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NUMERO 19 - A ERA DA DESINFORMAÇÃO (O CONSENSO DE WASHINGTON)

O que determina e influencia nossa consciência; como pensamos, nos comportamos e agimos? O espírito desta era? Como isso deve ser definido? As pressões e os processos da vida cotidiana, como os experimentados dentro de estruturas sociais específicas de um estado dominante contra revolucionário e seus aliados, é a resposta favorita desse autor. De qualquer forma alguém pode explicar as conversões em massa, que marcaram o fim do século XX, de hordas de políticos, acadêmicos, intelectuais, escritores e jornalistas, para não mencionar um bando de carreiristas, coletivamente embriagados pelo Consenso de Washington (CW)? Seus instintos aguçados perceberam que a tendência decisiva na vida política e cultural era o conformismo. Eles se metamorfosearam, açambarcando todas as suas ideias em uma única embalagem. Tudo isso engendrou sua própria psicologia e sua linguagem. Os pilares da nova ordem global eram vistos como instituições quase divinas, cuja autoridade derivava do simples fato de existirem: uma corporação global é benéfica porque é uma corporação global, e ela é uma corporação global porque é benéfica. Na verdade, essa lógica foi imposta pela expansão da OTAN (organização do tratado do atlântico norte) em direção ao leste e por uma rede de bases militares norte americanas em 121 países.

O que determina e influencia nossa consciência; como pensamos, nos comportamos e agimos? O espírito desta era? Como isso deve ser definido? As pressões e os processos da vida cotidiana, como os experimentados dentro de estruturas sociais específicas de um estado dominante contra revolucionário e seus aliados, é a resposta favorita desse autor. De qualquer forma alguém pode explicar as conversões em massa, que marcaram o fim do século XX, de hordas de políticos, acadêmicos, intelectuais, escritores e jornalistas, para não mencionar um bando de carreiristas, coletivamente embriagados pelo Consenso de Washington (CW)? Seus instintos aguçados perceberam que a tendência decisiva na vida política e cultural era o conformismo. Eles se metamorfosearam, açambarcando todas as suas ideias em uma única embalagem. Tudo isso engendrou sua própria psicologia e sua linguagem. Os pilares da nova ordem global eram vistos como instituições quase divinas, cuja autoridade derivava do simples fato de existirem: uma corporação global é benéfica porque é uma corporação global, e ela é uma corporação global porque é benéfica. Na verdade, essa lógica foi imposta pela expansão da OTAN (organização do tratado do atlântico norte) em direção ao leste e por uma rede de bases militares norte americanas em 121 países.

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A <strong>ERA</strong> <strong>DA</strong> <strong><strong>DE</strong>SINFORMAÇÃO</strong><br />

O <strong>CONSENSO</strong> <strong>DE</strong> <strong>WASHINGTON</strong>


Onde a injustiça fala com as vozes<br />

da justiça e do poder<br />

onde a injustiça fala com as vozes<br />

da benevolência e da razão<br />

onde a injustiça fala com as vozes<br />

da moderação e da experiência<br />

ajude-nos a não nos tornarmos amargos.<br />

E se nos desesperarmos<br />

ajude-nos a ver que estamos desesperados<br />

e se nos tornarmos amargos<br />

ajude-nos a ver que estamos nos tornando amargos<br />

e se nos encolhermos com medo<br />

ajude-nos a saber que é medo<br />

desespero e amargura e medo<br />

Para que não caiamos<br />

no erro<br />

de pensar<br />

que tivemos uma nova revelação<br />

e encontramos a grande saída<br />

ou a entrada<br />

e que apenas isso nos modificou.<br />

Erich Fried, “Prece noturna” (<strong>19</strong>78)<br />

A <strong>ERA</strong> <strong>DA</strong> <strong><strong>DE</strong>SINFORMAÇÃO</strong> (O <strong>CONSENSO</strong> <strong>DE</strong> <strong>WASHINGTON</strong>)<br />

