferir se nada mudara: as mesas<br />
antigas com tampo de mármore, os cartazes na parede, a escadinha<br />
para o mezanino. Santa Teresa cabia numa metonímia.<br />
8 h - Sentados num banco em frente à igrejinha, as frases<br />
saíam como se quisessem dizer outra coisa. Ela lhe mostrou o<br />
arranhão de um gato na perna esquerda e passou a discorrer<br />
sobre as motivações felinas para agredir o dono. Ele tocou no
arranhão e esqueceu-se acariciando a perna. Ela era alta, morena,<br />
cabelos encaracolados e tinha as coxas fartas. O tempo<br />
passava lentamente e se sentiam numa pracinha de cidade do<br />
interior. Um sobrado em frente estava vazio. E se alugasse um<br />
apartamento aqui? Seria só descer para o bar, a praça, a festa, a<br />
noite. Depois, quando já estivesse bêbada, fazer como os gatos<br />
daquela casa que retornam por uma portinhola. A vida podia<br />
ser simples.<br />
1:40 h - O Goyabeira fechava as portas e a praça se esvaziava.<br />
Só outro casal sentado no meio-fio. Teriam uns vinte, vinte<br />
e dois anos. E olhavam para a rua de paralelepípedos e trilhos<br />
como se para uma estrada capaz de levá-los para todos os lugares<br />
e amanhãs. Ainda não tinham pesos. Recordações de Mauá,<br />
Ouro Preto, Paraty convergiam para a ladeira da Paula Mattos.<br />
Qualquer esquina era mundo.<br />
1.53 - Subiram pela rua Oriente de mãos dadas e rindo.<br />
Desejavam-se.<br />
II<br />
16 h - Encontraram-se no Museu Castro Maya. Primeiro dia<br />
de uma exposição sobre a história da Lapa, antes de terem destruído<br />
seu quarteirão em 1968. Dali ela sugeriu que fossem ao concerto<br />
com o Homem de Bem, no casarão da Laurinda Santos Lobo. No<br />
salão de pé direito alto a música flutuava. A plateia parecia cúmplice<br />
de uma cerimônia mística. Os mantras relaxavam os corpos e<br />
os incensos se espalhavam pelo ar. Agora ele entendia por que ela<br />
escolhera um vestido indiano para aquela tarde. O tecido diáfano<br />
fazia com que sua pele parecesse mais próxima. Seguiram a pé até<br />
Le Cave de Paris, onde um grupo se reunia para dizer poemas. Além<br />
dos autores presentes, um poeta era escolhido para leitura. Naquela<br />
noite seria João Cabral. Qualquer um pode sonhar coisas claras:<br />
superfícies, tênis, um copo de água. Ou outra enumeração a seu<br />
gosto. Paredes de tijolinho, um copo de vinho, o sorriso de Marcela.<br />
Capítulo 6<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 33
24.57h - Paris um dia foi uma festa. Santa Teresa também.<br />
Quando o bar fechou, alguém propôs que descessem à Lapa para<br />
jantarem no Capela. No restaurante, sentaram-se de frente um<br />
para o outro, mas os temas eram vários, os brindes se sucediam e<br />
os olhares se dispersaram. Tardaram os acalantos da noite.<br />
III<br />
15.14 h Iniciaram o passeio nas Paineiras. O dia de outono<br />
tornava as horas mais agradáveis. Patins e bicicletas cruzavam à<br />
frente dos dois. Iam batendo papo, enquanto caminhavam: música,<br />
política, viagens, literatura...Difícil não fazer um comentário<br />
sobre a cidade, vista do alto. Mais difícil ainda não encontrar afinidades.<br />
Logo adiante, a parada numa cachoeira. Embora não estivessem<br />
com roupas de banho, não hesitaram diante da atração<br />
da força da água. Desceram alguns degraus até o lugar em que de<br />
um tubo a água jorrava e batia nas pedras. Molharam-se vestidos<br />
e a blusa colada marcou-lhe os seios. Alisou os cabelos de Marcela<br />
e, puxando sua cabeça, beijou-a com leveza. Olharam-se como<br />
se surpresos e tornaram a se beijar com avidez. E riram.<br />
18 h - Sentados no chão, ele a abraçava por trás, enquanto<br />
assistiam a um concerto de música instrumental no<br />
Parque das Ruínas. O sol desaparecia lá embaixo. Os olhares<br />
se satisfaziam de paisagem em todas as direções. Os sons de<br />
desdobravam e os pensamentos convergiam para a magia do<br />
instante. Há lugares que têm tanta energia que parece que são<br />
eles que escolhem as pessoas, e não o contrário. Ali as pessoas<br />
não estavam por acaso. A música, as pedras, a vista, o fim de<br />
tarde as havia escolhido. Marcela pensava consigo mesma que<br />
um lugar é também as pessoas que ele escolhe.<br />
19.48 h - Desceram a rua até o Largo do Curvelo. Lá subiram<br />
num bondinho que passava e foram para o ateliê do Pedro, na rua<br />
Almirante Alexandrino, lá no alto. Como ele tinha viajado, Marcela<br />
ficara com a chave da casa para regar as plantas. A decoração<br />
34<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 6
do ateliê parecia um quadro feito por Frida Khalo, mas sem a dor<br />
da pintora. Marcela, quando abria aquela porta, se sentia em um<br />
cenário, como se dentro de tempo e espaços diferentes. As cores<br />
vivas exerciam um encantamento sobre ela. Alice ou Teseu?<br />
20.10 - Marcela tirou detrás de um armário um quadro envolto<br />
em panos. Mostrou-lhe como o seu preferido. Tinha um carinho<br />
particular com aquele quadro, olhava-o terna entre suas mãos.<br />
Era como se o quadro ofertasse a ele segredos seus. Fez questão de<br />
apresentá-los, uma vez que tinham algo semelhante: ambos eram<br />
seus favoritos. Ele observou atentamente o casarão colonial com<br />
janelas verdes no quadro e teve a impressão de já ter vivido ali. Sem<br />
querer, perguntou a Marcela se ao lado esquerdo do casarão não<br />
havia uma escada de degraus largos. Ela não entendeu a pergunta<br />
nem o barulho de botas em pedras molhadas. Que passos são estes<br />
que nós repetimos ao longo do tempo?<br />
20.36 h - Da varanda do segundo andar, ele olhava a noite<br />
e a neblina. Ela descera para pegar uma garrafa de vinho tinto<br />
para aquecê-los um pouco. Na sala, encontrou um disco importado<br />
de Saint-Preux e o pôs para tocar. Seus passos na escada de<br />
madeira avisavam sua volta. A casa, apesar de ser de alvenaria,<br />
tinha muita madeira e vidro. E isto a agradava. Um brinde aos<br />
que não desertam!<br />
21.5 - A rede quase não balançava. Os dois corpos rentes,<br />
olhos voltados para o silêncio da semiescuridão. Há um dia<br />
em que se deixa tudo de lado e se parte. Na mão só os objetos<br />
de uso particular: livros, sonhos, discos, prazeres. Finalmente a<br />
vida pessoal e intransferível. O vinho parecia melhor do que de<br />
fato era. Já a noite era o que parecia na moldura de um sono.<br />
O torpor se apoderava dos corpos. E um vento abria as janelas,<br />
induzia aos saltos sem paraquedas.<br />
22.43 - O caleidoscópio girava: gosto de vinho na boca,<br />
quadro de Frida Khalo, cabelos soltos, cerveja no Maçã Dourada,<br />
pele morena, ladeiras, coxas rígidas, loja de artesanato, língua<br />
nos seios, bondinho no Silvestre, riso desentranhado, jogo<br />
Capítulo 6<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 35
de capoeira, afago na praça, música new age, beijo na cachoeira,<br />
língua nos pelos, exposição de portas abertas, mão no púbis, festa<br />
no Largo dos Guimarães, tremor das mãos, Castelinho, olhos<br />
dentro do outro, baile no Lagoinha, corpo dentro do corpo. Ele<br />
penetrava Marcela seguidamente. Como alguém que partiu sem<br />
olhar para trás.<br />
36<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 6
Capítulo 7<br />
Não se lembra do dia em que entrou no asilo. Faz tempo.<br />
Os pijamas são outros, não são mais os que trouxe. Ou terá se<br />
esquecido? Dos pertences na cômoda só o porta-retrato em que<br />
aparece junto da mulher. Ainda bem que ela morreu antes. Não<br />
gostaria daqui do asilo. Era tão asseada. Punha tudo em ordem.<br />
Em ordem demais. Afinal, por que se incomodava tanto com o<br />
jornal espalhado pela casa, se o jornal era do dia? Se fosse de<br />
um mês atrás, até entenderia. Aqui também não tem flores. Não<br />
sei nem por que chamam de jardim. Pátio, seria melhor dizer<br />
pátio. Acho que pátio lembra escola e velhice não é coisa que se<br />
aprende. É fruta que dá sem que se plante. Fruta preste a morrer.<br />
Por isso não dizem pátio.<br />
Repete que não tomou banho. O enfermeiro desmente:<br />
já tomou, sim, não se lembra. Será que está gastando muito
sabonete ou velho cheira mal mesmo? Tomava sempre dois<br />
banhos ao dia: antes de sair de casa e antes de dormir. Agora<br />
não precisa mais sair. No asilo, não faz diferença se é de manhã<br />
ou de noite, que a paisagem é a mesma. O rádio, tinha um<br />
rádio de pilha quando chegou aqui. A pilha deve ter acabado,<br />
mas e o rádio? Será que o sobrinho levou para o conserto e se<br />
esqueceu de trazer de volta? Rádio bom. Já estava com ele há<br />
vinte anos. A mulher ainda era viva. Que mania de ficar com o<br />
radinho no ouvido. Parece que gosta mais dele do que de mim.<br />
Era ciumenta a mulher. Ele ria. Essa velha diz cada coisa! Só<br />
queria acompanhar o jogo de futebol. Não se acostumara com<br />
a televisão. Fazia mal as vistas. E ouvir ele sempre ouviu bem.<br />
Melhor o rádio que ele imaginava as jogadas e não via o gol do<br />
time adversário.<br />
De uns tempos para cá, reclamava que ninguém ia visitá-<br />
-lo. Velho é assim mesmo ranzinza, só porque o seu Plínio recebe<br />
parentes três vezes por semana. Sorte dele que a família é<br />
grande e podem fazer rodízio. Assim ele nem percebe que está<br />
só, que daqui a pouco vai morrer, que há muito esta vida já não<br />
faz sentido. Sorte dele que tem dinheiro e menciona sempre o<br />
testamento para os parentes. Com certeza, eles vêm visitá-lo<br />
tanto para que ele não esqueça o nome de nenhum na hora da<br />
herança. Velho esquece as coisas muito fáceis. Velho é ingrato:<br />
o parente está do lado todo o tempo, mas um dia se afasta um<br />
pouquinho e o velho, de cabeça fraca, esquece o bendito nome<br />
do parente e deixa todo o dinheiro para um outro, só porque<br />
tinha um nome mais fácil. João, José, Pedro.<br />
Emagrecera. O pijama sobrava no corpo. O enfermeiro disse<br />
que foi o sobrinho que comprara um número grande mesmo,<br />
que era para servir quando ele crescesse. O velho não entendia a<br />
piada. Vá fazer piada com a sua mãe, que também deveria estar<br />
num asilo. Não, ela não precisava. Era só pagar para o filho enfermeiro<br />
ficar as noites na casa dela. Assim ela não teria medo. Mas<br />
será que a camisola dela também não era larga? Vai ver não teria<br />
38<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 7
mais nenhum dente. Que adianta ser mãe de enfermeiro, se não<br />
tem mais dente. O filho ia ter que escovar todo dia a dentadura.<br />
Que vergonha. Ele tinha os dentes, quase todos. Quando jovem<br />
tinha até um sorriso bonito. Pelo menos a mulher dizia que se casara<br />
com ele por causa do sorriso. Ele acreditou. É bom acreditar<br />
em palavras de elogio e de afago. Quanto tempo! Quando se lembrasse,<br />
iria perguntar a moça da faxina por que não tinham animais<br />
ali no asilo. Quem gosta de animal é criança. Bicho de estimação,<br />
de brinquedo, e aqui, seu Horácio, não tem criança. Dizem<br />
que velho volta a ser criança só porque urina nas calças também.<br />
Ele se entristecera com a mulher. Então jamais veria um cachorro<br />
novamente. E ele chegara a ter quatro uma vez. Havia terreno, a<br />
ração era mais barata e era sempre uma distração. Verdade que a<br />
mulher cuidava mais dos cães que ele. O velho gostava era de sair<br />
pelas ruas do bairro com dois cães de cada vez. Ia puxado por eles<br />
como um trenó. A mulher se queixava de que a ela cabiam a limpeza<br />
e a alimentação, e ele, o senhor da casa, o divertimento com<br />
os cães. Até que foram morrendo. Acho que o terreno também<br />
morreu. Para onde levaram o seu quintal? Ali não tinham flores,<br />
só cimento. Um cimento irregular que insistiam em chamar de<br />
jardim. Essa gente mais jovem tem muito que aprender!<br />
Às vezes, sentia uma dorzinha no estômago, no entanto o<br />
médico examinava, examinava e dizia que não era nada. Ele era lá<br />
homem de mentira. Naquela idade não iria mentir. Como o médico<br />
podia afirmar que não doía? Doía nele, no estômago, do lado<br />
direito. Não era todo dia, mas quando doía, doía. E estetoscópio<br />
não fazia passar a dor. Lá fora é que médico passa receita para<br />
você ir aviar na farmácia. Aqui, não. Médico diz que não é nada<br />
e dá um comprimido de água com açúcar para enganar. Morrer<br />
já não fazia diferença, mas dor não gostava de sentir. Que dessem<br />
uma injeção, dessas para cavalo, como diziam, e pronto. Ele<br />
dormiria em paz. Com sorte até despertaria no dia seguinte. Não<br />
sei se com sorte. Não há mais nada para fazer, a não ser jogar baralho,<br />
dominó, olhar para o vazio e cuspir. Quem disse que velho<br />
Capítulo 7<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 39
gosta de carteado? Ele não tinha esse vício. Cansava a vista ter<br />
que ficar olhando o tempo todo para as cartas, como se elas fossem<br />
fugir de suas mãos.<br />
Há uma capela nos fundos do asilo. E lá que ficam os que<br />
morrem, esperando a ambulância. Para que ambulância, se já<br />
morreram? Só para dar despesa. A moça diz que o carro da funerária<br />
iria impressionar os outros velhos. No dia seguinte, todo<br />
mundo acaba sabendo de uma forma ou de outra. Parece que<br />
existe um acordo: aos poucos não se fala mais o nome do que<br />
morreu, como se ele nunca tivesse estado aqui. Velho esquece<br />
fácil, tem memória nublada. Sobrinho também esquece. Há<br />
dois meses não vem visitá-lo. Os biscoitos acabaram. As pilhas<br />
estão muito baixas. E o rádio? Onde está o rádio? Tem que pedir<br />
emprestado ao Júlio do 202 aos domingos para ouvir o futebol.<br />
Que bom o Júlio não gostar de futebol. E ele que tinha sido atleta,<br />
campeão de natação em várias modalidades. Com foto na<br />
parede e tudo. E agora aquele cuspo grosso, escuro. Já não tem<br />
forças para dar braçadas, a morte vai alcançá-lo antes que ele<br />
chegue à areia.<br />
Tocam a campainha às nove da noite, para todos se recolherem.<br />
Isto não é colégio interno, reclama o Costa, que tem<br />
sempre história do tempo de colégio interno em Petrópolis. A<br />
família tinha dinheiro, deu boa formação até aos 20 anos. Súbita<br />
a falência do pai e a interrupção dos estudos. Fora obrigado a<br />
trabalhar sem ter nenhuma experiência. Não se formou depois.<br />
De fato, nunca aceitou a traição da vida. Via-se na adolescência<br />
sentado com os pés na mesa da sala da presidência da indústria<br />
do pai. Este morreu dois anos depois da falência. Costa culpa a<br />
política da época. Deve ter razão.<br />
A campainha é coisa de colégio. Parem com isto, repete-<br />
-se Costa pelo corredor. Velhice é coisa que não se aprende. Já se<br />
nasce sabendo. Já se nasce envelhecendo. Agora não é oportuno<br />
este tipo de pensamento. Se o Costa não for logo para o quarto,<br />
uns enfermeiros vêm e lhe aplicam um calmante. À força, é<br />
40<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 7
em verdade. Na gaveta de cada quarto eles põem sempre um<br />
caderno pautado e uma caneta esferográfica. Não sei se é para<br />
nós desenharmos ou mandarmos bilhetes uns para outros. Não<br />
sou muito de escritos. Minha mulher tinha mais estudo, por isso<br />
era ela quem preenchia os cheques, enviava as cartas, fazia apontamentos.<br />
Ainda bem que ela já morreu. Ela não ia ter o que regar<br />
neste jardim. O meu caderno eles nunca trocaram, é o mesmo de<br />
quando cheguei aqui. Se eu tivesse netos e se eles viessem me<br />
ver, eu faria aviõezinhos com estas folhas do caderno para distrai-<br />
-los. É, acho que seria uma boa ideia. Deve ser tarde. É melhor<br />
que eu durma também. Fecho a gaveta de novo. Para que tanto<br />
papel? Velho já não tem mais nada a dizer.<br />
Capítulo 7<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 41
Capítulo 8<br />
Quando ele acendeu um cigarro já no ponto de ônibus,<br />
não sabia o que iria acontecer em duas horas. Conferiu as horas<br />
no relógio de camelô. Esses ônibus não passam nunca no<br />
horário. Mas o patrão nem queria saber. Achava que tudo era<br />
desculpa, indolência. No final do mês, o salário menor: vinte<br />
minutos um dia, quinze no outro...Olhou ao redor, como se<br />
todos estivessem esperando pelo ônibus da mesma linha. Tinha<br />
que adivinhar onde o ônibus ia parar para ser o primeiro a<br />
entrar. Caso contrário, viajaria nos degraus, o que, aliás, era o<br />
mais frequente. Andava na calçada lentamente, como um ator<br />
que busca a marcação e não quer que a plateia perceba seus<br />
movimentos. E ônibus lá tinha lugar para parar? Às vezes, nem<br />
parava. Motorista é tudo doido. A maioria se aposenta por invalidez,<br />
psiquiatria. Um ou outro ainda goza a aposentadoria
numa casa de um subúrbio longe. Televisão, rádio, rede, essas<br />
coisas. Orçamento pequeno para mercado, contas de casa,<br />
desde que a mulher não venha com história de presente para<br />
aniversário, cabeleireiro. O pior é a despesa extra com remédio.<br />
Uma nota gasta para depois o sujeito morrer da mesma<br />
forma numa enfermaria pública.<br />
A mulher tinha acordado às cinco horas como sempre.<br />
Meio sonâmbula, não fazia a menor ideia do que se daria dali<br />
a horas. Fez o almoço que ele levaria na marmita. Quando ele<br />
acordou, pôs o café. Não se falaram muito. Que teriam para dizer<br />
um para o outro, que já não tivessem dito. As mesmas recomendações.<br />
Não deixe de se alimentar direito. Como se houvesse<br />
iguarias na marmita, pensou consigo. E tinha que esperar<br />
o domingo para dormir até mais tarde, sentir-se mais senhor.<br />
Depois a macarronada que repetia, apesar da advertência da<br />
mulher. À tardinha, um carteado com os vizinhos e os mesmo<br />
comentários. Este Zeca não toma jeito. Não sabe perder. Reclama<br />
muito. Ninguém quer ele mais como parceiro. E o riso superior<br />
de quem ganhou no jogo. Dois mil pontos de diferença. A<br />
mulher ligaria o rádio lá pelas oito horas e o programa favorito ia<br />
até meio-dia. Música brega, notícias ruins, debates inúteis. Quatro<br />
horas contra o tédio. A mulher, antes dele sair, ajeitara-lhe a<br />
gola e lhe dera um beijo na face. Dezoito anos de casados. Será<br />
que faria bodas de ouro como seu avô?<br />
Pedro estava na rua desde às quatro, no volante do ônibus.<br />
Antes funcionário de repartição pública. Com salário baixo, pagamento<br />
irregular, mas sem freada, buzina, acidentes. Pensam que<br />
é fácil? Oito horas sentado neste banco, como se estivesse preso,<br />
ouvindo reclamação e desaforo dos usuários e sendo anotado<br />
por fiscais e guardas. O que leva um sujeito a ser fiscal? Mesmo<br />
sem dinheiro, é preciso não ter dignidade alguma para ficar com<br />
uma caneta e um bloquinho fazendo-se de alcaguete. Motorista é<br />
melhor. Pelo menos o sono é justo. Essa avenida Brasil é que não<br />
presta. Toda manhã é um engarrafamento sem fim. Só dá para<br />
Capítulo 8<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 43
fazer duas viagens. A das sete então é a pior: duas horas até a<br />
praça Tiradentes. Pedro não tinha noção de que este dia a viagem<br />
iria demorar menos, e a praça vai se encontrar mais longe. Nunca<br />
mais o alívio do copo de mate no ponto final. Seu ônibus rasteja<br />
pela avenida num dia quente de março. Pedro passa a flanela ensebada<br />
pela testa e tira o suor das rugas e das marcas de expressão.<br />
Sonha com as férias numa pousada em Ibicuí. Vinte dias sem<br />
óleo diesel.<br />
Dentro do ônibus, no degrau perto da roleta, ele pensa<br />
na família. As crianças careciam de brinquedo e ele adiando<br />
para o mês seguinte. Várias datas e aniversários se passaram<br />
e ele se desculpando: despesa com obra, a doença da avó, o<br />
material didático... Televisão só serve para estragar criança.<br />
Elas veem tanto anúncio que dão de querer o que não podem.<br />
Vá explicar isto a elas. Só sabem chorar e fazer jeito de tristeza,<br />
de abandono. Como se não tivessem pais. E eu aqui neste<br />
degrau. Nem consigo me mexer. O ônibus só esvazia a partir<br />
da Presidente Vargas. Vida de merda. Uma cozinha americana<br />
que quebra à toa e é quase a metade do salário. Se ao menos<br />
conseguisse um biscate no fim de semana, daria. Carolina que<br />
espere. Na idade dela não tinha brinquedo, nem caderno, nem<br />
afago. Já não têm a televisão, que mais querem? Televisão gasta<br />
energia. É, eles precisam entender que todo mês ele dá a<br />
energia de presente. Para que brinquedo?<br />
A mulher se olha no espelho que fica acima do tanque.<br />
