O PETRUCIO PETRUCIO
Conto naturalista sobre um papagaio retirado da floresta e vive a vida toda lutando para voltar pra casa. Um misto de ficção e realidade.
Conto naturalista sobre um papagaio retirado da floresta e vive a vida toda lutando para voltar pra casa. Um misto de ficção e realidade.
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Eu sou Vitor Corleone<br />
Moreira da Silva. Nasci em<br />
Belo Horizonte, MG em 27 de<br />
Setembro de 1984.<br />
Sou escritor desde 2001 e<br />
componho músicas. Também<br />
sou poeta, artista plástico e<br />
calígrafo.<br />
O Papagaio Petrúcio é o<br />
primeiro conto que eu<br />
escrevo. É antes de tudo um<br />
desafio cumprido, onde eu<br />
procurei desenvolver uma<br />
leitura que fosse para todos os<br />
públicos, mesmo sendo um<br />
conto. Daí a minha idéia de<br />
mixar a realidade com a ficção<br />
e fazer algo diferente, algo<br />
que fosse capaz de prender a<br />
atenção das pessoas, mesmo<br />
leitores com características e<br />
até idades diferentes.<br />
Outras obras: Amor de<br />
Veraneio, Quarenta Passos<br />
Até o Campo; Soneto, Convite<br />
Para Sonhar, O Coração Não<br />
Nega.
Comentário<br />
Petrúcio possuía a vontade de viver! Um papagaio que<br />
nasceu na floresta e desde cedo aprendeu a amar sua casa,<br />
estabelecendo uma ligação mística com as forças da natureza.<br />
Porém quando os acontecimentos o obrigaram a adotar<br />
uma nova postura, passou a aprender com tudo que<br />
presenciava, tanto as coisas boas quanto as coisas ruins.<br />
Demonstrou que a esperança é capaz de mudar qualquer<br />
coisa, inclusive nossos destinos mais cruéis. Foi amado e<br />
odiado nos ambientes em que esteve e quando tudo parecia ter<br />
chegado ao fim, o conto nos revela que na verdade o fim é o<br />
começo de tudo.<br />
O conto traz uma mistura de realidade e ficção, onde o<br />
objetivo principal é mostrar os malefícios do tráfico de<br />
animais silvestres, numa óptica subjetiva dos próprios<br />
animais. O papagaio Petrúcio vem contar tudo aquilo que<br />
presenciou sobre esse mal que devasta várias espécies da<br />
fauna brasileira.<br />
O conto demonstra ainda que independente de qualquer<br />
coisa, a determinação é capaz de operar milagres, e no fim o<br />
amor sempre prevalece!<br />
Eu me sinto feliz em ter escrito esse conto no ano de<br />
2001, em Belo Horizonte, e hoje estar realizando a sua edição.<br />
Claro que algumas coisas, idéias, trechos, precisei revisar<br />
para que ficasse mais coerente com o contexto do conto, mas a<br />
idéia central e os acontecimentos mantive inalterados, pois<br />
muito mais do que uma obra belíssima, é inevitavelmente uma<br />
etapa do meu aprendizado artístico.<br />
Belo Horizonte, 21 de Maio de 2005<br />
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Vitor Moreira<br />
PRIMEIRA PARTE<br />
Capítulo 1<br />
Amor! Sentimento tão grandioso que se multiplica dentro de cada um<br />
de nós como semente de girassol produzida pela perfeição da natureza, e<br />
que gera novas folhas e sementes! Amor é como grão solitário que se bem<br />
regado pelas águas da felicidade, tal qual as flores pela chuva da primavera,<br />
é capaz de transformar desertos secos, de solo rachado, em florestas<br />
repletas de vida, e cobrir de flores coloridas as pedras cinzentas cheias de<br />
tristeza e solidão.<br />
Todos nós, independente da espécie, temos o poder de lutar pelo<br />
amor, não o amor limitado aos nossos semelhantes, mas um amor de tal<br />
forma incondicional, capaz de mudar no coração dos homens mais<br />
perversos o ódio, transformando em luz, não importando o quanto tudo seja<br />
difícil! Esse é o sentido das nossas vidas, justamente lutar com bom ânimo<br />
eterno por aquilo que nos fará feliz. Tendo esperança, podemos mover um<br />
universo inteiro, retirar as pedras do caminho e atravessar oceanos de águas<br />
turbulentas.<br />
Vida! Bem tão precioso que tivemos o prazer de experimentar na<br />
complexa experiência da criação do universo! Somos privilegiados por essa<br />
dádiva, mas nem todos sabem dar o valor adequado a esse momento, e<br />
acabam por subtrair da perfeição da vida em harmonia o equilíbrio, a paz e<br />
continuidade de tudo aquilo que a natureza criou. Existe infelicidade<br />
porque nem todos têm o amor. Há os frutos estragados no seio da terra, e<br />
esses tentam com a sua falta de amor contaminar os bons frutos, tirando<br />
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deles a felicidade. A vida é bonita, pois existe luta e esforço, tudo que se<br />
faz na vida se torna lembrança e experiência! Há os momentos de dor e os<br />
momentos de riso.<br />
Porém enquanto existir esperança sempre haverá o amor, e há de<br />
prevalecer contra toda a maldade do mundo.<br />
Somos como as gotas da chuva, que caem do céu num mergulho da<br />
divina providência para a continuidade da vida! Nós damos as nossas vidas<br />
a cada instante para que haja continuidade...<br />
Foi em um dia de chuva na floresta que eu nasci. Havia barulho e<br />
luzes no céu cortando o ar, bruscamente chegavam à mata e quebravam<br />
galhos de imensas árvores. O vento soprava lá fora e algumas gotas de<br />
chuva molhavam as costas de meu pai que protegia a entrada do buraco<br />
feito na árvore, no tronco da árvore, onde cada pedacinho de madeira foi<br />
retirado por eles para que pudéssemos nascer.<br />
Mal podia abrir os olhos e meu bico era frágil, mole. Eu podia<br />
enxergar o vulto dele lá naquela entrada, era uma imagem cinzenta através<br />
da membrana fina dos olhos. Tremia mas olhava atento e sem demonstrar<br />
fraqueza para o interior do buraco onde nós estávamos.<br />
Meu corpo não tinha forças e estava quente embaixo daquelas penas.<br />
Ficava o tempo todo agarrado nos outros irmãos, e nos aquecíamos.<br />
Fui o último rebento de uma ninhada de cinco papagaios. O pai toda<br />
hora deixava o ninho e buscava comida para a gente, mesmo se estivesse<br />
chovendo, eu o via sair voando e quando chegava, se sacudia do lado de<br />
fora do buraco para se secar um pouco e depois entrava. Nenhum de nós<br />
tinha penas e havia calor debaixo da mãe.<br />
Passados alguns dias a chuva parou e então a mãe saiu também para<br />
buscar comida e nós ficamos lá naquele amontoado de mato seco, pedaços<br />
de galhos, penas e terra. No início gritávamos assustados ou ansiosos pela<br />
comida, mas depois passamos a ficar mais silenciosos, aprendendo a ouvir<br />
os sons que vinham lá de fora do buraco.<br />
Os outros quatro irmãos estavam diferentes de mim. Eles tinham<br />
penas aparecendo pelo corpo e eu continuava só com penugens brancas,<br />
eles eram maiores e mais fortes. Era feio, mas eu era menor que eles, era<br />
mais fraco, não tinha como ser diferente. As minhas penas logo iriam<br />
aparecer e eu iria crescer.<br />
Depois de um tempo eu ainda tinha poucas penas ao contrário dos<br />
outros filhotes. Era o preferido do meu pai e ele sempre me alimentava<br />
primeiro, talvez por preocupação, por ver que eu era menor, mais frágil. Ao<br />
contrário da mãe, que nitidamente demonstrava gostar mais de meus irmãos<br />
mais emplumados que eu. Ela sempre ficava coçando-lhes, procurando<br />
penugens soltas e as tirava com carinho, mas jamais havia feito isso em<br />
mim.<br />
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Papai era um enorme papagaio selvagem, tinha uma calvície em<br />