O que determina e influencia nossa consciência; como pensamos, nos comportamos e<br />

agimos? O espírito desta era? Como isso deve ser definido? As pressões e os processos da<br />

vida cotidiana, como os experimentados dentro de estruturas sociais específicas de um estado<br />

dominante contra revolucionário e seus aliados, é a resposta favorita desse autor. De qualquer<br />

forma alguém pode explicar as conversões em massa, que marcaram o fim do século XX, de<br />

hordas de políticos, acadêmicos, intelectuais, escritores e jornalistas, para não mencionar um<br />

bando de carreiristas, coletivamente embriagados pelo Consenso de Washington (CW)? Seus<br />

instintos aguçados perceberam que a tendência decisiva na vida política e cultural era o<br />

conformismo. Eles se metamorfosearam, açambarcando todas as suas ideias em uma única<br />

embalagem. Tudo isso engendrou sua própria psicologia e sua linguagem. Os pilares da nova<br />

ordem global eram vistos como instituições quase divinas, cuja autoridade derivava do<br />

simples fato de existirem: uma corporação global é benéfica porque é uma corporação global,<br />

e ela é uma corporação global porque é benéfica. Na verdade, essa lógica foi imposta pela<br />

expansão da OTAN (organização do tratado do atlântico norte) em direção ao leste e por uma<br />

rede de bases militares norte americanas em 121 países.<br />

A crise e o colapso de todas as alternativas não-capitalistas, junto com o fim das guerras<br />

fria e quente entre estados unidos e o mundo comunista (<strong>19</strong>17-<strong>19</strong>91), tiveram um profundo<br />

impacto em várias pessoas que até então, falando genericamente, se alinhavam na esquerda.<br />

Mesmo aqueles que tiveram pouca ou nenhuma ilusão em relação ao modelo soviético de<br />

socialismo foram fortemente afetados por seu colapso. Da mesma forma que, logo após a<br />

restauração, no século XVIII, na frança, muito poucos podiam declarar publicamente “sou um<br />

homem de 1794” - stendhal foi uma exceção memorável, ao escolher o ano das execuções<br />

reais como decisivo para a recém-nascida república, para muitos europeus, depois de <strong>19</strong>91,<br />

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não era mais possível dizer “apesar de tudo, sou uma pessoa de <strong>19</strong>17”. Neste último caso, isso<br />

levaria logo a algumas conclusões: “eu nunca poderia ter sido uma mulher do new deal” ou<br />

“sempre achei que os trabalhistas, em <strong>19</strong>45, estavam errados ao nacionalizar as minas e as<br />

ferrovias” ou “ a obsessão francesa com o Estado é uma ressaca de Vichy” ou “talvez não<br />

tenha sido tão ruim o fato de a esquerda ser derrotada nas guerras civis espanhola e grega “, e<br />

assim por diante.<br />

Ao contrário da europa, da austrália e dos EUA, havia uns poucos penitentes na américa<br />

do sul. Um número significativo de ativistasse intelectuais se recusou a dar as costas à<br />

revolução cubana. E o que é mais importante: mesmo alguns agudos críticos de Fidel<br />

rejeitaram a ideia de aplaudir seus possíveis assassinos em washington e miami. Houve<br />

famosas exceções, naturalmente, entre as quais carlos fuentes e mario vargas Llosa. O mesmo,<br />

infelizmente, não pode ser dito da maioria dos latinos-americanistas nos meios acadêmicos<br />

ocidentais ou dos que prestam serviço ao exército da mídia global. Eles “amadureceram” e se<br />

esfacelaram ou, para falar claramente, traíram. Se você não conseguir reaprender, não vai ter<br />

sucesso.<br />

No ocidente, o triunfo do capitalismo pareceu ser definitivo. O CW tornou-se<br />

hegemônico. As duas principais ideias da nova ordem são: (a) o novo modelo de capitalismo<br />

como a “única” maneira de organização a humanidade, a partir de agora e até que o planeta<br />

imploda, e (b) a flagrante violação da soberania nacional, em nome de impor sua própria visão<br />

dos “direitos humanos” Essas ideias e as políticas interna e externa que nelas se baseiam se<br />

espalharam como uma febre contagiosa nas duas últimas décadas. Ilusões traídas e esperanças<br />

descartadas levaram a uma visão amargurada do passado, alimentando ambições pessoais. O<br />

individual passou a prevalecer sobre a comunidade. Os mais ajustados prosperaram.<br />

