Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
nem um pouco nas palavras. De vez em quando, no nal do dia, a Sra. Traynor<br />
aparecia — embora nunca falasse muita coisa comigo além do “Está tudo bem?”,<br />
cuja única resposta aceitável parecia ser “Sim”.<br />
Ela perguntava a Will se ele queria alguma coisa, às vezes sugeria algo que<br />
ele po<strong>de</strong>ria gostar <strong>de</strong> fazer no dia seguinte — sair ao ar livre, ou visitar algum<br />
amigo que havia perguntado por ele —, e ele quase sempre respondia com<br />
<strong>de</strong>sprezo, quando não diretamente com uma grosseria. Ela parecia magoada,<br />
corria os <strong>de</strong>dos por sua correntinha dourada e sumia <strong>de</strong> novo.<br />
O pai <strong>de</strong> Will, um homem gorducho <strong>de</strong> aparência gentil, costumava chegar<br />
quando eu estava saindo. <strong>Era</strong> o tipo do sujeito que po<strong>de</strong> ser visto assistindo a um<br />
jogo <strong>de</strong> críquete usando um chapéu panamá e que, aparentemente, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se<br />
aposentara <strong>de</strong> seu emprego bem-remunerado na cida<strong>de</strong>, supervisionava a<br />
administração do castelo. <strong>Eu</strong> <strong>de</strong>sconava <strong>de</strong> que era como um daqueles ricos<br />
fazen<strong>de</strong>iros que <strong>de</strong> vez em quando planta alguma coisa ele mesmo, só para<br />
“manter a mão na massa”. Ele encerrava o expediente todos os dias às cinco em<br />
ponto e vinha ver TV com Will. Às vezes, ao sair eu o escutava fazer uma<br />
observação sobre alguma coisa do noticiário.<br />
Precisei prestar muita atenção em Will Traynor naquelas primeiras semanas.<br />
Reparei que ele parecia <strong>de</strong>terminado a não lembrar em nada com o homem que<br />
tinha sido; <strong>de</strong>ixara seu cabelo castanho-claro crescer em uma bagunça disforme e<br />
a barba por fazer se espalhava sobre o rosto. Seus olhos cinzentos tinham marcas<br />
<strong>de</strong> cansaço, ou do <strong>de</strong>sconforto que ele sentia quase o tempo todo (Nathan me<br />
disse que ele raramente se sentia bem). Eles levavam o olhar vazio <strong>de</strong> alguém<br />
que está sempre alguns passos afastado do mundo a seu redor. Às vezes, eu me<br />
perguntava se aquilo não era um mecanismo <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> Will, já que a única<br />
maneira que encontrou <strong>de</strong> lidar com sua vida foi ngir que não era com ele que<br />
aquelas coisas estavam acontecendo.<br />
<strong>Eu</strong> gostaria <strong>de</strong> sentir pena <strong>de</strong>le. <strong>Eu</strong> realmente queria. Quando o pegava<br />
olhando para fora através da janela, pensava que ele era a pessoa mais triste que<br />
eu já conhecera. E, à medida que os dias se passavam e eu notava que sua<br />
condição não tinha relação somente com o fato <strong>de</strong> estar preso naquela ca<strong>de</strong>ira ou<br />
com a perda <strong>de</strong> sua liberda<strong>de</strong> física, mas por uma série innita <strong>de</strong> problemas <strong>de</strong><br />
saú<strong>de</strong>, riscos e <strong>de</strong>sconfortos, concluí que, se eu fosse Will, provavelmente também<br />
me sentiria infeliz.<br />
Mas, meu Deus, ele era horrível comigo. Tinha uma resposta mordaz para<br />
tudo o que eu dizia. Se eu queria saber se ele estava bem aquecido, ele retrucava<br />
que era sucientemente capaz <strong>de</strong> me avisar se precisasse <strong>de</strong> outro cobertor. Se<br />
eu perguntava se o aspirador fazia muito barulho — eu não queria atrapalhar seu<br />
lme —, Will questionava o porquê daquela pergunta, por acaso eu conseguia<br />
fazer o aparelho funcionar em silêncio? Quando eu lhe dava as refeições, ele<br />
reclamava que a comida estava quente <strong>de</strong>mais ou fria <strong>de</strong>mais, ou que eu tinha