cima da cabeça desde que nasceu. Ele contava que nunca teve penas<br />
naquela parte da cabeça. Talvez por essa razão desse mais atenção a mim<br />
que aos meus outros irmãos, justamente pela minha falta de penas,<br />
pensando que os outros se pareciam mais com a mãe e que eu era parecido<br />
com ele.<br />
Passados alguns dias voltou a chover forte na floresta! A toda hora os<br />
raios cortavam o céu, os trovões faziam barulhos tão fortes que a árvore<br />
tremia. Ficamos em nosso ninho. A mãe falava sobre a vida, sobre o que<br />
era a chuva e a grande importância que ela representava para a vida na<br />
floresta, mas eu não entendia direito como os raios vinham. Só sei que eles<br />
quebravam muitos galhos de árvores, isso me dava medo! Não fazia<br />
sentido para mim que fizesse calor pra que depois viesse a chuva. Como a<br />
água virava vento quente e depois virava água de novo. A parte da comida<br />
eu entendi bem, que era só procurar pela floresta, parecia ser muito<br />
divertido e emocionante! Eu escutava tudo que eles contavam, maravilhado<br />
e ansioso para conhecer esse lugar chamado floresta, devia ser algo muito<br />
maravilhoso! Eu sentia isso na forma como eles falavam desse lugar, que<br />
estava do lado de fora do nosso ninho, aqui tão perto.<br />
Os outros irmãos não estavam tão ansiosos, eles eram quietos, e eu<br />
era muito agitado, queria aprender, queria conhecer a floresta. Queria que<br />
minhas penas crescessem rápido, que eu ficasse maior e que pudesse voar<br />
como o papai, pela floresta. Eu iria muito longe!<br />
Eu sentia medo, mas com o tempo fui entendendo muito sobre as<br />
coisas. Passei a admirar a chuva e entendia a sua necessidade para a<br />
floresta, para o crescimento das árvores que nos davam comida e para a<br />
vida de todos os animais.<br />
Certo dia, quando estávamos no ninho os dois foram procurar<br />
comida. Nós escutávamos lá de dentro muitos sons de animais, alguns<br />
assustadores, outros de uma melodia tão bonita que agradava o ouvido. Nós<br />
não podíamos ver, mas pelo que eu escutava podia sentir uma coisa<br />
maravilhosa!<br />
Fui o primeiro a chegar a cabeça para fora do ninho, desobedecendo<br />
os meus pais, mas não resisti...eu queria ver a floresta.<br />
Pelo que eles contavam da floresta parecia ser algo tão maravilhoso!<br />
Eu sentia vontade de crescer logo e poder conhecer tudo o que falavam. A<br />
floresta seria a minha casa e eu viveria lá como os meus pais e como todos<br />
os animais.<br />
Era realmente um paraíso! Uma vista maravilhosa! Havia uma árvore<br />
enorme na frente do nosso ninho, uma palmeira! Havia muito verde e os<br />
animais, havia flores...<br />
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Passaram-se dois meses e meus irmãos já estavam saindo do ninho e<br />
arriscando pequenos vôos. Eu preferia ficar perto do pai e só saía com ele.<br />
A mãe ficava vigiando por causa de outros animais que ela chamava de<br />
gaviões. Eu nunca vi um na floresta de perto, só escutava um assovio<br />
distante e quando escutava os outros filhotes ficavam calados, só ouvindo e<br />
quietos. Eu sempre perguntava se era o gavião e ela respondia que sim, e<br />
logo em seguida ordenava silêncio. Ela tinha muito medo dos gaviões, dizia<br />
que eles atacavam os outros pássaros e ninhos.<br />
Minhas penas começaram a crescer só que em cima da cabeça não<br />
tinha pena. O papai disse que eu iria ficar igual a ele. Eu não me importei,<br />
afinal adorava o papai! Ele era forte e muito corajoso!<br />
Mais algum tempo e já estávamos voando bem! Iríamos aprender a<br />
sobreviver na floresta. Eles ensinavam a procurar girassol, castanhas, frutos<br />
e insetos nas árvores, mostravam os que não podíamos comer e ensinavam<br />
muito sobre as folhas que nos faziam mal. A cada momento aprendíamos<br />
algo novo, sempre voando juntos, afinal papai falou que se um papagaio<br />
ficasse sozinho não poderia enfrentar os animais maldosos da floresta, mas<br />
se estivessem em grupo nenhum animal teria coragem de atacar, nem<br />
mesmo o gavião.<br />
Eram dias felizes que passávamos voando naquela mata fechada<br />
cheia de galhos e folhas onde quase não dava pra ver a luz do sol. Havia,<br />
porém uma árvore grande onde nos galhos de cima era possível ver aquela<br />
grande bola de fogo se escondendo atrás da paisagem anunciando a noite.<br />
Eu sempre ia até nas manhãs pra ver o sol.<br />
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Um dia fui até lá e vi um pássaro grande vindo em minha direção.<br />
Era o gavião, fiquei com medo e comecei a descer pelo galho, bastante<br />
atrapalhado e tendo dificuldade com os galhos. O gavião se aproximava e<br />
fazia um som assustador, era o som da morte! Então vi muitos pássaros<br />
grandes voando em minha direção, tinham o peito amarelo e as costas<br />
azuis. Eram muito coloridos, gritavam muito alto! Nem pude contar, mas o<br />
céu parecia se colorir de azul e amarelo, como um enxame de abelhas! O<br />
gavião ficou com medo e voou em retirada. Eu continuava descendo e<br />
consegui ver que aqueles pássaros enormes perseguiram o gavião até que<br />
ele sumisse na distância.<br />
- Não precisa mais ter medo jovenzinho. Os irmãos já o afugentaram.<br />
- Quem é você?<br />
- Eu sou uma arara. Somos aves que tomam conta dessa parte da<br />
floresta. Conheço bem o seu pai, somos muito amigos.<br />
- Que bom! Eu vim ver o sol e aquele pássaro veio voando.<br />
- Aqui em cima é meio perigoso! É justamente onde os gaviões ficam<br />
observando, à espera de pássaros desavisados e pequenos animais. Tome<br />
mais cuidado, evite ficar vindo aqui sozinho. Seu pai não falou que não<br />
pode andar sozinho?<br />
- Falou, mas os outros não gostam de ver o sol. Eu adoro ver a<br />
floresta daqui de cima! É tudo tão bonito!<br />
- É verdade! A floresta é muito bonita! Nós protegemos nossas crias<br />
e cuidamos da floresta sempre, para que nossa morada seja sempre assim,<br />
tão verde e tão bela!<br />
Quando desci, depois de ficar conversando com aquela arara fui<br />
procurar comida, logo encontrei com o papai. Ele estava cuidando das<br />
penas e arrancando algumas penugens, coisa normal entre nós. Falei pra ele<br />
que conheci uma arara no alto da floresta e que ficamos conversando por<br />
um tempo. Ele falou que na floresta havia várias araras diferentes, umas<br />
eram vermelhas, outras azuis e outras bem coloridas em azul, amarelo e<br />
verde. Falou que os papagaios, as araras, as jandaias e outros pássaros com<br />
o bico parecido com o nosso eram primos distantes, por isso se davam<br />
muito bem na floresta.<br />
Ele me levou em outros lugares da floresta para conhecer as jandaias<br />
e outros papagaios diferentes de nós. Depois conhecemos um pássaro<br />
chamado príncipe negro que segundo o pai também era um parente distante<br />
de nossa espécie. Ele era desconfiado, ficou tímido atrás de um galho de<br />
árvore por muito tempo só fazendo perguntas, mas depois de um tempo<br />
veio conversar conosco. Maritacas, periquitos...ficava pensando: como<br />
pode haver tantas cores assim nos nossos parentes e nós somos verdes?<br />
Achava engraçado, mas algo neles era tão familiar! Era como se fossemos<br />
diferentes só no tamanho e nas cores, e por dentro todos éramos exatamente<br />
iguais, nos medos e na coragem, no carinho e no amor!<br />
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Havia um grupo de papagaios que tinham as penas do peito roxas e<br />