O resultado da primeira ideia representou uma derrota das instituições democráticas e a<br />

continuidade da decadência do sistema político partidário. Embora mais pronunciado no<br />

ocidente, ocorre também na índia, no brasil e na áfrica do sul. Reduzidas as diferenças<br />

políticas, os partidos se tornaram conchas vazias, mecanismos feitos para ajudar a elite<br />

política a compartilhar tanto o poder quanto o dinheiro. Os partidos têm cada vez menos<br />

integrantes, mas são mantidos por uma pequena rede de profissionais, equivalentes políticos<br />

de seus colegas da indústria da publicidade. No século passado, herbert marcuse foi<br />

amplamente ridicularizado por prever que a tendência no capitalismo moderno seria criar uma<br />

cultura consumista em que os humanos, também, seriam produzidos em massa, e que levaria<br />

inexoravelmente a uma sociedade passiva e atomizada. O colapso do comunismo turbinou<br />

esse processo.<br />

Após <strong>19</strong>91, qualquer conversa sobre resistência política, mesmo no plano das ideias,<br />

passou a ser visto como algo louco, dissonante, perverso, retrógrado. O grande desejo agora,<br />

por parte de quem já fora um dia de esquerda, era se ajustar, e esse poderoso impulso levou<br />

muitos homens e mulheres inteligentes, que em outro momento admiravam moscou e pequim,<br />

ou prinkpo e coyoacan, ou havana, hanoi e manágua, e em alguns casos extremos pyong yang<br />

e tirana, a se converterem à nova ordem. A psicologia individual é, naturalmente, importante<br />

para explicar uma transformação total da opinião política de uma pessoa, mas nesse caso o<br />

fenômeno foi tão amplo que só pode ser visto como o marco da saída de cena de toda uma<br />

camada social. Ao observarem as mudanças no cenário social e político, pararam de pensar. O<br />

capitalismo, que muitos um dia viram como um câncer incurável, passou a ser considerado a<br />

única cura disponível. O que isso representa, senão uma abjeta prostração diante das<br />

dificuldades e dos perigos da história?<br />

A nova fé é, como sabemos, velha. O capitalismo existe há 500 anos. O simples fato de<br />

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que tenha sobrevivido a todas as suas crises, enquanto o socialismo, de fato, durou meros 70<br />

anos e entrou em colapso quando confrontado por seu maior desafio, proporcionou-lhe uma<br />

qualidade vinculada à antiguidade, quando confrontado com os presunçosos experimentos<br />

sociais que terminaram em desastre. E isso resultou na transformação dos que apoiavam o CW<br />

em quase religiosos em suas devoções. O que apoiavam e tornou imutável e infalível; todos os<br />

problemas cessariam quando o mundo inteiro tivesse se convertido. Todas as heresias<br />

precisavam ser expelidas para que se tornasse consistente. Qualquer desafio à sua visão<br />

deveria ser descartado.<br />

E até hoje, se observarmos com atenção as mentes dos novos convertidos, tudo que se<br />

vê é um espaço vazio, ocupado com mobília emprestada. Muitos querem omitir esse fato, mas<br />

não há nada lá uqe lhes pertença. É a bagagem da nova ordem que influencia tudo: suas<br />

crenças, seus gestos, sua hipocrisia, e até a maneira como se vestem. Em alguns casos, a velha<br />

linguagem corporal e a prosa escrupulosa foi preservada; olhos injetados se iluminam e<br />

punhos cerrados e se erguem para celebrar uma nova guerra imperial gloriosa ou um novo<br />

golpe. Como a guerra foi um desastre e o golpe ruiu pela degradação, a demonstração de<br />

autoconfiança é pouco mais do que uma mistura desconcertante de fingimento e fanfarronice.<br />

Insignificantes em si, o que essas pessoas representam é a ponta poluída do iceberg. E é este<br />

último que precisa ser revelado.<br />

Um único império, mas numerosos canais 24 h dominam o mundo em que vivemos;<br />

todos, exceto dois (al-jazeera e a venezuelana telesur), compartilham a mesma agenda. A<br />

concentração do poder da mídia, nas mãos de meia dúzia de magnatas globais, destina-se mais<br />

a promover uma “mudança de regime” do que a favorecer a liberdade de expressão e<br />

pensamento. As corporações da desinformação (incluindo redes controladas pelo estado como<br />

BBC e ABC) constituem uma importante camada na construção do império que domina o<br />

mundo. A dicotomia amigo/inimigo, crente/herético promovida pela casa branca e pelo<br />

consenso de washington domina a cobertura da grande imprensa. Escritor de outros tempos, o<br />

crítico e satírico austríaco Karrl Kraus comentou em uma ocasião: “se o repórter tiver matado<br />

nossa imaginação com a sua verdade, ele ameaça nossa vida com suas mentiras.”<br />

