O homem que fazia círculos

Este romance fala da opção tomada por um indivíduo que decidiu trocar um futuro auspicioso na cidade por uma vida simples, como artesão, numa aldeia do interior. A aldeia, o espaço envolvente, os seus habitantes, assim como as suas lendas e tradições são de uma peculiaridade inverosímil. O narrador, um espanhol amante de artesanato, lança um olhar sobre uma certa portugalidade, cada vez mais esquecida. Imagem da capa: João Alves Lino. Editora: Temas Originais. Disponibilizam-se os dois primeiros capítulos. Este romance fala da opção tomada por um indivíduo que decidiu trocar um futuro auspicioso na cidade por uma vida simples, como artesão, numa aldeia do interior. A aldeia, o espaço envolvente, os seus habitantes, assim como as suas lendas e tradições são de uma peculiaridade inverosímil. O narrador, um espanhol amante de artesanato, lança um olhar sobre uma certa portugalidade, cada vez mais esquecida. Imagem da capa: João Alves Lino. Editora: Temas Originais. Disponibilizam-se os dois primeiros capítulos.

O HOMEM QUE FAZIA CÍRCULOS<br />

1. O Primeiro Encontro<br />

Andava de terra em terra a visitar museus locais. Gosto<br />

sobretudo de artesanato. Nas minhas viagens aventuro-me muitas<br />

vezes por estradas secundárias para apreciar com calma as paisagens<br />

e os lugares. Às vezes perco-me no caminho, sobretudo quando as<br />

placas indicadoras das povoações não estão colocadas onde deviam,<br />

ou quando me distraio e não as vejo. Nesta viagem, mesmo com a<br />

ajuda atenta da minha mulher, acabámos por nos perder.<br />

Perdemo-nos. As muitas curvas consecutivas <strong>que</strong> tivemos de fazer<br />

na<strong>que</strong>la estrada, para passar uma pe<strong>que</strong>na crista de montanhas onde pedras e<br />

arbustos se debruçam como <strong>que</strong> para cumprimentar <strong>que</strong>m passa, ainda nos<br />

desnortearam mais. Estávamos a meio da tarde do último sábado de Agosto.<br />

Fazia um calor medonho, seco. Junto ao horizonte o ar era alaranjado, estranho.<br />

No alto, o céu era quase branco de tão luminoso. Ao longe, do lado nascente,<br />

nuvens pesadas pareciam indecisas entre ficar ou aproximar-se. Além do som<br />

do motor e do crepitar dos pneus a descolarem do alcatrão mole, só a cantilena<br />

ofegante das cigarras se <strong>fazia</strong> ouvir. Ao longe, já na descida, avistámos uma<br />

povoação de casas brancas e telhados cor de tijolo. A estrada, mordida nas<br />

bermas, parecia lá ir dar, mas no meu mapa nada constava nesta zona. No vale<br />

surgem oliveiras, figueiras e sobreiros, por vezes alguns grupos de pinheiros e<br />

de choupos, intervalados por pe<strong>que</strong>nas searas e campos de pastagem onde se<br />

viam, de longe em longe, vacas, cavalos e ovelhas.<br />

Entrámos nessa povoação subindo por uma rua empedrada, estreita. O<br />

cinzento escuro das pedras do chão tornava ainda mais luminoso o branco da<br />

cal das paredes. Não se via ninguém. O calor empurrara as pessoas para dentro<br />

de casa. Parámos junto de uma taberna, de onde acabava de sair um <strong>homem</strong> de<br />

cerca de cin<strong>que</strong>nta anos, estragados. Vestia roupa preta e cinzenta já muito<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 1.º capítulo<br />

António Galrinho


O HOMEM QUE FAZIA CÍRCULOS<br />

2. Corpo e Alma<br />

No primeiro encontro acabámos por jantar a tal galinha <strong>que</strong> se<br />

tinha safo uma primeira vez, e por dormir num quarto lá de casa, pois<br />

uma medonha trovoada, seguida de forte vento e chuva torrencial,<br />

abateu-se de repente sobre a aldeia. A partir daí, várias vezes visitei o<br />

oleiro e a sua aldeia. A nossa amizade tornou-se firme como um<br />

penedo.<br />

Nesta aldeia poucas ruas são direitas; quase todas apresentam <strong>que</strong>bras,<br />

umas mais acentuadas do <strong>que</strong> outras. Com frequência as paredes de um lado<br />

ora se aproximam ora se afastam das do outro. Por vezes, <strong>que</strong>bras<br />

consecutivas no mesmo sentido ar<strong>que</strong>iam as ruas, tornando-as arredondadas.<br />

Não se entende a lógica <strong>que</strong> serviu de base a este planeamento. A ideia<br />

parece não respeitar qual<strong>que</strong>r lógica, ou talvez mesmo não tivesse existido<br />

ideia. As ruas por onde não passam carros estão pavimentadas por pe<strong>que</strong>nas<br />

pedras cúbicas de calcário quase tão branco como a cal, as outras têm<br />

paralelepípedos de dimensões maiores, de granito cinzento-escuro.<br />

Ruas, travessas e largos parecem ter os nomes <strong>que</strong> sempre tiveram.<br />

Nenhuma delas tem nome de gente ou de data importante. Perguntei certo dia<br />

ao oleiro por <strong>que</strong> razão assim era, por <strong>que</strong> razão não havia pelo menos uma<br />

<strong>que</strong> tivesse o nome de um político, de um escritor ou de uma data relevante<br />

para a história do país ou da povoação.<br />

– Os nomes <strong>que</strong> elas têm são os nomes <strong>que</strong> devem ter. E são bonitos.<br />

De facto, para uma pergunta da<strong>que</strong>las não há uma resposta mais<br />

ajustada do <strong>que</strong> outra. Parece <strong>que</strong> uma espécie de vontade colectiva,<br />

inconsciente e superior, ajuda a manter certas tradições, sobrepondo-se a<br />

qual<strong>que</strong>r vontade ou opinião pessoal. Rua das Alminhas, Rua do Poço, Rua do<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 2.º capítulo<br />

António Galrinho


Zambujeiro Velho, Travessa Escura, Rua do Pão Duro, Beco do Cego, são<br />

exemplos <strong>que</strong> mostram o quanto não faz sentido colocar-lhes outros nomes. Se<br />

nalguns casos existem razões óbvias para <strong>que</strong> os nomes sejam a<strong>que</strong>les,<br />

noutros elas perdem-se no tempo.<br />

Quase todas as casas são de piso térreo, brancas com barras ocre ou<br />

azuis, ligeiramente salientes, em torno das janelas e portas. A generalidade<br />

dos telhados tem telhas de meia-cana. Os beirais são compostos por duas ou<br />

três filas dessas telhas: a fila das telhas gotejantes apoia-se sobre uma ou<br />

duas filas de telhas invertidas, recolhidas, caiadas ou pintadas com óxido de<br />

ferro. As portas e as janelas são de madeira, pintadas ao gosto, sendo mais<br />

fre<strong>que</strong>ntes as cores castanha e encarnada. As janelas têm portadas de<br />

madeira interiores, normalmente brancas, deixando os vidros à vista, por fora.<br />

Entre as portadas e as janelas são muitas vezes colocadas pe<strong>que</strong>nas cortinas<br />

de renda brancas ou, mais raramente, tecidos de cores variadas. As casas têm<br />

acesso directo para a rua, do lado da frente, e quintais do lado de trás.<br />

Roseiras, malvas e sardinheiras vêm-se com frequência em vasos colocados<br />

junto das portas de entrada. Algumas flores estão plantadas nas calçadas, em<br />

improvisados e minúsculos canteiros colados às paredes; alguns têm apenas o<br />

tamanho de uma só pedra da calçada, arrancada para nesse sítio se colocar a<br />

planta, passando a fazer parte integrante destes conjuntos delicadamente<br />

cuidados e limpos. Alguns quintais apresentam uma ou duas árvores de fruto,<br />

sendo mais comuns as laranjeiras, as nespereiras e as figueiras. Os quintais<br />

maiores têm poços e neles se fazem hortas. Algumas das casas mais antigas<br />

têm um forno para cozer pão, perto da porta da cozinha, nas traseiras da<br />

habitação.<br />

Ressalta à vista a beleza das coisas simples. Casas e povoações com<br />

estas características são raras por estas bandas, sendo mais comuns nas<br />

províncias a sul. Como <strong>que</strong> fechada no vale, desta povoação não se avista<br />

nenhuma outra; a mais próxima está a mais de dez quilómetros, do outro lado<br />

dos montes. Talvez esse isolamento justifi<strong>que</strong> a peculiaridade desta aldeia e<br />

das pessoas <strong>que</strong> a habitam. Contudo, em tempos idos, esse isolamento terá<br />

sido maior, quando os transportes, as estradas e as comunicações eram bem<br />

diferentes das de hoje. Mas isso não fez com <strong>que</strong> os seus habitantes se<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 2.º capítulo<br />

António Galrinho


tornassem fechados e introvertidos. Pelo contrário, são bastante acolhedores,<br />

falando com muito à-vontade com as pessoas de fora.<br />

Situada na zona periférica está uma pe<strong>que</strong>na escola destinada ao<br />

ensino básico. Ao lado situa-se um minúsculo posto médico. Têm uma<br />

arquitectura diferente da das habitações tradicionais da aldeia; é típica dos<br />

tempos de ditadura, não destoando, talvez por mero acaso, da do restante<br />

casario.<br />

Fora do aglomerado de casas existem duas fontes: uma grande,<br />

rematada com um semicírculo, caiada de branco e com volutas pintadas de<br />

azul, com espaços para vacas e cavalos poderem beber; outra pe<strong>que</strong>na, bem<br />

mais antiga, toda de granito, está emoldurada por duas colunas toscas sem<br />

base nem capitel, rematadas por uma comprida pedra, <strong>que</strong> nelas se apoia,<br />

onde estão esculpidas uma espada e uma flor. Ambas jorram água fresca e<br />

límpida todo o ano, por duas bicas. Na fonte mais recente, essas bicas são dois<br />

tubos metálicos, paralelos; na mais antiga, são duas pedras de secção<br />

quadrada, com uma estreita ranhura na face superior, por onde escorre a água,<br />

muito próximas e viradas uma para a outra ao ponto de os fios de água se<br />

fundirem a meio da <strong>que</strong>da. Uma chama-se Fonte das Bestas, a outra Fonte dos<br />

Amores. Apesar de, durante quase todo o ano, a fonte mais nova jorrar muito<br />

mais água, nos verões mais <strong>que</strong>ntes e longos chega a secar completamente,<br />

por vezes durante semanas; na mais antiga, como <strong>que</strong> por milagre, a<strong>que</strong>les<br />

fios deslizam sempre com a mesma intensidade, suaves e certeiros, seja no<br />

pico do Inverno ou no pico do Verão. Junto da fonte antiga, coberto por um<br />

telhado, está um tan<strong>que</strong> comunitário, encostado a uma barreira, <strong>que</strong> funciona<br />

como uma única parede. Nesse tan<strong>que</strong> ainda é comum ver algumas mulheres<br />

a lavar roupa.<br />

Na mais central e comprida das ruas situa-se um antigo poço, colado a<br />

duas habitações, cujas paredes formam um nicho para o acolher. Esse poço<br />

pouca utilização passou a ter depois de abertos outros e sobretudo depois de<br />

colocada água canalizada na aldeia. Contudo, em tempos antigos era o único<br />

<strong>que</strong> fornecia toda a povoação. Conserva-se sobretudo como peça histórica e<br />

decorativa. Mas <strong>que</strong>m ali passa pode regar as flores <strong>que</strong> estão por perto ou<br />

renovar a água de uns recipientes de onde bebem pássaros, cães e gatos, à<br />

vez; ou apenas molhar o rosto quando está calor. Está encimado por um<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 2.º capítulo<br />

António Galrinho


grosso arco de ferro <strong>que</strong> acompanha, quase encostado à parede, a forma<br />

circular do nicho; a meio pende uma roldana de bronze enegrecido. Preso por<br />

uma corda, o balde de zinco brilha na borda do poço, virado para baixo.<br />

Ali perto, numa rua estreita, está a capela onde são feitos os velórios<br />

aos falecidos. Pe<strong>que</strong>na e também caiada de branco, quase se confunde com<br />

as habitações. Tem uma porta com um arco em ogiva e duas pe<strong>que</strong>nas janelas<br />

rectangulares e estreitas, uma de cada lado.<br />

A aldeia tem três largos. A<strong>que</strong>le onde estacionámos o carro a primeira<br />

vez é o Largo das Camélias, devido à cameleira ali colocada. É o mais<br />

pe<strong>que</strong>no; apenas meia dúzia de casas de piso térreo, pe<strong>que</strong>nas e simples, o<br />

contornam. Um candeeiro e um pe<strong>que</strong>no banco de madeira e ferro são os<br />

