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OLHARES<br />
<strong>do</strong>MUNDO<br />
2016<br />
edição 05<br />
Universidade<br />
Presbiteriana<br />
Mackenzie
OLHARES<br />
<strong>do</strong>MUNDO<br />
Revista produzida pelos alunos <strong>do</strong> Curso de Jornalismo <strong>do</strong><br />
Centro de Comunicações e Letras (CCL) <strong>do</strong> Instituto Presbiteriano Mackenzie<br />
Direção <strong>do</strong> CCL<br />
Prof. Dr. Alexandre Huady Torres Guimarães<br />
Coordenação de Curso<br />
Prof. Dr. André Cioli Taborba Santoro<br />
digital_<br />
o mun<strong>do</strong> em suas mãos<br />
Coordenação Editorial<br />
Prof. Drª Márcia Detoni<br />
Projeto Gráfico<br />
Anne Caroline Gonçalves e Bruno Leão<br />
Endereço: Rua Piauí, 143 – CEP 01241-001<br />
Fone: (11) 2114-8320 – São Paulo – SP www.mackenzie.com.br<br />
acesse<br />
@worldviews1<br />
www.olhares<strong>do</strong>mun<strong>do</strong>.wordpress.com
ao leitor<br />
<strong>África</strong> em foco<br />
Praticamente invisível no noticiário internacional,<br />
a <strong>África</strong> foi o continente escolhi<strong>do</strong> para<br />
esta edição especial de “<strong>Olhares</strong> <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>”.<br />
Nossa equipe de reportagem encarou o desafio<br />
de olhar com mais atenção para países<br />
com os quais o Brasil compartilha tanta<br />
história e cultura e abordar questões, muitas<br />
vezes dramáticas, que raramente aparecem<br />
na mídia nacional.<br />
Sabemos que as verdades <strong>do</strong> continente<br />
africano são cruéis e inconvenientes demais<br />
para os que leem o jornal no café da manhã<br />
ou para os telespecta<strong>do</strong>res <strong>do</strong> horário nobre,<br />
mas ignorar os conflitos que assolam o continente<br />
é permitir a perpetuação da violência<br />
e da exploração gananciosa de recursos<br />
naturais. Enquanto a guerra na Síria recebe<br />
espaços diários no noticiário internacional, o<br />
mun<strong>do</strong> fecha os olhos para o holocausto na<br />
República Democrática <strong>do</strong> Congo, onde seis<br />
milhões de pessoas morreram desde os anos<br />
1990 no mais sangrento conflito desde a II<br />
Guerra Mundial.
O Jornalismo Internacional é estratégico<br />
na mediação entre as nações. É pela<br />
janela da mídia que sabemos o que se<br />
passa fora de nossas fronteiras e desenvolvemos<br />
uma noção sobre o mun<strong>do</strong> e<br />
outros povos. A quase ausência da <strong>África</strong><br />
no noticiário fortalece e enraíza o pensamento<br />
eurocêntrico no Brasil, impedin<strong>do</strong> o<br />
país de valorizar suas próprias raízes e de<br />
a<strong>do</strong>tar políticas externas mais solidárias.<br />
O objetivo desta edição foi aproximar os<br />
estudantes <strong>do</strong> 6° semestre de Jornalismo<br />
de um continente até então desconheci<strong>do</strong><br />
por eles e apresentar ao leitor de “<strong>Olhares</strong><br />
<strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>” alguns <strong>do</strong>s acontecimentos de<br />
maior relevância na área social, política e<br />
econômica da <strong>África</strong> sem me<strong>do</strong> <strong>do</strong> desassossego<br />
que alguns fatos possam causar.<br />
O conhecimento e a indignação provocam<br />
reação e mudança de atitudes, algo tão<br />
necessário no momento em que o Brasil<br />
recebe tantos refugia<strong>do</strong>s africanos,<br />
castiga<strong>do</strong>s pela violência ou pela fome.<br />
A elaboração da pauta foi precedida<br />
de discussões em sala de aula sobre a<br />
história <strong>do</strong> continente e os seus desafios<br />
atuais. Todas as reportagens contam<br />
com entrevistas originais, realizadas<br />
por e-mail, troca de mensagens<br />
em redes sociais ou videoconferência.<br />
O interesse por países de língua portuguesa,<br />
como Angola e Moçambique,<br />
era natural, mas a maioria das matérias<br />
foi redigida a partir de informações<br />
e entrevistas em inglês.<br />
Como coordena<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> grupo de<br />
jovens repórteres que assinam esta<br />
edição, sou testemunha de um trabalho<br />
feito com grande dedicação e um<br />
imenso respeito pelas nações africanas.<br />
Confira nas páginas a seguir.<br />
Prof. Drª Márcia Detoni<br />
São Paulo, junho de 2016.
sumário<br />
9. Holocausto no Congo deixa<br />
seis milhões de mortos<br />
Por Daniele Rodrigues, Danielle Fernandes,<br />
Deborah Delaye e Vivian Estrela<br />
14. Corrupção e cobiça impedem a paz,<br />
lamenta brasileiro que coman<strong>do</strong>u a missão da ONU no Congo<br />
Por Ane Mace<strong>do</strong>, Bruna Pinheiro e Juliana Fernandes<br />
21. Investimentos chineses ajudam a <strong>África</strong>,<br />
mas mantêm o continente subdesenvolvi<strong>do</strong>, dizem analistas<br />
Por: Daniel Zanata, Raphael Taets e Victor Silva<br />
27. Após uma década de intensas relações comerciais<br />
com Moçambique, Brasil interrompe investimentos<br />
Por Anne Caroline Gonçalves, Bruno Leão,<br />
Cibele Mendes, Rebeca Bergue e Victor Reche<br />
32. Brasil ajuda Moçambique na luta contra o HIV<br />
Por Beatriz Benfatti,<br />
Rodrigo Bitar e Sonia Cury<br />
39. Crianças transformadas em máquinas de guerra<br />
Por Camila Vietri, Cláudia Custódio,<br />
Júlia Falconi e Louise Daud<br />
44. Eliminar casamento prematuro é grande desafio<br />
para o desenvolvimento de Moçambique<br />
Por Isabela Lisboa, Marina Moreno,<br />
Tayná Rudge, Rebeca Lucena e Isabela Imbimbo
48. Uma corrida para salvar vidas<br />
Por Guilherme Veloso<br />
52. Financiamento saudita de seita islâmica<br />
radical incentiva o terror na Nigéria<br />
Por Gabriel Neves e Vitória Mantovani<br />
57. Em 15 anos, Angola alfabetiza<br />
a maioria de suas mulheres<br />
Por Camila Eneyla,<br />
Danielly Bezerra e Jéssica Moraes<br />
62. Ativistas lutam por respeito<br />
aos direitos humanos em Angola<br />
Por Débora Duarte, Larissa Maida,<br />
Mariana Souza e Rubia Chikos<br />
67. Fugin<strong>do</strong> da crise econômica em seu país, angolanos<br />
encontram dificuldades semelhantes no Brasil<br />
Por Lucas Valim, Matheus Riga e Vinicius Ribeiro<br />
72. Disputa por empregos provoca<br />
ataques xenófobos na <strong>África</strong> <strong>do</strong> Sul<br />
Por Aline Oliveira, Douglas Oliveira,<br />
Mariana Perbone e Victoria Köhler<br />
78. Negros encontram representação<br />
na ancestralidade egípcia<br />
Por Beatriz Araújo, Beatriz Izzo,<br />
Hanna Oliveira e Marinna Guglielmoni
8
ÁFRICA CENTRAL<br />
Holocausto no Congo deixa seis<br />
milhões de mortos<br />
Considera<strong>do</strong> o maior e mais sangrento conflito desde a Segunda Guerra, o combate na<br />
República Democrática <strong>do</strong> Congo já dura 23 anos. Milícias e grupos rebeldes interessa<strong>do</strong>s<br />
no contraban<strong>do</strong> de minérios atacam vilarejos, estupram mulheres, matam inocentes<br />
e provocam ondas de refugia<strong>do</strong>s. A comunidade internacional e a mídia silenciam.<br />
Por Daniele Rodrigues, Danielle Fernandes,<br />
Deborah Delaye e Vivian Estrela<br />
Rica em recursos naturais, a República<br />
Democrática <strong>do</strong> Congo poderia<br />
ser a representação de um<br />
paraíso tropical no coração da<br />
<strong>África</strong> não fosse a cobiça de países vizinhos<br />
e empresas internacionais por ouro, diamante,<br />
cobalto, cobre, carvão e coltan (usa<strong>do</strong> na<br />
indústria eletrônica). A disputa por minérios<br />
envolve a região numa guerra que já deixou<br />
cerca de seis milhões de mortos desde<br />
1993. O conflito, praticamente ignora<strong>do</strong> pela<br />
imprensa e a comunidade internacional, é<br />
considera<strong>do</strong> o maior holocausto da história.<br />
As chacinas, estupros e sequestros de<br />
mulheres e crianças se tornaram armas de<br />
guerra e servem para desestabilizar as comunidades,<br />
provocan<strong>do</strong> miséria e ondas<br />
de refugia<strong>do</strong>s. Cerca de 80% da população<br />
vive abaixo da linha da pobreza, com menos<br />
US$1,25 por dia. A guerra no leste <strong>do</strong> Congo<br />
está vinculada aos conflitos étnicos da vizinha<br />
Ruanda. No início da década de 1990,<br />
milhares de hutus ruandeses buscaram refúgio<br />
no leste <strong>do</strong> Congo temen<strong>do</strong> perseguições<br />
das novas forças tutsis no poder. Entre<br />
eles, estavam rebeldes hutus que haviam<br />
9
10
participa<strong>do</strong> de chacinas em Ruanda. Tropas<br />
tutsis invadiram o Congo numa caçada aos<br />
rebeldes, apoiadas por milícias de Uganda.<br />
Vilarejos locais foram toma<strong>do</strong>s por homens<br />
arma<strong>do</strong>s que até hoje controlam as ricas<br />
áreas <strong>do</strong> leste <strong>do</strong> país e lucram com o tráfico<br />
ilegal de matérias primas.<br />
No total, 200 grupos rebeldes atuam no<br />
país, entre eles o poderoso e temi<strong>do</strong> FDLR<br />
(Forças Democráticas para a Libertação de<br />
Ruanda). A principal dificuldade para conter<br />
as milícias, segun<strong>do</strong> a organização de ajuda<br />
humanitária internacional Friends of the<br />
Congo (Amigos <strong>do</strong> Congo), com base em<br />
Washington, é a falta de um governo legítimo<br />
que possa exercer autoridade e controle<br />
sobre to<strong>do</strong> o país. A ONG, criada em 2004<br />
para ajudar na busca de uma solução de<br />
paz, diz que o fim <strong>do</strong>s combates depende de<br />
maior pressão internacional sobre Ruanda e<br />
Uganda para que cessem suas intervenções<br />
destrutivas e pilhagens, além da eleição de<br />
um governo responsável e confiável.<br />
Acusa<strong>do</strong> de corrupção, o presidente <strong>do</strong><br />
Congo, Joseph Kabila, filho <strong>do</strong> ex-dita<strong>do</strong>r<br />
Laurent Kabila, está no poder desde 2001<br />
sem conseguir pacificar o país. “O Congo<br />
continua a ser rouba<strong>do</strong> por seus próprios<br />
líderes, por outros países, por governos estrangeiros,<br />
por corporações estrangeiras e<br />
instituições multilaterais, como o FMI”, disse<br />
a Friends of the Congo em entrevista a<br />
nossa reportagem.<br />
O professor de História da <strong>África</strong> da PU-<br />
C-Rio Alexandre <strong>do</strong>s Santos observa que a<br />
paz depende de uma grande vontade política,<br />
não apenas <strong>do</strong> presidente Kabila ou<br />
de seu eventual sucessor, mas de to<strong>do</strong>s os<br />
chefes de Esta<strong>do</strong> e de governo da região. Ele<br />
lembra que que a sobrevivência <strong>do</strong>s grupos<br />
arma<strong>do</strong>s se dá também pelo apoio que recebem<br />
<strong>do</strong>s países vizinhos.“O mais importante<br />
seria restabelecer essas autoridades<br />
regionais e locais para que o processo de<br />
reestruturação <strong>do</strong> país comece por elas e<br />
que se dê o devi<strong>do</strong> apoio de segurança por<br />
meio de tropas <strong>do</strong> governo ou da Monusco<br />
(Missão das Nações Unidas na República<br />
Democrática <strong>do</strong> Congo) para que se evite o<br />
me<strong>do</strong> e se restabeleça o direito de representação<br />
e de expressão”, disse o professor.<br />
Santos observa que a distância entre<br />
as regiões em conflito e a capital é apenas<br />
um <strong>do</strong>s fatores que atrapalha o controle da<br />
atuação <strong>do</strong>s grupos rebeldes. A porosidade<br />
das fronteiras, a distância dessas regiões da<br />
11
capital Kishansa, a dificuldade de acesso e<br />
a grande área florestal na qual esses grupos<br />
se escondem são grandes empecilhos, mas<br />
nada se compara, segun<strong>do</strong> ele, a falta vontade<br />
política efetiva de alguns governos em<br />
combater determina<strong>do</strong>s grupos.<br />
O jornalista Anjan Sundaram, correspondente<br />
no Congo <strong>do</strong> jornal “The New York Times”<br />
e da agência Associated Press, autor<br />
de <strong>do</strong>is livros sobre a guerra no Congo, condena<br />
a comunidade internacional por apoiar<br />
desman<strong>do</strong>s de Kabila. “Infelizmente, o mun<strong>do</strong><br />
apoia líderes congoleses que usam o<br />
Exército para manter a paz, mas são corruptos<br />
e destroem instituições nacionais. Isso<br />
apenas fortalece o ciclo de violência”, disse<br />
ele em entrevista por e-mail.<br />
Segun<strong>do</strong> o jornalista, a vida <strong>do</strong>s congoleses<br />
é vista como algo menor. “O mun<strong>do</strong><br />
não lamenta as mortes no Congo, só<br />
lamenta quan<strong>do</strong> há mortes ocidentais.<br />
Isso faz com que a violência no Congo<br />
seja legitimada.”<br />
O refugia<strong>do</strong> congolês Lubangi Muniania,<br />
produtor musical que hoje vive em<br />
Nova York, também culpa a comunidade<br />
internacional pelos acontecimentos. O jovem<br />
congolês perdeu familiares e amigos<br />
na guerra e teve parentes desloca<strong>do</strong>s<br />
por causa <strong>do</strong>s combates. “Há uma única<br />
coisa que importa para a comunidade internacional:<br />
o dinheiro da mineração. Eu<br />
aprendi que o meu povo e os nossos sonhos<br />
não importam.”<br />
12
13 OLHARES<br />
<strong>do</strong>MUNDO
Corrupção e cobiça impedem a<br />
paz, lamenta brasileiro que coman<strong>do</strong>u<br />
a missão da ONU no Congo<br />
Em entrevista por videoconferência a “<strong>Olhares</strong> <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>”, o general Carlos Alberto<br />
Santos Cruz, atualmente em Brasília, critica a falta de esforços das lideranças políticas<br />
locais e internacionais para por fim aos conflitos na República Democrática <strong>do</strong> Congo.<br />
Por Ane Mace<strong>do</strong>,<br />
Bruna Pinheiro e Juliana Fernandes<br />
O<br />
general Carlos Alberto Santos<br />
Cruz liderou as forças de paz da<br />
ONU na República Democrática<br />
<strong>do</strong> Congo por <strong>do</strong>is anos e meio,<br />
de junho de 2013 a dezembro de 2015, comandan<strong>do</strong><br />
um efetivo de 20 mil solda<strong>do</strong>s. O<br />
general foi escolhi<strong>do</strong> para a missão depois<br />
<strong>do</strong> sucesso na operação de paz <strong>do</strong> Haiti, que<br />
contou com tropas brasileiras. Quan<strong>do</strong> Santos<br />
Cruz chegou ao Congo com uma brigada<br />
de intervenção, o país estava sen<strong>do</strong> ameaça<strong>do</strong><br />
pelo grupo rebelde M-23, milícia guerrilheira<br />
que instaurou o terror no país africano<br />
com o apoio de Ruanda e Uganda. O general<br />
conta que, no último ano em que esteve<br />
lá, o M-23 matou cerca de 500 pessoas com<br />
facões e macha<strong>do</strong>s. Os corpos estavam decapita<strong>do</strong>s<br />
ou mutila<strong>do</strong>s. Vilarejos inteiros foram<br />
dizima<strong>do</strong>s para o espólio de minérios e<br />
outros recursos naturais. A brigada de intervenção,<br />
comandada pelo brasileiro, conseguiu<br />
fazer com que os rebeldes recuassem,<br />
mas o país continua mergulha<strong>do</strong> em violência.<br />
Em entrevista a “<strong>Olhares</strong> <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>” por<br />
14
15
videoconferência, o general, que retornou a<br />
Brasília no final da operação contra o M-23,<br />
relatou o que vivenciou no Congo.<br />
Por que esse conflito é tão sangrento, com<br />
os rebeldes massacran<strong>do</strong> a população<br />
indefesa?<br />
É uma história muito longa de agressão e<br />
opressão civil. Os grupos arma<strong>do</strong>s vêm de<br />
uma herança onde os mais fortes podem<br />
fazer o que quiserem com os mais fracos,<br />
são o senhor da vida e da morte <strong>do</strong>s mais<br />
fracos. Assim foi na escravidão, assim foi<br />
no colonialismo e assim continua. Estupram<br />
mulheres, entram na casa e comem<br />
o que querem, pegam tu<strong>do</strong>, botam fogo na<br />
casa. Sequestram e levam as crianças para<br />
o grupo arma<strong>do</strong>. Fazem uma distorção histórica<br />
de violência e impunidade. E, para o<br />
grupo <strong>do</strong>minar aquele ambiente, aquelas vilas<br />
que controla, impõe o terror. E o terror é<br />
para to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Então, as pessoas mais<br />
vulneráveis, mais fracas, sofrem muito. Por<br />
isso, as pessoas arrumam tu<strong>do</strong>, e fogem,<br />
vão para o campo de refugia<strong>do</strong>s. Nele, há<br />
comida e existe uma segurança fornecida<br />
pelo Exército. Mas, para elas, é uma realidade<br />
muito triste, pois no campo de refugia<strong>do</strong>s<br />
não existe nada que seja seu. Você tem uma<br />
barraca de palha; tu<strong>do</strong> o que você tem é a<br />
