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SAI DO ARMÁRIO, MEU AMOR,<br />

E DEIXA-ME ENTRAR NA NOITE<br />

José de Matos-Cruz<br />

7 de Abril de 1944<br />

Aquele riso cristalino não existe neste<br />

mundo. Parecia uma fonte a cantar, como<br />

se fosse uma donzela de coração aberto.<br />

Ela não provinha - formando-se ali,<br />

gerada no escuro, radiosa e fascinante.<br />

Os pezinhos tão delicados só seriam<br />

capazes de tocar em nenúfares. Mal<br />

cabia em todo o olhar de Amadeu<br />

Miraldes. Mas o miúdo enternecido<br />

materializava-a, então, nos jardins<br />

suspensos do seu sono profundo.<br />

Até que, volúvel, lhe chega a<br />

realidade. Assustado, Amadeu tudo faz<br />

para manter as pálpebras cerradas,<br />

furtando-se ao pesadelo. Nada sabe da<br />

felicidade - mas, com ingénuo instinto,<br />

fica alheado numa placenta nostálgica,<br />

saboreando a imponderabilidade dos<br />

ainda não nascidos. Como se intuísse o<br />

medo e o martírio. É uma pedrada na<br />

essência, contra o charco da existência.<br />

Amadeu limitava-se a coabitar o<br />

limite precipitado da sua integridade.<br />

Entre o desejo prodigioso e a ameaça<br />

propícia. Depois, paciência, tinha um<br />

destino a cumprir, mais umas horas a<br />

gastar naquele tremendo enredo de<br />

família, amigos, conhecidos, outra gente,<br />

feras e monstros.<br />

Já estremecia o soalho, com os<br />

passos do pai caminhando pelo quarto. A<br />

mãe sacudia-lhe ao de leve um ombro,<br />

arrebatando-o para este lado. Tudo o que<br />

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