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01
02
O - F () <br />
( )<br />
C : R A<br />
C : R A, O M, S<br />
G L, N R, J M-C, B<br />
C, J S<br />
M: Z@.<br />
A : ://2../<br />
F ( ):<br />
://../Z-257337514876298/<br />
C - O M<br />
C - B C<br />
O D E - R A J M-C<br />
PT0504, C I S G L, R A<br />
G I - N R<br />
C G C J M-C, I <br />
R A<br />
S , , - J M-C, <br />
R A<br />
D - S - B C<br />
A P J M-C, R A<br />
H J M-C, I <br />
R A<br />
D! - D R A, J M-C<br />
S J M-C, B C<br />
P N J M-C O M<br />
M T J M-C S O<br />
L S ( ) J S<br />
D S R A<br />
03
PT0504, Crime contra o Império<br />
De Sofia Guilherme Lobo<br />
PT0504 inclinou-se sobre o corpo<br />
inerte no chão de pedra, pequenos fios de<br />
sangue escorriam por entre as frinchas da<br />
armadura branca do Stormtrooper.<br />
Fechou um punho e atirou com ele ao<br />
chão, outra vez… à sua volta a multidão<br />
começou a dispersar, um pequeno grupo<br />
de Jawas ainda próximo parecia<br />
hesitante, um deles aproximou-se de um<br />
dos soldado e soltou um palavreado<br />
comum para os nativos mas guinchos<br />
para os seus ouvidos, que o outro<br />
traduziu:<br />
- Foi uma rixa entre alguns homens<br />
que trabalham para os Hunts. Este Jawas<br />
04
e não foram pagos. Pediram ajuda ao<br />
PT0604, ele foi falar com os homens e<br />
este foi o resultado. Mas não viram nada,<br />
dizem eles.<br />
Eles nunca vêm nada, nunca ninguém<br />
vê nada, desde que os malditos Hunts<br />
tomaram Tatooine, a cidade de Mos<br />
Eisley tornou-se a capital dos gangues,<br />
jogadores, vigaristas, contrabandistas,<br />
enfim, o lixo do Império juntou-se ali para<br />
lhe infernizar o resto dos seus dias<br />
A guarnição chega ao local,<br />
inspecionam o perímetro, falam com<br />
alguns transientes que ainda se<br />
encontram no local em estado de<br />
curiosidade mórbida e o caso foi<br />
encerrado na hora:<br />
- Chamem a equipa de limpeza e<br />
mandem o corpo para a incineradora. O<br />
centro de comando será informado para<br />
substituir a unidade. – Disse o<br />
comandante do quartel de Mos Eisley,<br />
colocando um ponto final a toda a<br />
questão. – Podem dispersar, não há nada<br />
para ver!<br />
E acabou tudo assim, sem<br />
inquéritos para apurar responsabilidades,<br />
um crime é cometido contra um soldado<br />
do império e ninguém é acusado por isso.<br />
PT0504 sentiu-se traído perante a<br />
injustiça, especialmente porque aquela<br />
unidade e ele eram da mesma série, o<br />
que o tornava o mais parecido que tinha<br />
de um irmão.<br />
Tinham uma relação peculiar,<br />
partilharam juntos a queda das luas de<br />
Andor, atirados para o esquecimento para<br />
Tatooine, passavam horas dos seus<br />
tempos livres em conversas existenciais,<br />
livres de armaduras a contemplarem o<br />
rosto um do outro, cópias idênticas do<br />
mesmo, algo que não era visto com<br />
agrado no meio.<br />
- PT0504 deve voltar para o quartel.<br />
– Era uma ordem direta e ele tinha que<br />
obedecer. Era para isso que existia, foi<br />
para isso que foi feito, servir o Império<br />
Galáctico sem questionar. Devia seguir<br />
para o seu posto, continuar o seu trabalho<br />
como se não se tivesse passado nada.<br />
Dirigiu-se para a sua viatura, um<br />
Solodeslizador esportivo XP-35 utilizado<br />
pelas forças imperiais como um veículo<br />
de apoio em guarnições planetárias, com<br />
lugar apenas para um piloto e o<br />
passageiro, um corpo oval ladeado por<br />
dois motores e um terceiro à retaguarda,<br />
de cor amarela com o símbolo do império<br />
Galáctico bem na frente. Entrou sem<br />
contradições, a cúpula de vidro desceu<br />
lentamente sobre o habitáculo assim que<br />
ligou os motores, demorou o tempo<br />
suficiente para ver a equipa de limpeza a<br />
enfiar o corpo dentro de um saco preto e<br />
05
este ser atirado como lixo para a caixa de<br />
um carro de recolha da incineradora.<br />
Nesta altura a multidão já se tinha<br />
dispersado, a via estava livre e ele<br />
avança com o Deslizador, não de volta ao<br />
quartel mas para fora da cidade, em<br />
direção ao deserto areoso e estéril que<br />
era aquele maldito planeta.<br />
Não conseguia explicar porque tinha<br />
tomado essa decisão, talvez estivesse<br />
com alguma avaria e precisasse de ser<br />
concertado, mas tinha que seguir aquele<br />
caminho enquanto a pista ainda estava<br />
fresca.<br />
Aquela hora do meio do dia, os dois<br />
sóis, um vermelho e outro amarelo<br />
pareciam que brincavam com uma paleta<br />
de cores no céu coberto de nuvens a<br />
prometer uma chuva que nunca vinha.<br />
Em cinco anos nunca tinha reparado em<br />
como aquela imagem era bela e sentiu<br />
um aperto no coração, uma angústia<br />
inexplicável que não conseguia justificar<br />
com a sua razão e lógica.<br />
Foi atraído por uma nuvem mais<br />
baixa e negra suspensa no ar. Um<br />
aglomerado de aves de rapina que<br />
PT0504 identificou como comedoras de<br />