roupa <strong>do</strong> corpo, e a sua próxima refeição depende<br />
de quem vai te dar.<br />
Há muitas críticas à comunidade internacional<br />
por falta de ajuda às populações<br />
vulneráveis. Como o senhor analisa a ajuda<br />
humanitária levada ao Congo?<br />
Tem as agências de fun<strong>do</strong>s de programas<br />
e as ONGs. A coordenação e a visibilidade<br />
são precárias, quase zero. Há algumas<br />
muito boas e outras não. A “Médicos sem<br />
Fronteiras” é uma das boas. A administração<br />
deles é extremamente boa. O dinheiro<br />
que recebem, gastam em torno de 10% com<br />
a própria administração. Então eles conseguem<br />
ser produtivos. Um outro problema é<br />
de investimento em infraestrutura. Eu ajudei<br />
muito as ONGs. Muitas têm pessoas muito<br />
novas que não sabem o que fazer, pois não<br />
têm experiência, mas querem ajudar. Todas<br />
as agências e ONGs, tinham que usar 30%<br />
de seu dinheiro em infraestrutura. Pois sem,<br />
não há acesso. Não adianta só ter boa von-<br />
16
tade. Se construírem um poço de água perto<br />
da casa de uma mulher que anda 5 km com<br />
um galão de 20 litros de água na cabeça, já<br />
vai melhorar. Ela pode andar 2 km. Tem que<br />
investir até o problema ser resolvi<strong>do</strong>, se não,<br />
não será reduzi<strong>do</strong> nunca. E quem desvia verba<br />
tem que ser preso. A prestação de contas<br />
devia estar na internet para to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ver.<br />
Como é a vida <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Congo<br />
nas regiões que não estão enfrentan<strong>do</strong><br />
conflitos?<br />
O Congo é um país que tem algumas cidades<br />
muito grandes. A capital, por exemplo,<br />
tem 10 milhões de habitantes. É uma cidade<br />
moderna, com tu<strong>do</strong> o que você imagina,<br />
com telefonia celular melhor que a nossa. E<br />
há algumas cidades grandes, como Goma,<br />
que tem de tu<strong>do</strong>, como restaurantes muito<br />
bons. Há muita gente com muito dinheiro,<br />
mas a grande massa da população é extremamente<br />
pobre. Parece que to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
tem uma criança. To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> anda com<br />
um neném amarra<strong>do</strong> nas costas, carregan<strong>do</strong><br />
lenha na cabeça, galão de água… Estão<br />
sempre transportan<strong>do</strong> alguma coisa, caminhan<strong>do</strong><br />
quilômetros e quilômetros. É uma<br />
vida muito sofrida. Na zona rural, nessas<br />
vilas onde existem grupos arma<strong>do</strong>s em<br />
volta, tem problema de água, de infraestrutura,<br />
não tem escola, não tem saúde, não<br />
tem nada.<br />
Quais são os caminhos para a paz no<br />
Congo?<br />
Isso é muito difícil. Em primeiro lugar, o que<br />
eu vejo internamente é que as disputas<br />
pelo poder são muito acirradas, complicadas,<br />
ela é mais importante que as pessoas.<br />
Outra coisa, na área internacional, [obter]<br />
ajuda internacional financeira é mais importante<br />
que [ajudar]as pessoas. Não só<br />
no Congo, isso tem que melhorar nos outros<br />
países também. As pessoas têm que<br />
ter mais motivações <strong>do</strong>s que os objetivos<br />
políticos. Por exemplo na Síria, onde os<br />
objetivos políticos eram tirar o Bashar Al<br />
Asaad; para isso, é preciso destruir o país?<br />
Matar 300 mil civis? Milhões de refugia<strong>do</strong>s?<br />
Não tem saída. É sim um sofrimento<br />
humano, mas com o qual você não pode<br />
se acostumar. Tem que ser inconforma<strong>do</strong><br />
com aquilo que se vê to<strong>do</strong>s os dias, para<br />
querer mudar.<br />
17
Qual é a sua opinião sobre o silêncio da imprensa<br />
internacional sobre a guerra no Congo?<br />
Há muitas coberturas na Síria e poucas<br />
sobre o massacre de congoleses.<br />
A imprensa é que ela é muito pobre nessa parte<br />
de cobertura internacional. Há um centro de influência<br />
<strong>do</strong> jornalismo. Por exemplo: “New York<br />
Times”, “Washington Post”, “Miami Herald”, na<br />
televisão, “CNN”. Na França, há o “Le Monde”.<br />
Na Inglaterra, a “BBC”. E o Brasil, infelizmente,<br />
fica muito afasta<strong>do</strong> dessa cobertura internacional.<br />
Na <strong>África</strong>, só as grandes redes têm correspondentes.<br />
A cobertura jornalística da <strong>África</strong> é<br />
feita por veículos de comunicação <strong>do</strong>s EUA, da<br />
Europa e pela Al Jazeera (<strong>do</strong> Catar). A Europa<br />
(cobre) porquê tem 14 países na <strong>África</strong> que falam<br />
francês. No Brasil a mídia chamou atenção<br />
um pouco para o Congo porque eu fui para lá.<br />
Às vezes, morre oito ou dez em um atenta<strong>do</strong><br />
terrorista na Bélgica. Na França, Alemanha ou<br />
seja onde for, tem uma grande cobertura internacional.<br />
Lá 50 morrem em um dia ou mais e<br />
não sai em nenhum jornal. Ou seja, nossa imprensa<br />
é muito isolada <strong>do</strong>s acontecimentos<br />
internacionais. Ela compra alguns programas<br />
como o Big Brother, que tem 15 edições, 20,<br />
mas não faz cobertura internacional séria.<br />
Há previsão de eleições para o final<br />
de 2016. Seria o começo de uma solução<br />
para a paz?<br />
No Congo, este ano, está prevista<br />
uma eleição para Presidência, mas<br />
ainda está indefini<strong>do</strong> se vai acontecer<br />
ou não. Está previsto na Constituição,<br />
mas, para fazer a eleição, tem uma<br />
distância. Nos últimos cinco anos,<br />
não houve cadastramento eleitoral.<br />
Então to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que tem ou fez 18<br />
anos nestes últimos cinco anos está<br />
fora das eleições porque não tem título<br />
de eleitor. Deixa-se de fora 5 milhões<br />
de pessoas. Isso vai gerar uma<br />
frustração. É onde está a energia, a<br />
força. Você olha as manifestações<br />
na rua, a quantidade de gente nova<br />
queren<strong>do</strong> participar <strong>do</strong> processo. Fazer<br />
eleição, mas não fazer o cadastramento<br />
num pais de 75 milhões de<br />
habitantes, que é a metade <strong>do</strong> Brasil<br />
em tamanho e que não tem estrada,<br />
não tem nada, é muito complica<strong>do</strong>.<br />
É tu<strong>do</strong> muito difícil. Então, a chance<br />
de ter violência no processo político<br />
é muito grande.<br />
18
Entenda<br />
o<br />
Congo<br />
A República Democrática <strong>do</strong> Congo<br />
passou a ser patrimônio pessoal <strong>do</strong> rei<br />
Belga Leopol<strong>do</strong> II em 1885. Movi<strong>do</strong> pela ganância,<br />
o monarca ordenou atrocidades na<br />
exploração das riquezas naturais da região,<br />
principalmente o látex e o marfim. Submeti<strong>do</strong>s<br />
ao trabalho escravo na extração, os congoleses<br />
carregavam cargas pesadíssimas e<br />
eram brutalmente açoita<strong>do</strong>s e castiga<strong>do</strong>s<br />
quan<strong>do</strong> não conseguiam cumprir as metas<br />
estabelecidas pelos feitores. Muitos tiveram<br />
pés e mãos decepa<strong>do</strong>s.<br />
Entre 1890 e 1910, 8 milhões de africanos<br />
foram mortos. As denúncias <strong>do</strong> genocídio<br />
fizeram com que o rei perdesse o território,<br />
transferi<strong>do</strong> para o <strong>do</strong>mínio da Bélgica, mas<br />
os abusos continuaram.<br />
Em 1960, a busca pela independência<br />
foi marcada por violência e muitas mortes.<br />
Presidentes autoritários permaneceram no<br />
poder, manten<strong>do</strong> privilégios para seus correligionários<br />
em meio a um cenário de corrupção<br />
e pobreza. O massacre de tutsis por<br />
hutus, em 1994, em Ruanda, trouxe ainda<br />
mais sofrimento. O governo de Ruanda invadiu<br />
o Congo em busca <strong>do</strong>s rebeldes hutus<br />
responsáveis pelos atos, inician<strong>do</strong> intensos<br />
conflitos arma<strong>do</strong>s. A vizinha Uganda também<br />
financiou muitos grupos rebeldes em<br />
apoio a repressão contra os hutus.<br />
Atualmente, 80 grupos rebeldes e milícias<br />
atuam no leste, perto da fronteira com Ruanda<br />
e Uganda. Há uma forte disputa pelos<br />
recursos mineiras da região, com expulsão<br />
e massacre de mora<strong>do</strong>res locais. A violência,<br />
que inclui saque de vilarejos, chacinas,<br />
estupros e sequestros de meninos, usa<strong>do</strong>s<br />
como solda<strong>do</strong>s, e de meninas, usadas como<br />
escravas sexuais, provocou o deslocamento<br />
de quase 2,5 milhoes de pessoas.<br />
19<br />
OLHARES<br />
<strong>do</strong>MUNDO
20
ÁFRICA SUBSAARIANA<br />
Investimentos chineses ajudam a<br />
<strong>África</strong>, mas mantêm o continente<br />
subdesenvolvi<strong>do</strong>, dizem analistas<br />
Chineses injetam bilhões de dólares em países africanos em busca <strong>do</strong>s recursos naturais<br />
necessários ao seu crescimento, porém, a fraca indústria local pode ser destruída<br />
pela concorrência com os produtos baratos <strong>do</strong> gigante asiático.<br />
Por: Daniel Zanata,<br />
Raphael Taets e Victor Silva<br />
Há quatorze anos, a China ocupou<br />
o lugar <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s<br />
como o principal parceiro econômico<br />
e comercial da <strong>África</strong>. Países<br />
como Zimbábue, Angola, Gana, Zâmbia,<br />
Sudão e Etiópia são hoje grandes parceiros<br />
<strong>do</strong>s asiáticos, que avançam pelo continente<br />
africano em busca de recursos naturais,<br />
como petróleo, minérios e terras cultiváveis<br />
para garantir o próprio crescimento. Analistas<br />
ouvi<strong>do</strong>s por “<strong>Olhares</strong> <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>” dizem<br />
que a parceira é altamente benéfica para o<br />
desenvolvimento <strong>do</strong> continente, mas pode<br />
manter a <strong>África</strong> como um prove<strong>do</strong>r de matérias<br />
primas, dificultan<strong>do</strong> a industrialização<br />
local.<br />
A China anunciou, recentemente, um investimento<br />
de cerca de US$ 70 bilhões no<br />
continente africano, valor superior ao PIB<br />
anual de países como Grécia e Portugal<br />
(2014). Na última década, segun<strong>do</strong> uma<br />
pesquisa da organização AidData e <strong>do</strong> Center<br />
for Global Development (CGD), o gigante<br />
asiático já havia investi<strong>do</strong> US$ 75 bilhões<br />
21
em aproximadamente <strong>do</strong>is mil projetos que<br />
abrangem desde o desenvolvimento de infraestrutura<br />
e indústria, até a redução da pobreza<br />
e melhorias na saúde pública.<br />
Robert Rotberg, professor da Universidade<br />
de Harvard, especializa<strong>do</strong> em governanças<br />
globais, direitos humanos, democracia<br />
e <strong>África</strong> Subsaariana, observa que a prosperidade<br />
da <strong>África</strong> depende de um contínuo<br />
crescimento chinês, além de aumentos<br />
cada vez maiores de repasse em forma de<br />
investimentos no continente. Sem o capital<br />
injeta<strong>do</strong> pelos asiáticos, a <strong>África</strong>, como um<br />
to<strong>do</strong>, voltaria a uma posição de difícil evolução<br />
e desenvolvimento social e econômico,<br />
um futuro com poucas perspectivas ou,<br />
como nas palavras <strong>do</strong> professor, “sombrio”.<br />
Ele, no entanto, adverte que o capital chinês<br />
traz também enormes desafios para o continente,<br />
como a possibilidade de os produtos<br />
baratos da China destruírem a já muito enfraquecida<br />
e pouco desenvolvida indústria<br />
local.<br />
A geração de empregos, ao invés de incentivada,<br />
seria cada vez mais desmotivada.<br />
Para o professor, “o resulta<strong>do</strong> disso seria<br />
o sofrimento enorme que as indústrias locais<br />
enfrentariam”, com cada vez mais pequenos<br />
e médios negócios sen<strong>do</strong> fecha<strong>do</strong>s<br />
e funcionários sen<strong>do</strong> demiti<strong>do</strong>s. A economia<br />
<strong>do</strong>s países, ao invés de prosperar nos mais<br />
diversos ramos, ficaria, assim, restrita somente<br />
à agricultura.<br />
“A China falha em não transferir tecnologia.<br />
A China não gosta de africanos. Ela está<br />
mais interessada na influência que conseguirá<br />
<strong>do</strong> que na melhoria <strong>do</strong> continente africano”,<br />
disse o professor em entrevista por<br />
e-mail à nossa reportagem.<br />
Altair Maia, economista especializa<strong>do</strong> em<br />
comércio exterior, diretor <strong>do</strong> site Africanner<br />
e autor <strong>do</strong> livro <strong>África</strong>, um negócio da China,<br />
salienta que os interesse da China na <strong>África</strong><br />
tem visão de longo prazo: “Somente a presença<br />
<strong>do</strong>s chineses em território africano já<br />
seria motivo para largo consumo <strong>do</strong>s produtos<br />
chineses”. Os negócios, desta forma, se<br />
tornam altamente lucrativos para os asiáticos,<br />
uma vez que eles conseguirão adquirir<br />
matérias primas por preços baixos e ainda<br />
expandir o comércio de seus produtos industrializa<strong>do</strong>s,<br />
aumentan<strong>do</strong> o lucro.<br />
Os investimentos da China na <strong>África</strong> estão<br />
diretamente relaciona<strong>do</strong>s às necessidades<br />
<strong>do</strong> país por terras agrícolas e recursos<br />
naturais. O acelera<strong>do</strong> crescimento econô-<br />
22
23
mico fez da China um <strong>do</strong>s mais potentes<br />
países <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> nos últimos anos. A sua<br />
expansão comercial e investimentos na indústria,<br />
soma<strong>do</strong> a sua enorme população,<br />
que beira a casa <strong>do</strong> 1,4 bilhão de pessoas,<br />
também passou a exigir mais investimentos<br />
governamentais. Isso porque a China já não<br />
consegue mais dar conta da produção de<br />
alimentos para consumo interno e suas fábricas<br />
demandam muita matéria prima, que<br />
precisa ser comprada de outras nações.<br />
As parcerias na área de agricultura tem<br />
muita importância por conta <strong>do</strong> alto número<br />
de habitantes que a China precisa alimentar.<br />
A população chinesa tem deixa<strong>do</strong> o campo<br />
para trabalhar nas grandes cidades, o<br />
que poderá ocasionar uma crise alimentícia<br />
em pouco tempo – há menos de 25 anos,<br />
80% da população morava no meio rural.<br />
Em 2013, já são 60% nos centros urbanos e<br />
apenas 40% vivem no meio rural. Para evitar<br />
este problema, os chineses precisam de novas<br />
alternativas de fornece<strong>do</strong>res de alimentos,<br />
como a <strong>África</strong>, que possui terras férteis<br />
e território vasto, poden<strong>do</strong> servir como um<br />
grande celeiro para a China, assim como a<br />
América Latina é para boa parte <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
No setor industrial, segun<strong>do</strong> os especialistas,<br />
existem tópicos que precisam ser segui<strong>do</strong>s<br />
para que os investimentos chineses<br />
na <strong>África</strong> sejam bem aproveita<strong>do</strong>s. Há, principalmente,<br />
a necessidade de transferência<br />
de tecnologia, recursos financeiros e de mão<br />
de obra especializada, que colocariam as<br />
novas indústrias para funcionar e iniciariam<br />
a movimentação <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> no continente.<br />
Mas quem também se beneficiaria com isso<br />
é o setor de infraestrutura, que poderia se<br />
desenvolver com o investimento chinês.<br />
Mas há toda uma questão envolven<strong>do</strong> a<br />
transferência de tecnologia da China para o<br />
continente africano: se as relações comerciais<br />
entre os <strong>do</strong>is são tão intensas, por que<br />
não se vê essa cooperação para o desenvolvimento<br />
tecnológico?<br />
A geração de empregos para os africanos,<br />
apesar <strong>do</strong>s avanços, ainda é uma incógnita,<br />
diz Maia. Isso porque, a cada ano, mais chineses<br />
chegam no continente, forman<strong>do</strong> espécies<br />
de colônias na <strong>África</strong>. A necessidade<br />
de mão de obra especializada poderia gerar<br />
uma concorrência desigual entre os povos,<br />
manten<strong>do</strong> os nativos sem condições de<br />
prosperarem financeiramente.<br />
Para o economista, a pergunta, que somente<br />
será respondida em cem ou duzen-<br />
24
25
tos anos é: “Teriam as jovens e incipientes<br />
nações africanas força suficiente para segurar<br />
essa ‘onda amarela’, ou nesse espaço<br />
de tempo veríamos o continente negro se<br />
transformar em continente amarelo?”<br />
Invasão pela moeda<br />
Os chineses também pretendem usar sua<br />
moeda, o yuan, para aumentar a influência<br />
na <strong>África</strong>. A expansão para novos merca<strong>do</strong>s<br />