tinham ninhos perto de um rio. Nós ficamos a certa distância e vieram<br />
quatro papagaios para conversar conosco e ver quem era.<br />
Quando viram que era o papai ficaram mais despreocupados.<br />
Falaram que existe um limite de território para os papagaios por causa dos<br />
ninhos, mas que os amigos eram bem-vindos.<br />
Nós não fomos muito perto dos ninhos porque eles falaram que as<br />
fêmeas ficavam nervosas e podiam atacar, mas do alto de uma árvore nos<br />
mostraram seus filhotes. Eles estavam muito pequenos ainda e as mães<br />
procuravam penugens soltas nos filhotes.<br />
Perguntei por que cada um deles tinha apenas um ou dois filhotes e<br />
um deles falou que são uma espécie de papagaios que não dão muitos<br />
filhotes, e que por isso tem cada vez menos na floresta.<br />
Depois que ficamos certo tempo conversando com os papagaios,<br />
papai me mostrou as jandaias. Elas eram alegres e voavam sempre em<br />
grupo, muitas jandaias juntas.<br />
Eram muito agitadas e gritavam muito! De repente saiam todas em<br />
revoada sem motivo algum e ficavam bailando no ar por alguns instantes,<br />
por isso ficamos pouco tempo perto delas porque todo aquele barulho<br />
estava muito irritante! Mas uma coisa que elas tinham é uma alegria<br />
contagiante! Uma energia que jamais se acabava! Estavam sempre sorrindo<br />
e brincando, até os que já eram adultos...quebravam pequenos galhos e<br />
ficavam descascando, se coçavam, arrancavam penas...<br />
Depois de comermos bastantes sementes e raízes, fomos pra junto<br />
dos outros irmãos, que passaram o dia inteiro com a nossa mãe, lá para os<br />
lados do rio. Já estávamos todos com o papo bem cheios e cansados depois<br />
de um dia inteiro na floresta.<br />
Eu gostava de alisar as minhas penas ao final do dia, sobre um galho<br />
alto de palmeira que ficava em frente à árvore que era nosso ninho,<br />
procurava penugens, mas naquele pedacinho da cabeça não iria nascer pena<br />
mesmo, eu seria um papagaio careca até o dia de minha morte.<br />
Eu via o sol se esconder entre as árvores e silenciosamente a noite<br />
descer sobre a mata, deixando o céu cheio de estrelas e a lua...sereno e<br />
sono, então todos juntos adormecíamos enquanto os grilos e vaga-lumes<br />
faziam uma festa de luz e som nas partes baixas das árvores.<br />
As manhãs eram para mim aventuras cada vez mais emocionantes<br />
naquele paraíso que aprendi a amar de uma maneira tão grande que não<br />
seria possível comparar a nada nesse mundo! Uma energia intensa me<br />
ligava à floresta e eu sentia até mesmo a respiração das folhas das árvores<br />
ou o canto das águas correndo pela cachoeira.<br />
Cada coisa nova que eu descobria ou aprendia com os pais ou com os<br />
outros pássaros me deixava maravilhado! A vida é tão bela! O nosso lar é<br />
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algo tão cheio de felicidade e amor! A cada dia nós vivemos o esporte da<br />
existência, procurando comida e aprendizado.<br />
A floresta era um imenso labirinto repleto de coisas bonitas, e cada<br />
dia eu conhecia um animal diferente! Depois do que aconteceu com o<br />
gavião, os pais diziam para ficarmos por perto, para descobrirmos aos<br />
poucos a floresta e sempre voltarmos para o mesmo lugar. Foi assim que<br />
aprendemos aos poucos a vida em grupo. Papai ensinou que somente<br />
quando estivermos em grupo teremos força suficiente para deixar com<br />
medo os animais maldosos, que somente em grupo podemos fazer alguma<br />
coisa.<br />
Havia flores, e muitas borboletas voavam ao redor delas. Uma<br />
explosão de colorido e magia. O perfume delas exalava por entre os troncos<br />
das árvores, me encantando mais a cada manhã! Os pais disseram que essa<br />
época do ano muitas flores apareciam na floresta, que era época para<br />
namoro dos papagaios, e que as flores eram o sinal da chegada da estação.<br />
Disse que isso acontecia todos os anos, e que nós cinco éramos os<br />
primeiros filhotes, e que até o fim da vida dos dois, todos os anos voltarão<br />
ao mesmo lugar onde nascemos, no mesmo tempo, na chegada das flores,<br />
para dar a vida a outros filhotes.<br />
A primeira vez que eu vi a cachoeira foi como a descoberta de um<br />
mundo novo! O portal dos sonhos! Era real, mas eu não acreditava em<br />
tamanha beleza e perfeição. Lembro que eu voava seguindo um beija-flor<br />
muito colorido! Era bonito o modo como ele procurava entre as flores<br />
aquelas que mais agradavam. Fui me distanciando do caminho que sempre<br />
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seguia e acabei deparando com aquele espelho d’água. Havia muitas rochas<br />
formando uma imensa parede e a água corria entre elas com imponência e<br />
majestade!<br />
A água do lago era mais gelada que a do rio, e saciava mais a sede!<br />
- Olá bichinho da água!<br />
- Não sou um bichinho da água, sou um peixe, e meu nome é<br />
Vernacleto.<br />
- Você pode conversar comigo? Que bom!<br />
- Claro que posso! Eu converso como qualquer animal, mas tenho<br />
que entrar na água toda hora para respirar.<br />
No lago, que era onde a cachoeira acabava vivia um peixe muito<br />
solitário, o Vernacleto, que com o passar do tempo deixou de ser assim,<br />
pois todos os dias eu ia lá pela manhã para vê-lo e fazer companhia. Era<br />
menos perigoso que o alto da árvore grande.<br />
- Bom dia Vernacleto! Meu amigão!<br />
- Bom dia papagaio!<br />
O Vernacleto foi meu primeiro grande amigo.<br />
- O que você fez ontem na floresta? Conta aí pra mim...<br />
- Ah, muitas coisas! Conheci uns pássaros que cantam muito bonito!<br />
Papai me levou pra conhecer um lugar que tem umas raízes muito doces, eu<br />
adorei!<br />
- Que bom! Fico feliz por você!<br />
- E você?<br />
- Ah papagaio, você sabe...não existem outros peixes aqui, então eu<br />
fico nadando de um lado para o outro, por entre as pedras...só venho pra cá<br />
mesmo quando você aparece.<br />
Ficávamos conversando por um tempo, ele saltava na água cristalina,<br />
contava coisas sobre o rio, histórias tão fascinantes! Eu achava incrível,<br />
pois aquilo que eu descobria todos os dias, o meu mundo, era apenas a<br />
parte de cima, e abaixo das águas havia todo um universo, repleto de<br />
descobertas, mitos, perigos.<br />
- Vernacleto, o que você quer que eu pegue pra você? Frutinhas ou<br />
alguns insetos?<br />
- Você vai me deixar mal-acostumado desse jeito.<br />
- É que você é meu amigo e eu gosto muito de você!<br />
- Também gosto muito de você papagaio! É um tanto falador, mas é<br />
um papagaio legal!<br />
Eu pegava frutinhas e insetos e jogava para o Vernacleto. Ele sempre<br />
agradecia com um salto bem alto e jogava água para todos os lados.<br />
- Nossa! Dessa vez você saltou bem alto heim Vernacleto!<br />
- Você não viu nada, espere até o próximo salto.<br />
Eu gostava muito do meu amigo, mesmo que fossemos tão diferentes<br />
um do outro! É como se por dentro fossemos exatamente iguais!<br />
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- Olha: eu já vou indo embora. Amanhã pela manhã volto aqui pra te<br />
ver.<br />
- Tudo bem meu amigo! Toma cuidado na floresta!<br />
- Pode deixar!<br />
Quando contei ao papai sobre minhas idas ao rio, ele falou para ter<br />
cuidado, quase proibindo, pois existem animais dentro da água que atacam<br />
outros animais que vão até lá para beber água. Ele só não proibiu porque<br />