metal. Tentou recordar como se<br />
chamavam, mas na sua base de dados<br />
não tinha nenhuma referência das<br />
mesmas, apenas sabia que os nativos<br />
não gostavam delas porque causavam<br />
muitas avarias indesejáveis aos<br />
desprevenidos.<br />
Reduziu a velocidade e seguiu essa<br />
direção.<br />
Dois Solodeslizadores estavam<br />
estacionados um ao lado do outro, um<br />
pouco mais à frente tinha sido montado<br />
um colossal chapéu-de-sol que cobria<br />
quatro assentos onde quatro homens,<br />
como na primeira fila de uma sala de<br />
espetáculos, assistiam divertidos à luta<br />
desesperada de dois Androides de<br />
lavoura a lutarem contra as aves de<br />
rapina que os comiam lentamente.<br />
Quanto mais barulho faziam, quanto mais<br />
se debatiam, mais aves eram atraídas,<br />
seduzidas pelo festim oferecido.<br />
PT0504 passou rente aos androides<br />
afoguentando os pássaros esfomeados,<br />
que voltaram à carga pouco depois, parou<br />
a meia dúzia de metros do quadro<br />
estranho e saiu sem pensar bem no que<br />
estava a fazer.<br />
- Sr. Stormprooper está muito longe<br />
da cidade! O que faz por aqui? – Disse o<br />
primeiro homem do lado direito. Para<br />
PT0504 pareciam todos iguais, vestidos<br />
com roupa elegante, trajes finos de quem<br />
tem créditos para gastar, de pele escura,<br />
o que era normal para quem passava<br />
muito tempo ao relento no deserto,<br />
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usavam todos um chapéu de aba larga<br />
que fazia sombra sobre o rosto,<br />
escondendo-o ligeiramente ao nível do<br />
nariz e olhos. Mas este que falava ainda<br />
tinha uma capa em veludo negra presa<br />
aos ombros por joias de alguma família<br />
aristocrática importante que não<br />
reconheceu e o homem também não se<br />
identificou. – Eu e os meus companheiros<br />
estamos aqui a divertir-nos um pouco,<br />
pode afastar-se de forma a não tapar a<br />
vista? Não tem trânsito para direcionar?<br />
- Estes dois Androides foram dados<br />
como roubados.<br />
- Nós é que fomos enganados,<br />
queriam impingir-nos aquele ferro velho<br />
como novo de qualidade. Mas faça favor,<br />
pode ir lá buscá-los e devolvê-los ao<br />
proprietário. Mas cuidado…- Fez uma<br />
pausa de suspense, como se fosse o<br />
narrador de um drama. – Aqueles<br />
passarões têm muita fome, e essa<br />
armadura deve dar um manjar dos<br />
deuses.<br />
- Mataram um Soldado do Império<br />
Galáctico. – Disse, mais como a<br />
constatação de um facto do que uma<br />
acusação.<br />
- E depois? O que vais fazer em<br />
relação a isso?<br />
- Estão presos para identificação e<br />
inquérito. – Respondeu. Mas não<br />
avançou mais nenhum passo.<br />
Ninguém lhe deu qualquer importância,<br />
como se fosse algo de insignificante, um<br />
inseto que nem chegava a incomodar. Em<br />
ausência de uma reação ou resposta, PT<br />
continuou:<br />
- Eu represento a nova ordem do<br />
Império Galáctico, cometeram um crime<br />
contra o imperador e devem ser punidos<br />
por isso. Qualquer resistência será<br />
considerada um ato de rebelião.<br />
- Tu e que exército?<br />
O homem finalmente levantou-se da<br />
cadeira e foi seguido pelos restantes.<br />
Parecia muito confortável com o calor,<br />
nem uma gota de suor lhe escorria do<br />
rosto. Apesar da armadura lhe regular a<br />
temperatura do corpo, PT0504 já<br />
começava a sentir-se desconfortável<br />
naquele ambiente.<br />
- Acho que estás um pouco<br />
desatualizado amigo, o Imperador<br />
Palpatine morreu, até Jabaa o Hunt<br />
morreu. – Afirmou o homem muito<br />
divertido com a situação. – Morto por uma<br />
escrava, estrangulado pela própria<br />
corrente que a prendia a ele. – Risos mal<br />
contidos. – Neste momento há uma<br />
ninhada de lesmas a matarem-se umas<br />
às outras pelo espólio do monstro e o<br />
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controlo desta terra inútil que mais<br />
ninguém quer.<br />
O segundo homem avançou uns<br />
passos, demonstrava uma ligeira<br />
impaciência e real preocupação, ao<br />
contrário dos outros que pareciam muito<br />
divertidos. PT identificou uma Blaster num<br />
cinto, bem à vista, parecia ser o único<br />
armado, mas isso não lhe dizia que os<br />
outros eram menos perigosos. Podiam ter<br />
as armas escondidas. Devido ao seu<br />
tamanho era fácil ocultá-las.<br />
- Vai embora, não queremos<br />
problemas, estamos aqui só a brincar um<br />
pouco, não queremos mal entendidos<br />
com o Império. Lamentamos o que<br />
aconteceu com o teu companheiro, mas a<br />
culpa foi dele de se meter onde não era<br />
chamado. Vai!! Choo, choo!!- Disse<br />
condescendente, como se estivesse a<br />
enxotar um animal inconveniente.<br />
PT sentiu-se insultado:<br />
- Sou um oficial do Império<br />
Galáctico…<br />
O bando perdeu a paciência.<br />
A formação militar antecipou o<br />
movimento e PT0504 saltou para trás do<br />
Solodeslizador, usando-o como uma<br />