fortaleceria a divisa chinesa, assemelhan<strong>do</strong>-<br />
-a ao dólar e ao euro, que têm aceitação mundial.<br />
“À medida que a influência chinesa for<br />
aumentan<strong>do</strong>, num país ou no outro, haverá a<br />
necessidade de se agilizar as negociações,<br />
a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong>-se a moeda onde o comércio for<br />
mais forte”, explica Maia. Para ele, esta seria<br />
uma boa decisão, principalmente para os<br />
asiáticos, pois “no médio e longo prazo, esse<br />
é o caminho para a consolidação da presença<br />
chinesa no continente.”<br />
Países africanos, como o Zimbábue,<br />
acham positiva a a<strong>do</strong>ção da divisa chinesa.<br />
Em 2009, a moeda zimbabuana atingiu altos<br />
índices de inflação, levan<strong>do</strong> o país a utilizar<br />
o dólar norte-americano e abrir mão <strong>do</strong> dólar<br />
local. “O Zimbábue sofre de um problema<br />
de escassez de cédulas em sua economia,<br />
então ele aceita notas de outros oito<br />
países, incluin<strong>do</strong> a China, como moeda<br />
corrente”, explica Mark Ellyne, professor<br />
da Universidade <strong>do</strong> Cabo, especializa<strong>do</strong><br />
em política macroeconômica em países<br />
de baixa renda, política monetária e cambial.<br />
Recentemente, o Zimbábue chegou a<br />
um acor<strong>do</strong> que prevê o perdão de uma<br />
dívida de 40 milhões de dólares em troca<br />
da a<strong>do</strong>ção da moeda chinesa. Além<br />
<strong>do</strong> dólar americano e <strong>do</strong> yuan, o país<br />
tem como moedas oficiais o euro, a libra<br />
esterlina (Reino Uni<strong>do</strong>), o yen (Japão), o<br />
rand (<strong>África</strong> <strong>do</strong> Sul), o pula (Botswana), a<br />
rupia (Índia) e o dólar australiano.<br />
Para Ellyne, os países que têm a economia<br />
sob controle não gostariam de<br />
substituir suas moedas. “Essa ‘<strong>do</strong>larização’<br />
geralmente ocorre porque a moeda<br />
nacional tem um crescimento rápi<strong>do</strong> em<br />
valor e os residentes não querem segurá-<br />
-la”. Com isso, o sistema multimonetário<br />
<strong>do</strong> Zimbábue não é interessante para os<br />
outros países, que preferem converter as<br />
moedas estrangeiras em bancos comerciais<br />
na taxa de câmbio da moeda local.<br />
26<br />
OLHARES<br />
<strong>do</strong>MUNDO
ÁFRICA ORIENTAL<br />
Após uma década de intensas relações<br />
comerciais com Moçambique,<br />
Brasil interrompe investimentos<br />
Durante o governo Lula, o país buscou uma aproximação maior com a <strong>África</strong>, mas a<br />
crise política e econômica <strong>do</strong> governo Dilma alterou este cenário. Com uma retração de<br />
20% nas trocas comerciais, empresas como a Vale vendem ativos.<br />
Por Anne Caroline Gonçalves, Bruno Leão,<br />
Cibele Mendes, Rebeca Bergue e Victor Reche<br />
A<br />
crise econômica e política brasileira<br />
tem repercuti<strong>do</strong> em suas<br />
relações exteriores, afetan<strong>do</strong> diretamente<br />
o relacionamento com<br />
países africanos. Muitas empresas brasileiras<br />
que a partir <strong>do</strong> governo Lula (2003-2011)<br />
iniciaram ou intensificaram projetos no continente<br />
agora encerram seus investimentos,<br />
manten<strong>do</strong> apenas as obras já iniciadas.<br />
Uma das grandes responsáveis pelas iniciativas<br />
desenvolvidas na cidade de Tete,<br />
no noroeste de Moçambique, a minera<strong>do</strong>ra<br />
brasileira Vale chegou a vender 15% de seus<br />
ativos de carvão na região para a japonesa<br />
Mitsui & CO. Ao mesmo passo, países como<br />
China e Índia vem conquistan<strong>do</strong> território, figuran<strong>do</strong><br />
entre os principais investi<strong>do</strong>res <strong>do</strong><br />
continente.<br />
Os chineses tornaram-se o maior parceiro<br />
comercial africano em 2012, com investimentos<br />
em extração de minério, petróleo<br />
e em obras de infraestrutura. Para Celso<br />
27
28
Marcondes, coordena<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s projetos de<br />
<strong>África</strong> <strong>do</strong> Instituto Lula, o interesse chinês é<br />
preocupante. “A China tem uma visão extremamente<br />
pragmática. Em geral, se oferece<br />
para construir algo que os países africanos<br />
precisam, como hospitais ou aeroportos, e<br />
em troca pede para explorar determinadas<br />
regiões <strong>do</strong> país, em busca de produtos agrícolas<br />
e petróleo”.<br />
Paulo Rage, diretor da Câmara de Comércio<br />
Brasil-Moçambique, enxerga “um potencial<br />
de merca<strong>do</strong> em crescimento na <strong>África</strong>”.<br />
Ele explica que o desenvolvimento de projetos<br />
brasileiros no território moçambicano<br />
traz um retorno significativo, apesar <strong>do</strong> pequeno<br />
merca<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r e <strong>do</strong> baixo Produto<br />
Interno Bruto (PIB). “Em Moçambique,<br />
a concorrência é pequena. Isso possibilita<br />
um melhor aproveitamento <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, levan<strong>do</strong><br />
grandes empresas (internacionais) a<br />
investirem lá”, completa Rage.<br />
Além das questões econômicas, a relação<br />
entre os <strong>do</strong>is países permite uma troca<br />
cultural e de experiências nas áreas de educação,<br />
saúde e assistência social, melhoran<strong>do</strong><br />
a imagem <strong>do</strong> Brasil no exterior. Já Moçambique,<br />
ganha um aprendiza<strong>do</strong> por meio<br />
da experiência brasileira, além de oportunidades<br />
de desenvolvimento e emprego. Segun<strong>do</strong><br />
Marcondes, este é o diferencial brasileiro<br />
no continente. “O maior produto que o<br />
Brasil tem de exportação são suas políticas<br />
públicas”, explica.<br />
Um exemplo claro disso é o Programa de<br />
Aquisição de Alimentos na <strong>África</strong>, com um<br />
modelo semelhante aos implanta<strong>do</strong>s no<br />
Brasil. Nele, o governo moçambicano oferece<br />
assistência social e financiamento aos<br />
produtores rurais, compran<strong>do</strong> essa mesma<br />
produção para distribuir em merendas escolares,<br />
geran<strong>do</strong> benefícios aos <strong>do</strong>is setores.<br />
Entretanto, nem sempre os moçambicanos<br />
veem com bons olhos as iniciativas<br />
estrangeiras no país. O mora<strong>do</strong>r de Moatize,<br />
Mohomed Rafique, é um exemplo claro disso.<br />
Em entrevista por e-mail, o jornalista da<br />
Radio Moçambique reclama que os projetos<br />
desenvolvi<strong>do</strong>s por empresas estrangeiras<br />
visam apenas o lucro, haven<strong>do</strong> pouca preocupação<br />
com a população.<br />
Alguns empreendimentos brasileiros em<br />
Moçambique também geram desconfiança.<br />
O ProSavana, por exemplo, é um programa<br />
desenvolvi<strong>do</strong> pela Embrapa (Empresa Brasileira<br />
de Pesquisa Agropecuária) em parceria<br />
com o Japão, ganhan<strong>do</strong> destaque como um<br />
29
<strong>do</strong>s principais projetos brasileiros em andamento.<br />
Vários agricultores temem, no entanto,<br />
perder a soberania sobre suas terras.<br />
O projeto busca implantar um modelo de<br />
produção agrícola que destaque a produtividade<br />
por meio <strong>do</strong> uso de tecnologia no norte<br />
de Moçambique, envolven<strong>do</strong> 14 milhões de<br />
hectares. “De um la<strong>do</strong> se tem um apetite das<br />
grandes empresas preocupadas exclusivamente<br />
em ganhar dinheiro, queren<strong>do</strong> que<br />
parte desta produção seja levada aos seus<br />
países. Por outro la<strong>do</strong>, tem a necessidade de<br />
se administrar milhares de pequenos produtores<br />
que precisam adquirir confiança no<br />
processo e ter de fato o acor<strong>do</strong> cumpri<strong>do</strong>”,<br />
explica Marcondes.<br />
A presença da Vale também causou protestos<br />
no país. Aproximadamente 400 pessoas<br />
bloquearam uma estrada, em 2013,<br />
contra a realocação de moradias promovida<br />
pela empresa para a construção de uma<br />
mina. A indenização oferecida às famílias foi<br />
o equivalente a R$4.000. Para Marcondes<br />
“criou-se uma situação de pressão muito<br />
grande na Vale e fez com que ela perdesse<br />
prestígio não só nacionalmente como até internacionalmente”.<br />
Apesar <strong>do</strong>s percalços, a imagem <strong>do</strong> Brasil<br />
em Moçambique é positiva. João Bosco,<br />
presidente <strong>do</strong> Instituto Brasil-<strong>África</strong>, ressalta<br />
que o governo brasileiro tem promovi<strong>do</strong> esforços<br />
para esclarecer as questões em disputa.<br />
“Os acidentes de percurso podem ser<br />
resolvi<strong>do</strong>s e eu tenho confiança de que os<br />
vários interesses de ambos os países serão<br />
coloca<strong>do</strong>s sobre a mesa”, acrescenta.<br />
Foi durante o governo Lula que as relações<br />
entre Brasil e <strong>África</strong> se intensificaram.<br />
O Ministério das Relações Exteriores a<strong>do</strong>tou<br />
uma política voltada para os países africanos<br />
e sul-americanos, mudan<strong>do</strong> o cenário<br />
comercial brasileiro, uma vez que sua política<br />
externa era centrada na Europa e na<br />
América <strong>do</strong> Norte.<br />
A intenção, segun<strong>do</strong> o coordena<strong>do</strong>r de<br />
<strong>África</strong> <strong>do</strong> Instituto Lula, Celso Marcondes,<br />
era deixar de la<strong>do</strong> a submissão que havia<br />
nas políticas entre o Brasil e os países europeus<br />
ou norte-americanos, procuran<strong>do</strong><br />
novos parceiros comerciais.<br />
Porém, com a presidente Dilma, esta relação<br />
com o continente africano acabou perden<strong>do</strong><br />
força. A política externa se modificou<br />
30
e o empenho para manter este canal não foi<br />
manti<strong>do</strong>. “Dilma tem um perfil bastante diferente<br />
<strong>do</strong> Lula, ela é mais uma gestora, uma<br />
técnica. Uma pessoa mais vinculada ao trabalho<br />
<strong>do</strong> cotidiano <strong>do</strong> que alguém com carisma,<br />
força e com nome internacional”, afirma<br />
Marcondes.<br />
Além disso, a atual situação política <strong>do</strong><br />
Brasil gera uma imagem negativa <strong>do</strong> país<br />
para parceiros comerciais. Isto é um agravante<br />
que dificulta a gestão da atual presidente,<br />
fazen<strong>do</strong> com que a política se volte<br />
para as questões internas. Para Bosco, é<br />
importante que “se resolva internamente, de<br />
forma endógena, os problemas que<br />
o país tem, pois, o mun<strong>do</strong> olha para<br />
isso com um certo cuida<strong>do</strong>”.<br />
De janeiro a março deste ano,<br />
houve uma retração de 20,1% no intercâmbio<br />
comercial brasileiro com<br />
a <strong>África</strong> em relação à 2015, evidencian<strong>do</strong><br />
as dificuldades econômicas<br />
que o país tem enfrenta<strong>do</strong>. Somada<br />
à crise política e a mudança na<br />
estratégia de governo, temos um<br />
cenário que explica o desaquecimento<br />
da cooperação entre Brasil<br />
e <strong>África</strong>.<br />
31<br />
OLHARES<br />
<strong>do</strong>MUNDO
Brasil ajuda Moçambique<br />
na luta contra o HIV<br />
Com apoio da Fundação Oswal<strong>do</strong> Cruz e de pesquisa<strong>do</strong>res e médicos<br />
brasileiros, moçambicanos conseguem deter a <strong>do</strong>ença, que já chegou a<br />
atingir 20% da população, mas especialistas dizem que falta de vontade<br />
política e cultura local ainda dificultam o trabalho nos vilarejos.<br />
Por Beatriz Benfatti,<br />
Rodrigo Bitar e Sonia Cury<br />
Forte no combate à AIDS, o Brasil<br />
é nome certo no cenário mundial<br />
quan<strong>do</strong> se trata de pesquisas e<br />
formas de tratamento da <strong>do</strong>ença,<br />
principalmente na <strong>África</strong>, onde vírus HIV<br />
ainda representa uma grande ameaça. Em<br />
Moçambique a epidemia atinge cerca de um<br />
milhão e seiscentas mil pessoas, mais de 5%<br />
da população. Mas já foi muito pior. Chegou<br />
a 20% no inicio <strong>do</strong>s anos 2000. Atualmente,<br />
a faixa etária mais afetada está entre 19 e 25<br />
anos, com 11,5%. Com a ajuda da Fundação<br />
Oswal<strong>do</strong> Cruz (Fiocruz) e de pesquisa<strong>do</strong>res<br />
e médicos voluntários brasileiros, a <strong>do</strong>ença<br />
começa a ser controlada.<br />
Atualmente, Moçambique compra remédios<br />
antirretrovirais mais baratos produzi<strong>do</strong>s<br />
no Brasil graças a quebra de patentes.<br />
A Farmanguinhos, fabricante <strong>do</strong>s medicamentos,<br />
<strong>do</strong>a 226 milhões de unidades desses<br />
por ano para o país, benefician<strong>do</strong> cerca<br />
de 2,7 milhões de pessoas. Além disso, a<br />
Fiocruz está investin<strong>do</strong> desde 2009 na construção<br />
de uma fábrica de antirretrovirais e<br />
32
33
na formação de profissionais que possam<br />
atuar nelas para acelerar a distribuição <strong>do</strong>s<br />
medicamentos. Nas comunidades, a grande<br />
contribuição brasileira se da por meio<br />
de voluntários no programa Médicos Sem<br />
Fronteiras (MSF), que desde 2001 apoia o<br />
Ministério da Saúde moçambicano na oferta<br />
de cuida<strong>do</strong>s a pessoas viven<strong>do</strong> com HIV. O<br />
trabalho inclui a atenção direta a pacientes,<br />
ajuda no treinamento de equipes locais e a<br />
manutenção de laboratórios que realizam<br />
exames de carga viral, fundamentais para<br />
que se saiba se o tratamento com antirretrovirais<br />
está sen<strong>do</strong> segui<strong>do</strong> pelos pacientes<br />
e se está funcionan<strong>do</strong>.<br />
Em Moçambique, uma em cada três pessoas<br />
aban<strong>do</strong>na o tratamento antirretroviral<br />
depois de um ano. O país ainda é majoritariamente<br />
rural e muitas pessoas moram<br />
em vilarejos isola<strong>do</strong>s, com dificuldade de se<br />
locomover até os postos de saúde. Isso faz<br />
com que 41% <strong>do</strong>s moçambicanos não tenham<br />
acesso aos medicamentos.<br />
“O que as pessoas em tratamento com<br />
antirretrovirais mais precisam não são só<br />
medicamentos, mas também conselheiros<br />
que conheçam suas realidades diárias e<br />
possam apoiá-las para superar obstáculos<br />
para aderir ao tratamento e permanecer sob<br />
cuida<strong>do</strong>s efetivos”, disse Saar Baert, coordena<strong>do</strong>ra<br />
<strong>do</strong> apoio a pacientes de Médicos<br />
Sem Fronteiras, em entrevista por e-mail a<br />
nossa reportagem.<br />
Na província de Tete, no noroeste <strong>do</strong> país,<br />
uma das estratégias desenvolvidas pelo<br />
MSF para aumentar a adesão ao tratamento<br />
foi a criação de grupos de apoio comunitários,<br />
forma<strong>do</strong>s por pacientes de um mesmo<br />
vilarejo. Eles se revezam na ida mensal aos<br />
postos de saúde e incentivam uns aos outros<br />
a persistir no tratamento. Quem vai ao<br />
posto apanha os medicamentos para to<strong>do</strong><br />
o grupo e aproveita para fazer seus exames<br />
de avaliação. Até o fim de 2014, mais de<br />
10.500 pessoas participavam desses grupos.<br />
Pesquisas realizadas desde os anos<br />
1990, pelo Centro de Estu<strong>do</strong>s Africanos da<br />
Universidade Eduar<strong>do</strong> Mondlane, em parceria<br />
com o Conselho Nacional de Combate a<br />
Sida e Ministérios, indicam, no entanto, que<br />
ainda falta vontade política, investimento e<br />
acompanhamento.<br />
“Há muita teoria e pouca prática”, afirma<br />
Isabel Maria Casimiro, pesquisa<strong>do</strong>ra no<br />
Centro de Estu<strong>do</strong>s Africanos na cidade de<br />
Maputo em Moçambique. Segun<strong>do</strong> ela, não<br />
34
tem havi<strong>do</strong> por parte da mídia ou <strong>do</strong> go- verno,<br />
campanhas permanentes e direcionadas<br />
para públicos especiais, com figuras publicas<br />
servi<strong>do</strong> de exemplo. Além disso, não há<br />
preservativos suficientes para distribuir a<br />
população. Falta esperança e é isso que as<br />
equipes brasileiras no país tentam trazer um<br />
pouco a cada dia, comenta Isabel.<br />
São muitas as dificuldades. Na cidade de<br />
Maputo, por exemplo, Isabel conta que as<br />
pessoas chegam a esperar 12 horas para<br />
serem atendidas em um hospital, muitas<br />
vezes não há medicamentos nas farmácias,<br />
os gabinetes de testagem e aconselhamento<br />
não têm camisinhas.<br />
Outro grande problema, de acor<strong>do</strong> com a<br />
pesquisa<strong>do</strong>ra moçambicana, e que falar de<br />
Aids na <strong>África</strong> ainda é um tabu. As famílias<br />
não sabem o que se passa entre seus membros.<br />
“Em parte, este silêncio também tem a<br />