disse que eu precisava ir aprendendo aos poucos a sobrevivência, que nem<br />
sempre teria a proteção deles. Quando perguntei ao Vernacleto ele falou<br />
dos jacarés e das cobras. Ensinou tudo que era necessário para escapar<br />
deles.<br />
Eu insistia para ver um jacaré, mas o Vernacleto não me levava onde<br />
eles ficavam. Dizia que não conseguiria escapar deles se o avistassem. Que<br />
eu poderia voar, mas as águas eram o seu mundo e não poderia sair dele.<br />
A vida a cada dia se mostrava para mim como ensinamento e amor!<br />
Eu amava a floresta e respirava junto com as árvores, numa ligação<br />
harmônica tão perfeita que parecia que eu estava ligado à floresta em<br />
energia, que eu era parte do húmus que ficava na terra alimentando-a<br />
eternamente.<br />
Sim! Eu era parte do húmus da terra! Eu era parte das águas do rio!<br />
Eu era parte do ar que corria!<br />
Fui aprendendo o sentido das coisas, de tudo aquilo que meus pais<br />
falavam quando nascemos e que estava tão ansioso por descobrir. Minha<br />
identidade com a floresta amadurecia cada vez mais e eu sabia o meu lugar<br />
na natureza.<br />
Uma energia tão intensa crescia entre a floresta e eu! Algo que não<br />
se pode explicar com palavras apenas. Era a energia da vida, fluindo em<br />
cada parte do meu corpo!<br />
Amava aquele lugar! Amava sim, sem condições ou imposições,<br />
apenas um amor puro e intenso!<br />
Descobri um amor tão forte por cada árvore, por cada forma de<br />
vida... tudo se completava numa trama esplendida do criador de toda essa<br />
maravilha!<br />
Eu fazia parte de cada coisa toda! Até ao ar que respirava dava valor,<br />
e quando achava alguma semente, raiz, ou larva, num sentimento de<br />
agradecimento à natureza me alimentava sem desperdício, para que não<br />
fosse em vão a criação daquele alimento até o dia de saciar minha fome.<br />
Havia alegria em meu vôo e eu tinha um grande amigo!<br />
Eu conhecia muitos animais na floresta, eu gostava de cada manhã de<br />
sol ou até mesmo de chuva, e me sentia orgulhoso em voltar para a árvore<br />
do nosso ninho toda tarde, cansado e cada vez mais forte!<br />
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Certo dia, em um dos meus vôos da manhã, eu encontrei piando entre<br />
as árvores, um canário-da-terra. Era filhote, mas já sabia voar. O que me<br />
chamou a atenção foi o tom triste e desesperado com que piava, como se<br />
estivesse aflito. Chamava-se João e estava preso em uma coisa chamada<br />
armadilha, assim o papai disse que essas coisas se chamavam. Ele apenas<br />
contava, mas nunca teve coragem de mostrar uma para a gente e sempre<br />
dizia para não chegarmos perto. Era a única coisa que o papai tinha medo,<br />
tinha medo até de falar a respeito. Era uma armação frágil de linha, mas<br />
para o João seria impossível sair dali. Eu era pouco maior que um<br />
periquito, mas tinha uma força muito grande no bico, pois ficava muito<br />
tempo quebrando galhos e roendo troncos das árvores para me fortalecer.<br />
Senti medo ao lembrar do que o papai falava, mas fiquei aflito vendo<br />
aquele pequeno pássaro se debatendo. Lembrei do dia que as araras me<br />
salvaram do gavião e senti que eu precisava salvar aquele pequeno pássaro.<br />
Eu era bom e precisava ajudá-lo. Então fui até lá e despedacei o fio da<br />
armadilha com uma única bicada. Ele saiu voando daquele pau-d’arco e<br />
disse para ter cuidado com os homens. Disse que os homens estavam por<br />
perto.<br />
Homens? O que será que ele quis dizer?<br />
Então eu avistei coisa nova. Eram duas criaturas diferentes dos<br />
animais da floresta! Cobriam o corpo com coisas coloridas e soltavam<br />
fumaça por um canudinho que colocavam na boca.<br />
As criaturas deveriam ser os tais homens. Eles colocaram perto da<br />
árvore uma porção de sementes de girassol e aveia. Estavam dentro de uma<br />
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caixa com uma porta aberta. Eu nunca havia visto tantas sementes juntas no<br />
mesmo lugar. Na floresta ficávamos a manhã toda procurando e<br />
conseguíamos tão pouco.<br />
Eu estava com fome e fiquei indeciso olhando para os homens<br />
sumindo na mata. Eu não estava mais vendo os dois seres. Fiquei um bom<br />
tempo naquele galho olhando e nem as folhas da mata se mexiam. A fome<br />
aumentou muito e eu estava seduzido por aquela imagem, e então eu desci.<br />
Quando olhei de perto era a visão de um pequeno manjar, um paraíso de<br />
guloseimas! Já podia sentir o óleo circulando em minha garganta. Eu estava<br />
faminto e entrei naquela caixa. Foi quando a porta se fechou e eu tentava de<br />
todas as formas sair. Fui ficando desesperado e gritava, mas ninguém vinha<br />
me ajudar.<br />
Foi quando eu escutei alguma coisa se aproximando e fiquei calado,<br />
assim como os pais ensinaram. As folhas secas eram pisadas. Eu ouvia<br />
algum tipo de animal fazendo barulho, porém não havia escutado nada<br />
parecido até hoje. Era um som demorado e outro animal correspondia.<br />
Palavras! Eram os homens e estavam dizendo palavras. A sua forma de<br />
comunicar me deixou com medo, eu ficava quieto, pensando que não<br />
perceberiam minha presença naquela caixa.<br />
Meu coração batia forte de uma forma que jamais bateu antes...<br />
Senti bruscamente a caixa sendo erguida e meu corpo jogado para<br />
baixo com o impulso.<br />
Novamente comecei a me debater num desejo desesperado de sair<br />
dali, pois não sabia o que estava acontecendo mas foi inútil. Passado algum<br />
tempo a porta se abriu e quando saí fui parar em uma caixa de ferro grande,<br />
com muitos furos e dentro vários pássaros que eu já tinha visto na floresta<br />
voando livres. Eles se debatiam e eu já não tinha mais forças para voar,<br />
então fiquei no canto apenas observando aquela cena desesperadora.<br />
- Acho que já está bom!<br />
- É, essa época do ano é muito boa mesmo!<br />
- Não te falei, é só chegar o calor que aparecem filhotes, aí fica fácil!<br />
Não são tão ariscos como os grandes e é bem mais fácil vender.<br />
- Aqui, pra não morrer muito, vamos deixar destampado até chegar à<br />
estrada, aí depois cobrimos, senão vai ser viagem perdida.<br />
- Você se preocupa demais com esses bichos, se morrer voltamos e<br />
pegamos mais. É de graça mesmo!<br />
- Certo. Agora vamos.<br />
A caixa enorme onde estávamos e que os dois homens chamavam de<br />
gaiola foi colocada dentro de uma coisa que fazia barulho e andava rolando<br />
pelo chão soltando fumaça preta.<br />
Era um animal sem vida e sem pêlos, com cores que não pareciam<br />
ser da mata. Os dois homens chamavam de caminhonete. A coisa seguiu<br />
caminho no meio da mata onde não havia muitas árvores e chegou a um<br />
14
lugar diferente! Não havia terra e uma trilha cinza seguia em linha reta.<br />
Havia uma linha amarela no meio do estranho caminho e ele cortava a<br />
floresta. Eu olhava para o lado de fora sentindo uma angústia<br />
desesperadora em meu coração, meus olhos estavam cheios, tão cheios de<br />
tristeza que até as nuvens dos dias de chuva em que nasci teriam inveja. Os<br />
outros pássaros já estavam cansados e já não voavam dentro daquela<br />
armação procurando fugir. Meu coração batia forte e eu sentia os medos da<br />
vida! Num aperto senti que tudo iria mudar, senti arrancado de mim tudo<br />
que eu sou. Ao ver a floresta se distanciando cada vez mais senti que a<br />