parede contra três Blaster que surgiram<br />
do nada.<br />
- Agora vais morrer!! - Prometeu<br />
alguém.<br />
PT ainda pensou em responder mas<br />
desistiu. Em que é que estava a pensar?<br />
Em suicídio? Estaria assim tão farto da<br />
vida? Não era nada, um número de série<br />
facilmente substituível, nem sequer tinha<br />
hipótese de subir de posto por causa do<br />
fracasso nas Luas de Endor. Não ter sido<br />
incinerado na altura já tinha sido um<br />
golpe de sorte.<br />
Os raios laser raspavam por cima<br />
do seu capacete. Num segundo de pausa<br />
respondeu aos disparos. Pragas e o<br />
cheiro a carne queimada provaram que<br />
acertou em alguém. Uma pequena vitória.<br />
Um zumbido soou forte e ficou de<br />
imediato em alerta mas a explosão foi<br />
instantânea. Não contava com explosivos<br />
e só teve tempo de ligar o escudo no<br />
máximo. Não fosse a armadura teria<br />
ficado desfeito, a onda de choque atirou-o<br />
para vários metros de distância e ali ficou<br />
imóvel.<br />
Os homens soltaram vivas,<br />
guardaram as Blaster e soltaram algumas<br />
gargalhadas.<br />
- Mas que idiota…<br />
- Está mesmo morto?<br />
- Não sei… parece que sim, foi um<br />
bumm de estouro!!<br />
- Vai lá ver, tenho que admitir que<br />
tinha umas bolas bem grandes, ou era<br />
muito estúpido.<br />
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O homem passou pelos restos do<br />
deslizador ainda a arder ligeiramente até<br />
ao Stormtrooper estatelado no chão. Deulhe<br />
um pontapé nas pernas, outro em<br />
cima do capacete e dois disparos com a<br />
Blaster no peitoral.<br />
- Toma aqui o teu exército e o teu<br />
império!! – Cuspiu-lhe em cima e mais um<br />
pontapé. Voltou-se para os<br />
companheiros. – Está morto! – Decidiu<br />
finalmente.<br />
- Foi muito rápido, tens a certeza?<br />
Essas coisas são resistentes.<br />
- Sim, tenho. – E voltou a disparar.<br />
- Vamos embora antes que alguém<br />
venha à procura dele.<br />
Os homens apanharam as cadeiras,<br />
fecharam o chapéu-de-sol e dirigiram-se<br />
aos seus próprios Solodeslizadores. Ao<br />
longe as aves de rapina voltavam ao seu<br />
voo picado sobre os androides, agora<br />
inertes sobre as areias, já não davam<br />
luta. E num segundo aqueles homens<br />
juntavam-se aos androides, deitados no<br />
chão, com uma expressão de completa<br />
surpresa no rosto, sem compreenderem o<br />
que lhes tinha atingido, já não pareciam<br />
assim tão satisfeitos.<br />
Atras deles, um homem de pele<br />
muito branca ainda novo, vestido com um<br />
fato de macaco preto e com os pés<br />
descalços enfiados na areia, olhava para<br />
o que tinha feito, ainda confuso sobre o<br />
que ia acontecer de seguida.<br />
PT0504 ficou inconsciente apenas<br />
alguns segundos, o escudo salvou-o da<br />
explosão mas não salvou a maioria das<br />
aplicações da armadura que avariaram<br />
todas no momento. Ficou apenas o<br />
escudo.<br />
Recuperou a consciência no<br />
momento em que o homem lhe atira com<br />
uma bota pesada na viseira do capacete.<br />
PT0504 não consegue mexer-se ou emitir<br />
qualquer som. O Escudo não o permite,<br />
fica numa imobilização completa e sem<br />
conseguir gritar enquanto o nariz é<br />
partido com um crac sonoro e o maxilar é<br />
deslocado. Depois o peito começa a<br />
arder, provocado pelos disparos da<br />
Blaster no peitoral, e continua sem<br />
conseguir gritar ou mexer-se, como numa<br />
câmara de tortura.<br />
Não conseguia sentir raiva ou ódio,<br />
aceitou a proximidade da morte. Ia morrer<br />
e até sentia um certo alívio com essa<br />
ideia, como se isso o fosse libertar de<br />
todas as suas funções, como um<br />
androide que, ao chegar ao fim do seu<br />
tempo de autonomia é desligado<br />
permanentemente e vendido para peças.<br />
O seu torturador lança um último disparo<br />
e o escudo perde a sua função. A<br />
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armadura morre finalmente, mais um tiro e ele também.<br />
Mas isso não acontece, o homem decide que ele está morto e PT0504 consegue<br />
ouvi-lo a afastar-se, a arrumar os acentos, o chapéu-de-sol… levanta a cabeça olha a<br />
sua volta e descobre a sua Blaster entre os destroços do seu Solodeslizador. Tira o<br />
capacete e liga a desmontagem automática e as dezoito peças que constituía o resto<br />
da sua armadura soltam-se imediatamente. PT sente pela primeira vez os dois sóis<br />
sobre o rosto ensanguentado, e apesar de toda a dor, sente-se confortável e otimista.<br />
Arrasta-se livre da armadura até à Blaster e sem sair do local faz pontaria e não falha<br />
um disparo. A mão nem lhe tremeu um micro segundo. Era para isso que estava<br />
treinado, foi para isso que foi feito, para matar sem consciência.<br />
Ainda a recuperar, levanta-se a cambalear, os pés enfiados na areia a escaldar,<br />
mas nem toma atenção a isso. E agora?<br />
PT não sabe, nem quer saber, apanha um daqueles chapéus estilosos, tira a<br />
