Arte que inventa afetos - ebook

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ARTE QUE INVENTA AFETOS 31 formulada pelo pesquisador, em congruência com seu domínio, pode ser questionada ou mesmo refutada por um dos elementos do experimento que, nesse caso em análise, é um ser humano. Importante notar que para Latour (2008) a recalcitrância também pode ser uma agência dos objetos, dos não humanos. A recalcitrância pode ser lida como uma não correspondência à realidade? Sim e não. Sim, pois é uma avaliação que desestabiliza – parcial ou totalmente – a montagem das operações que vimos no item anterior neste capítulo. Por isso poderia ser chamada de um modo de existência da realidade. E não, pois nesse referencial concebemos tantas realidades quantas nossas possibilidades coletivas de estabelecer congruências operacionais estabilizadas podem produzir. O outro da pesquisa Tem-se como uma espécie de caixa-preta da pesquisa envolvendo seres humanos o fato de que não se deve utilizar nos relatos de divulgação os nomes de pessoas, organizações e cidades relativos aos sujeitos de uma pesquisa. A razão que tradicionalmente justifica essa política dos sem-nome é a de proteção dos participantes, que estariam assim afastados dos perigos de serem identificados com a temática ou resultados da pesquisa da qual participaram. Guenther (2009) e Despret (2011) problematizam esse consenso discutindo, a partir de casos concretos, que muitas vezes os participantes se interessam pelo problema pesquisado e desejam que suas falas/produções sejam reconhecidas. O anonimato, em vez de proteger os participantes, pode obstaculizar mudanças, despotencializando e silenciando a questão em estudo e fazendo com que seja expressa somente a partir da tradução do pesquisador, sem fornecer aos participantes ferramentas de contestação. Tal posição despotencializada foi questionada por um dos participantes de uma pesquisa, conforme relata Despret: Estava diante de um senhor de 60 anos, um agricultor muçulmano originário da Bósnia [...] Havíamos cumprido quase todas as etapas: eu havia me apresentado, garantido a ele o anonimato e havíamos abordado os temas que orientavam minha pesquisa.

32 Estudos da Pós-Graduação Eu me encontrava diante dele e anotava cuidadosamente em meu caderno suas declarações, traduzidas pela tradutora Tatiana. Ele me falava, nesse estágio da entrevista, do desaparecimento de seu irmão. Nesse momento ele apanhou a caneta que eu segurava para me dizer: “Veja a senhora, isso é o que fomos. A senhora pode ter essa caneta e escrever com ela. Aqueles que fazem a política escrevem conosco. Eles não pegaram os filhos deles para jogar e os enviaram para a guerra. Eles pegaram nossos filhos e com eles escreveram a guerra. Somos apenas um grão de poeira nessa história” (DESPRET, 2011, p. 18-19). Nesse relato podemos perceber como as ações do pesquisador e a configuração produzida pelo encontro colocam os sujeitos envolvidos em posições nas quais cada gesto tem um valor e uma potência dentro de uma política da produção de conhecimento. Guenther (2009, p. 414), afirma que o ato de nomear pode ser considerado um ato político, à medida que vai contra uma “confidencialidade que desempodera e silencia, contribuindo para a manutenção de estruturas de desigualdade”. Nessa direção, a autora toma o ato de nomear, como um ato de poder: “Nomes são poderosos” (GUENTHER, 2009, p. 413). Mas temos que nos perguntar se em todos os desenhos de pesquisa esse ato de nomear teria essa mesma potência, pois cada configuração de pesquisa organiza os elementos cognitivos e políticos de maneira particular. Outro fato interessante a considerar é que vivemos certa experiência paradoxal na questão da nomeação. Com o acesso a programas na WEB, torna-se possível, através de uma busca pacienciosa, utilizando-se das características expressas nos documentos de uma pesquisa, identificar as cidades, organizações e pessoas, mesmo que omitidos os reais nomes. Ao mesmo tempo, a tentativa de preservação total acarreta, muitas vezes, tamanha desvinculação com a experiência concreta que gerou os dados que perdemos articulações e consistências operacionais que poderiam enriquecer o trabalho final. Além disso, a atribuição de nomes fictícios pode contribuir para a criação de identidades que homogeneizam grupos, fazendo calar suas diferenças, tal como caracterizar um participante como “trabalhador de empresa petrolífera”, “empregada doméstica” ou “estudante universitário”, por exemplo.

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Estudos da Pós-Graduação<br />

Eu me encontrava diante dele e anotava cuidadosamente em<br />

meu caderno suas declarações, traduzidas pela tradutora Tatiana.<br />

Ele me falava, nesse estágio da entrevista, do desaparecimento<br />

de seu irmão. Nesse momento ele apanhou a caneta <strong>que</strong> eu segurava<br />

para me dizer: “Veja a senhora, isso é o <strong>que</strong> fomos. A<br />

senhora pode ter essa caneta e escrever com ela. A<strong>que</strong>les <strong>que</strong><br />

fazem a política escrevem conosco. Eles não pegaram os filhos<br />

deles para jogar e os enviaram para a guerra. Eles pegaram<br />

nossos filhos e com eles escreveram a guerra. Somos apenas um<br />

grão de poeira nessa história” (DESPRET, 2011, p. 18-19).<br />

Nesse relato podemos perceber como as ações do pesquisador e<br />

a configuração produzida pelo encontro colocam os sujeitos envolvidos<br />

em posições nas quais cada gesto tem um valor e uma potência dentro<br />

de uma política da produção de conhecimento. Guenther (2009, p. 414),<br />

afirma <strong>que</strong> o ato de nomear pode ser considerado um ato político, à<br />

medida <strong>que</strong> vai contra uma “confidencialidade <strong>que</strong> desempodera e silencia,<br />

contribuindo para a manutenção de estruturas de desigualdade”.<br />

Nessa direção, a autora toma o ato de nomear, como um ato de poder:<br />

“Nomes são poderosos” (GUENTHER, 2009, p. 413). Mas temos <strong>que</strong><br />

nos perguntar se em todos os desenhos de pesquisa esse ato de nomear<br />

teria essa mesma potência, pois cada configuração de pesquisa organiza<br />

os elementos cognitivos e políticos de maneira particular.<br />

Outro fato interessante a considerar é <strong>que</strong> vivemos certa experiência<br />

paradoxal na <strong>que</strong>stão da nomeação. Com o acesso a programas na<br />

WEB, torna-se possível, através de uma busca pacienciosa, utilizando-se<br />

das características expressas nos documentos de uma pesquisa,<br />

identificar as cidades, organizações e pessoas, mesmo <strong>que</strong> omitidos os<br />

reais nomes. Ao mesmo tempo, a tentativa de preservação total acarreta,<br />

muitas vezes, tamanha desvinculação com a experiência concreta<br />

<strong>que</strong> gerou os dados <strong>que</strong> perdemos articulações e consistências operacionais<br />

<strong>que</strong> poderiam enri<strong>que</strong>cer o trabalho final. Além disso, a atribuição<br />

de nomes fictícios pode contribuir para a criação de identidades <strong>que</strong><br />

homogeneizam grupos, fazendo calar suas diferenças, tal como caracterizar<br />

um participante como “trabalhador de empresa petrolífera”, “empregada<br />

doméstica” ou “estudante universitário”, por exemplo.

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