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Wanderlino Teixeira Leite Netto

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Wanderlino Teixeira Leite Netto


Projeto gráfico e<br />

diagramação:<br />

Leonardo Barbosa


4ª Edição<br />

Wanderlino Teixeira Leite Netto


4<br />

Índice<br />

Adão...................6<br />

Amadeu..............7<br />

Amâncio.............8<br />

Amanda..............9<br />

Amélia..............10<br />

Andressa..........11<br />

Ângela..............12<br />

Angélica...........13<br />

Antônia.............14<br />

Aretusa.............15<br />

Aurélio.............16<br />

Aurora..............17<br />

Aurora (2).........18<br />

Barroso.............19<br />

Bento................20<br />

Berenice............21<br />

Bóris.................22<br />

Brenda..............23<br />

Camélia.............24<br />

Carlos...............25<br />

Carolina............26<br />

Carolina (2).......27<br />

Castro...............28<br />

Celestino...........29<br />

Celina...............30<br />

Cleonice............31<br />

Danilo...............32<br />

Décio.................33<br />

Dinis.................34<br />

Domingas.........35<br />

Doralice............36<br />

Dulce................37<br />

Estela................38<br />

Eva...................39<br />

Fabrícia............40<br />

Felícia...............41<br />

Feliciano...........42<br />

Fernanda..........43<br />

Garcia...............44<br />

Gentil................45<br />

Gertrudes.........46<br />

Gonçalo.............47<br />

Gonzaga...........48<br />

Gracinda...........49<br />

Helena..............50<br />

Horácio.............51<br />

Hortência..........52<br />

Hugo.................53<br />

Ícaro.................54<br />

Irene.................55


5<br />

Íris....................56<br />

Jacy..................57<br />

Janaína.............58<br />

Jandira.............59<br />

Januário...........60<br />

Joana................61<br />

João..................62<br />

Jota Machado...63<br />

Juliana.............64<br />

Juracy..............65<br />

Laerte...............66<br />

Lauro................67<br />

Leda..................68<br />

Lena..................69<br />

Leôncio.............70<br />

Letícia...............71<br />

Lia....................72<br />

Ludgero............73<br />

Luiz..................74<br />

Luzia.................75<br />

Marilena...........76<br />

Marina..............77<br />

Marineti............78<br />

Mário................79<br />

Marta................80<br />

Melissa.............81<br />

Miguel..............82<br />

Miúra................83<br />

Moema..............84<br />

Narcisa.............85<br />

Neusa...............86<br />

Nícolas..............87<br />

Omar................88<br />

Paulão...............89<br />

Pedro................90<br />

Percival.............91<br />

Petrônio............92<br />

Prudêncio.........93<br />

Ramona............94<br />

Renato..............95<br />

Roberval...........96<br />

Romualdo.........97<br />

Rosa..................98<br />

Salomão............99<br />

Salvador.........100<br />

Serafim...........101<br />

Silvestre..........102<br />

Simão..............103<br />

Solange...........104<br />

Sônia...............105<br />

Teodora...........106<br />

Tereza.............107<br />

Tiago...............108<br />

Virgínia..........109<br />

Wanderlei.......110<br />

Yara................111<br />

Zeca................112


Adão<br />

Adão não perdoa o padrinho,<br />

responsável pelo registro em cartório.<br />

Foi ele quem convenceu seus pais a<br />

imputarem-lhe o nome bíblico. Por conta<br />

disso, atávicas sensações o perseguem:<br />

um cheiro de barro impregnando-lhe<br />

as narinas e a impressão de haver um<br />

vazio no arco das costelas.<br />

6


Amadeu<br />

(Publicado em Retrato sem moldura.<br />

Clube de Literatura Cromos, 1999.)<br />

Amadeu, romântico, carente de<br />

carícias, perdeu-se de amores por uma<br />

loura exclusivista e temperamental.<br />

Irremediavelmente apaixonado, viu seu<br />

coração virar pelo avesso. Envolvimento<br />

rápido, devastador, durou três meses e<br />

quatro crises existenciais. No momento,<br />

Amadeu pervaga entre os escombros,<br />

junta os cacos. Já a loura, venta por<br />

outras bandas.<br />

7


Amâncio<br />

Egresso do emaranhado do canavial,<br />

Amâncio arribou para a cidade grande<br />

à cata de oportunidades. Dois anos<br />

decorridos, abrigado sob um viaduto no<br />

aguardo de novo dia, sonhou com o eito,<br />

a foice, os feixes de cana a lhe pesarem<br />

nos ombros. Manhã seguinte, catou<br />

tralhas e desesperanças e meteu pé na<br />

estrada de regresso ao labirinto.<br />

8


Amanda<br />

Com seu olhar pervagante, Amanda<br />

costuma ficar longo tempo em<br />

silêncio, adubando desejos. Guardo<br />

comigo um desassossego: o de não<br />

saber aquilo que Amanda cultiva no<br />

quintal dos seus escondidos.<br />

9


Amélia<br />

Tempos atrás, em praça pública, Amélia<br />

atirou numa fogueira não apenas a<br />

peça do seu vestuário chamada por seu<br />

pai de porta-seios. Também fez arder o<br />

documento que ele, admirador de certa<br />

dupla de compositores do cancioneiro<br />

popular brasileiro, registrara em<br />

cartório tão logo ela viera ao mundo.<br />

De retorno ao “remanso do lar”<br />

(mais uma pérola do repertório do<br />

progenitor), lançou pela janela todos os<br />

elepês que continham canções daqueles<br />

dois. Até os dias de hoje, não os perdoa.<br />

Já o desaponto pelo nome que lhe foi<br />

imposto, era ainda uma chaga em<br />

seu peito. Quanto ao outro pormenor,<br />

em função da lei da gravidade viuse<br />

forçada a retirar das cinzas o<br />

procedimento que renegara no clamor<br />

do protesto.<br />

10


Andressa<br />

Na tentativa de superar a crise<br />

existencial que a acomete, Andressa<br />

passou a cultivar lembranças, frutos de<br />

antigas colheitas. Melhor seria semear<br />

em terra fértil o que há de vir.<br />

11


Ângela<br />

Beata convicta, Ângela crê piamente<br />

nas benesses do Céu. Imagina-se em<br />

meio aos anjos, espreguiçando-se num<br />

colchão de nuvens, ouvindo arpejos<br />

de harpas. Certa feita, fora dos seus<br />

cuidados, invejou a vizinha fogosa e<br />

libertina. Desde então, arde em culpas,<br />

temerosa de não mais merecer o<br />

Paraíso. Segundo um ateu convicto, o<br />

melhor que Ângela terá a fazer, caso se<br />

convença de que jamais obterá perdão,<br />

há de ser aproximar-se da pecadora e<br />

cair na gandaia.<br />

12


Angélica<br />

Por cerca de quinze anos, Angélica<br />

exerceu o ofício de enfermeira numa<br />

Unidade de Terapia Intensiva. Certo dia,<br />

deu-se uma epifania e Angélica tornouse<br />

esteticista. Cansada de pastorear a<br />

Morte, decidiu adubar a Vida.<br />

13


Antônia<br />

Numa longínqua festa junina, na<br />