capa e as joias do homem morto e entra dentro de um dos Solodeslizadores, uma<br />
coisa sabia, não ia voltar.<br />
As aves de rapina depois do repasto de metal juntam-se por cima dos cadáveres para<br />
o festim de carne…<br />
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COMO GUARDAR O CORAÇÃO<br />
NA CAIXINHA DAS ESMOLAS<br />
José de Matos-Cruz<br />
Ao Carlos “Zíngaro”<br />
16 de Janeiro de 1917<br />
Cândido Roubeta olhou, numa<br />
ganância ansiosa, para a mulher<br />
Benedita, que suspirava com medo de<br />
fraquejar.<br />
- Tu achas, mesmo, que<br />
conseguimos? - questionou-o ela,<br />
atormentada por alguma inquietação<br />
feminina.<br />
Tal e qual, está feito! garantiu o<br />
afoito Cândido, ensaiando com a mão<br />
direita um golpe seco sobre a palma da<br />
esquerda. - Basta acertar-lhe em cheio,<br />
bem no meio da nuca!<br />
Mas, logo a seguir, as órbitas<br />
negras do marido arregalaram-se, como<br />
cavernas assombradas num súbito<br />
transe. Finalmente, ousou pensar alto:<br />
- E, depois, como é que nos<br />
desfazemos do corpo?<br />
São situações assim que<br />
determinam a perversa vivacidade dos<br />
matadores por conveniência. Ripostou-lhe<br />
Benedita, com fria argúcia:<br />
- Ora, isso será o menos... Tiras o<br />
tampo da cagadeira e manda-lo<br />
directamente para a fossa. Tapamos com<br />
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carqueja. Com tanto cheiro a merda,<br />
ninguém há-de reparar no fedor,<br />
enquanto ele vai apodrecendo!<br />
Ante tamanha boçalidade, até a<br />
imaginação grotesca de Cândido Roubeta<br />
se apavorou. Não era dado ao temor<br />
místico, mas um abalo desde as partes<br />
genitais fê-lo, ainda, duvidar num arrebato<br />
da masculinidade:<br />
- E se, mais tarde, ele aparece em<br />
fantasma? Carago, Benedita, nisso não<br />
se pode tocar nem espairecer...<br />
- Mas interessa-te pôr a unha na<br />
bolsa do dinheiro dele, não é?<br />
- Tu ouviste como as moedas<br />
tilintaram, quando a saca de couro lhe<br />
escapou das mãos, e caiu para o<br />
soalho... - justificou-se Cândido, em vão,<br />
com uma convicção já vencida pela<br />
cobiça.<br />
Um olhar paralisado firmou a<br />
cumplicidade entre o casal de velhos.<br />
Ambos esbracejavam, parvos, na<br />
eminência da tragédia, sob o naufrágio da<br />
santidade. Eram carrascos de uma<br />
oportunidade rara e desvairada, naquela<br />
estalagem erma, desolada, do Minho<br />
bravio, em que se cruzava, sem destino,<br />
o paradoxo de quatro caminhos. Até que<br />
tudo parecia ter um fim.<br />
Benedita Roubeta espicaçava, na<br />
sua natureza bruta e suplicante:<br />
- Com o que lhe tirarmos, ainda nos<br />
dá para ir ver o nosso filho, ao Brasil…<br />
Depois de tanto tempo, ralam-me as<br />
saudades! Coitadinho do Aquiles, como é<br />
que ele estará?<br />
O sítio, Rossas, era um gelo. Cândido<br />
untou a angústia de monstruoso crime,<br />
graças àquele desígnio maior de um<br />
reencontro familiar. Reteve Benedita, num<br />
gesto de determinação. Que ficasse ali no<br />
escano, junto à lareira crepitante.<br />
A Cândido, nada lhe escapava.<br />
Com um sopro, apagou as velas.<br />
Pronto, não lhe faltariam as forças,<br />
quando o punho armado desabasse<br />
sobre o infeliz mancebo, inesperado e<br />
encharcado pela tempestade, que horas<br />
antes ali chegara a cavalo. Com um<br />
estranho sotaque. Em busca de refúgio<br />
para a noite, acabaria por encontrar <br />
num sarcasmo funesto - o eterno<br />
descanso que se reserva às vítimas<br />
anónimas de um acaso providencial.<br />
- Também, ninguém o mandou vir...<br />
- resmungava Cândido Roubeta entre<br />
dentes, afastando algum resquício de<br />
remorsos prematuros, na raiva com que<br />
agarrava o candelabro extinto e<br />
exterminador.<br />
De vagarinho, abriu a porta do<br />
quarto, sem fazer barulho. Entrou como<br />
uma sombra a vigorar-se no escuro. Um<br />
pensamento fugaz expandia-o da ânsia<br />
de Benedita até à melancolia fatal por<br />
Aquiles. Como um autómato, Cândido<br />
penetrou, profundo, no coração do horror.<br />
Com um tal impacto, que nunca<br />
mais saía. Como se estivesse<br />
emaranhado às trevas. Pelo menos,<br />
assim parecia a Benedita, que ficara<br />
expectante na cozinha. Cada vez mais<br />
instável. À coca de qualquer ruído, e<br />
mirando consumida as labaredas.<br />
Até que um vulto reapareceu na<br />
ombreira antes transposta por Cândido.<br />
Durante alguns instantes, ficou a ganhar<br />
forma perceptível ao espanto de<br />
Benedita. Seria uma mistura híbrida,<br />
entre a decadência agastada do marido e<br />
a vivacidade do estrangeiro hóspede.<br />
Incrédula, desgraçada, Benedita sentiu<br />
desentranhar-se, fora de si, aquele logro<br />
maternal em que, para sempre,<br />
resplandecia a dor do anelo profanado<br />
por Aquiles Roubeta.<br />
- Demónio, o que me queres, e em que<br />
me tentas?! - gritou ela, a estrebuchar<br />
numa agonia que a precipitava ao pior<br />
dos pesadelos.<br />