únicos objectos residentes.<br />

O Largo da Igreja está coberto por seixos do rio, de diferentes<br />

dimensões. Cravados no chão, com as curvaturas mais acentuadas para cima,<br />

os seixos formam padrões geométricos, aparentemente sem qual<strong>que</strong>r<br />

significado simbólico. Bem no centro, dominando todo a<strong>que</strong>le espaço, com uma<br />

imponência <strong>que</strong> se sobrepõe à da igreja, situa-se a tal árvore enorme <strong>que</strong><br />

avistara de relance a primeira vez. À sua volta, oito candeeiros a contornam;<br />

outros estão colocados noutros locais, sobretudo no espaço livre do lado sul,<br />

onde se encontra um cruzeiro de pedra, cuja base é octogonal, com quatro<br />

degraus. Próximo do cruzeiro está um coreto redondo, com a base em pedra<br />

calcária, e a cobertura em ferro, pintada a branco, vermelho e verde. Virado<br />

para o coreto está um edifício incaracterístico, <strong>que</strong> quase estraga a<strong>que</strong>le<br />

conjunto, com uma grande porta e várias janelas altas. É o salão de festas,<br />

onde se come e dança em alturas festivas, onde se fazem exposições e se dão<br />

espectáculos e onde ensaia a banda local. Alguns bancos compridos de ferro<br />

trabalhado, pintados de verde escuro, estão distribuídos por todo o largo.<br />

As frentes da casa de habitação do oleiro e da olaria preenchem o lado<br />

poente do largo onde está o penedo de granito. Do lado oposto fica uma<br />

taberna minúscula. Meninos e meninas costumam brincar no penedo, subindo<br />

com cuidado para não escorregar, e escorregando com cuidado para não cair<br />

ao descer. Largo da Barriga é o seu nome, outro não poderia ter, pois nem<br />

umbigo lhe falta! Um buraco pouco profundo e com cerca de dois palmos de<br />

largura ali está, quase no topo.<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 2.º capítulo<br />

António Galrinho


– Às vezes cheira aqui a mijo <strong>que</strong> não se aguenta! Os miúdos sobem lá<br />

acima e toca de mijar no buraquito. Gostam de fazer isso!<br />

O umbigo está virado a sul. E mal a barriga se enterra, desse lado surge<br />

o bebedouro. Sabendo <strong>que</strong> a<strong>que</strong>le penedo é uma barriga, facilmente se<br />

percebe <strong>que</strong> o bebedouro, redondo, ali foi colocado em função desse relevo.<br />

Redondo e colocado do lado sul, <strong>que</strong> é lado para onde se inclina um pouco o<br />

umbigo, não deixa dúvidas... Junto a ele estão colocadas duas pedras<br />

esféricas, uma ligeiramente maior do <strong>que</strong> a outra, encostadas entre si e ambas<br />

encostadas ao bebedouro, aparentando estar ali colocadas para servir de<br />

degraus para os pe<strong>que</strong>nitos. Quando se percebe a brejeirice <strong>que</strong> ali está... não<br />

podemos deixar de rir.<br />

– Há muitos anos, alguém pôs aí essas pedras, por brincadeira, e aí<br />

ficaram. O povo não <strong>que</strong>r <strong>que</strong> as tirem, acha-lhes graça!<br />

O largo tem a forma de um rectângulo ligeiramente deformado. Uma<br />

calçada de pedras de calcário contorna-o junto às paredes. Entre a barriga e a<br />

calçada, está um espaço de terra batida onde os meninos jogam ao berlinde e<br />

ao pião, onde as meninas dançam e cantam e onde os homens jogam à malha,<br />

aos fins-de-semana. A malha joga-se junto ao bebedouro, pois é desse lado<br />

<strong>que</strong> o chão de terra é mais espaçoso. De noite, quatro candeeiros iluminam<br />

este espaço, fazendo brilhar as pe<strong>que</strong>nas partículas de quartzo, como se<br />

na<strong>que</strong>le enorme calhau estivessem poisados mil pirilampos. Como as ruas <strong>que</strong><br />

lá vão dar são muito estreitas, os carros não podem ali entrar. Por isso, este<br />

largo mais se assemelha a um pátio.<br />

Muitas das nossas conversas começavam com uma simples frase,<br />

normalmente dita pelo oleiro, como esta:<br />

– Vou-lhe contar uma história.<br />

Um dia, saindo de casa bem cedo, iniciámos um longo passeio pelos<br />

campos em volta da aldeia. Uma história desenrolou-se ao longo desse<br />

passeio e começou ali mesmo, no Largo da Barriga. Com as mãos nos bolsos<br />

e a pala da boina meio levantada, o oleiro aponta para o penedo com o <strong>que</strong>ixo<br />

e diz:<br />

– É evidente a relação entre o penedo e o bebedouro com as pedras<br />

redondas. É coisa <strong>que</strong> ressalta à vista, esta brincadeira. O povo daqui tem<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 2.º capítulo<br />

António Galrinho


orgulho nisto. As pessoas de fora, <strong>que</strong> por aqui passam, todas riem quando<br />

descobrem a marotice. E toca de tirar fotografias.<br />

E então começou a contar-me <strong>que</strong> outras partes de um gigante mítico<br />

estão espalhadas pelos arredores da aldeia, sendo a barriga um dos pedaços<br />

desse corpo enorme. Contou-me <strong>que</strong> o primeiro habitante destas terras era um<br />

jovem solitário, <strong>que</strong> se encantou pelos ribeiros de água límpida <strong>que</strong> por aqui<br />

passavam. Mas um acontecimento dramático fê-lo tornar-se gigante.<br />

– Andava por este vale, no meio do qual está hoje a aldeia, e passeava<br />

pelas montanhas em redor. Nele se refugiava dos ventos frios do Inverno,<br />

vindos do Norte, e dos ares sufocantes do Verão, vindos do Sul.<br />

Atento, segui as suas palavras e os seus passos. Num pe<strong>que</strong>no bos<strong>que</strong><br />

de pinheiros bravos e densos fetos, o oleiro apontou-me um penedo quase<br />

escondido entre as ramagens, coberto de musgos, mais pe<strong>que</strong>no e mais<br />

redondo do <strong>que</strong> a barriga. De perto vi <strong>que</strong> por trás deste penedo estava um<br />

outro quase igual. Seriam dois encostados ou apenas um com dois volumes<br />

idênticos. Não se conseguia perceber.<br />

– Aqui temos as nádegas.<br />

Olhei sério, mas ri-me por dentro. Ainda olhava perplexo e desconfiado<br />

para a<strong>que</strong>les pedregulhos, o oleiro continuou:<br />

– Vou-lhe mostrar o Gigante todo para <strong>que</strong> veja <strong>que</strong> isto não é<br />

brincadeira.<br />

O tom de voz com <strong>que</strong> falou não deixava espaço para dúvidas. Dito com<br />

a<strong>que</strong>le à-vontade e com a<strong>que</strong>la certeza, a partir desse instante aceitei de bom<br />

grado a existência do Gigante. Voltei a olhar para a<strong>que</strong>les dois penedos e<br />

contornei-os. No meio do pe<strong>que</strong>no espaço entre eles estava o cone achatado<br />

de um grande formigueiro, como um vulcão em miniatura, de onde saíam e<br />

entravam milhares de formigas atarefadas, indiferentes à minha presença.<br />

Olhei estático durante algum tempo para a<strong>que</strong>le cenário e esbocei um sorriso<br />

enorme de boca fechada, <strong>que</strong> quase rebentou em gargalhada. Enquanto<br />

seguíamos caminho, procurando outras partes do corpo, fui ouvindo mais<br />

coisas acerca da enigmática figura.<br />

– Antes de se tornar gigante, era um jovem guerreiro, lutador forte e ágil.<br />

Tão forte, ágil e com uma presença tão firme e decidida <strong>que</strong> nunca precisou<br />

usar a sua espada. A dada altura, o jovem guerreiro decidiu abandonar tudo e<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 2.º capítulo<br />

António Galrinho


tornar-se um <strong>homem</strong> solitário, mas mantendo a sua roupa e a sua espada de<br />

guerreiro, assim como o seu inseparável cavalo.<br />

Durante alguns minutos caminhámos sem nada dizer. Eu ia tentando<br />

adivinhar mentalmente como seria o resto da história e quais seriam as<br />

próximas partes do corpo <strong>que</strong> iríamos ver. Já fora do pe<strong>que</strong>no bos<strong>que</strong>, e<br />

enquanto atravessávamos umas hortas, o oleiro acrescentou:<br />

– Procurava silêncio.<br />

O silêncio <strong>que</strong> o meu companheiro de passeio guardou durante a<strong>que</strong>les<br />

minutos, certamente premeditado, deu especial ênfase à frase.<br />

– Não <strong>que</strong>ria <strong>que</strong> ninguém o incomodasse.<br />

Alguns passos adiante, rematou:<br />

– Procurava paz!<br />

No decorrer deste passeio, pouco a pouco, fi<strong>que</strong>i a saber a lenda do<br />

guerreiro <strong>que</strong> se tornou gigante.<br />

– Com a sua espada poderia matar, mas não matou. Com a sua espada<br />

protegia-se de eventuais malfeitores. Diz-se <strong>que</strong> falava com os animais e com<br />

as plantas. De noite dormia nas grutas <strong>que</strong> há nos montes. Amigos o visitavam<br />

de tempos a tempos; de tempos a tempos ia aos lugares onde havia gente e<br />

com a gente se misturava. Mas, grande parte do tempo passava-o sozinho. Isto<br />

aconteceu muito antes de existir a aldeia.<br />

Uma espécie de magia emanava da voz, dos gestos e do andar do<br />

oleiro. Ele vivia, de forma descontraída, cada momento presente. Ditas as<br />

palavras como ele dizia, deslocando-se no espaço como ele se deslocava, tudo<br />

à volta se enchia de encanto. Na sua presença os meus sentidos tornavam-se<br />

mais despertos e sensíveis, como <strong>que</strong> por contágio.<br />

– Raul!<br />

Fi<strong>que</strong>i admirado. Foi a primeira vez <strong>que</strong> se me dirigiu chamando-me pelo<br />

nome. Também pela primeira vez a ele me dirigi chamando-o pelo seu nome.<br />

– Diga, Inácio.<br />

– Você não acredita em nada disto, pois não?<br />

Eu, <strong>que</strong> pouco tempo antes me apeteceu chamar-lhe tonto, por estar a<br />

ouvir coisas <strong>que</strong> me pareciam tão tontas, mas <strong>que</strong> pouco depois me havia<br />

convertido sem <strong>que</strong> ele se tivesse apercebido..., disse decidido:<br />

– Acredito!<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 2.º capítulo<br />

António Galrinho


Acho <strong>que</strong> devia ter dito mais qual<strong>que</strong>r coisa, <strong>que</strong> me devia ter feito<br />

entender melhor. Uma só palavra, solta assim de repente, quando na cabeça<br />

ainda há pouco fervilhavam tantas dúvidas, não parece ter sido convincente. O<br />

tom de voz não revelou convicção. Mas tinha-a!<br />

Começava a perceber a maneira de funcionar da<strong>que</strong>la cabeça. Percebi<br />

onde ele <strong>que</strong>ria chegar e onde me <strong>que</strong>ria conduzir. Aquilo <strong>que</strong> ouvira da lenda<br />

do Gigante despertara-me. Percebi <strong>que</strong> na mistura duma certa ingenuidade<br />

infantil com a perspicácia das suas observações..., <strong>que</strong> na mistura de frases<br />

aparentemente sem sentido com reparos profundamente poéticos..., <strong>que</strong> entre<br />

sorrisos e olhares sábios apareciam sorrisos e olhares primários, por vezes<br />

rudes, mesmo animalescos..., percebi <strong>que</strong> este <strong>homem</strong> <strong>que</strong>ria <strong>que</strong> eu olhasse<br />

para as coisas com outros olhos, com olhos límpidos e sem vícios. Queria <strong>que</strong><br />

eu apenas olhasse, ouvisse e sentisse como <strong>que</strong>m apenas olha, ouve e sente.<br />

– Não me engana, Raul.<br />

Sorrimos sem mais comentários. Continuámos a andar. Junto de um dos<br />

três ribeiros <strong>que</strong> passam nas redondezas, está uma zona cheia de<br />

pedregulhos, limpos pela passagem das águas do Inverno. O Inácio parou<br />

perto do maior deles e apontou mais uma vez como era seu hábito, com o<br />

<strong>que</strong>ixo.<br />

– Dê a volta e olhe.<br />

Dei a volta e olhei.<br />

– A cabeça!<br />

À distância, eu já tinha percebido <strong>que</strong> se tratava da cabeça, por isso o<br />

meu espanto deveu-se ao facto de a<strong>que</strong>la enorme pedra se parecer de forma<br />

assustadora com uma cabeça. O crânio, o <strong>que</strong>ixo, o nariz e um olho<br />

ligeiramente encovado, tudo se apresentava incrivelmente no sítio. Apenas<br />

onde era suposto estar uma orelha tudo era liso. Metade do rosto apoiava na<br />

terra. A água passava encostada ao rosto. Era um fio <strong>que</strong> se afastava do<br />

ribeiro uns metros acima, como <strong>que</strong> de propósito para matar a sede ao<br />

Gigante, e de novo ao mesmo ribeiro voltava, um pouco abaixo. A<strong>que</strong>la<br />

posição e os olhos fechados, na<strong>que</strong>le cenário, mostravam o Gigante a beber<br />