barraca da sorte, Antônia desembrulhou<br />

um papelucho e nele estava escrito o<br />

nome daquele que, segundo o santo<br />

casamenteiro, a faria irremediavelmente<br />

feliz. Crédula, rejeitou vários<br />

pretendentes até encontrar quem se<br />

enquadrasse nominalmente no que lhe<br />

fora vaticinado. Uniu-se a ele de corpo e<br />

alma: virgindade, véu, grinalda, papel<br />

passado, esperança. E mais não digo,<br />

a não ser que, hoje em dia, Antônia<br />

detesta festa junina, descrê do santo e<br />

pensa numa forma de cassar o alvará<br />

das barracas da sorte.<br />

14


Aretusa<br />

Passos trôpegos, olhar perdido no vazio,<br />

Aretusa percorria um dos corredores do<br />

shopping conduzida por uma cuidadora.<br />

Longevidade, quando lhe atribuem<br />

o ônus da culpa, saca da algibeira<br />

resposta pronta: “Jamais pratiquei<br />

propaganda enganosa!”.<br />

15


Aurélio<br />

Aurélio viu o amigo abraçado a<br />

um buquê de rosas, caminhando a<br />

passos lentos, absorto. Sabia o motivo<br />

das flores, a razão do andar quase<br />

arrastado, a causa da introspecção.<br />

Fazia um ano o fantasma da viuvez<br />

assombrava aquele homem. Havia<br />

uma chaga no peito do amigo, brasa<br />

viva a lhe queimar por dentro. Pensou<br />

em ir ao encontro dele, dizer-lhe algo<br />

capaz de aplacar-lhe a dor. Coisa<br />

pouca, os exageros soam desafinados.<br />

Preferencialmente, uma só palavra.<br />

Exata. Certeira. Balsâmica. Permaneceu<br />

no entanto onde estava, amargando<br />

o desaponto de não conhecer esse<br />

vocábulo mágico.<br />

16


Aurora<br />

O brilho do seu olhar tinha tudo a<br />

ver: chamava-se Aurora. Quando a<br />

velhice chegou, sentiu-se deslocada<br />

por habitar esse nome, agora que<br />

seus olhos entardeciam e o breu da<br />

noite se prenunciava.<br />

17


Aurora (2)<br />

Ao perceber a primeira ruga, que se<br />

fez acompanhar de um fio branco,<br />

entrou em pânico. Quando pensou<br />

na irreversibilidade do processo, por<br />

pouco não caiu em depressão. E foram<br />

cremes, e massagens, e procedimentos,<br />

e regimes, até chegar ao bisturi. O<br />

Tempo, que a tudo assistiu, se manteve<br />

fiel aos seus desígnios. Aurora não<br />

conseguiu evitar o crepúsculo.<br />

18


Barroso<br />

De uns tempos para cá, Barroso passa<br />

horas cavoucando o latifúndio de sua<br />

longevidade, desenterrando remotas<br />

lembranças. Tivesse pendores literários,<br />

escreveria um livro de memórias. Como<br />

tal não acontece, anda à cata do que<br />

fazer com seus badulaques existenciais.<br />

19


Bento<br />

Bento foge daqueles que buscam<br />

convencê-lo da existência de algo mais<br />

após o último suspiro. Justifica essa<br />

atitude por jamais haver dormido<br />

um sono sem interrupções. Para os<br />

insistentes, reserva sempre o mesmo<br />

argumento: “Quero ponto final, não me<br />

venham com reticências”.<br />

20


Berenice<br />

No quintal da alma de Berenice o mato<br />

cresce desgovernado e a tiririca se<br />

esparrama pelo chão. Berenice carece<br />

de foice, enxada, pá, ancinho, sementes,<br />

adubo. E de alguém que com ela<br />

compartilhe o plantio.<br />

21


Bóris<br />

Bóris, um humilde cidadão, aprendeu<br />

a tocar violino na adolescência. Com<br />

o tempo, tornou-se um virtuoso, mas<br />

não foi bafejado pela sorte. Atualmente,<br />

trajando um surrado terno que herdara<br />

de seu avô, se exibe em calçadas e<br />

praças. Na caixa do instrumento, aberta<br />

e postada aos seus pés, pingam moedas<br />

e notas de pequeno valor. Sempre que<br />

assim ocorre, o violinista agradece<br />

com um aceno de cabeça. Às vezes,<br />

enquanto o arco acaricia as cordas,<br />

Bóris cerra os olhos e, rosto pintado de<br />

verde, transporta-se para o topo de um<br />

telhado. Lá do alto, ergue um brinde em<br />

louvor a Marc Chagall.<br />

22


Brenda<br />

De nada vale argumentar, citar outros<br />

nomes, relembrar brilhantes atuações.<br />

Para ele, Brenda é insuperável, sua<br />

atriz predileta. Afinal, desde muito ela<br />

finge amá-lo tão completamente que ele,<br />

mesmo descrendo inteiramente, compra<br />

todos os ingressos e assiste à encenação<br />

na fila do gargarejo.<br />

23


Camélia<br />

Apaixonada por um jardineiro, Camélia<br />

vive aos suspiros. Não se limita aos dois<br />

que sua xará da canção popular deixou<br />

escapar ao cair do galho para morrer<br />

depois. Por conhecer a desdita da outra<br />

e não desejar que seu amado entristeça,<br />

Camélia não sobe em árvores.<br />

24


Carlos<br />

Naqueles antigamentes, Carlos exercia<br />

o ofício de parteiro. Algo inusitado,<br />

considerando-se sua inquestionável<br />

heterossexualidade. Afinal, eram<br />

tempos de maridos possessivos,<br />

ciumentos, feitores de esposas recatadas<br />

e submissas. Carlos superou tudo isso.<br />

Tanto uns quanto outras clamavam<br />

por sua presença logo aos primeiros<br />

sintomas. Algo a merecer destaque<br />

acontecia com aquelas que abriam as<br />

pernas diante dele para liberar a vida:<br />

pariam serenamente. Ao longo do<br />

tempo, perdera-se a conta da quantidade<br />

de viventes que aparara em suas mãos,<br />

dos primeiros choros e espantos que<br />

ouvira e presenciara. Num pequeno<br />

cemitério, em sua terra natal, repousam<br />

seus restos mortais. Na singeleza do<br />

túmulo, gravadas na lápide, atendendo<br />

a um pedido que fizera, apenas três<br />

palavras: “Parto sem dor”.<br />

25


Carolina<br />

Certo dia, enquanto as folhas das<br />

árvores farfalhavam, a pequena<br />

Carolina descobriu o vento. Percebeu<br />

que ele lhe alvoroçava os cabelos e<br />

levantava uma nuvem de pó. A partir<br />

de então, a cada novo desvendamento,<br />

os olhos de Carolina brilham mais<br />

intensamente. Assim iluminado, o<br />

mundo para ela se descortina.<br />

26


Carolina (2)<br />

De início, Carolina rejeitou<br />

completamente a fantasia. “Olha lá<br />

aquele enorme chapéu de palhaço” –<br />

a avó lhe disse enquanto apontava o<br />

contorno da montanha. “Não é chapéu<br />

de palhaço, vovó, é apenas um morro”<br />

– argumentou a menina. A avó voltou a<br />

içar suas velas: “Cada anel da palmeira<br />

corresponde a um ano de vida. Quando<br />

aparece mais um, as palmas batem<br />

palmas e cantam Parabéns pra você”.<br />

Não chegou sequer na boca da barra:<br />

“Palmas não cantam nem batem palmas,<br />

vovó”. Mas vovó possui a pertinácia<br />

dos jangadeiros. Carolina já navega<br />

nas águas do imaginário. Só não aceita<br />

perder de vista as pedras do cais.<br />

27


Castro<br />

Desde menino, sonhava em ser<br />

poeta. Tinha até boas ideias, mas não<br />

conseguia versejá-las. As metáforas<br />

corriam dele, as rimas o rejeitavam,<br />

sua métrica era trôpega. Tudo,<br />

relativo à poesia, nutria pelo desinfeliz<br />

irreversível aversão. Para completar<br />