Então, beijou-a uma língua de lume,<br />
com ardor corpóreo e tropical.<br />
Os SobreNaturais<br />
31
SAI DO ARMÁRIO, MEU AMOR,<br />
E DEIXA-ME ENTRAR NA NOITE<br />
José de Matos-Cruz<br />
7 de Abril de 1944<br />
Aquele riso cristalino não existe neste<br />
mundo. Parecia uma fonte a cantar, como<br />
se fosse uma donzela de coração aberto.<br />
Ela não provinha - formando-se ali,<br />
gerada no escuro, radiosa e fascinante.<br />
Os pezinhos tão delicados só seriam<br />
capazes de tocar em nenúfares. Mal<br />
cabia em todo o olhar de Amadeu<br />
Miraldes. Mas o miúdo enternecido<br />
materializava-a, então, nos jardins<br />
suspensos do seu sono profundo.<br />
Até que, volúvel, lhe chega a<br />
realidade. Assustado, Amadeu tudo faz<br />
para manter as pálpebras cerradas,<br />
furtando-se ao pesadelo. Nada sabe da<br />
felicidade - mas, com ingénuo instinto,<br />
fica alheado numa placenta nostálgica,<br />
saboreando a imponderabilidade dos<br />
ainda não nascidos. Como se intuísse o<br />
medo e o martírio. É uma pedrada na<br />
essência, contra o charco da existência.<br />
Amadeu limitava-se a coabitar o<br />
limite precipitado da sua integridade.<br />
Entre o desejo prodigioso e a ameaça<br />
propícia. Depois, paciência, tinha um<br />
destino a cumprir, mais umas horas a<br />
gastar naquele tremendo enredo de<br />
família, amigos, conhecidos, outra gente,<br />
feras e monstros.<br />
Já estremecia o soalho, com os<br />
passos do pai caminhando pelo quarto. A<br />
mãe sacudia-lhe ao de leve um ombro,<br />
arrebatando-o para este lado. Tudo o que<br />
32
era lindo e doce se desvanecia por<br />
encanto. Amadeu emergia entre os<br />
lençóis e apenas relanceava, com um<br />
discreto pudor, a porta do armário onde a<br />
Menina dos Sonhos se havia, como<br />
sempre, refugiado e esvaído.<br />
Cada manhã, portanto, Amadeu<br />
Miraldes apartava-se do que tanto<br />
gostava, conformado a relacionar-se<br />
entre os mais seres humanos.<br />
Comunicando por gestos e expressões,<br />
pois uma deficiência auditiva deixara-o<br />
insensível a sons, falas, ruídos, melodias.<br />
E também lhe custava tocar. O<br />
envolvimento para além do seu corpo era<br />
baço e desagradável.<br />
Por isso, Amadeu foi crescendo,<br />
com a impressão de que o que havia à<br />
sua volta ia mirrando. Incoerente,<br />
inevitável. Mas absteve-se, na<br />
normalidade. Concluiu sem distinção a 4ª<br />
Classe. Falhou o serviço militar com<br />
dever patriótico. Indiferente, voltou então<br />
à pasmaceira da sua aldeia beirã, para<br />
ver como os progenitores morriam e nada<br />
mais lhe restava em consciência.<br />
Tornou-se guardador de rebanhos,<br />
para sobreviver. Apascentava sem<br />
convicção, porém, das faldas aos cumes<br />
das serranias, enquanto cabras e ovelhas<br />
faziam pela vida, ele ia ruminando a<br />
saudade duma ausência imaginária.<br />
É que a Menina dos Sonhos nunca<br />
mais se havia desvendado. Embora<br />
Amadeu, da sua gente, apenas<br />
conservasse aquele armário sacralizado.<br />
E o mantivesse junto à cama. E embora a<br />
tal visão, às vezes, se esgueirasse.<br />
Em vão. Já se sabe, Amadeu<br />
Miraldes era surdo como uma porta - ora,<br />
por diferentes parecenças, a do armário<br />
fazia ouvir-se, rangendo ao abrir. Menos<br />
para ele, pois. Há infortúnios<br />
insuspeitáveis.<br />
Mas, não. Não para sempre.<br />
Um dia, Amadeu viu-a. Aquela<br />
rapariga que descia pelos socalcos, leve<br />
como se tivesse asas. Em carne e osso,<br />
evidente, absorta, o pastor apercebeu-se<br />
de que ela era especial.<br />
Franzina, sonambular, luzia<br />
deixando um rasto obscuro que se<br />
desprendia do seu vulto em transe,<br />
fantasmagórico.<br />
Como se não tivesse intenção ou<br />
orientação, irradiada e, ao sulcar, fosse<br />
espargindo um quebranto caprichoso.<br />
Para Amadeu, não era uma<br />
desconhecida. E, no entanto, ela<br />
ignorava-o. Um impasse germinal. Aos<br />
poucos, ia-se - afinal - cumprindo o elã<br />
por que tudo ali interagia, numa lógica<br />
sem explicação: a terra persistia, qual<br />
elemento comum; a morrinha só dava<br />
para um escaravelho pôr a pata na poça;<br />
uma larva qualquer evoluía para insecto;<br />
cobertos de musgo húmido, arfavam os<br />
penedos; matagal bravio fazia crescer os<br />
seus espinhos com brandura; um cão<br />
selvagem exultava no frenesim predador;<br />
franzindo o nariz, uma lebre furtiva saía<br />
da toca; árvores flectiam o tronco,<br />
revigorando os ramos; uma aragem<br />
coleava a fixidez etérea; alguns pássaros<br />
sacudiam-se, chilreando para ninguém;<br />
recortado pelas nuvens, já o sol cedia<br />
perante a noite.<br />
Amadeu Miraldes sucumbiu ao<br />
apetite das trevas. Num rompante,<br />
arremeteu - rendido à insinuante<br />
aparição, que se transfigurava.<br />
Mal refeita. A rir. Beijou-o.<br />
Amadeu olhou com espanto a<br />
espiritualizada, e mais tarde asseverou<br />
aos seus devaneios que, por instantes,<br />