água, deliciado.<br />

O Inácio não se moveu. Observou o meu espanto em silêncio. Percebeu<br />

<strong>que</strong> eu tinha captado todos os pormenores e <strong>que</strong> olhava para a<strong>que</strong>le<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 2.º capítulo<br />

António Galrinho


pedregulho como se de uma cabeça verdadeira se tratasse. E eu próprio<br />

começava a acrescentar mentalmente mais algumas linhas à história da<strong>que</strong>le<br />

gigante, tentando antecipar-me. Quando me aproximei do Inácio, ele sorriu<br />

novamente e continuámos a caminhada em busca de mais partes do grande<br />

corpo.<br />

A história continuava a ser contada, em pedaços, também.<br />

– Esse <strong>homem</strong> estranho, enigmático, ou melhor, esse <strong>homem</strong> normal,<br />

mas <strong>que</strong> aparentava aos olhos dos outros uma certa estranheza por <strong>que</strong>rer<br />

estar só e em silêncio..., a certa altura apaixonou-se.<br />

Um segundo antes de ouvir a última palavra, ela apareceu-me na mente,<br />

como se só pudesse ser mesmo a<strong>que</strong>la palavra a fechar a frase. Fi<strong>que</strong>i<br />

ansioso por ouvir o resto da história. Afinal como se teria tornado o jovem<br />

guerreiro num gigante, <strong>que</strong> acabou por se transformar na<strong>que</strong>las pedras <strong>que</strong> por<br />

ali estão dispersas? Embora curioso, não forcei o final, nem o meu<br />

companheiro mo revelaria tão facilmente. Obviamente teríamos de andar e<br />

andar mais, parar mais umas vezes, observar mais uns pedregulhos..., e eu<br />

teria de continuar a ouvir a história contada aos bocados.<br />

– Certo dia conheceu uma rapariga <strong>que</strong> guardava ovelhas por a<strong>que</strong>les<br />

montes, muito bonita, de cabelo loiro, comprido, com a pele clara, luminosa.<br />

Olharam-se, falaram e encantaram-se um pelo outro. Encontraram-se várias<br />

vezes. Os seus corações batiam mais forte quando olhavam olhos nos olhos,<br />

quando davam as mãos, quando se abraçavam e quando se beijavam. As suas<br />

cabeças não tinham sossego. Nelas apenas existiam um e outro. Os seus<br />

corpos jovens ardiam de paixão e desejo. O silêncio <strong>que</strong> o jovem solitário<br />

vivera até aí era agora invadido por uma agitação <strong>que</strong> reflectia uma alegria<br />

imensa, uma alegria diferente da <strong>que</strong> sentia enquanto ser solitário e errante. Na<br />

sua cabeça ouvia a voz doce e os passos da sua amada, via-lhe o rosto, as<br />

mãos e todo o corpo, sentia-lhe o to<strong>que</strong> e o cheiro a toda a hora.<br />

Eu ouvia a<strong>que</strong>la história como uma criança ouve um conto de fadas.<br />

Toda a minha atenção se centrava nas palavras e no tom de voz do Inácio.<br />

Simples e pausadamente, a história avançava. Apareciam na minha<br />

imaginação, claras, as imagens desta história, agradáveis como as de um<br />

sonho bom. Surgiam fortes as cores das flores <strong>que</strong> os amantes se ofereciam,<br />

cheiroso o ar dos campos por onde passavam, bonitos e ternos os seus corpos<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 2.º capítulo<br />

António Galrinho


jovens, verdes e húmidos os campos <strong>que</strong> pisavam, fresca e luminosa a água<br />

<strong>que</strong> bebiam dos ribeiros onde se banhavam. Imaginava-os tocando mãos nas<br />

mãos, dedos nos dedos; olhando-se e sorrindo em silêncio... Às palavras <strong>que</strong> o<br />

Inácio dizia eu acrescentava outras, mentalmente, ilustrando-as com imagens<br />

bonitas e encantadoras. Certamente a rapariga pastora ensinaria a ri<strong>que</strong>za das<br />

palavras e dos cantos ao seu amado, como o rapaz guerreiro ensinaria a<br />

importância do silêncio à sua amada.<br />

– Raul! Tem boas pernas?<br />

Olhei para a montanha em frente e <strong>que</strong>stionei:<br />

– Vamos subir muito?<br />

Fez um sorriso <strong>que</strong> revelou claramente o contrário daquilo <strong>que</strong> disse:<br />

– Não, nem por isso! Não se preocupe!<br />

A montanha em frente não era muito distante, nem muito alta, e apesar<br />

de já termos andado bastante eu ainda não me sentia cansado. A história <strong>que</strong><br />

ouvia, a pessoa <strong>que</strong> me acompanhava, o campo por onde andava, deram-me<br />

um alento especial. De qual<strong>que</strong>r modo mentalizei-me para mais algum esforço,<br />

pois, apesar de andar a pé com alguma frequência, não tinha o treino do meu<br />

companheiro. Além de <strong>que</strong> andar nas ruas planas das cidades é muito mais<br />

fácil e cómodo do <strong>que</strong> andar pelos terrenos irregulares do campo, subindo e<br />

descendo, e desviando os passos dos arbustos e das pedras.<br />

– Vamos até lá acima, à<strong>que</strong>la crista.<br />

As encostas da<strong>que</strong>la montanha tornavam-se mais íngremes à medida<br />

<strong>que</strong> subiam, terminando numa crista irregular, de onde se destacavam algumas<br />

pedras. Que parte do Gigante por ali estaria? Quase no topo da crista estava<br />

um frio de rachar. Reparei <strong>que</strong> nas montanhas <strong>que</strong> se viam ao longe, mais<br />

altas, e mais ao norte, existia ainda um branco manto de neve. A aragem <strong>que</strong><br />

de lá soprava <strong>fazia</strong> dores nos ossos da cabeça. Encolhi os ombros para <strong>que</strong><br />

não me entrasse frio pelo pescoço, e enterrei as mãos nos bolsos o mais <strong>que</strong><br />

pude, procurando a<strong>que</strong>cê-las.<br />

– Subir isto a<strong>que</strong>ce, não é?<br />

– É verdade!<br />

Não quis desiludir o meu amigo.<br />

– Chegando cá acima nem o frio entra com uma pessoa!<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 2.º capítulo<br />

António Galrinho


Perante este reparo, eu nada disse. Que poderia eu dizer? Tive vontade<br />

de rir mas evitei, não fosse o ar gelado apertar-me os dentes... O Inácio<br />

continuou:<br />

– Veja se descobre onde está mais uma parte do Gigante.<br />

Olhei em volta com os ombros já encostados às orelhas e os braços<br />

colados às costelas. Não estava em condições de procurar. Além disso, eram<br />

vários os penedos <strong>que</strong> por ali se erguiam, lavados pela chuva e pelo vento. O<br />

meu companheiro propôs, apontando com o indicador da mão direita, <strong>que</strong><br />

desenhou um arco suave:<br />

– Desça um pouco por este carreiro.<br />

Eu desci, até por<strong>que</strong> mais abaixo estava mais agradável, pois já não se<br />

apanhava o ar frio <strong>que</strong> vinha do outro lado.<br />

– Pare!<br />

Parei.<br />

– Olhe para a es<strong>que</strong>rda.<br />

Olhei, e de imediato vi. De imediato se me a<strong>que</strong>ceu o peito com um<br />

arrepio forte, da<strong>que</strong>les <strong>que</strong> gelam as costas quando somos surpreendidos por<br />

algo desagradável. Via-se perfeitamente <strong>que</strong> no meio das outras pedras a<strong>que</strong>la<br />

era diferente. Ali estava, na crista da montanha, uma pedra quase da minha<br />

altura, oval mas um pouco irregular, apoiada num gigantesco penedo <strong>que</strong> saía<br />

das entranhas da terra, parecendo balançar ao mínimo movimento da minha<br />

cabeça. Andando um pouco para um lado e para outro, mirei-o de ângulos<br />

diferentes.<br />

– O coração!<br />

Foi o Inácio <strong>que</strong>m o referiu, embora não fosse necessário. Mas<br />

necessário foi acrescentar:<br />

– Vá junto dele!<br />

Bastaram-me alguns passos para lá chegar.<br />

– Encoste-lhe a mão.<br />

Tirei a mão direita do bolso <strong>que</strong> gelou nos segundos em <strong>que</strong> hesitei<br />

encostar. Hesitei sem razão para isso, pois não estava a pensar em nada,<br />

estava apenas espantado e cheio de frio. Estendi a mão e colei-a à pedra.<br />

Logo a recolhi, atordoado como se tivesse ouvido um tiro por trás da cabeça.<br />

– Está <strong>que</strong>nte!<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 2.º capítulo<br />

António Galrinho


Num sítio onde tudo estava frio como poderia estar <strong>que</strong>nte a<strong>que</strong>le<br />

penedo como se tivesse apanhado sol num dia de Verão? Afinal estávamos<br />

ainda no início da Primavera, num cabeço onde uns dias antes ainda havia<br />

neve. A língua prendeu-se-me, as pernas também, as ideias também. Sentiame<br />

enfeitiçado. Entretanto o Inácio já se afastava. Tive de o seguir.<br />

Durante algum tempo descemos por um caminho muito próximo do <strong>que</strong><br />

fizemos na subida, do qual nos afastámos mais adiante. Contrariando a<br />

decisão <strong>que</strong> tomara, de acreditar sem hesitar nesta história, a certa altura<br />

fra<strong>que</strong>jei, e ocorreu-me <strong>que</strong> perante a presença de tantas pedras e<br />

pedregulhos <strong>que</strong> por a<strong>que</strong>las bandas se espalhavam não seria difícil inventar<br />

uma ou várias histórias partindo das formas sugeridas. Seria normal <strong>que</strong> por<br />

entre tantas pedras algumas se parecessem com partes do corpo humano.<br />

Onde se dizia estar uma barriga, poderia ser vista outra coisa qual<strong>que</strong>r, assim<br />

como nas nádegas... No entanto, ao pensar de novo na cabeça, na sua<br />

posição e na água <strong>que</strong> passa junto a ela, todas as dúvidas parecem cair por<br />

terra. Mais forte ainda fora o impacto causado pela pedra <strong>que</strong> acabámos de<br />

ver, na<strong>que</strong>le sítio e em equilíbrio. Que dizer do calor <strong>que</strong> sai dessa pedra,<br />

desse coração? Como explicar isso? Por largo tempo o Inácio deixou-me<br />

entregue aos meus pensamentos. Nada acrescentou sobre o calor da<strong>que</strong>la<br />

pedra, ou por<strong>que</strong> não saberia explicar a<strong>que</strong>le fenómeno, ou por<strong>que</strong> não lhe<br />

<strong>que</strong>ria tirar poesia procurando explicações racionais, ou por<strong>que</strong> preferia <strong>que</strong><br />

fosse eu a construir na cabeça a explicação <strong>que</strong> entendesse.<br />

– Às vezes neva por aqui. Mesmo quando tudo fica coberto por um<br />

manto branco, da<strong>que</strong>la crista sobressai sempre o coração, cinzento. O seu<br />

calor não permite <strong>que</strong> a neve a ele se prenda.<br />

E a história continuou mal começámos a descer.<br />

– Os amantes encontraram-se em dias e locais certos durante três anos.<br />

Ele chegou a construir uma cabana, onde parte dos encontros se deram. Às<br />

escondidas de todos trocavam beijos, flores, abraços, olhares, sorrisos e<br />

corpos. Assim foi até ao dia em <strong>que</strong>, assustada, desfigurada, ela apareceu sem<br />

trazer as ovelhas. O pai <strong>que</strong>ria obrigá-la a casar com um rico viúvo com mais<br />

do dobro da sua idade.<br />

Aqui, o meu companheiro fez uma pausa, talvez para <strong>que</strong> eu<br />

perguntasse o <strong>que</strong> perguntei:<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 2.º capítulo<br />

António Galrinho


– Decidiram fugir?<br />

Então ele continuou:<br />

– Era a única saída. Mas mal subiram para o cavalo, apareceram quatro<br />

homens, dois com arcos e flechas, dois com espadas, <strong>que</strong> os cercaram. O<br />

rapaz ainda tirou a sua espada mas, destreinado de a utilizar e perante quatro<br />

destemidos guerreiros, de pouco valeu resistir. Mas ainda lutou com quantas<br />

forças tinha, quando a amada lhe foi roubada. No meio da barafunda, dos<br />

gritos da pastora, ameaças e golpes dos raptores, e coices do cavalo, um golpe<br />

de espada corta-lhe uma orelha. Ficou desfalecido no chão ouvindo os gritos<br />

da sua amada enquanto a distância permitiu.<br />

Continuámos a andar, já por terrenos planos, novamente. Perguntei:<br />

– Que se passou depois?<br />

– Quando recuperado fisicamente, montado no seu cavalo, procurou a<br />

rapariga pela aldeia onde morava. Nada conseguiu saber dela. Todos lhe<br />

escondiam informações, receosos. Durante semanas a procurou por todos os<br />

sítios onde pôde ir, mas nada soube. Por todo o lado procurou inteirar-se dos<br />

casamentos <strong>que</strong> se realizariam nos tempos próximos. Passou por alguns, à<br />

distância, mas em nenhum deles estava a sua amada. Cansado e tresloucado<br />

de tanto procurar, um dia desmonta-se do cavalo e deita-se de barriga no chão.<br />