Uma única imagem, descontextualizada e fartamente repetida, tem se mostrado<br />

suficiente para convencer os cidadãos do nosso mundo humanitário-imperial de que é tempo<br />

de uma nova guerra. Imagens desse tipo dominaram a cobertura da imprensa em guerras como<br />

a da iugoslávia e a do afeganistão, mas não havia fotos atualizadas do iraque em 2002 – as<br />

anteriores, mostrando os efeitos do napalm e do gás venenoso em um vilarejo curdo, foram<br />

economicamente utilizadas, pois já tinham duas décadas e alguns espectadores mais velhos<br />

poderiam se lembrar de que o déspota iraquiano era, naquela altura, um estimado aliado do<br />

ocidente, da mesma forma que os “combatentes pela liberdade”, no afeganistão. Na<br />

inexistência de imagens, as mentiras eram suficientes; elas cumpriam esse papel, mesmo que<br />

fossem exibidas conclusivamente como tal.<br />

E nos tempos de paz? Já vai longe a época em que era ideologicamente necessário<br />

mostrar a importância da diversidade, da dissidência, de uma opinião pública vibrante e de<br />

partidos oposicionistas, para os desprovidos cidadãos da união soviética e do leste europeu. A<br />

china vem demonstrando que um capitalismo dinâmico não requer nem mesmo os rudimentos<br />

de uma democracia. Hoje a nova ordem exige o conformismo sócio-político-econômico e o<br />

gerenciamento das notícias se torna mais importante do que chegou a ser no século passado.<br />

Considerando que as novas regras se aplicam a todos os aspectos da política e da estratégia<br />

imperiais, como poderiam as reportagens sobre as mudanças do mundo permanecerem<br />

imunes? Par a imensa maioria dos jornalistas ocidentais, deixando de lado a minoria<br />

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diretamente ligada às agências de inteligência, há um critério principal ao avaliarem um<br />

regime: não o seu retrospecto em matéria de direitos humanos, mas se o Estado m questão é<br />

um amigo ou um inimigo do CW. Aos aliados de washington é permitido bombardear cidades,<br />

torturar pessoas, cometer crimes de guerra; isso tanto pode ser retratado como algo<br />

lamentável, mas necessário, quando pode transformar as vítimas em culpados pelo que lhes<br />

está sendo feito. A palestina, a chechênia, o iraque e o afeganistão são os exemplos mais<br />

óbvios.<br />

Raramente, a proclamada ideologia do ocidente enfrentou um conflito tão grande<br />

quanto em 2002, durante o golpe de estado na venezuela, apoiada pelos EUA-UE, em que o<br />

presidente eleito, hugo chávez, foi visto como desleal aos interesses norte-americanos na<br />

região. (a venezuela é o maior produtor de petróleo da américa latina.) A queda de um<br />

presidente eleito foi tão aplaudida, pelos políticos e pelos guardiães da nova ordem na mídia,<br />

que se poderia perdoar quem imaginasse ter retornado aos tempos da repressão colonial aos<br />

levantes nativos. Virtualmente, o mesmo comentário apareceu na maior parte da grande<br />

imprensa e dos canais de televisão. Como vemos, a curta duração desse golpe específico<br />

congelou a operação da mídia em seu estágio inicial: mais uma semana e aleluias se tornariam<br />

inaudíveis. O episódio foi revelador, em muitos níveis, e será discutido em mais detalhes em<br />

outra parte deste livro. Aqui, é apenas necessário estudar a ampla campanha de desinformação<br />

das redes do CW.<br />

A cobertura do golpe na imprensa transatlântica – the economist e financial times – era<br />

previsivelmente tendenciosa, frequentemente demonstrando preferência pela fantasia e pelo<br />

que gostaria que fosse, em lugar de reportar a realidade sociopolítica. Os correspondentes das<br />

duas publicações em caracas eram Philip gunson (que também trabalhava como free-lancer do<br />

miami herald e como o adversário de chávez para várias finalidades, sempre que necessário) e<br />

Andrew Webb-Vidal. Esses dois se posicionaram permanentemente a favor da oligarquia<br />

venezuelana e de seus partidos políticos. A partir da sua privilegiada posição, esses<br />

subservientes jornalistas tornaram-se os dois principais mantenedores da chama oligárquica na<br />

mídia ocidental. O passado radical de Gunson, como partidário da revolução sandinista na<br />

