Arte que inventa afetos - ebook

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ARTE QUE INVENTA AFETOS 29 os cientistas não representam com seu conhecimento uma realidade independente. Mas constituem realidades nas práxis da pesquisa. Produzir conhecimento é compartilhar com uma comunidade de observadores, trata-se de uma experiência política e que nos responsabiliza pelos mundos e objetos que inventamos coletivamente. A questão da validação Praticamente todos os seres humanos têm a capacidade de falar e enunciar proposições a respeito das coisas, dos outros e de si mesmos. Definir a veracidade e, mais posteriormente, a validade de tais proposições sempre foi uma discussão na filosofia, mais especificamente na lógica e, após, na prática científica. O experimento passou a ocupar uma função central na ciência moderna por fazer frente ao discurso religioso, mas colocou em discussão a função do observador e os limites do conhecimento científico. As quatro operações descritas por Maturana, que referimos acima, tornam evidente que a validação não se produz com uma adequação à realidade, fórmula demandada por quem concebe o conhecimento como a representação de um real independente. A validação é estabelecida em um domínio de conhecimento que consensua seus próprios critérios. Por consensos estamos nos referindo a pactos momentâneos e sempre atualizáveis que são atravessados por relações de poder, ou seja, não são harmoniosos. Particularmente nas ciências humanas, validar um conhecimento sobre pessoas envolve considerar de que lugar elas falam, vivem e quais possibilidades elas possuem de participar da produção de conhecimento considerado legítimo. Na medida em que toda pesquisa é validada a partir de critérios de uma comunidade de observadores e que aos sujeitos da pesquisa é lhes dado acesso a esses critérios, pressupomos que todos os envolvidos estariam em condições de poder assumir a posição de observador padrão desse domínio. Mas não é tão simples assim. Existem relações de poder-saber que distanciam os pesquisadores dos pesquisados, o que coloca de saída uma desigualdade em termos enunciativos que precisa ser considerada quando assumimos que a produção de conhecimento é sempre um ato político.

30 Estudos da Pós-Graduação Essa assimetria entre o pesquisador e os participantes pode emergir pelo fato de não compartilharem de uma prática comum que torne possível uma distinção conceitual compartilhável entre pesquisador e participante. Outra assimetria pode decorrer pela forma através da qual o desenho da pesquisa dispõe as ferramentas e técnicas utilizadas em relação às pessoas envolvidas. Isso organizará de maneira diferente o acesso dos participantes aos domínios de validação do conhecimento produzido, pois o que ocorre geralmente é que os participantes, muitas vezes por causa do sigilo e para não causar interferência nos resultados, não conhecem o desenho nem estão aptos a usar os instrumentos (entrevistas, escritas, modelos matemáticos, conceitos) que o pesquisador conhece e utiliza junto com seus pares para produzir a validação. Se os critérios e condições de validação são consensuados entre observadores, podemos conceber uma ontologia dos domínios de conhecimento que é ao mesmo tempo conceitual e política e na qual os participantes da pesquisa possuem maior ou menor autoria. Em métodos que se alinham ao referencial da pesquisa-intervenção, como a cartografia, a função dos participantes tem sido levantada como um importante critério de validação do conhecimento produzido. Passos e Kastrup (2013, p. 393) indicam que a validação do método da cartografia passa pelo “acesso à experiência, à consistência cartográfica e à produção de efeitos” e se realiza em três níveis de avaliação: a autoavaliação realizada pelo próprio pesquisador, a avaliação dos participantes da pesquisa e a avaliação dos pares. Dessa forma, os “sujeitos” deslocam-se da posição de avaliados para serem protagonistas e corresponsáveis pelo processo de análise (PASSOS; KASTRUP, 2013). Aqui se produz uma abertura em relação ao que estávamos discutindo até o momento. Nossa análise da validade ou não de um conhecimento levava em conta o domínio e os critérios estabelecidos pelos observadores que dele compartilham, frequentemente denominado de “pares”. Mas não havíamos abarcado a possibilidade de incluir a avaliação dos participantes, como propõem os autores acima comentados. Tal acolhida abre espaço para o que Latour (2008) chama de recalcitrância, ou seja, quando pessoas ou objetos não respondem obedientemente aos nossos dispositivos de pesquisa. Assim, a hipótese explicativa

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Estudos da Pós-Graduação<br />

Essa assimetria entre o pesquisador e os participantes pode<br />

emergir pelo fato de não compartilharem de uma prática comum <strong>que</strong><br />

torne possível uma distinção conceitual compartilhável entre pesquisador<br />

e participante. Outra assimetria pode decorrer pela forma através<br />

da qual o desenho da pesquisa dispõe as ferramentas e técnicas utilizadas<br />

em relação às pessoas envolvidas. Isso organizará de maneira diferente<br />

o acesso dos participantes aos domínios de validação do conhecimento<br />

produzido, pois o <strong>que</strong> ocorre geralmente é <strong>que</strong> os participantes, muitas<br />

vezes por causa do sigilo e para não causar interferência nos resultados,<br />

não conhecem o desenho nem estão aptos a usar os instrumentos (entrevistas,<br />

escritas, modelos matemáticos, conceitos) <strong>que</strong> o pesquisador conhece<br />

e utiliza junto com seus pares para produzir a validação.<br />

Se os critérios e condições de validação são consensuados entre<br />

observadores, podemos conceber uma ontologia dos domínios de conhecimento<br />

<strong>que</strong> é ao mesmo tempo conceitual e política e na qual os<br />

participantes da pesquisa possuem maior ou menor autoria. Em métodos<br />

<strong>que</strong> se alinham ao referencial da pesquisa-intervenção, como a<br />

cartografia, a função dos participantes tem sido levantada como um importante<br />

critério de validação do conhecimento produzido. Passos e<br />

Kastrup (2013, p. 393) indicam <strong>que</strong> a validação do método da cartografia<br />

passa pelo “acesso à experiência, à consistência cartográfica e à<br />

produção de efeitos” e se realiza em três níveis de avaliação: a autoavaliação<br />

realizada pelo próprio pesquisador, a avaliação dos participantes<br />

da pesquisa e a avaliação dos pares. Dessa forma, os “sujeitos” deslocam-se<br />

da posição de avaliados para serem protagonistas e corresponsáveis<br />

pelo processo de análise (PASSOS; KASTRUP, 2013).<br />

Aqui se produz uma abertura em relação ao <strong>que</strong> estávamos discutindo<br />

até o momento. Nossa análise da validade ou não de um conhecimento<br />

levava em conta o domínio e os critérios estabelecidos pelos observadores<br />

<strong>que</strong> dele compartilham, fre<strong>que</strong>ntemente denominado de<br />

“pares”. Mas não havíamos abarcado a possibilidade de incluir a avaliação<br />

dos participantes, como propõem os autores acima comentados.<br />

Tal acolhida abre espaço para o <strong>que</strong> Latour (2008) chama de recalcitrância,<br />

ou seja, quando pessoas ou objetos não respondem obedientemente<br />

aos nossos dispositivos de pesquisa. Assim, a hipótese explicativa

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