Às vezes, o marido faz barba ali, se o banheiro está ocupado.<br />
Limpa o aparelho e guarda. Olha-se outra vez. O cabelo está sem<br />
jeito. O riso também não é mais o mesmo. Se fosse ao dentista,<br />
mas com que dinheiro? Deve estar com muitas cáries. Por<br />
sorte nenhum dente dói. Já teve que arrancar três. Por isso o<br />
riso enfeou. Seria bom ser da rádio, pois ia poder ir ao dentista<br />
todo ano. Acho que pagam bem na rádio. Também é tudo<br />
famoso. Mas mulher em rádio não é bem vista. Melhor assim,<br />
ela tem filhos. Não é uma qualquer. Somos pobres. Temos que<br />
44<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 8
dar exemplo para as crianças. Só que deve ser bom ter dinheiro<br />
para roupas, cabelo, dentes, viagens. Ela nunca saiu da cidade.<br />
Só uma vez foi a Araruama. Uma praia de dar gosto, pena que<br />
ela não saiba nadar. Tinha feito uns sanduíches de carne assada,<br />
um refresco de caju. Que passeio agradável. Faz tanto tempo.<br />
Ainda não tinha se casado. Coisa de namoro. Foi num feriado<br />
distante com o atual marido e uns amigos. Mas para que locutor<br />
de rádio vai gastar dinheiro com dentista, se o público não vê o<br />
riso deles. Devem gastar com carro, casa de veraneio, mobília,<br />
roupa da moda, discos. Dizem que quem é da rádio tem muito<br />
disco. E o espelho lá, inoportuno. O rosto envelhecido para a<br />
idade. Ninguém vai me tirar para dançar no baile mesmo. Para<br />
que se pentear e se pintar em casa? Se fosse a um cinema, à festa<br />
da igreja, a Petrópolis... Não sei por que, mas queria tanto ir<br />
a Petrópolis. Uma irmã passou a lua-de-mel lá e sempre repetia<br />
que a cidade era um encanto. Mas o marido é arredio, não gosta<br />
de sair. Nem de visitar parente. Um dia iria a Petrópolis, escondida.<br />
Dizem que é perto, poderia ir e voltar no mesmo dia Ajeitou<br />
o espelho com pena de si mesma. Não seria capaz de imaginar<br />
o final da manhã. Tudo parecia tão trivial que ninguém temeria<br />
ventania, tempestade. Muito menos a morte.<br />
Se o patrão desse um aumento. Nada. Era uma vez por<br />
ano e olhe lá. E servia para alguma coisa, com a inflação, o custo<br />
de vida daquele jeito. Brinquedo, para que brinquedo? Em<br />
primeiro lugar, o aluguel, as contas do mês, o mercado, a farmácia...E<br />
às vezes não dava nem para isto. A salvação eram os<br />
biscates. Um servicinho aqui, outro acolá. E mês que não tinha,<br />
que era só salário. Mês duro de ser engolido. A despensa vazia.<br />
A mulher esticando o feijão e a expressão de aborrecimento.<br />
Mulher, estamos gastando muita luz. Tem que controlar. Só está<br />
saindo dinheiro. Entrar que é bom nada. É torneira aberta, é cômodo<br />
com luz acesa, é esse rádio o dia inteiro. Eu sou um só.<br />
No ônibus lotado, o suor escorria. O tempo custava. O engarrafamento<br />
iniciava na Baixada e se estendia pela avenida Brasil<br />
Capítulo 8<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 45
inteira. Desaguava na cidade. Lá parece que os ônibus despejavam<br />
a multidão e desapareciam. O trânsito não tinha lógica. O<br />
trocador olhava para ele como quem dissesse: ”Se quiser viajar<br />
sentado, acorde mais cedo. Vá para o ponto final” Agora não<br />
reclame. Daqui a pouco estamos na Presidente Vargas. Acontece<br />
que o trocador não pensava em nada. Sequer fazia ideia do que<br />
iria acontecer. Ainda tinha quatro prestações da geladeira para<br />
pagar. Depois, sim, iriam comprar um televisor. Por enquanto,<br />
que a mulher fosse ver a novela na casa da vizinha. O patrão<br />
disse que, se passasse no exame, daria a ele um cargo de motorista.<br />
Com o salário maior, daria para comprar, além da maldita<br />
televisão para a mulher, um ventilador. Pavuna era um bairro<br />
muito quente. O apartamentozinho no conjunto era do pai. Pelo<br />
menos não pagava aluguel. O pai morrera cedo, mas deixou dois<br />
imóveis: em um moravam a mãe e uma irmã; no outro, ele com<br />
a mulher e um menino. Vida de merda. E os colegas só porque<br />
moravam em São Cristóvão faziam hora com ele. Tem muito índio<br />
em Pavuna? Que língua vocês falam lá? Não vai me dizer que<br />
é português também? O ônibus se arrastava, como se quisesse<br />
adiar a morte, o irreversível.<br />
Houve um pequeno acidente mais adiante. Um menino<br />
com uma bicicleta foi jogado a metros de distância. E interrompeu<br />
o trânsito. O guarda só apareceu dez minutos depois.<br />
E levou mais outros dez até se decidir a arrastar o corpo para<br />
a calçada. Já estava morto mesmo. E a bicicleta? Quem cuida<br />
da bicicleta? Pode ser que algum parente venha reclamá-la.<br />
Mais hesitação. Enfim subiu na bicicleta e foi pedalando até<br />
um botequim, onde pediu que a guardassem e telefonou para<br />
uma ambulância. O motorista assistira à cena de sua janela,<br />
olhando inquietamente para o relógio. Estranhara a bicicleta<br />
de último tipo nas mãos de um menino pobre. O pai deve ter<br />
feito horas e horas de serão para poder dar uma bicicleta como<br />
aquela, de marcha e tudo. Para quê? Para o moleque ir andar<br />
no meio da Avenida Brasil. Olhou para os prédios industriais e<br />
46<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 8
percebeu que estava na altura de Olaria. O menino podia ter<br />
andado nas ruas do bairro. Avenida não é lugar para bicicleta.<br />
E há os que vão de bicicleta pela passarela. Não têm medo<br />
de altura. Eu nem gosto de olhar. Não sou ave para viver no<br />
alto. O homem nasceu para o chão ou no máximo sentar neste<br />
banco, dois metros acima. Se o moleque tivesse juízo, não<br />
estaria morto. Agora é caixão, flor, enterro. E o pobre do pai<br />
arrependido do presente. Era franzino e devia ter lá seus doze<br />
anos. Como é que nós vamos saber a hora da morte. Acontece<br />
sem aviso. Você sai de casa um dia e pronto, não volta mais.<br />
Fica o prato sobre a mesa te esperando. A mulher depois joga<br />
fora a sopa.<br />
De vez em quando, tem uma rádio que diz o trânsito nas<br />
ruas principais da cidade. E a mulher muda de estação para escutar.<br />
Não vai fazer diferença para a vida dela, se o congestionamento<br />
está maior ou menor. Se houve acidente, blitz, explosão<br />
de bueiro. Talvez seja uma forma de pensar no marido. Ele está<br />
lá, em algum ponto dessas ruas, com o volante na mão, feito<br />
um cavaleiro. A ponte Rio-Niterói apresenta a pista engarrafada<br />
na direção do Rio. Não há o que fazer. Só se os motoristas desesperados<br />
se atirarem da ponte. Não há retorno. A esta hora<br />
o marido ainda deve estar indo para o centro da cidade. Não<br />
passa pela cabeça da mulher que não o verá mais. O gesto de<br />
ajeitar a sua gola, o beijo na face. Sobre a mesa uma faca enfiada<br />
numa goiaba. A vida interrompida. Nesta estação agora só<br />
música e temas femininos: dieta, moda, horóscopo, conselhos<br />
sentimentais, orientação familiar. De uma psicóloga ela gosta<br />
muito. Ela usa umas palavras difíceis. Deve ser bom poder ter<br />
estudo e saber tanta coisa. Aposto que ela não sabe fazer doce<br />
de abóbora com coco. Elas não têm tempo para essas coisas de<br />
casa. No intervalo um anúncio de uma cozinha completa em dez<br />
prestações. Até que não ia mal. Os armários são do tempo do<br />
casamento. Tão gastos, com a fórmica saindo em várias partes.<br />
Mas, se falasse em trocá-los, o marido não ia gostar. Ele anda<br />
Capítulo 8<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 47
tão esquisito. Deve ser o serviço: patrão, fiscais, colegas invejosos.<br />
Aquela mulher que põe cartas bem que avisou. Homem<br />
é descrente. Não lhe dá atenção. Aposto que é inveja de algum<br />
colega que quer o horário dele, as horas extras que ele faz. Que<br />
ele tá meio estranho, lá isso ele está. A vidente foi recomenda<br />
pela vizinha da vila em frente. Moça direita. Não ia me enganar.<br />
Disse que tudo que a vidente leu nas cartas aconteceu. A doença<br />
do avô era um exemplo. E ele ainda se zangou comigo por causa<br />
do dinheiro da consulta. Chamou a vidente de vigarista. Homem<br />
de pouca fé. O que tem que ser, tem que ser. Era melhor se ele<br />
tomasse uns banhos de sal grosso. Sabe-se lá o que nos espera<br />
depois da esquina.<br />
48<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 8
Capítulo 9<br />
Chegaram aos poucos à cidade. Quando percebemos<br />
que havia presenças estranhas entre nós, já eram em número<br />
significativo e pareciam uma ameaça, embora não soubéssemos<br />
dizer por que razão. Não eram precisamente simpáticos<br />
ou extrovertidos, mas, não sei se seguindo uma estratégia, se<br />
aproximaram com cautela de nós, uma palavra aqui, outra acolá,<br />
um bom-dia, uma ferramenta emprestada e foram sendo<br />
aceitos pela vizinhança. Discretos, conseguiram a princípio não<br />
despertar suspeita em nenhum de nós quanto a sua conduta.<br />
Frequentavam até as mesmas igrejas, embora hoje haja quem<br />
os julgue ateus. Estes estrangeiros não têm religião. Como<br />
pode existir um deus em uma língua com tantas consoantes?<br />
Uns até participavam dos jogos na praça. Especialmente de bocha.<br />
Mas não faziam alardes nas vitórias, apenas estendiam
as mãos para os cumprimentos. Não por pudor para não se<br />
vangloriar sobre os adversários, mas por rigidez mesmo. Não<br />
sabiam ser alegres, observaram uma vez.<br />
Teriam decerto entrado para o registro das emigrações apenas.<br />
E seus netos um dia seriam como nós, nem repararíamos nas<br />
diferenças. A língua teria se amaciado e ririam mais amiúde. E alguns<br />
deles com alguns de nós teriam feito sexo, de forma que estes<br />
netos nasceriam com aparência mais familiar, mais morenos. Tudo<br />
hipóteses. Não acredito mais que isto aconteça. Talvez daqui a décadas<br />
não estejam por aqui. Quem sabe não são ciganos?<br />
Não podemos precisar quando aconteceu, só que um dia,<br />
meses ou anos depois, verificamos que eles vinham há muito demonstrando<br />
um curioso interesse e talvez já fosse um pouco tarde<br />
para nos protegermos de seus atos. Como quem não quer nada,<br />
passaram a nos perguntar por coisas velhas, algumas sem uso<br />
mesmo, abandonadas em garagens, depósitos, quintais. E ofereciam<br />
quantias pequenas, mas, de qualquer forma, atraentes, pois<br />
ninguém pensava que ainda valessem dinheiro. Simplesmente<br />
não se desfizeram destas coisas, por afetividade, displicência ou<br />
hábito. Em toda família sempre havia alguém que tinha a mania<br />
de guardar coisas velhas, pudor de se desfazer de objetos, roupas,<br />
aparelhos enguiçados, papéis... Simultaneamente, iam pelos<br />
bairros indagando de casa em casa se não tinham algo que não<br />
prestasse mais ou que não fosse de uso diário.<br />
Deixavam que as pessoas os tomassem por mascates, revendedores<br />
de quinquilharias, fornecedores de brechós ou ferros-velhos.<br />
De início, só compravam estas mercadorias dos vizinhos.<br />
Depois, esgotados os veios, dirigiram-se a desconhecidos.<br />
E saiam das ruas abarrotados de coisas velhas que levavam para<br />
algum galpão, cujo endereço jamais soubemos.<br />
De repente, pessoas de outros bairros ou até mesmo de<br />
outras cidades vinham procurá-los. Queriam saber por onde<br />
andavam os caixeiros viajantes, os sem-razão que pagavam por<br />
coisas inúteis. Um deles, mais prático, alojou-se em uma praça,<br />
50<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 9
ao contrário dos demais que eram nômades, e na sua tenda na<br />
praça recebia os que queriam lhe vender coisas sem utilidade.<br />
Em pouco tempo havia filas durante o dia inteiro, com a praça<br />
se tornando pequena. Um dos nossos, percebendo a clientela,<br />
colocou um cartaz para frete de lugares mais distantes. Viria a<br />
enriquecer neste ofício.<br />
Acostumou-se o povo com aquele comportamento estranho.<br />
Estrangeiros são todos idiotas. E como ganhavam dinheiro<br />
fácil com a falta de juízo alheia, pouco se importavam. Quando<br />
uma vez alguém teve a ideia de denunciá-los ao manicômio,<br />
quase foi morto a pedras. Até a polícia fazia vista grossa.<br />
Todos sabiam que policiais e mesmo delegados enviavam<br />
familiares para vender mercadorias aos estrangeiros. E nada<br />
de perguntas. De onde saía tanto dinheiro e para onde iam as<br />
compras ninguém sabia. Que fossem mágicos! O que importava<br />
era a oportunidade de lucro inesperado. Houve até quem fosse<br />
adquirir velharias em terras mais distantes para revender para<br />
eles. Outros abandonaram o serviço e, quando precisavam de<br />
um dinheiro, se desfaziam de algo menos útil que tivessem em<br />
casa. Entregaram-se ao ócio e, sempre que bebiam, brindavam<br />
aos bem-vindos estrangeiros.<br />
O comércio local também gostou. Com o dinheiro ganho<br />
com a venda dos trastes, as pessoas iam às lojas para comprar<br />
móveis, roupas, objetos de toda sorte que fossem novos. Aliás,<br />
a mania do novo se espalhara aos poucos. Todos passaram a ter<br />
vergonha de possuírem algo com mais de cinco anos. Isso só serve<br />
para os estrangeiros! E as casas aos poucos foram mudando a<br />
mobília, adquirindo equipamentos de última tecnologia, o guarda-roupa<br />
foi renovado e a moda passou a significar prestígio e<br />
reconhecimento social.<br />
Certo dia um adolescente levou um álbum de família<br />
para vender. Então um deles percebeu que os mais jovens se<br />
desfaziam por qualquer bagatela de coisas pessoais como fotos<br />
de família, cadernos de escola, objetos de valor afetivo, car-<br />
Capítulo 9<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 51
tas, filmes caseiros...Não tinham respeito pelo que não fosse<br />
contemporâneo e não exigiam muito na hora da negociação.<br />
Ora, deste momento em diante passaram a ser os vendedores<br />
preferenciais, pois até aceitavam encomendas. Aproveitavam<br />
as horas em que os pais saiam para o trabalho ou dormiam<br />
e faziam expedições a sótãos e porões, a gavetas e baús. No<br />
dia seguinte, apareciam com sacolas repletas de ninharias. A<br />
cidade, sem que percebesse, foi sendo esvaziada de antigos<br />
pertences e recordações. E o espírito do descartável foi se apoderando<br />
das pessoas. As latas de lixo enchiam-se diariamente<br />
de quantidades nunca vistas antes.<br />
Quando as pessoas passaram a ter dificuldades de encontrar<br />
material velho para a venda, um estrangeiro sugeriu a um<br />
funcionário de ministério que ele trouxesse papéis do arquivo<br />
morto. Em pouco tempo arquivos, despensas e depósitos de órgão<br />
públicos foram diminuindo, diminuindo. Requerimentos, fotos,<br />
documentos, relatórios, pareceres, tudo foi parar nas mãos<br />
do mascate da praça e, imediatamente, desapareciam. Se não<br />
estivessem queimando toda a papelada, teriam uma cidade só<br />
para armazenar aquelas milhares de caixas. Como se tivéssemos<br />
assinado um pacto, ninguém falava sobre as mercadorias em outra<br />
hora. Não sei se pensávamos que aquilo era mercado negro,<br />
sujeito a punições pela lei. Nos demais lugares convivíamos com<br />
os estrangeiros sem fazer menção ao comércio de antiguidades.<br />
De fato, sabíamos que não eram antiguidades, todavia preferimos<br />
usar tal expressão, para, em parte, valorizar as inutilidades<br />
vendidas e, em parte, para não criarmos embaraços para eles.<br />
O que eles explicariam, caso fossem perguntados por tais atos<br />
evidentemente insensatos? Melhor tratá-los como antiquários,<br />
exportadores de nossas preciosidades para longes terras.<br />
Intrigava-nos em silêncio o destino de tanto material.<br />
Haveria funcionários em algum lugar que receberiam as mercadorias,<br />
as identificariam com etiquetas, as separariam por<br />
gênero, classe e categoria, as armazenariam em galpões gigan-<br />
52<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 9
tescos e as trancariam para sempre. Fosse como fosse, nem<br />
mesmo em família falávamos sobre o assunto. Temíamos. Temíamos<br />
até que tudo aquilo acabasse de uma hora para outra<br />
e perdêssemos a oportunidade de um rendimento extra.<br />
Tempos depois, quando um parente idoso morria, era<br />
logo esquecido. Nem os netos guardavam mais retratos dos<br />
avós. Se não fosse a oralidade, não saberíamos sobre os familiares,<br />
a infância e as histórias do país. As pessoas passaram<br />
a se referir a um fato ocorrido há 5 ou 500 anos com uma só<br />
palavra: ontem. Tudo que nos causava dúvida e incerteza de<br />
recordar tinha acontecido ontem. Avós, pais e filhos, todos tinham<br />
nascido ontem. E alguns que já tinham morrido, tinham<br />
também morrido ontem.<br />
Muitos de nós já não se lembravam de quando os estrangeiros<br />
chegavam nem que eram estrangeiros. Consideravamnos<br />
só pessoas um pouco diferentes ou negociantes de quinta,<br />
pois não lidavam com produtos de primeira mão. Eu e mais alguns<br />
que ainda nos lembrávamos do início da venda de “antiguidades”<br />
tínhamos medo, embora não soubéssemos precisar de<br />
quê. Talvez seja uma questão de tempo e um dia também tenhamos<br />
nos esquecido dos estrangeiros. Todas as anotações feitas<br />
sobre eles desapareceram. Os papéis e fotos não duram muito<br />
nas gavetas. Outro dia ouvi dizer que estavam interessados em<br />
mapas, guias e placas de rua, folhetos de turismo e qualquer<br />
material que registrasse dados sobre a cidade.<br />
Talvez mais tarde não nos lembraremos de nossos endereços<br />
e não saibamos mais voltar para a casa. Ainda bem que há<br />
os estrangeiros. Nesta hora eles nos guiarão.<br />
Capítulo 9<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 53
Capítulo 10<br />
Eram os corredores atapetados do palácio que se desdobravam<br />
em corredores, com esquinas com outros corredores.<br />
Mal se ouviam os passos que se repetiam lentos, obcecados,<br />
na direção de uma porta, uma perspectiva de saída. Em um<br />
destes inúmeros quartos, o amigo do rei fumava um cigarro<br />
e espiava pela janela o dia desaparecer. Não pensava no labirinto<br />
dos corredores que davam voltas e voltas no palácio.<br />
Quando precisava de alguma coisa, bastava telefonar para a<br />
recepção. Lá todos tinham ordens de atender seus pedidos,<br />
fossem quais fossem: uma bicicleta, um burro brabo, um pau<br />
de sebo e até água do mar. A exigência do próprio mar a sua<br />
porta foi vista como extravagante e problemas operacionais<br />
impediram os funcionários do rei de satisfazer este desejo. Em<br />
compensação levaram baldes e baldes de água legítima do mar
mais próximo, o que não foi pouca coisa, se lembrarmos que o<br />
mar fica a 200 km do palácio.<br />
Naquela manhã, embora ele não saiba de que década, a<br />
rainha Joana, a louca de Espanha, teve a ideia de fazer um espetáculo<br />
de dança pelos corredores, argumentando que a acústica<br />
era excelente. Convidou, portanto, dançarinas de diversas partes<br />
do mundo, que se instalaram confortavelmente nos infinitos<br />
aposentos do palácio. Ao mesmo tempo em que as exibições de<br />
dança aconteciam, um congresso sobre genealogia ocorria nos<br />
salões contíguos. Joana tinha uma tese sobre o parentesco dos<br />
contraparentes que não tinham laço sanguíneo algum. Defendia<br />
tal tese com tanto brilhantismo que recebera a renovação do<br />
título de Louca da Espanha por mais 25 anos, sem a necessidade<br />
de depoimentos favoráveis por parte de amigos.<br />
Bons tempos, sem dúvida, ainda que ninguém se recorde<br />
com exatidão quanto tudo aconteceu naqueles corredores<br />
atapetados. Só a sensação de uma câmara serpenteando em<br />
travelling e a voz de um narrador monocórdia, repetindo de<br />
quando em quando as frases. Isto hoje em dia me parece uma<br />
aberração, pois todos sabem que em cinema não há narradores.<br />
A menos que fosse um filme sobre narradores que tinham<br />
o hábito de frequentar os corredores palacianos acompanhados<br />
de uma grua, de um fotógrafo com sua máquina, e que todos<br />
participassem de uma película, apesar da estranheza do fato.<br />
O amigo do rei interrompia sua ginástica em um dos muitos<br />
aparelhos de última geração, colocados à sua disposição pela<br />
incansável cortesia real. Mas quando ele se cansava de tanto exercício,<br />
solicitava a presença de mãe-d’água, o que era um problema<br />
para os funcionários, que recorriam a intérpretes, a tradutores, a<br />
brasilianistas para entenderem o que vinha a ser uma mãe-d’água<br />
e onde encontrar uma de sua espécie e a que preço. O amigo ignorava<br />
as dificuldades para ser atendido e, deitado à beira do rio,<br />
