Arte que inventa afetos - ebook

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ARTE QUE INVENTA AFETOS 25 fico. É importante realçar que científico não é sinônimo de acesso privilegiado a uma realidade independente e que antes de poder adjetivar qualquer afirmação como verdadeira, devemos esclarecer mediante quais critérios a validamos. Assim, o método científico, antes de afirmar que proposições são verdadeiras ou falsas, trata de estabelecer os critérios mediante os quais as proposições serão julgadas. Maturana (2001) denomina essa postura epistemológica com a ideia de colocar a realidade entre parênteses. Ou seja, apontar que as proposições foram construídas e colocadas à vista de todos os observadores para que pudessem ser contestadas ou consensuadas. Dessa maneira, pesquisar exige indiretamente que se faça parte de uma comunidade de observadores que partilham critérios de validação e, consequentemente, políticas cognitivas. Por políticas cognitivas queremos dizer que o modo como concebemos o conhecer e as práticas de produção de conhecimento implica uma política no sentido de que: a) estabelecem diferentes relações entre humanos e não humanos; b) produzem efeitos distintos caso partamos da ideia de um mundo objetivo independente ou dependente de nossas práticas; e c) posicionam o método como uma descoberta ou uma invenção de realidades. Essa ideia fica mais evidente nos posicionamentos reducionistas muitas vezes presentes no discurso científico, como os encontrados no histórico do mapeamento do genoma humano, no qual muitas pessoas esperavam encontrar o código de vários domínios da vida humana, como comportamentos, crenças, sexualidade, como se fosse possível encontrar, no recurso a uma metáfora de escritura, o livro da vida com todos os seus segredos escondidos na forma de um código finalmente passível de decifração. Como bem reforçam Kastrup, Tedesco e Passos (2008), o conceito de política cognitiva evidencia que o conhecer envolve uma maneira de se posicionar em relação ao mundo e a si mesmo. Nesse sentido, afirmar que produzir conhecimento é construir representações mais ou menos fiéis de uma realidade independente daquilo que fazemos é distinto de afirmar um conhecer contingente e incorporado que envolve seres vivos, linguagens, objetos e consensos que dependem de uma comunidade de observadores que aceitam os critérios de validação para cada tipo de saber.

26 Estudos da Pós-Graduação À diferença de nossos conhecimentos cotidianos, nos interessa o chamado conhecimento científico porque ele está baseado em operações processuais compartilhadas. Isso quer dizer que ele não parte, a princípio, de postulados dogmáticos que devem ser obedecidos, mas que tais postulados precisam ser postos à prova em experimentações que articulam humanos, objetos e inscrições como suporte da linguagem. E o critério de validação também não está fora de tal contexto, o que nos coloca o desafio de pensar a prática científica como dependente daqueles que a fazem. Isso não quer dizer que tudo pode ser feito nesse domínio, mas que as ações e maneiras de validar conhecimento são condicionadas aos consensos entre pesquisadores de determinada área, de tal sorte que a obtenção desses consensos configuram a prática científica como também política. Maturana (2001) demonstra como o procedimento científico não precisa fazer referência a um mundo independente dos observadores para ser validado. Para o autor, uma explicação científica é semelhante a qualquer outra por ser uma reformulação da experiência com elementos da experiência própria ou da de outros observadores. A explicação científica se diferencia das demais por seguir um conjunto de operações específicas que se organiza mediante quatro operações inter-relacionadas: 1. Definir os critérios de distinção do fenômeno que se quer explicar para que outro observador do domínio possa distingui-lo. Trata-se de compartilhar a posição de observador de maneira a que o objeto surja como um problema para a comunidade de observadores. Essa operação é semelhante àquela que fazemos em nosso cotidiano quando queremos que alguém faça uma ação próxima a nossa e que resulte na distinção de um mesmo objeto. Por exemplo, se você e um amigo estão colhendo abacates e você diz ao amigo: “Olha o abacate lá!” O seu amigo diz: “Onde, não vejo”. Você passa a coordenar ações com ele para distinguir o abacate que somente você vê, dizendo por exemplo, “Está vendo o galho a sua direita? Siga o galho mais para cima até encontrar uma folha amarelada, atrás

ARTE QUE INVENTA AFETOS 25<br />

fico. É importante realçar <strong>que</strong> científico não é sinônimo de acesso privilegiado<br />

a uma realidade independente e <strong>que</strong> antes de poder adjetivar<br />

qual<strong>que</strong>r afirmação como verdadeira, devemos esclarecer mediante<br />

quais critérios a validamos. Assim, o método científico, antes de afirmar<br />

<strong>que</strong> proposições são verdadeiras ou falsas, trata de estabelecer os critérios<br />

mediante os quais as proposições serão julgadas. Maturana (2001)<br />

denomina essa postura epistemológica com a ideia de colocar a realidade<br />

entre parênteses. Ou seja, apontar <strong>que</strong> as proposições foram construídas<br />

e colocadas à vista de todos os observadores para <strong>que</strong> pudessem<br />

ser contestadas ou consensuadas.<br />

Dessa maneira, pesquisar exige indiretamente <strong>que</strong> se faça parte de<br />

uma comunidade de observadores <strong>que</strong> partilham critérios de validação e,<br />

conse<strong>que</strong>ntemente, políticas cognitivas. Por políticas cognitivas <strong>que</strong>remos<br />

dizer <strong>que</strong> o modo como concebemos o conhecer e as práticas de<br />

produção de conhecimento implica uma política no sentido de <strong>que</strong>: a)<br />

estabelecem diferentes relações entre humanos e não humanos; b) produzem<br />

efeitos distintos caso partamos da ideia de um mundo objetivo<br />

independente ou dependente de nossas práticas; e c) posicionam o método<br />

como uma descoberta ou uma invenção de realidades. Essa ideia fica<br />

mais evidente nos posicionamentos reducionistas muitas vezes presentes<br />

no discurso científico, como os encontrados no histórico do mapeamento<br />

do genoma humano, no qual muitas pessoas esperavam encontrar o código<br />

de vários domínios da vida humana, como comportamentos, crenças,<br />

sexualidade, como se fosse possível encontrar, no recurso a uma metáfora<br />

de escritura, o livro da vida com todos os seus segredos escondidos na<br />

forma de um código finalmente passível de decifração.<br />

Como bem reforçam Kastrup, Tedesco e Passos (2008), o conceito<br />

de política cognitiva evidencia <strong>que</strong> o conhecer envolve uma maneira<br />

de se posicionar em relação ao mundo e a si mesmo. Nesse sentido,<br />

afirmar <strong>que</strong> produzir conhecimento é construir representações<br />

mais ou menos fiéis de uma realidade independente daquilo <strong>que</strong> fazemos<br />

é distinto de afirmar um conhecer contingente e incorporado <strong>que</strong><br />

envolve seres vivos, linguagens, objetos e consensos <strong>que</strong> dependem de<br />

uma comunidade de observadores <strong>que</strong> aceitam os critérios de validação<br />

para cada tipo de saber.

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