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Orion-2

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de petróleo. Tudo exausto, consumido até<br />

ao limite da resistência.<br />

Mesmo ao lado, a cadeira que quase<br />

fizera cair Júlio. Desse brusco atropelo,<br />

porventura, reanimava-se agora um vulto<br />

de mulher, meio reclinada, em gestos<br />

torpes, que uma longa letargia mantinha<br />

ainda alheada.<br />

Júlio ficou atónito. Ali estava Ester, sua<br />

esposa, e tão jovem - tal como a havia<br />

abandonado! Que situação era aquela?<br />

Como podia ser? E agora? Que sarcasmo<br />

horrível do destino o colocava, assim,<br />

perante a mais grotesca experiência do<br />

infortúnio e da provação?<br />

O imprevisível paradoxo físico de Ester<br />

já reagia, seu corpo estremeceu e,<br />

finalmente, ela viu-o, revelando uma<br />

estranha naturalidade. Depois, algo lhe<br />

perturbou o belo rosto, enquanto<br />

balbuciava umas palavras:<br />

- Júlio… Júlio, és tu? Júlio, não te vás<br />

embora… Oh! Júlio, onde é que nós<br />

estamos, e o que se passa contigo?!<br />

Ela de um sono indefinido, ele num<br />

sonho indeferido... Ambos se sentiam<br />

pairar no mais delírio absurdo, entre a<br />

existência e a realidade.<br />

Destinos incompletos, cujo debate se<br />

assombra de renúncias e excessos. Júlio<br />

era um homem de porte másculo, para<br />

um cinquentão que havia regressado às<br />

origens do seu tormento, em busca<br />

nostálgica de redenção. E vacilava a<br />

inefável Ester, em qual quebranto<br />

suspenso de uma rotura angustiante, que<br />

se precipitava sobre a brutal<br />

incongruência daquele reencontro.<br />

Dádivas, dívidas. Trinta anos antes,<br />

Júlio Oliveira não aguentara mais o<br />

quotidiano de miséria encapotada, sem<br />

expectativas como professor em Campo<br />

de Bonfim, próximo Setúbal. Apesar da<br />

paixão por Ester Rocha, uma moça<br />

humilde e decente que ali desposou, tinha<br />

partido enfim com raiva e rancor, contra si<br />

mesmo na injustiça dos desígnios<br />

humanos. Sobretudo, ao despedaçar-se<br />

porfiando em vão pelas cinco partidas do<br />

Mundo, sob remorsos e desesperança,<br />

debatia-se cobarde com o fantasma<br />

expectante da sua amada que, saudoso,<br />

sempre o obsidiava como um sexto<br />

sentido.<br />

Um futuro comum que ele sacrificara<br />

nela, incapaz de retê-lo com todas as<br />

suas energias e capacidades. Fugindo,<br />

Júlio anulou-a. As consequências de tão<br />

funesto devaneio estavam-lhe, pois,<br />

patentes, como uma catástrofe leviana,<br />

lancinante, que assim se consumava -<br />

num sensual desajustamento, entre a sua<br />

frustrada maturidade e uma aparição<br />

sempiterna.<br />

Cenário mais desolador não poderia<br />

imaginar a patética aflição de Júlio. E<br />

repetia Ester num lamento, sem alento<br />

para se soerguer sequer:<br />

- Ai, Júlio... Ai, Júlio, Júlio...<br />

O que havia o marido de lhe<br />

corresponder? Como poderia, mesmo,<br />

aproximar-se dela? O que fazer frente<br />

àqueles braços estendidos, àqueles olhos<br />

suplicantes? Haveria algum ensejo de se<br />

resgatar?<br />

Só lhe apetecia desaparecer. De novo,<br />

renegando-se outra vez e a quem nunca<br />

deixou de estar presente? Espírito,<br />

vontade, esperança, intimidade – tudo<br />

desabara, incólume como o alicerce<br />

partilhado de um palácio em ruínas.<br />

Nessa virtualidade, ela era mais<br />

forte e fixa. E foi um frágil Júlio quem<br />

então sucumbiu ao sortilégio carnal de<br />

Ester. Calcinado no desejo com que<br />

beijou, enfim, os seus despojos mártires.<br />

Os SobreNaturais<br />

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