a desdita, chamava-se Castro Alves<br />

de Souza. Faz um mês o não poeta foi<br />

encontrado no chão da cozinha de sua<br />

residência, irremediavelmente defunto,<br />

abraçado a um soneto de Augusto<br />

dos Anjos. O cheiro de gás ainda<br />

impregnava o ambiente.<br />

28


Celestino<br />

Aos 90 anos, numa tarde de frio<br />

intenso, Celestino reuniu suas<br />

lembranças no fundo do quintal e<br />

fez com elas uma grande fogueira.<br />

Enquanto houve chamas e lhe foi<br />

possível ouvir o crepitar, não arredou<br />

pé. Só bateu em retirada quando, após<br />

cessarem a combustão e os estalidos,<br />

um vento súbito varreu as cinzas<br />

das recordações. Irremediavelmente<br />

próximo da inevitável viagem, decidira<br />

desvencilhar-se do excesso de bagagem.<br />

29


Celina<br />

Na infância, assim como na<br />

adolescência, foi a rigidez paterna.<br />

Depois, um cônjuge repressor, ao qual<br />

se unira ao completar 20 anos. Afora<br />

uma timidez atávica. A soma desses<br />

fatores fez Celina encarcerar-se. Sabe-se<br />

à boca pequena que o tal marido anda<br />

ressabiado: Celina, justo agora que as<br />

bodas de prata se avizinham, à revelia<br />

e sem aviso prévio tatuou no braço<br />

esquerdo pássaros esvoaçantes.<br />

30


Cleonice<br />

Cleonice jamais amargara rejeição até<br />

alguém inserir o verbete no dicionário<br />

amoroso que ela vinha editando<br />

ao longo do tempo. Em represália,<br />

rebatizou seu gato de estimação<br />

com o nome do insolente. Para sua<br />

melhor amiga, não fora vingança, mas<br />

homenagem. Isso antes de saber que<br />

Cleonice mandara castrar o bichano.<br />

31


Danilo<br />

Já nos acréscimos, Danilo esticou<br />

a perna direita. Com a ponta do pé,<br />

classificou sua equipe para decidir<br />

o título a muitas milhas dali. Aos<br />

microfones, o goleiro declarou ter sido<br />

aquela a defesa da sua vida. Num canto<br />

qualquer da arquibancada, o bruxo que<br />

remexe o tacho esboçou um sorriso. Dias<br />

depois, o avião abriu uma clareira onde<br />

antes havia árvores. Por conta da defesa<br />

da sua vida, Danilo encontrou a morte.<br />

32


Décio<br />

Basta o tempo esfriar e o céu debulharse<br />

em lágrimas para que Décio retire<br />

do armário a quase centena de álbuns<br />

de retratos, nos quais acampam suas<br />

relembranças. Passa horas a dialogar<br />

com elas, quase em contrição. Agindo<br />

assim, Décio se renova. Para ele, isso é<br />

como revolver a terra para o plantio de<br />

novas sementes.<br />

33


Dinis<br />

Dinis firmara um pacto com a trova, a<br />

ponto de pautar seu comportamento pelos<br />

cânones desses poemas: nunca ia além<br />

de quatro versos, buscava sempre a rima<br />

exata. Até o dia em que, vendo na trova<br />

imagem de esposa ciumenta a lhe impor<br />

rédea curta, resolveu ceder aos encantos<br />

da poesia de versos livres. A aventura<br />

extraconjugal durou pouco. Pazes feitas,<br />

Dinis anda outra vez aos beijos e abraços<br />

com sedutoras redondilhas.<br />

34


Domingas<br />

Domingas adora se esparramar no<br />

aconchego de uma rede, se entregar<br />

ao ir e vir cadenciado, transformar<br />

em música os rangidos dos ganchos<br />

que lhe sustentam o peso do corpo e a<br />

leveza da alma. Passa horas ruminando<br />

pensamentos, traçando planos jamais<br />

concretizados. Assim é Domingas,<br />

sempre entregue aos devaneios, useira e<br />

vezeira em construir castelos de areia.<br />

35


Doralice<br />

A distração de Doralice é bordar versos<br />

na brancura dos lençóis. Antes de se<br />

deitar, escolhe um deles para com ele<br />

dividir sua noite de sono. São sempre<br />

poemas de amor aqueles com os<br />

quais enfeita o linho. E assim, como<br />

se fossem cantigas de ninar, seus<br />

bordados a embalam e a fazem sonhar<br />

colorido. Os príncipes encantados ainda<br />

povoam o imaginário de Doralice.<br />

36


Dulce<br />

Seus olhos soltam farpas. Sua voz<br />

rascante é adaga a liberar palavras<br />

ferinas. Em seu peito pulsa uma<br />

pedra. Mesmo antes de se perceber<br />

assim, dessa forma já se comportava.<br />

Vem daí, dessa ferrenha coerência, a<br />

razão pela qual Dulce não se conforma<br />

com o equívoco perpetrado em sua<br />

certidão de nascimento.<br />

37


Estela<br />

Estela nasceu para brilhar. Desde<br />

quando frequentava o berço, esteve anos<br />

luz à frente de seus pares. Aluna nota<br />

dez em todas as etapas de sua formação.<br />

Profissional de comprovada competência.<br />

Enfim, a vida de Estela sempre foi<br />

cintilante. Exceto no que tange ao<br />

matrimônio. Uniu-se a um astrônomo,<br />

que a exigia nua no leito conjugal para<br />

poder observá-la, sem jamais tocar em<br />

seu corpo ardente de desejo. Para seus<br />

queixumes, a mesma resposta evasiva:<br />

“Habituei-me a ver estrelas...” Todas<br />

as noites, Estela se despe para os olhos<br />

telescópicos do marido. Ultimamente<br />

tem notado certo desinteresse. Anda<br />

desconfiada de haver surgido um<br />

asteróide no universo do astrônomo.<br />

38


Eva<br />

Faz tempo um sonho recorrente a<br />

acomete: vê-se ao lado do marido em<br />

ambiente paradisíaco. Não pensem que<br />

isso a faz acordar pacificada. Ocorre<br />

justamente o contrário: a placidez<br />

onírica a desassossega. Sendo assim, mal<br />

acorda, Eva devora meia dúzia de maçãs.<br />

39


Fabrícia<br />

Das palmas do buriti, retira o seu<br />

sustento. Todas as manhãs, e até<br />

que anoiteça, chova ou faça sol,<br />

expõe seu artesanato no cimento<br />

da calçada, sempre sob a mesma<br />

marquise. Fabrícia é mulher de fibra.<br />

40


Felícia<br />

Felícia, avessa à veracidade, se afeiçoa<br />

à desfaçatez, faz da farsa seu disfarce.<br />

E assim, fissurada por essa falácia, se<br />

esforça para ser feliz.<br />

41


Feliciano<br />

O tempo nublado e frio, o horário em que<br />

luz e sombra se confundem, o repicar<br />

dos sinos da Matriz, o livro de um poeta<br />

romântico na mesa de cabeceira, uma<br />

taça com dois dedos de vinho tinto, um<br />

CD de tango no interior do aparelho de<br />

som. E o corpo enrijecido de Feliciano<br />

em decúbito dorsal sobre uma cama<br />

de casal de limitada serventia. Causa<br />

mortis: quadro agudo de melancolia por<br />

convergência de fatores.<br />

42


Fernanda<br />

Em determinado momento da vida de<br />

Fernanda, veterana das artes cênicas, as<br />

tantas personagens que até então encenara<br />

se apoderaram de sua alma. E o fizeram<br />

com tal eficácia que a levaram ao divórcio<br />

de si mesma. Atualmente, na varanda<br />

de uma casa de repouso, sempre ao<br />

crepúsculo, ela se acomoda numa poltrona<br />

e semicerra os olhos. Não demora, ecoam<br />

calorosos aplausos nas conchas dos seus<br />

ouvidos. Na verdade, folhas de uma<br />

frondosa mangueira farfalhando ao sabor<br />