ver com o fato de a AIDS ter ligação com<br />
sexo, outro assunto que é tabu na sociedade<br />
e que não pode ser trata<strong>do</strong> por qualquer<br />
membro da família”, diz Isabel. É aí que entram<br />
as associações que lutam pelos direitos<br />
das pessoas com HIV e trabalham firme<br />
orientan<strong>do</strong>-as.<br />
A brasileira Ana Piedade Armin<strong>do</strong> Monteiro<br />
é vice-reitora na UniZambeze, em<br />
Beira, Moçambique. Seu foco em relação<br />
a AIDS é a prevenção, procuran<strong>do</strong> entender<br />
os bloqueios e avanços no acesso aos<br />
serviços de saúde, analisan<strong>do</strong> a sociedade<br />
e suas fragilidades como um to<strong>do</strong>.<br />
“O Brasil desde 1996 tem uma lei que<br />
garante os antirretrovirais às pessoas<br />
com HIV. Isso, entretanto, não acontecia<br />
em to<strong>do</strong>s os países. A <strong>África</strong> <strong>do</strong> Sul e Moçambique<br />
só a- provaram distribuição<br />
gratuita de antirretrovirais recentemente,<br />
e essa demora levou esses países à alta<br />
prevalência da <strong>do</strong>ença”, explica.<br />
O uso <strong>do</strong>s antirretrovirais corretamente<br />
pode fazer com que o vírus fique sob controle<br />
e a pessoa infectada adquira menos<br />
<strong>do</strong>enças relacionadas à baixa imunidade.<br />
No Brasil, houve a descentralização <strong>do</strong>s<br />
serviços de saúde para pessoas com HIV/<br />
AIDS. Ana Piedade acredita que essa seria<br />
a melhor forma para Moçambique a-tender<br />
a grande demanda por tratamento.<br />
“Em meu esta<strong>do</strong>, Pernambuco, há serviços<br />
específicos em várias cidades no interior:<br />
Petrolina, Salgueiro, Serra Talhada,<br />
Afoga<strong>do</strong>s da Ingazeira, Garanhuns, Carua-<br />
35
u e outros municípios. São serviços cria<strong>do</strong>s<br />
com apoio <strong>do</strong>s governos estaduais, mas organiza<strong>do</strong>s<br />
e manti<strong>do</strong>s pelos governos municipais”,<br />
exemplifica.<br />
Em qualquer país, unidades de saúde são<br />
necessárias, e também a garantia de direitos<br />
sociais. Facilita o acesso à informação<br />
e o enfrentamento da <strong>do</strong>ença pelas pessoas<br />
infectadas. Através da testagem para<br />
conhecimento da sorologia, distribuição<br />
de preservativos e atualmente há a terapia<br />
pré-exposição e pós-exposição, onde antes<br />
mesmo da AIDS se manifestar - através de<br />
<strong>do</strong>enças oportunistas - a pessoa em que foi<br />
detecta<strong>do</strong> o vírus, tem acesso à medicação,<br />
o que não ocorria há <strong>do</strong>is anos.<br />
A preocupação, além <strong>do</strong> impacto que a<br />
AIDS tem na mortalidade <strong>do</strong> país, é o efeito<br />
devasta<strong>do</strong>r em outras áreas, como economia<br />
e educação. De acor<strong>do</strong> com o Banco<br />
Mundial, Moçambique tem cerca de 70% de<br />
sua população moran<strong>do</strong> em área rural - o<br />
que dificulta o acesso das pessoas a hospitais<br />
com qualidade - e 49% da sociedade<br />
moçambicana é analfabeta.<br />
Cerca de 500 mil crianças perderam pelo<br />
menos um <strong>do</strong>s pais pela <strong>do</strong>ença, com isso,<br />
os jovens se veem obriga<strong>do</strong>s a se tornarem<br />
adultos antes <strong>do</strong> tempo, ten<strong>do</strong> que cuidar<br />
da casa e <strong>do</strong>s irmãos e abdican<strong>do</strong> <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s<br />
para poder trabalhar, em sua maioria, no<br />
campo. Falta tempo e dinheiro para estudar.<br />
No livro “Moçambique: O Brasil é aqui”,<br />
a jornalista Amanda Rossi fala da relação<br />
entre ambos os países e de como o Brasil<br />
investe na mineração, construção civil,<br />
agronegócio e é protagonista no combate a<br />
AIDS. Em seus relatos, ela conta como a cultura<br />
brasileira é forte no outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />
as novelas são transmitidas para o país,<br />
as pessoas consomem mais o Brasil <strong>do</strong> que<br />
os próprios brasileiros. Talvez, por isso, os<br />
projetos transcorram com maior facilidade.<br />
Existe um diálogo direto entre ambas as partes,<br />
é como se as pessoas vissem o Brasil<br />
como o primo rico que deu certo.<br />
Falta um maior envolvimento <strong>do</strong> governo<br />
com esses projetos internacionais, apesar<br />
de darem apoio para que ocorram, o programa<br />
de combate ao HIV em Moçambique é<br />
quase to<strong>do</strong> financia<strong>do</strong> por <strong>do</strong>ações internacionais,<br />
incluin<strong>do</strong> o Fun<strong>do</strong> Global.<br />
Isabel conta que não há a mesma atenção<br />
e que os fun<strong>do</strong>s não são equilibra<strong>do</strong>s. “A<br />
forma em como a saúde funciona em outras<br />
regiões não é a mesma de cidades maiores<br />
36
onde concentra os setores públicos, priva<strong>do</strong>s,<br />
etc. Há coisas que funcionam devi<strong>do</strong><br />
a organizações, projetos, mas que têm um<br />
tempo de duração e não são sustentáveis,<br />
já que o Esta<strong>do</strong> não garante a continuidade”.<br />
A AIDS é um problema de desenvolvi-mento,<br />
afeta a sociedade com maior incidência<br />
nas camadas com menos de 25 anos de<br />
idade, faixa etária sexualmente mais ativa e<br />
mais infectada pela epidemia. Moçambique<br />
é um <strong>do</strong>s países com maiores índices de<br />
pobreza, há problemas no acesso ao ensino<br />
secundário e superior, devi<strong>do</strong> às fragilidades<br />
nas estratégias e políticas a<strong>do</strong>tadas no país.<br />
Em Moçambique, certos hábitos culturais,<br />
como casamentos poligâmicos, relacionamentos<br />
intergeracionais, podem contribuir<br />
para espalhar o HIV. Recentemente,<br />
foi proibida uma prática cultural típica <strong>do</strong><br />
país, onde a mulher ao ficar viúva tinha que<br />
ser ‘purificada’ fazen<strong>do</strong> sexo com o irmão<br />
mais velho <strong>do</strong> faleci<strong>do</strong>. Essa prática contribuía<br />
para disseminar o vírus e com sua proibição<br />
e substituição por outros rituais, espera-se<br />
reduzir a disseminação. As mulheres<br />
são a maioria contaminada pela <strong>do</strong>ença,<br />
acredita-se que o motivo seja justamente os<br />
costumes.<br />
37<br />
OLHARES<br />
<strong>do</strong>MUNDO
38
Crianças transformadas<br />
em máquinas de guerra<br />
Ex-menino solda<strong>do</strong>, Albino Forquilha relata suas experiências ao ser recruta<strong>do</strong>,<br />
aos 12 anos de idade, para lutar na guerra civil moçambicana. Hoje,<br />
como funda<strong>do</strong>r de uma ONG que promove o desarmamento, ele já aju<strong>do</strong>u<br />
na reintegração de centenas de crianças em famílias próprias ou a<strong>do</strong>tivas.<br />
Por Camila Vietri, Cláudia Custódio,<br />
Júlia Falconi e Louise Daud<br />
Aos 12 anos, em 1977, o moçambicano<br />
Albino Forquilha foi rapta<strong>do</strong> pelos<br />
guerrilheiros da Renamo (Resistência<br />
Nacional Moçambicana) para lutar na<br />
guerra civil que assolou o país após a independência<br />
de Portugal, entre 1975 e 1992. A vida<br />
rodeada por mortes e traumas enraizou-se em<br />
Albino, assim como em tantas outras crianças<br />
que tiveram sua inocência roubada. Hoje, aos 51<br />
anos, ele atua como diretor de uma associação<br />
não governamental que tem por objetivo recolher<br />
armamentos e promover a paz para que nenhuma<br />
outra criança experimente o que ele sofreu.<br />
39
De acor<strong>do</strong> com a ONU, cerca de 300 mil<br />
crianças-solda<strong>do</strong>s estão servin<strong>do</strong> exércitos<br />
ou grupos rebeldes ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. O<br />
recrutamento acontece pela abdução das<br />
crianças de suas casas e famílias, seja por<br />
acor<strong>do</strong>s locais das facções com as comunidades<br />
em troca de segurança, ou por ação<br />
forçada, onde a criança muitas vezes presencia<br />
o assassinato de seus familiares. Em<br />
casos extremos, ela é obrigada a matar um<br />
de seus parentes para que o laço seja quebra<strong>do</strong>.<br />
A violência, além de física e sexual, é também<br />
psicológica. Instalada de maneira brutal<br />
com raízes profundas, priva as crianças<br />
de alguns de seus direitos básicos, como<br />
moradia e educação. Segun<strong>do</strong> um relatório<br />
da Unesco, publica<strong>do</strong> em 2013, cerca de 29<br />
milhões de crianças que moram em locais<br />
de conflitos têm entre seis e onze anos e deveriam<br />
estar no Ensino Fundamental, mas<br />
não têm acesso à escola. Dessas, 12 milhões<br />
vivem na <strong>África</strong>.<br />
“Eu <strong>do</strong>rmia com um revólver embaixo <strong>do</strong><br />
travesseiro no internato onde eu estudava.<br />
Era uma zona de guerra. Cada estudante tinha<br />
uma arma para se defender contra os<br />
ataques, que não eram raros”, relata Albino,<br />
em entrevista por e-mail. Mas o pior ainda<br />
estava por vir. No primeiro dia de férias, o garoto<br />
de 12 anos foi recruta<strong>do</strong> no caminho de<br />
volta para casa, com mais <strong>do</strong>is amigos, pelos<br />
rebeldes da Renamo. A partir de então, a<br />
morte nunca foi tão familiar. Aprendeu a matar<br />
como quem jogava bola com os irmãos.<br />
A única formação que as crianças-solda<strong>do</strong>s<br />
têm, segun<strong>do</strong> ele, é matar, roubar, violar,<br />
queimar e assaltar bens das comunidades e<br />
suas residências. “Em muitas situações, as<br />
crianças são transformadas em máquinas<br />
de guerra, de matança. As meninas são violadas<br />
sexualmente pelas figuras hierárquicas<br />
militares nas bases, tornam-se mulheres<br />
de comandantes e algumas são usadas<br />
para espionagens. Todas essas atrocidades<br />
as traumatizam de forma grave e requerem<br />
intervenções psicológicas”, comenta Albino.<br />
Depois de 90 dias de frieza e tiros sem<br />
propósito, um ataque a bombas lança<strong>do</strong><br />
pelas Frelimo (Forças Armadas de Libertação<br />
de Moçambique), grupo de esquerda<br />
no poder, foi a oportunidade de Albino<br />
explorar sua coragem e resgatar parte da<br />
infância roubada. Correu por quatro horas<br />
em busca da calmaria e de outro som<br />
que não fossem bombas e gritos. “Cada<br />
40
um <strong>do</strong>s presentes na base fugia a sua maneira<br />
e para o seu la<strong>do</strong>, sem direção.”<br />
Em 1995, três anos depois <strong>do</strong> acor<strong>do</strong> de<br />
paz entre Frelimo e Renamo em Moçambique,<br />
Albino fun<strong>do</strong>u a Força Moçambicana<br />
Para a Investigação de Crimes e Reinserção<br />
Social (Fomicres), organização humanitária<br />
que já chegou a 26 mil famílias dirigidas<br />
por ex-combatentes de guerra através<br />
<strong>do</strong> projeto “Desarmamento Comunitário”. O<br />
projeto estimula a entrega de artefatos de<br />
guerra em troca de incentivos, ferramentas,<br />
equipamentos agrícolas e material escolar.<br />
O processo de trocas é feito por etapas que<br />
incluem eventos públicos pela promoção<br />
da paz lidera<strong>do</strong>s por aqueles que antes estavam<br />
na guerra. Essa interação promove a<br />
reinserção <strong>do</strong> indivíduo na comunidade que<br />
ele um dia atacou. A Fomicres também já<br />
promoveu a reintegração de 973 crianças<br />
em famílias próprias ou a<strong>do</strong>tivas.<br />
Nos últimos 10 anos, o UNICEF, em parceria<br />
com diversas organizações não-governamentais,<br />
tem da<strong>do</strong> atenção especial<br />
ao problema das crianças-solda<strong>do</strong>s, atuan<strong>do</strong><br />
em diversas regiões afetadas na <strong>África</strong>.<br />
Mas, segun<strong>do</strong> Albino Forquilla, há pouco<br />
atendimento psicológico. O mineiro Ricar<strong>do</strong><br />
Pires, que atua como voluntário <strong>do</strong> UNICEF<br />
em Nairobi, capital <strong>do</strong> Quênia, confirma que<br />
o processo de recuperação de uma criança<br />
traumatizada pelo recrutamento é muito<br />
complexo, e em alguns casos quase irreversível.<br />
“O impacto físico e psicológico nas<br />
crianças e em suas comunidades através<br />
de gerações não podem ser subestima<strong>do</strong>s,<br />
e os traumas podem sim ser irreparáveis. Se<br />
recrutadas por grupos arma<strong>do</strong>s, a criança<br />
irá experienciar, testemunhar e até cometer<br />
assassinatos e outros tipos de violência, incluin<strong>do</strong><br />
sexual”, afirma o brasileiro em entrevista<br />
a nossa reportagem.<br />
Algumas comunidades têm seus próprios<br />
rituais para ajudar a criança a superar<br />
a violência sofrida. Em Moçambique, por<br />
exemplo, qualquer pessoa que retornasse<br />
da guerra era acolhida com um ritual de purificação,<br />
próprio da cultura local. “São cerimônias<br />
dirigidas por curandeiros anciãos<br />
tradicionais da zona que, com to<strong>do</strong>s os instrumentos<br />
para o efeito, processam a purificação<br />
da criança retornada da guerra na<br />
presença de toda comunidade, com o objetivo<br />
de lavá-la de to<strong>do</strong>s os espíritos malignos<br />
adquiri<strong>do</strong>s durante a guerra. Esse ritual tem<br />
um impacto psicológico bastante penetran-<br />
41
te na pessoa purificada, assim como nos<br />
membros da sua comunidade, pois to<strong>do</strong>s<br />
passam a acreditar que o ex-militar ou ex-<br />
-criança-solda<strong>do</strong> passou a ser uma pessoa<br />
normal, imediatamente aceita por to<strong>do</strong>s da<br />
comunidade, poden<strong>do</strong> se casar e assumir<br />
responsabilidades na família e na mesma<br />
comunidade”, conta Albino.<br />
O UNICEF tem como missão dar assistência<br />
básica às crianças recém-chegadas, realizan<strong>do</strong><br />
parecerias com ONGs e governos.<br />
“Esses esforços são foca<strong>do</strong>s no tratamento<br />
imediato, que inclui comida, abrigo, roupas e<br />
cuida<strong>do</strong>s básicos de saúde, também como<br />
o reencontro de crianças com suas famílias<br />
ou comunidades, dan<strong>do</strong> suporte psicológico<br />
e oferecen<strong>do</strong> assistência de longo prazo<br />
para suas comunidades”, relata Pires.<br />
Segun<strong>do</strong> o voluntário brasileiro, embora<br />
o recrutamento de crianças continue sen<strong>do</strong><br />
um grave problema, o UNICEF obteve<br />
um notável progresso nas últimas décadas,<br />
com milhares de meninos e meninas sen<strong>do</strong><br />
liberta<strong>do</strong>s como resulta<strong>do</strong> de planos de<br />
ação aprova<strong>do</strong>s pelo Conselho de Segurança<br />
da ONU. “Nos últimos <strong>do</strong>is anos, alguns<br />
resulta<strong>do</strong>s concretos foram alcança<strong>do</strong>s.<br />
Por exemplo, a Somália ratificou a Convenção<br />
de Direitos da Criança em setembro de<br />
2015, e o governo estabeleceu uma unidade<br />
de proteção à criança nas forças armadas,<br />
pon<strong>do</strong> em prática mecanismos de entrega à<br />
ONU de crianças achadas em seu exército.<br />
No Sudão <strong>do</strong> Sul, desde o começo <strong>do</strong> conflito<br />
– e especialmente depois <strong>do</strong> acor<strong>do</strong> de<br />
paz assina<strong>do</strong> em 2015 – pelo menos 1300<br />
crianças foram libertadas pelas forças armadas”,<br />
observa.<br />
Outros avanços podem ser verifica<strong>do</strong>s<br />
ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, como a criação de um<br />
dia internacional contra o recrutamento de<br />
crianças-solda<strong>do</strong>s, o Red Hand Day, ou Dia<br />
da Mão Vermelha, celebra<strong>do</strong> em 12 de fevereiro.<br />
Além disso, em agosto de 2015, o<br />
Tribunal Penal Internacional ordenou, pela<br />
primeira vez, o pagamento de indenizações.<br />
Recursos <strong>do</strong> “Fun<strong>do</strong> Mútuo para as Vítimas”<br />
estabeleci<strong>do</strong> pelo tribunal devem ser destina<strong>do</strong>s<br />
a vítimas <strong>do</strong> ex-líder rebelde congolês<br />
Thomas Lubanga, o único condena<strong>do</strong> até<br />
hoje pela exploração de crianças como solda<strong>do</strong>s.<br />
A condenação a 14 anos de prisão<br />
ocorreu em 2012. O Tribunal considerou a<br />
prática um crime de guerra. Muitas crianças<br />
que lutaram na organização rebelde de<br />
Lubanga foram indenizadas.<br />
42
43 OLHARES<br />
<strong>do</strong>MUNDO
Eliminar casamento prematuro<br />
é grande desafio para o desenvolvimento<br />
de Moçambique<br />
País ocupa a 10ª posição em número de uniões envolven<strong>do</strong> crianças<br />
e a<strong>do</strong>lescentes; gravidez precoce causa graves problemas de<br />
saúde e afasta as meninas da escola.<br />
Por Isabela Lisboa, Marina Moreno, Tayná<br />