tinha sentido o contacto de uns lábios,<br />
vindos de dentro da boca daquela<br />
acometida pelo sobrenatural.<br />
Os SobreNaturais<br />
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AONDE É QUE FICA<br />
O CENTRO DE PORTUGAL<br />
José de Matos-Cruz<br />
29 de Fevereiro de 1928<br />
Enquanto era sugado pela terra<br />
adentro, Elísio Salgado sentia uma<br />
impressão horrível entre os pés, e logo<br />
nas pernas todas, que iam sendo<br />
esmagadas. Porém, não tinha dores, nem<br />
a certeza do que estava a acontecer.<br />
Como se parte do seu corpo não fosse<br />
carne, ossos e sangue, mas como uma<br />
mistura de areia e pedras em erosão, que<br />
já não lhe pertencesse.<br />
O que seria quando chegasse ao<br />
coração, quando o pescoço esganasse e,<br />
estilhaçado, até o olhar se perdesse entre<br />
as luzes e as trevas? Tal era o transe, a<br />
aflição física, que Elísio nem conseguia<br />
imaginar, posto como estava, no auge<br />
esbracejante da própria consciência...<br />
«Para que é que eu me meti<br />
nisto?», logrou então pensar. Não fosse a<br />
sua malfadada curiosidade, a atracção<br />
pelo esquisito, a altivez de tentar o que<br />
nem bulia se ninguém lhe mexesse, e não<br />
estaria agora naquele descampado à<br />
beira de desaparecer para sempre, e sem<br />
deixar rasto.<br />
Há mistérios que, bradando aos<br />
céus, calam mais fundo nos infernos.<br />
Vivendo do diz-se, diz-se sempre pronto a<br />
tentar os palermas, pois os moucos<br />
mesmo incautos não lhes dão ouvidos.<br />
Nem os forretas são vítimas do que lhes<br />
custa a acreditar, quando a esmola é de<br />
morrer.<br />
Pelas raias da paranóia, ali em<br />
Mortágua, a parvónia de Elísio, há muito<br />
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se falava daquele sítio fatídico, em<br />
algures. Não era poço seco, ou um<br />
buraco árido e ruim como o deserto onde<br />
ele nascera e menosprezava como um cu<br />
do mundo, nas fraldas da Serra do<br />
Buçaco. Não, senhor, era uma cova ávida<br />
e gulosa, que se mostrava e engolia aos<br />
que se atrevessem com ela.<br />
E, pois com certeza, um ingrato que<br />
repudia o seu leito natal, só podia<br />
desvanecer-se num lençol letal. Bem feito<br />
cavando o destino, o degenerado Elísio<br />
nem precisaria de mortalha para a<br />
sepultura!<br />
A verdade, porém, seja escrita.<br />
Outros, mais sóbrios e assisados do que<br />
este desgraçado, ali mesmo haviam<br />
esvaído o ânimo. Só vagamente se sabia<br />
quem eram antes. Ninguém insistiu neles,<br />
após a sua tragédia fugaz. E, muito<br />
sinceramente, alguém diria mesmo onde<br />
era um tal lugar?<br />
- Não se encontra, chega-se lá...<br />
Os mais velhos, que já estavam por<br />
tudo e, com o malogro, no seu<br />
desencanto se deliciavam a aterrar os<br />
netos, alimentavam-lhe a memória.<br />
- É uma boca que se abre no chão...<br />
E foi assim, com tanta mania de se<br />
elevar, que Elísio Salgado acabara por<br />
cair, qual fantoche desamparado.<br />
Portanto, nada mais lhe restava do que<br />
aguentar - fazendo jus à resistência<br />
humana, sob um pavor de se fundir à<br />
natureza - com o precário elã das<br />
ousadias e dos azedumes que, em<br />
desfilada mental, lhe permitia, ainda,<br />
manter-se meio à tona.<br />
Lembrou-se que em miúdo<br />
acompanhava o pai, de burro, até à feira<br />
em Vale d’Açores, onde gostava de<br />
surripiar tremoços. Que depois o perdeu,<br />
quando Eliseu foi para França combater<br />
na guerra, embora a mãe recebesse um<br />
louvor póstumo sobre «A Alma de<br />
Portugal». Que cresceu com o instinto<br />
sexual acomplexado pela sua estatura de<br />
minorca. Que um dia se apaixonou<br />
perdidamente por Estela Alvorada,<br />
durante um espectáculo local do Circo<br />
Diamante, mas a estonteante artista<br />
achincalhou-o como labrego desvairado.<br />
E que, desde essa altura, uma raiva<br />
íntima passou a dominá-lo, ruminando<br />
numa existência inconsolável, humilhado<br />
sem referências pessoais...<br />
Filho único, a derradeira experiência<br />
normal de Elísio Salgado foi quando a Ti<br />
Elisa, farta e gasta, começou a berrar-lhe:<br />
- Ando eu mal para aqui, moura de<br />
trabalho... - e tombou para o lado, sem<br />
mais rodeios, como qualquer boa cristã.<br />
Aquela síncope, fetal, fulminou Elísio -<br />
puxando-o das coisas elementares para<br />
as causas transcendentes. Tomou-se de<br />
relações com bruxos, pôs em cima poses<br />
místicas, deu ares superiores,<br />
desencantou rezas, esgotou-se a<br />
esgravatar no que não era da sua conta.<br />
Do dia para a noite, Elísio Salgado<br />
entrou no rol daqueles que todos<br />
conhecem, mas de quem ninguém se<br />
importa. A certa altura, já nem reparavam<br />
nele, e desatou a andar aos pontapés...<br />
Ora, pronto, basta. A história vai longa,<br />
sem acutilância, cada vez mais rasteira.<br />
Acabou-se o tempo e a pachorra, quem<br />
diria:<br />
- Safa-te como puderes, Elísio... Vê<br />