do vento.<br />

43


Garcia<br />

(Publicado em Retrato sem moldura.<br />

Clube de Literatura Cromos, 1999.)<br />

Garcia passou grande parte de sua vida<br />

na cabina de aviões, consciente de que o<br />

erro não lhe era permitido. Acostumouse<br />

à enganosa placidez das povoações<br />

vistas do alto, assimilou o desapego dos<br />

nômades. Até o dia em que se descobriu<br />

a invejar as árvores e suas raízes, a<br />

almejar as turbulências do rés do chão,<br />

a se permitir pequenos desacertos. A<br />

partir de então, Garcia humanizou-se.<br />

44


Gentil<br />

Há quem fique refém do próprio<br />

nome e assim acontecia com Gentil.<br />

Até completar 60 anos, jamais havia<br />

desmerecido o legado da pia batismal.<br />

Quando se tornou sexagenário, justo<br />

no momento em que apagava as velas<br />

uma voz vinda do nada soprou algo<br />

em seus ouvidos. Por conta disso,<br />

Gentil estarreceu os convidados: abriu<br />

as comportas e afogou alguns com<br />

palavras de há muito represadas. Depois,<br />

vomitou ali mesmo, sobre um prato de<br />

brigadeiros, vários sapos que engolira ao<br />

longo de uma vida plena de afagos.<br />

45


Gertrudes<br />

(Publicado em Beijo de Língua.<br />

Editoração Editora, 2007)<br />

Após dez anos de análise, livre da casa de<br />

marimbondos e da touceira de espinhos<br />

que acampavam em seus escondidos,<br />

Gertrudes abrandou definitivamente.<br />

46


Gonçalo<br />

Com o passar do tempo, Gonçalo<br />

descobriu que a jornada nem sempre<br />

é percorrida em trote manso. Deuse<br />

conta da existência, também, de<br />

galopes e pinotes. Constatou que todo<br />

peão está sujeito a quedas. Como quem<br />

doma cavalo xucro, quando vai ao chão<br />

Gonçalo trata de encarapitar-se outra<br />

vez no lombo da Vida. Mesmo sabendo<br />

da existência de encruzilhadas e<br />

caminhos de alto risco, segue em frente.<br />

Tem alma de boiadeiro. Ora pela terra<br />

fértil da planície vasta, ora por terrenos<br />

alagados, ora na aridez da seca, conduz<br />

seu destino feito quem tange gado.<br />

47


Gonzaga<br />

“É temerário, na sua idade, morar<br />

sozinho”. O autor da frase bombástica<br />

ignora um pormenor: Gonzaga não<br />

mora só; a lhe fazer companhia há os<br />

tantos que já foi. O outro também não<br />

sabe: quando lhe dá na telha, Gonzaga<br />

retira do oco do peito a sanfona, o<br />

triângulo, a zabumba, e convoca a<br />

turma toda para um animado forró.<br />

48


Gracinda<br />

Gracinda coleciona cadernos. Neles,<br />

cola etiquetas, cartões os mais diversos,<br />

convites, bilhetes, cartas, recortes<br />

de jornais e revistas, entre outros<br />

guardados que ela entende pertinentes.<br />

Também anota fatos do seu cotidiano.<br />

É comum que escolha um caderno e<br />

debruce o olhar em suas páginas. Assim,<br />

mantém atual o que, por comum, já não<br />

seria. Dessa forma, Gracinda apara as<br />

unhas do tempo e o ludibria. Sempre que<br />

tenta arranhá-la, ele a afaga.<br />

49


Helena<br />

Helena gosta de ter os netos na aba do seu<br />

chapéu. Sendo assim, imaginou e pôs em<br />

prática uma festa junina. Transformou<br />

seu apartamento num autêntico arraial:<br />

pescaria, canjica, balão japonês, boca do<br />

palhaço, broa de milho, bandeirinha, rabo<br />

do burro, cachorro-quente, Gonzagão,<br />

lanterninha, caldo de cana, derruba lata,<br />

Dominguinhos, quentão para os adultos.<br />

Quase em cima da hora, mensagens<br />

no celular: a mais velha iria à festa do<br />

pijama da melhor amiga; a do meio<br />

fora convidada para uma imperdível<br />

degustação de brigadeiro gourmet; o<br />

caçula optara por ficar em casa ciscando<br />

no terreiro da Galinha Pintadinha. Após a<br />

quinta dose de quentão, Helena começou<br />

a desconfiar de que, muito em breve, a<br />

aba do seu chapéu servirá apenas para<br />

protegê-la dos raios solares.<br />

50


Horácio<br />

Com certa constância, Horácio irriga o<br />

pomar dos seus outroras. Os frutos que<br />

hoje colhe vieram todos de lá.<br />

51


Hortência<br />

Uma inquietação se apossou de<br />

Hortência a partir de quando soube do<br />

encontro. Não via a maioria dos que lá<br />

estariam desde a longínqua formatura<br />

no hoje inexistente curso ginasial.<br />

Soubera, por um dos organizadores,<br />

de algumas irremediáveis ausências, o<br />

que a levou a rezar uma prece. O evento<br />

ocorreu regado a refrigerante, cerveja,<br />

risos e lágrimas. Hortência voltou para<br />

casa ruminando silêncios. Decorridos<br />

alguns dias, já de malas prontas, anda<br />

imaginando a maneira de se mudar<br />

para uma das páginas de um velho<br />

álbum de retratos. Justo aquela na qual<br />

jovens sorridentes, trajando uniformes<br />

escolares, parecem esperançosos.<br />

52


Hugo<br />

Ultimamente, por conta do avanço da<br />

idade, lembranças relegadas por Hugo<br />

ao fundo do quintal têm habitado<br />

a relva do jardim. Vem sendo visto<br />

com certa frequência eliminando<br />

ervas daninhas, revolvendo a terra,<br />

espalhando adubo. Afinal, o replantio<br />

do passado exige cuidados.<br />

53


Ícaro<br />

Habitualmente, em sua meninice, Ícaro<br />

se dirigia ao caniçal e lambuzava com<br />

visgo de jaca a parte superior de algumas<br />

varetas. Depois, camuflava-se com o<br />

verde das folhas e aguardava o pouso<br />

de passarinhos nos caniços que untara<br />

havia pouco: bicos-de-lacre, canários,<br />

azulões, sabiás, coleiros, tizius... Do<br />

seu esconderijo, via as avezinhas se<br />

debaterem, grudadas pelo visgo na finura<br />

dos caniços. Não imaginem que ele<br />

pretendia aprisioná-las entre as grades<br />

das gaiolas. Nada disso: tinha por meta<br />

libertá-las. Uma a uma, ele as livrava<br />

daquela agonia. Gostava de tê-las na<br />

mão esquerda enquanto, com a direita,<br />

removia os resíduos do visgo. Caso<br />

fizesse muita pressão, poderia feri-las. Se<br />

afrouxasse em demasia, elas escapuliam<br />

prematuramente, sujinhas ainda da cola<br />

que as aprisionara. Desperta atenção<br />

a maneira pela qual Ícaro se relaciona<br />

com seus semelhantes. Quando querem<br />

saber o que o leva a ser assim, a resposta<br />

é enigmática: “Perguntem aos bicos-delacre,<br />

aos canários, as azulões, aos sabiás,<br />

aos coleiros, aos tizius...”<br />

54


Irene<br />

Sob o sol morno da manhã de inverno,<br />

Irene aconchegou no colo seu ursinho<br />

de pelúcia e o ninou carinhosamente.<br />

Quando um vento, frio e repentino,<br />

varreu o espaço da praça, a filha de Irene,<br />

postada atrás da cadeira de rodas, cobriu<br />

as costas da mãe com a manta xadrez<br />

sempre presente nos passeios matinais.<br />

55


Íris<br />

Todas as manhãs, durante a caminhada<br />

habitual, Íris e a morena lânguida se<br />

entreolhavam. Gradativamente, foi<br />

brotando um desejo de que algo mais<br />