minha vida ficava ali e somente meu corpo estava naquela gaiola com os<br />
outros pássaros. Eu gritava, esperando que algum animal pudesse me<br />
socorrer, mas era em vão.<br />
O carro parou depois de um tempo e um dos homens veio, cobriu a<br />
gaiola com um manto escuro e abafado, então depois disso não vi mais<br />
nada.<br />
*****<br />
Capítulo 2<br />
Era um lugar estranho e não havia árvore. Havia muitos homens no<br />
mesmo lugar. Era fechado e cada pássaro estava em uma gaiola diferente.<br />
Havia homens com pêlos maiores na cabeça e não tinham pêlos no rosto.<br />
Depois de um tempo percebi que eram as fêmeas da estranha espécie<br />
chamada homem.<br />
15
Estávamos pendurados, longe do chão. No alto não se via o sol, mas<br />
havia vários globos de luz parecidos com o sol, e quando um dos homens<br />
queria, podia desligar o globo simplesmente tocando em um quadrado que<br />
ficava na parede.<br />
Que lugar era esse? Onde se encaixa esse momento no curso da<br />
minha vida? Que sentido, que parte do ensinamento era essa? Cadê meus<br />
pais, os meus irmãos, a floresta e tudo que eu conheci?<br />
Eu não podia sentir o cheiro da floresta, e isso me fez perceber que<br />
aquele lugar era longe de minha casa. Os sons da floresta foram<br />
substituídos pelos sons dos carros que passavam do lado de fora do quarto<br />
onde estávamos.<br />
Eu a tudo observava procurando respostas, tentando entender o que<br />
estava acontecendo.<br />
As pessoas davam aos dois homens umas coisas finas parecidas com<br />
folhas de árvore. Era colorido e eles chamavam de dinheiro. Depois eles<br />
escolhiam o pássaro que iriam levar embora.<br />
Todos os dias eu ficava naquele lugar e vi os pássaros indo embora<br />
um após o outro. Dois morreram na gaiola tentando fugir. Machucaram<br />
tanto o próprio corpo, se chocando contra aquelas armações de madeira que<br />
acabaram por morrer, talvez pelas feridas ou pela angústia de não estar<br />
mais na floresta. Eu ficava quieto e em silêncio. Observava aquilo tudo<br />
procurando entender a razão de tanta maldade e qual seria o motivo de<br />
estarmos dentro daquelas gaiolas sem poder voar.<br />
Havia um pequeno homem chamado Teleco. Todos os dias ele ia lá<br />
naquele lugar para colocar comida para nós e às vezes ficava brincando<br />
com um ou outro pássaro. Ele não parecia ser tão cruel quanto os outros<br />
dois homens que me tiraram da floresta.<br />
Novos pássaros da floresta chegaram na outra semana, entre eles o<br />
pequeno canário-da-terra João. Ele contou que viu quando fui aprisionado<br />
pelos homens, que depois disso voou pela floresta para contar à minha<br />
família, falou da tristeza que meus pais sentiram e dos gritos de desespero<br />
deles. Contou da saudade que sentiram nos outros dias depois que parti,<br />
que meus irmãos procuraram pela floresta e gritavam meu nome. Depois<br />
João falou que caiu em outra armadilha na floresta quando estava<br />
procurando comida. Disse que estava com fome e achou que conseguiria<br />
tirar os grãos de alpiste da armadilha sem ficar preso. Disse que acreditou<br />
que poderia, espelhando-se na minha coragem em tirá-lo da armadilha.<br />
Eu mal prestei atenção ao que ele falava depois que disse sobre<br />
minha família. Meus olhos caíram ao chão como duas gotas de chuva e a<br />
tristeza se apossou de todo o meu corpo naquele momento.<br />
Qual a razão de tamanha maldade? Que mal eu fiz a esses homens<br />
para roubarem dessa maneira a minha felicidade? Se é pra viver assim me<br />
mata vida! Tira desse beco sem saída essa pobre alma que desde o<br />
16
nascimento não cometeu erro algum e hoje aprisionado padece de<br />
felicidade, abandonado no canto de uma parede.<br />
Minha tristeza era evidente e minha pequena alma de papagaio se<br />
despedaçava de dor dentro de mim quando ele contava sobre a floresta e<br />
sobre os dias que se passaram depois que eu saí.<br />
Eu já não tinha forças para comer e a saudade de tudo que eu estava<br />
acostumado a ser e viver atormentava tanto que meu coração sangrava as<br />
tristezas todas. Fui criando um ódio cada vez maior daqueles dois homens<br />
que todos os dias avistava passando de um lado para o outro mostrando os<br />
pássaros a outros homens que iam lá naquele lugar. Por vezes sonhei que os<br />
machucava, fugindo da gaiola e salvando aqueles pássaros... salvando a<br />
minha própria vida.<br />
Em poucos dias João foi comprado por um homem que o viu<br />
cantando e gostou muito do som que fazia. Quando vi que iriam levar o<br />
João comecei a gritar e um dos homens que me tirou da floresta bateu na<br />
gaiola para que eu ficasse quieto. Naquele momento eu disse adeus ao<br />
João, o pequeno canário, e num olhar triste ele simplesmente respondeu:<br />
até logo!<br />
Ele disse que podia sentir a intensidade do ódio nos meus olhos,<br />
disse que era algo que nunca havia sentido antes, que pairava no ar como<br />
cheiro de dama-da-noite.<br />
17
Eu fui comprado por um menino que passava de carro com seu pai e<br />
parou em frente daquele lugar onde nós éramos deixados. O pai dele disse<br />
para que escolhesse um pássaro e ele me escolheu. Mesmo que eu não<br />
tivesse muitas penas na cabeça era o único papagaio ali, os outros eram<br />
pássaros pequenos. Eu brincava com uma bolinha de madeira, procurando<br />
quebrá-la para sentir a mesma sensação que sentia quando quebrava os<br />
galhos das árvores ou as castanhas lá na floresta. O Teleco havia colocado<br />
a bolinha para que eu não ficasse tão triste. Parecia entender o que se<br />
passava comigo naquele lugar tão fechado.<br />
O menino que me levou tinha uma toca grande e bonita, mas eles não<br />
chamam de toca e sim casa.<br />
Quando o menino chegou, me colocou em uma árvore que tinha em<br />
uma pequena relva a qual rodeava a casa. Era o jardim.<br />
Quando chegava a noite ele me colocava dentro da casa sobre a mesa<br />
da cozinha em uma outra gaiola. Essa era de metal, pois as de madeira eu<br />
destruía, procurando afiar o bico.<br />
A mãe dele não gostava que eu ficasse lá naquela mesa, com medo<br />
que eu sujasse tudo. Ora, girassol espalha as cascas quando eu como, e não<br />
vá querer que eu tome água sem chacoalhar o bico, pois foi assim que<br />
aprendi lá na floresta. Com o tempo fui percebendo que ela jamais gostaria<br />
de mim. Era uma pessoa muito fechada, muito triste de espírito!<br />
Eu achava tudo estranho naquele lugar chamado cidade e sempre<br />
sentia, com muita dor em meu coração, saudades da floresta. Sentia minha<br />
inocência de animal das matas esmaecer dentro de mim, dando lugar à<br />
malícia, a um sentimento tão corrupto! Eu estava me tornando uma outra<br />
coisa com tudo que estava aprendendo na cidade.<br />
Certo dia, o Serginho, que era o meu dono, disse que à noite todos<br />
iriam a uma festa. Ele me explicou o que era e eu não entendi bem, mas<br />
ouvi a tudo bem atento. À noite quando eu já estava dormindo na gaiola na<br />
cozinha, ouvi barulho de passos. Para mim seria o Serginho. Sempre nas<br />
noites em que não conseguia dormir ia até a cozinha na ponta dos pés para<br />
não acordar seus pais e tomava um copo de leite. O tal leite segundo ele<br />
vinha de um animal chamado vaca. Eu pensava que era invenção dele,<br />
afinal papai nunca falou desse animal lá na floresta e eu achava que todos<br />
os animais viviam na floresta.<br />
O barulho dos passos era semelhante então eu comecei a conversar:<br />