Nicarágua, e o desencanto após seu colapso azedaram sua visão da venezuela. Amargurado e<br />

cínico, virou agora um opositor de todo coração do processo bolivariano, levemente<br />

envergonhado nos primeiros anos, mas cada vez mais raivoso, à medida que cresciam a<br />

estatura e a força de chávez. Webb-Vidal – menos inteligente, porém mais tendencioso –<br />

desenvolveu um tom, um método e uma ética jornalística em artigos de denúncia que eram<br />

estranhamente semelhantes aos do pravda dos tempos de brejnev*.(nota*: o Pravda era o<br />

órgão oficial do partido comunista russo, conhecido por seu extremo reducionismo. Leonid<br />

Brejnev foi primeiro-secretário do partido por muitas décadas. A uniformidade da mídia<br />

ocidental hoje faz lembrar essa época. Da mesma forma que a linha adotada pelo Pravda era<br />

fidedignamente reproduzida na imprensa pós soviética em todo o mundo, hoje o consenso de<br />

washington, alicerçado por uma fina arte praticada por the economist, financia times e<br />

washington post, é lealmente reproduzido em cada continente.) Esse sórdido bardo de uma<br />

ordem social desacreditada não fazia segredo de sua simpatia pela oligarquia e o Financial<br />

Times não via motivo para questionar essa “objetividade”.<br />

Foi quando chávez tentou assumir o controle da gigante petrolífera estatal da venezuela<br />

– onde os principais executivos e os líderes sindicais, que chegaram a esses cargos graças a<br />

políticos totalmente desacreditados, ligados à gestão anterior, se recusaram claramente a<br />

trabalhar com o novo governo – que a oligarquia venezuelana e seus aliados políticos<br />

perceberam que precisavam preservar seu futuro e que a situação exigia uma ação rápida. A<br />

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nomeação de uma nova diretoria deu o sinal para o sindicato dos petroleiros (bastante<br />

engajado na derrota do partido da ação democrática) promover uma greve. As oligarquias e<br />

seus amigos em washington e madrid estavam convencidos de que, sem o fluxo de petróleo, a<br />

economia entraria em colapso, gerando uma agitação popular e permitindo o uso de métodos<br />

tradicionais para promover um enfraquecido Chávez do poder.<br />

Assim quando, exatamente um ano antes de invadir o iraque, os estados unidos deram<br />

luz verde para um golpe na venezula, as oligarquias ficaram visivelmente impressionadas. Um<br />

ex-presidente da câmara de comércio, arruinado até mesmo para os padrões venezuelanos,<br />

passou a ser cogitado como candidato a presidente. Alguns poucos generais ordenaram então a<br />

prisão de chávez, que foi levado para uma base militar. Até então, tudo errado. À medida que<br />

a notícia se espalhava, crescia a raiva nos bairros em torno de Caracas e os pobres decidiram<br />

marchar para o palácio presidencial, o miraflores. Simultaneamente, um outro acontecimento<br />

igualmente significativo ocorria dentro do palácio. Com a mídia ocidental pronta e esperando<br />

para apresentar ao mundo um submisso presidente como o salvador da democracia<br />

venezuelana (o new york times defendeu o golpe, considerando-o um fortalecimento da<br />

democracia), um general saiu do palácio e falou com o chefe da polícia militar. Informou que<br />

havia um novo presidente e que deviam tocar o hino nacional, como de hábito. Os soldados<br />

questionaram as ordens. Irritado com a desobediência, o general voltou-se para um jovem<br />

corneteiro, um soldado de 18 anos, e instruiu-o a tocar quando visse o novo presidente.<br />

“desculpe general, mas de qua presidente o senhor fala? Nós conhecemos apenas um. Hugo<br />