intenso acontecesse. Porém, por conta<br />

do recato da langorosa, pelo temor de<br />

aventurar-se por mares nunca dantes<br />

navegados, assim como pela incapacidade<br />

de Íris para aplicar-lhe um xeque-mate,<br />

jamais levaram a atração às vias de<br />

fato. Já as meninas de seus olhos, essas<br />

vivenciaram uma tórrida relação de amor.<br />

56


Jacy<br />

Ossudo e desassossegado, Jacy faz<br />

lembrar um Quixote munido de outras<br />

armas. Para enfrentar seus moinhos,<br />

lança mão de versos.<br />

57


Janaína<br />

Todas as manhãs, mal o Sol desponta,<br />

Janaína vai para a beira do mar à<br />

espera de que as velas apontem no<br />

horizonte, trazendo seu homem de volta.<br />

Desde quando a borrasca o engoliu,<br />

Janaína repete o ritual. Porém, já não<br />

crê tanto assim no regresso. Desconfia<br />

que seu grande amor se tenha deixado<br />

enredar nos encantos de sua xará.<br />

58


Jandira<br />

O motor do barco foi desligado e as<br />

conversas cessaram. O vento aderiu<br />

à introspecção e se aquietou. Leõesmarinhos,<br />

aboletados na reentrância<br />

de um rochedo, se dispuseram a ouvir<br />

o silêncio. Na placidez das águas do<br />

fiorde, Jandira teve a sensação de que a<br />

paz é possível. Ao regressar do passeio,<br />

tomou conhecimento: placas tectônicas<br />

poderiam implodir aquela serenidade.<br />

A revelação transformou seu viver<br />

num novelo de apreensões. Jandira se<br />

arrepende daquela tarde no fiorde, onde<br />

encontrou momentaneamente a paz<br />

para depois perdê-la para todo o sempre.<br />

59


Januário<br />

Raramente ele sonha colorido. Quando<br />

acontece, vem no formato curtametragem.<br />

Tudo é coisa pouca em<br />

seu cotidiano. Carente até de carinho,<br />

Januário vê a vida escorrer lentamente.<br />

Filete d`água no rigor da estiagem.<br />

60


Joana<br />

Às segundas-feiras, enquanto o Sol<br />

ainda espreguiça, Joana vai para a<br />

beira-mar ver seu bem-querer partir<br />

para a pesca. Para ela, os números<br />

são agulhas no palheiro, motivo pelo<br />

qual aceitou a sugestão da comadre:<br />

veste sempre cinco saias, na mesma<br />

sequência, uma de cada cor; depois<br />

de cada partida, noite após noite,<br />

ela se desvencilha de uma delas, a<br />

branca, a amarela, a azul, a verde, a<br />

lilás (vermelho não usa, preto também<br />

não; cor de sangue e cor de luto são<br />

prenúncio de mau agouro). Na sextafeira,<br />

despida a última saia, ela se mete<br />

numa camisola transparente, nada<br />

mais, e dorme um sono ora agitado, ora<br />

calmo. Manhãzinha será despertada<br />

pelo cheiro de maresia a lhe provocar no<br />

corpo moreno um arrepio de desejo.<br />

61


João<br />

(Publicado em Retrato sem moldura.<br />

Clube de Literatura Cromos, 1999.)<br />

Naquela manhã, João se permitiu<br />

olhar as nuvens com olhos singulares.<br />

Viu flores, anjos, lágrimas, perfis e<br />

um camelo caolho, em meio a outras<br />

extravagâncias. Deu-se conta de que<br />

nuvens podem não ser apenas nuvens.<br />

Nesse dia mesmo, João teceu seu<br />

primeiro poema.<br />

62


Jota Machado<br />

Quando perguntam a Jota Machado<br />

qual teria sido o livro mais importante<br />

de sua vida, a resposta surpreende.<br />

Principalmente aos que esperam a<br />

citação de um clássico. Para ele, o mais<br />

significativo foi a cartilha por meio<br />

da qual se alfabetizou. Nas páginas<br />

daquele livrinho ele descortinou um<br />

mundo novo. A partir daí, manteve com<br />

as palavras um correspondido colóquio<br />

amoroso. Dessa forma se tornou<br />

escritor. Semana passada, Jota Machado<br />

completou 90 anos envolto numa<br />

nuvem de preocupação: talvez cansadas<br />

do longo convívio, algumas palavras<br />

andam fugindo dele; fazem-se arredias<br />

quando delas ele mais necessita.<br />

63


Juliana<br />

Sete dias após Juliana haver deixado o<br />

aconchego do ventre materno, seu pai<br />

segredou-lhe: “A vida, Juliana, sonata<br />

de compassos imprecisos, não é somente<br />

acordes e sorrisos, há armadilhas e<br />

tropeços, e trilhas muitas, e muitos<br />

preços”. Imediatamente após, pelo tanto<br />

que dissera à filha, assim tão cedo e à<br />

revelia, justificou-se: “Acontece, Juliana,<br />

que se lhe quero dar abrigo, protegê-la<br />

do medo e do perigo, quero também vêla<br />

liberta para que possa alçar seu voo<br />

em hora certa”. Deu-se isso exatamente<br />

tão logo as asas de Juliana encorparam.<br />

64


Juracy<br />

Possuem o mesmo nome: Juracy.<br />

A coincidência foi o ímã que os atraiu,<br />

como se eles fossem limalhas de ferro.<br />

Por algum tempo, compartilharam<br />

dinheiro pouco e despesas muitas,<br />

mamadeiras e cataporas, alegrias e<br />

agruras. Coisas assim, díspares. Dado<br />

momento, um desgaste irreparável<br />

os fez sucumbir. Porém, por força<br />

do hábito, ainda dividem o mesmo<br />

teto. Breve, completarão 50 anos de<br />

vida em comum. Quando acontecer,<br />

um reverendo haverá de abençoá-los.<br />

Contritos, os filhos, os netos, a bisneta,<br />

farão ecoar pela nave do templo, em<br />

uníssono, um amém sonoro e comovido.<br />

Isso posto, Juracy e Juracy darão<br />

sequência ao que já não faz sentido.<br />

Até que a morte os separe.<br />

65


Laerte<br />

Assim é Laerte: introspectivo,<br />

desconfiado, arredio. Prisioneiro de si<br />

mesmo, isola-se na masmorra de uma<br />

prisão sem grades. Por conta de súbita<br />

paixão, houve por bem atribuir-se o<br />

benefício da liberdade condicional. Mas<br />

não pensem em mudanças radicais.<br />

Mesmo com a flecha de Cupido<br />

espetada em seu peito, Laerte não se<br />

sente inteiramente à vontade fora das<br />

fronteiras do exílio voluntário. Jamais<br />

se solta em plenitude. Laerte tem na<br />

cabeça uma tornozeleira eletrônica.<br />

66


Lauro<br />

Lauro acostumou-se a escarafunchar os<br />

meandros da música popular brasileira.<br />

Dia desses, à cata de uma partitura,<br />

encontrou um dó menor em profundo<br />

estado depressivo. Um amigo maestro<br />

diagnosticou: inveja do SOL MAIOR.<br />

Outro integrante do rol de amizades<br />

de Lauro encarregou-se do arremate:<br />

compositor, deu destaque à nota numa<br />

de suas músicas. Refeito do recalque,<br />

livre da depressão, sonoro e sorridente,<br />

o dó voltou ao convívio da pauta.<br />

67


Leda<br />

Quando o bloco passou, ela tomava<br />

banho de sol no jardim. Trajando<br />

vistosa fantasia de cisne, certo folião<br />

abandonou o folguedo e transpôs o<br />

portão gradeado da casa de Leda. Diante<br />

dela, moveu as plumas, demonstrou<br />

desejo, ensaiou a dança do acasalamento.<br />

Decorridos cinco anos, sempre que vê<br />

os quadrigêmeos correndo no quintal<br />

(dois meninos e duas meninas), ela se<br />

recorda daquela tarde carnavalesca e<br />