- Olá... cadê o louro?<br />
- Ei Nestor! Você disse alguma coisa?<br />
- Eu não chefe. Achei que tinha sido o senhor.<br />
18
- Será que tem alguém em casa? Vamos dar uma olhada na cozinha.<br />
Passos mais silenciosos do que os primeiros se aproximaram e eu<br />
cantava uma música. A mesma que aprendi a cantar todas as manhãs. De<br />
repente um dedo acendeu a luz. Não era o Serginho nem o pai dele, o<br />
Pedro. Eles eram sempre os primeiros a acordar todas as manhãs, e me<br />
tiravam para fora da casa, me colocavam para tomar sol na árvore do<br />
jardim.<br />
Eram dois homens. Eu interrompi minha música e tive medo. Era<br />
como ver um dos animais da floresta. Fiquei encolhido observando aquelas<br />
duas criaturas assustadoras!<br />
- Ei chefe! O que vamos fazer com o papagaio?<br />
- Leva ele junto com as coisas. Talvez a gente consiga um bom<br />
dinheiro com ele já que está falando bem. Coloca dentro do saco e vamos<br />
sair logo daqui.<br />
- Mas chefe...<br />
- Menos conversa Nestor. Quem manda aqui sou eu entendeu?<br />
- Sim chefe, mas ele tem o bico afiado! Eu não coloco a mão nele<br />
não. Vou levar com gaiola e tudo.<br />
Então fui colocado em um saco abafado que estava cheio de coisas<br />
da dona Amanda. Alguns colares que ela usava no pescoço, vasilhas,<br />
dinheiro...<br />
Os dois saíram da casa rápido e entraram em um carro que estava<br />
parado na rua um pouco distante do portão.<br />
Eu estava assustado, mas fiquei em silêncio para ver o que estava<br />
acontecendo.<br />
Quando o carro começou a andar eu comecei a observar aquelas<br />
luzes todas. Eu nunca havia visto a noite e as estrelas aqui, assim desse<br />
jeito. Lá na floresta quando começava a anoitecer todos nós nos<br />
escondíamos no ninho por causa dos animais da noite, e pela abertura do<br />
ninho podíamos ver um céu todo repleto de estrelas e a lua clareando a<br />
noite. Aqui o céu não tem tantas estrelas e existem muitas luzes nas ruas!<br />
- Amanhã mesmo você vai à loja de pássaros e tenta vender esse<br />
bicho Nestor.<br />
- Ah chefe! Vamos ficar com ele. Ele sabe cantar e quero ensinar a<br />
falar meu nome. É muito esperto e eu sempre gostei de animais de<br />
estimação.<br />
- Nada disso. Não quero ficar ouvindo esse bicho o tempo todo<br />
falando na minha cabeça.<br />
- Está bem chefe. Mas eu ainda acho que a gente deve ficar com ele.<br />
Amanheceu chovendo. O Nestor me colocou em uma gaiola pequena<br />
e cobriu com um pano escuro. Por uma pequena abertura eu conseguia ver<br />
o beco. Parecia com as trilhas da floresta, mas em vez de árvores havia<br />
somente casas, e em vez de animais, pessoas. Ele foi caminhando comigo<br />
19
por esse beco e alguns respingos de chuva me alcançavam debaixo do<br />
guarda-chuva. O cheiro de terra molhada e ar frio das manhãs chuvosas na<br />
floresta... que tristeza! Que saudade da minha vida! Que castigo tão cruel é<br />
esse que está acontecendo comigo? Fui tirado da floresta e agora estou aqui<br />
nesse lugar tão cheio de maldade, sem saber o que vai acontecer comigo.<br />
O que será essa trama toda da vida, do destino? Por que isso está<br />
acontecendo comigo?<br />
Essas reflexões machucavam muito por dentro. O desespero é algo<br />
tão impressionante! Não posso sair daqui, sei que em algum lugar minha<br />
família chora minha perda e nem ao menos posso dizer que ainda estou<br />
vivo.<br />
Toda hora que o Nestor passava por algum conhecido levantava o<br />
pano para me mostrar. Ele gostava quando eu ficava repetindo o nome dele,<br />
e olha que aprendi na primeira vez que ele pediu pra que eu falasse. Estava<br />
me ensinando palavras novas que as pessoas achavam graça quando eu<br />
falava.<br />
A loja de pássaros estava fechada naquele dia, então o Nestor voltou<br />
comigo para a sua casa. Na verdade nem era uma loja de pássaros. Era a<br />
casa daqueles dois homens. Eles vendiam pássaros escondido. Na frente da<br />
loja era uma loja de ração para animais e nos fundos ficavam os pássaros.<br />
Era tarde. Por volta de quatro horas. O Gilmar chegou apressado em<br />
casa com um jornal que tinha minha foto com o Serginho. Lembro bem da<br />
foto. Foi logo que eu cheguei. Eu deveria saber, aquela falta de penas na<br />
cabeça era reconhecível em qualquer lugar do mundo.<br />
- Ei Nestor, já tinha visto isso aqui antes?<br />
- Sim chefe. Hoje cedo quando fui levar o papagaio na loja, mas<br />
como não sei ler...<br />
- Idiota! E por que não me avisou? Os donos do papagaio estão<br />
procurando o bicho e ofereceram recompensa. Eles vão nos achar. Você<br />
mostrou esse bicho pra favela inteira.<br />
- E o que vamos fazer chefe?<br />
- Pega o que der pra pegar, vamos cair fora. Ficar escondidos na casa<br />
perto da estrada e deixar esse bicho em algum lugar. Não podemos deixá-lo<br />
aqui senão vão ter certeza que fomos nós. A gente o deixa em algum lugar,<br />
se alguém achar e colocar a culpa em nós é só negar.<br />
- Mas chefe, e se ele entregar a gente? Ele sabe falar nossos nomes e<br />
pra onde estamos indo. O papagaio é muito inteligente e ouve só uma vez<br />
as coisas e aprende.<br />
- Não seja tolo Nestor! De onde tirou essa idéia?<br />
- Acho que temos que levar ele. Não vai dar pra gente pegar a<br />
recompensa mesmo.<br />
- Gilmar, currupaco... Nestor, currupaco...<br />
20
Capítulo 3<br />
O Nestor havia se tornado um camarada meu durante a viagem.<br />
Ensinava todo tipo de truque, mexer com as minas, contar umas piadas<br />
maneiras, falar mal dos barbeiros na estrada e dizer um montão de palavras<br />
que as pessoas chamavam de palavrão.<br />
O Lugar para onde estávamos indo não ficava muito longe da cidade.<br />
Havia mato e cada vez que a brisa chegava às minhas narinas eu lembrava<br />
do frescor da mata virgem que era meu antigo lar. A brisa vinha tocando<br />
levemente nas árvores na encosta da estrada.<br />
Por um momento, olhando para o lado de fora, pensei que estava<br />
voltando para a floresta e que aquele pesadelo estava para acabar. Meu<br />
coração voltou a bater com felicidade e eu estava ansioso, por isso<br />
observava atento o mato do lado de fora, para ver se reconhecia algum<br />
trecho, talvez o lugar onde começava a estrada de terra onde o carro estava<br />
quando fui capturado. Então eu simplesmente sairia voando para lá.<br />
Dentro do carro o Gilmar permanecia tenso e disse ao Nestor para<br />
me esconder dentro da jaqueta dele para que o policial não visse. Eu<br />
lembro que eu estava no ombro do Nestor e ele me pegou rápido e<br />
escondeu com brutalidade.<br />
- Olá seu guarda! Tudo em cima?<br />
- Eh... só rotina mesmo. Posso ver sua habilitação e os documentos<br />
do carro?<br />
- Claro! Aqui está ela.<br />
Parecia que o Nestor não tomava banho há dias e aquele cheiro me<br />
incomodou. Tentei sair e ele começou a se contorcer dando uns gritos<br />
baixos.<br />
- Que há com seu amigo?<br />
- Nada não seu guarda. O Juliano está com uma baita diarréia e<br />
precisamos correr. Até logo!<br />
- Até logo! E dirijam com prudência.<br />
- Ei Nestor... que foi aquilo lá atrás? Queria que nos pegassem com o<br />
papagaio?<br />
- Não chefe. Claro que não, mas esse papagaio começou a me fazer<br />
cócegas.<br />
- Não era cócegas seu idiota... eu estava te arranhando, currupaco...<br />
olha só o que eu fiz.<br />
- Minha nossa!<br />
- Rá, rá, rá! Muito boa papagaio! Aí Nestor, bem você me disse pra<br />