Gritando e chorando de desespero, arranha e morde a terra de raiva. Levantase<br />

e, à medida <strong>que</strong> a sua ira descontrolada crescia, o seu corpo inchava.<br />

Ao contar estas partes mais dramáticas, o meu amigo gesticulava e<br />

mudava o tom da sua voz como se declamasse esta história num palco.<br />

Contudo, ansioso pelo desenrolar da história, a minha atenção ia mais para as<br />

palavras.<br />

– Era como se ele só conseguisse expirar uma pe<strong>que</strong>na parte do ar <strong>que</strong><br />

inspirava, e assim fosse inchando, inchando até se tornar gigante, enorme.<br />

Dores imensas atacaram-lhe o corpo, além das <strong>que</strong> já tinha na alma. Sempre<br />

de espada na mão, brandindo-a sem nexo, decide golpear-se com uma<br />

violência tal <strong>que</strong> desfez o próprio corpo em pedaços. As diferentes partes<br />

ficaram espalhadas por este vale e por estas montanhas, transformando-se em<br />

pedras.<br />

Fi<strong>que</strong>i mudo. Durante algum tempo só os nossos passos pisando a terra,<br />

e o cantar esporádico de algum passarito, se <strong>fazia</strong>m ouvir. Até <strong>que</strong> perguntei:<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 2.º capítulo<br />

António Galrinho


– As pessoas daqui, desta aldeia e das mais próximas, conhecem esta<br />

história?<br />

Ao ouvir a pergunta o Inácio parou, virou-se para mim levantando a<br />

sobrancelha do meu lado, e disse:<br />

– Todos conhecem a história do jovem guerreiro <strong>que</strong> não lutava, <strong>que</strong> se<br />

apaixonou e se tornou gigante e depois se matou. Todos sabem <strong>que</strong> estas<br />

pedras <strong>que</strong> eu lhe mostro são os restos do seu corpo. Mas cada pessoa conta<br />

a história à sua maneira. Todos os <strong>que</strong> a contam <strong>que</strong>rem acrescentar mais<br />

beleza aos momentos belos e mais tragédia aos momentos trágicos. Cada um<br />

dá-lhe ou retira-lhe o encanto <strong>que</strong> entende, numa ou noutra passagem. Como<br />

isto se passou há tanto tempo... é normal <strong>que</strong> assim seja; e é normal <strong>que</strong> se<br />

invente um pouco.<br />

Continuando a nossa caminhada, entrámos num montado, sob o qual<br />

cresciam pe<strong>que</strong>nos arbustos. De repente, frente aos nossos olhos, um menir<br />

ligeiramente ar<strong>que</strong>ado, com o dobro da minha altura, marcava a sua presença,<br />

imponente. O Inácio sorriu e disse:<br />

– Já viu?<br />

Percebia-se de maneira bem óbvia qual era a parte do corpo do Gigante<br />

a <strong>que</strong> correspondia a<strong>que</strong>la pedra. Olhei-a de alto a baixo. Do chão até meia<br />

altura mantinha o mesmo diâmetro. A partir daí estreitava ligeiramente,<br />

terminando redondo como a cúpula semi-esférica de uma igreja. Os ramos de<br />

um sobreiro roçavam suavemente na sua extremidade da pedra, ao ritmo da<br />

brisa <strong>que</strong> soprava, ligeira.<br />

Mal nos afastámos, o Inácio contou <strong>que</strong> quando era jovem, o presidente<br />

da câmara quis deslocar o menir para junto da barriga. Não o fez por ser difícil<br />

e dispendioso, e também por<strong>que</strong> receava a revolta do povo. O desagrado das<br />

pessoas não se deveu ao facto de se tornar demasiado óbvia e chocante para<br />

alguns a relação entre o menir e o penedo da barriga. Elas simplesmente não<br />

<strong>que</strong>riam <strong>que</strong> a pedra fosse retirada do sítio onde sempre o conheceram. Mas<br />

esse autarca não desistiu da ideia de dar um to<strong>que</strong> brejeiro ao largo, e acabou<br />

por colocar o bebedouro no sítio onde <strong>que</strong>ria colocar a grande pedra.<br />

Continuámos a nossa caminhada. Algumas pedras e penedos por onde<br />

passámos fizeram lembrar-me outras partes do corpo: um ombro, um dedo, um<br />

calcanhar. Da primeira vez ainda arris<strong>que</strong>i:<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 2.º capítulo<br />

António Galrinho


– Aqui está um ombro.<br />

O Inácio rebentou com uma gargalhada <strong>que</strong> parecia não ter fim, e<br />

explicou:<br />

– Isso?! Isso é apenas uma pedra!<br />

Das outras vezes já não arris<strong>que</strong>i. De facto, distinguir pedras <strong>que</strong> eram<br />

apenas pedras de pedras <strong>que</strong> eram partes do corpo do Gigante nem sempre<br />

era fácil. Então voltei a esperar <strong>que</strong> tivesse ele a iniciativa de me levar a outras.<br />

Mas, a certa altura esclareceu:<br />

– A imaginação das pessoas pode ver mais partes do corpo noutras<br />

pedras. Mas apenas as <strong>que</strong> lhe mostrei são, de facto, partes do corpo do<br />

Gigante. Não se lhe conhece o corpo inteiro. Parte dele está, certamente,<br />

soterrado. Todas as outras pedras <strong>que</strong> se vêem pelas redondezas estão aí<br />

para nos entreter e enganar.<br />

A<strong>que</strong>la jornada terminou com o regresso à aldeia, em torno da tal árvore<br />

enigmática, <strong>que</strong> se encontra no Largo da Igreja.<br />

– Vou falar-lhe mais desta árvore.<br />

Apesar do cansaço devido a tão grande caminhada por campos, vales e<br />

montes, ainda tinha energia para estar bem atento.<br />

– Já reparou no quanto esta árvore é estranha?<br />

– Claro! Mas de vez em quando vemos árvores <strong>que</strong> não tínhamos visto<br />

antes. São muitas as variedades de árvores. Algumas são típicas de<br />

determinadas zonas, <strong>que</strong> só aí se encontram.<br />

A curta distância, o Inácio olha a árvore de alto a baixo e diz:<br />

– Pois..., mas esta é única!<br />

Logo acrescentei:<br />

– Única na região.<br />

Logo ele emendou:<br />

– Não! Única mesmo, única no mundo!<br />

Ao ouvir isto, vieram de novo à minha memória algumas frases do<br />

primeiro encontro, <strong>que</strong> tanto me pareceram tolas. Estive quase a duvidar.<br />

– Já reparou neste tronco imensamente largo, junto ao chão?<br />

Olhei, não respondi, não era preciso responder. Ele continuou:<br />

– Deve ter milhares de anos esta árvore.<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 2.º capítulo<br />

António Galrinho


De facto, o tronco da árvore é mesmo muito largo, sobretudo na parte<br />

mais baixa. Contornei-o, contei vinte e quatro passos. Mas à altura dos olhos já<br />

tem cinco ou seis palmos de largura. Os primeiros ramos aparecem um pouco<br />

mais acima; são grossos e pesados, descendo numa curvatura suave, voltando<br />

a subir já perto das pontas. A meia altura os ramos já se mantêm na horizontal.<br />

Quanto mais próximos do cimo, mais se erguem e se aproximam da vertical.<br />

– É o peso do tamanho <strong>que</strong> os faz vergar à medida <strong>que</strong> vão crescendo,<br />

e depois envelhecendo.<br />

A árvore é bem alta. Mais alta do <strong>que</strong> a igreja. Em baixo a copa é larga,<br />

gorda, e só a meia altura estreita de forma acentuada, terminando num bico<br />

bem aguçado.<br />

– Nunca se encontrou outra assim. Conta uma história antiga <strong>que</strong> foi<br />

trazida de terras distantes, ainda pe<strong>que</strong>na, por algum navegador. Mas é bem<br />

anterior aos tempos em <strong>que</strong> as caravelas e as naus cruzavam os oceanos.<br />

As folhas assemelham-se a mãos, grandes. Quatro recortes dividem-nas<br />

em cinco partes de tamanhos idênticos, formando como <strong>que</strong> cinco dedos. Um<br />

pé forte e comprido, embora fino, une-as aos ramos mais estreitos. Apenas<br />

esses ramos, no exterior da árvore, dão folhas. Por dentro, um emaranhado<br />

imenso de ramos e raminhos escuros, parecendo secos, cruzam-se de forma<br />

irregular, criando uma teia densa. As folhas formam um manto espesso <strong>que</strong><br />

cobre toda a<strong>que</strong>la estrutura. Do lado virado para o céu, as folhas são de um<br />

verde muito escuro, quase azul; do lado virado para o chão, são de um verde<br />

muito claro, quase branco.<br />

– Quando sopra uma ligeira brisa, as folhas abanam como se fossem<br />

mãos a tremer de frio; quando o vento sopra mais forte as folhas acenam,<br />

como num cumprimento. Outras vezes parece <strong>que</strong> nos chamam, outras ainda<br />

<strong>que</strong> nos enxotam.<br />

Vi, aquando de um vento muito forte <strong>que</strong> assolou a aldeia, <strong>que</strong> as folhas<br />

se moviam de forma desengonçada, embora graciosa, alternando o verde<br />

muito escuro com o verde quase branco, como se luzes acendessem e<br />

apagassem. Por vezes, quando as folhas se tocam com suavidade parecem<br />

cumprimentar-se, tocar-se, ou fazer carícias tal como fazem as mãos.<br />

– Mas como é possível <strong>que</strong> esta árvore seja única?<br />

O Inácio não respondeu. Tentei de novo fazê-lo falar:<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 2.º capítulo<br />

António Galrinho


– A primeira vez <strong>que</strong> a vi tinha flores brancas, agora tem flores pretas.<br />

Ele riu alto, com uma gargalhada bem sonora. Mas decidiu falar doutras<br />

particularidades da árvore, sem se sujeitar às minhas perguntas. Contou <strong>que</strong><br />

no Verão dá umas flores brancas com oito pétalas grandes, bem abertas, <strong>que</strong><br />

partem dum núcleo cor-de-laranja. À chegada do Outono as flores vão<br />

fechando e viram-se para baixo; as pétalas encostam-se e fecham com a forma<br />

de uma sineta, com as pontas viradas para dentro. Era assim <strong>que</strong> elas<br />

estavam. Apesar de fechadas e quase coladas, percebia-se <strong>que</strong> lá estavam as<br />

pétalas, negras, deixando um orifício na extremidade; dando a impressão de<br />

<strong>que</strong> se as pétalas fossem um pouco maiores tapariam essa abertura. Uma vez<br />

viradas para baixo, as pétalas ficam ressequidas e duras. Nessa altura, do<br />

centro do núcleo cor-de-laranja cresce uma protuberância <strong>que</strong> logo fica seca e<br />

dura. Mas como o núcleo permanece maleável, ela abana como o badalo dum<br />

sino.<br />

– Quando sopra o vento ouvem-se centenas de sininhos com um som<br />

suave de madeira ressequida, como se dezenas de xilofones tocassem<br />

suavemente com sons ligeiramente diferentes.<br />

A meio do Inverno, à medida <strong>que</strong> enfra<strong>que</strong>cem, as pétalas vão caindo,<br />

também com a ajuda do badalo, <strong>que</strong> as ajuda a soltar. Depois de cair a última<br />

pétala, cai também o badalo, restando apenas, pendurado, o núcleo do<br />

tamanho duma tangerina, cuja cor nunca se altera, com nove pe<strong>que</strong>nos<br />

orifícios correspondentes aos sítios onde estiveram presas as pétalas e o<br />

badalo.<br />

– Essa bolinha não é um fruto! Esta árvore não dá frutos!<br />

Com a chegada da Primavera, essas pe<strong>que</strong>nas bolas vão virando para<br />

cima. E das marcas <strong>que</strong> ficaram começam a crescer de novo as brancas e<br />

luminosas pétalas, abrindo para a luz e para o ar. Secas, as flores não têm<br />

qual<strong>que</strong>r cheiro, mas quando estão viçosas deitam um cheiro fresco e<br />

agradável, idêntico ao da serradura, mas adocicado; parecendo uma mistura<br />

de madeira com mel.<br />

– Como não dá frutos, também não dá sementes! Por isso não se<br />

reproduz.<br />

Meio aparvalhado com o <strong>que</strong> acabara de ouvir, perguntei:<br />

– Então e cortando um ramo e espetando-o na terra... não pega?<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 2.º capítulo<br />

