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SUSPIROS NA ESCURIDÃO<br />
Por momentos imprevistos, esfumava-se o vazio,<br />
formavam-se as sombras. Abstracções concretas,<br />
figuras incorpóreas. Diluindo o paradoxo da<br />
ansiedade, consumando a saudade de uma ausência.<br />
Só os sonhos possuíam tal substância esquiva,<br />
forjada entre oscilação e sonolência. Todavia, este era<br />
um sortilégio real, em magia e tragédia.<br />
Sublimando o caos. Olhos postos no fascínio, com<br />
o adensar dos detalhes. Mãos que tacteavam o<br />
impalpável, recriando o mistério da expressão.<br />
Logrando, através de uma tangência sensorial, captar<br />
o elã volátil no intenso fulcro da dissipação. Sugerindo<br />
os percalços da memória, fragmentada em laivos<br />
furtivos, enfim fortuitos estilhaços.<br />
Algo esquecido, ou suspeitado, sacrificara o<br />
equilíbrio natural daquela imaginária existência. E<br />
provocara um paroxismo alternativo – ali, aleatório,<br />
apenas perceptível pelo artifício de trevas volúveis, de<br />
linhas iluminadas. Às vezes, reconstituindo um vulto<br />
de mulher. Em transe. Expectante. Desafiando a<br />
erosão extrema, como súplica vital.<br />
Sussurros germinais, de exaustos fluidos. Lágrimas<br />
áridas, e que irradiavam. Assim, qual latente tormenta,<br />
ou vertigem suspensa, o frémito das emoções<br />
sobressaltava a oclusão dos prodígios… Uma<br />
alvorada, que nascesse em carne e sangue. Um<br />
desígnio sensual, que ofuscasse a iniquidade. Outro<br />
mundo, à revelia. Elementar. Utópico.<br />
José de Matos-Cruz<br />
As Crónicas do Livro Livre<br />
Ilustração de Bernardino Costantino<br />
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