jogava pedrinhas na água, esperando pela súbita aparição de sua<br />
mãe-d’água, com suas histórias intermináveis.<br />
Capítulo 10<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 55
Uma de suas favoritas falava sobre o silêncio e os passos<br />
misteriosos, quase inaudíveis, pelos corredores de um palácio,<br />
cujos jardins não menos labirínticos davam vertigem só pela<br />
sua descrição. A simetria dos jardins criava uma falsa sensação<br />
de equilíbrio, de certeza. Quando a câmara se aproximava das<br />
plantas, podia-se perceber que não havia saída, que quem entrasse<br />
neste jardim estaria preso para todo o sempre, repetindo<br />
os movimentos em busca de uma saída, e só se deparando com<br />
esquinas de esquinas de esquinas.<br />
No seu tempo de eu menino, ele acaba adormecendo<br />
com esta história e por isso gostava tanto dela. De alguma forma,<br />
ela o levava ao prazer do sono. Jamais esqueceu a voz calma<br />
de mãe-d’água durante a sua infância em terra tão longínqua,<br />
onde havia um rio ou a ideia de um rio, o que não fazia diferença.<br />
Que o rei trouxesse Rosa de volta ao mundo dos vivos e a<br />
alojasse em um quarto contíguo ao seu, com direito a um fogão<br />
de lenha e a uma rede na árvore.<br />
Afinal, os engenheiros do palácio são regiamente pagos<br />
para darem soluções. Eles não têm truque de deus ex-machina e<br />
tramoias diversas? Pois então.<br />
Lá nas camas redondas de quartos espelhados ele se deitava<br />
com mulheres de todas as nacionalidades, com as quais se<br />
dirigia principalmente em javanês ou tupi guarani, por motivos<br />
que não cabem nesta pequena história. Não tinha medo de engravidá-las,<br />
pois naquela terra já havia métodos seguros de contracepção,<br />
o que facilitava a prática do sexo em excesso para fins<br />
não reprodutivos. As mulheres, por sua vez, quando não estavam<br />
fazendo sexo, gostavam de usar os telefones automáticos que ficavam<br />
distribuídos pelos corredores. Como eram todos gratuitos,<br />
elas passavam horas telefonando para todos os que tivessem o<br />
nome nas listas. O diálogo era a última invenção naquela terra e<br />
os telefones contribuíram em muito para a sua expansão.<br />
Além das estrangeiras com quem deitava por noites seguidas,<br />
nas horas vagas, ele convidava prostitutas para o exercício do<br />
56<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 10
eufemismo e do namoro. Era um gentleman e oferecia licores a todas.<br />
Uma vez por ocasião do congresso de dançarinas organizado<br />
por Joana, confundiu algumas concorrentes com as prostitutas e<br />
dormiu com elas, sem que elas percebessem que o sexo não fazia<br />
parte do número de dança para o qual haviam sido contratadas.<br />
E os gemidos se destacavam naqueles corredores silenciosos por<br />
onde passava um fotógrafo com a grua suavemente, tendo ao fundo<br />
a voz de um narrador, não de Rosa, a mãe-d´água.<br />
Já não se lembrava o amigo de quando ele entrou no palácio,<br />
nem por que escada, ou ala. Só sabia que havia festas com<br />
frequência e que as mulheres desfaziam os lençóis de sua cama<br />
a toda hora. E que às vezes ficava triste, triste de não ter jeito,<br />
acometido de nostalgia ou do sentimento de exílio, principalmente<br />
à noite, embora também tivesse dificuldade em distinguir<br />
a noite do dia, uma década da outra. Do lado de fora, nos<br />
jardins do palácio francês do século.<br />
XIV, ele vagava as noites - supondo pelo menos serem<br />
noites - com insônia. Não acreditava ser o efeito dos alcaloides,<br />
mas jurava para si mesmo que tudo aquilo tinha acontecido não<br />
naquele momento, mas no ano passado. Sua mão tentava alcançar<br />
o ano passado inutilmente. Ele fugia pelas dobras do jardim,<br />
deixando para trás uma paisagem irretocável e incompreensível.<br />
Pasárgada era uma cidade feita de corredores atapetados<br />
e a voz do narrador se perdia na lembrança pouco nítida de que<br />
um dia houve realmente um narrador. O silêncio prosseguia pelos<br />
corredores, dobrava as esquinas e ao longe, muito ao longe,<br />
a fotografia de um rei que nunca existiu. Isto faz diferença?<br />
Capítulo 10<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 57
Capítulo 11<br />
O papagaio pousou no ombro do funcionário do cemitério<br />
para acompanhar o enterro. Para os presentes a impressão<br />
é de que o papagaio era da instituição, com a diferença de que<br />
não usava uniforme. Se subitamente ele desse uma ordem ou<br />
fizesse um comentário, ninguém estranharia. O seu olhar era o<br />
de quem estava acostumado com caixões, mortes, flores, choro.<br />
E com o sol típico daquela estação na cidade. Só faltava tirar um<br />
lenço e enxugar a testa.<br />
Era a primeira vez que ia àquele tipo de enterro. Não sabia<br />
exatamente o que dizer nem como me comportar. Não pus coroas<br />
com flores, não dei pêsames. Apenas olhava a certa distância o<br />
velório. Macunaíma tinha se ido. Agora era a Constelação da Ursa<br />
Maior. Portanto não havia corpo dentro do caixão. Pauí-Pódole era<br />
o mestre de cerimônias. Fazia muitos gestos que pareciam feitiços,
mas nenhum com o propósito de ressuscitar o herói. Era só um ritual<br />
que os homens brancos não entendiam. A seu redor, boa parte<br />
da tribo repetia seus gestos de forma desencontrada e murmurava<br />
coisas incompreensíveis. O capelão oficial do cemitério manteve-se<br />
afastado, com olhar de censura e medo. As despedidas poderiam<br />
demorar mais meia hora ou dias. Índio tem outra noção de tempo.<br />
Do caixão saía um brilho inútil de estrela. Ora, quem diria,<br />
levar um brilho para debaixo da terra? Os funcionários, tão<br />
mecanizados, punham o caixão no carrinho sem prestar atenção<br />
ao que carregavam; os outros, mais tarde, fariam o mesmo, ao<br />
descer o caixão na sepultura. Estariam fechando uma luz e não<br />
perceberam. Não me cabia intervir, mostrar aos que se encontravam<br />
no velório a ausência do corpo. Pelo jeito só eu parecia<br />
surpreso com o inusitado enterro. Cedi às circunstâncias.<br />
No trajeto até a cova, muitos índios falavam alto e dançavam.<br />
Já os brancos comentavam coisas que não diziam respeito<br />
à morte, coisas do dia a dia, assuntos pendentes de reuniões<br />
familiares ou profissionais. A conversa ajudava o tempo a passar<br />
e a não se pensar no calorão que fazia. Macunaíma bem que<br />
podia ter escolhido um dia mais fresco para morrer. Mas não.<br />
Mesmo na morte tinha que trazer contrariedade. Que fosse em<br />
paz! Quem ocuparia seu lugar na academia de folclore Mário de<br />
Andrade? Seria difícil um substituto a sua altura. Ele se tornara<br />
o maior estudioso das coisas da nossa gente, um verdadeiro<br />
scholar, reconhecido internacionalmente, com discurso na ONU<br />
e tudo. E agora estava ali, brilho inútil.<br />
Graças às suas pesquisas arqueológicas, descobriu-se<br />
um depósito de consciências na ilha de Marapatá. De lá elas<br />
eram contrabandeadas para vários países da América Latina,<br />
com um lucro estupendo. Ou o governo não sabia das negociações<br />
ou tinha alguma participação e fazia vista grossa. Depois<br />
de suas denúncias na imprensa a polícia federal vasculhou a<br />
ilha e encontrou os galpões repletos de consciências já embaladas<br />
para serem transportadas no meio da noite.<br />
Capítulo 11<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 59
Outra ação sua de relevância foi a construção de taperas<br />
ao longo das fronteiras. O exército, encarregado de fazer o patrulhamento<br />
na área, respondeu pelo planejamento e execução<br />
da obra. Em pouco tempo, o país se viu defendido de supostos<br />
ataques pelas taperas, que, segundo Macunaíma, seriam<br />
de muita serventia em tática de guerrilha. Até agora ainda não<br />
foram usadas, mas é só uma questão de tempo. Os gênios antecedem<br />
os fatos, como sabemos, e o nosso herói fora um deles.<br />
Findo o enterro, os índios me convidaram para uma festa<br />
em Terra Grande, onde haveria dança, bebida e comida em<br />
homenagem ao morto. Além de cunhãs, é claro. Senti-me lisonjeado<br />
com o convite, mas tive que declinar, só pelo prazer de<br />
usar este verbo com este sentido pernóstico pela primeira vez.<br />
Aleguei tristeza e peguei uma lotação para casa.<br />
De noite pus um disco de atabaque na vitrola para me<br />
despedir do herói. Fiz sem pensar, instintivamente. Sabia que<br />
ele apreciava música de percussão e que gostava de dançar, embora<br />
totalmente sem jeito. Não repetia uma coreografia. Dança<br />
não era ginástica, dizia, desculpando-se. O ritmo foi tomando<br />
conta de mim e quase, sem querer, imitei-lhe os gestos e os passos.<br />
No entanto, parei. Percebi que era meu espírito, não o corpo,<br />
que queria dançar feito o Macunaíma.<br />
Fiquei imaginado como a notícia de sua morte seria dado<br />
nos noticiários. O repórter a quem caberia escrever o obituário<br />
diria que se tratava de um sujeito polêmico, mas muito benquisto<br />
pelos de sua tribo. Que falecera de causa ignorada e que não<br />
deixara viúva nem herdeiros. Com sua morte, acabaria um ciclo<br />
de especulações no país. Sem discípulos, pupilos ou epígonos, o<br />
modus vivendi e o modus operandi que lhe caracterizavam desapareceriam.<br />
O carnaval não seria mais o mesmo.<br />
Já era bem tarde, quando olhei para o céu e vi que detrás<br />
daquela escuridão, deveria haver uma estrela fazendo conjecturas<br />
e coçando a cabeça. Decerto estaria preocupado com o surto<br />
de consciências impróprias que se alastrava pelo continente.<br />
60<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 11
Todas sem autorização, feitas num fundo de quintal e com falsa<br />
autenticação. O papagaio sabia disto e por isso também tinha<br />
insônia. Mas quem na capital, com tanto contrato para assinar,<br />
daria atenção a um papagaio?<br />
Não sei se era a falta de lua, a música dos atabaques ou o<br />
conhaque, mas acontece que eu estava comovido como o diabo.<br />
Capítulo 11<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 61
Capítulo 12<br />
A família se reunira toda no apartamento de Copacabana.<br />
Até parentes de Pernambuco e da Ucrânia vieram, embora não<br />
fosse uma data redonda, dessas que, por alguma razão esotérica<br />
de numerologia, muitos privilegiam. Fazia 51 anos e era uma<br />
escritora reconhecida já há bastante tempo. Aparentemente não<br />
havia motivo para uma festa especial. Mas lá estavam todos os<br />
personagens de suas narrativas desde Perto do coração selvagem<br />
e você sabe como são estes personagens quando se encontram<br />
em algum coquetel de lançamento ou reunião social, parece que<br />
têm sempre muita coisa para falar um para o outro, como se as<br />
histórias deles já não fossem definitivas e sabidas por todos.<br />
A autora, apesar de não ser dada a este tipo de festa,<br />
parecia feliz com a surpresa organizada por seu editor e oferecia<br />
lugares para todos. Estejam em casa, repetia. Ora, todos já
habitaram antes esta casa, afinal, foram gerados em sua máquina<br />
de escrever portátil nos vários cômodos da casa. Clarice<br />
não usava um lugar fixo no escritório, circulava pela casa,<br />
datilografando na mesa da cozinha, no sofá da sala, na cama<br />
do quarto e até mesmo numa escrivaninha, que vivia quase<br />
sempre empilhada de livros. Não tinha métodos, nem disciplina;<br />
era uma intuitiva. Escrever não era uma profissão, mas um<br />
ato existencial.<br />
Como não costumava reler seus livros, jamais passara<br />
por sua cabeça que seus personagens nutrissem rivalidades,<br />
invejas, desafetos entre eles. Depois de publicá-los, julgava-os<br />
independentes e adultos para seguirem sozinhos mundo afora.<br />
Não lamentava que repetissem as mesmas inquietações e angústias,<br />
já que ela mesma as sentia. Haveria outro modo de ser<br />
que não fosse o da experiência física do pensamento? E o pensamento<br />
não era um tipo de dor mais sofisticada? Clarice não<br />
percebeu que alguns personagens sentavam-se em posições<br />
opostas, como se não quisessem se olhar de frente, em motivo<br />
de algum ressentimento. Diziam alguns críticos que os personagens<br />
de romance se sentem mais requisitados pelos alunos e<br />
professores de <strong>Letras</strong>, seus leitores mais fiéis, e que esta fama<br />
faz, às vezes, com que ajam de maneira mais prosa, olhando<br />
com superioridade os colegas de conto e com total desprezo<br />
os de crônica. O quê? Ele é protagonista de uma crônica? Que<br />
pena! Sai uma vez só no jornal e depois é esquecido. Nenhum<br />
crítico o analisa, ninguém o defende em tese universitária, não<br />
é traduzido em outras línguas.<br />
Os assessores da editora tinham preparado tudo: o bolo, os<br />
salgados, a bebida, os enfeites, os convites e os repórteres. Haveria<br />
reportagens do aniversário com direito à matéria na primeira<br />
página do segundo caderno, à citação na coluna social e a dois minutos<br />
na televisão, segundo uma rigorosa estratégia de marketing<br />
do editor, à revelia da autora. A surpresa da festa, mantida em absoluto<br />
segredo, era a presença da famosa epifania de sua obra. Em<br />
Capítulo 12<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 63
estilo prima-dona, ela aceitou participar, mas de forma reticente,<br />
não confirmando a que horas chegaria, numa nítida intenção de<br />
causar suspense. A assessora que tratou de sua ida achou a sua<br />
resposta com ares de superioridade e só não cancelou o convite,<br />
porque tinha recebido ordens do editor de negociar a qualquer<br />
preço a ida da epifania. Que aceitasse todas as exigências, fossem<br />
toalhas, água mineral, espumante, suíte em hotel com aparelho<br />
de ginástica, mas que ela comparecesse à festa. Câmaras estariam<br />
a postos para filmarem a chegada intempestiva da epifania numa<br />
festa privê, só com parentes e personagens.<br />
Segundo a crítica, a epifania faz sempre uma súbita aparição.<br />
Ela se esconde em uma situação aparentemente corriqueira<br />
e repentinamente traz à luz uma revelação, uma voz das profundezas<br />
do ser, ocasionando uma inquietação para todos. Diante<br />
desta explicação, houve um funcionário da editora que achou<br />
mais conveniente que ela não viesse à festa, pois, pela descrição,<br />
é do tipo desmancha-prazeres, não desejada em momentos<br />
alcoólicos e descontraídos. Fosse como fosse, todos deveriam<br />
estar atentos, uma vez que ninguém tinha visto a epifania antes<br />
e, portanto, não saberiam reconhecê-la. Quem sabe se, só para<br />
pregar uma peça, ela não entraria no apartamento como um<br />
nome falso, de óculos escuros, para não ser identificada?<br />
Clarice, apesar de não ser muito social nem apreciar reuniões,<br />
mostrava-se à vontade e, em uma roda pequena, discutia<br />
com muito desembaraço e satisfação o tema da morte. Como<br />
aniversariante, tinha a vantagem de que, naquele dia, ninguém<br />
iria contrariá-la e ela que escolhesse os temas mais inoportunos<br />
para uma festa que quisesse, desde que não parassem de servir<br />
o whisky. Com o efeito do álcool, deu-se a tolerância de uns personagens<br />
com outros; já havia até pares de romances diferentes<br />
dançando, rodinhas paralelas discutindo pontos de vista da narrativa<br />
e a narradora-personagem de Um sopro de vida fazendo<br />
discurso em cima de um sofá. O editor pensou se não era hora<br />
de pedir que os repórteres presentes iniciassem as entrevistas<br />
64<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 12
e a sessão de fotos, antes que todos enrolassem a língua e não<br />
pudessem responder às perguntas.<br />
Talvez já fosse tarde. Uma personagem de um conto pedia<br />
a Clarice que ela cuspisse no chão. Faz como a matriarca.<br />
Cospe no chão. Dá um arroto. Faz qualquer coisa intempestiva<br />
e mal-educada. A autora ria meio sem graça. Não foi para isto<br />
que criara os personagens. A culpa é dos escritores que dizem<br />
que eles têm vida própria e que saem pela narrativa com autonomia.<br />
Esta história de que o autor não tem controle sobre estes<br />
seres de ficção e de que dele escapolem é boa para entrevista.<br />
Faz efeito para leitor ou espectador mediano que acredita nesta<br />
balela. Ora, como o autor não tem os personagens em sua mão?<br />
É claro que há a intuição, o entregar-se à escrita, como a ondas<br />
do mar, o deixar a máquina levar a mão...Não sou uma arquiteta<br />
que planeja tudo antes da execução da obra, mas também não<br />
sou uma tonta que abre mão da razão na hora de escrever.<br />
Uma assessora, percebendo que aquele personagem tornara-se<br />
inconveniente, tentou afastá-lo da sala, levá-lo até a varanda,<br />
para que ele respirasse um pouco de ar, como se ar curasse<br />
embriaguez. Outra sugeriu que Clarice fosse para um quarto<br />
dar uma pequena entrevista a dois repórteres que já a aguardavam<br />
há horas. Educada, a autora atendeu o pedido e saiu da<br />
sala. No cômodo mais íntimo da casa, uma repórter depois de<br />
meia hora de bate-papo com Clarice, abandonou o gravador e o<br />
caderninho de notas, e desatou a fazer uma confissão para surpresa<br />
e certo desconforto da autora e de outros dois jornalistas.<br />
Ninguém percebera que a repórter, mal entrou no<br />
quarto, deparou com um cão míope, não sabia explicar como<br />
soubera que o cão era míope, nem mesmo se os veterinários<br />
diagnosticam miopia em cães, mas sentiu-se atraída por aquele<br />
animal, sendo ela míope também. Olharam-se fixamente<br />
como se não existisse mais ninguém por perto. O cão não latiu,<br />
não se aproximou. Não saberiam dizer se reagiu com afeto ou<br />
incômodo àquele olhar tão sedento de diálogo. Permaneceu<br />
Capítulo 12<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 65
simplesmente cão, de forma discreta, sem fazer alarde. Já a<br />
repórter olhava para ele como se um espelho, um espelho diferente,<br />
que revela não a imagem que põe diante de si, e, sim,<br />
a que se esconde atrás dos olhos que o miram. O cão acionou<br />
na repórter o desejo, até então contido, de pensar em si mesma,<br />
como uma identidade, uma existência singular, que pedia<br />
palavras próprias para elaborar sua autoanálise. O cão não se<br />
mexeu durante os longos cinco minutos que a repórter dedicou<br />
a mirá-lo. Todos ao redor acharam sua imobilidade estranha<br />
e esperavam que ela fosse falar sobre cães, narrar alguma<br />
história de algum cão de sua infância ou algo que o valha. Ela,<br />
no entanto, nada disse durante estes cinco minutos. De repente,<br />
segurou as mãos de Clarice entre as suas e pediu que a<br />
ouvisse. Tinha um segredo. Todos temos, consolou-a a escritora.<br />
Quem estava no quarto e a ouviu não saberia esclarecer<br />
ao certo de que tratava a sua narrativa. Fantasiosa, para uns;<br />
desesperada, para outros.<br />
Na sala, o editor olhou para o relógio e viu que já passava<br />
da meia-noite. Então comentou com sua secretária que àquela<br />
hora a epifania não viria mais e que seria melhor irem todos embora.<br />
Distraído, não reconheceu que a jovem míope que saía do<br />
quarto e que repetia sem parar a frase “Queixei-me de enredos”<br />
se parecia muito com uma das repórteres convidadas por ele.<br />
66<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 12
Capítulo 13<br />
Viera de baixo, como se diz, de uma cidade pequena,<br />
com poucas oportunidades de instrução, com colégio só até<br />
a quarta série. Então mudou-se para a casa de uns tios em<br />
outra cidade, para dar continuidade aos estudos. Era uma<br />
cidade maior, com duas bibliotecas: uma municipal e outra,<br />
estadual. E o colégio tinha um grêmio literário, em cujo periódico<br />
publicou seus primeiros textos, algo que ainda se assemelhava<br />
a redações escolares. Incentivado por professores<br />
e, tendo por parâmetro Coelho Neto e Rui Barbosa, já se imaginava<br />
um escritor, desses que usam terno e gravata, com um<br />
broche na lapela, como emblema de alguma entidade, como<br />
Rotary Club. Ali, adolescente, viu que era hora de vôos mais<br />
altos, tinha que planejar sua vida, sob o risco de não realizar<br />
a tempo seus propósitos. Se não saísse da província, a águia
morreria beija-flor. O passo seguinte seria ir para a capital,<br />
onde havia a faculdade de Direito, livrarias e bibliotecas de<br />
maior acervo, um cabedal que sua terra não oferecia.<br />
Aos vinte anos, sozinho na capital, teve que procurar<br />
emprego e morar em uma vaga de pensão. Se por um lado, as<br />