António Galrinho


O oleiro abanou a cabeça à es<strong>que</strong>rda e à direita. Insisti:<br />

– Então e fazendo um golpe num ramo, envolvendo um saco com terra<br />

para criar raiz?<br />

A resposta foi acenos de cabeça iguais aos anteriores.<br />

– Tanto num caso como noutro alimenta-se a esperança, mas caem as<br />

folhas, caem os ramos. Fica apenas o pe<strong>que</strong>no tronco central, hirto, seco e<br />

morto.<br />

Contou-me depois <strong>que</strong> os especialistas já tentaram tudo, com terras<br />

diferentes, em alturas diferentes do ano, com condições diferentes de<br />

humidade, temperatura e luz, mas nada resultou. Levaram-se ramos para<br />

diversos locais do mundo, de ocidente a oriente, do equador aos <strong>círculos</strong><br />

polares, mas nunca se conseguiu outra árvore como a<strong>que</strong>la.<br />

– Que nome tem esta árvore?<br />

– Tem muitos nomes. Árvore grande, árvore da vida, árvore da sorte,<br />

árvore diferente, árvore do amor. Se usarmos qual<strong>que</strong>r destes nomes, ou outro<br />

<strong>que</strong> não seja nome de árvore conhecida, toda a gente saberá <strong>que</strong> nos estamos<br />

a referir a ela.<br />

Na<strong>que</strong>la aldeia só há casamentos quando a árvore tem as flores<br />

brancas. E nenhum casal dispensa uma série de fotografias debaixo ou junto<br />

dela. Conscientes da raridade e da beleza destas flores, ninguém ousa<br />

apanhá-las. Algumas, situadas na parte mais larga e baixa estão ao nível do<br />

rosto dos crescidos. Os pe<strong>que</strong>ninos, é vê-los ao colo dos seus pais e avós,<br />

desejosos por tocar nas folhas e cheirar as flores! Mesmo quando alguma<br />

folha, flor ou pétala cai com o vento, de nada vale levá-la dali. Mesmo numa<br />

jarra com água, acontece à flor o mesmo quando fica abandonada no chão do<br />

largo. Em dois ou três dias as pétalas tornam-se negras e rijas e separam-se.<br />

Depois de soltas, em mais dois ou três dias estalam em milhares de<br />

minúsculos flocos negros facetados, sem forma definida, como se fossem<br />

pe<strong>que</strong>nos sólidos geométricos <strong>que</strong>brados e amassados.<br />

– Finalmente, aqui temos a última parte do Gigante <strong>que</strong> lhe vou mostrar.<br />

Curioso, logo olhei à volta, procurando algo <strong>que</strong> não tivesse visto antes<br />

na<strong>que</strong>le largo. Mas, não! Nenhum penedo, grande ou pe<strong>que</strong>no por ali estava.<br />

Além da árvore, apenas meia dúzia de bancos para as pessoas se sentarem, e<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 2.º capítulo<br />

António Galrinho


os oito candeeiros de ferro, pintados de verde-escuro forte, colocados<br />

estrategicamente em torno da árvore.<br />

– Venha cá, Raul.<br />

Chegámo-nos junto do tronco.<br />

– Olhe para cima!<br />

Segui a sugestão do Inácio e comentei:<br />

– Tem um tronco muito aprumado.<br />

– Direito, mesmo muito direitinho...<br />

Fez uma pausa e concluiu:<br />

– Como uma espada!<br />

Uma espada?<br />

– A espada?!<br />

A<strong>que</strong>le tronco, <strong>que</strong> começa grossíssimo, cedo estreita e continua<br />

estreitando, sempre bem aprumado, terminando num bico aguçado... é a<br />

espada do Gigante! Boquiaberto, olhei umas dez vezes de cima abaixo e de<br />

baixo acima, relembrando em segundos a história <strong>que</strong> me havia sido contada.<br />

Entretanto, o Inácio afasta-se um pouco e logo me chama:<br />

– Venha ver isto!<br />

Com a mão direita pega num tenro ramo com a espessura do dedo<br />

mindinho. Aproximando lentamente o polegar desse ramo, toca nele ao de leve<br />

com a ponta desse dedo. Aguça o olhar na extremidade da unha, <strong>que</strong> ainda<br />

mais devagar encostou ao ramo. Connosco parados e em silêncio como<br />

estátuas, crava a unha na pele da<strong>que</strong>le fino e dócil ramo fazendo, de seguida,<br />

três minúsculos movimentos com a unha, à direita, à es<strong>que</strong>rda e à direita.<br />

Levanta o dedo e olha, expectante, para o pe<strong>que</strong>no golpe <strong>que</strong> acabara de<br />

fazer.<br />

– Demora um bocadinho!<br />

A<strong>que</strong>les gestos e a<strong>que</strong>le olhar foram feitos como se não pudessem ser<br />

de outra maneira, como se de um ritual se tratasse. Passados uns segundos,<br />

começa a formar-se uma gota escura, castanha. A gota torna-se maior e<br />

começa a escorrer pelo ramo, traçando um fio brilhante. Colocando a mão<br />

es<strong>que</strong>rda aberta por baixo desse fio, espera <strong>que</strong> uma gota e depois outra ao<br />

lado da primeira caiam no centro da palma. Como a sombra não deixava ver<br />

bem...<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 2.º capítulo<br />

António Galrinho


– Venha ver ao sol!<br />

Parámos a olhar e logo me arrepiei. Virámo-nos um para o outro em<br />

simultâneo. Ele, de olhos pe<strong>que</strong>nos e de boca cerrada, sem sinal do seu<br />

sorriso característico; eu, de olhos e boca abertos, arregalados de admiração.<br />

Antes <strong>que</strong> eu falasse ele respondeu afirmativamente com um lento e quase<br />

imperceptível aceno de cabeça à pergunta <strong>que</strong> só a seguir fiz.<br />

– Sangue?!<br />

O Inácio, ainda inexpressivo, limpa a mão às calças e afasta-se em<br />

direcção à sua casa. A meio do caminho conta o <strong>que</strong> faltava contar acerca<br />

desta história.<br />

– Antes de cair morto, o Gigante agarra com força a sua espada, <strong>que</strong><br />

manteve bem firme e vertical. No instante em <strong>que</strong> morreu, a espada<br />

transformou-se numa árvore enorme, coberta por um manto de mil flores<br />

brancas. Quando brancas, simbolizam o amor entre os jovens amantes;<br />

quando pretas, representam o luto pela perda de <strong>que</strong>m amavam.<br />

Acabou de dizer estas palavras quando, já perto de casa, vira de repente<br />

por uma rua estreita, <strong>que</strong> subia mais íngreme do <strong>que</strong> qual<strong>que</strong>r outra. Nada<br />

perguntei. Tendo a história sido dada por terminada, esperava uma surpresa.<br />

Continuámos a subir. Voltámos a sair da aldeia. A calçada deu lugar a um<br />

caminho de terra, por onde andavam galinhas e patos. Chegados a uma<br />

pe<strong>que</strong>na elevação olhámos em volta. Dali avistámos de novo o Sol <strong>que</strong>, lá em<br />

baixo, já se havia posto. Em silêncio, o oleiro deu uma volta completa, girando<br />

sobre si próprio, olhando devagar todo o espaço à volta. Olhava o vale e as<br />

montanhas, parecendo demorar-se mais quando se virava para os sítios onde<br />

estavam os restos do Gigante. Dali também se via toda a aldeia, com as suas<br />

casas agora suavemente acinzentadas pela falta de luz. Inspirou e expirou<br />

fundo, fez uma pausa e voltou a inspirar. Quebrou o silêncio:<br />

– O Gigante, <strong>que</strong> antes fora guerreiro, morreu. E os seus restos estão<br />

por aqui espalhados.<br />

Estendendo as mãos abertas na direcção da aldeia, uma frente à outra,<br />

como se apenas na<strong>que</strong>le espaço de três palmos agarrasse a manchinha de<br />

casas de paredes caiadas com telhas de tijolo, acrescentou:<br />

– Desses restos, duros e secos, surgiu a sua Alma.<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 2.º capítulo<br />

António Galrinho


Só quando ouvi a última palavra percebi por <strong>que</strong> razão tinha a aldeia<br />

a<strong>que</strong>le nome. Bem <strong>que</strong> podia ter percebido antes, mas não me ocorrera<br />

relacionar as coisas de tão embevecido <strong>que</strong> estava com a história <strong>que</strong> me era<br />

contada.<br />

Ele baixa as mãos, eu baixo a cabeça. Fecho os olhos e logo duas<br />

lágrimas empurraram suavemente as fendas pegadas, escapando velozes pelo<br />

rosto para se unirem no <strong>que</strong>ixo, numa só. Senti essa gota, maior, soltar-se e<br />

cair na terra entre os meus pés. Assim fi<strong>que</strong>i algum tempo. Ergui a cabeça e<br />

olhei por cima do ombro direito, atraído pela luz <strong>que</strong> sumia. Com a vista turva,<br />

vi <strong>que</strong> o Sol cor de carne tocava a crista da montanha, ali ficando por breves<br />

instantes, em equilíbrio.<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 2.º capítulo<br />

António Galrinho


usada, com a camisa meio desfraldada. Usava boina com a pala levantada, um<br />

pouco de lado, mostrando a metade branca da testa. Um palito colado ao beiço<br />

inferior ameaçava cair a qual<strong>que</strong>r momento, a qual<strong>que</strong>r dos seus passos<br />

incertos. Desliguei o carro. Saudei-o e perguntei-lhe como poderia sair dali e<br />

apanhar a estrada para a povoação <strong>que</strong> procurávamos. Cambaleando, encostou<br />

a mão direita no tejadilho do carro, com a outra tirou o palito da boca. Baixou-se<br />

ligeiramente e olhou-me fixo com uns olhos muito pe<strong>que</strong>ninos e húmidos.<br />

Parecia tomar coragem para começar um discurso longo. Com a mão <strong>que</strong><br />

segurava o palito ajeitou a boina para ficar com melhor aparência, mas ao fazêlo<br />

picou a testa e disse:<br />

– Porra!<br />

Percebi <strong>que</strong> a<strong>que</strong>la palavra não era a resposta à minha pergunta. Além<br />

disso, já estivera em Portugal algumas vezes, e o esforço <strong>que</strong> fizera até aí para<br />

aprender português já me permitia entender e fazer-me entender de forma<br />

razoável, a não ser <strong>que</strong> a conversa fosse com um surdo ou com um bêbado.<br />

Repeti a pergunta. Pelo menos o nome da povoação <strong>que</strong> eu procurava deve ter<br />

percebido, pelo <strong>que</strong> respondeu:<br />

– Vá até lá acima, volte para trás e siga em frente!<br />

Dito isto, levantou a pala da boina, prendeu o palito no único espaço entre<br />

dentes onde seria possível fazê-lo, desencostou-se do carro, virou costas e<br />

desceu rua abaixo, deixando um bafo a vinho tinto novo dentro do carro. Alguns<br />

passos adiante acrescentou:<br />

– Boa viagem!<br />

Já habituado ao silêncio português, sobretudo no interior, não me admirei<br />

com esta poupança nas palavras. Mas a<strong>que</strong>la resposta era deveras incompleta e<br />

tonta. Ou talvez não! Talvez eu tivesse mesmo de voltar para trás. Sem saber o<br />

<strong>que</strong> fazer após esta cena algo desconcertante, olhei para a minha mulher e<br />

rimos os dois como se nos tivessem acabado de contar uma anedota.<br />

Sem razão aparente volto o olhar para a porta da taberna, de onde saía,<br />

nesse instante, um outro <strong>homem</strong>, afastando as fitas multicores de plástico, <strong>que</strong><br />

interditavam a entrada das moscas, com a firmeza de <strong>que</strong>m empurra uma porta<br />

pesada. Como se desse continuidade a um discurso já iniciado, disse:<br />

– Mas como está muito calor, e esta não é uma hora boa para viajar,<br />

podem aproveitar para beber um copo de água fresca.<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 1.º capítulo<br />

António Galrinho


No fim da frase desenhou um sorriso <strong>que</strong> quase lhe fechou os olhos. No<br />

segundo <strong>que</strong> decorreu entre a sugestão e a minha resposta olhei de relance<br />

para a minha mulher, <strong>que</strong> ainda se esforçava por controlar o riso. Claro <strong>que</strong> a<br />

minha resposta só podia ser de aceitação.<br />

– Claro!<br />

A<strong>que</strong>le ar decidido, com a alegria contagiante de um amigo bem disposto,<br />

não me permitiu outra resposta.<br />

Este <strong>homem</strong> era certamente mais velho do <strong>que</strong> o outro, mas aparentava<br />

ser mais novo, pelo aspecto saudável e alegre <strong>que</strong> tinha. Uma boina verdecinza,<br />

bem colocada, projectava uma sombra densa <strong>que</strong> lhe cortava o rosto a<br />

meio, numa diagonal. A estatura média-baixa impressionava pela presença<br />

decidida e calma. Vestia camisa de manga curta e calças, ambas castanhas, a<br />

camisa num tom mais claro. A barba muito bem feita evidenciava uma pele lisa,<br />

morena, rasgada apenas por alguns golpes junto dos olhos e na testa, estes<br />

mais suaves e compridos. Uma pe<strong>que</strong>na barriga, comum na<strong>que</strong>la idade,<br />

sobressaía ligeiramente.<br />

Era evidente <strong>que</strong> ele não estava apenas a sugerir <strong>que</strong> eu e a minha<br />

mulher bebêssemos água. Percebi <strong>que</strong> ele <strong>que</strong>ria oferecer também a sua<br />

simpatia. Por isso, quis mostrar o quanto estava decidido a aceitar a proposta e<br />

acrescentei:<br />

– Claro, está mesmo muito calor!<br />

E logo a seguir o <strong>homem</strong> ripostou:<br />

– Então, venham até ali!<br />

De início pareceu-me <strong>que</strong> ele nos <strong>que</strong>ria oferecer um copo de água ali<br />

mesmo, na taberna, o <strong>que</strong> era estranho, por<strong>que</strong> nas tabernas bebem-se<br />

sobretudo copos de vinho. Contudo, talvez ele nos quisesse oferecer água,<br />

sombra e frescura em sua casa. E também companhia.<br />

– Deixem o carro lá em cima, no largo.<br />

Ficou-me nítida a imagem do seu rosto, como <strong>que</strong> carimbada nos olhos.<br />