estabelece similitudes entre o que lhe foi<br />

destinado e o acontecido com sua xará em<br />

Esparta: subjugada pela astúcia, pelos<br />

encantos de um deus mitológico, também<br />

engravidou, igualmente pariu quatro<br />

rebentos. As semelhanças aí se encerram.<br />

Enquanto a princesa grega foi morar<br />

numa constelação, a musa do reino de<br />

Momo permaneceu pagando aluguel num<br />

subúrbio carioca. O cisne que a bicou,<br />

mesmo influente nos meios televisivos,<br />

não a transformou em estrela.<br />

68


Lena<br />

(Publicado em Andanças andinas.<br />

Clube de Literatura Cromos, 1997.)<br />

No alto da montanha, de pé sobre uma<br />

pedra, Lena abriu os braços em forma<br />

de cruz. Aspirou demoradamente o ar<br />

rarefeito, sentiu no rosto a carícia do<br />

vento e a mornidez do sol da manhã.<br />

Depois, abraçou o mundo. Os braços de<br />

Lena têm o tamanho do seu afeto e o<br />

alcance do seu olhar.<br />

69


Leôncio<br />

Estimulado pelos pais, desde menino<br />

Leôncio habituara-se à leitura. Os<br />

folguedos da infância, as inquietudes<br />

da adolescência, as preocupações da<br />

vida adulta, tudo ficava em segundo<br />

plano nos momentos em que seu<br />

olhar viajava por aquele mundo sem<br />

fronteiras. Mas isso acontecera em<br />

outros tempos. Na agitação de agora,<br />

Leôncio não consegue dedicar-se às<br />

letras conforme fazia antes. Empilhados<br />

na mesa de centro da sala de sua casa,<br />

livros parecem olhar para ele, uns<br />

com desaponto, outros demonstrando<br />

intolerância. Cada vez mais angustiado,<br />

o outrora voraz leitor sucumbe à muda<br />

reprimenda e se verga ao peso de uma<br />

culpa atroz e torturante.<br />

70


Letícia<br />

Letícia deu-se à luz quando blocos<br />

carnavalescos faziam repicar os<br />

tamborins. Não possui a extroversão<br />

dos foliões, mas aceita de bom grado<br />

a fantasia. É capaz de dialogar com<br />

formigas e bem-te-vis, de colher tomates<br />

em quintais imaginários. As retinas de<br />

Letícia são calidoscópicas.<br />

71


Lia<br />

Da janela do apartamento, Lia<br />

observava o que acontecia fora de suas<br />

quatro paredes. Tudo ao alcance de<br />

seus olhos se agitava. Foi então que se<br />

percebeu órfã da cadência das cirandas.<br />

72


Ludgero<br />

Com direito a mesa farta e drinques<br />

variados, Ludgero reuniu amigos de<br />

longa data, coadjuvantes de sua história.<br />

Foram muitas as recordações, cada<br />

qual puxando uma ponta do novelo.<br />

Quase madrugada, quando os últimos<br />

convidados se despediram, fios de vida,<br />

que antes se emaranhavam, repousavam<br />

retilíneos no chão da sala. Braços<br />

dados com o silêncio, Ludgero tratou<br />

de atá-los e o que fora novelo agora se<br />

encompridava em direção ao infinito.<br />

73


Luiz<br />

Luiz nutre pelas palavras imenso<br />

carinho, embora entenda que nem<br />

todas façam jus à distinção. Algumas,<br />

pelo que aludem, mereciam mesmo<br />

é desprezo. Porém, Luiz não as<br />

discrimina, tem respeito por elas,<br />

acredita que se sacrificam em prol<br />

de uma boa causa. Não fossem elas,<br />

muito do que acontece, a merecer<br />

reprovação, estaria protegido pelo<br />

véu do anonimato. Para reforçar seu<br />

argumento, Luiz costuma indagar:<br />

“Já imaginaram se não houvesse uma<br />

palavra para nomear o que ocorre por<br />

detrás dos panos?”.<br />

74


Luzia<br />

Luzia deu-se à luz, mas a luz não se deu<br />

para Luzia. Ontem, iluminada pelo sol<br />

da manhã, ela caminhava pelo calçadão.<br />

Os olhos de Luzia têm quatro patas e<br />

pelos sedosos.<br />

75


Marilena<br />

Marilena estende o lençol como se fosse<br />

água do mar alisando areia em tempo<br />

de maré mansa. Não admite sequer<br />

uma prega, uma única dobra que possa<br />

desvirtuar seu intento. Posiciona os<br />

travesseiros simetricamente na cabeceira<br />

da cama. Cuida de não dobrar nada<br />

pelo avesso. Num contraponto ao caos<br />

que rege o mundo, Marilena é assim.<br />

Porém, paradoxalmente, venera Miró,<br />

Dalí, Chagal, Magritte, Picasso e todos<br />

aqueles que subvertem o convencional.<br />

Nos recônditos de Marilena acampa uma<br />

desordem criativa, motivo pelo qual ela<br />

tece versos livres.<br />

76


Marina<br />

Seu último desejo: café com leite e<br />

mingau. Um gole apenas, uma única<br />

colherada... Depois, serenamente,<br />

dormiu o sono de não acordar.<br />

Lá fora, no quintal de sua casa, em<br />

súbita cantoria, sabiás e bem-te-vis<br />

reverenciavam Marina.<br />

77


Marineti<br />

Conforme faria com marionetes,<br />

Marineti acostumara-se a manobrar<br />

quem com ela convivia. Tudo lhe<br />

parecia a contento, até que um sonho<br />

passasse a assombrá-la: enorme tesoura<br />

avançava em direção aos cordéis por ela<br />

manipulados. Acordava sobressaltada,<br />

coração aos pulos, corpo empapado de<br />

suor. Somente se livrou dos pesadelos<br />

ao dormir o sono de não acordar. Foi aí<br />

que Marineti descobriu quem, de fato,<br />

exerce o controle.<br />

78


Mário<br />

Os edifícios assemelham-se às gentes e<br />

aos bichos. Têm músculos, veias e um<br />

coração pulsante. Mário sabe disso.<br />

Quando moço, trabalhou na construção<br />

de um desses empilhamentos de<br />

casulos. Obra concluída, no ofício de<br />

porteiro, permaneceu no prédio. Trinta<br />

anos decorridos, desempenha ainda<br />

esse papel. Porém, sempre que uma<br />

anomalia se manifesta nas entranhas<br />

do arranha-céu, por conhecê-las em<br />

minúcias é convocado a prestar socorro.<br />

Quando acontece, Mário faz lembrar os<br />

antigos médicos de família.<br />

79


Marta<br />

O que acontece ao derredor não<br />

desperta seu interesse. O ir e vir da<br />

maré, os raios de sol iluminando as<br />

águas, uma embarcação rompendo a<br />

linha do horizonte, o voo das gaivotas,<br />

pescadores puxando a rede, nada disso<br />

a faz desplugar-se de si mesma. Imersa<br />

nas profundezas dos seus escondidos,<br />

Marta caminha pela orla.<br />

80


Melissa<br />

O balé clássico sempre atraiu Melissa.<br />

Desde criança, extasiava-se com aquelas<br />

figuras esguias, ora espetadas nos<br />

palcos pelas pontas dos pés, ora aos<br />

rodopios, ora parecendo levitar. O<br />

primeiro namorado, logo transformado<br />

em marido, realizou o desejo de Melissa.<br />

Manipulando invisíveis cordéis, ele a fez<br />

dançar sem sapatilhas.<br />

81


Miguel<br />

Faz pouco ele deixou o aconchego do<br />

ventre materno para se dar à luz. Ontem<br />

pela manhã, estive com ele.<br />

No colo da avó, os olhos curiosos de Miguel<br />

eram timoneiros de tímidas incursões<br />

por águas não placentárias. As grandes<br />

travessias virão depois: “mares nunca<br />

dantes navegados”, calmarias e procelas,<br />

rochedos, icebergs, enseadas, cais e linha<br />

do horizonte, âncoras e velas ao vento.<br />