adversidades pesavam; por outro, sua história lembrava a de vários<br />
escritores em início de carreira. E ele apreciava um certo romantismo<br />
em enfrentar a solidão na metrópole, a falta de recursos,<br />
os obstáculos para a publicação do primeiro livro, a busca<br />
pelo reconhecimento. Sentia que estava no caminho certo, pois<br />
a maioria dos escritores passara pela mesma situação, mesmo<br />
na Europa e nos Estados Unidos.<br />
A imagem de sua volta à cidade natal, em carro aberto,<br />
sendo saudado pelos familiares e conterrâneos justificava as<br />
poucas horas de sono e as muitas de trabalho e leitura. Mais<br />
tarde, em sua autobiografia, iria se lembrar, nostálgico, daquele<br />
quarto pequeno e sujo da pensão, dos móveis velhos e mal conservados,<br />
das refeições feitas junto de operários, do chuveiro<br />
fraco e frio, e se olharia, no espelho de uma suíte presidencial,<br />
com orgulho por ser um vitorioso, um filho de Santa Ifigênia que<br />
subiu na vida e se tornou escritor de nomeada.<br />
Este sonho iria ressurgir sempre que se encontrasse diante<br />
dos revezes da vida e iria lhe servir de bálsamo. Sabia de antemão<br />
que muitos eram os degraus até alcançar o topo da glória.<br />
Sabia esperar, porque cria que esta espera seria recompensada,<br />
que a hora de colher os frutos de longo cultivo iria chegar. Mas<br />
o destino não tem tempo para dar ouvidos a todos, e ele pelo<br />
jeito estava no final da lista. Os anos se passaram e, apesar de<br />
alguns livros editados e de algumas menções a seu nome em<br />
suplementos literários alternativos, sua carreira parecia não ter<br />
asas. Teria tido uns duzentos leitores para seus contos, nem isto.<br />
Consolava-se dizendo que escrevia para um público seleto, daí<br />
ser pequeno. Esta ordem dos adjetivos na frase mostra como a<br />
linguagem pode ser útil a quem aprecia a mentira.<br />
68<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 13
Seu nome não se escreveu no panteão dos grandes escritores,<br />
como imaginara, e a coroa de louros com que pretendia desfilar<br />
na cidade natal era apenas uma surrada metáfora, que teimava<br />
em aparecer em seus textos. Diga-se que este era seu defeito, seu<br />
aleijão: adorava o ornamento da língua, tanto escrita quanto oral,<br />
e não se proibia de usar adornos estilísticos mesmo em seus discursos<br />
públicos, confiante de que, assim, angariaria os favores da<br />
plateia, nas agremiações lítero-esportivas que frequentava.<br />
Frustrado, recorria a latinismos e a citações, supondo que<br />
o reconhecimento não lhe adentrava a sua residência, por alguma<br />
falha retórica. Talvez não tenha se expressado bem o suficiente em<br />
seu último livro, ou tenha discursado de maneira franciscana no último<br />
sarau. Como os críticos não lhe saudavam a obra-prima da<br />
antologia de suas narrativas e não o indicaram para algum prêmio?<br />
Como professores não escolheriam seus textos para as seletas e florilégios<br />
que divulgavam entre seus alunos?<br />
Durante estes anos, escrevera para parentes dando uma<br />
versão falseada de sua vida, dizia-se assíduo das rodas literárias da<br />
capital, bem conceituado entre seus pares, e que, se não fosse pela<br />
inveja de alguns escritores medíocres e pela má formação moral e<br />
intelectual de dois ou três críticos, sua obra já teria atingido patamares<br />
nacionais. Era só questão de tempo e os bons ventos levariam<br />
notícias de sua imortalidade literária à Santa Ifigênia.<br />
Aos 65 anos, já se encontrava exausto de burilar adjetivos,<br />
de abusar de hipérbatos e anacolutos, e de não ter êxito.<br />
Nenhum prêmio, nenhum interesse de grande editora, nenhum<br />
reconhecimento de parte das instituições literárias, nenhum assédio<br />
de leitores. E por mais que distribuísse seus livros entre<br />
os amigos e vizinhos, ninguém se dirigia a ele como escritor;<br />
sempre fora tratado como técnico de contabilidade, profissão<br />
na qual se aposentou depois de quarenta anos de ofício. Temia<br />
a morte e receava que a esta altura seus conterrâneos já não<br />
acreditassem mais nele. Quem sabe se, quando se despedia nas<br />
raras vezes que visitou sua cidade, não riam dele pelas costas?<br />
Capítulo 13<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 69
A depressão parece que chegaria para roubar suas últimas<br />
forças, mas o acaso fez com que conhecesse um confrade do interior<br />
do estado que, com mais talento para as artes do golpe do<br />
que para a literatura, lhe fez uma tentadora proposta, logo que<br />
lhe percebeu os desejos e fraquezas. Que tal concorrer a Academia<br />
do Pastiche, recém-fundada em sua cidade e da qual era<br />
diretor cultural? Ora, naquela idade e sem perspectiva alguma,<br />
aceitou, ainda que a cidade fosse insignificante e o nome da academia<br />
um tanto excêntrico. Argumentos sobraram ao tal colega<br />
de armas para convencê-lo do bom negócio que fazia, pagando a<br />
joia e a primeira mensalidade para ter direito a concorrer à cadeira<br />
de imortal e ser membro de tão distinta e ilibada instituição.<br />
Um mês após ter feito os devidos depósitos na conta da<br />
suposta academia e de ter enviado um exemplar de cada uma de<br />
suas obras, veio-lhe o diploma de membro, eleito por unanimidade.<br />
E era com regozijo e júbilo que o presidente o convidava para<br />
a posse de sua cadeira nº 28, dali a dois meses, tempo suficiente<br />
para que ele preparasse um discurso de uma hora de duração.<br />
Santa Ifigênia finalmente terá um filho ilustre e adjetivos<br />
certamente não faltarão ao dia da posse.<br />
70<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 13
Capítulo 14<br />
Em um bar no Rocio, provavelmente na década de vinte,<br />
quatro amigos costumavam se encontrar, com o propósito de<br />
discutir literatura e beber um bom vinho.<br />
Ricardo — Fernando, estou preocupado com você. Este já<br />
é o quinto copo e estamos aqui apenas há uma hora. Há alguma<br />
coisa te inquietando? Diga-me lá.<br />
Alberto — Deve ser a proximidade do aniversário. Sempre<br />
nesta época do ano ele fica nostálgico. Acho que tem medo de<br />
envelhecer, de ser tornar o velho do Restelo deste bar.<br />
Fernando — Não se trata disto. De fato, não gosto de<br />
aniversários. Aliás já não faço aniversários há muito tempo. No<br />
tempo em que se comemoravam meus aniversários, era feliz...<br />
Alberto — Não disse que o gajo anda saudoso? Quem<br />
sabe alguma paixão secreta?
Fernando — Qual nada! Não disponho de tempo para estas<br />
coisas mundanas. Tenho uma obra a ser feita e que me exige<br />
todas as horas doa dia.<br />
Ricardo — Com exceção das que gasta no bar e que não<br />
são poucas.<br />
Fernando — Ora, você e suas censuras. Parece até que<br />
não aprecia um bom Porto. A propósito, um brinde.<br />
Ricardo — A que brindamos?<br />
Alberto — À Natureza. Não existe nada além da Natureza.<br />
Álvaro — Diz isto para o portuga dono da taberna. Diz que<br />
todas as despesas ficam debitadas na conta da natureza e vê se<br />
ele não lhe arremessa uma cadeira.<br />
Alberto — Você é um insensível. Imagino o tipo de poema<br />
que anda a fazer. Decerto só se refere a máquinas, arranha-<br />
-céus, cinemas...quando todo mundo sabe que a Natureza é o<br />
único tema.<br />
Álvaro — Você é um obcecado. Precisa viajar a Paris, ser<br />
mais cosmopolita. Existe um mundo além do rio que passa em<br />
sua aldeia...<br />
Alberto — Um rio de águas sujas pelo despejo das indústrias<br />
químicas, um rio de água envenenada. Vamos morrer de<br />
excesso de civilização. Planta será só uma palavra na memória<br />
do poema.<br />
Ricardo — Não discutem, por favor. Agora que o Alberto<br />
tem razão isto lá tem. O que são as geringonças modernas diante<br />
da Antiguidade? Todos os temas fundamentais do homem estão<br />
lá na Grécia e em Roma. Os temas eternos, os que merecem<br />
nossa atenção...<br />
Fernando — Ora, do modo como expõem suas ideias, parece<br />
que um poema se aprecia só pela temática. E a técnica?<br />
Álvaro — Técnica? Tenho técnica só dentro da técnica.<br />
Fora disto, queiram-me útil, tributável...casadoiro...<br />
Ricardo — Este pelo jeito já se excedeu também no álcool.<br />
Não diz coisa com coisa.<br />
72<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 14
Álvaro — Não é você quem repete que todas as coisas já<br />
foram ditas?<br />
Alberto — Tudo o que homem faz é uma forma depreciada<br />
do que já existe na Natureza, logo é possível que tudo já<br />
tenha sido dito. E melhor dito.<br />
Fernando — Quer dizer que estamos perdendo tempo<br />
sendo poetas nesta época? Seria melhor conseguirmos outras<br />
ocupações?<br />
Ricardo — Pelo menos alguma que pagasse suas despesas,<br />
incluindo as dos bares, é claro.<br />
Álvaro — Um brinde à liberdade! Um brinde à liberdade<br />
de expressão!<br />
Ricardo — E já que nos lembraram da liberdade, abaixo<br />
os versos livres!<br />
Alberto — Você é muito ranzinza. Que mal há nos versos<br />
livres? As flores, os rios, as pedras não têm medida e nem por<br />
isto são menos belas que os versos que faz.<br />
Fernando — Lá vem você com a mesma argumentação.<br />
Ninguém suporta mais ouvir falar em planta e pedra. Vá ao dicionário,<br />
há outras palavras.<br />
Alberto — Não se faça de tolo. Uso estas palavras para<br />
me fazer entender. Minhas animizações ou personificações facilitam<br />
a compreensão do leitor. Para um poeta de seu porte,<br />
você está sendo literal demais. Garçom, mais um copo ali para<br />
o gajo.<br />
Álvaro — Olhem aqui. Tenho quatro convites para um baile<br />
de máscaras. Que tal irmos juntos. Será no próximo sábado<br />
em Cascais. Cada um tem que ir com uma identidade falsa, além<br />
da máscara. À meia-noite haverá uma dramatização e todos terão<br />
que representar um personagem da história da literatura.<br />
Isto quer dizer que até lá temos que memorizar algumas passagens<br />
de uma obra.<br />
Alberto — Fernando, você pode fazer o Dom Sebastião. Ricardo<br />
você faz o Virgílio; Álvaro diz trechos do Whitmam ...<br />
Capítulo 14<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 73
Álvaro — E você? Vai ser o diretor de cena? Não é possível.<br />
Todos têm que fazer uma participação.<br />
Alberto — Tive uma ideia. Eu imito um pouco vocês três.<br />
Ricardo — Só ser for sem ironia, sem sarcasmo. Nada<br />
de paródias.<br />
Do fundo do bar, vem um garçom com um bolo para eles.<br />
No relógio da parede são dez minutos do dia 13 de junho. Já é<br />
aniversário de Fernando. O gerente e outros garçons se juntam<br />
para cantar o parabéns para aquele poeta, a esta altura um pouco<br />
embriagado, sentado sozinho à mesa próxima da janela.<br />
74<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 14
Capítulo 15<br />
Eustárquio era conhecido e respeitado para além dos muros<br />
da universidade. Há duas décadas escrevia uma crítica semanal<br />
no maior jornal do estado, seus livros de teoria eram referência<br />
obrigatória em qualquer concurso e tinham que ser citados<br />
em toda dissertação e tese de pós-graduação. Unanimidade indiscutível,<br />
independente de fazer jus a ela ou não. Circunstâncias<br />
políticas e acadêmicas fizeram dele o todo-poderoso catedrático<br />
da universidade oficial. Os outros professores o consultavam em<br />
busca de um aval, quando iam publicar algum ensaio crítico. Sem<br />
a sua aprovação, desistiam e o livro voltava para a gaveta. Os alunos<br />
o temiam, embora há muito ele já não lecionasse. Seu nome,<br />
no entanto, sempre constava da lista do início do ano nos cursos<br />
oferecidos. E habitualmente, um mês depois de iniciadas as aulas,<br />
vinha uma notícia de que o catedrático viajara, fora convidado de
última hora para um congresso em Paris, para dar um curso de<br />
verão em Londres ou para organizar seminários de literatura comparada<br />
em Salamanca. O fato é que há mais de uma década não<br />
ministra aulas na universidade, da qual permanece como catedrático<br />
e figura de maior proa.<br />
Adquiriu fama de pessoa reservada, o que lhe empresta<br />
mais dignidade, pois é visto como um estudioso contumaz, que<br />
não se permite perder tempo com reuniões sociais, festinhas de<br />
departamento, coquetéis e noites de autógrafos. Sua secretária<br />
diz sempre que ele viajou ou que está em reunião, e que não<br />
pode atender, mas que terá prazer em ler a solicitação do aluno<br />
ou do professor, à qual responderá no mais breve tempo possível.<br />
Fato é também que as respostas vêm e, creio eu, satisfazem<br />
os que as solicitam. Crítico rígido, ensaísta exigente, professor<br />
escrupuloso, mas cidadão amável, que trata tanto o corpo docente<br />
quanto o discente com a mesma atenção e presteza, apesar<br />
da falta de convívio direto.<br />
Os alunos não lhe negam elogios e diria até que se sentem<br />
orgulhosos de pertencerem à instituição dirigida por intelectual<br />
de tamanha envergadura. No entanto, toda vez que, no<br />
início do ano letivo, seu curso é suspenso, dá-se um alivio por<br />
parte dos alunos, que, embora inscritos, já aguardavam e desejavam<br />
o cancelamento, por temerem a opinião do catedrático, e<br />
a exposição de suas ignorâncias à sapiência do crítico maior. Os<br />
boatos, que fazem parte da tradição do estabelecimento, dizem<br />
que só 20% dos alunos são aprovados em seus cursos e que muitos<br />
abandonam, envergonhados de sua pequena leitura e inteligência,<br />
visíveis durante as aulas do mestre. Há casos de alunos<br />
que trancaram a matrícula e jamais retornaram à universidade,<br />
tão desapontados com eles mesmos ao fim do curso.<br />
Boato ou não, o melhor era ler seus livros, citá-los, mas<br />
manter uma saudável distância de suas aulas até do contato direto<br />
com o catedrático. Em que pese a sua fama de educado e<br />
cordial, não se sabe de aluno, e até mesmo de professor, que<br />
76<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 15
ouse bater à porta de seu gabinete. Só sua secretária é vista<br />
entrando e saindo, sempre com alguma pasta na mão. Ela é a<br />
única intermediária entre o saber e o cotidiano burocrático da<br />
universidade. Discreta, não herda a autoridade de seu superior.<br />
Ao contrário, prefere também o contato apenas através dos pareceres<br />
assinados por Eustárquio. Fora do expediente, também<br />
não é vista nas instalações do campus. Pouco se sabe dela e, por<br />
razões óbvias, ninguém pensa em aborrecê-la.<br />
O nome do catedrático se espalha em jornais, revistas, monografias,<br />
teses, cartazes. A onipresença das nove letras contrasta<br />
com sua ausência física. Seu nome é repetido inúmeras vezes<br />
diariamente dentro daqueles muros, mas ele jamais é visto, a<br />
não ser em raras fotografias dependuradas em algumas salas da<br />
instituição, como na secretaria, na biblioteca, na sala de leitura,<br />
no saguão de entrada. Parece um Deus, que está em toda parte,<br />
mencionado em toda aula de literatura, obrigatório em toda<br />
bibliografia acadêmica, e intangível. Sem dúvida, esta invisibilidade<br />
serve para engrandecer o mito, impor mais respeito e temor.<br />
Quem não gostaria de dizer que foi orientado pessoalmente pelo<br />
mestre ou que assise às suas aulas semanalmente? Mas quem<br />
também não teria receio de que isto acontecesse?<br />
Suas críticas no jornal já determinaram o fim de algumas<br />
carreiras literárias tidas como promissoras. Nenhum editor se interessa<br />
em reeditar o escritor mal visto pelo catedrático, por ter<br />
certeza do prejuízo. O público leitor segue fielmente suas orientações<br />
e abandona qualquer escritor que for depreciado em sua<br />
página. Dizem até que há uma expectativa sádica por parte de leitores:<br />
anseiam por seus comentários críticos, como se assistissem<br />
a um embate na arena entre os animais e o cristão. Dizem que há<br />
apostas sobre quem será o próximo poeta analisado ou o prosador<br />
que terá nota zero. Apesar de ser texto de jornal, o catedrático<br />
mantém o hábito escolar de atribuir notas, que normalmente<br />
são baixas. Um três, por exemplo, é recebido com satisfação pelo<br />
autor, pois não impede a edição de outra obra sua, apenas deixa<br />
Capítulo 15<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 77
o editor com certa cautela. Já o zero é o fim da vida literária, a certeza<br />
da recusa por parte de todas as editoras, as portas fechadas<br />
dos suplementos literários, o abandono dos demais escritores.<br />
Em uma só palavra, o esquecimento.<br />
Embora fosse curioso que ninguém visse chegar ou sair,<br />
ele com frequência se encontrava em seu gabinete despachando<br />
com a secretária, lendo pilhas de livros, escrevendo artigos,<br />
orientando teses, coordenando reuniões, atendendo a telefones<br />
de autoridades, etc. Assim, era consenso que a personalidade<br />
mais famosa da instituição era também a mais dedicada,<br />
pois era a que chegava mais cedo e que saía mais tarde. Certa<br />
vez um professor, ressentido com uma opinião desfavorável a<br />
um texto que seria publicado na revista do departamento de<br />
Línguas Latinas, quis investigar a vida do catedrático. Tentou subornar<br />
o vigia que, com medo, o denunciou. Graças ao espírito<br />
corporativista, o caso foi abafado e o professor permaneceu no<br />
exercício de suas funções, com o juramento de que jamais faria<br />
de novo qualquer ação contrária ao Dr. Eustárquio. O medo de<br />
ser despedido por justa causa silenciou o professor, que, para<br />
se vingar do vigia, escreveu conto sobre a delação e, zeloso, o<br />
guardou na gaveta.<br />
Outra vez, um aluno, cujo projeto de tese não fora aceito,<br />
pensou em riscar-lhe o carro, mas para tanto era preciso saber<br />
qual era o seu carro, o que, obviamente, não conseguiu. Então,<br />
pôs-se a esperá-lo, próximo a seu gabinete. Sem êxito, pensou em<br />
sequestrar a sua secretaria, afinal só ela poderia levá-lo ao paradeiro<br />
do catedrático. Esta, que só por fingimento fazia questão de<br />
passar despercebida, adivinhou-lhe as intenções e avisou a seus<br />
guarda-costas, que trabalhavam disfarçados de contínuos e serventes.<br />
O aluno foi detido e, por pouco, não teve que responder a<br />
uma acusação de assédio sexual. Como não saberia explicar o que<br />
fazia à noite na faculdade nem por que se atirou subitamente na<br />
secretária, quando ela saía de sua sala, pediu espontaneamente<br />
cancelamento de matrícula e se mudou de cidade.<br />
78<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 15
Certamente houve outras tentativas de aproximação do<br />
catedrático, que não foram registradas ou foram propositadamente<br />
esquecidas. Ou quem sabe, as duas relatadas, não aconteceram<br />
e serviram só como exemplo para intimidar quem, por<br />
ventura, ousasse, desrespeitar o acordo de se manter em paz o<br />
catedrático. Neste caso, o boato é útil à instituição, que se utiliza<br />
dele oficiosamente. Para alunos, por serem jovens e inexperientes,<br />
havia quase uma maldição sobre quem pensasse em ter um<br />
contato direto com Dr. Eustárquio e, quando em sala de aula,<br />
algum professor dizia, para se vangloriar, que fora seu discípulo<br />
ou orientando, eles, mesmo não acreditando em tais palavras,<br />
mostravam admiração pelo privilégio do mestre.<br />
Gerações se formavam na universidade sem ouvirem o<br />
discurso tão esperado do eminente crítico na noite de formatura.<br />
Mas havia sempre um substituto que lia um texto - segundo<br />
era sempre dito - elaborado pelo diretor especialmente para<br />
aquela turma. Todos se sentiam honrados e aplaudiam de pé o<br />
orador interino, que discursava, tendo por trás o retrato atualizado<br />
de Dr. Eustárquio. Se algum observador dissesse que a cena<br />
lembrava um número de marionetes não estaria sendo inexato.<br />
Os familiares dos formandos não indagavam por sua ausência.<br />
Creio que queriam ir logo para o bufê e esquecer os discursos,<br />
sempre parnasianos e enfadonhos, dos diversos oradores.<br />
Os pais talvez quisessem pôr logo as mãos no certificado<br />
de conclusão do curso universitário de seus filhos, com medo<br />
de que algum diretor autoritário, na última hora, voltasse atrás<br />
e alegasse uma nota baixa, um mau rendimento em alguma<br />
matéria e suspendesse a formatura e a entrega do diploma na<br />
colação de grau. Tal era a fama das atitudes arbitrárias de Eustárquio,<br />
que qualquer divagação, por mais inverossímil, seria<br />
aceita. A festa não só era pela conclusão de um ciclo de estudos<br />
