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de petróleo. Tudo exausto, consumido até<br />
ao limite da resistência.<br />
Mesmo ao lado, a cadeira que quase<br />
fizera cair Júlio. Desse brusco atropelo,<br />
porventura, reanimava-se agora um vulto<br />
de mulher, meio reclinada, em gestos<br />
torpes, que uma longa letargia mantinha<br />
ainda alheada.<br />
Júlio ficou atónito. Ali estava Ester, sua<br />
esposa, e tão jovem - tal como a havia<br />
abandonado! Que situação era aquela?<br />
Como podia ser? E agora? Que sarcasmo<br />
horrível do destino o colocava, assim,<br />
perante a mais grotesca experiência do<br />
infortúnio e da provação?<br />
O imprevisível paradoxo físico de Ester<br />
já reagia, seu corpo estremeceu e,<br />
finalmente, ela viu-o, revelando uma<br />
estranha naturalidade. Depois, algo lhe<br />
perturbou o belo rosto, enquanto<br />
balbuciava umas palavras:<br />
- Júlio… Júlio, és tu? Júlio, não te vás<br />
embora… Oh! Júlio, onde é que nós<br />
estamos, e o que se passa contigo?!<br />
Ela de um sono indefinido, ele num<br />
sonho indeferido... Ambos se sentiam<br />
pairar no mais delírio absurdo, entre a<br />
existência e a realidade.<br />
Destinos incompletos, cujo debate se<br />
assombra de renúncias e excessos. Júlio<br />
era um homem de porte másculo, para<br />
um cinquentão que havia regressado às<br />
origens do seu tormento, em busca<br />
nostálgica de redenção. E vacilava a<br />
inefável Ester, em qual quebranto<br />
suspenso de uma rotura angustiante, que<br />
se precipitava sobre a brutal<br />
incongruência daquele reencontro.<br />
Dádivas, dívidas. Trinta anos antes,<br />
Júlio Oliveira não aguentara mais o<br />
quotidiano de miséria encapotada, sem<br />
expectativas como professor em Campo<br />
de Bonfim, próximo Setúbal. Apesar da<br />
paixão por Ester Rocha, uma moça<br />
humilde e decente que ali desposou, tinha<br />
partido enfim com raiva e rancor, contra si<br />
mesmo na injustiça dos desígnios<br />
humanos. Sobretudo, ao despedaçar-se<br />
porfiando em vão pelas cinco partidas do<br />
Mundo, sob remorsos e desesperança,<br />
debatia-se cobarde com o fantasma<br />
expectante da sua amada que, saudoso,<br />
sempre o obsidiava como um sexto<br />
sentido.<br />
Um futuro comum que ele sacrificara<br />
nela, incapaz de retê-lo com todas as<br />
suas energias e capacidades. Fugindo,<br />
Júlio anulou-a. As consequências de tão<br />
funesto devaneio estavam-lhe, pois,<br />
patentes, como uma catástrofe leviana,<br />
lancinante, que assim se consumava -<br />
num sensual desajustamento, entre a sua<br />
frustrada maturidade e uma aparição<br />
sempiterna.<br />
Cenário mais desolador não poderia<br />
imaginar a patética aflição de Júlio. E<br />
repetia Ester num lamento, sem alento<br />
para se soerguer sequer:<br />
- Ai, Júlio... Ai, Júlio, Júlio...<br />
O que havia o marido de lhe<br />
corresponder? Como poderia, mesmo,<br />
aproximar-se dela? O que fazer frente<br />
àqueles braços estendidos, àqueles olhos<br />
suplicantes? Haveria algum ensejo de se<br />
resgatar?<br />
Só lhe apetecia desaparecer. De novo,<br />
renegando-se outra vez e a quem nunca<br />
deixou de estar presente? Espírito,<br />
vontade, esperança, intimidade – tudo<br />
desabara, incólume como o alicerce<br />
partilhado de um palácio em ruínas.<br />
Nessa virtualidade, ela era mais<br />
forte e fixa. E foi um frágil Júlio quem<br />
então sucumbiu ao sortilégio carnal de<br />
Ester. Calcinado no desejo com que<br />
beijou, enfim, os seus despojos mártires.<br />
Os SobreNaturais<br />
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