E assim Miguel realizará sua viagem de<br />

circum-navegação.<br />

82


Miúra<br />

O constante da certidão pouco importa.<br />

Vale mesmo é Miúra. Impetuoso, um<br />

petardo em cada pé, exímio cabeceador.<br />

Artilheiro em todas as equipes pelas quais<br />

atuou, fazia algum tempo não balançava<br />

as redes. Vieram as vaias, os xingamentos,<br />

ferindo seus ouvidos acostumados ao afago<br />

das ovações. Seguiram-se as cobranças:<br />

dirigentes, treinador, empresário,<br />

torcedores, mídia. Implacáveis, demolidoras.<br />

Numa decisão de campeonato, estádio<br />

lotado, placar em branco, o caldo entornou<br />

de vez: livre na pequena área, deixou<br />

a bola escapar. Vaias e ofensas. Voltou<br />

cabisbaixo do intervalo. Antes de a bola<br />

voltar a rolar, os apupos recrudesceram.<br />

Foi aí que aconteceu: sacou a peixeira<br />

escondida sob a camisa e sangrou a ingrata.<br />

Recentemente, um repórter acostumado a<br />

garimpar notícias no submundo encontrou<br />

Miúra envolto em trapos sob um viaduto.<br />

Inicialmente arredio, deixou escapar um<br />

sorriso quando o jornalista se referiu<br />

a ele reverentemente. Abriu a guarda:<br />

existem ainda, aninhados em seu coração,<br />

desapontos, ressentimentos, lascas de<br />

tristeza. De positivo, as pazes feitas com<br />

aquela que ele esfaqueou tempos atrás no<br />

centro do gramado. Ao som de imaginários<br />

aplausos, Miúra dorme abraçado a ela.<br />

83


Moema<br />

(Publicado em Retrato sem moldura.<br />

Clube de Literatura Cromos, 1999.)<br />

Num forno de tijolos, Moema cozinha<br />

desejos e desapontos. Quando em vez,<br />

um deles estala, outro se quebra, quase<br />

sempre um sonho, as desilusões têm<br />

mais consistência. Examinar a fornada<br />

provoca em Moema permanentes<br />

sobressaltos. Ainda assim, gosta de<br />

moldar o improvável, de atribuir às suas<br />

peças precário equilíbrio. O jeito de ser<br />

de Moema sai também da boca do forno.<br />

Para ela, viver pede altas temperaturas<br />

e um corpo quase solto no ar.<br />

84


Narcisa<br />

Antenada na modernidade, crédula<br />

de que merece ser curtida, Narcisa<br />

se multiplica nas redes sociais.<br />

Fotos de suas “incríveis façanhas”<br />

navegam pelo ciberespaço. Por conta<br />

de um descuido, anda envolta numa<br />

crise existencial: postou uma selfie<br />

indiscreta e implacável, reveladora, em<br />

minúcias, da quantidade de rugas que<br />

habitam seu rosto.<br />

85


Neusa<br />

Neusa tece poemas. Em sua casa existe<br />

uma antiga cristaleira aparentemente<br />

vazia. Entretanto, além de estar cheio de<br />

ar, o móvel abriga a inspiração de Neusa.<br />

É isso exatamente: os versos de Neusa<br />

possuem a delicadeza dos cristais.<br />

86


Nícolas<br />

Nícolas deixou há pouco o útero<br />

materno, mas já se percebe nele um<br />

olhar ávido por novidades. Ao vêlo<br />

assim tão atento ao móbile, meu<br />

pensamento também se move: Como<br />

será que o pequeno Nícolas avalia o que<br />

se descortina ao seu redor? Qual será<br />

sua reação a cada futura descoberta?<br />

De que maneira irá se portar ante a<br />

vastidão do mundo, tão dessemelhante<br />

do ambiente intimista no qual foi<br />

gerado? Há de chegar o dia em que<br />

descobrirá que os adultos são assim:<br />

com interrogações, atadas por fios<br />

invisíveis, montam seus brinquedos.<br />

87


Omar<br />

Seu cotidiano lembrava a aridez dos<br />

desertos, até surgir na vida de Omar<br />

um grande amor e tansformá-la por<br />

completo. Certo dia, uma tempestade<br />

de areia varreu do mapa o que passara<br />

a ser oásis. O homem, agora, vaga<br />

sem rumo feito um beduíno que se<br />

desgarrou da tribo. Faz uma semana,<br />

sob um Sol abrasador, a mulher surgiu<br />

lá adiante, ainda tão vital para ele<br />

quanto a água que carrega no cantil.<br />

Porém, para desespero de Omar, tudo<br />

não passou de miragem.<br />

88


Paulão<br />

Vida inteira vomitou prepotência,<br />

arrotou arrogância, cuspiu<br />

autoritarismo. Idade a lhe pesar nos<br />

ombros, amargando a crueldade de um<br />

leito hospitalar, finitude esvoaçando<br />

pelo quarto feito ave de rapina, Paulão<br />

reuniu forças e manteve a coerência:<br />

com rispidez, ordenou à enfermeira que<br />

lhe trocasse a fralda geriátrica.<br />

89


Pedro<br />

Pedro era um ser contido. Represava seus<br />

sentimentos, não os deixava fluir. Temia<br />

que a barragem interior se rompesse e<br />

um caudal incontrolável inundasse sua<br />

alma ressecada, solo de caatinga em<br />

tempo de chuva nenhuma. Sempre que<br />

tentava reverter esse quadro, sucumbia<br />

aos rigores de uma crise existencial.<br />

Após a mais recente, que quase o levou<br />

às trevas da depressão, se deu conta da<br />

necessidade de um vazadouro. E foi então<br />

que sua alma vicejou.<br />

90


Percival<br />

Percival tem apreço pela perseverança.<br />

Mantém viva a esperança de que a<br />

tempestade passe e a bonança um<br />

dia o abrace. Só assim resiste a uma<br />

constante ameaça: uma vontade imensa<br />

de cortar os pulsos.<br />

91


Petrônio<br />

Petrônio é empedernido: não se<br />

entusiasma, não se emociona, não se<br />

enternece, não sorri. No lugar do coração,<br />

há no peito de Petrônio uma lápide.<br />

92


Prudêncio<br />

Desde o berço, jamais se arriscou a coisa<br />

alguma. Para ele, não havendo certeza,<br />

nada de efetivo acontece. E assim,<br />

pesando e medindo, o cauteloso cidadão<br />

pervaga por este mundo de indefinições.<br />

Hoje, aos 90 anos, no aguardo do ponto<br />

final, depois de se aventurar pelos<br />

meandros das muitas religiões Prudêncio<br />

se angustia pelas tantas interrogações<br />

para as quais não encontra respostas que<br />

lhe sejam convincentes.<br />

93


Ramona<br />

(Publicado em Retrato sem moldura.<br />

Clube de Literatura Cromos, 1999.)<br />

O desejo de Ramona era ganhar o<br />

mundo. Entretanto, prisioneira de<br />

si mesma, criava raízes. Quando<br />

ameaçava extrapolar seus limites,<br />

havia sempre alguém a podar-lhe as<br />

intenções. Foi preciso um passarinho<br />

soprar-lhe umas inquietudes. Só então<br />

Ramona deixou de vegetar.<br />

94


Renato<br />

Renato é manauara. Percorrem suas<br />

veias, além do sangue vital, as águas do<br />

Solimões. Talvez por isso seu afeto seja<br />

caudaloso, repleto de afluentes e igarapés.<br />

95


Roberval<br />

Na escola e nas brincadeiras da<br />

infância, já ditava comportamentos.<br />

No meio universitário, no trabalho, na<br />

vida conjugal, no relacionamento com<br />

os filhos era sempre ele quem dizia o<br />

que fazer. Ao tornar-se romancista,<br />

teve os personagens à mercê dos seus<br />

ditames, submissos aos seus desejos.<br />

Até escrever o último livro, quando, à<br />

revelia do autor, tudo mudou: aquele<br />