e do direito de exercer uma profissão, era também a festa de<br />
despedida de um período de medo e intranquilidade. A sombra<br />
do maior ensaísta de literatura do país deixava de pesar. Que<br />
Capítulo 15<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 79
fossem dar suas aulas longe dali, que fossem escrever seus textos<br />
sem o temor de sua opinião!<br />
Um dia um funcionário antigo, fazendo os cálculos para se<br />
certificar de que já possuía o tempo de serviço necessário para se<br />
aposentar, comentou com um colega um fato estranho. Disse-lhe<br />
que, quando chegara à universidade, soubera que o Dr.Eustárquio<br />
era o diretor há umas três décadas e, embora nada entendesse de<br />
<strong>Letras</strong>, percebeu, durante estes 35 anos, como ele era admirado e<br />
temido de todos por seu saber literário. Sem ser de muita instrução,<br />
sabia pelo menos as quatro operações e somando o seu tempo<br />
de serviço, o tempo da direção do Dr. Eustárquio e o tempo<br />
anterior à direção, ele teria talvez uns 80 anos de serviço público<br />
e mais de 100 de idade. O outro funcionário, servente como ele,<br />
pouco dado a conjecturas, lhe disse para esquecer isto, que ele<br />
deveria estar enganado e que, fosse lá o que fosse, o melhor seria<br />
não se intrometer com estes detalhes de tempo. As autoridades<br />
são diferentes, doutores fazem outro tipo de cálculo e não seria<br />
um servente que iria tirar o diretor do cargo por já estar idoso.<br />
Aliás, não era educado mencionar a idade dos outros, especialmente<br />
a de superiores. O outro servente, diante de tantos conselhos,<br />
cedeu e rasgou a folha em que fazia as contas. Concluiu que<br />
seria melhor mesmo se aposentar e o quanto antes.<br />
Não coube a este servente nem a outro qualquer funcionário,<br />
mais graduado, ler o dossiê de cinco volumes que jaz em um<br />
arquivo da polícia federal. Lê-lo na íntegra de suas 3478 páginas<br />
seria maçante e perda de tempo. Caso houvesse uma edição resumida<br />
deste dossiê, saberíamos que uma investigação foi feita<br />
há duas décadas sobre a figura do Dr. Eustáquio, mas não por motivos<br />
políticos. Nada havia em suas fichas que justificassem um<br />
veto por parte de alguma autoridade civil ou militar. Era um cidadão<br />
merecedor de respeito e nada constava que o desabonasse.<br />
Um diretor de uma universidade rival, situada em outro<br />
estado, com parentesco na câmara e em departamentos policiais,<br />
organizou à distância um levantamento da vida do ilustre<br />
80<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 15
ensaísta. As surpresas não foram poucas, sem nos referirmos<br />
às contradições: o doutor já teria morrido há 40 anos ou, para<br />
outros, nunca teria existido; a secretária, que também era substituída<br />
por outra com semelhanças físicas, seria a atriz principal<br />
da peça, cuja excelência do desempenho se dava na razão direta<br />
de sua discrição; haveria uma equipe de pelo menos dez professores<br />
exercendo todas as atividades atribuídas ao Dr. Eustárquio;<br />
e seus retratos envelhecidos eram truques de um fotógrafo<br />
cúmplice e bem pago.<br />
A autoridade competente, depois de ler outros relatórios<br />
que comprovavam o bom funcionamento da universidade,<br />
mandou que colocassem o dossiê no arquivo.<br />
Capítulo 15<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 81
Capítulo 16<br />
Era um prédio encardido do subúrbio, sem elevador. Pouca<br />
luz no corredor e paredes pichadas. Fazia calor a ponto da camisa<br />
ensopar. Passou o lenço na testa e no rosto para melhorar a impressão.<br />
Mas não fazia diferença. Suava e tinha um olhar de aflição que<br />
não podia disfarçar. Nem com maquilagem. Aflição de nascença,<br />
diziam os parentes próximos, na falta de outra explicação. Onde é<br />
que já se viu criança com angústia? Era como um sinal, cicatriz. Pior.<br />
No primário, a mãe era sempre chamada. Aquela perplexidade no<br />
olhar não era dificuldade de aprendizagem. Pelo contrário, era bom<br />
aluno. As professoras não entendiam. “Que menino estranho!”, diziam<br />
na ausência da mãe. Cresceu aflito, como um manco cresce.<br />
E a vizinhança o reconhecia na rua ou das janelas: “Lá vai o aflito!”<br />
Parou no segundo andar para uma pausa. Três lances de<br />
escadas e pouca ventilação. No subúrbio é assim: a prefeitura dá
licença para qualquer obra. O arquiteto não vai morar lá mesmo.<br />
Nem a mãe dele. Nem a mãe do funcionário que aprovou a planta.<br />
Nem a mãe do prefeito. O ar pesava. Tirou do bolso um papel<br />
rasgado para conferir mais uma vez o endereço: 308. Devia ser<br />
de fundos. Melhor que fosse de fundos. Tinha sujado o braço no<br />
corrimão do outro andar. Tentou limpar um pouco com o lenço<br />
já suado. Dane-se! É tudo só vida encardida.<br />
Bateu à porta com certa timidez. Talvez não fosse esse o<br />
apartamento. Pedro lhe dera o número errado. Atendeu uma<br />
mulher de uns trinta e cinco anos, de roupão azul, como se fosse<br />
uma dona de casa. Ele pigarreou sem graça.<br />
— É aqui que mora Paulete?<br />
— Sou eu mesma, disse, abrindo mais a porta para que<br />
ele entrasse.<br />
— Um amigo meu me recomendou. O Augusto. Não sei se<br />
lembra. Um alto, moreno...um bigode grande...<br />
— Sei, sei...pode ficar à vontade. O quarto é o primeiro à<br />
esquerda. Pode entrar, que eu vou só desligar a panela no fogão.<br />
Ele abriu devagar a porta, como se fosse encontrar algo<br />
de espantoso no quarto. Mas não. Uma cama, um armário,<br />
duas cadeiras, um pequeno espelho, um ventilador portátil e<br />
uma mesinha com um jarro de água e dois copos. Os olhos<br />
conferiram tudo uma segunda vez. Era isto, só isto. Por que<br />
diabos o amigo lhe indicara aquela mulher? Talvez fosse melhor<br />
ir embora antes que...Havia sempre um “antes que” na<br />
vida, a questão era saber identificá-lo. Fosse ele profeta, teria<br />
descido em outro ponto, entrado num bar, tomado uma cerveja,<br />
depois outra, e esquecido o que estava fazendo ali. Mania<br />
de ir atrás do equívoco, do irremediável.<br />
Dois minutos depois ela entrou, enxugando as mãos. Claro<br />
que Paulete era um codinome. O nome devia ser Paula. É comum<br />
este disfarce óbvio ou, então, é nome de fotonovela. Não, Paulete<br />
veio do cinema. Ela fora muito ao cinema, bibliotecas, teatros. Por<br />
isso Augusto a recomendara como especial. Mas ele jamais saberia<br />
Capítulo 16<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 83
disto. Ela falava coisas triviais, como qualquer dona de casa: cozinha,<br />
crianças, compras. Este era seu personagem. Não parecia interpretar,<br />
a não ser pelo fato de enxugar as mãos obsessivamente,<br />
como se repetisse um gesto de outra pessoa.<br />
Tirou a roupa e enfiou o membro dele na boca. Agiu<br />
profissionalmente, fingindo prazer, até que pressentiu que ele<br />
ia gozar. Então pediu para ele esperar. Olhou-o fundo. Parecia<br />
resgatar imagens do passado. Choro de criança. Choro e grito<br />
de criança. E ele parado, pensando que ela era doida. Tudo não<br />
passara de uma armadilha feita pelo amigo: levá-lo à cama com<br />
uma doente das ideias. Não.<br />
Ela recordava algo e chorava baixinho, de forma quase<br />
imperceptível. Então ele recomeçou os movimentos com mais<br />
força, preparando-se para o orgasmo. A mulher olhava para o<br />
teto e dizia: “Me chame de Medeia! Me chame de Medeia!”<br />
Depois de um mês, ele retornou ao prédio encardido. E<br />
foram para a cama outras vezes, sem muitas palavras. Não sabia<br />
por que voltava. Já ela não parecia surpresa. Esperava-o com<br />
um peixe, depois que soube ser este seu prato preferido. Ela<br />
preparava a refeição, adivinhando a sua vinda. Depois iam para<br />
o quarto e faziam sexo. Até que um dia quebraram o estrado<br />
da cama. Ele ficou sem jeito e deixou mais dinheiro do que o<br />
habitual. Já ela nem mandou consertar o estrado. Esta história<br />
de Medeia o inquietava. Ela não tinha leitura. De onde tirou o<br />
nome? Paulete vá lá. Serve pra puta.<br />
Em pouco tempo, sua aflição foi aumentando. E um clínico<br />
geral a quem recorrera não era a pessoa indicada para descobrir<br />
a causa. Insônia ou pesadelo. Perda de apetite e mal-estar.<br />
Só sabia que quando saía daquele apartamento doía-se mais. E<br />
voltava. E voltava. Ao prédio, ao distante bairro, às paredes descascadas.<br />
Com o peito cada vez mais estalado.<br />
Uma tarde passou a escutar uma música que se repetia,<br />
quando já estava perto do apartamento dela. Esta música obsessiva<br />
subia os andares mais veloz do que ele. Saltando de três em<br />
84 Marcus Vinicius Quiroga Capítulo 16
três, entrou no apartamento na sua frente e se espalhou pelos<br />
cômodos. Quando ele entrou depois, a mulher já estava à porta,<br />
à espera. Ele exausto, ofegante. Não havia mais como voltar<br />
atrás. A dor é um caminho sem volta. Parou por um momento, em<br />
seguida beijou-a, como se fosse mulher aguardando marido do<br />
serviço diário. Entrou. Ficou andando de um lado para outro, com<br />
cerimônia. Esta era também a primeira vez que estivera ali. Não<br />
reconheceu os quadros baratos na parede, o sofá rasgado, o aparelho<br />
de som no canto, os poucos discos, a planta quase murcha<br />
num vasinho. Não já estivera naquela sala? Seu pai tinha razão.<br />
Este menino com este olhar...deve ter saído a sua família. Vá pro<br />
quintal. Vá tomar sol!<br />
O coração batia mais descompassado. Tudo pelo anonimato.<br />
Tudo por andar nas ruas e não ser reconhecido por ninguém.<br />
Ser um estranho para a própria família, parentes, amigos,<br />
conhecidos, vizinhos... Agir como se invisível. Sem ter o aborrecimento<br />
de cumprimentar, fazer perguntas, responder... Nada<br />
de explicações. O mundo carecia de lógica e não cabia a ele naquele<br />
quarto de subúrbio dar sentido às coisas, nomear seres,<br />
justificar os acontecimentos. Só uma mulher a sua frente, de<br />
roupão azul e cabelo preso. Nenhuma perspectiva de felicidade.<br />
Foram para o colchão e treparam. Suaram e recomeçaram.<br />
E foram muitos os verbos praticados, quase mudos. Ela parecia<br />
satisfeita, mas só gozava se a chamassem de Medeia. Um<br />
dia, quando ele esqueceu, ela se aborreceu.<br />
— Egoísta! Só pensa em você. Também quero gozar. Se<br />
fizer de novo, me vingo...<br />
— Desculpe, Paulete, foi sem querer.<br />
Era falso falar Paulete. Naquele dia, ele se lembrou e<br />
berrou Medeia várias vezes até fazê-la cair numa gargalhada.<br />
Quando terminaram, fez questão que tomassem banho juntos<br />
no chuveiro apertado.<br />
Vestidos no quarto, ele sacou da arma. Um pequeno revólver<br />
usado. E disparou. A bala acertou o peito. Os olhos de<br />
Capítulo 16<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 85
espanto dela. Parecia que naquele último instante a sua aflição<br />
passara para ela. E se congelara. Iria para a sepultura com este<br />
olhar, intrigando os poucos que foram ao cemitério. Caiu lentamente<br />
sobre a cama desfeita, como se não quisesse fazer barulho<br />
e chamar a atenção dos vizinhos. Ofegava mais e mais. A<br />
sua angústia, no entanto, parecia que desaparecia. Embrulhou o<br />
corpo da mulher no lençol. Não podia deixá-la insepulta. Abriu<br />
o armário e começou a jogar todas as roupas sobre a morta,<br />
até formar uma pilha. Guardou o revólver no bolso secreto do<br />
paletó. Sentou-se numa cadeira por alguns minutos. O corpo ali<br />
tolamente escondido. Só a arma fora dele. Só a mão fora dele.<br />
A história ela a escrevera há muito tempo. Só o lenço tirando as<br />
impressões digitais da casa era dele. A morte era dela. Exclusivamente<br />
dela. Escrita com lentidão diária, gota a gota.<br />
Trancou a porta, desceu com passos normais a escada.<br />
Saiu do prédio, olhou para um lado, para o outro. Agora tinha<br />
uma certeza. Agora, sim.<br />
86<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 16
Capítulo 17<br />
Conseguira a arma com silencioso, como planejara.<br />
Agora era só esperar. Tinha agido com calma até o momento.<br />
Investigara os hábitos de Pedro durante três meses: horários,<br />
trajetos, lugares que frequentava. Não que ele fosse<br />
um sujeito metódico, mas obedecia a uma rotina por força da<br />
profissão e da família. Portanto, não era difícil prever onde<br />
estaria, por exemplo, às terças-feiras de manhã. Era só conferir<br />
nos apontamentos. Saía de casa às 6.30 h, chegava à<br />
repartição do Conselho Estadual de Arte, antes das sete, e lá<br />
permanecia até as 12 h. Almoçava com algum colega em um<br />
restaurante perto. E às 14 h já se encontrava na faculdade,<br />
dando aula. Merecia uma promoção por conduta exemplar<br />
como funcionário público. Mas para Caio merecia só uma<br />
bala, na testa, e com silenciador.
Estudou as opções: a rua, o prédio do Conselho ou a faculdade.<br />
Nenhuma era propícia para um assassinato discreto.<br />
Além de trafegar por ruas movimentadas, Pedro trabalhava no<br />
centro da cidade e em um bairro próximo, também de bastante<br />
movimento. Em qualquer lugar haveria testemunhas e a fuga<br />
seria difícil. Tinha que encontrá-lo em recinto fechado e rezar<br />
para que não houvesse ninguém por perto. Logo a faculdade foi<br />
a opção escolhida. No horário de saída, na sala de aula, depois<br />
dos alunos terem ido embora ou em um corredor...<br />
Caio fizera simulações, fora a seus locais de trabalho e<br />
andara por lá sem levantar suspeita. Sabia que seu rosto não<br />
poderia ficar gravado na memória de um porteiro, um servente<br />
ou de um funcionário mais atento. Depois de visitar algumas<br />
vezes a faculdade e a repartição pública, ficara dois meses sem<br />
aparecer, tempo que julgara suficiente para ser esquecido, caso<br />
alguém tenha reparado nele em alguma ocasião.<br />
Sabia que precisava ter autocontrole. Talvez não fosse<br />
oportuno fazer o disparo na primeira tentativa, talvez só na<br />
quarta ou quinta. Tinha que esperar. Engenheiros têm fama de<br />
bons planejadores. E ali estava ele diante da planta baixa de um<br />
assassinato. Só que não dispunha de mestre de obras, nem de<br />
operários a seu serviço. A tarefa era só sua, cabiam a ele o planejamento,<br />
a supervisão e a execução. Pensou que planejamento<br />
não fosse uma palavra que desse conta do que fizera. Lembrou-<br />
-se de outra: estratégia. Coisa de militar e de polícia e ele não<br />
tinha experiência nem como um, nem como outro. Aliás polícia<br />
se tornara a palavra mais desagradável, pois todas as suas ações<br />
tinham como motivação não ser surpreendido na hora do tiro,<br />
nem depois descoberto pela investigação.<br />
Nunca pensara tanto nesta palavra. Primeiro com medo,<br />
em seguida com cuidado, finalmente com determinação para enfrentá-la.<br />
Não em tiroteio, mas nas ações de inteligência, como<br />
os policiais gostam de dizer hoje em dia. Agira como um detetive<br />
particular, levantando a vida de Pedro. Ensaiara os passos, os<br />
88<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 17
gestos e procedimentos necessários para o instante fatal, feito<br />
um ator profissional. Chegara até a pensar uma vez que os dois<br />
anos no teatro universitário do curso de engenharia tiveram serventia.<br />
Sentira mesmo prazer em se passar por aluno, entrar na<br />
faculdade com roupas mais modernas, fichário e livros na mão.<br />
Nesta instituição estudavam muitos alunos, logo qualquer um<br />
entraria lá sem ser notado. Já no Conselho era diferente. Havia<br />
poucos funcionários e o público que frequentava aquele andar<br />
era pequeno. Se fosse lá uma segunda vez, acabaria sendo reconhecido.<br />
Daí ter optado pela faculdade. Lá, fantasiou, poderiam<br />
atribuir o tiro a um aluno reprovado ou a outro professor que<br />
desejasse a sua chefia de departamento.<br />
Maldita hora em que Pedro aceitara o convite para fazer<br />
parte do júri de um concurso de contos para autores iniciantes. Se<br />
ele tivesse restringido a sua participação a ler os livros, dar notas,<br />
comparecer à festa da entrega de prêmios, nada disso aconteceria.<br />
Mas o acaso quis que ele encontrasse no metrô com uma jovem<br />
sentada lendo o regulamento do concurso. Com dez minutos<br />
de conversa, ficou sabendo que ela era escritora ainda não publicada<br />
e que tinha intenção de inscrever um livro neste concurso. E<br />
com o pretexto de lhe enviar o regulamento de outros concursos,<br />
conseguiu-lhe o e-mail. De e-mail em e-mail, acabou marcando<br />
um encontro, com a intenção de ter um caso com ela.<br />
A princípio se fez passar por conselheiro literário, exibiu-lhe<br />
os títulos de professor universitário, membro do Conselho Estadual<br />
de Arte, sócio de vários entidades na área de cinema e teatro, redator<br />
de uma revista...E ela, do outro, em seus vinte e cinco anos,<br />
era só uma estudante que queria ser um dia uma escritora famosa<br />
dessas que fazem artigos para revistas femininas e dão palestras<br />
por todo o país. Os dois não esconderam seus relacionamentos: ele<br />
tinha mulher e três filhos; e ela, um namorado. Não tinham nos<br />
primeiros encontros razão para esconder coisa alguma: ela, por inocência<br />
ou interesse, não o julgava um sedutor, mas um pai; e ele,<br />
por achar que convinha ao personagem paternal que representava.<br />
Capítulo 17<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 89
Num café de uma livraria no centro, ele jogou o trunfo na<br />
mesa. Confessou que fazia parte do júri do concurso em que ela<br />
inscrevera o livro de contos. Disse que não era ético o que fazia,<br />
mas que, por ética também, não poderia deixar de lhe fazer tal<br />
revelação. Este jogo de palavras, os gestos medidos, a falsa crise<br />
de consciência, tudo impressionou aqueles vinte e cinco anos. Pedro<br />
foi além da simples confissão, deu ao concurso uma dimensão<br />
que verdadeiramente não tinha, disse que era o segundo prêmio<br />
mais respeitado do país e que já tinha aberto as portas para vários<br />
autores iniciantes. Exagerou na cobertura que a mídia dedicava<br />
ao concurso, falou em fotos, reportagens e, quem sabe, televisão.<br />
Acentuou a responsabilidade do júri, o trabalho com a leitura de<br />
350 originais, a lisura necessária, o rigor dos critérios.<br />
Ela saiu do café satisfeita de ter conhecido alguém com tantos<br />
méritos intelectuais e profissionais e que, por sorte do destino,<br />
era o seu jurado. O trunfo funcionara. Pedro conseguira passar<br />
a imagem de intelectual competente, professor admirado e<br />
pessoa influente. Dali a uma semana, quando se viram novamente,<br />
o texto do homem atormentado entre o dever de ser imparcial<br />
e o desejo de ajudar uma jovem talentosa por quem se afeiçoara<br />
já estava pronto. E uma semana também tinha sido tempo suficiente<br />
para que a vaidade e a ambição minassem as ideias da<br />
jovem, que enxergou em Pedro a oportunidade do destino lhe dar<br />
uma mãozinha, em troca, talvez de outros favores. A fantasia do<br />
estrelado, as páginas do jornal, o orgulho da família, os parabéns<br />
da vizinhança, tudo justificava a traição e a conquista do prêmio.<br />
O desempenho do jurado, este, sim foi digno de prêmio.<br />
Depois de uma hora de papo no bar, foram direto para o motel.<br />
É claro que ela falou que ele a atraia, que apreciava homens que<br />
são pais, que se portam como provedores e conselheiros e seguiu<br />
adiante em seu polissíndeto. Neste dia iniciaram um caso<br />
que durou três meses. Satisfeito seu desejo, Pedro começou a<br />
alegar desculpas para rarear os encontros: doença da caçula, período<br />
de provas na faculdade, comissões especiais no conselho<br />
90<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 17
e até mesmo a leitura dos inúmeros originais do concurso. Mais<br />
tarde, quando o namorado soube do caso, afastou-se dela, que<br />
parecia, a princípio não sentir a sua falta, tão entretida que estava<br />
com o prêmio revelação de contista do ano. Não vieram as<br />
reportagens, muito menos a entrevista na televisão, mas saíram<br />
notas em suplementos literários, houve um almoço comemorativo<br />
em família, abraços de amigos e vizinhos e o apelido de<br />
“revelação” vingou em alguns ambientes.<br />
O dinheiro do prêmio não era muito, nada que a fizesse<br />
mudar de vida. Compensavam a edição do livro, prevista para<br />
dali a seis meses por uma editora de porte médio, e a glória efêmera<br />
na sua rua e no seu local de trabalho. Antes do lançamento<br />