se tens um golpe d’asa!<br />
Os SobreNaturais<br />
51
HÁ UM REINO SUSPENSO<br />
NA FLORESTA EM TRANSE<br />
José de Matos-Cruz<br />
3 de Outubro de 1917<br />
Júlio Oliveira sacudiu a mão onde,<br />
sofregamente, se haviam grudado os<br />
musgos e detritos, com o seu simples<br />
gesto de dar a volta à chave. Inquieto,<br />
deteve-se por um instante. Mas logo se<br />
decidiu, empurrando a tosca porta que,<br />
ao ranger, lhe parecia desvanecer um<br />
arco temporal - entre a sua trágica partida<br />
e este regresso, agora, tão intenso de<br />
melancolia e ansiedade.<br />
Ao transpor o umbral da velha casa,<br />
Júlio sentiu uma excitação lúgubre,<br />
visceral, que o atraía para o interior, onde<br />
umas réstias de luz difusa, a partir das<br />
frestas do telhado, eram o único sinal de<br />
vida entre a obscuridade inerme e os<br />
aromas mórbidos.<br />
Avançando meio às cegas pelo que<br />
sabia ser a cozinha, Júlio tropeçou, e a<br />
custo conseguiu manter o equilíbrio. Já<br />
refeito e ambientado à penumbra que<br />
matizara com a sua entrada, Júlio dirigiuse<br />
a uma das janelas, forcejando-a até<br />
abrir num rompante espectral.<br />
Era assim mesmo, um mundo desfeito<br />
e transido, aquele que Júlio tinha diante<br />
de si. E, no entanto, pairava também uma<br />
atmosfera doce, apelativa, lânguida,<br />
através das poeiras, das teias de aranha,<br />
que tudo cobriam. Reconheceu a lareira,<br />
a mesa sobre a qual estava um candeeiro<br />
52
de petróleo. Tudo exausto, consumido até<br />
ao limite da resistência.<br />
Mesmo ao lado, a cadeira que quase<br />
fizera cair Júlio. Desse brusco atropelo,<br />
porventura, reanimava-se agora um vulto<br />
de mulher, meio reclinada, em gestos<br />
torpes, que uma longa letargia mantinha<br />
ainda alheada.<br />
Júlio ficou atónito. Ali estava Ester, sua<br />
esposa, e tão jovem - tal como a havia<br />
abandonado! Que situação era aquela?<br />
Como podia ser? E agora? Que sarcasmo<br />
horrível do destino o colocava, assim,<br />
perante a mais grotesca experiência do<br />
infortúnio e da provação?<br />
O imprevisível paradoxo físico de Ester<br />
já reagia, seu corpo estremeceu e,<br />
finalmente, ela viu-o, revelando uma<br />
estranha naturalidade. Depois, algo lhe<br />
perturbou o belo rosto, enquanto<br />
balbuciava umas palavras:<br />
- Júlio… Júlio, és tu? Júlio, não te vás<br />
embora… Oh! Júlio, onde é que nós<br />
estamos, e o que se passa contigo?!<br />
Ela de um sono indefinido, ele num<br />
sonho indeferido... Ambos se sentiam<br />
pairar no mais delírio absurdo, entre a<br />
existência e a realidade.<br />
Destinos incompletos, cujo debate se<br />
assombra de renúncias e excessos. Júlio<br />
era um homem de porte másculo, para<br />
um cinquentão que havia regressado às<br />
origens do seu tormento, em busca<br />
nostálgica de redenção. E vacilava a<br />
inefável Ester, em qual quebranto<br />
suspenso de uma rotura angustiante, que<br />
se precipitava sobre a brutal<br />
incongruência daquele reencontro.<br />
Dádivas, dívidas. Trinta anos antes,<br />
Júlio Oliveira não aguentara mais o<br />
quotidiano de miséria encapotada, sem<br />
expectativas como professor em Campo<br />
de Bonfim, próximo Setúbal. Apesar da<br />
paixão por Ester Rocha, uma moça<br />
humilde e decente que ali desposou, tinha<br />
partido enfim com raiva e rancor, contra si<br />
mesmo na injustiça dos desígnios<br />
humanos. Sobretudo, ao despedaçar-se<br />
porfiando em vão pelas cinco partidas do<br />
Mundo, sob remorsos e desesperança,<br />
debatia-se cobarde com o fantasma<br />
expectante da sua amada que, saudoso,<br />
sempre o obsidiava como um sexto<br />
sentido.<br />
Um futuro comum que ele sacrificara<br />
nela, incapaz de retê-lo com todas as<br />
suas energias e capacidades. Fugindo,<br />
Júlio anulou-a. As consequências de tão<br />
funesto devaneio estavam-lhe, pois,<br />
patentes, como uma catástrofe leviana,<br />
lancinante, que assim se consumava -<br />
num sensual desajustamento, entre a sua<br />
frustrada maturidade e uma aparição<br />
sempiterna.<br />
Cenário mais desolador não poderia<br />
imaginar a patética aflição de Júlio. E<br />
repetia Ester num lamento, sem alento<br />
para se soerguer sequer:<br />
- Ai, Júlio... Ai, Júlio, Júlio...<br />
O que havia o marido de lhe<br />
corresponder? Como poderia, mesmo,<br />
aproximar-se dela? O que fazer frente<br />
àqueles braços estendidos, àqueles olhos<br />
suplicantes? Haveria algum ensejo de se<br />
resgatar?<br />
Só lhe apetecia desaparecer. De novo,<br />
renegando-se outra vez e a quem nunca<br />
deixou de estar presente? Espírito,<br />
vontade, esperança, intimidade – tudo<br />
desabara, incólume como o alicerce<br />
partilhado de um palácio em ruínas.<br />
Nessa virtualidade, ela era mais<br />
forte e fixa. E foi um frágil Júlio quem<br />
então sucumbiu ao sortilégio carnal de<br />
Ester. Calcinado no desejo com que<br />
beijou, enfim, os seus despojos mártires.<br />
Os SobreNaturais<br />