Rudge, Rebeca Lucena e Isabela Imbimbo<br />
O<br />
casamento precoce em Moçambique<br />
é um <strong>do</strong>s principais desafios<br />
relaciona<strong>do</strong>s ao desenvolvimento<br />
humano no país. Segun<strong>do</strong><br />
um levantamento <strong>do</strong> UNICEF, uma em cada<br />
duas moçambicanas com idade entre 20<br />
e 24 anos tornou-se esposa antes <strong>do</strong>s 18<br />
anos e uma em dez casou-se antes <strong>do</strong>s 15.<br />
Os da<strong>do</strong>s colocam o país na 10ª posição<br />
no ranking <strong>do</strong>s mais afeta<strong>do</strong>s pelo casamento<br />
prematuro, em uma lista liderada pelo Níger.<br />
As uniões precoces ocorrem em áreas<br />
urbanas, mas são mais comuns<br />
em áreas rurais, onde pais forçam<br />
as meninas a se casarem com homens<br />
mais velhos em busca de<br />
um <strong>do</strong>te ou de uma redução nas<br />
despesas <strong>do</strong>mésticas (uma boca a<br />
menos para alimentar). Outro fator<br />
que contribuiu para o casamento<br />
de a<strong>do</strong>lescentes são os ritos de<br />
iniciação à vida adulta, que estimulam<br />
relacionamentos sexuais após<br />
a primeira menstruação.<br />
44
45
O sociólogo moçambicano José Gil Vicente,<br />
atualmente liga<strong>do</strong> à Universidade<br />
Salga<strong>do</strong> de Oliveira, em Niterói, afirma que o<br />
matrimônio prematuro não apenas reduz as<br />
oportunidades de progresso econômico e<br />
social das a<strong>do</strong>lescentes, afastadas da escola,<br />
mas tem graves implicações para a saúde<br />
das meninas. A gestação e o parto nessa<br />
faixa etária estão associa<strong>do</strong>s a problemas<br />
tanto para a mãe, quanto para a criança. A<br />
taxa da mortalidade infantil em Moçambique<br />
está entre as mais altas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, 150<br />
bebês a cada mil nascimentos, reflexo de insatisfatórias<br />
condições de higiene e da saúde<br />
precária. No Brasil, a taxa é de 22 mortes<br />
a cada mil nascimentos e, nos países ricos,<br />
de apenas 3.<br />
Persilia Muianga, gerente da área de Proteção<br />
à Criança da organização não governamental<br />
World Vision Moçambique (Visão<br />
Mundial Moçambique), observa que a gravidez<br />
precoce, associada à falta de assistência<br />
médica, leva a um alto índice de fístulas<br />
obstétricas, uma abertura entre a vagina e<br />
a bexiga ou canal retal resultante de complicações<br />
no parto, através <strong>do</strong> qual urina e<br />
fezes escapam continuamente. Há também<br />
sério risco de morte durante a gravidez.<br />
Para enfrentar o problema, o governo<br />
Moçambicano, com ajuda da ONU e de organizações<br />
civis, divulgou em abril de 2016<br />
um plano de ação com uma série de metas<br />
a serem atingidas nos próximos três anos,<br />
a Estratégia Nacional de Prevenção e Combate<br />
aos Casamentos Prematuros. Segun<strong>do</strong><br />
Erika Miranda, especialista em proteção à<br />
criança <strong>do</strong> UNICEF Moçambique, os principais<br />
objetivos a serem alcança<strong>do</strong>s até 2019<br />
incluem a criação de um ambiente favorável<br />
à redução progressiva e à eliminação <strong>do</strong>s<br />
casamentos prematuros, com retenção das<br />
meninas na escola, prevenção de <strong>do</strong>enças<br />
sexualmente transmissíveis, mudanças nos<br />
ritos de iniciação sexual e uma reforma legal<br />
para a proteção da criança e <strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente.<br />
As ações também contam com grupos<br />
religiosos de diversas fés, rádios comunitárias<br />
e líderes comunitários. “A mobilização<br />
da sociedade como um to<strong>do</strong> é crucial para<br />
declarar o país livre da prática <strong>do</strong>s casamentos<br />
prematuros”, afirma.<br />
Para Vicente, as políticas públicas e as leis<br />
são fragmentadas, dispersas por diferentes<br />
códigos, e, mesmo onde parecem conferir<br />
um direito específico, como educação ou<br />
acesso à saúde, são pouco detalhadas, pre-<br />
46
judican<strong>do</strong> uma execução bem sucedida. É<br />
fundamental, segun<strong>do</strong> ele, a formação <strong>do</strong>s<br />
núcleos de Comitês <strong>do</strong>s Direitos da Criança<br />
nas escolas contra o abuso e assédio sexual<br />
e a participação de diferentes setores<br />
da sociedade no desenvolvimento de ações<br />
concretas de proteção, defesa, garantia de<br />
direitos das crianças em situações difíceis e<br />
em via de casamento prematuro.<br />
Para a ativista Percina Meque Pérezo, <strong>do</strong><br />
coletivo feminista moçambicano MovFemme,<br />
o combate ao casamento prematuro começa<br />
com a desconstrução <strong>do</strong> pensamento<br />
de que essas uniões são, de fato, casamentos.<br />
“São uniões forçadas. Casamento tem<br />
consentimento em ambas as partes e ninguém<br />
pode ser obriga<strong>do</strong> a casar”, afirma. A<br />
partir disso, são necessárias ações de conscientização<br />
a fim de combater esse tipo de<br />
união.<br />
O Movfemme promove e participa de diversas<br />
ações pelos direitos das meninas e<br />
mulheres moçambicanas. São debates em<br />
TV e rádio, reuniões regionais e internacionais<br />
e campanhas como a Marcha Mundial<br />
das Mulheres. “Nós criamos espaços de reflexão<br />
(como fogueiras feministas, conversas,<br />
palestras em escolas e marchas), com<br />
vista a apoiar e fortalecer o conhecimento<br />
sobre os direitos humanos de forma geral<br />
e direitos humanos das mulheres de forma<br />
específica com o intuito de despertar a<br />
consciência de meninas e mulheres jovens”,<br />
diz Percina.<br />
Um <strong>do</strong>s desafios <strong>do</strong> governo e das organizações<br />
de defesa das crianças é convencer<br />
comunidades tradicionais a mudar os<br />
ensinamentos nos ritos de iniciação sexual<br />
após a primeira menstruação. Muitas meninas<br />
menstruam com apenas dez anos e, depois<br />
da cerimônia, são vistas como prontas<br />
para casar e ter filhos.<br />
Persilia, da World Vision Moçambique,<br />
salienta que as noivas jovens são, em sua<br />
maioria, dependentes <strong>do</strong>s mari<strong>do</strong>s e sem<br />
acesso à saúde, educação e segurança.<br />
“Elas não estão fisicamente, nem emocionalmente<br />
prontas para se tornar esposas<br />
e mães. A nação também sente o impacto:<br />
um sistema que subestima a contribuição<br />
de mulheres jovens na sociedade limita<br />
suas próprias possibilidades. O casamento<br />
infantil drena países da inovação e de um<br />
potencial que poderia prosperar, reforça a<br />
desigualdade de gênero e viola os direitos<br />
humanos”, afirma a especialista.<br />
47<br />
OLHARES<br />
<strong>do</strong>MUNDO
ÁFRICA SUBSAARIANA<br />
Uma corrida para salvar vidas<br />
Na <strong>África</strong>, um <strong>do</strong>s maiores problemas de milhares de pessoas é a carência de remédios<br />
e de atendimento médico. As péssimas condições das estradas dificultam o<br />
acesso aos vilarejos. A ONG “Riders For Health” (Pilotos pela Saúde) treina médicos e<br />
motociclistas para chegarem aos lugares mais remotos da região subsaariana.<br />
Por Guilherme Veloso<br />
Nos anos 1980, a <strong>África</strong> Subsaariana<br />
era praticamente inacessível,<br />
e muitas pessoas morriam por<br />
falta de cuida<strong>do</strong>s médicos e de<br />
medicamentos. Havia grandes remessas<br />
internacionais de ajuda humanitária, mas<br />
o maior problema era a sua distribuição,<br />
muito precária na época, feita a pé e de bicicleta,<br />
atingin<strong>do</strong> apenas as pequenas comunidades<br />
próximas às grandes cidades.<br />
Especialistas diziam que isso<br />
se dava porque era impossível<br />
manter veículos funcionan<strong>do</strong><br />
naquela região da <strong>África</strong>. A falta<br />
de estradas e as péssimas condições<br />
existentes resultavam em<br />
avarias e muitos pneus fura<strong>do</strong>s.<br />
A situação impressionou o<br />
casal britânico Andrea e Barry<br />
Coleman, ambos apaixona<strong>do</strong>s<br />
por motocicleta. Ao visitar<br />
comunidades atendidas pelas<br />
organizações assistenciais<br />
que apoiavam, em 1986, Barry<br />
e Andrea perceberam que as<br />
motos e veículos quebra<strong>do</strong>s e<br />
48
49
aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s pelas ONGs poderiam voltar<br />
a funcionar com pequenos reparos e manutenção<br />
adequada.<br />
Foi assim que o casal, com o apoio <strong>do</strong><br />
americano Randy Mamola, uma das lendas<br />
<strong>do</strong> moto GP, criou a organização não governamental<br />
“Riders For Health” (Pilotos pela<br />
Saúde), propon<strong>do</strong> uma nova logística de<br />
distribuição de medicamentos e a a<strong>do</strong>ção<br />
de motocicletas, mais adequadas às condições<br />
da <strong>África</strong>. Pilotos e mecânicos locais<br />
foram contrata<strong>do</strong>s e treina<strong>do</strong>s.<br />
O projeto foi implanta<strong>do</strong> inicialmente em<br />
Uganda, Gâmbia e Lesoto. No Lesoto, a frota<br />
inicial de 47 motos prestou serviços durante<br />
cinco anos sem sequer um acidente.<br />
Posteriormente, a ONG adquiriu também caminhões<br />
refrigera<strong>do</strong>s, minivans e ambulâncias.<br />
Hoje, a “Riders For Health”conta com<br />
470 funcionários, 95% deles basea<strong>do</strong>s na<br />
<strong>África</strong>, gerencian<strong>do</strong> 1.700 veículos, viajan<strong>do</strong><br />
12.986.668 km por cerca de 30 países, entre<br />
eles Uganda, Gâmbia, Quênia, Lesoto, Malawi,<br />
Nigéria, Zâmbia e Zimbábue.<br />
Um <strong>do</strong>s mecânicos treina<strong>do</strong>s no programa<br />
foi Ngwarati Mashonga, <strong>do</strong> Zimbábue,<br />
atual diretor de operações da ONG. “Em<br />
outubro de 2001 comecei a supervisionar<br />
uma equipe de 41 funcionários e gerenciava<br />
cerca de 600 veículos. Com essa estrutura,<br />
a gente conseguia atender cidades que antes<br />
não possuíam nenhum acesso à saúde”,<br />
lembra ele em entrevista por e-mail.<br />
Uma das grandes dificuldades da organização,<br />
segun<strong>do</strong> Mashonga, é encontrar e<br />
treinar pilotos. Para suprir essa carência, a<br />
“Riders For Health” desenvolveu sistemas<br />
de treinamento para profissionais da saúde,<br />
inclusive de médicos, que incluem o ensino<br />
de técnicas de viagem e de manutenção <strong>do</strong>s<br />
próprios veículos.<br />
A gestão e operação da logística na área<br />
de transporte é tão importante para o funcionamento<br />
<strong>do</strong> projeto que Mashonga, após<br />
a graduação em Comércio numa universidade<br />
local, se especializou em economia de<br />
transportes pela Universidade da <strong>África</strong> <strong>do</strong><br />
Sul (UNISA). Mashonga também estu<strong>do</strong>u<br />
em diversas instituições no Reino Uni<strong>do</strong> e<br />
na Bélgica, realizan<strong>do</strong> mestra<strong>do</strong> em Logística<br />
Internacional e Gestão de Cadeia de<br />
Abastecimento pela Universidade de South<br />
Wales, no Reino Uni<strong>do</strong>.<br />
A “Riders For Health” leva cuida<strong>do</strong>s médicos<br />
a aproximadamente 21 milhões de pessoas<br />
e conta com o apoio da Organização<br />
50
Mundial da Saúde. A ONG também presta<br />
aconselhamento a outras organizações humanitárias.<br />
“Nós estamos sempre abertos<br />
para ajudar, com diversos planos para estender<br />
o alcance da organização”, salienta<br />
Mashonga.<br />
Segun<strong>do</strong> ele, muitas instituições não têm<br />
a menor ideia <strong>do</strong> custo de se manter uma<br />
operação de distribuição na <strong>África</strong>. “No geral,<br />
o apoio presta<strong>do</strong> por algumas instituições<br />
não é consistente porque os veículos<br />
utiliza<strong>do</strong>s por elas não são muito resistentes<br />
e têm difícil manutenção”, comenta. “Além<br />
disso, os veículos não são troca<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong><br />
ficam velhos, aumentan<strong>do</strong> ainda mais os<br />
custos de funcionamento e manutenção.”<br />
Outro desafio da ONG é a alfândega.<br />
“As peças <strong>do</strong>s veículos,<br />
no momento da importação, não<br />
são consideradas como medicamentos.<br />
As taxas são muito altas<br />
e isso torna muito difícil a obtenção<br />
de peças para os veículos”,<br />
comenta.<br />
Atualmente, Mashonga conduz<br />
um novo projeto da “Riders for<br />
Health” em resposta ao Ebola na<br />
Libéria, atuan<strong>do</strong> no planejamento,<br />
coordenação e controle das equipes<br />
para implementar, além <strong>do</strong>s<br />
projetos de gerenciamento de frotas,<br />
o transporte de amostras.<br />
51<br />
OLHARES<br />
<strong>do</strong>MUNDO
ÁFRICA OCIDENTAL<br />
Financiamento saudita de seita<br />
islâmica radical incentiva o<br />
terror na Nigéria<br />
De acor<strong>do</strong> com professores de Política Internacional ouvi<strong>do</strong>s por “<strong>Olhares</strong> <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>”,<br />
o ensino da fé saudita, o wahabismo, no Norte da <strong>África</strong> induz a conflitos com a sociedade<br />
secular e leva muitos grupos muçulmanos a optar pelo terrorismo.<br />
Por Gabriel Neves e Vitória Mantovani<br />
A<br />
Nigéria, país mais populoso da<br />
<strong>África</strong>, com 174 milhões de habitantes,<br />
foi classificada em terceiro<br />
lugar, numa lista de 163 países<br />
mais atingi<strong>do</strong>s por ataques terroristas, de<br />
acor<strong>do</strong> com o Índice de Terrorismo Global<br />
de 2015. O país fica atrás apenas <strong>do</strong> Afeganistão<br />
e <strong>do</strong> Iraque. Um <strong>do</strong>s principais grupos<br />
radicais que castigam a Nigéria é o Boko Haram,<br />
contrário à educação ocidental, principalmente<br />
de mulheres. Só no ano de 2014,<br />
o grupo matou 6.644 pessoas. Analistas<br />
ouvi<strong>do</strong>s por “<strong>Olhares</strong> <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>” dizem que<br />
a violência no norte da <strong>África</strong> só irá acabar<br />
com a redução da miséria e com o fim <strong>do</strong><br />
financiamento de seitas muçulmanas fundamentalistas<br />
que defendem a a<strong>do</strong>ção da<br />
Sharia, o código de leis <strong>do</strong> islamismo.<br />
Em 2010, 60,9% <strong>do</strong>s nigerianos viviam na<br />
pobreza, segun<strong>do</strong> o relatório publica<strong>do</strong> pelo<br />
Escritório Nacional de Estatísticas da Nigéria.<br />
De acor<strong>do</strong> com esta porcentagem, 112<br />
milhões de nigerianos suprem apenas mínimas<br />
necessidades com relação a alimentos,<br />
52
53
habitação e roupas. Segun<strong>do</strong> o professor<br />
de Relaçōes Internacionais da Universidade<br />
Federal de Uberlândia (UFU), Flávio Pedroso<br />
Mendes, a baixa renda da populaçāo<br />
impulsiona o crescimento <strong>do</strong>s grupos fundamentalistas.<br />
“A população viven<strong>do</strong> com<br />
baixa qualidade de vida material é introduzida<br />
a uma visão radicalizada da religião<br />
islâmica, crian<strong>do</strong> condições para comportamentos<br />
radicais que se expressam na<br />
forma de terrorismo.”<br />
Os três grupos terroristas de maior relevância<br />
no continente africano, de acor<strong>do</strong><br />
com o Departamento de Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s<br />
Uni<strong>do</strong>s são: Al-Qaeda, com ramificações<br />
por diversos países <strong>do</strong> Norte da <strong>África</strong>;<br />
Boko Haram, situa<strong>do</strong> na Nigéria, principalmente<br />
na porção norte <strong>do</strong> país, e Al-Shabaab,<br />
estabeleci<strong>do</strong> na Somália e atuante<br />
nos países da região. Ambos seguem wahabismo,<br />
uma vertente <strong>do</strong> islamismo sunita<br />
criada no século XVII por Muhammad ibn<br />
Adb Wahhab, que é conhecida pela intolerância<br />
e extremismo. O movimento sofreu<br />
um “crescimento explosivo” nas décadas de<br />
1970 e 1980 e causou, na época, aproximadamente<br />
quatro mil mortes. Sérgio Gouvêa,<br />
pesquisa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> tema na Universidade Federal<br />
de Santa Catarina (UFSC), afirma que<br />
“esses três grupos compartilham, a grosso<br />
mo<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s mesmos ideais e objetivos, que<br />
seriam, resumidamente, o estabelecimento<br />
de um Esta<strong>do</strong> Islâmico funda<strong>do</strong> sobre a<br />
Sharia.”<br />
O wahabismo é a seita islâmica oficial<br />
da Arábia Saudita, país que tem contribuí<strong>do</strong><br />
para a difusão de <strong>do</strong>gmas radicais. O pesquisa<strong>do</strong>r<br />
Maurício Silva Elder, professor de<br />