do livro, ela já pensara em procurar de novo o ex-namorado. Sem<br />
as festas e sem o amante, as noites voltaram a ser vazias. Não<br />
era ainda uma estrela que não precisasse de companhia ou que<br />
a obtivesse com facilidade. Escreveu-lhe uma carta, uma longa<br />
carta, narrando todos os detalhes da traição e se dizia arrependida.<br />
A esta altura, acreditava tanto em seus dotes literários que<br />
presumia que uma bela narrativa assinada pela autora revelação<br />
fosse o bastante para trazer de volta o ex-namorado. Quem não<br />
desejaria sair com uma jovem escritora de tantos méritos?<br />
A carta, ao contrário de seu livro de contos, não recebeu<br />
prêmio algum. Não obteve resposta. No entanto, serviu para<br />
fazer nascer no ex-namorado a idéia de vingança, nutrida diariamente<br />
pela dor que sentia. Engenheiros normalmente não<br />
apreciam tanto a leitura quanto literatos. E ele não foi exceção:<br />
a carta não lhe despertou admiração como leitor, apesar do inegável<br />
talento descritivo da autora. Trouxe-lhe, talvez por esta<br />
mesma razão, motivos para que o engenheiro se dedicasse a outro<br />
tipo de construção.<br />
Naquela terça-feira de manhã, a quarta vez em que ele seguia<br />
Pedro até a universidade, não houve aula em duas turmas,<br />
que tinham ido a um congresso. Logo o professor, dispondo de<br />
tempo livre, dirigiu-se à sala de estudo de seu departamento,<br />
Capítulo 17<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 91
para corrigir algumas monografias do semestre. Era o momento.<br />
Apalpou a arma em sua calça com a mão direita, mais para se sentir<br />
seguro do que para confirmar o que seu corpo já sentia. Com a<br />
esquerda levava uma pasta com livros e papéis, adereço do disfarce.<br />
Vestia um figurino ambíguo: tanto podia ser confundido com<br />
um professor, quanto com um aluno. Em situações diferentes um<br />
papel seria melhor do que o outro, afinal não era tão jovem que<br />
não pudesse ser professor, nem tão velho que não pudesse mais<br />
ser aluno. O meio-termo no caso lhe era conveniente.<br />
Pedro nunca mais vira a contista premiada. Nem pensava<br />
muito nela. Fora justo: convenceu os outros jurados a dar<br />
o prêmio àquela jovem de promissora carreira, em troca de<br />
algumas tardes no motel. Agora se encaminhava para sua sala,<br />
pensando apenas na tarefa maçante de ler monografias cheias<br />
de paráfrase e erros gramaticais. Não teve tempo de fixar bem<br />
os olhos no rosto de quem se dirigiu a ele, à porta de sua sala.<br />
Caiu imediatamente, espalhando os papéis e livros no chão do<br />
corredor. Um tiro de tão perto é infalível. Na testa, como ele<br />
desejava. Rápido e sem ruído.<br />
O colega que dali a cinco minutos encontrou o corpo, ao<br />
se abaixar depois para recolher os papéis, reparou na capa de<br />
um livro respingada de sangue. Era a de um livro de contos policiais,<br />
com uma tira que indicava a premiação em um concurso<br />
do ano. O título Cine Noir não levaria a polícia à autora, pois<br />
em uma faculdade de Cinema é um título corriqueiro e o fato<br />
de estar nas mãos de um de seus professores é bem verossímil.<br />
Pena que Caio também não fosse escritor. Se o fosse, teria<br />
um estilo refinadamente irônico.<br />
92<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 17
Capítulo 18<br />
Consultando livros desde o século XVI na Torre do Tombo,<br />
na biblioteca de Coimbra ou, aqui mesmo, na Biblioteca Nacional,<br />
vai encontrar vários textos que tratam da matéria. Uns remetem<br />
à Inquisição e apresentam o poeta trasvestido de bruxo<br />
seus métodos mais sugerem o sadismo religioso do que um código<br />
de ética que visasse à extinção desta espécie. Seus detalhes<br />
nos escandalizam hoje em dia, quando já existem inúmeros tratados<br />
em defesa dos direitos humanos. Não me refiro à fogueira<br />
ou passeio sobre brasa, há procedimentos feitos a portas fechadas<br />
mais cruéis que levavam à morte do mesmo jeito, só que<br />
com mais vagar e mais prazer por parte da plateia.<br />
Ao longo dos séculos, antes de chegarmos à nossa década,<br />
tivemos regimes políticos diversos, alguns dados a práticas de violência,<br />
que variavam de acordo com a tecnologia da época. Muitos
sangrentos e eficazes. Gerações de poetas morreram e a causa não<br />
foi precisamente o mal do século. No entanto, eles parecem ter adquirido<br />
resistência diante da forca, da tortura, do esquartejamento,<br />
do pau-de-arara, da cadeira do dragão, do choque elétrico, do<br />
apedrejamento... e voltam a publicar livros, a dizer textos em praça<br />
pública, a distribuir panfletos com poemas, como se ignorassem a<br />
ordem histórica de extermínio.<br />
Adélia era formada pela Universidade de França, onde<br />
também fizera todos os cursos de pós-graduação. Data de lá o<br />
hábito de só se pronunciar em língua francesa, mesmo quando<br />
a sós com sua empregada, na discussão da lista do mercado.<br />
Mais ainda, se em presença de professores, escritores e intelectuais<br />
de um modo geral. Tem vergonha de sua língua, da<br />
pele de seus conterrâneos, dos modos dos pobres. Logo exprimir-se<br />
em francês é uma forma de purificar os que por felicidade<br />
se encontram a seu redor. Ocupa atualmente, além da<br />
cátedra da faculdade, o posto de crítica-mor do Diário das Artes,<br />
a mais prestigiada publicação literária do país. Neste cargo,<br />
há vinte anos, já se tornou a referência nacional através de<br />
seus ensaios e críticas: nenhum autor é reconhecido sem antes<br />
passar por seu crivo, nenhum ousa ser best-seller sem o seu<br />
aval, nenhum publica uma segunda obra sem a sua bênção.<br />
Sua voz é esperada semanalmente e as prateleiras das livrarias<br />
são rearrumadas, após a sua página dominical.<br />
Naquela tarde de quinta-feira, recebeu em sua casa a visita<br />
de uma orientanda recomendada por um colega de prestígio de<br />
famosa instituição de São Paulo. Ou seja: não poderia recusála.<br />
Além do mais, nem passou por sua cabeça que a aluna não<br />
estaria intelectualmente à altura de sua orientação. Depois<br />
de duas horas de conversa pródiga em citações e referências,<br />
que serviram para Adélia se certificar da bagagem de leitura de<br />
Márcia, pediu que ela agora lhe falasse sobre o seu projeto de tese<br />
que, afinal, era o motivo da visita. Ansiava por saber qual a linha<br />
teórica que seria seguida, a bibliografia levantada, as propostas<br />
94 Marcus Vinicius Quiroga Capítulo 18
de leitura, para pensar como poderia ser a sua colaboração.<br />
Estes pensamentos lhe vinham menos por interesse do que por<br />
zelo de sua reputação. No meio todos sabem que uma tese que<br />
fracassa não prejudica só o seu autor, mas também o orientador.<br />
Em muitas mais vezes este do que aquele, visto ser ele quem<br />
tem fama; já o outro, anônimo, não vê sua imagem ameaçada.<br />
Feitos os preâmbulos para a pergunta, Adélia, educadamente,<br />
quis saber qual o tema da tese e se ela já teria título, mesmo<br />
que provisório. Márcia respondeu, sem perder a naturalidade,<br />
que se tratava de uma tese mais sociológica do que literária<br />
propriamente dita. Que era sobre poesia, melhor, sobre poetas,<br />
sobre a situação dos poetas atualmente no país. A orientadora<br />
balançava a cabeça e murmurava um interessante, interessante.<br />
Mas súbito arregalou os olhos, quando ouviu de sua agora discípula<br />
que a sua tese era de fato um projeto, fundamentado em<br />
bases estéticas, para eliminar um número significativo de poetas.<br />
— Eliminar em que sentido?, perguntou Adélia, assustada.<br />
— Em todos, tirar seus livros de circulação, inibir seus encontros<br />
com os pares, proibir-lhes os saraus, cancelar suas publicações<br />
em jornais alternativos, e, em determinados casos, o<br />
degredo ou a morte.<br />
A primeira parte da tese estabeleceria quais os parâmetros<br />
literários para o julgamento das obras, depois teríamos a<br />
constituição de um grupo, altamente qualificado, para atribuir<br />
notas a tais obras antes da publicação. Caso a nota fosse abaixo<br />
de sete, a obra não iria para o prelo, afinal é preciso manter<br />
um mínimo de literariedade que justificasse a edição. Há muita<br />
árvore morrendo neste país para a vaidade de poetastros. Com<br />
esta ação, a literatura e o meio ambiente ganhariam: menos árvores<br />
virariam papel e menos papel viraria dejeto poético, se me<br />
perdoarem a expressão. Se fosse o caso de um mau autor reincidente,<br />
ele seria punido com alguns meses de reclusão, para que,<br />
no silêncio de uma cela, fizesse uma autocrítica e concluísse que<br />
deveria abandonar a literatura de uma vez por todas. Já se se<br />
Capítulo 18<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 95
tratasse de um autor com várias obras destituídas dos méritos<br />
estabelecidos pelo seleto grupo de críticos, não haveria perdão:<br />
o autor seria degredado, só depois de assinar um documento,<br />
registrado em cartório, de que jamais voltaria a este país. E, reconheço<br />
ser um ponto um pouco polêmico, alguns seriam indicados<br />
para a execução, se o número de obras medíocres fosse<br />
elevado, pois isto caracterizaria a total incompatibilidade de sua<br />
existência com a literatura. E, como os leitores não podem se<br />
expor a livros tão daninhos, o recomendável é a eliminação definitiva<br />
do autor.<br />
A segunda parte da tese, sei, extrapola a análise literária,<br />
mas é a sua razão de ser, seu objetivo último. Trata-se de definir<br />
como se dará a morte dos poetas e quem serão os beneméritos<br />
da arte que terão o privilégio de executar a sentença, em nome<br />
da qualidade permanente dos versos em nosso país. Penso, mas<br />
isto é só uma idéia mal alinhavada, que poderíamos instituir um<br />
concurso para este cargo, com provas teóricas e práticas, além<br />
do julgamento dos currículos. A propósito, acho este quesito<br />
fundamental. Só poderiam se candidatar à função de eliminador<br />
de poeta aquele que apresentasse uma folha invejável de<br />
serviços prestados à língua e à literatura da pátria. Depois, todos<br />
os aprovados na fase inicial fariam cursos apropriados ao<br />
desempenho desta nova profissão, como tiro ao alvo, técnicas<br />
de envenenamento indolor, métodos de breve afogamento etc.<br />
Sei que a ação pode ser mal compreendida por leigos, que<br />
não sabem dar a dimensão exata do valor da boa poesia para a formação<br />
moral dos jovens e deleite de todos, desde as crianças até<br />
os idosos. Mas tenho certeza de que no meio acadêmico, nas redações<br />
dos grandes jornais, nas rodas dos literatos de boa cepa e na<br />
mais fina elite intelectual, ela será abraçada com entusiasmo. Tão<br />
logo seja posta em prática, contabilizaremos os pontos positivos na<br />
coluna de crédito da boa arte de escrever. Significará, com certeza,<br />
uma contribuição mais relevante do que a dada por todos os estilos<br />
de época e movimentos literários que já ocorreram nesta terra.<br />
96<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 18
Adélia, apesar da fama de ter fleuma inglesa e de excelente<br />
jogadora de pôquer, mostrou-se um pouco abalada com<br />
o que ouvira. É certo que muitas vezes desejara eliminar alguns<br />
autores, e não só poetas; já rogou-lhes praga e ofendeu a árvore<br />
genealógica na intimidade de sua casa; fez-lhe críticas mortais,<br />
recomendara a editores a retirada de certas obras do catálogo...<br />
mas eliminar fisicamente um escritor lhe parecia algo inédito e<br />
no mínimo contrário à lei. Tal argumento foi rebatido com veemência<br />
por Márcia que, no segundo capítulo da tese, propunha<br />
a alteração de leis em caráter de urgência, facultando a certos<br />
críticos uma licença para determinarem qual poeta deveria ser<br />
eliminado e de que forma. Um serviço jurídico especializado<br />
defenderia a brevidade com que este projeto de lei deveria ser<br />
tratado e aprovado pela justiça, de modo que em meses o seu<br />
plano estaria em ação. Pensara até em um slogan para o lançamento<br />
da campanha contra os maus poetas “Menos poesia e<br />
mais silêncio!”<br />
Neste momento, a empregada doméstica entra com a bandeja<br />
de chá e brioche, interrompendo por uns minutos o discurso<br />
eloquente de Márcia, e dando tempo para Adélia se recompor e<br />
tentar recuperar o domínio da situação. Pensava rápido consigo<br />
mesma se a colega que indicara esta orientanda não saberia o<br />
conteúdo da tese e que, mesmo que tudo parecesse estranho,<br />
Márcia não poderia ser posta porta afora, de maneira deselegante.<br />
E como ser orientadora de um projeto que prevê a prisão,<br />
o banimento e a execução beneficente de centenas de poetas,<br />
apenas por critérios literários que os reprovassem? Passado o<br />
susto inicial, não considerava a ideia má, porém tinha um nome<br />
construído ao longo de anos e não poderia pô-lo em risco por<br />
modismos, ainda que reconhecesse a sua utilidade. Era jogadora<br />
de pôquer, não de sinuca. Tinha que ganhar tempo para preparar<br />
uma recusa que não se parecesse com uma recusa. Dependia da<br />
colega de São Paulo para a indicação de seu nome para intelectual<br />
do ano, pela terceira vez naquela década.<br />
Capítulo 18<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 97
Bebido o chá, Márcia retomou a explanação. Sabia que<br />
seu projeto era interdisciplinar: literatura, sociologia, psicologia,<br />
educação, todas estas matérias servem de fundamento para a<br />
sua proposta. Mas o aval do crítico literário seria o ponto inicial<br />
e nada melhor do que alguém como a senhora Amélia para emprestar<br />
o aval a este - admitamos - inusitado empreendimento<br />
artístico. Cuidadosa, já pensara em um modo de impedir que<br />
editores inescrupulosos usassem a execução do poeta como<br />
marketing para alavancar a venda de seus livros. Logo, todo poeta<br />
sentenciado ao silêncio eterno, teria todos os exemplares de<br />
sua obra queimados nas dependências da polícia, como fazem<br />
com entorpecentes apreendidos.<br />
Já fizera até uma projeção. Dez anos após a implantação de<br />
sua tese, o nível de leitura das crianças aumentaria 47% em qualidade,<br />
o silêncio urbano cresceria na ordem de 20% aproximadamente<br />
e o reflorestamento não precisaria ser feito com a velocidade<br />
que os dias de hoje requerem. Feitos os cálculos, só lucros e isto<br />
em apenas dez anos de eficiente execução de suas ideias.<br />
Adélia, percebendo a pausa da moça - ia dizer orientanda<br />
-, alegou um encontro na secretaria de educação da prefeitura<br />
e pediu que ela lhe deixasse o material que já fora escrito para<br />
que depois marcasse uma nova entrevista. Achara-a muito simpática<br />
e acreditava que tudo daria certo. Não quis fazer mais<br />
perguntas e despediu-a com modos vagos, sem dizer que aceitara<br />
a orientação e sem dizer o contrário. Não encontrara em<br />
tão pouco tempo um meio para não aceitar a tal tarefa, sem<br />
ficar embaraçada com a colega que a recomendara. Beijou-lhe<br />
as faces e fechou a porta.<br />
Dias depois, lendo o obituário no jornal, surpreendeu-se<br />
com o nome de Márcia Alves de Albuquerque. Telefonou para<br />
São Paulo e teve a confirmação: era ela, sim, tão jovem ainda,<br />
com uma carreira pela frente, profissional insubstituível, inteligência<br />
invulgar...Finda a ligação, respirou aliviada e grata ao<br />
destino por ter lhe dado a solução. A uma morta não se precisa<br />
98<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 18
dizer sim nem não. Muito mais fácil. Em seguida, olhou para a<br />
escrivaninha onde estavam os rascunhos da tese. Folheou-os<br />
com carinho e vagar, como se fosse uma despedida. Em parte,<br />
satisfeita de não perder o apoio da colega paulista, nem o seu<br />
voto para o prêmio de intelectual do ano; em parte, triste pelo<br />
desaparecimento prematuro da professora, sua quase orientanda.<br />
Seus olhos, agora fixos no título Como abater um poeta,<br />
pareciam se lamentar pela tese não ser defendida. Hesitou<br />
entre pôr a pasta na cesta de lixo ou numa gaveta. Cedeu à<br />
segunda opção, com um pensamento suspeito.<br />
Capítulo 18<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 99
Capítulo 19<br />
No sertão não era costume encontrar cartomante, quiromante<br />
ou qualquer outro tipo de vidente. Há vez por outra rezadeiras,<br />
que curam erisipela e asma, mas isto é ofício de outra ordem.<br />
Adivinhos lá não existem, até porque não teriam o que dizer de<br />
bom e adivinho que só vê desgraça não tem freguesia. Morre sem<br />
cliente. São os bons agouros que trazem os consulentes. Se uma<br />
vizinha foi a uma cartomante e esta disse que ela vai viajar de navio,<br />
a outra pede o endereço para se consultar também. E já vai com<br />
uma lista de desejos e pedidos à espera da confirmação da bola de<br />
cristal ou das cartas. Agora sertão é lá lugar de boa notícia? O que<br />
se vê é urubu a toda hora como sinal de morte, de seca, de ruína.<br />
Mas como o mundo está aí para ser contrariado, deu-se<br />
que num canto dos sertões, quase esquina da Bahia, instalouse<br />
um sujeito de nome Rosa, sobrenome, melhor que se diga
para evitar mal-entendidos. Aparência de bonachão, de profissão<br />
indefinida, idade para lá de quarenta, que gostava de pitar<br />
e prosear nas mesas dos botequins. Era mais de prosa do que<br />
de bebida. Jamais se embebedava, até porque falava tanto que<br />
não tinha tempo de levar o copo à boca. A aguardente era só um<br />
pretexto para que outros se sentassem a sua mesa e iniciasse<br />
seus casos. Apreciava, sim, a plateia e nem se importava se fosse<br />
de pouca instrução, desde que não o interrompessem nem duvidassem<br />
de tanta história torta. Este era o Rosa.<br />
Com o tempo, vinha gente de tudo que é canto para ouvir<br />
suas narrativas longas. Umas só acabavam dali a dias. Ele se sentava<br />
à mesa do canto e dizia “Dando prosseguimento...”, como<br />
se os ouvintes fossem os mesmos de antes, de ontem, de anteontem.<br />
Não importava. Continuava a história de onde tinha<br />
parado, às vezes, com a ajuda do dono do bar, que aumentara o<br />
número de fregueses, quando ele ia para o seu bar. Sem prévia<br />
combinação, Osório passou a desempenhar o papel de ponto de<br />
Rosa. No teatro de outras épocas, ponto era aquele sujeito que,<br />
escondido, soprava as falas dos atores, se eles as esquecessem.<br />
Se no teatro o ponto era um obscuro, que podia sair às ruas, sem<br />
ser reconhecido; ali dava-se diferente e Osório ganhou importância<br />
pela sua função, pois sua presença era a garantia de que<br />
não se perderia o fio da meada daqueles insuspeitados casos.<br />
Naquelas tarde e noites sem propósito, a cidade passou<br />
a ter ocupação: ouvir o mundo que se apresentava na voz mansa<br />
de Rosa. Uns apreciavam a sua memória e julgavam ser ele,<br />
apesar da aparência descuidada, homem de estudos e mistérios;<br />
outros desconfiavam de que ele criava tudo na hora mesmo<br />
e não saberia repetir o mesmo enredo dali a uma semana.<br />
Nunca se soube a quem dar razão; provavelmente às duas opiniões.<br />
Que a memória era louvável, isto era, mas não pareciam<br />
histórias lidas antes. Como ele também, pelo que foi verificado<br />
às escondidas, não tinha em casa livros nem manuscritos,<br />
concluía-se que ele não as escrevera primeiro. E mesmo se as<br />
Capítulo 19<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 101
tivesse feito, seria inverossímil alguém saber tanta frase de cor.<br />
Logo a nascente estava ali nele mesmo, na sua voz.<br />
Gostava de ouvinte, mas não de bajuladores, nem queria<br />
ser alvo de atenção, depois de terminada a narrativa. Que<br />
ninguém o interpelasse na rua com comentários sobre alguma<br />
história. Isto o desagradava e ele fugia do tema e do cidadão.<br />
Agora não, dizia. Mais tarde, vá ao bar. Agora estou ocupado. E<br />
seguia sozinho sabe-se lá para onde. Até que um dia veio a notícia<br />
de que Rosa fora visto em lugarejo próximo exercendo ofício<br />
de cartomante. Cartomante? Isto não é coisa de mulher? E são<br />
tudo vigaristas! Não acredito. Deve ser um tipo parecido com<br />
ele. O povo tem a mania de achar que todo gordo é a mesma<br />
pessoa. Boatos à parte, era o Rosa de fato. Só que não era cartomante,<br />
visto que ele não lia cartas. Não lia, antes escrevia. Creia<br />
você. Ele se sentava a uma mesinha de madeira velha e ficava<br />
escrevendo uns desenhos, coisa que parecia não ter sentido.<br />
