PASSAGEIROS DA NÉVOA Surgiam do nada, quando a neblina se tornava espessa, e os seus corpos formavam-se de fascínio e ilusão. Por vezes, sem aparente essência, apenas virtuais. Outras já continham previsibilidade, ou um estímulo consistente ao toque e à sensação. Eram, então, complexos, íntegros, podendo reagir ou alterar-se, em fluxo próprio, partilhado. Acervo de sonhos. Matéria-prima, premente. Mistura-bruta, sublimada. Enleavam-se e desfaziamse num elã esbelto, num caudal aleatório. Assim, evoluíam. Logo, alternavam. Solitárias mutações. Artifícios coincidentes. Qual bailado volúvel, entre o quebranto e a substância. Em expectativa tácita, sobre um momento único. Agora. Quimeras por capricho. Em sua euforia espectral, imitando o aspecto humano. Fantasmas recriando a sedução e o desejo, a posse e o desenlace. Gestos, jeitos, ritmos, cadências, compondo afinal uma peculiar insinuação, sugerindo um ritual implícito, volátil. Tudo palpitava e fulgia, até que a bruma se dissipava, para próxima ênfase. Ciclos em auspício. Um fenómeno inesperado, latejante, ao irromper, sob ressurreição. Uma viagem latente, coreográfica, cujos ténues protagonistas tentassem uma plenitude transitória, testassem uma efémera eternidade. Transfigurando a penumbra. Um percurso inspirado no ímpeto das lendas, estilizado na vigília dos sonâmbulos. José de Matos-Cruz As Crónicas do Livro Livre Ilustração de Ornella Micheli 58
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