Os lábios firmes, bem horizontais quando sereno, bem curvos quando sorrindo,<br />

contrastavam com o nariz mediano, de ponta saliente e arredondada. Os olhos,<br />

pe<strong>que</strong>nos e húmidos, não de vinho mas dum sorriso franco <strong>que</strong> depressa<br />

passavam de um olhar vago como a névoa para um firme como uma seta, eram<br />

encimados por umas sobrancelhas escuras, ralas, com pêlos compridos e<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 1.º capítulo<br />

António Galrinho


desalinhados. As orelhas eram pe<strong>que</strong>nas, como <strong>que</strong> coladas à cabeça, à<br />

excepção dos lóbulos, <strong>que</strong> apontavam ligeiramente para fora. Um cabelo<br />

grisalho e denso saía por baixo da boina. A cara era cheia, sem ser gorda,<br />

apenas o suficiente para ocultar os relevos das maçãs do rosto. Só o <strong>que</strong>ixo<br />

avançava ligeiramente, tímido, parecendo competir a medo com o nariz.<br />

Liguei o carro e subimos. Meio aparvalhado com tudo isto nem ofereci<br />

boleia ao <strong>homem</strong>. A minha mulher chamou-me a atenção para isso, mal<br />

recomeçámos a subida.<br />

– Oh, <strong>que</strong> chatice! Que cabeça a minha!<br />

Olhei para o lado e pelo retrovisor para ver se o via mas a rua estava<br />

deserta, como quando havíamos chegado. Continuámos. Não percebemos se o<br />

<strong>homem</strong> voltou a entrar na taberna ou se nos teria seguido por outra rua. De<br />

qual<strong>que</strong>r modo esperaríamos por ele lá em cima.<br />

Era um largo muito pe<strong>que</strong>no. Nele havia espaço para o meu carro, para o<br />

outro <strong>que</strong> já lá estava, para uma cameleira plantada bem no centro, e pouco<br />

mais. Saio e olho à volta, tentando encontrar o <strong>homem</strong>. Além da rua por onde<br />

entrámos, no largo desembocam mais duas, uma muito estreita e outra mais<br />

larga <strong>que</strong> davam continuidade uma à outra, alinhadas, quase perpendiculares à<br />

rua por onde havíamos chegado. A mais larga era curta e conduzia a outro largo,<br />

maior, deixando ver metade de uma enorme árvore, cheia de flores brancas,<br />

grandes, <strong>que</strong> adivinhava uma forma idêntica à <strong>que</strong> tem o ás de espadas. A rua<br />

mais estreita era mais longa, parecendo ser apertada pelo casario. Ao fim dessa<br />

rua aparece o <strong>homem</strong>, acenando com as mãos erguidas, abanando todo o<br />

corpo.<br />

– Venham por aqui!<br />

Olhei admirado para a minha mulher. Ambos sorrimos da<strong>que</strong>la cena<br />

desconcertante, e seguimos caminho. De facto, não nos parecia possível <strong>que</strong><br />

a<strong>que</strong>le <strong>homem</strong> tivesse subido duas centenas de metros tão depressa, num dia<br />

de tanto calor. E <strong>que</strong> subida a<strong>que</strong>la! Ou estaríamos nós já algo alucinados pelo<br />

calor <strong>que</strong> havíamos perdido a noção da relação habitual entre o espaço e o<br />

tempo!<br />

Algumas mulheres, espreitando pelas janelas, olharam-nos curiosas mas<br />

sem nada dizer. Tinham o olhar de <strong>que</strong>m está habituado a reconhecer as caras<br />

<strong>que</strong> por ali passam. Cumprimentámo-las com sorrisos e olás. Para fugir do sol<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 1.º capítulo<br />

António Galrinho


escaldante, andámos junto às paredes, abrigando-nos nas estreitas sombras<br />

<strong>que</strong> os beirais salientes das casas projectavam. Entrámos num largo um pouco<br />

maior do <strong>que</strong> o anterior, no cento do qual sobressaía um penedo de granito.<br />

Junto dele, saltitava água dum bebedouro. Uma dúzia de casas idênticas<br />

contorna a<strong>que</strong>le espaço. Uma delas é a da<strong>que</strong>le <strong>homem</strong>.<br />

– Entrem, entrem!<br />

Entrámos. Era uma humilde casa de aldeia, de paredes grossas, divisões<br />

pe<strong>que</strong>nas e tectos baixos. Muito agradável, com uma frescura fabulosa.<br />

Entrámos directamente numa sala onde se amontoavam os móveis, <strong>que</strong> mal<br />

vimos, pois a luz lá fora era muito forte. Apenas o brilho metálico de uma<br />

máquina fotográfica colocada numa estante me chamou a atenção. Passámos<br />

de imediato para uma divisão com uma janela virada para as traseiras, onde<br />

uma mesa e meia dúzia de cadeiras preenchiam a área central. Decidido, o<br />

<strong>homem</strong> atravessou-a também sem nada dizer. Ao chegar à porta <strong>que</strong><br />

comunicava com a cozinha, e de costas voltadas para nós, disse, mostrando-nos<br />

a palma da mão es<strong>que</strong>rda:<br />

– Sentem-se aí <strong>que</strong> já lhes dou a água!<br />

Mal nos sentámos aparecem uns braços estendidos com dois copos de<br />

barro encarnado, vidrados, quase a entornar de água.<br />

– Bebam!<br />

Agradecemos e bebemos. A minha mulher comentou:<br />

– É muito fresca.<br />

– E não estava no frigorífico! É uma água admirável, é do poço <strong>que</strong> está<br />

ali no quintal. É dessa <strong>que</strong> bebemos cá em casa.<br />

Eu, para não ficar calado, rematei:<br />

– Os copos são bonitos.<br />

Aí, parecendo sentir-se mais à vontade connosco, o <strong>homem</strong> perguntou:<br />

– Que fazem por cá?<br />

Eu expli<strong>que</strong>i:<br />

– Procurávamos outras povoações... mas perdemo-nos e viemos aqui<br />

parar.<br />

A minha mulher acrescentou:<br />

– Mas valeu a pena, pois esta água é muito agradável, e o senhor é muito<br />

simpático.<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 1.º capítulo<br />

António Galrinho


De repente saiu-me uma pergunta estranha, <strong>que</strong> eu senti como se não<br />

tivesse sido feita por mim:<br />

– Que faz você?<br />

Simples e curta, parecendo ser apenas uma pergunta para continuar a<br />

conversa, teve um efeito na<strong>que</strong>le <strong>homem</strong> <strong>que</strong> eu não estava à espera. Ele puxa<br />

para si a cadeira onde apoiara as mãos, senta-se, tira a boina da cabeça<br />

colocando-a num joelho e prepara-se para responder com um ar sereno, feliz.<br />

Percebi <strong>que</strong> a pergunta, afinal, lhe agradara.<br />

– Faço <strong>círculos</strong>!<br />

Desta vez abriu bem os olhos, ao contrário do <strong>que</strong> lhe era habitual quando<br />

tinha um ar de satisfação. Como perante tal resposta o nosso ar só podia ser de<br />

admiração, ele apressou-se a esclarecer. Estendeu a mão es<strong>que</strong>rda à frente das<br />

nossas caras, com a palma virada para cima, bem horizontal; estendeu de<br />

seguida a outra <strong>que</strong>, com os dedos virados para baixo, rodou um pouco acima<br />

da anterior dizendo:<br />

– Faço <strong>círculos</strong>!<br />

O meu espanto foi enorme quando ouvi a<strong>que</strong>la frase pela primeira vez.<br />

Quando a ouvi pela segunda fi<strong>que</strong>i sem saber o <strong>que</strong> pensar nem o <strong>que</strong> dizer, a<br />

não ser <strong>que</strong>, afinal, deveria estar perante alguém <strong>que</strong> não estaria no seu juízo<br />

perfeito. Confesso <strong>que</strong>, por breves instantes, estive até convencido disso.<br />

Durante o meu silêncio de espanto, a<strong>que</strong>le <strong>homem</strong> vinca ainda mais o sorriso<br />

habitual, de novo quase fechando os olhos, <strong>que</strong> humedeceram de<br />

contentamento. Era suposto certamente, senti isso!, ter-me deixado contagiar<br />

por a<strong>que</strong>la frase, dita da<strong>que</strong>la maneira teatral mas simpática, apesar de tudo. Eu<br />

devia ter reagido de forma simpática também, talvez com um sorriso apenas,<br />

pelo menos enquanto durasse o mistério. Mas não foi isso <strong>que</strong> aconteceu,<br />

sobretudo por<strong>que</strong> eu continuava sem perceber o <strong>que</strong> <strong>que</strong>ria a<strong>que</strong>le <strong>homem</strong><br />

dizer. De qual<strong>que</strong>r modo, fiz um pe<strong>que</strong>no esforço e sorri, mas mantive-me<br />

calado. Recolhendo os braços, o <strong>homem</strong> virou-se para mim e espetou-me o<br />

olhar com tal força <strong>que</strong> me deixou electrizado. Como <strong>que</strong> revelando finalmente o<br />

segredo, ou desfazendo o mal-entendido, disse:<br />

– Faço <strong>círculos</strong>... e depois cozo-os!<br />

Com o tom decidido <strong>que</strong> foi colocado nesta frase era suposto, desta vez,<br />

<strong>que</strong> eu ficasse esclarecido, mas não. Fi<strong>que</strong>i completamente baralhado, sem<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 1.º capítulo<br />

António Galrinho


saber o <strong>que</strong> pensar, o <strong>que</strong> dizer e até <strong>que</strong> expressão fazer, pois pareceu-me<br />

estar a dialogar com alguém <strong>que</strong> construía frases sem nexo. E como se não<br />

bastasse, ainda acrescentou, como <strong>que</strong> para testar a minha paciência:<br />

– Às vezes zango-me com eles e até lhes dou murros!<br />

E deu um forte e sonoro soco na palma da mão, e mais dois na mesa de<br />

madeira maciça e pesada, mas <strong>que</strong> não conseguiu evitar <strong>que</strong> os copos, ainda<br />

meios de água, dessem um pe<strong>que</strong>no salto. Depois da<strong>que</strong>la cena olhou para nós<br />

e quase se babou. Não me restaram dúvidas: maluco, mesmo! A minha mulher,<br />

<strong>que</strong> se ri facilmente, estava prestes a rebentar, mas controlou-se, pois também<br />

estava a achar estranhíssima esta conversa. Para desfazer de vez a dúvida, o<br />

<strong>homem</strong> abana a cabeça a um lado e a outro e diz, como <strong>que</strong> desinteressado da<br />

conversa:<br />

– Oh, porra! Faço vasos, bilhas, canecas, potes!<br />

Logo a seguir avança um pouco a cabeça e abre os braços com as mãos<br />

viradas para cima, como se sustentassem uma paciência pesada, apontando<br />

com o <strong>que</strong>ixo para o centro da mesa, de novo abrindo bem os olhos. Nessa<br />

posição, e olhando para o espaço vazio entre mim e a minha mulher, como se<br />

olhasse uma terceira pessoa, remata baixinho:<br />

– Sou oleiro.<br />

Após este desfecho, olha para cada um de nós, apoia as mãos na mesa e<br />

volta à expressão infantil habitual. Este remate foi desnecessário, pois já<br />

estávamos esclarecidos após a frase anterior.<br />

Levantando-se, aponta em silêncio para algumas peças de barro utilitário<br />

<strong>que</strong> se encontravam num móvel e, de seguida, para os copos onde bebíamos<br />

água, para <strong>que</strong> não restassem dúvidas.<br />

– Ah, muito bem!<br />

Foi o <strong>que</strong> eu disse, para dar mostras claras de <strong>que</strong> havia entendido.<br />

Levantámo-nos também para olhar as peças. Eram simples peças de uso<br />

comum, de barro encarnado, idênticas a muitas outras <strong>que</strong> eu conhecia. A minha<br />

mulher comentou:<br />

– São bonitas.<br />

Refeito do cho<strong>que</strong> <strong>que</strong> resultou do mal-entendido, fui olhando as peças.<br />