Relações Internacionais na Universidade<br />
Federal de Santa Catarina (UFSC) observa<br />
que o ensino da fé saudita tem prejudica<strong>do</strong><br />
os países africanos com população muçulmana.<br />
“Com o passar <strong>do</strong> tempo, crianças<br />
se tornam a<strong>do</strong>lescentes e adultos, sua visão<br />
de mun<strong>do</strong> cunhada no ensino financia<strong>do</strong><br />
por dinheiro saudita acaba por induzir a<br />
conflitos com a sociedade secular que os<br />
cercam’’, afirma.<br />
Para o professor da UFSC, uma “ajuda<br />
real a esses países seria cessar o financiamento<br />
para ensino das versões mais radicais<br />
<strong>do</strong> Islã e intensificar um ensino de uma<br />
vertente mais suave, de forma a criar uma<br />
próxima geração menos propensa a atos<br />
extremos, como a que foi gerada nos últimos<br />
30 ou 40 anos.”<br />
54
A religião tem si<strong>do</strong> preponderante na política<br />
nigeriana, já que o pais reúne etnias<br />
distintas. Em termos de religião, 50% da<br />
população é mulçumana, 40% cristã e 10%<br />
seguem outras crenças, em geral de origem<br />
tribal.<br />
Muzha Kucha, jornalista nigeriano e estudante<br />
de sociologia na Universidade de Kaduna,<br />
no centro-norte <strong>do</strong> país, salienta que<br />
as pessoas votam e apoiam líderes políticos<br />
baseadas em suas visões religiosas, o que<br />
intensifica o conflito em um país polariza<strong>do</strong><br />
entre cristãos e muçulmanos. ‘’Politicamente,<br />
a parte sul da Nigéria tem argumenta<strong>do</strong><br />
que a parte norte <strong>do</strong>minou as posições <strong>do</strong><br />
governo federal ao longo <strong>do</strong>s anos, é importante<br />
notar que a região sul é <strong>do</strong>minada<br />
pelos cristãos, enquanto a região norte é <strong>do</strong>minada<br />
pelo Islã. Isso também tem afeta<strong>do</strong><br />
a filiação partidária política e candidaturas’’,<br />
relata o jornalista.<br />
No norte <strong>do</strong> país, muitos se identificam<br />
mais com o Islã <strong>do</strong> que com sua etnia tribal<br />
de origem e foram, por isso, negligencia<strong>do</strong>s<br />
política e economicamente durante<br />
décadas. Segun<strong>do</strong> Bright Onyekachi, professor<br />
de Ciência Política da Universidade<br />
de Covenant, no su<strong>do</strong>este da Nigéria, o principal<br />
fator para o crescimento de grupos<br />
fundamentalistas é a insatisfação com<br />
a liderança <strong>do</strong> país. “Os países africanos<br />
foram amalgama<strong>do</strong>s por seus mestres<br />
coloniais (europeus) devi<strong>do</strong> à ganância,<br />
e, na minha percepção, esses países não<br />
sāo realmente uni<strong>do</strong>s. Isso pode ser atribuí<strong>do</strong><br />
à presença de ocidentais, europeus<br />
e estrangeiros de outras partes que continuam<br />
manten<strong>do</strong> posiçōes que aumentam<br />
a desuniāo das pessoas e das lideranças<br />
desses países.”<br />
Aproveitan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> sentimento de<br />
aban<strong>do</strong>no <strong>do</strong> governo central nigeriano<br />
para com os grupos muçulmanos <strong>do</strong> país,<br />
o Boko Haram surgiu com objetivo de tornar<br />
a Nigéria uma república islâmica. Tal<br />
islamização seria uma forma de compensar<br />
os muçulmanos pelas décadas de esquecimento<br />
e exclusão. Cria<strong>do</strong> em 2002,<br />
o grupo acredita que a cultura ocidental<br />
reproduzida na sociedade seria a principal<br />
razão para os males no país e é necessário<br />
erradicá-la para combater a corrupção.<br />
Apesar <strong>do</strong>s eventuais conflitos causa<strong>do</strong>s<br />
pelo extremismo religioso, a intolerância<br />
de cre<strong>do</strong> não havia si<strong>do</strong> fator de<br />
divisão fundamental na Nigéria até o iní-<br />
55
cio <strong>do</strong>s anos 2000. Desde 1980, setores da<br />
sociedade muçulmana <strong>do</strong> norte <strong>do</strong> país se<br />
mostravam descontentes pela impossibilidade<br />
<strong>do</strong> estabelecimento da Sharia em seus<br />
territórios. Foi apenas com a transição democrática<br />
de 1999 que a lei islâmica passou<br />
a ser aceita legalmente nas regiões muçulmanas<br />
<strong>do</strong> país, causan<strong>do</strong> grande reboliço e<br />
sen<strong>do</strong> fator motivacional para os conflitos<br />
que assolam a região.<br />
Para Kucha, a solução de conflitos religiosos,<br />
que se tornaram politicos no norte<br />
da <strong>África</strong>, depende muito da ajuda <strong>do</strong>s guias<br />
islâmicos. “Grupos religiosos têm o dever<br />
supremo de pregar a tolerância em relação<br />
aos demais, porque os africanos são muito<br />
fervorosos e tendem a ouvir seus líderes religiosos.<br />
Os líderes religiosos tendem a afetar<br />
positivamente ou negativamente a Nigéria e<br />
a <strong>África</strong> como um to<strong>do</strong>”, conclui o jornalista.<br />
56<br />
OLHARES<br />
<strong>do</strong>MUNDO
Em 15 anos, Angola alfabetiza<br />
a maioria de suas mulheres<br />
Apesar <strong>do</strong>s avanços, os desafios ainda são muitos. Dentre eles, criar<br />
mais espaços dedica<strong>do</strong>s ao ensino formal e implantar políticas públicas<br />
que garantam o desenvolvimento das mulheres.<br />
Por Camila Eneyla,<br />
Danielly Bezerra e Jéssica Moraes<br />
Ao longo de 15 anos, Angola conseguiu<br />
um feito fundamental para<br />
o desenvolvimento <strong>do</strong>s países<br />
africanos: aumentar significativamente<br />
o número de mulheres alfabetizadas.<br />
Em 2001, apenas 25% das angolanas<br />
sabiam ler e escrever, enquanto 76%<br />
<strong>do</strong>s homens haviam frequenta<strong>do</strong> a escola.<br />
Atualmente, segun<strong>do</strong> Relatório de Desenvolvimento<br />
Humano (RDH) <strong>do</strong> Programa<br />
das Nações Unidas para o Desenvolvimento<br />
(PNUD), a população feminina <strong>do</strong>s 15 aos 24<br />
anos apresenta uma taxa de alfabetização<br />
de 66,6%, enquanto 79,8% <strong>do</strong>s homens de<br />
mesma faixa-etária são alfabetiza<strong>do</strong>s.<br />
O Ministério da Família e Promoção da<br />
Mulher tem desenvolvi<strong>do</strong>, com o apoio de<br />
ONGs, políticas públicas para a população<br />
<strong>do</strong> sexo feminino nos mais diversos âmbitos,<br />
mas ainda há necessidade de medidas<br />
para amparar mulheres que mantêm suas<br />
famílias através <strong>do</strong> trabalho informal. A escritora<br />
e advogada Ana Zulmira da Silva, 24,<br />
funcionária <strong>do</strong> Ministério das Finanças, diz<br />
que as angolanas enfrentam enormes dificuldades<br />
para conciliar trabalho e criação<br />
57
<strong>do</strong>s filhos. “Muitas mulheres andam com os<br />
filhos recém-nasci<strong>do</strong>s amarra<strong>do</strong>s às costas<br />
porque não têm um centro infantil público<br />
para deixá-los. Elas percorrem as ruas da<br />
cidade dia e noite, enquanto vão à busca de<br />
sustento, expon<strong>do</strong> as pobres crianças a situações<br />
de risco.”<br />
Guida Manuel Gamban<strong>do</strong>, 26, vende legumes<br />
e frutas em feiras de rua e sente a falta<br />
de apoio em relação às crianças. “As mulheres<br />
angolanas são muito trabalha<strong>do</strong>ras, esforçadas,<br />
elas fazem de tu<strong>do</strong> para manter a<br />
família. A sociedade angolana precisa construir<br />
escolas e ajudar as crianças e jovens<br />
desampara<strong>do</strong>s.”<br />
A economista Dúrcia Feijó de Souza, 24,<br />
afirma que a mão-de-obra feminina tem<br />
grande valor para a construção de uma<br />
economia mais sólida e plural. “Muitas mulheres<br />
atuam no merca<strong>do</strong> informal, pois o<br />
processo pós-guerra, ainda em manutenção,<br />
dificultou em grande parte o ingresso<br />
de indústrias e investimento priva<strong>do</strong> em Angola.<br />
Apenas nos últimos anos se vem refletin<strong>do</strong><br />
em números consideráveis a entrada<br />
e a criação de novas empresas, propician<strong>do</strong><br />
o acesso dessas mulheres ao merca<strong>do</strong> formal”,<br />
explica Dúrcia.<br />
No ano de 1975, Angola mergulhou numa<br />
guerra civil que se desenrolou por 27 anos.<br />
Nessa conjuntura, o desenvolvimento <strong>do</strong><br />
ensino formal foi prejudica<strong>do</strong>. As mulheres<br />
tiveram de sair de suas casas para prover<br />
o sustento das famílias. Não havia, assim, a<br />
oportunidade de passar pelos bancos escolares.<br />
“A maior parte <strong>do</strong>s homens não voltou<br />
para casa e as mulheres tiveram de levantar<br />
o país, reergue-lo. Elas passaram a ocupar<br />
os altos cargos e, então, hoje, você chega a<br />
Angola e encontra mulheres que têm muito<br />
dinheiro, mas elas ainda estão inseridas<br />
numa sociedade muito machista e conserva<strong>do</strong>ra”,<br />
relata a ativista e estudante de Relações<br />
Internacionais Suzana Maurício de<br />
20 anos.<br />
A escritora Zulmira da Silva concorda. “A<br />
sociedade africana ainda é muito conserva<strong>do</strong>ra<br />
e machista. Ela inibe certas mulheres<br />
de aproveitarem as oportunidades que implicam<br />
em se ausentar <strong>do</strong> lar. Para a maioria<br />
<strong>do</strong>s homens africanos uma mulher bem-sucedida<br />
profissionalmente não será uma boa<br />
esposa.”<br />
A necessidade de se construir mais espaços<br />
dedica<strong>do</strong>s ao ensino formal torna-se<br />
mais evidente através <strong>do</strong> depoimento de Su-<br />
58
59
zana. O pai da feminista se formou no Brasil<br />
e hoje reside em Angola. A mãe – que continua<br />
a estudar – ainda mora no Brasil. “Em<br />
Angola, o bom ensino é extremamente caro<br />
e a educação pública não tem qualidade. As<br />
escolas infantis são pouquíssimas. Minha<br />
prima de cinco anos estuda em uma escola<br />
turca em que a mensalidade custa R$6 mil.<br />
Muitas pessoas veem que estudar no exterior<br />
é mais em conta e muitos jovens acabam<br />
sain<strong>do</strong> <strong>do</strong> país. Se você quer dar uma<br />
boa educação para o seu filho, você tem de<br />
mandá-lo para fora.”<br />
Ela enfatiza ainda que, além de o estu<strong>do</strong><br />
ser economicamente mais acessível no exterior,<br />
as oportunidades de se conseguir um<br />
bom emprego, com uma melhor remuneração,<br />
são maiores para os que estudaram<br />
fora. “Meu pai estu<strong>do</strong>u na PUC e voltou para<br />
Angola para trabalhar. Lá, quem se formou<br />
fora, ganha um salário realmente digno e<br />
por isso ele voltou.”<br />
A economista observa que atualmente<br />
não há qualquer distinção de gênero no<br />
acesso às escolas em Angola. Há, entretanto,<br />
particularidades sociais, econômicas<br />
e culturais que determinam os diferentes<br />
destinos da<strong>do</strong>s às mulheres e homens. “Algumas<br />
famílias, em da<strong>do</strong> momento, dificultam<br />
o acesso das mulheres às escolas por<br />
entenderem que elas têm a obrigação de se<br />
ocupar das tarefas <strong>do</strong>mésticas. Tais fatos<br />
normalmente podem ser verifica<strong>do</strong>s entre<br />
as famílias com baixa condição social.”<br />
No que diz respeito à presença da mulher<br />
na política, a participação é maior que<br />
no Brasil. Aqui, são 45 deputadas em meio<br />
a 468 homens. Em Angola, são oito mulheres<br />
ocupan<strong>do</strong> ministérios num universo de<br />
36 homens. “São 83 deputadas entre 216<br />
homens. Temos secretárias de Esta<strong>do</strong> e não<br />
só, temos mulheres em posições que realmente<br />
transformam a situação da camada<br />
feminina angolana”, acrescenta a economista.<br />
Nesse panorama, veem-se duas Angolas:<br />
aquela em que progressos são alcança<strong>do</strong>s<br />
e a outra, em que parte <strong>do</strong> estrato feminino<br />
ainda precisa ser incluí<strong>do</strong> na agenda <strong>do</strong>s<br />
avanços sociais. “Aqui, ainda há necessidade<br />
de se elaborar mais políticas socais para<br />
mães e trabalha<strong>do</strong>ras. Por exemplo, quanto<br />
à licença de maternidade que é de apenas<br />
três meses e o número de faltas justificadas<br />
por <strong>do</strong>ença <strong>do</strong>s filhos, consultas de rotina e<br />
outras situações”, comenta Dúrcia.<br />
60
61 OLHARES<br />
<strong>do</strong>MUNDO
62
Ativistas lutam por respeito aos direitos<br />
humanos em Angola<br />
Repressão aos movimentos de oposição ao governo, com<br />
força excessiva contra manifestantes, faz <strong>do</strong> país um <strong>do</strong>s<br />
maiores viola<strong>do</strong>res das liberdades individuais e políticas,<br />
segun<strong>do</strong> relatório da Anistia Internacional.<br />
Por Débora Duarte, Larissa Maida,<br />
Mariana Souza e Rubia Chikos<br />
Joaquim Moniz de Andrade, 23 anos, conheci<strong>do</strong><br />
como Kim, milita num <strong>do</strong>s vários<br />
movimentos pela defesa <strong>do</strong>s direitos humanos<br />
em Angola desde os 18. Como<br />
outros jovens da capital Luanda, não teme sair às<br />
ruas para denunciar as arbitrariedades <strong>do</strong> governo<br />
de José Eduar<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Santos, no poder há 37 anos.<br />
Kim conta que os órgãos de repressão no país são<br />
violentos e ele já foi agredi<strong>do</strong> várias vezes. “O policial<br />
me dava soco na boca, imediatamente, fomos<br />
leva<strong>do</strong>s para um local onde fomos tortura<strong>do</strong>s. Nos<br />
batiam com ferro, chicote”, disse em entrevista via<br />
Facebook. Estudante de relações internacionais,<br />
63
Kim já trabalhou como repórter <strong>do</strong> site Central<br />
Angola 7311 e diz viver pela causa. “O<br />
anseio popular é maior em ver a mudança<br />
no país, desejo este que nos motivou a levar<br />
a cabo debates sobre os direitos humanos.”<br />
Angola aparece como um <strong>do</strong>s maiores<br />
viola<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s direitos humanos no Relatório<br />
da Anistia Internacional publica<strong>do</strong> em<br />
2015 justamente pela forte repressão aos<br />
movimentos de oposição ao governo. Segun<strong>do</strong><br />
a Anistia, os agentes de segurança<br />
usam força excessiva contra pessoas que<br />
criticam o governo, expõem a corrupção ou<br />
denunciam violações de direitos humanos.<br />
O exercício <strong>do</strong> direito à liberdade de expressão<br />
tem si<strong>do</strong> restringi<strong>do</strong>, com “defensores<br />
<strong>do</strong>s direitos humanos e críticos <strong>do</strong> governo<br />
sen<strong>do</strong> presos e submeti<strong>do</strong>s a ações penais<br />
em um Judiciário cada vez mais politiza<strong>do</strong>”,<br />
denuncia o relatório.<br />
Para fugir desse cenário, Alexandre Divua,<br />
25 anos, veio ao Brasil estudar pedagogia.<br />
Ele também é um ativista angolano e faz<br />
parte de um movimento estudantil conheci<strong>do</strong><br />
como Movimento Revolucionário. Nele,<br />
jovens inspira<strong>do</strong>s pela primavera árabe, desde<br />
2011, fazem manifestações contra o longo<br />
mandato <strong>do</strong> presidente angolano e lutam<br />
por reformas políticas. Em alguns protestos,<br />
o grupo tem consegui<strong>do</strong> reunir centenas de<br />
milhares de pessoas. Hoje, mesmo moran<strong>do</strong><br />
em São Paulo, Divua segue lutan<strong>do</strong> pela<br />
causa: “Continuo fazen<strong>do</strong> isso pelas redes<br />
sociais. E a gente faz ativismo também aqui<br />
no Brasil”, conta o angolano, que pretende<br />
voltar para seu país depois de terminar os<br />
estu<strong>do</strong>s.<br />
Angola é um país democrático, mas semipresidencialista,<br />
com eleições para uma<br />
lista fechada de deputa<strong>do</strong>s por parti<strong>do</strong>, que<br />
têm o poder de escolher o presidente e to<strong>do</strong>s<br />
os ministros de Esta<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> Divua,<br />
o sistema de eleições de Angola faz com<br />
que o país viole direitos básicos, pois, na visão<br />
dele, o presidente tem poder absoluto.<br />
“Ele manda <strong>do</strong> mercadinho até os policiais,<br />
e, quanto mais a polícia reprime (manifestantes),<br />
melhor para o governo”, comenta.<br />
O codiretor <strong>do</strong> jornal angolano “Folha 8”,<br />
Orlan<strong>do</strong> Castro, observa que Angola, na prática,<br />
continua funcionan<strong>do</strong> com um parti<strong>do</strong><br />
único, o MPLA (Movimento Popular de Libertação<br />
de Angola), como no passa<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong><br />
o país mantinha relações próximas com<br />
a União Soviética. “O regime foi obriga<strong>do</strong> a<br />