trazer esse bicho, foi mesmo uma ótima idéia! Agora vejo que foi mesmo.<br />
Eu conseguia copiar tudo, bastava ver ou ouvir. Eu rabisquei as letras<br />
de um time de futebol no peito dele. Eu não entendia muito bem do<br />
21
assunto, mas ele torcia para um time chamado Flamengo e o Gilmar para o<br />
outro time, o Cruzeiro. Lembro que o Serginho gostava do Santos e o pai<br />
dele gostava do Atlético. Eles ficavam discutindo futebol e eu já tinha visto<br />
na casa do Serginho, na televisão as letras que diziam CMA, e ele não<br />
gostava. Era isso, um monte de pessoas que gostavam do tal Cruzeiro, e<br />
como o Nestor não gostava eu resolvi me vingar.<br />
Eu conseguia copiar tudo que via ou que ouvia. Talvez a saudade de<br />
casa e a vontade de voltar me deixavam ansioso, e eu substituía essas<br />
coisas por uma criteriosa atenção a tudo que via.<br />
Se eu tivesse nascido gente gostaria de ser pintor, e queria pintar a<br />
floresta onde nasci e todos os animais e plantas, mas por outro lado, se não<br />
tivesse nascido papagaio não teria desvendado a floresta onde nasci e não<br />
teria conhecido coisas tão bonitas lá!<br />
Então passamos em frente a um riacho com uma água verde e suja!<br />
Lembrei-me do meu amigo das águas limpas e cristalinas da floresta, o<br />
peixe Vernacleto. Novamente a tristeza chegou aos meus pensamentos.<br />
Lembrei do dia em que ele me ensinou que debaixo da água havia um<br />
universo tão amplo como o da floresta, do lado de fora da água, agora estou<br />
descobrindo um outro universo aqui nesse lugar cheio de pessoas e carros.<br />
Seria tão bom se eu pudesse construir o meu próprio universo,<br />
somente com as coisas que eu gosto, e tirar tudo o que me entristece!<br />
Mudar as coisas de lugar, tirar o ódio do coração dessas pessoas e acabar<br />
com a minha tristeza! Eu iria morar num lugar com várias palmeiras, para<br />
todos os dias pela manhã comer buriti vendo o sol surgir atrás de uma<br />
montanha verde de mata densa. Eu gostaria de me molhar nas águas do rio<br />
e de ser feliz com todos os animais. Esse paraíso existe, e eu fui tirado de lá<br />
e trazido para esse lugar horrível! Lá não havia o ódio e até mesmo o<br />
gavião só caçava os animais para se alimentar, aqui existe ódio e<br />
desonestidade. Eu nem sabia o que era isso e agora eu sei.<br />
Nós chegamos a uma casa velha e um pouco assustadora depois de<br />
umas poucas horas de viagem no carro do Gilmar. Era noite e após<br />
acenderem os lampiões da casa, o Gilmar arrumou as duas camas que tinha<br />
no quarto da casa, único cômodo do segundo andar. Havia muita sujeira,<br />
muita poeira naquele lugar!<br />
O Nestor estava fazendo comida para eles como fazia todos os dias.<br />
Depois ele colocou girassol e pedaços de maçã em uma vasilha para mim.<br />
Os dois ficaram um tempo jogando baralho e bebendo muito. Eu<br />
permaneci no alto de um guarda-roupas velho observando os dois.<br />
Então fomos dormir.<br />
Embora cansado, meus sonhos eram tão tristes. Eu sabia que aquele<br />
lugar não era perto da minha floresta e isso reduziu minha esperança<br />
naquela noite.<br />
22
Eu escutava os grilos do lado de fora da casa, mas o som não era<br />
igual ao som dos grilos da floresta. Havia perfume de flores, mas também<br />
não era semelhante.<br />
*****<br />
Ouvindo o barulho alto dos tiros eu acordei assustado e voei pelo<br />
quarto, batendo nas paredes. Havia pouca luz, somente a lua. Tentei achar<br />
refúgio.<br />
- Esquece, vamos cair fora. – gritou o Gilmar.<br />
Quando pousei na beira da janela vi os dois correndo pelo gramado<br />
na direção do carro.<br />
- A gente não devia ter vindo pra cá chefe. O fantasma do Wilson tá<br />
assombrando a casa.<br />
- Eu vi Nestor. Era o fantasma do Wilson, que você matou, lembra?<br />
- Chefe, mas o senhor me obrigou a fazer aquilo.<br />
- O sujeito estava prestes a nos entregar para a polícia. O que você<br />
queria que eu fizesse?<br />
- O pior é que deixamos nossas coisas na casa e teremos que voltar lá<br />
para pegar.<br />
- Nada disso. Eu estou indo embora. Não vou ficar aqui nem mais<br />
um minuto. Temos grana, compramos novas roupas.<br />
- Mas e o papagaio?<br />
- Esquece o papagaio. Esse bicho só tem nos causado problemas. Se<br />
tivéssemos deixado ele na cidade, lá naquela casa que assaltamos no outro<br />
dia, não precisaríamos ter vindo parar aqui. Eu to com minha carteira e a<br />
grana das jóias está aqui. Vamos voltar pra cidade e esse papagaio que se<br />
vire.<br />
- Coitado do papagaio!<br />
- Esquece! Coitados somos nós. Ele que se arrume, afinal não nasceu<br />
quadrado.<br />
- Eu gostava dele!<br />
Quando os dois saíram com o carro eu tentei segui-los voando, mas<br />
eu já não voava tão bem como antes, na floresta... minha casa, minha<br />
floresta tão amada que levo em minhas recordações mais doces e mais<br />
tristes...cada vez mais tristes.<br />
Estava difícil voar como antes, afinal desde que os dois homens me<br />
tiraram da floresta eu só ficava em gaiola! Eu fiquei cansado rápido, tinha<br />
certo tempo que eu não voava assim por tanto tempo, eu estava fora de<br />
forma e fui me cansando cada vez mais enquanto o carro sumia na distância<br />
à noite a caminho da cidade. Senti como se fosse um dos meus primeiros<br />
vôos...<br />
Então os perdi na distância e no escuro da noite. A luz do farol foi<br />
sumindo e eu ainda tentei voar mais rápido para os calnançar.<br />
23
Mas eu fiquei ali, naquele galho de árvore. O único que consegui<br />
alcançar depois do cansaço do vôo. Era noite e havia desespero, o rumo dos<br />
perdidos.<br />
Minha vida dependeria da sorte, pois eu estava só, num lugar<br />
desconhecido. Que acontecimentos a vida reservaria para mim?<br />
Cansado, com medo e sem saber o que fazer, tentei me esconder nas<br />
folhas da árvore, com medo de algum predador, das cobras, dos animais da<br />
noite e até mesmo do gavião.<br />
Eu estava sozinho, e era apenas um papagaio. Não havia nem mesmo<br />
outros pássaros diferentes para ficarmos juntos e tentarmos afastar os<br />
outros animais com o nosso barulho.<br />
Papai dizia que um papagaio sozinho não pode fazer nada, mas eu<br />
não fui premiado com o direito da escolha, minha vida foi roubada da<br />
floresta e deixada numa árvore, num lugar que não conheço, num universo<br />
que somente tem revelado tristeza, decepção e dor ao meu coração que bate<br />
com tanta angústia que nem mesmo todas as flores da floresta, em beleza e<br />
perfume seriam capazes de se equiparar a tamanha infelicidade que esse<br />
lugar me presenteou desde que vim parar aqui.<br />
A vida é um grande enigma! Qual o motivo de viver? Nós sonhamos<br />
desde o dia que nascemos e nunca conseguiremos realizar todos os sonhos.<br />
Tudo é difícil desde a comida até a sobrevivência! Há sempre mais perigos<br />
do que segurança! Há sempre mais tristeza e decepção do que felicidade!<br />
Por isso cada vez que estamos felizes queremos que dure para sempre, mas<br />
nada na vida dura para sempre...tudo morre, as plantas, a água, os animais,<br />
o ar, a noite e até mesmo as estrelas e todo o universo!<br />
Eu só queria voltar pra minha casa e voltar a viver!<br />
24
Capítulo 4<br />
- Juca, não quero que você faça mais nenhuma grosseria entendeu?<br />
Você já é um garoto crescido! Já tem idade para assumir certas<br />
responsabilidades, comportamento...<br />
Mesmo eu pegando no sono meu pai prosseguia em seu sermão de<br />