Não estavam ali como numa exposição; estavam ali guardadas esperando ser<br />

utilizadas. Enquanto ia olhando aproveitei para relacionar uma série de coisas.<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 1.º capítulo<br />

António Galrinho


Questionei, em silêncio, como é <strong>que</strong> ali tínhamos ido parar. De facto, foi fruto de<br />

muitos acasos. Perdemo-nos algumas vezes no caminho. Sem saber, o oleiro<br />

interrompia os meus pensamentos.<br />

– Podem ver à vontade!<br />

Havíamos parado o carro em frente de uma taberna, donde saiu a<br />

primeira pessoa <strong>que</strong> vimos nesta aldeia, bêbada. Entretanto a minha mulher já<br />

agarrava e virava à vontade tudo o <strong>que</strong> via. Lembrei-me de uma frase <strong>que</strong> os<br />

portugueses usam referindo-se às pessoas <strong>que</strong>, sem autorização, pegam nas<br />

coisas para as poderem ver melhor: “Como os espanhóis, não sabem ver sem<br />

mexer!” Mas a autorização logo veio.<br />

– Podem mexer à vontade!<br />

E lá continuei na minha renda mental, pensando como era também<br />

estranho <strong>que</strong> logo a seguir tenha saído da mesma taberna um <strong>homem</strong> tão lúcido<br />

e <strong>que</strong>, de forma tão decidida, tenha oferecido água a um casal de<br />

desconhecidos <strong>que</strong> ele acabara de ver na<strong>que</strong>le instante. De facto, também<br />

estranho foi termos aceite de forma tão natural.<br />

– Essa foi das primeiras <strong>que</strong> fiz, há muitos anos.<br />

Vagueando os olhos pelas peças, tentei não perder o fio aos<br />

pensamentos nem deixar de ouvir as indicações <strong>que</strong> ele ia dando. Fruto de uma<br />

série de acontecimentos casuais, viemos aqui parar, a casa deste <strong>homem</strong>, <strong>que</strong> é<br />

oleiro. É certo <strong>que</strong> eu conheci muitos artesãos por acaso, ao passar por tantos<br />

sítios ao longo de vários anos. Mas, algo mais me intrigava além da sucessão de<br />

acasos. Este <strong>homem</strong> falava com palavras límpidas e precisas e com poesia!<br />

“Faço <strong>círculos</strong> e depois cozo-os!” Esta frase ganhava agora outro significado.<br />

Quando terminávamos a volta à pe<strong>que</strong>na sala ouvimos uma grande<br />

agitação e cacarejar de galinhas. Perguntei:<br />

– Algum cão <strong>que</strong> as assusta?<br />

– Não! É a minha mulher <strong>que</strong> anda atrás delas. Vai matar uma!<br />

A minha mulher olhou para mim, preocupada. Poderia desmaiar se<br />

assistisse à morte de uma galinha. Por essa razão, afasta-se sempre desse<br />

ritual. Olhar para as galinhas já mortas, mesmo com as goelas abertas e a<br />

cabeça quase separada do resto do corpo, já não lhe faz impressão. Mas a<strong>que</strong>la<br />

coisa de pisar as asas, agarrar na cabeça, virá-la para trás, arrancar as penas<br />

do pescoço com a faca e, de seguida, cortá-lo..., já não é coisa <strong>que</strong> lhe agrade.<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 1.º capítulo<br />

António Galrinho


Pior ainda é o escorropichar de sangue e os sons gargarejantes e aflitos do<br />

pobre animal. A mim também não é coisa <strong>que</strong> me cative, mas não me faz mudar<br />

de cor.<br />

– Venham ver, tenho aqui um quintal bonito!<br />

É escusado dizer <strong>que</strong> esta proposta era a última coisa <strong>que</strong> a minha<br />

mulher desejava ouvir na<strong>que</strong>la altura, pois era do quintal <strong>que</strong> vinha a<strong>que</strong>le<br />

barulho. Só por ouvir essas palavras, começou a ficar branca.<br />

– Bem...<br />

Ela hesitou, mas o oleiro não percebeu o seu embaraço, ou fez <strong>que</strong> não<br />

percebeu, e insistiu:<br />

– Venham, temos aqui umas sombras muito frescas. Vão gostar!<br />

A minha mulher respirou fundo, deu-me a mão por um segundo e encheuse<br />

de coragem; ou melhor, tentou convencer-se de <strong>que</strong> a iria arranjar, pois a<br />

coragem não pode ser da<strong>que</strong>la cor. Por uma estreita porta passámos para o<br />

quintal, seguindo o dono da casa.<br />

– Maria!<br />

– Uh!<br />

A mulher respondeu de dentro do galinheiro, com uma enorme galinha<br />

castanha agarrada pelas asas, com a mão es<strong>que</strong>rda.<br />

– Larga a galinha e vem cá!<br />

Percebendo <strong>que</strong> tinha visitas, ela assim fez. Saiu do espaçoso galinheiro,<br />

onde se agitavam assustadas umas dez galinhas e um galo. Ao fechar a porta<br />

de rede de arame, virando-se para a galinha <strong>que</strong> acabara de largar, diz:<br />

– Não penses <strong>que</strong> te vais safar. Eu já aqui volto.<br />

De facto, um alguidar e uma faca gasta de tanto ser amolada e usada<br />

estavam ali perto, à sombra cerrada de um enorme pinheiro manso. Entretanto,<br />

olhei para a minha mulher <strong>que</strong> já recuperara as cores rosadas e o sorriso<br />

habitual.<br />

A Maria era uma autêntica mulher do campo. O lenço, com manchas de<br />

muitas cores espalhadas sobre um fundo azul celeste, atado na nuca, ainda<br />

deixava ver algumas ondas de um cabelo quase todo branco, farto e bonito,<br />

muito bem penteado. A roupa estava gasta de tanto ser usada mas sem sinais<br />

de sujidade. Blusa de manga curta, laranja; saia de ganga, cinzenta, passando<br />

um pouco abaixo do joelho; avental de riscas verticais, finas, de várias cores. Os<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 1.º capítulo<br />

António Galrinho


grossos sapatos, muito usados, calçados com o propósito de entrar no<br />

galinheiro, traziam dejectos de galinha cravados nas solas, como lama.<br />

– O <strong>que</strong> é <strong>que</strong> se passa?<br />

A mulher fez a pergunta olhando para nós, sorrindo enquanto ajeitava o<br />

cabelo para dentro do lenço. O seu rosto tinha as formas bem delineadas. Tentei<br />

imaginá-lo aos trinta anos; depois imaginei <strong>que</strong> a esse rosto tinham sido<br />

acrescentadas as rugas, no decorrer dos trinta anos seguintes. As sobrancelhas<br />

claras, a pele rosada, os lábios rosa bem desenhados e os olhos azuis eram os<br />

de uma lindíssima rapariga loira.<br />

– Trouxe este casal cá a casa para beber água.<br />

– São bem vindos! Fi<strong>que</strong>m à vontade! Eu estava agora para matar uma<br />

galinha, mas posso deixar isso para mais tarde.<br />

Ao ouvir tal, a minha mulher suspirou de alívio.<br />

– Ora essa, não <strong>que</strong>remos atrapalhar.<br />

O oleiro apontou para dois bancos de madeira e propôs:<br />

– Sentemo-nos! Está muito calor para fazer seja o <strong>que</strong> for, mas debaixo<br />

destes pinheiros está sempre fresco, mesmo <strong>que</strong> a terra grete com o sol.<br />

Os bancos eram corridos, sem encosto, e estavam junto da parede da<br />

casa, <strong>que</strong> a larga copa do pinheiro grande já acinzentava com a sua sombra.<br />

Encostada a essa parede, estendida no chão junto aos bancos, estava também<br />

uma comprida escada de madeira, pronta para qual<strong>que</strong>r serviço. Naturalmente,<br />

cada casal pegou num banco e o deslocou ligeiramente até ficarem paralelos e<br />

assim nos pudermos ver melhor. Sentámo-nos, e mal endireitávamos as costas,<br />

a mulher do oleiro perguntou:<br />

– Como se chamam?<br />

Respondi eu:<br />

– Eu chamo-me Raul, a minha mulher chama-se Carmen. Somos<br />

espanhóis. E vocês como se chamam?<br />

O “somos espanhóis” saiu-me de forma impensada e desnecessária. O<br />

oleiro respondeu:<br />

– Chamo-me Inácio, a minha mulher chama-se Isabel.<br />

Trocámos apertos de mão e sorrisos, e a partir daí sentimo-nos amigos.<br />

Mas eu não deixaria passar um pormenor <strong>que</strong> achei estranho.<br />

– Isabel?! Então não é Maria?<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 1.º capítulo<br />

António Galrinho


– Não! Maria é o <strong>que</strong> ele me chama quando grita por mim.<br />

Depois de feito o esclarecimento, a Isabel <strong>que</strong>stionou:<br />

– A sua mulher é de poucas palavras ou está envergonhada?<br />

A Carmen sorriu ante esta pergunta inesperada e respondeu apenas com<br />

uma palavra nada esclarecedora.<br />

– Não.<br />

Eu continuei:<br />

– Não. Ela diz pouca coisa em português e atrapalha-se.<br />

Sacudindo uma pe<strong>que</strong>na pena <strong>que</strong> teimava em se segurar ao avental, a<br />

Isabel sugere:<br />

– Então fale espanhol, nós percebemos.<br />

A minha mulher nada disse, substituindo as palavras por mais um sorriso<br />

e um tímido aceno de cabeça afirmativo.<br />

Daí surgiu um breve silêncio, durante o qual aproveitámos para melhor<br />

sentir a sombra fresca do pinheiro e o agrado por estarmos juntos, ali, apesar<br />

desse agrado ser acompanhado por a<strong>que</strong>le ligeiro desconforto <strong>que</strong> se costuma<br />

sentir quando se está pela primeira vez junto de alguém, mesmo <strong>que</strong> esse<br />

alguém seja tão simpático quanto o Inácio ou a Isabel. Esse silêncio foi<br />

recortado de forma intermitente por alguns reparos relativos ao tempo, tão<br />

<strong>que</strong>nte <strong>que</strong> estava, ou ao quintal grande <strong>que</strong> tínhamos em frente, com as suas<br />

diversas árvores. Durante esse período, em <strong>que</strong> nos apeteceu apenas sentir o<br />

estar ali, fui olhando em volta, vendo um ou outro pormenor <strong>que</strong> as palavras<br />

dificultam ver quando correm umas a seguir às outras: uma pe<strong>que</strong>na cicatriz por<br />

baixo do <strong>que</strong>ixo do oleiro, mais um gesto delicado da sua mulher, um melro <strong>que</strong><br />

corre ali próximo e se afasta voando, cortando o ar com um assobio, uma<br />

pe<strong>que</strong>na porta no telhado da casa, uma casinha curiosa no fundo do quintal,<br />

algumas árvores por ali espalhadas, umas flores aqui, outras acolá.<br />

Durante estes silêncios, o Inácio e a Isabel aproveitaram também para<br />

nos mirarem discretamente as feições e os gestos. Olharam algumas vezes de<br />

relance para o meu bigode fino e horizontal, do comprimento das duas<br />

sobrancelhas juntas, negro como o cabelo, este curto e farto. No meio, o nariz<br />

longo e afiado acentua mais ainda o rosto magro e chupado. Quando fechada, a<br />

minha boca é quase invisível, pois os lábios colam-se um no outro quase na<br />

totalidade. Os olhos azuis bastante claros destacam-se da pele morena e<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 1.º capítulo<br />

António Galrinho


parecem não fazer parte do conjunto. Aliás, no meu rosto tudo parece ser<br />

emprestado, tudo parece ter sido colocado ao acaso. Reparei <strong>que</strong> acharam<br />

graça ao aspecto levemente cómico <strong>que</strong> resulta deste conjunto, onde apenas as<br />

medianas orelhas parecem estar dentro das normas. Da Carmen ressaltava o<br />

penteado extravagante, um dos muitos <strong>que</strong> sabe fazer, assim como a meticulosa<br />

maquilhagem. O cabelo pintado de castanho quase encarnado formava volumes<br />

assimétricos e de dimensões variadas, estando tudo preso como <strong>que</strong> por magia<br />

apenas por uma pe<strong>que</strong>na mola, escondida algures. As sobrancelhas finas,<br />

levemente aparadas, jogavam com as pestanas longas, azuis escuras. Um<br />

ligeiro colorido rosado nas pálpebras alivia o vermelho forte dos lábios. Cores<br />

essas <strong>que</strong> acabam por ter mais realce devido ao facto de a pele ser clara. O<br />

nariz levemente arrebitado parece contrabalançar o lábio inferior, um pouco<br />

pendente, mas dando-lhe ao mesmo tempo um ar cómico. Nesse dia a minha<br />

mulher levava uns brincos simples, umas argolas de prata redondas <strong>que</strong> se<br />

destacavam apenas pelas grandes dimensões. Os brincos, aliás, mereceram um<br />

olhar sorridente do <strong>homem</strong> <strong>que</strong> faz <strong>círculos</strong>, <strong>que</strong> parece ter-se lembrado das<br />

frases <strong>que</strong> havia dito minutos antes. No conjunto, este aparato causava alguma<br />

admiração. Este período sem diálogo foi interrompido por uma pergunta decidida<br />

da Isabel.<br />

– Querem ver a olaria?<br />

A olaria, claro! Ainda não se tinha falado dela. E nela poderiam estar<br />

tantas peças, tantos <strong>círculos</strong>, afinal. Eu sou apaixonado por artesanato e estava<br />

ansioso por vê-la. Que peças guardaria? Estaria alguma surpresa mais à nossa<br />

espera? Perdido nestes pensamentos, foi a minha mulher <strong>que</strong>m respondeu.<br />