a<strong>do</strong>tar o multipartidarismo (o próprio presi-<br />
64
dente Eduar<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Santos diz que a democracia<br />
‘foi imposta’), mas continua a funcionar<br />
como nos tempos <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> único, na<br />
altura sustenta<strong>do</strong> pela URSS. Assim sen<strong>do</strong>,<br />
usa a força para calar os opositores, pouco<br />
se importan<strong>do</strong> – como é comum nas ditaduras<br />
– com os direitos humanos e as liberdades<br />
individuais e coletivas.”<br />
Angola é signatária de todas as convenções<br />
da ONU para os direitos humanos,<br />
mas, segun<strong>do</strong> Divua, a prática é bem diferente:<br />
“Tem muita perseguição de jornalistas<br />
e violação <strong>do</strong>s direitos de ir e vir”. O<br />
jornalista Orlan<strong>do</strong> Castro confirma. “O regime<br />
está procuran<strong>do</strong> calar os jornalistas que<br />
teimam em pensar pela própria cabeça e<br />
que só prestam explicações a quem devem:<br />
os seus leitores”. Em entrevista por e-mail,<br />
o jornalista conta que “põe a força da razão<br />
acima da razão da força” e, por isso, se considera<br />
um ativista.<br />
Para o pesquisa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Centro de Estu<strong>do</strong>s<br />
Internacionais (CEI) <strong>do</strong> Instituto Universitário<br />
de Lisboa, o angolano Eugénio Costa<br />
Almeida, a situação política no país tem relação<br />
direta com a violação <strong>do</strong>s direitos humanos.<br />
“Por ter o pre<strong>do</strong>mínio de um parti<strong>do</strong><br />
político, seus dirigentes parecem não respeitar<br />
os limites de liberdade <strong>do</strong>s que não seguem<br />
a sua linha de pensamento”, observou<br />
o pesquisa<strong>do</strong>r, que também colabora com<br />
publicações jornalísticas de Angola, como o<br />
“Novo Jornal” e “Zwela”. Segun<strong>do</strong> ele, o problema<br />
está na restrição das liberdades e, até<br />
mesmo, na falta de informação. “O principal<br />
órgão diário informativo escrito, o “Jornal de<br />
Angola”, bem como a Rádio Nacional – única<br />
com autorização para emitir para to<strong>do</strong> o<br />
país – ou a Televisão Pública, não cumprem<br />
com o disposto no artigo 40 da Constituição<br />
angolana (sobre liberdade de expressão)”,<br />
diz Almeida, referin<strong>do</strong>-se ao fato de as principais<br />
mídias serem silenciadas.<br />
O português Fernan<strong>do</strong> Jorge Car<strong>do</strong>so é<br />
coordena<strong>do</strong>r da área de estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Instituto<br />
Marquês de Valle Flor, uma organização<br />
não governamental que procura promover o<br />
desenvolvimento das populações mais carentes.<br />
Especialista em assuntos africanos,<br />
possui cinco publicações sobre o tema, entre<br />
elas “Diplomacia, Cooperação e Negócios: o<br />
papel <strong>do</strong>s atores externos em Angola e Moçambique”.<br />
Car<strong>do</strong>so observa que a situação<br />
em que Angola se encontra, principalmente<br />
nas questões relacionadas aos direitos humanos,<br />
tem relação maior com abusos da<br />
65
polícia. “Esses relatórios são feitos muito na<br />
base de opiniões de membros da sociedade<br />
civil, bastante críticos <strong>do</strong> governo. Não tenho<br />
conhecimento de situações de tortura,<br />
assassinato ou desaparecimento de pessoas<br />
por motivos políticos. Por outro la<strong>do</strong>,<br />
existe e isso é visível, uma imprensa escrita<br />
fortemente contestatária <strong>do</strong> poder e que circula<br />
com relativa liberdade.”<br />
Os ativistas ouvi<strong>do</strong>s por “<strong>Olhares</strong> <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>”<br />
afirmam, no entanto, que, embora não<br />
haja tortura sistemática como nas piores ditaduras,<br />
as violações aos direitos humanos<br />
em Angola são constantes. Para Alexandre<br />
Divua, o caminho para reverter essa situação<br />
seria uma reforma política que permitisse<br />
mais participação e mais pressão da comunidade<br />
internacional sobre as lideranças<br />
políticas. “Os países que assinam acor<strong>do</strong>s<br />
(de proteção aos direitos humanos) devem<br />
pressionar Angola a respeitá-los. Ao mesmo<br />
tempo é necessário, segun<strong>do</strong> ele, que<br />
a população seja conscientizada sobre o<br />
assunto. “Nas universidades eles não ensinam,<br />
eles não falam de direitos humanos”,<br />
lamenta.<br />
66<br />
OLHARES<br />
<strong>do</strong>MUNDO
Fugin<strong>do</strong> da crise econômica em<br />
seu país, angolanos encontram<br />
dificuldades semelhantes no Brasil<br />
A queda <strong>do</strong> preço <strong>do</strong> petróleo no merca<strong>do</strong> internacional teve forte impacto sobre a<br />
economia de Angola. O Brasil foi o destino de milhares de imigrantes, que, diante da<br />
recessão no país, já pensam em voltar para casa.<br />
Por Lucas Valim,<br />
Matheus Riga e Vinicius Ribeiro<br />
Para um imigrante, seja de qual nacionalidade<br />
for, quan<strong>do</strong> o dinheiro<br />
falta, e a família, que está em outro<br />
la<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, começa a sofrer<br />
com isso, é hora de parar e repensar se viver<br />
em outro país compensa. Um angolano ouvi<strong>do</strong><br />
por nossa reportagem, que está há <strong>do</strong>is<br />
anos em São Paulo e prefere não ser identifica<strong>do</strong>,<br />
reflete a decepção de muitos imigrantes<br />
econômicos com a opção de construir<br />
uma nova vida no Brasil. “Não vale mais a<br />
pena tentar uma vida aqui no Brasil. Com as<br />
poucas oportunidades que há, fica difícil enviar<br />
dinheiro para casa”, disse o imigrante de<br />
30 anos.<br />
Centenas de angolanos que cruzaram o<br />
Atlântico por causa da crise econômica provocada<br />
pela queda na cotação internacional<br />
<strong>do</strong> petróleo, principal produto <strong>do</strong> pais, acabaram<br />
por encontrar, no Brasil, o mesmo inimigo<br />
<strong>do</strong> qual estavam fugin<strong>do</strong>: recessão e<br />
desemprego. O angolano que encontramos<br />
na Paróquia Nossa Senhora da Paz, uma<br />
casa de amparo a imigrantes e refugia<strong>do</strong>s<br />
67
68
de todas as nacionalidades, vivia de maneira<br />
estável e confortável com um salário de US$<br />
700 até a empresa em que trabalhava falir.<br />
Desemprega<strong>do</strong>, desembarcou em São<br />
Paulo, onde conseguiu apenas um emprego<br />
de garçom. “Gostaria de começar cursos<br />
aqui no Brasil para que meus ganhos crescessem,<br />
porque as vagas que são oferecidas<br />
nos Centros de Ajuda, como a Missão<br />
Paz, não são suficientes para pagar as contas<br />
durante meu tempo no Brasil”, diz ele.<br />
A Missão Paz, ligada à paróquia, é um<br />
<strong>do</strong>s vários projetos que tentam auxiliar os<br />
imigrantes e refugia<strong>do</strong>s no Brasil. O diretor<br />
da missão, o padre italiano Paolo Parise, diz<br />
que houve um aumento de africanos atendi<strong>do</strong>s<br />
pela paróquia. “Há dez anos, em nosso<br />
banco de da<strong>do</strong>s, os africanos atendi<strong>do</strong>s<br />
eram 0,8%. Hoje em dia, esse número já está<br />
entre 14% e 15%”, conta.<br />
De acor<strong>do</strong> com da<strong>do</strong>s da Polícia Federal,<br />
a imigração africana aumentou 30 vezes<br />
desde 2000. O relatório diz que, no início<br />
deste século, viviam no país 1.054 africanos<br />
regulariza<strong>do</strong>s de 38 nacionalidades, mas o<br />
número cresceu, em 2012, para 31.866 cidadãos<br />
legaliza<strong>do</strong>s, de 48 das 54 nações<br />
<strong>do</strong> continente. A procura pelo Brasil cresceu<br />
muito com a crise de 2008 na Europa e o<br />
bom desempenho da economia brasileira<br />
na época.<br />
Em relação aos angolanos com status<br />
de refugia<strong>do</strong> por algum tipo de perseguição<br />
em seu próprio país, o Ministério da Justiça<br />
diz que eles são o segun<strong>do</strong> maior grupo<br />
no Brasil, só perden<strong>do</strong> para os sírios. Da<strong>do</strong>s<br />
oficiais divulga<strong>do</strong>s em abril deste ano, apontam<br />
1.420 refugia<strong>do</strong>s angolanos em solo<br />
brasileiro, de um total de 8.863. O Itamaraty<br />
confirma o crescente afluxo de angolanos.<br />
O número de vistos expedi<strong>do</strong>s na Embaixada<br />
Brasileira em Luanda, capital da Angola,<br />
no primeiro trimestre <strong>do</strong> ano foi de 3.886, o<br />
que implica dizer que, em média, 2 angolanos<br />
por dia entram no Brasil. No entanto, os<br />
vistos, a maioria de turismo, acabam por ser<br />
uma tática para permanecer no pais.<br />
O padre Parise relata que muitos angolanos<br />
chegam ao aeroporto de Guarulhos,<br />
apresentan<strong>do</strong>-se como refugia<strong>do</strong>s, e a Polícia<br />
Federal, pelas convenções internacionais<br />
“não pode recusar e então faz o protocolo<br />
de solicitação de refúgio. “Com isso, os<br />
angolanos ganham status de refugia<strong>do</strong>s por<br />
cerca de <strong>do</strong>is anos, que é a média de duração<br />
da análise <strong>do</strong> pedi<strong>do</strong>. Hoje, ainda segun-<br />
69
<strong>do</strong> o Ministério da Justiça, existem 2.281<br />
solicitações pendentes de refúgio para os<br />
angolanos.<br />
Sen<strong>do</strong> o visto só concedi<strong>do</strong>, na maioria<br />
das vezes, em casos de desrespeito aos<br />
direitos humanos, como, por exemplo, perseguição<br />
religiosa ou de raça, os refugia<strong>do</strong>s<br />
econômicos adicionam, à incerteza <strong>do</strong> visto,<br />
a dúvida da permanência no país, devi<strong>do</strong><br />
aos salários baixos, que não sustentam<br />
a eles mesmos e suas famílias, no país de<br />
origem.<br />
É o caso de Daniel Belo, 27 anos, outro<br />
angolano ouvi<strong>do</strong> pela reportagem. Receoso<br />
de falar sobre sua situação no Brasil, ele<br />
diz apenas que veio em busca de emprego<br />
no Brasil. Na capital paulista há aproximadamente<br />
três meses, Daniel conta com o<br />
apoio da Missão Paz. Otimista, ele diz que<br />
foi muito bem recepciona<strong>do</strong> e que não teve<br />
dificuldades em se adaptar, pois em Angola<br />
já conhecia muitos brasileiros, que o auxiliaram<br />
a entender a cultura local. “Primeiro eu<br />
preciso saber como estão as condições no<br />
Brasil e depois decidir tu<strong>do</strong>, saber como são<br />
as leis no Brasil e só depois pensar no que<br />
fazer”, afirma o jovem, que pretende, futuramente,<br />
trazer a família.<br />
Para Marcelo Haydu, diretor executivo da<br />
Adus, Instituto de Reintegração <strong>do</strong> Refugia<strong>do</strong>,<br />
ONG destinada a promover a valorização<br />
e inserção econômica, social e cultural <strong>do</strong>s<br />
refugia<strong>do</strong>s em São Paulo. Dentre as principais<br />
dificuldades <strong>do</strong>s africanos em solo brasileiro,<br />
a inserção no merca<strong>do</strong> de trabalho é<br />
uma das mais comentadas pelos refugia<strong>do</strong>s.<br />
“A falta de conhecimento sobre a realidade<br />
<strong>do</strong> refúgio gera me<strong>do</strong>, desconfiança, o<br />
que leva a casos de preconceito, e isso certamente<br />
dificulta a inserção laboral de to<strong>do</strong>s<br />
eles”, afirma.<br />
Haydu, falan<strong>do</strong> especificamente de Angola,<br />
aponta a relação histórica <strong>do</strong> país africano<br />
com o Brasil como principal motivo da<br />
preferência pelo Brasil. Segun<strong>do</strong> ele, a presença<br />
de empresas brasileiras em Angola e<br />
os convênios realiza<strong>do</strong>s entre universidades<br />
<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is países geraram um maior fluxo de<br />
migração. Além disso, no que se diz respeito<br />
à inserção no merca<strong>do</strong> de trabalho, o diretor<br />
afirma que os angolanos têm um trunfo<br />
em comparação com os companheiros de<br />
continente. “A dificuldade para conseguir<br />
emprego é a mesma para to<strong>do</strong>s os africanos,<br />
mas os angolanos têm a facilidade <strong>do</strong><br />
idioma, pois também falam português.”<br />
70
O angolano Paullo Macongo, de 23 anos,<br />
vice-presidente da Associação <strong>do</strong>s Angolanos<br />
em São Paulo, discorda. “Mesmo com<br />
a Angola ten<strong>do</strong> a língua oficial o português,<br />
ainda assim existe muito preconceito na fonética,<br />
e acredito que isso pode ser uma das<br />
causas principais de reprovação em algumas<br />
entrevistas, principalmente na área de<br />
atendimento”.<br />
Macongo, que chegou a São Paulo há<br />
quatro anos para cursar o ensino superior,<br />
diz que o objetivo da associação é auxiliar<br />
qualquer estudante angolano que venha<br />
ao Brasil, desde a recepção até a<br />
<strong>do</strong>cumentação. “O principal objetivo de<br />
to<strong>do</strong>s os estudantes angolanos, assim<br />
como eu, é se formar e depois regressar<br />
para Angola para então poder ajudar<br />
a resolver problemas que a nossa<br />
sociedade enfrenta”, afirma. A crença<br />
de que sua vinda ao Brasil tem um<br />
propósito e fará a diferença no futuro<br />
de seu país é o que mantém Macongo<br />
firme para continuar estudan<strong>do</strong>.<br />
71<br />
OLHARES<br />
<strong>do</strong>MUNDO
ÁFRICA AUSTRAL<br />
Disputa por empregos provoca ataques<br />
xenófobos na <strong>África</strong> <strong>do</strong> Sul<br />
Mesmo com políticas públicas de igualdade racial e social, população<br />
ainda se ressente por crescimento econômico de estrangeiros no país.<br />
Por Aline Oliveira, Douglas Oliveira,<br />
Mariana Perbone e Victoria Köhler<br />
A<br />
<strong>África</strong> <strong>do</strong> Sul é o país mais xenófobo<br />
da <strong>África</strong>, segun<strong>do</strong> uma recente<br />
pesquisa realizada em 33 países<br />
africanos pela organização não-governamental<br />
Afrobarómetro e que apontou<br />
os sul-africanos como os menos tolerantes<br />
quan<strong>do</strong> o assunto é imigração. Mais de 60%<br />
<strong>do</strong>s sul-africanos entrevista<strong>do</strong>s disseram<br />
não gostar de imigrantes. Os da<strong>do</strong>s vieram a<br />
público em 2016, um ano após uma série de<br />
ataques contra estrangeiros deixar sete mortos<br />
e 307 presos no país.<br />
O grande número de imigrantes na <strong>África</strong><br />
<strong>do</strong> Sul se deve, principalmente, à Moçambique.<br />
A proximidade e a boa relação entre os<br />
<strong>do</strong>is países, faz com que as pessoas se desloquem<br />
de um para o outro constantemente.<br />
Estima-se que atualmente existam cerca de<br />
um milhão de moçambicanos na <strong>África</strong> <strong>do</strong><br />
Sul.<br />
Durante os ataques xenófobos, os imigrantes<br />
moçambicanos se tornaram os<br />
principais alvos. Isso fez com que o governo<br />
sul-africano enviasse para casa cerca de 600<br />
imigrantes que estavam refugia<strong>do</strong>s em centros<br />
de acolhimento na cidade de Durban. Outros<br />
1500 moçambicanos teriam regressa<strong>do</strong><br />
ao país por meios próprios.<br />
72
73
Para David Dickinson, professor de sociologia<br />
da Universidade de Witwatersrand em Joannesburgo,<br />
na <strong>África</strong> <strong>do</strong> Sul, os ataques xenófobos são<br />
resquícios <strong>do</strong> Apartheid.<br />
Ele explica que a constituição pós 1994 consoli<strong>do</strong>u<br />
direitos iguais a to<strong>do</strong>s, porém não conseguiu<br />
diminuir a desigualdade econômica no país. Com<br />
isso, pessoas que não conseguiram aumentar o<br />
poder aquisitivo acabaram culpan<strong>do</strong> os estrangeiros<br />
e os pegaram como bode expiatório das suas<br />
expectativas frustradas. “A vida da maioria <strong>do</strong>s<br />
africanos melhorou, mas menos <strong>do</strong> que esperavam”,<br />
disse Dickinson em entrevista por e-mail.<br />
No Apartheid, que vigorou entre os anos de<br />
1948 a 1994, a minoria branca era a única com<br />
direito a voto e detentora <strong>do</strong> poder político e econômico<br />
<strong>do</strong> país, enquanto a imensa maioria negra<br />
sofria grave discriminação e era obrigada a<br />
obedecer rigorosamente a legislação separatista.<br />
Naquele perío<strong>do</strong> ainda, foram criadas pelos<br />
brancos, cidades separadas e essencialmente<br />
negras, chamadas “townships”. Era nestes lugares<br />
que os negros podiam morar e construir suas<br />
vidas, porém sem nenhum direito político ou econômico.<br />
Enquanto isso, os brancos desfrutavam<br />
de um alto padrão de vida, com mão-de-obra barata<br />
negra.<br />