que seria boa gente transformouse<br />

em vilão; um dos corruptos da<br />

história arrependeu-se das falcatruas<br />

e, espontaneamente, devolveu tudo<br />

ao erário; a protagonista, destinada<br />

a subir ao altar com um causídico<br />

circunspecto e idoso, amancebou-se<br />

com uma jovem sorridente. Após tantas<br />

desconsiderações, Roberval abandonou<br />

a escrita e caiu em depressão. No auge<br />

da crise, chegou a tentar o suicídio, mas<br />

a pistola negou fogo.<br />

96


Romualdo<br />

Romualdo sempre teve por meta<br />

escrever poesia. Por conta do desejo,<br />

adquiriu dicionário de rimas e<br />

tratado de versificação. Assim<br />

instrumentalizado, produziu centenas<br />

de versos e nenhum poema. Seus<br />

escritos não causam espanto, não<br />

inquietam. Romualdo ignora a máxima<br />

do poeta pantaneiro, não consegue<br />

“voar fora da asa”.<br />

97


Rosa<br />

Ciente do seu poder de sedução, feriu<br />

e fez sangrar um coração desavisado.<br />

O nome da musa é inteiramente<br />

compatível com o seu jeito de ser. Rosa<br />

possui a maciez das pétalas e a dureza<br />

dos espinhos.<br />

98


Salomão<br />

Nada mais gratificante do que exercer<br />

prazerosamente uma profissão. Assim<br />

acontece com o doutor Salomão,<br />

juiz de Direito em Vara de Família.<br />

Sua Excelência vibra intensamente<br />

com as causas nas quais se envolve,<br />

especialmente quando a questão se<br />

refere a uma partilha de bens.<br />

99


Salvador<br />

Salvador inveja aqueles que conseguem,<br />

com detalhes, falar sobre um filme<br />

antigo, relatar a trama de um romance<br />

lido em tempos já distantes. Com ele<br />

não acontece assim. Tudo se dilui,<br />

vira fumaça, esvoaça. A memória de<br />

Salvador não faz backup antes de<br />

apertar a tecla DEL.<br />

100


Serafim<br />

A objetividade era característica<br />

marcante da conduta de Serafim. Seu<br />

percurso, ele o fazia em trilhos. Chegou<br />

aos 50 assim e dessa forma pretendia<br />

prosseguir viagem até que viesse a<br />

descarrilar. Deu-se, porém, que se<br />

embrenhou nas trilhas de um repentino<br />

amor, jovem atriz performática. Liberto<br />

da tirania dos dormentes, Serafim anda<br />

sentindo desconforto por habitar um<br />

nome tão atrelado aos finalmentes, pelos<br />

quais já não se pauta. Ultimamente, tem<br />

pensado em adotar um pseudônimo.<br />

101


Silvestre<br />

Silvestre é bicho de raiz, mas não<br />

despreza as aves migratórias. Chega<br />

mesmo a invejar aqueles seres alados.<br />

Gosta de vê-los, em formato de seta,<br />

riscando a imensidão azul. Admira o<br />

comportamento dos pássaros migrantes:<br />

quando percebe que suas asas não se<br />

mostram obedientes, aquele que conduz<br />

o voo cede o posto a outro integrante<br />

do grupo e assim todos se revezam até<br />

a chegada ao destino. No entender de<br />

Silvestre, também deveria ser assim com<br />

os humanos em sua migração do berço<br />

ao túmulo.<br />

102


Simão<br />

Com golpes de facão, abre um buraco<br />

no topo do coco, introduz um canudo e<br />

entrega o fruto ao freguês, que passa<br />

a sorver o sabor do lá de dentro. Dia<br />

após dia, esse quase ritual se repete.<br />

Por meio dele, sustenta a família. Coco,<br />

facão, canudo. Nessa mesa de três pés,<br />

equilíbrio tão precário, Simão joga com<br />

o Destino o jogo da Vida. Olho no olho,<br />

tenta escapar dos blefes.<br />

103


Solange<br />

Solange semeia silêncios. É comum<br />

adubá-los com olhares vagos e<br />

prolongados suspiros. Assim procede<br />

na esperança de que, tal e qual o milho<br />

brotando do ventre da terra, seus<br />

desejos possam espocar. Solange sonha<br />

colher espigas douradas.<br />

104


Sônia<br />

Nas dobras do coração, Sônia abrigou<br />

esperanças gestadas no ventre dos<br />

seus desejos. Quando a insônia a<br />

aflige, ela escolhe uma delas para lhe<br />

fazer companhia e assim ameniza o<br />

desassossego das noites indormidas.<br />

105


Teodora<br />

Sem aviso prévio, Teodora passa do<br />

riso ao choro, da alegria à tristeza,<br />

da esperança à descrença, do afago<br />

ao tapa. Não é fácil conviver com<br />

a inconstância de Teodora, ora rio<br />

caudaloso, ora filete d’água.<br />

106


Tereza<br />

Envolta em desesperança, Tereza lançou<br />

âncoras em águas dantes navegadas.<br />

Para ela, nada além do que já foi<br />

faz sentido. Embarcação atrelada às<br />

pedras do cais, não se deixa atrair<br />

pela imensidão do oceano, não busca<br />

desvendar mistérios de além mar, não se<br />

atreve mais ao desafio de dobrar o Cabo<br />

das Tormentas.<br />

107


Tiago<br />

Pouco depois de completar cinco anos,<br />

Tiago foi apresentado às letras. Logo,<br />

descobrirá que, agrupadas, elas formam<br />

palavras. A seguir, virão as frases, os<br />

parágrafos. Um dia, talvez constate<br />

haver ficado refém desses algozes<br />

sedutores, da doce tirania exercida por<br />

eles sorrateiramente.<br />

108


Virgínia<br />

Na expectativa de um relacionamento<br />

duradouro, Virgínia especializou-se<br />

em declarações de amor. Já não sabia<br />

quantas fora capaz de bordar. O termo<br />

talvez provoque estranhamento, mas as<br />

juras amorosas de Virgínia têm mesmo<br />

o feitio dos bordados. Com agulhas<br />

imaginárias e invisíveis fios de seda,<br />

ela enfeita o afeto, ornamenta o desejo.<br />

Levou tempo até que desvendasse o<br />

motivo pelo qual não surtiam o efeito<br />

desejado. Certo dia, enquanto amargava<br />

mais um desaponto, tudo se aclarou.<br />

Percebeu que em seus bordados faltavam<br />

arremates. Neles, pronta para ser<br />

puxada, havia sempre a ponta de um fio.<br />

109


Wanderlei<br />

Wanderlei coleciona corujas.<br />

No momento, possui 1.200<br />

meticulosamente acomodadas em<br />

prateleiras envernizadas. São, portanto,<br />

2.400 olhos, alguns de pedra, outros<br />

de louça ou madeira, sem contar os<br />

que fogem do convencional. Quando<br />

a solidão ameaça fustigar Wanderlei,<br />

as aves das prateleiras deixam de ser<br />

meras estatuetas. Então, os olhos<br />

delas ganham vida e o breu da noite se<br />

transforma em alvorada.<br />

110


Yara<br />

Todas as manhãs, mal o Sol desponta,<br />

Yara vai para a beira do mar à espera<br />

de que as velas apontem no horizonte,<br />

trazendo seu homem de volta. Desde<br />

quando a borrasca o engoliu, Yara<br />

repete o ritual. Porém, já não crê tanto<br />

assim no regresso. Desconfia que seu<br />

grande amor se tenha deixado enredar<br />

nos encantos de sua xará.<br />

111


Zeca<br />

Houve um momento em que, para Zeca,<br />

a luz já escassa se apagou de vez. A<br />

partir daí, evidenciou-se ainda mais o<br />

brilho interior que o ilumina. Zeca vê a<br />

Vida com os olhos do coração!<br />

112


Agosto de 2018

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