– Não se preocupem! Viemos só beber um copo de água!<br />

A<strong>que</strong>la resposta irritou-me. Embora fosse essa a verdade, ela não devia<br />

ter respondido aquilo, uma vez <strong>que</strong> a pergunta da Isabel era também um convite.<br />

Eu sei <strong>que</strong> a minha mulher entendeu isso, <strong>que</strong>rendo com a sua resposta mostrar<br />

um certo humor, subtil, mas também atrapalhar-me um pouco. Bem a conheço!<br />

Parece <strong>que</strong> os nossos interlocutores perceberam a brincadeira e não deram<br />

seguimento à frase. Que sorte! É <strong>que</strong>, por instantes, me pareceu <strong>que</strong> à<strong>que</strong>la<br />

resposta eles poderiam ter retorquido qual<strong>que</strong>r coisa como “então, bebam mais<br />

um” e, após isso, nos desejassem uma boa viagem. Fi<strong>que</strong>i irritado com aquilo.<br />

Preocupou-me também o facto de a resposta da minha mulher parecer conter<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 1.º capítulo<br />

António Galrinho


uma espécie de rejeição do convite subjacente à pergunta. De qual<strong>que</strong>r modo,<br />

eu não me devia ter preocupado com isso, pois mesmo <strong>que</strong> tivesse havido um<br />

mal entendido ele seria corrigido facilmente.<br />

O oleiro manteve um sorriso de espanto, observando a minha inquietação,<br />

mas logo se levanta, decidido.<br />

– A olaria, claro! Venham daí vê-la! Lá dentro está fresquinho.<br />

Logo os meus pensamentos infundados refrescaram também. O <strong>que</strong><br />

a<strong>que</strong>le <strong>homem</strong> mais desejava nesse instante era, de facto, mostrar-nos a olaria,<br />

assim como eu a desejava ver.<br />

O quintal tinha à direita uma sebe irregular e densa, composta por<br />

diferentes arbustos, cujos ramos mais altos subiam acima da altura dos beirais,<br />

de modo <strong>que</strong> não se via o <strong>que</strong> estava do outro lado. Percebia-se <strong>que</strong> esses<br />

arbustos tinham crescido livremente, sem nunca terem sido podados. Entre a<br />

parede e o arbusto mais chegado a esta havia uma passagem estreita <strong>que</strong> se<br />

mantinha aberta pelo uso. Passámo-la.<br />

Alguns gatos de várias cores fugiram com grandes saltos e rápidas<br />

corridas, cada um por um caminho diferente. Escutaram tudo o <strong>que</strong> dissemos do<br />

outro lado, à sombra da sebe, os malandros!, sem <strong>que</strong> nos tivéssemos<br />

apercebido das suas presenças. Só um macho, de pêlo cinzento-pardo luzidio,<br />

não fugiu e, curioso, parecia convidar-me a aproximar. Agachado no chão, à<br />

sombra fresca da<strong>que</strong>les arbustos, olhava-me de olhos bem abertos. Aproximeime<br />

devagar. Estendi-lhe a mão direita. Estando esta a um palmo do seu nariz,<br />

<strong>que</strong> me cheirava, levantou-se e espreguiçou-se de olhos fitos na minha mão. De<br />

repente desinteressa-se, dá meia volta com uns passinhos curtos e lentos, e<br />

afasta-se empertigado, numa marcha contínua, direita, apenas perturbada por<br />

algumas sacudidelas enérgicas de rabo, como se enxotasse moscas invisíveis.<br />

Olhámos uns para os outros e largámos sonoras gargalhadas.<br />

Algumas parreiras altas e com grossos troncos estendiam os seus ramos<br />

e folhagens sobre uma estrutura de tubos metálicos e arames, vergada pelo<br />

peso dos gordos cachos de uvas quase maduras, lilases. À sombra esfarrapada<br />

dessas parreiras, espalhadas pelo chão, estavam dezenas de peças de barro<br />

encarnado, de carácter utilitário. Apesar de alguma desordem, dava para<br />

perceber <strong>que</strong> se pretendia <strong>que</strong> as peças estivessem colocadas por tipos e<br />

tamanhos. Potes, vasos, pratos, canecas, tachos, alguidares, eram algumas das<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 1.º capítulo<br />

António Galrinho


peças <strong>que</strong> por ali se encontravam; vidradas umas, outras não, mas todas de<br />

barro encarnado, por vezes quase castanho.<br />

– Isto aqui é o <strong>que</strong> vê!<br />

Fomos contornando a<strong>que</strong>las peças com interesse e simpatia, enquanto o<br />

oleiro ia dizendo algumas frases soltas, como se se sentisse na obrigação de<br />

dizer algo.<br />

– Coisas sem graça!<br />

Apesar de a<strong>que</strong>las peças serem iguais a muitas outras e de estarem<br />

muito empoadas, por haver muito tempo sem chuva, não eram propriamente<br />

coisas sem graça. Ao lado estava um monte de cacos, para onde o <strong>homem</strong><br />

olhou e apontou.<br />

– As <strong>que</strong> se partem ou saem defeituosas é para ali <strong>que</strong> vão. Até voam! O<br />

barulho <strong>que</strong> fazem ao cair é o sinal de um reencontro pacífico com a terra.<br />

A mulher corta bruscamente com as saídas do marido.<br />

– Do <strong>que</strong> ele gosta mesmo é dos bonecos!<br />

Aqui, os meus olhos levantam-se do monte de cacos e colam-se nos do<br />

oleiro, interrogativos. Ele olha-me, fixo também, talvez esperando <strong>que</strong> eu<br />

dissesse algo. Num segundo, <strong>que</strong>stionei em silêncio se iria encontrar nesses<br />

bonecos alguma relação com uma certa maneira de ver as coisas, <strong>que</strong> se<br />

revelava através das frases meio enigmáticas e poéticas <strong>que</strong> iam saindo da boca<br />

do <strong>homem</strong>.<br />

Para <strong>que</strong>brar o pe<strong>que</strong>no embaraço <strong>que</strong> se criou com a<strong>que</strong>la troca de<br />

olhares, fiz uma pergunta desnecessária:<br />

– Também faz bonecos?<br />

Talvez eu tenha feito esta pergunta para ganhar algum tempo com a<br />

intenção de preparar outra mais inteligente, <strong>que</strong> na altura não me ocorreu.<br />

– Aqui está muito calor. Lá dentro está-se melhor!<br />

O oleiro preferiu conduzir-nos directamente aos bonecos. Entrámos numa<br />

casa <strong>que</strong>, por fora, era idêntica à anterior, embora mais pe<strong>que</strong>na. Mas, e mais<br />

uma vez passado o tempo necessário para <strong>que</strong> a vista se acomodasse à<br />

diferença de luz, reparei <strong>que</strong> se tratava de um espaço único <strong>que</strong> parecia ter sido<br />

em tempos uma casa de habitação, transformada em olaria depois de retiradas<br />

as paredes interiores. A mulher abriu algumas janelas. O tecto era de madeira, e<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 1.º capítulo<br />

António Galrinho


parecia ser relativamente recente. No centro, um pilar redondo, também de<br />

madeira, ajudava a sustentar a<strong>que</strong>le tecto.<br />

– É muito agradável estar aqui.<br />

Perante esta frase da minha mulher, a Isabel olhou-a e sorriu, parecendo<br />

preparar algo <strong>que</strong> não chegou a dizer. O <strong>homem</strong> ia andando à nossa frente, de<br />

vez em quando exibindo o seu sorriso, cada vez mais aberto. Ia desviando<br />

algumas peças do chão, para <strong>que</strong> passássemos mais à vontade, e ajeitava<br />

outras colocadas nas bancadas e prateleiras, para <strong>que</strong> as víssemos melhor.<br />

Olhei à volta. Estava no meio duma típica olaria, com duas rodas a um<br />

canto, uma artesanal e outra eléctrica, junto às janelas <strong>que</strong> davam para o largo.<br />

Duas tinas de cimento com tampas de madeira guardavam o barro fresco.<br />

Algumas bancadas de trabalho apresentavam-se com a habitual desarrumação<br />

e sujidade própria desta actividade. Por todo o lado se arrumavam peças, umas<br />

cozidas, outras por cozer, umas secas, outras a secar.<br />

Para não continuar mais tempo sem nada dizer, e tentando puxar pelo<br />

lado poético <strong>que</strong> este enigmático <strong>homem</strong> já havia revelado, virei-me para ele e<br />

disse uma frase banal, pois mais uma vez não me ocorreu outra.<br />

– Vejo <strong>que</strong> esta casa é um mundo, o seu mundo!<br />

Ele respondeu:<br />

– É apenas uma casita pe<strong>que</strong>na, normal.<br />

Fez uma pausa varrendo o espaço com os olhos, formando um grande<br />

semicírculo com os braços, como se agarrasse uma enorme bola, e continuou.<br />

– O mundo é muito grande! Isto aqui é coisa pe<strong>que</strong>na, sem importância.<br />

Terminou o seu longo e lento gesto com um estender de dedos, como se<br />

sacudisse água. Eu comecei uma volta <strong>que</strong> percorreu todos os recantos. As<br />

peças <strong>que</strong> por ali estavam eram, na quase totalidade, iguais às <strong>que</strong> se viam no<br />

quintal. Umas vidradas, outras não, não apresentavam qual<strong>que</strong>r colorido ou<br />

decoração adicional. A minha atenção percorria o espaço, saltitando de peça em<br />

peça. Agarrei em várias, para lhes tomar o peso e sentir o tacto.<br />

Mais do <strong>que</strong> ele, a mulher parecia ansiosa por mostrar os bonecos.<br />

– Mostra os bonecos!<br />

– Ah, os bonecos! São coisas tontas, <strong>que</strong> eu faço de vez em quando. Não<br />

têm graça!<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 1.º capítulo<br />

António Galrinho


Desta vez, o sorriso com <strong>que</strong> terminou a frase foi tão vincado <strong>que</strong> lhe fez<br />

fechar os olhos. Era uma expressão <strong>que</strong> revelava claramente o quanto ele<br />

ansiava mostrá-los, mas <strong>que</strong> ao mesmo tempo parecia dizer <strong>que</strong> não tinha<br />

pressa, retardando de propósito a chegada do momento mais alto.<br />

– Diz sempre o mesmo!<br />

A sua mulher não desistia. Parecia <strong>que</strong> estávamos perante uma pe<strong>que</strong>na<br />

peça de teatro já representada muitas vezes, onde os actores se sentem aptos a<br />

improvisar a qual<strong>que</strong>r momento.<br />

– Onde estão?<br />

Foi a minha mulher <strong>que</strong>m perguntou, pois a partir de certa altura, preferi<br />

ser um espectador silencioso. O oleiro finalmente cedeu.<br />

– Estão aqui, dentro destes armários.<br />

Dirigiu-se para dois móveis iguais, de aspecto pesado, de madeira escura<br />

e gasta, algo grosseiros devido ao uso e ao tempo <strong>que</strong> por eles passou. Esses<br />

móveis altos ladeavam a janela maior <strong>que</strong> dava para o quintal. Cada um tinha<br />

duas portas grandes na metade superior e várias gavetas pe<strong>que</strong>nas na metade<br />

inferior.<br />

Abriu as portas do primeiro móvel e exclamou:<br />

– Há vários dias <strong>que</strong> não vêem luz.<br />

Logo após, um relâmpago desenhou suavemente os contornos dos<br />

bonecos. Abriu as do segundo dizendo mais baixo, como se receasse incomodálos:<br />

– Coitados, também precisam de apanhar ar!<br />

Nesse instante rebenta um trovão distante, fazendo tilintar suavemente<br />

alguns deles, <strong>que</strong> haviam ficado encostados. Eu estava a uma distância <strong>que</strong> não<br />

me permitia ver bem os bonecos. Aproximava-me de olhos vidrados, ansioso de<br />

curiosidade, quando uma mancha cinzenta se moveu de repente no parapeito da<br />

janela, desviando-me a atenção. O tal gato, <strong>que</strong> uns minutos antes me deixara<br />

aproximar, apareceu ali com um salto e ali ficou a olhar-me fixo nos olhos, como<br />

fizera antes, mas desta vez assustado.<br />

O oleiro olhou também para o animal, riu e disse:<br />

– Ah, ah! É o Artista!<br />

Eu sorri e virei de novo o olhar para os bonecos.<br />

O <strong>homem</strong> <strong>que</strong> <strong>fazia</strong> <strong>círculos</strong> - 1.º capítulo<br />

António Galrinho

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