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SUSPIROS NA ESCURIDÃO<br />
Por momentos imprevistos, esfumava-se o vazio,<br />
formavam-se as sombras. Abstracções concretas,<br />
figuras incorpóreas. Diluindo o paradoxo da<br />
ansiedade, consumando a saudade de uma ausência.<br />
Só os sonhos possuíam tal substância esquiva,<br />
forjada entre oscilação e sonolência. Todavia, este era<br />
um sortilégio real, em magia e tragédia.<br />
Sublimando o caos. Olhos postos no fascínio, com<br />
o adensar dos detalhes. Mãos que tacteavam o<br />
impalpável, recriando o mistério da expressão.<br />
Logrando, através de uma tangência sensorial, captar<br />
o elã volátil no intenso fulcro da dissipação. Sugerindo<br />
os percalços da memória, fragmentada em laivos<br />
furtivos, enfim fortuitos estilhaços.<br />
Algo esquecido, ou suspeitado, sacrificara o<br />
equilíbrio natural daquela imaginária existência. E<br />
provocara um paroxismo alternativo – ali, aleatório,<br />
apenas perceptível pelo artifício de trevas volúveis, de<br />
linhas iluminadas. Às vezes, reconstituindo um vulto<br />
de mulher. Em transe. Expectante. Desafiando a<br />
erosão extrema, como súplica vital.<br />
Sussurros germinais, de exaustos fluidos. Lágrimas<br />
áridas, e que irradiavam. Assim, qual latente tormenta,<br />
ou vertigem suspensa, o frémito das emoções<br />
sobressaltava a oclusão dos prodígios… Uma<br />
alvorada, que nascesse em carne e sangue. Um<br />
desígnio sensual, que ofuscasse a iniquidade. Outro<br />
mundo, à revelia. Elementar. Utópico.<br />
José de Matos-Cruz<br />
As Crónicas do Livro Livre<br />
Ilustração de Bernardino Costantino<br />
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PASSAGEIROS DA NÉVOA<br />
Surgiam do nada, quando a neblina se tornava<br />
espessa, e os seus corpos formavam-se de fascínio<br />
e ilusão. Por vezes, sem aparente essência, apenas<br />
virtuais. Outras já continham previsibilidade, ou um<br />
estímulo consistente ao toque e à sensação. Eram,<br />
então, complexos, íntegros, podendo reagir ou<br />
alterar-se, em fluxo próprio, partilhado.<br />
Acervo de sonhos. Matéria-prima, premente.<br />
Mistura-bruta, sublimada. Enleavam-se e desfaziamse<br />
num elã esbelto, num caudal aleatório. Assim,<br />
evoluíam. Logo, alternavam. Solitárias mutações.<br />
Artifícios coincidentes. Qual bailado volúvel, entre o<br />
quebranto e a substância. Em expectativa tácita,<br />
sobre um momento único. Agora.<br />
Quimeras por capricho. Em sua euforia espectral,<br />
imitando o aspecto humano. Fantasmas recriando a<br />
sedução e o desejo, a posse e o desenlace. Gestos,<br />
jeitos, ritmos, cadências, compondo afinal uma<br />
peculiar insinuação, sugerindo um ritual implícito,<br />
volátil. Tudo palpitava e fulgia, até que a bruma se<br />
dissipava, para próxima ênfase.<br />
Ciclos em auspício. Um fenómeno inesperado,<br />
latejante, ao irromper, sob ressurreição. Uma viagem<br />
latente, coreográfica, cujos ténues protagonistas<br />
tentassem uma plenitude transitória, testassem uma<br />
efémera eternidade. Transfigurando a penumbra.<br />
Um percurso inspirado no ímpeto das lendas,<br />
estilizado na vigília dos sonâmbulos.<br />
José de Matos-Cruz<br />
As Crónicas do Livro Livre<br />
Ilustração de Ornella Micheli<br />
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MONTRA DAS TENTAÇÕES<br />
Vultos passavam, sem que ela reparasse. Sombras<br />
fluíam, e a jaula que a continha, suspensa, animava-se<br />
de cores e artifícios. Sem o sentir, parecia indiferente.<br />
Estática. Estátua. Então, dentro de si, os monstros<br />
alvoroçavam, delirantes. Ora, à sua volta, iam<br />
crescendo a feérie e a euforia. Apenas impressões, em<br />
esquálida imitação da vida. Seria cenário ou realidade?<br />
E, nesta hipótese, quem habitaria aquele corpo? Ou,<br />
qual ícone exposto, como tenderia às emoções? Teria<br />
um domínio próprio? Espelharia<br />
outra dimensão? A aura nua do abandono, sob uma<br />
espiral esfacelada, inconsequente. Improviso,<br />
representação, conjugando distintos planos e<br />
correlações fortuitas… Bem mais simples, eis patente<br />
um quadro de museu. Espessa moldura, tela<br />
exuberante, furtivo público, espaço multifacetado. Ao<br />
gerar, entre si, referências e separações. O elã oculto,<br />
latente, em que se forjaria um contraste de símbolos,<br />
virtualidades. A orla volúvel, subtil, por que se romperia<br />
uma convergência de flagrantes, tensões.<br />
Assim, ela arrebatava o auge de modelo, no ensejo da<br />
mulher – enigma e fascínio, sustendo prodígios,<br />
incitando paroxismos. Alvo apático. Fulcro essencial.<br />
Porém, era o íntimo que a transfiguraria. Obscuro.<br />
Expectante. Aí, evoluía a noite original. Caos.<br />
Frenesim. E a luz que irradiava – ínfimas cintilações, ou<br />
infinitas possibilidades…<br />
José de Matos-Cruz<br />
As Crónicas do Livro Livre<br />
Ilustração de Shigehiro Okada<br />
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