Com o fim <strong>do</strong> regime, os negros esperavam<br />
uma vida melhor, com rápi<strong>do</strong><br />
crescimento econômico e social, o que,<br />
em parte, aconteceu. Surgiu uma classe<br />
média africana negra, influenciada<br />
principalmente por subsídios sociais.<br />
Porém, não houve tanto crescimento<br />
quanto o espera<strong>do</strong>.<br />
“A criação de pequenas empresas<br />
nos ‘townships’ torna esses direitos<br />
acessíveis à maioria africana, e alguns<br />
(negros que não progrediram) se<br />
ressentem pelo sucesso econômico<br />
aparente deles”, explica Dickinson. A<br />
partir disso, os ataques xenófobos<br />
começaram e a violência tornou-se<br />
recorrente no país, que recebe cerca de<br />
<strong>do</strong>is milhões de imigrantes africanos<br />
<strong>do</strong>cumenta<strong>do</strong>s, fora os ilegais.<br />
Segun<strong>do</strong> Dickinson, a violência<br />
contra o imigrante negro continua<br />
acontecen<strong>do</strong>. Semanalmente, <strong>do</strong>nos<br />
de lojas estrangeiras instala<strong>do</strong>s em<br />
cidades que eram essencialmente negras<br />
sofrem com ataques. Os anos de<br />
2008, com 42 mortos e 2015, com sete<br />
mortos, marcaram o auge <strong>do</strong>s conflitos,<br />
que chegaram à grande mídia.<br />
74
Para entender o motivo real dessa reação<br />
no país, Dickinson explica que, mesmo com<br />
o constante apoio <strong>do</strong> governo para melhorar<br />
qualidade de vida da maioria, as políticas<br />
sociais não foram capazes de criar emprego<br />
para to<strong>do</strong>s. Atualmente, o desemprego está<br />
por volta de 25-35%, e muitos sul-africanos<br />
acreditam que os estrangeiros podem tirar<br />
os empregos <strong>do</strong>s negros no país.<br />
“Muitos <strong>do</strong>s empregos que estão disponíveis<br />
para aqueles com pouco estu<strong>do</strong> são os<br />
que podem ser descritos como ‘precários’.<br />
Eles fornecem o suficiente para sobreviver,<br />
mas não o suficiente para melhorar a situação<br />
econômica de uma pessoa, ou para ajudar<br />
seus filhos a alcançar uma vida melhor.<br />
Isso cria um terreno fértil para ataques a estrangeiros<br />
que mantem empresas nos municípios”,<br />
esclarece Dickinson.<br />
Segun<strong>do</strong> Loren Landau, pesquisa<strong>do</strong>r de<br />
Mobilidade e Política da Diferença <strong>do</strong> Centro<br />
Africano de Migração e Sociedade da Universidade<br />
de Witwatersrand, algumas iniciativas<br />
<strong>do</strong> governo sul-africano para tentar contornar<br />
o problema, acabam por aumentar ainda mais<br />
a distancia entre imigrantes e mora<strong>do</strong>res.<br />
Em abril de 2015, logo após<br />
os ataques que deixaram vários<br />
mortos no país, o governo<br />
sul-africano lançou a “Operação<br />
Fiela”, com o objetivo de proteger<br />
os imigrantes e aumentar<br />
a segurança no país. Em vez<br />
disso, selecionou e prendeu milhares<br />
de imigrantes sem <strong>do</strong>cumentos.<br />
“Isso foi aparentemente<br />
feito para (a) combater o crime e<br />
(b) assegurar que os imigrantes<br />
que permanecessem fossem<br />
aceitos como legítimos e legais<br />
por parte <strong>do</strong>s cidadãos”, afirma<br />
Landau.<br />
Ainda não há solução concreta<br />
para a resolução <strong>do</strong> problema.<br />
Enquanto os negros não se<br />
sentirem totalmente reintroduzi<strong>do</strong>s<br />
na economia <strong>do</strong> país, o sentimento<br />
de não pertencimento à<br />
nação e repulsa aos imigrantes<br />
que conseguiram se levantar<br />
continuará causan<strong>do</strong> reações<br />
das mais adversas no país.<br />
75
Moçambicanos<br />
Em Moçambique, a recepção da notícia<br />
sobre os ataques xenófobos aos conterrâneos<br />
não foi das melhores. As imagens <strong>do</strong><br />
assassinato <strong>do</strong> moçambicano Emmanuel<br />
Sithole em Alexandria, nos arre<strong>do</strong>res de Joanesburgo,<br />
correram o país e sentiu-se, na<br />
imprensa, nos espaços públicos e nas conversas<br />
de rua, uma profunda revolta sobre o<br />
que tinha aconteci<strong>do</strong>, até mesmo pelos <strong>do</strong>is<br />
países serem alia<strong>do</strong>s históricos. No perío<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> apartheid, o atual presidente sul-africano<br />
Jacob Zuma chegou a ficar exila<strong>do</strong> por anos<br />
em Moçambique por conta das perseguições<br />
durante o regime.<br />
A consequência dessa recepção negativa<br />
foi a retaliação por parte de alguns grupos<br />
de moçambicanos contra sul-africanos residentes<br />
no país. Em abril de 2015, trabalha<strong>do</strong>res<br />
sul-africanos em algumas minera<strong>do</strong>ras<br />
<strong>do</strong> pais não puderam trabalhar durante<br />
um largo perío<strong>do</strong>, e, na petrolífera Sasol, funcionários<br />
moçambicanos exigiram o repatriamento<br />
em menos de 24 horas <strong>do</strong>s seus<br />
colegas sul-africanos.<br />
No mesmo mês, trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> complexo<br />
industrial de Ressano Garcia, que fica próxima<br />
à principal fronteira entre Moçambique e<br />
<strong>África</strong> <strong>do</strong> Sul, pararam de trabalhar e exigiram<br />
à expulsão <strong>do</strong>s sul-africanos emprega<strong>do</strong>s no<br />
local. Nessa mesma região, foram armadas<br />
barricadas que impediam à circulação de viaturas<br />
com matrícula sul-africana.<br />
Henrique Botequilha, correspondente da<br />
Agência Lusa em Moçambique, explica que,<br />
para a <strong>África</strong> <strong>do</strong> Sul, a base da crise estava<br />
na imigração ilegal, associada à criminalidade.<br />
“É incerto o número total de moçambicanos<br />
no país vizinho, mas são pelo menos<br />
um milhão, muitos deles ilegais, à procura<br />
de melhores condições de vida na principal<br />
economia da região, trabalhan<strong>do</strong> nas minas,<br />
nos campos ou em vendas informais nos<br />
grandes centros urbanos”, observa o jornalista<br />
em entrevista por e-mail.<br />
Para os moçambicanos, a <strong>África</strong> <strong>do</strong> Sul<br />
é vista como o país com as melhores condições<br />
de vida <strong>do</strong> continente e aquele no<br />
qual o acesso é mais fácil por conta da<br />
proximidade entre os territórios. Já para os<br />
sul-africanos, a principal justificativa para a<br />
dependência ocorre devi<strong>do</strong> à hidroelétrica<br />
de Cahora Bassa (HCB), principal fonte de<br />
energia da <strong>África</strong> <strong>do</strong> Sul, que está localizada<br />
em solo moçambicano.<br />
76
“Não foi por acaso que os ex-presidentes<br />
moçambicanos Joaquim Chissano e Arman<strong>do</strong><br />
Guebuza se declararam satisfeitos<br />
com as explicações de Pretória sobre a crise<br />
xenófoba e que Zuma se apressou a deslocar-se<br />
a Maputo, não só para pedir desculpa<br />
como para salvaguardar a dependência<br />
energética que o seu país mantém em relação<br />
a Moçambique”, explica Botequilha.<br />
Os ataques xenófobos, no entanto, diminuíram<br />
o movimento migratório. Apesar <strong>do</strong>s<br />
momentos turbulentos pelos quais passa o<br />
país sul-africano, Moçambique sofre com<br />
uma forte crise na sua economia, aliada a<br />
uma grande subida de preços e acompanha<strong>do</strong><br />
de uma seca sem precedentes no centro<br />
e sul <strong>do</strong> país.<br />
Para Francisco de Assis, diretor executivo<br />
<strong>do</strong> Centro de Estu<strong>do</strong> e Transformações<br />
de Conflitos da ONG Justapaz em Moçambique,<br />
é necessário fazer um trabalho de<br />
base entre os <strong>do</strong>is países para entender o<br />
real motivo da ocorrência <strong>do</strong>s casos e desenvolver<br />
um conjunto de políticas públicas<br />
para desenvolver empregos no país e reduzir<br />
a imigração e a dependência <strong>do</strong> trabalho<br />
mineiro e das fazendas sul-africanas. “Os<br />
moçambicanos não podem ter a <strong>África</strong> <strong>do</strong><br />
Sul como a única alternativa aos seus problemas,<br />
temos que conceber soluções <strong>do</strong>mésticas<br />
para os nossos próprios desafios”.<br />
Para tentar por um fim à essa crise, no<br />
dia 27 de fevereiro de 2016, os presidentes<br />
Filipe Nyusi de Moçambique e Jacob Zuma<br />
da <strong>África</strong> <strong>do</strong> Sul inauguraram um monumento<br />
aos “mártires da Matola”, num gesto simbólico<br />
interpreta<strong>do</strong> como o capítulo final da<br />
crise xenófoba.<br />
77<br />
OLHARES<br />
<strong>do</strong>MUNDO
78
ÁFRICA SETENTRIONAL<br />
Negros encontram representação<br />
na ancestralidade egípcia<br />
Com base nas teorias <strong>do</strong> antropólogo senegalês Cheikh Anta Diop,<br />
que encontrou vestígios de DNA correspondente a negros nas múmias<br />
egípcias, africanos reivindicam protagonismo na história <strong>do</strong> Egito.<br />
Por Beatriz Araújo, Beatriz Izzo,<br />
Hanna Oliveira e Marinna Guglielmoni<br />
O<br />
movimento negro espalha<strong>do</strong> pelo<br />
mun<strong>do</strong> está, há muito tempo, pedin<strong>do</strong><br />
uma revisão da história <strong>do</strong><br />
Egito com base nos estu<strong>do</strong>s que<br />
comprovam a origem negra da nação localizada<br />
no norte da <strong>África</strong>, diferentemente <strong>do</strong><br />
que é retrata<strong>do</strong> nos livros. Para o movimento,<br />
o motivo <strong>do</strong> silêncio sobre a cultura negra<br />
na história <strong>do</strong> país é o racismo.<br />
A icônica representação de Cleópatra<br />
protagonizada por Elizabeth Taylor, de pele<br />
branca, olhos azuis turquesa, traços finos,<br />
delica<strong>do</strong>s e cabelos negros lisos, em um<br />
longa-metragem de 1963 produzi<strong>do</strong> por Es-<br />
79
ta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, Reino Uni<strong>do</strong> e Suíça, em nada<br />
se assemelha aos traços das múmias egípcias<br />
encontradas por arqueólogos ao longo<br />
da história: narinas largas, cabelos trança<strong>do</strong>s<br />
e escuros, grande quantidade de melanina<br />
no DNA e genética classificada como<br />
“negróide”.<br />
O filme “Cleópatra” é um exemplo de como<br />
a cultura negra é eliminada na representação<br />
de grandes civilizações da antiguidade.<br />
Foi contra essa narrativa que o antropólogo<br />
Cheikh Anta Diop (1923-1986), considera<strong>do</strong><br />
um <strong>do</strong>s maiores estudiosos da cultura africana<br />
pré-colonial no século XX, se voltou.<br />
Durante mais de 30 anos de sua vida acadêmica,<br />
Diop aprofun<strong>do</strong>u estu<strong>do</strong>s científicos,<br />
históricos e antropológicos para provar que<br />
o Antigo Egito era negro. E o atual ainda é,<br />
60% da população egípcia é negra.<br />
O antropólogo e historia<strong>do</strong>r senegalês<br />
conseguiu, com testes em múmias datadas<br />
de 6 mil anos a.C., rebater a ideia de que os<br />
negros egípcios de hoje são imigrantes de<br />
países mais ao sul da <strong>África</strong>. Diop encontrou<br />
altos níveis de melanina, classifican<strong>do</strong><br />
as múmias como inquestionavelmente pertencentes<br />
a negros, o que foi comprova<strong>do</strong><br />
também com evidências ósseas e de tipo<br />
sanguíneo compatíveis aos <strong>do</strong>s negros da<br />
<strong>África</strong> ocidental e diferentes das <strong>do</strong>s brancos<br />
europeus e árabes.<br />
O antropólogo também descobriu uma<br />
unidade linguística <strong>do</strong> dialeto egípcio e senegalês<br />
e registros de como os próprios<br />
egípcios se viam na antiguidade como um<br />
povo negro. Se hoje, para a cultura eurocêntrica<br />
a cor branca é associada ao angelical<br />
e a escuridão ao mal, Cheikh Anta<br />
Diop descobriu que, para a civilização<br />
egípcia, em oposição à cultura europeia, o<br />
negro era associa<strong>do</strong> ao divino, ao bom.<br />
De acor<strong>do</strong> com a professora paulista<br />
Juliana Aparecida de Souza Guilherme, especialista<br />
em história da cultura afro-brasileira<br />
e africana, a história ainda é muito<br />
eurocêntrica e por isso resiste em aceitar<br />
os negros como protagonistas. “Alguns<br />
acadêmicos ainda relutam em aceitar a<br />
ideia de um Egito negro. Por conta <strong>do</strong> imperialismo<br />
no século XIX, foi necessário<br />
criar a ideia de um Egito branco, portanto,<br />
fora da ideia de inferioridade a qual os<br />
povos africanos foram submeti<strong>do</strong>s”, disse<br />
Juliana, administra<strong>do</strong>ra da página “O Egito<br />
Negro de Cheikh Anta Diop” no Facebook,<br />
com mais de três mil curtidas.<br />
80
O debate sobre a ascendência negra <strong>do</strong>s<br />
egípcios não agrada a to<strong>do</strong>s. O historia<strong>do</strong>r<br />
e antropólogo Rukono Rashid, autor de vários<br />
livros sobre a representação africana<br />
no mun<strong>do</strong>, rejeita a ideia de a questão ser<br />
discutida fora <strong>do</strong> movimento negro. Quan<strong>do</strong><br />
consulta<strong>do</strong> por nossa reportagem sobre os<br />
estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong> professor Diop, respondeu que<br />
“o fato de procurar entender os porquês da<br />
falta de crédito aos negros na história <strong>do</strong><br />
Egito é também uma forma de segregação<br />
e preconceito.”<br />
Autora da monografia “O papel <strong>do</strong> racismo<br />
na construção <strong>do</strong> Egito branco” defendida<br />
em 2013 no curso de especialização <strong>do</strong><br />
Centro Universitário Claretiano (Batataes-<br />
-SP), Juliana discorda da posição de Rashid.<br />
Ela ressalta que a academia está cada vez<br />
mais empenhada em inserir o protagonismo<br />
negro nas pesquisas históricas e sociais,<br />
trabalhan<strong>do</strong> no resgate da história africana.<br />
Esse empenho, porém, é mais observa<strong>do</strong><br />
nos historia<strong>do</strong>res liga<strong>do</strong>s a movimentos<br />
sociais, que buscam estudar a trajetória e a<br />
contribuição africana na história mundial.<br />
Nas salas de aula, ao contrário, a realidade,-<br />
segun<strong>do</strong> ela, são livros didáticos que pouco<br />
absorvem o que está sen<strong>do</strong> produzi<strong>do</strong> na<br />
universidade, com referências rasas ou inexistentes<br />
sobre o Egito como parte da nação<br />
africana. Para ela, inserir essas pesquisas<br />
nos materiais didáticos é o que poderá contribuir<br />
para uma educação antirracista.<br />
Outra questão importante, segun<strong>do</strong> ela, é<br />
oferecer aos alunos negros representatividade<br />
nos grandes feitos da história. “Quan<strong>do</strong><br />
falo da origem negra <strong>do</strong>s antigos egípcios, os<br />
alunos negros se sentem representa<strong>do</strong>s em<br />
algum momento da história que não seja a<br />
escravidão. Mas ainda precisamos avançar<br />
muito nessa questão, pois ao mesmo tempo<br />
que apresento um Egito negro e africano em<br />
sala de aula, a televisão apresenta um Egito<br />
branco e distante de toda africanidade possível”,<br />
observa a professora.<br />
Neste contexto, o ativista egípcio Abdel<br />
Rahman Sherif diz que ainda há muito caminho<br />
a percorrer, os egípcios continuam isola<strong>do</strong>s<br />
e estereotipa<strong>do</strong>s como os servos que<br />
vemos nos filmes. “O Egito moderno não é<br />
negro. O Egito é um país árabe <strong>do</strong> Oriente<br />
Médio que está localiza<strong>do</strong> na <strong>África</strong>. Assim,<br />
os egípcios não se consideram da <strong>África</strong>.Se<br />
você lhes dissesse que eles são africanos,<br />
interpretariam como um insulto”, comentou<br />
o ativista em entrevista por e-mail.<br />
81
Sherif, que só recentemente conheceu as<br />
contribuições de Cheikh Anta Diop, afirma<br />
que a maioria <strong>do</strong>s egípcios não sabe sobre<br />
sua ascendência africana. “Os egípcios consideraram<br />
a pele negra como algo feio e <strong>do</strong><br />
qual, de mo<strong>do</strong> algum, devemos nos orgulhar.<br />
Então, apesar de não saberem à respeito <strong>do</strong><br />
estu<strong>do</strong> feito, eles jamais aceitariam.”<br />
Para Sherif, se os estu<strong>do</strong>s feitos por<br />
Cheikh Anta Diop fossem aceitos pelos egípcios,<br />
haveria uma nova oportunidade de representação<br />
<strong>do</strong>s negros na mídia. O único<br />
negro famoso no país, segun<strong>do</strong> ele, é um<br />
cantor chama<strong>do</strong> Mohammed Mounir, que<br />
por muitas vezes em sua vida, perdeu chances<br />
apenas por ser negro.<br />
82<br />
OLHARES<br />
<strong>do</strong>MUNDO
Créditos/fotos<br />
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