Chávez.” O general, furioso, ordenou que obedecesse às suas ordens. A esta altura, o<br />

corneteiro entregou o instrumento ao general e disse: “O senhor parece ter grande entusiasmo<br />

pela corneta. Aqui está. Toque.” Esse é um soldado que pode orgulhosamente dizer a seus<br />

filhos: “eu não obedeci às ordens.” A combinação de revolta popular e ameaça de um motim<br />

dos soldados resultou na volta triunfante de chávez. O povo dos bairros marchou para a cidade<br />

para defender seu governo bolivariano. Fizeram isso porque sabiam que chávez havia sido<br />

afastado do poder porque os estava ajudando; porque entendiam ter começado na venezuela<br />

um complexo movimento, que tentava libertar o país da dominação de washington; e porque<br />

acreditavam que até mesmo as fraquezas dos bolivarianos eram melhores que as forças da<br />

oposição. Um ano após o fracassado golpe, essa era certamente a minha impressão, a partir de<br />

conversas com várias pessoas de diferentes origens socioeconômicas, algumas das quais não<br />

apoiavam chávez.<br />

O instinto do jovem corneteiro estava muito mais em sintonia com a maioria dos outros<br />

cidadãos venezuelanos do que o do pessoal da mídia, que foi programado para responder<br />

positivamente a um clamoroso golpe antidemocrático e o fazia sem qualquer vergonha.<br />

Dentro do país, os dois principais jornais diários não tinham qualquer simpatia por chávez<br />

(um deles, acostumado a receber propinas ou subsídios clandestinos dos governos anteriores,<br />

ofereceu os mesmos serviços aos bolivarianos, que recusaram). Foram, sobretudo, a CNN de<br />

língua espanhola e, muito mais abertamente, os canais de Gustavo Cisneros que apoiaram o<br />

golpe. Em Cisneros, a oligarquia venezuelana encontrou seu mais puro representante. O<br />

bilionário latino americano, destinado a ser um Murdoch ou um Berluschoni, estava no centro<br />

do golpe. Como seus pares, em qualquer parte do mundo, pensava, sobretudo, em seus<br />

próprios interesses. Só servia aos velhos partidos políticos porque eles serviam a seus<br />

interesses, e mostrava apreço ao servilismo, usando o peculiar ministro das finanças como<br />

intermediário. Gostava de exaltar que nada disso era pra obter ganhos pessoais e sim para o<br />

bem do continente. Mas porque dedicaria suas energias ao continente, a menos que existisse<br />

dinheiro a ganhar? Era proprietário da venevisión, o maior canal privado de televisão da<br />

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venezuela, desde <strong>19</strong>61, muito antes de o mundo caminhar em sua direção. E agora podia ser<br />

usado como uma arma pelos bárbaros que ameaçavam o poder do dinheiro. Nos últimos anos,<br />

a venevisión tornou-se conhecida por seus infindáveis ataques aos bolivarianos, chamando-os<br />

de “horda” e “macacos”, com este último termo refletindo a atitude tradicional dos brancos<br />

em relação aos primos de pele mais escura. Como festejam, nos frondosos subúrbios do leste<br />

de caracas, essa demonstração de sagacidade.<br />

A mais sofisticada tecnologia de comunicação é colocada agora a serviço das mais<br />

primitivas e simplistas necessidades do sistema, fornecendo o que é pedido, inclusive golpes<br />

de estado e substituições escabrosas de presidentes eleitos.<br />

Os repórteres do Financial Times – e, precisamos enfatizar, todos os jornais, redes de<br />

televisão e bajuladores de partidos pequenos e grandes que seguiam a liderança do CW<br />

(CNN/BBC, EL PAÍS/LE MON<strong>DE</strong>), ao refletir as visões dos políticos derrotados e dos<br />

golpistas – ou subestimaram ou ignoraram os seguintes fatos.:<br />

(a) a repulsa popular à violência, à inépcia e à corrupção do velho regime eram a base<br />

das vitórias bolivarianas, resultando na eleição de Hugo Chávez para a presidência; de sua<br />

vitória no referendo sobre a nova constituição por maioria esmagadora, contra a oposição de<br />

todos os partidos oligárquicos; (b) as “tensões políticas” resultavam de uma recusa direta dos<br />

partidos derrotados de aceitar o direito de um governo eleito de implementar seu programa e<br />

se baseavam na “revolta de patriotas chilenos da classe média” contra Allende, em 11/09/73,<br />

concebida por Henry Kissinger e a CIA; (c) os homens que consideravam Chávez “um traidor<br />

da nação” tentavam, simultaneamente, evitar a democracia venezuelana e agiam de acordo<br />

com as determinações das embaixadas espanhola e norte-americana em caracas; (d) a empresa<br />

de pesquisa de opinião mencionada é bastante conhecida por sua forte ligação com<br />

desacreditados partidos políticos; (e) como 85% da mídia pertencem ao capital privado, ela se<br />

opôs virulentamente a Chávez, frequentemente recorrendo a apelos racistas que não seriam –<br />

e não são – tolerados por nenhum governo ocidental.<br />

Em algumas horas o golpe começou a enfrentar problemas. O plano original dos<br />

golpistas para montar uma abrangente junta, que reuniria civis e militares, foi descartado,<br />

antes mesmo de Chávez se render ao exército. Assumiu em seu lugar Pedro Carmona, o líder<br />

do lobby empresarial, com um gabinete de conservadores fanáticos que excluíram os<br />

trabalhadores. Carmona foi persuadido a decretar o imediato fechamento da Assembleia<br />

