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se falava daquele sítio fatídico, em<br />

algures. Não era poço seco, ou um<br />

buraco árido e ruim como o deserto onde<br />

ele nascera e menosprezava como um cu<br />

do mundo, nas fraldas da Serra do<br />

Buçaco. Não, senhor, era uma cova ávida<br />

e gulosa, que se mostrava e engolia aos<br />

que se atrevessem com ela.<br />

E, pois com certeza, um ingrato que<br />

repudia o seu leito natal, só podia<br />

desvanecer-se num lençol letal. Bem feito<br />

­ cavando o destino, o degenerado Elísio<br />

nem precisaria de mortalha para a<br />

sepultura!<br />

A verdade, porém, seja escrita.<br />

Outros, mais sóbrios e assisados do que<br />

este desgraçado, ali mesmo haviam<br />

esvaído o ânimo. Só vagamente se sabia<br />

quem eram antes. Ninguém insistiu neles,<br />

após a sua tragédia fugaz. E, muito<br />

sinceramente, alguém diria mesmo onde<br />

era um tal lugar?<br />

- Não se encontra, chega-se lá...<br />

Os mais velhos, que já estavam por<br />

tudo e, com o malogro, no seu<br />

desencanto se deliciavam a aterrar os<br />

netos, alimentavam-lhe a memória.<br />

- É uma boca que se abre no chão...<br />

E foi assim, com tanta mania de se<br />

elevar, que Elísio Salgado acabara por<br />

cair, qual fantoche desamparado.<br />

Portanto, nada mais lhe restava do que<br />

aguentar - fazendo jus à resistência<br />

humana, sob um pavor de se fundir à<br />

natureza - com o precário elã das<br />

ousadias e dos azedumes que, em<br />

desfilada mental, lhe permitia, ainda,<br />

manter-se meio à tona.<br />

Lembrou-se que em miúdo<br />

acompanhava o pai, de burro, até à feira<br />

em Vale d’Açores, onde gostava de<br />

surripiar tremoços. Que depois o perdeu,<br />

quando Eliseu foi para França combater<br />

na guerra, embora a mãe recebesse um<br />

louvor póstumo sobre «A Alma de<br />

Portugal». Que cresceu com o instinto<br />

sexual acomplexado pela sua estatura de<br />

minorca. Que um dia se apaixonou<br />

perdidamente por Estela Alvorada,<br />

durante um espectáculo local do Circo<br />

Diamante, mas a estonteante artista<br />

achincalhou-o como labrego desvairado.<br />

E que, desde essa altura, uma raiva<br />

íntima passou a dominá-lo, ruminando<br />

numa existência inconsolável, humilhado<br />

sem referências pessoais...<br />

Filho único, a derradeira experiência<br />

normal de Elísio Salgado foi quando a Ti<br />

Elisa, farta e gasta, começou a berrar-lhe:<br />

- Ando eu mal para aqui, moura de<br />

trabalho... - e tombou para o lado, sem<br />

mais rodeios, como qualquer boa cristã.<br />

Aquela síncope, fetal, fulminou Elísio -<br />

puxando-o das coisas elementares para<br />

as causas transcendentes. Tomou-se de<br />

relações com bruxos, pôs em cima poses<br />

místicas, deu ares superiores,<br />

desencantou rezas, esgotou-se a<br />

esgravatar no que não era da sua conta.<br />

Do dia para a noite, Elísio Salgado<br />

entrou no rol daqueles que todos<br />

conhecem, mas de quem ninguém se<br />

importa. A certa altura, já nem reparavam<br />

nele, e desatou a andar aos pontapés...<br />

Ora, pronto, basta. A história vai longa,<br />

sem acutilância, cada vez mais rasteira.<br />

Acabou-se o tempo e a pachorra, quem<br />

diria:<br />

- Safa-te como puderes, Elísio... Vê<br />

se tens um golpe d’asa!<br />

Os SobreNaturais<br />

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