A princípio, pensaram que era homem doido, desvairado, ou<br />
vagabundo que, por falta de útil ocupação, passava a tarde desenhando<br />
formas inexistentes, figuras que não tinham semelhança<br />
na realidade. Quando alguém perguntava o que fazia, respondia:<br />
”São enigmas”. E mais nada. Até que um sujeito resolveu lhe pedir<br />
um conselho, enquanto ele desenhava, supondo ser ele mestre em<br />
arte divinatória. Rosa não se fez de rogado e ofereceu-lhe meia hora<br />
de prosa sem intervalo. O homem entendeu o que entendeu e foi<br />
embora. Um mês depois voltou com a mulher e dois irmãos. Queria<br />
que o doutor desse umas palavrinhas para eles também, como se<br />
fosse uma consulta. Rosa achou graça, mas falou, já que falar nada<br />
custa. Os consultados espiavam perplexos os desenhos que não<br />
compreendiam e, aos poucos, foram espalhando que eram mágicos.<br />
As figuras substituíam as cartas e o vidro de cristal e ele via nos<br />
desenhos os fatos das vidas dos outros. Fazia adivinhações e dava<br />
orientações proveitosas. Além de tudo, não cobrava dinheiro nem<br />
favor. Aceitava de quando em quanto um presentinho, como um<br />
coelho ou um doce feito em casa, para não parecer mal-educado.<br />
102<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 19
A fama ainda não se excedia, quando recebeu ordem<br />
de prisão, por prática de charlatanismo e falso curandeirismo.<br />
Rosa foi levado por dois soldados até a cadeia e lá permaneceu<br />
para dar explicações. Na verdade, fora o prefeito o articulador<br />
da acusação, pois seu filho era médico e dono da única clínica<br />
da região. Com medo de perder seus clientes para Rosa, achou<br />
mais precavido afastá-lo da cidade. Deu-lhe o delegado, depois<br />
de três dias de detenção, ordem para sair da cidade e não voltar<br />
mais, senão seria preso de novo. E em caso de reincidência, haveria<br />
processo, gastos com advogado e, certamente, uma condenação.<br />
Para ser mais claro, o delegado admitiu que ele não<br />
era visto com bons olhos pelas autoridades locais e que fosse<br />
brincar de fazer desenhos em outro sítio, de preferência, bem<br />
distante. Rosa, que não era burro, entendeu as palavras pouco<br />
amáveis e partiu.<br />
No outro lugarejo, não desenhava, não dava opinião na<br />
vida alheia, só proseava continuamente. Parecia um rio falando<br />
na correnteza. Lá era admirado sem aborrecimentos. Embora<br />
não estivesse ali pela admiração de ninguém, nem pelo apreço<br />
ou afeto. Era mais forte do que ele: gostava de narrar, de contar<br />
histórias. Talvez para pensar que pudesse haver um mundo melhor,<br />
mais encantado. Uma espécie de fantasia que contrastava<br />
com o agreste. A língua que usava nem parecia a mesma dos<br />
compêndios e manuais de gramática.<br />
Nem tudo o povo entendia, mas não fazia diferença.<br />
Achavam graça nas expressões e no dia seguinte estavam repetindo<br />
em outros lugares. E quando na única escola do lugar<br />
uma criança repetia uma palavra esdrúxula e dizia que aprendeu<br />
com o Seu Rosa, a professora anotava em seu caderninho<br />
e não dava repreensão.<br />
Nesse tempo, deu-se que um viajante, sabendo do paradeiro<br />
de Rosa, veio à cidade à guisa de esclarecimentos. Embora<br />
tentasse disfarçar, o povo logo percebeu que era um jagunço, um<br />
matador decerto, desses que usam facão, revólver e fuzil num<br />
Capítulo 19<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 103
mesmo defunto, para ter certeza do feito. Tinha uma fisionomia<br />
desagradável e palavras poucas e ásperas. Tiveram receio, mas<br />
indicaram o bar onde encontraria Rosa. Em lá chegando, dirigiuse<br />
a ele, como se não houvesse mais ninguém ao redor. Ignorou<br />
a todos que, cabisbaixos, também fingiam não estar ali. Pediu a<br />
Rosa dois dedos de prosa, mas em particular, fora das vistas e<br />
ouvidos. Tentava ser educado, como lhe era possível, e disse que<br />
desse o preço da consulta que pagaria fosse o que fosse, sem<br />
regateios. Rosa respondeu que não tinha profissão de vidente,<br />
apenas desenhava enigmas e charadas no papel e falava o que<br />
vinha à cabeça. Que fossem para a mesa mais afastada do bar.<br />
Melhor, disse o jagunço. Pôs uma nota de valor alto no balcão<br />
e mandou o dono do bar dispensar a clientela por uma hora.<br />
O dinheiro no balcão e as armas à vista fizeram que fosse logo<br />
atendido. Sozinhos os dois no canto do bar, o viajante custou um<br />
pouco, até que desabafou.<br />
Vinha de longe, mais do que supunha, recomendado por<br />
compadre, homem sério, de palavra, competente no tiro de toda<br />
distância. Queria conversa iluminada com um tal de Rosa, homem<br />
de vereda certa, de leitura escorreita, sem deslize. Queria<br />
a verdade, a verdade de lâmina afiada. Se fosse enganado, voltaria<br />
para dar cabo dele. Outra coisa: a conversação era sigilosa. Se<br />
alguém soubesse meia palavra dali, voltaria da mesma forma e<br />
com a mesma intenção. Ele pagava pela verdade e pelo segredo,<br />
que não traísse sua alma, posto que em situações normais ele<br />
não usava daquelas educações e era o diabo. Quer dizer, pior.<br />
Rosa ouviu o discurso sem se abalar. Não tinha medo de<br />
grito nem de bala. Manteve a voz mansa, ao responder a ele<br />
que ficasse em paz, falaria sem medo do retorno. E se quisesse<br />
tirá-lo da vida, era só ir àquele bar, pois não tinha esconderijos.<br />
Dito isto, pôs-se a sua disposição.<br />
O jagunço então gaguejou um pouco. Custou a pegar a<br />
prosa, como se fosse de pedra. Enfim veio de uma vez. Era matador,<br />
com história de muitos tiros e facadas. Trabalhara para<br />
104<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 19
muitos coronéis e por conta própria. No momento chefiava um<br />
bando, tudo a suas ordens. Praticava longe dali, mais alto no<br />
mapa do sertão. Acontece que um dia achou que estava gostando<br />
de um capanga seu. Mais que afeto, coisa diferente, olhar<br />
de homem para mulher. E ele era matador, dos bons, macho sabido<br />
e respeitado. De repente esta sensação estranha por um<br />
igual. Ficou sem dormir. Queria explicação. Pensava que o outro<br />
cuidava da mesma forma, que lhe dava um carinho bruto, mas<br />
carinho. Como podia ser? Eles, dois matadores, machos sem<br />
concorrência e este sentimento de nuvens fechadas.<br />
Rosa se riu um meio riso e pegou a folha de papel. Desenhava<br />
coisas simbólicas, difíceis para letrado, quanto mais para<br />
jagunço. O outro olhava com respeito. E se Rosa contasse para<br />
alguém aquela confissão? Não seria melhor matá-lo e afiançar<br />
segredo de túmulo. Mas, sabe-se lá por qual razão, nem alisou<br />
as armas. Esperava adivinhação atento. Rosa desenhava mais e<br />
mais. Depois ocorreu o veredito. Vá em paz. Não tenha receio.<br />
Todos sabem que você é macho e de sua história. Ninguém vai<br />
pensar o diferente. E o que você quer de seu capanga é coisa boa,<br />
não é fraqueza, doença, ou mal de feitiço. Um gosta do outro. É<br />
de lei, é de eternidade. Não vai conseguir fugir. Não tenha medo.<br />
Ele também sente afeição. E não é coisa de homem fêmea. Vá em<br />
paz. Tem minha palavra e minha bênção. Você vai ter surpresa<br />
quando encontrar seu capanga a sós. Surpresa boa. Agora guarde<br />
bem esta palavra, coisa de mágica. Quando se encontrar com ele,<br />
diga: “Diadorim”. Entendeu? Basta dizer: “Diadorim”.<br />
Capítulo 19<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 105
Capítulo 20<br />
Há famílias que se dedicam à fabricação de relógios; outras,<br />
a concerto de violinos; outras ainda, ao cuidado de vinhas.<br />
Já a família de Oscar escolheu as biografias. Desde seu bisavô,<br />
os homens são educados para a profissão de biógrafos e o sobrenome<br />
Proença já se constitui uma marca. Quando o leitor vê<br />
a assinatura desta família, já sabe que tem nas mãos um livro<br />
feito com seriedade de pesquisa e redação exemplar. A editora<br />
que os encomenda e publica é a mesma, portanto não há dificuldade<br />
na renovação dos contratos. E os biógrafos sabem que, ao<br />
término de uma obra, podem escolher um nome da lista secreta<br />
e arregaçar as mangas. Aprenderam com o pai ou com o avô ou,<br />
normalmente, com ambos, os passos a serem dados e o método<br />
a ser seguido. Sentem-se orgulhosos pelo reconhecimento<br />
do método Proença de elaboração de biografias e, embora
não o revelem na íntegra, às vezes dão cursos e palestras sobre<br />
o tema. No meio editorial até as concorrentes admitem que o<br />
nome Proença já se tornou uma grife, sinônimo de qualidade,<br />
com clientela fiel.<br />
Cada membro da família, de acordo com a formação e<br />
conveniência, dedica-se a uma época, que pode ser só uma década<br />
ou até mesmo um século, pois sabem que a especialização<br />
é um dos segredos da profissão. Não só porque a pesquisa<br />
para um livro facilita a do outro, como também porque sempre<br />
recebem convites quando o seminário ou a mesa redonda for<br />
sobre aquele período específico. Na intimidade, passam a ser<br />
denominados de 30, 40, 50, 60, conforme a década na qual<br />
tenham se especializado. Logo, em família, todos entendem<br />
quando à mesa alguém diz “Passe o sal, 30” ou “Um pouco<br />
mais de vinho, 50”.<br />
No momento, eles se encontram em reunião por um motivo<br />
inusitado. Ao todo, são 12 homens, entre avô, filhos e netos,<br />
ao redor de uma mesa longa na casa de campo do velho<br />
Proença. Mas é um dos mais jovens quem lê a pauta do dia e<br />
faz a explanação para os demais. Com um relatório avalizado<br />
por entidades internacionais de respeito, ele mostra a projeção<br />
feita sobre o crescimento da população e os recentes estudos<br />
sobre a qualidade do ser humano. Primeiro, os casais estão tendo<br />
menos filhos, especialmente em países mais civilizados, o<br />
que, sob um ponto de vista, é muito bom, mas, como veremos<br />
mais adiante, este dado é desfavorável à atividade de biógrafo;<br />
segundo, e isto talvez seja mais alarmante, registra-se um<br />
menor número de nascimentos de pessoas com aptidões para<br />
a categoria de biografáveis. Se seguirmos um simples raciocínio<br />
matemático seria o oposto, pois, se a densidade demográfica<br />
aumenta, aumenta proporcionalmente o número de indivíduos<br />
possíveis de merecerem uma biografia. Engano, o mundo não<br />
é feito passivamente de números. A história tem mostrado nas<br />
últimas décadas - e não nos cabe aqui, por ora, discutirmos as<br />
Capítulo 20<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 107
causas - que não têm nascido líderes ou heróis, ou, digamos,<br />
pessoas cuja atuação pública sirvam de exemplo e mereçam a<br />
atenção dos leitores.<br />
As virtudes, os talentos têm rareado e muitos homens vêm<br />
sofrendo de doenças que fazem com que percam a capacidade<br />
de despertar interesse no outro. E o outro na nossa profissão,<br />
não nos esqueçamos, é sempre o leitor. Ora, apesar de algumas<br />
doenças já terem sido detectadas e até mesmo serem objeto<br />
de sérios estudos, a ciência ainda está longe de lhes encontrar<br />
a cura. Além do mais, não são, como autoridades médicas me<br />
informaram, doenças prioritárias. Dizem mais: são doenças polêmicas,<br />
muitas ainda não reconhecidas pelos organismos internacionais,<br />
ainda à espera de classificação e catalogação, ainda<br />
sem uma nomenclatura definitiva e única. Darei exemplos: temos<br />
atualmente epidemias de Mimetismo, surtos de Tautologia<br />
e casos isolados de Paráfrase obsessiva. Em outras palavras, segundo<br />
os cientistas, a perspectiva é de que nas próximas décadas,<br />
para não dizer em todo o século, não haja nascimento de<br />
homens que tenham méritos para se tornarem personalidades<br />
públicas. Ou seja, a nossa matéria-prima escasseia. Precisamos,<br />
portanto, com urgência analisar os fatos e elaborarmos uma estratégia<br />
para enfrentar os tempos difíceis que se aproximam.<br />
Um primo aflito aparteou: E os políticos? Alguém sempre<br />
terá que ocupar cargos públicos, com exposição diária na mídia,<br />
o que garante certa popularidade. Infelizmente, estes são os<br />
piores. As últimas safras têm demonstrado que a classe política,<br />
corrupta e venal em sua maioria, não tem a simpatia do povo,<br />
cujo interesse por suas vidas, a cada dia que passa, diminui.<br />
Para agravar a situação, ainda que a vaidade dos políticos<br />
aprecie a citação de suas obras, a cautela recomenda no<br />
momento que não se deixem entrevistar com tanta liberdade,<br />
pois o repórter ou o biógrafo pode encontrar fatos contrários<br />
a uma boa reputação, a ponta de algum escândalo ou um motivo<br />
justo para inquérito ou perda de mandato. O momento é<br />
108<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 20
crítico. Se este quadro não se reverter, nossos filhos terão que<br />
buscar outra profissão, pois não haverá mais quem sirva para<br />
ser biografado.<br />
Outro primo, bastante jovem e bem temeroso, pondera<br />
que poderiam seguir o exemplo dos norte-americanos e escreverem<br />
livros sobre atletas, cantores, artistas de televisão. Lá na<br />
América há um filão deste tipo de biografia. Parece que o povo<br />
de lá gosta de textos sensacionalistas e, quanto pior a história<br />
do sujeito, maior é a tiragem do livro. Para as editoras e autores<br />
é um bom negócio, não para o leitor, que permanece idiotizado.<br />
A intervenção do primo causou comentários controvertidos.<br />
Dois tios nem quiseram ouvir todas as suas palavras e se<br />
retiraram da sala, visto que não admitiam usar o nome honrado<br />
da família para assinar obras oportunistas que visassem<br />
exclusivamente ao lucro, sem trazer benefício algum ao leitor.<br />
Para eles a proposta era desrespeitosa. Os mais jovens mantiveram-se<br />
sentados à mesa, afinal eram os mais ameaçados<br />
com o gradual desaparecimento de homens biografáveis. Tinham,<br />
sim, que encontrar uma solução para não perderem o<br />
ofício de uma hora para outra.<br />
Alguém levantou a mão e pediu que o organizador do encontro<br />
explicasse melhor as doenças que se alastram e prejudicam<br />
suas carreiras. Desejava saber com mais clareza a relação<br />
entre doença e biografia.<br />
O primo do início retomou a palavra, surpreso que não<br />
tenham entendido o que significava as epidemias mencionadas:<br />
Na verdade, não são doenças novas nem restritas a nosso país.<br />
Se estudarmos os textos mais antigos, encontraremos os casos<br />
de Mimetismo e Tautologia, se bem que não usassem estes nomes.<br />
Ao longo de toda a história do homem, elas permaneceram<br />
vivas e atuantes e, como não são de certa forma fatais, só desaparecem<br />
com a morte do indivíduo infectado. Até médicos de<br />
outros séculos, despreparados para o exercício da ciência, não as<br />
identificaram, crendo que tais doenças fizessem parte da natu-<br />
Capítulo 20<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 109
eza humana. No século XX, o pensamento de que o homem é<br />
um ser mimético e tautológico é insultante. Só podemos aceitar<br />
estes fenômenos como doenças, que merecem os cuidados prioritários<br />
da tecnologia médica. O fato é que, graças ao crescimento<br />
da cultura de massa, a partir dos anos 50, elas se multiplicaram de<br />
tal forma que fugiram a qualquer tipo de controle, até porque já<br />
atingiram os aparelhos de estado que deveriam controlá-las, especialmente<br />
os setores políticos, jurídicos e médicos. Ora, o grau<br />
de infecção nestas áreas é bastante elevado, mas como isto não<br />
pode ser divulgado, para não arranhar a imagem do governo, nenhuma<br />
providência é tomada para combater os focos da doença.<br />
O tio que levantara a mão pergunta, ainda indócil: “Mas o que<br />
vêm a ser tais doenças, querido sobrinho?”<br />
Este olha para o tio com pesar, pois sabe que o desconhecimento<br />
da doença é o seu primeiro sintoma. Logo seu tio<br />
era um mimético ou tautológico, o que quer dizer também que<br />
as biografias escritas por ele estão sob suspeitas e podem prejudicar<br />
o bom nome da família nesta área literária. Mais tarde<br />
teria que afastar o tio da escrita. Por ora, preferiu responder,<br />
com inesperado medo de que mais alguém ali também estivesse<br />
contaminado. Pelo olhar dos parentes, perceberia quem, por<br />
ignorância das doenças, já as cultivasse em seu dia a dia.<br />
Pensado isto, deu continuidade às explicações. O mimetismo<br />
é facilmente verificado pela conduta de imitação e repetição,<br />
pela falta de originalidade, consagrado na expressão “hábitos e<br />
costumes”. O indivíduo que tem o seu vírus age como os outros,<br />
veste-se como os outros, repete as frases ouvidas, tende à concordância<br />
e a aceitação dos fatos, sem questioná-los. Desprovida<br />
de opinião, pauta suas ações pelos exemplos do pai, do político,<br />
do religioso, do ídolo artístico ou esportivo, ou do vizinho. É um<br />
anônimo nas ruas, um número nas estatísticas. Logo não há nada<br />
que o distinga dos demais homens, o que faz com que não tenha<br />
material para justificar uma biografia, já que a história de sua vida<br />
não tem a menor graça, por se parecer com a de milhares.<br />
110<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 20
Já a Tautologia é mais sutil e, por isso, sua identificação<br />
requer observação e inteligência, atributos nem sempre encontrados<br />
na classe médica, o que explica o número pequeno<br />
de internações por esta doença. Serei didático. Tautologia é o<br />
estado em que o indivíduo se encontra, quando define uma<br />
coisa pelo seu sinônimo. Explico ainda mais. Em virtude da<br />
acomodação existencial que o acomete, ele justifica todos os<br />
acontecimentos como se fossem naturais. Não tem, em consequência,<br />
tipo algum de inquietação ou angústia, pois vê o<br />
mundo perfeitamente ordenado. As coisas são as coisas que<br />
são e esta forma de estabelecer correspondências lhe basta.<br />
Reparou que a plateia tinha alguma dificuldade em compreendê-lo,<br />
o que o deixou de sobreaviso. Será que alguns daqueles<br />
parentes vinham fazendo pesquisas e entrevistas miméticas?<br />
Será que os textos das biografias eram tautológicos? O<br />
que fazer para preservar o nome da família?<br />
Pensou em finalizar a explanação. Assim como o Mimetismo,<br />
a Tautologia causa a dependência de opinião, o uso indevido<br />
das ideias alheias, a repetição de gestos e atos, a submissão<br />
às ideologias. Ora, se um indivíduo apresenta alguma destas características,<br />
quando não acontece, de apresentar todas, ele se<br />
despersonaliza, perde a identidade e jamais terá uma biografia.<br />
Desanimados, os parentes nada disseram. Entreolhavam-se<br />
assustados. Se não restavam mais homens para serem<br />
biografados, a lista da editora já deveria estar bem pequena,<br />
embora os editores não tenham avisado à família. Um tio, mais<br />
experiente, coçou a barba e pensou que pelo menos ainda haveria<br />
algumas biografias a serem feitas, as dos médicos que elaboraram<br />
a teoria das doenças do Mimetismo e da Tautologia.<br />
Alegando uma ida ao mercado com sua mulher, pediu para sair<br />
mais cedo e se dirigiu imediatamente à editora. Não custava oferecer<br />
a ideia antes que talvez alguém a tivesse.<br />
Capítulo 20<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 111
Capítulo 21<br />
Depois de dez anos na prisão não se tem mais noção de<br />
tempo. A memória embaralha tudo, o que houve, o que não<br />
houve, o que precisaria ter havido. A outra prisão é esta: a de<br />
não sabermos mais quem somos. Sair daqui é voltar para alguém<br />
que não sabemos quem é. Lá fora todos nos olham com<br />
distância, como quem tenha vindo do mundo dos mortos. O que<br />
não deixa de ser verdade. Dez anos de morte. O juiz deveria ler<br />
a sentença assim: Fulano de Tal, culpado. Pena de 20 anos de<br />
morte no pavilhão C do presídio Y.<br />
A repetição dos dias faz com que o passado se apague. Perde-se<br />
a lembrança das pequenas coisas. Poucas fotografias sobram<br />
depois de alguns anos. E elas eram o fio que nos conduziria de volta<br />
às pessoas. Mas hoje só duas ou três me visitam. Pais mortos. Mulher<br />
casada de novo. Com certa frequência só mesmo um irmão e
um amigo. Não sei como aconteceu, mas, a partir de um dia, paramos<br />
de falar sobre os outros parentes. Não fiz mais perguntas, nem<br />
eles comentários. Acordo silencioso. Para evitar tristezas e frustrações.<br />
