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era lindo e doce se desvanecia por<br />
encanto. Amadeu emergia entre os<br />
lençóis e apenas relanceava, com um<br />
discreto pudor, a porta do armário onde a<br />
Menina dos Sonhos se havia, como<br />
sempre, refugiado e esvaído.<br />
Cada manhã, portanto, Amadeu<br />
Miraldes apartava-se do que tanto<br />
gostava, conformado a relacionar-se<br />
entre os mais seres humanos.<br />
Comunicando por gestos e expressões,<br />
pois uma deficiência auditiva deixara-o<br />
insensível a sons, falas, ruídos, melodias.<br />
E também lhe custava tocar. O<br />
envolvimento para além do seu corpo era<br />
baço e desagradável.<br />
Por isso, Amadeu foi crescendo,<br />
com a impressão de que o que havia à<br />
sua volta ia mirrando. Incoerente,<br />
inevitável. Mas absteve-se, na<br />
normalidade. Concluiu sem distinção a 4ª<br />
Classe. Falhou o serviço militar com<br />
dever patriótico. Indiferente, voltou então<br />
à pasmaceira da sua aldeia beirã, para<br />
ver como os progenitores morriam e nada<br />
mais lhe restava em consciência.<br />
Tornou-se guardador de rebanhos,<br />
para sobreviver. Apascentava sem<br />
convicção, porém, das faldas aos cumes<br />
das serranias, enquanto cabras e ovelhas<br />
faziam pela vida, ele ia ruminando a<br />
saudade duma ausência imaginária.<br />
É que a Menina dos Sonhos nunca<br />
mais se havia desvendado. Embora<br />
Amadeu, da sua gente, apenas<br />
conservasse aquele armário sacralizado.<br />
E o mantivesse junto à cama. E embora a<br />
tal visão, às vezes, se esgueirasse.<br />
Em vão. Já se sabe, Amadeu<br />
Miraldes era surdo como uma porta - ora,<br />
por diferentes parecenças, a do armário<br />
fazia ouvir-se, rangendo ao abrir. Menos<br />
para ele, pois. Há infortúnios<br />
insuspeitáveis.<br />
Mas, não. Não para sempre.<br />
Um dia, Amadeu viu-a. Aquela<br />
rapariga que descia pelos socalcos, leve<br />
como se tivesse asas. Em carne e osso,<br />
evidente, absorta, o pastor apercebeu-se<br />
de que ela era especial.<br />
Franzina, sonambular, luzia<br />
deixando um rasto obscuro que se<br />
desprendia do seu vulto em transe,<br />
fantasmagórico.<br />
Como se não tivesse intenção ou<br />
orientação, irradiada e, ao sulcar, fosse<br />
espargindo um quebranto caprichoso.<br />
Para Amadeu, não era uma<br />
desconhecida. E, no entanto, ela<br />
ignorava-o. Um impasse germinal. Aos<br />
poucos, ia-se - afinal - cumprindo o elã<br />
por que tudo ali interagia, numa lógica<br />
sem explicação: a terra persistia, qual<br />
elemento comum; a morrinha só dava<br />
para um escaravelho pôr a pata na poça;<br />
uma larva qualquer evoluía para insecto;<br />
cobertos de musgo húmido, arfavam os<br />
penedos; matagal bravio fazia crescer os<br />
seus espinhos com brandura; um cão<br />
selvagem exultava no frenesim predador;<br />
franzindo o nariz, uma lebre furtiva saía<br />
da toca; árvores flectiam o tronco,<br />
revigorando os ramos; uma aragem<br />
coleava a fixidez etérea; alguns pássaros<br />
sacudiam-se, chilreando para ninguém;<br />
recortado pelas nuvens, já o sol cedia<br />
perante a noite.<br />
Amadeu Miraldes sucumbiu ao<br />
apetite das trevas. Num rompante,<br />
arremeteu - rendido à insinuante<br />
aparição, que se transfigurava.<br />
Mal refeita. A rir. Beijou-o.<br />
Amadeu olhou com espanto a<br />
espiritualizada, e mais tarde asseverou<br />
aos seus devaneios que, por instantes,<br />
tinha sentido o contacto de uns lábios,<br />
vindos de dentro da boca daquela<br />
acometida pelo sobrenatural.<br />
Os SobreNaturais<br />
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