Nacional e da Suprema Corte, e a pôr fim à Constituição de Chávez, aprovada por ampla<br />

maioria em um referendo realizado em dezembro de <strong>19</strong>99. Enredado como uma crisálida<br />

dentro do golpe original, esse “golpe dentro do golpe” irritou muitos que haviam trabalhado<br />

para depor chávez.<br />

Ainda assim, impressionou ver como Chávez, que em 12 de abril parecia não contar<br />

com apoio militar, retornou ao palácio dois dias depois pelas mão das forças armadas.<br />

Carmona, embora resultado por muitos generais e almirantes, não contava com os oficiais das<br />

camadas intermediárias, que efetivamente controlavam as tropas. E os conservadores<br />

subestimaram o fervor e a raiva do que ainda queriam Chávez, e não haviam se preocupado<br />

em adotar algumas precauções elementares para garantir a permanência no poder. Um levante<br />

liderado por uma divisão de paraquedista (que já havia sido comandada por Chávez) e pela<br />

guarda presidencial bastou para derrubar Carmona.<br />

O Le Monde, antes um modelo de reportagens sérias em todos os continentes,<br />

degenerou-se muito além da imaginação. Após o 11 de setembro de 2001, seu editor, jeanmarie<br />

colombani, escreveu um emocionado editorial intitulado “somos todos americanos”. E<br />

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porque tanto medo e hostilidade em relação aos novos movimentos e governos que querem<br />

uma alternativa ao CW? Presumivelmente, os partidários de washington imaginaram algo<br />

diferente. Um paraíso, um mundo baseado no mercado, sem ameaças, impossível de ser<br />

desfiado. O esmagador triunfo do capitalismo, durante as últimas décadas do século XX,<br />

cegou seus partidários, velhos e novos, para qualquer outra possibilidade. O espírito do<br />

mundo fora subjugado. Era o fim da história. Ideias radicais foram guardadas e os trabalhos<br />

em que se baseavam, queimados em praça pública. Os séculos dourados estão pela frente. Que<br />

os guerreiros do FMI/Banco Mundial se entusiasmassem por essa visão era uma coisa; mas o<br />

espírito dos tempos afetou profundamente muitos ex-opositores ao domínio do capital.<br />

Vencidos por uma combinação de fadiga e medo do desconhecido, começaram a pintar suas<br />

novas vitórias com gloriosas cores primárias.<br />

A desilusão pós <strong>19</strong>89, o cinismo e uma amargurada visão do passado afetaram todos os<br />

continentes, sem exceção. E aqueles que agora adotam a visão da história dos vencedores vêm<br />

de todas as classes sociais e origens políticas. Políticos e acadêmicos, romancistas e<br />

teatrólogos, cineastas e jornalistas unidos para celebrar cada novo triunfo do CW.<br />

Eleger Chávez (ele obteve 56,2% dos votos) era a vingança dos despossuídos. Até isso<br />

acontecer, a américa latina fora praticamente ignorada por Washington. É verdade que cuba<br />

ainda estava lá, mas com o estrangulamento das sanções em vigor, o consenso decidiu esperar<br />

até que Fidel castro morra, antes de tomar uma nova iniciativa.<br />

Nos demais, as ditaduras haviam sido cuidadosamente remodeladas e transformadas em<br />

democracias representativas: Brasil, Argentina e Chile, comprometidos a dar continuidade ao<br />

neoliberalismo. A liberdade política e o mercado, desvinculados por muitas décadas devido à<br />

Guerra Fria, podiam agora andar juntos e em harmonia.<br />

Esse renascimento da esperança e o surgimento de uma alternativa modesta ao status<br />

quo alarmaram washington. Por isso, a desinformação sistemática praticada pelas grandes<br />

redes corporativas de notícias.<br />

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