Como se houvesse o contrário disto dentro das celas.<br />
No cinema, eu usaria decerto uma fisionomia abatida, com<br />
barba por fazer, uniforme desleixado. Aqui, não. Tenho que fazer<br />
a barba todos os dias, como se fosse me preparar para um encontro<br />
que nunca acontece. Talvez seja esta uma técnica de tortura:<br />
alimentar a espera, a espera de qualquer coisa. Porque aqui não<br />
há coisa alguma. Estamos longe da cidade. Todos os barulhos que<br />
ouvimos nos pertencem. São feitos aqui dentro mesmo. Às vezes,<br />
um avião. Para nos lembrar de uma fuga improvável.<br />
Ainda bem que não tive filhos. Foto só a de meus pais,<br />
juntos. E basta. A da mulher rasguei logo que soube que ela estava<br />
com outro. É destino. Advogado só serve para tirar dinheiro.<br />
Dos dois lados. Ou de quantos lados houver. Muito discurso<br />
e livro para provar que você não tem razão, que a vida é<br />
assim mesmo. Quem mandou desobedecer à lei? Se você tiver a<br />
mente fraca acaba acreditando que eles detêm a verdade e que<br />
o mundo é feito de um deus, um pai, um policial, um patrão,<br />
um juiz, um fiscal. E você está do outro lado, portanto tem que<br />
pagar pedágio, tributo, multa, bênção, reza, vênia.<br />
Todo preso, quando fosse solto, deveria ter como missão<br />
matar os inspetores do mundo. Todos que apitam, anotam, fazem<br />
relatórios, usam palavras de ordem. Todos estes parasitas<br />
que preenchem folhas e folhas sobre a conduta alheia. Os olhos<br />
do rei tinham que ser arrancados a dente. Em cada árvore a cabeça<br />
de um delator. Esta lei da prisão tinha que valer lá fora. O<br />
mundo livre também tem o que aprender com os presos. Até<br />
porque eles estão presos do jeito deles. O medo lá fora não é<br />
muito diferente do que o que existe aqui dentro. Todos os animais<br />
têm medo do homem, principalmente ele.<br />
O ócio obrigatório entre quatro paredes acaba com qualquer<br />
um. A autoestima desaparece. Embora a maioria na prisão<br />
Capítulo 21<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 113
seja pobre e nem sabe que tem autoestima. É palavra que nunca<br />
ouviram. Todos os seus pertences são confiscados quando você<br />
entra em uma prisão. São colocados em um saco que você recebe<br />
de volta quando é solto. Pelo menos este é o procedimento. Mas<br />
a identidade que lhe é tirada é para sempre. Não cabe em saco<br />
plástico. Não apodrece em armários úmidos. E nem sempre outra<br />
é forjada durante a pena. Você pode sair vazio.<br />
Na prisão tudo tem preço, tudo é mercadoria. A esperança<br />
é a de preço mais elevado. A esperança de reverem sua<br />
pena. De você ser transferido. De receber visita. De ter indulto.<br />
De permanecer vivo. De ser liberto. Quantos pacotes de cigarro<br />
custa uma esperança?<br />
Nisto os dois mundos se parecem: a fábrica da esperança.<br />
Como você sabe que um dia você pode ser escolhido pelas<br />
loterias, enche de dinheiro os donos das casas lotéricas e, mais<br />
do que todos, o governo. Compra bilhetes de mudança de vida e<br />
espera. E envelhece. E morre.<br />
Aqui é mais fácil enlouquecer. Lá você se ocupa o dia inteiro,<br />
dorme pesado e acorda com dívida. E recomeça tudo: sai<br />
desesperado para cumprir tarefas, projetos, destinos. Embora<br />
saiba que provavelmente não terá êxito. Na contracorrente, encontra<br />
traições, doenças, injustiças, opressões, arbitrariedade.<br />
Como não se afogar no diário? Como não sacar de um revólver<br />
num dia claro de outono e fazer um, dois, três disparos? Como<br />
não escutar o assoalho estalando até arrebentar após os nossos<br />
passos? Então põem em você uma camisa-de-força, ou algo que<br />
a valha e degredam você para o limbo de um hospício ou presídio.<br />
Até segunda ordem.<br />
Às vezes, uns repórteres vêm aqui para fazer reportagens<br />
com presos. É claro que os diretores não gostam muito.<br />
Temem que se diga algo contra a sua administração. Aí eles<br />
escolhem quem vai dar entrevista e, antes, subornam o preso<br />
com cigarros, doces, direito a mais visitas íntimas... No fim, os<br />
jornalistas fazem matérias a favor do sistema e as reclamações<br />
114 Marcus Vinicius Quiroga Capítulo 21
são arquivadas na cesta de lixo do gabinete do diretor. E há<br />
preso que fica todo satisfeito com a foto no jornal e a expressão<br />
de animal para quem se joga alimento.<br />
Do outro lado dos muros, temos que partir do zero. Nada.<br />
Não existe esta história de zerar a vida. Temos é que arrastar a<br />
prisão pelos dias. Mentir para que não saibam que somos expresidiários.<br />
Pois, quando sabem, se afastam. Temem a nossa<br />
violência a qualquer momento. E é fato: somos ou nos tornamos<br />
violentos. Não há escapatória. A maioria reincide. Os que não<br />
morrem a bala voltam. E vão acumulando penas. Já não sabem<br />
viver fora desta engrenagem. A vida é só chicote e você tem que<br />
estar de um dos lados. Açoitando ou sendo açoitado. Sem tréguas.<br />
Até a morte. Por cansaço ou desistência.<br />
Avisam que é hora do banho de sol. Que devemos sair das<br />
celas em cinco minutos. Mas não portamos óleo, binóculo, jornal,<br />
cadeira de praia, boné. No máximo uma toalha de rosto. De qualquer<br />
forma pode ser perigoso. Alguém pode querer estrangular<br />
o outro com a toalha. É desses medos que a prisão se alimenta.<br />
Sem eles, isto seria uma hospedaria de quinta e só. Sem sangue<br />
entranhado no chão não teria graça para eles. Como é que fariam<br />
denúncias, alegariam o desrespeito e a omissão das autoridades?<br />
Daí criarem as arenas e soltarem os leões para o delírio da imprensa<br />
e aumento da audiência. Há lá fora uma plateia ansiosa<br />
por violência. Qualquer coisa que os afaste do tédio. E não nos pagam<br />
cachê. Somos números em estatísticas. Números anônimos.<br />
Estranho termos um segundo banho de sol no mesmo<br />
dia. Será que é visita de alguma ONG? Para quem o diretor quer<br />
fazer teatro? Só falta avisarem que o cardápio hoje será diferente:<br />
teremos salmão ou trutas no jantar. Que nada. Deve ser<br />
o boato de motim. Eles não estão tendo mais tolerância com<br />
rebelião por aqui. Houve cinco só neste estado no último mês.<br />
A ordem agora é atirar primeiro e recolher os corpos depois.<br />
Nada de imprensa por perto. Para que preso precisa de tanto<br />
sol? Aliás, todos os dias aqui são sem sol.<br />
Capítulo 21<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 115
Por que este silêncio repentino? Será que ninguém vem<br />
abrir minha cela? Dá a impressão de que a ala inteira já desceu<br />
para o pátio. O que está havendo? Será que há uma rebelião em<br />
curso e não estou sabendo? Mas Pedro ou Júlio teriam me dito<br />
algo, eles não me deixariam de fora. Eles precisam de mim. Eu<br />
consegui outro advogado para eles. Isto sem falar nos cigarros<br />
que meu irmão traz. Não. Está muito esquisito. Já dá para ouvir<br />
alguém fazendo discurso no pátio. E esses latidos de cães. Cão<br />
não costuma tomar banho de sol. Finalmente vão abrir a porta.<br />
Mas por que esta lentidão? Ei, espere, o que esse preso da ala<br />
norte está fazendo aqui. E este estilete?<br />
116<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 21
Capítulo 22<br />
Quatro professores de língua portuguesa se reuniam para<br />
almoçar de quatro em quatro meses, mais ou menos. Tinham lecionado<br />
num cursinho há vinte anos e desde então mantiveram<br />
o hábito de almoços para se reverem e colocarem a conversa em<br />
dia. Os almoços não são longos, porque precisam voltar para o<br />
serviço, mas é tempo suficiente para recordarem fatos da época<br />
em que eram colegas. Carlos é que mais gosta de trazer lembranças<br />
à mesa. Não há um encontro em que ele não cite um<br />
ex-colega ou ex-aluno, um caso da vasta antologia que habita a<br />
sua memória. Além do afeto que os traz sempre ao restaurante,<br />
há um passado comum, tempo de mais dificuldade, em que tinham<br />
uma carga horária excessiva. Não foram profissionais bem<br />
sucedidos, não subiram na vida, como se diz, mas, de qualquer<br />
forma, a situação de todos melhorou. Hoje lecionam em colégios
particulares da elite e em faculdades; o tempo de aula com 200<br />
alunos ficou para trás. A idade, visível nos cabelos grisalhos, mudou<br />
o ritmo de vida de todos.<br />
Vez ou outra um traz um livro de presente para os demais:<br />
uma gramática, um novo manual de redação e até um livro de<br />
ficção. Acontece que todos são especializados em redação, mas<br />
em redação não literária. Então é inevitável discutirem um caso<br />
gramatical entre um e outro copo de cerveja. Nada como uma<br />
regência dúbia, uma concordância particular para animar o apetite<br />
dos quatro. Talvez nem percebam o prato pedido, alimentados<br />
com a discussão vernacular, afinal onde eles encontrariam<br />
interlocutores para tal debate? Em qualquer mesa ao lado, a<br />
simples referência a um hipérbato seria capaz de estragar a refeição<br />
ou tornar, pelo menos, a digestão mais difícil.<br />
Finda a sessão acadêmica, passam com naturalidade aos<br />
assuntos mais íntimos, como projetos pessoais e famílias; ou<br />
mais corriqueiros como lançamento de filmes e livros. O quinto<br />
copo de cerveja facilita a mudança de tema, mas não a ponto de<br />
muitas franquezas. Se estivessem só dois, isto talvez ocorresse,<br />
mas quatro já é uma reunião social. O fato é que o encontro<br />
jamais se aproximou de uma análise em grupo. Um certa seriedade<br />
e distância sempre tem sido mantida, apesar das piadas.<br />
Há seis meses, porém, Fábio, o menos gramatical do grupo,<br />
propôs uma tese: a das pessoas discursivas e narrativas,<br />
cujas características não precisaria explicar para professores de<br />
redação. A maioria das pessoas era do tipo narrativo e, portanto,<br />
menos interessante. São pessoas que, quando encontram<br />
outras, só contam fatos acontecidos em sua vida ou vistos no<br />
jornal e na televisão. E dá sempre a sensação ao ouvinte que<br />
aquela não é a primeira vez que conta aquela história, nem será<br />
a última. Adoram a repetição e confundem vida com enredo.<br />
Nelas o mundo exterior predomina sobre o interior. São quase<br />
sempre pouco originais e muitas vezes cansativas. Sua companhia<br />
pode levar ao aborrecimento.<br />
118<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 22
Já as pessoas dissertativas são as que gostam de uma discussão,<br />
no bom sentido do termo, é claro. Pensam, analisam,<br />
questionam, propõem ideias novas. Têm espírito crítico e não<br />
raramente ironia na abordagem dos temas. Era fácil ver que Fábio<br />
estava argumentando em causa própria. Daqui a pouco, seria<br />
capaz de se citar como exemplo. Mas quem apontaria como<br />
pessoa narrativa? Naquele momento, Carlos se lembrou da sogra;<br />
Chico, da mulher; e Mário, da humanidade.<br />
Surpreendidos com a tese defendida, ninguém discordava,<br />
tampouco mostrava entusiasmo em aderir a tal bipartição<br />
dos homens: os dissertativos e narrativos. Para eles as palavras<br />
faziam sentido e não replicavam os fundamentos da superioridade<br />
dos primeiros sobre os segundos. Fábio enumera fatos a<br />
favor de seus pensamentos: mesmo quem não gosta de redigir é<br />
capaz de fazer uma narrativa; quando damos liberdade de escrever<br />
ao aluno, a maioria faz uma narração; em concursos, pedem<br />
sempre dissertação, porque avalia melhor o candidato...Exaltado<br />
com a cerveja, ele chegou a ponto de chamar as pessoas narrativas<br />
de medíocres e que Drummond tinha razão em citar Valéry,<br />
dizendo que “os acontecimentos o aborreciam”. Terminou<br />
com a frase “Os poetas sabem das coisas!” e propôs um brinde.<br />
Houve um silêncio mais prolongado depois da fala eloquente<br />
de Fábio. Parecia que todos temiam falar alguma coisa<br />
que não fosse um tema mais filosófico, e não mais uma questiúncula<br />
gramatical. Talvez se sentissem envergonhadas por<br />
debater casos sintáticos ou morfológicos. E como falar da ida<br />
a Belo Horizonte para um congresso, a estrada, o hotel, as reuniões?<br />
Seria ele um medíocre? Que tese mais desagradável!<br />
Já se passaram seis meses e ninguém telefonou marcando<br />
novo encontro, talvez ainda traumatizados com as diferenças de<br />
modalidade de redação na identificação das pessoas. Carlos um<br />
dia se viu reclamando com a mulher, que nada entendeu, do<br />
filho mais velho. Ele era muito narrativo, ela não achava? Chico<br />
foi pouco a pouco diminuindo as aulas de narração, e deixando<br />
Capítulo 22<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 119
mais tempo para discutir quase que exclusivamente a dissertação.<br />
E Mário tem exposto a tese em ambientes fora do magistério,<br />
longe de professores, especialmente os de português.<br />
Quando percebe admiração na plateia pela originalidade e pertinência<br />
da analogia, apresenta-se como o seu autor.<br />
120<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 22
Capítulo 23<br />
Fazia quinze anos que dedicava como médico as manhãs<br />
pares àquele sanatório. Ia ainda a duas clínicas particulares e a um<br />
hospital público. Ali era sem dúvida a clientela mais doente de que<br />
cuidava. Muitos pacientes eram casos perdidos, para os quais qualquer<br />
tratamento era inútil. Não tinha ilusões quanto a métodos mais<br />
modernos: a insanidade era terra de ninguém. O estranho era pensarem<br />
que ele, ou qualquer outro médico, sabia o que fazer diante<br />
das manifestações ilógicas da vida. Porque se fosse dentro da lógica,<br />
haveria remédios, discursos e expectativas. A razão, aprendera ainda<br />
como estagiário, só tem utilidade para os casos racionais.<br />
E as classificações que surgiram a partir do século XIX<br />
são dignas de obras de ficção. Mas tiveram seu propósito e o<br />
atingiram. Conseguiram, primeiro, mais verba; depois, valori-
zaram o médico da saúde mental e deram a ele mais controle<br />
sobre o saber. O cinismo não mencionou. Este veio naturalmente<br />
durante as reuniões, os congressos e seminários. Por<br />
que a empáfia, quando estavam a sós, sem testemunhas? Não<br />
precisavam mentir entre eles.<br />
Quinze anos e nenhum paciente recuperado. Na sua<br />
maioria dopavam os doentes, que se mostravam mais calmos<br />
durante as visitas para as famílias, o que dava sempre a sensação<br />
de esperança. Dentro de seis meses, quem sabe, terão<br />
alta e estarão em casa. Como seu horário não incluía as tardes<br />
de domingo, não tinha o constrangimento de lidar com os familiares,<br />
não precisava fingir para eles nem assistir ao recíproco<br />
fingimento deles. Tinha apenas suas observações nas fichas dos<br />
pacientes lidas por outros médicos, que explicavam suas palavras,<br />
conforme o entendimento e a conveniência.<br />
Quando em Outubro, surgiu a ideia de organizarem uma<br />
dramatização com os internos para as festas de Natal, alguém<br />
lembrou que ele, quando jovem, tivera experiência em teatro<br />
amador e talvez pudesse dirigir o espetáculo, ou colaborar de outra<br />
forma. Requisitado com elogios e na frente de outros médicos,<br />
não conseguiu recusar. De tal sorte, que na semana seguinte<br />
já andava às voltas com cenário, figurino, e correções no texto<br />
que ia surgindo aos poucos, durante os ensaios. Seria uma criação<br />
coletiva, mas caberia a ele também a redação final. Euforia não<br />
seria a palavra adequada para definir seu estado de espírito naqueles<br />
dias; entusiasmo também significava mais do que sentia.<br />
No entanto, tantas eram as tarefas que ele parecia animado. Um<br />
estagiário, com o idealismo típico dos iniciantes, sugeriu fazerem<br />
sessões de psicodrama, para que os ensaios tivessem uma dupla<br />
utilidade. Dali a cinco anos, ele com certeza já saberá distinguir as<br />
teorias ouvidas em sala de aula de um pátio de hospício. No terceiro<br />
ensaio, uma coisa era evidente: os doidos não conseguiam<br />
repetir o texto e muitos nem se lembravam quais os personagens<br />
que interpretaram na véspera. Feita uma reunião só com a equipe<br />
122<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 23
médica, ficou estabelecido que não haveria texto fixo, os personagens<br />
seriam escolhidos minutos antes da apresentação, as roupas<br />
seriam postas à disposição dos atores, e o palco seria delimitado<br />
por cordões. Tais determinações foram ditas com clareza e repetidas<br />
vezes, mas em vão. Havia quem fizesse perguntas sobre o<br />
significado das palavras texto, cenário, figurino, contrarregra etc.<br />
Acontece que as famílias já tinham sido avisadas das festas<br />
e do teatrinho. Não seria conveniente, portanto, cancelá-lo.<br />
Para elas seria uma satisfação assistir ao parente em cena, pois<br />
a peça daria a falsa ideia de que estão se recuperando. Aplaudiriam<br />
de pé ao final e entregariam flores ou doces caseiros como<br />
recompensa pelo desempenho, além das palavras de elogio.<br />
Diante disto, não tinham muito tempo para acertarem como seria<br />
a representação.<br />
Um servente sugeriu que dessem vários uniformes brancos<br />
para os internos e que eles dramatizassem como se fossem<br />
médicos. Ora, como não tinham noção do que era teatro, a ideia<br />
era deixar que eles se motivassem a falar, a gesticular e a andar<br />
nos limites do espaço cênico, motivados apenas pela sugestão<br />
dos uniformes. Seria uma reação sensorial, acrescentou um<br />
estagiário. O diretor não viu a proposta com bons olhos. E se<br />
algum doido, não tão doido, faz alguma crítica embaraçosa só<br />
com a imitação dos médicos, mesmo sem palavras? Naquele<br />
momento, a festa estava marcada para dali a dez dias, ou seja, o<br />
prazo era bem pequeno para qualquer alteração.<br />
Três dias antes do natal, na data prevista, às 16h, lá estavam<br />
familiares e pacientes sentados em uma sala espaçosa, à<br />
espera da peça de teatro, que aconteceria antes da festinha de<br />
confraternização e da distribuição de presentes. Dez minutos<br />
depois levantaram o pano que servia para delimitar o que seria<br />
o palco, a uma distância da plateia, mais por precaução do que<br />
por razão cênica. Os doidos, como era de se prever, não diziam<br />
coisa com coisa, apenas se movimentavam de um lado para o<br />
outro, vestidos com as mais disparatadas roupas, apanhadas<br />
Capítulo 23<br />
Béicas <strong>Letras</strong> 123
ao acaso de baús cedidos por um grupo circense que se apresentava<br />
ali perto.<br />
O diretor estipulou meia hora no máximo de espetáculo,<br />
caso tudo se desse de modo satisfatório. O difícil seria julgar o que<br />
é satisfatório para um doido e/ou para um diretor de manicômio.<br />
Caso surgisse algum problema, a ordem era descer o pano e pôr<br />
a gravação de músicas de circo em volume bem alto. Aliás, este<br />
seria o final, de qualquer maneira, já que não havia uma peça coerente<br />
com final verdadeiro.<br />
Havia dois enfermeiros a postos, atentos ao sinal do diretor:<br />
um soltaria uma corda, outro acionaria o botão do aparelho<br />
de som. Estes, sim, eram os protagonistas daquela tarde. Na cabeça<br />
deles a dúvida. O que seria motivo para interromper a peça,<br />
afinal nada no palco fazia o menor sentido? Seria a impaciência<br />
ou desagrado da plateia? Mas, se eram todos parentes dos internos,<br />
tinham que mostrar educação e paciência. Que em breve teriam<br />
refrigerantes e sanduíches. E daqui a duas horas os portões<br />
seriam abertos e poderiam ir embora, com o sentimento de dever<br />
familiar cumprido e em paz com a consciência natalina.<br />
De repente, um doido vestido como um atirador de facas,<br />
se pôs no centro do palco e, para surpresa e temor dos médicos,<br />
tirou lentamente três facas e as arremessou com precisão,<br />
acertando homens de uniforme que caíram imediatamente. A<br />
plateia, que supunha ser tudo ensaiado, aplaudiu de pé o realismo<br />
da cena e o desempenho do paciente. Já a música animada<br />
de circo, a todo volume, impedia que escutassem os gritos de<br />
desespero do único médico sobrevivente.<br />
124<br />
Marcus Vinicius Quiroga<br />
Capítulo 23
Este livro foi impresso no papel offset, de gramatura 90. Texto corrido<br />
diagramado na fonte Calibri, formato regular, corpo 11, entrelinha 14. Título<br />
do livro e títulos dos capítulos diagramados na fonte Allura, formato regular,<br />
corpo 20, entrelinha 20. <strong>Livro</strong> impresso na gráfica Tesouro Laser.
ISBN 978-85-68881-01-9<br />
9 788568 881019