boas maneiras, sem saber que na verdade era ele quem fazia as coisas<br />
erradas e que quando eu não concordava, a razão era minha.<br />
Então quando anoiteceu eu fugi de casa. Ele brigou comigo por coisa<br />
boba, e sempre acaba descontando outros problemas em mim quando vai<br />
falar algo.<br />
Não gosto dos amigos dele! São pessoas maldosas!<br />
Ele não entende que eu tenho minha maneira de pensar, mesmo o<br />
respeitando muito eu não posso negar que tem coisas que acho errado.<br />
Os amigos dele são todos cachaceiros e ficam vindo aqui em casa só<br />
pra encher a cara. Hoje fui falar com um deles e o pai não gostou, mas na<br />
verdade ele também não gosta que esse pessoal venha tantas vezes aqui em<br />
casa comer a nossa comida e beber a pinga que ele compra toda semana.<br />
Ele os trata bem mesmo assim por causa que deve favores a eles, favores<br />
que nunca falou pra mim do que se tratava, mas acho que deve ser dinheiro.<br />
Eles entram na mata que fica lá para os lados da serra e caçam<br />
muitos animais. Essa é a grande diversão deles, mas isso sempre me<br />
incomodou, não acho certo.<br />
25
Algumas vezes eles voltam com tatus agonizando, outras vezes<br />
onças, e em outras vezes eles matam os animais, tiram a pele e trazem para<br />
secar no varal como se fosse uma roupa, para depois vender.<br />
*****<br />
Juquinha havia fugido de sua casa na mesma noite em que o Nestor e<br />
o Gilmar foram embora daquela casa velha. A casa do Juquinha ficava<br />
longe, coisa de uns dez minutos de vôo, na direção da cidade.<br />
Fui encontrado pelo Juquinha, adormecido junto de uma construção<br />
rasa chamada poço, que ficava na metade do caminho entre a estrada e a<br />
casa dele. Eu estava exausto e procurei comida por perto e não havia nada,<br />
então quando pousei naquela construção acabei dormindo.<br />
Assustei-me com o barulho dos seus passos, esmagando folhas secas.<br />
Pensei que fosse algum animal, ou lobo ou onça. Eu já vi o desenho do<br />
lobo na casa do Serginho, em uma revista que tinha uma lua cheia na capa,<br />
igual à que estava no céu naquele final de madrugada.<br />
Quando vi o garoto fiquei mais tranqüilo e lembrei do Serginho. Não<br />
senti maldade nem agressividade no seu semblante, por isso permaneci<br />
quieto até que se aproximasse.<br />
Lembro bem do nosso primeiro diálogo naquele encontro. Ele estava<br />
triste e eu apavorado. Ele tinha bolo e eu comi um pedacinho.<br />
- Ei papagaio! De onde você veio?<br />
- Selva, floresta do papagaio, currupaco, floresta, selva... papagaio...<br />
Uma apresentação informal de personalidades, em que eu era o astro<br />
maior, já que sou protagonista dessa história...<br />
- E qual é o seu nome?<br />
- Nome, nome, currupaco!<br />
- Hum! Acho que você não tem um nome. Está bem. Eu tinha um<br />
pombo chamado Petrúcio, só que ele morreu algum tempo atrás quando era<br />
muito velho! Eu vou te chamar de Petrúcio está bem?<br />
- Petrúcio, Petrúcio, currupaco!<br />
Pela primeira vez que reconhecia o significado de um nome: era o<br />
que diferenciava o Serginho do Juquinha, o Nestor do Gilmar e eu dos<br />
outros papagaios da minha família.<br />
Isso aconteceu no dia em que ele fugiu e no mesmo dia, motivado<br />
pela grande descoberta, voltou pra casa me levando junto.<br />
O pai dele estava arrependido por ter gritado e pediu desculpas.<br />
Achou uma boa idéia que o menino tivesse um bicho de estimação para<br />
fazer companhia já que naquela casa havia muita solidão e naquele campo<br />
nenhum amigo. Era um verdadeiro exílio, sem pessoas e somente mato.<br />
Uma visão bonita para mim, pois lembrava da floresta onde nasci. Eu nem<br />
sei pra que lado ela fica, e nem sei como pedir para alguém me levar pra lá.<br />
Só consigo falar o que aprendo e nem sei formular as minhas próprias<br />
26
frases de apelo. Sou um animal que pode falar, mas me sinto mudo e sem<br />
ações ao mesmo tempo. Essa situação sempre fez com que meu coração<br />
batesse no compasso do desespero, por dentro minha alma chorando toda<br />
hora e esperando ansioso o momento de sair dessa prisão, desse lugar.<br />
Vontade de ir embora para minha floresta e reencontrar meus pais, irmãos,<br />
os outros animais, o peixe Vernacleto. Vontade de viver de novo e esquecer<br />
de tudo que se passou nesse lugar tão cheio de infelicidade e confusão.<br />
O pai dele era um cara muito chato e se zangava com tudo! Seu<br />
nome era Adamastor e sempre achava ruim quando eu dizia:<br />
- Fica frio coroa, currupaco!<br />
- Juca, ou você manda esse bicho imprestável calar ou teremos<br />
ensopado de louro no jantar.<br />
- Coroa, pó-de-arroz, pó-de-arroz, currupaco!<br />
Algumas vezes me jogava arroz cru, outras vezes água fria...<br />
Adamastor vivia na casa com o Juquinha, e algumas vezes saía com<br />
uma espingarda e ficava muito tempo na mata que havia nas imediações.<br />
Era possível ouvir o barulho de tiros. Ele caçava animais juntamente com<br />
uns homens que iam até lá nos fins de semana. Divertiam-se com a morte<br />
de lobos, pacas, onças e jacarés. Quando voltavam traziam animais mortos<br />
e em algumas vezes comiam, em outras tiravam a pele para vender.<br />
Tudo era muito triste de se ver e o Juquinha não gostava do que o pai<br />
fazia.<br />
O Juquinha sempre me levava pra fora da casa quando eu falava<br />
demais. O Adamastor não gostava nem um pouco das coisas que eu dizia.<br />
Nestes dias em que permaneci na casa, sem perceber acabei cultivando um<br />
grande inimigo.<br />
Um dia quando o Juquinha foi pegar água no poço, seguindo<br />
conselhos do próprio Juquinha, veio falar comigo:<br />
- Escuta bicho imprestável: de onde você veio?<br />
- Selva, selva...<br />
- E onde você aprendeu a falar palavrão?<br />
- Merda, currupaco...anda Nestor, pega logo as jóias, currupaco...<br />
- O que foi?<br />
- Ei mane, vai encarar é? Vai encarar? Vamos pra casa na beira da<br />
estrada, a polícia vai achar a gente, currupaco...<br />
O Adamastor ficou intrigado com o que eu estava falando, porém<br />
acabei bicando o dedo dele até sangrar porque ele veio pegar em mim.<br />
Então ele coberto de fúria me colocou dentro de um balde d’água<br />
mergulhando várias vezes como se quisesse me afogar aos poucos. Foi<br />
quando o Juquinha chegou e ficou furioso com a atitude do pai.<br />
Naquela mesma tarde, um casal amigo dele, chamados Webert e Ana<br />
Paola foram visitar a casa. Juquinha os tratou de um modo grosseiro por<br />
estar com raiva do Adamastor, então à noite os dois discutiram de novo.<br />
27
E agora, depois de tudo isso que aconteceu, chegamos ao momento<br />
atual, horas depois do sermão. Eu já acordei e dentro de alguns minutos,<br />
Juquinha e eu vamos até a estrada esperar por uma correspondência,<br />
sempre deixada na caixa de metal que tem o nome do Adamastor e um<br />
número 13284.<br />
Já havia passado horas e nada do Juquinha aparecer na porta da casa.<br />
Eu esperava do lado de fora no galho da árvore para irmos.<br />
Seu pai abriu a porta com extrema rapidez e fui jogado para o canto<br />
pelo muro de madeira que se move para fora da casa.<br />
Percebi que o Juquinha já havia partido sem mim, talvez ordem do<br />
seu pai. O Adamastor nem veio ver se eu havia me contundido, ele não era<br />
tão legal quanto o Nestor.<br />
Longe vi o Juquinha gritando e chamando por ele. Corria com muita<br />
pressa para chegar até a casa:<br />
- Pai! Vem logo pai!<br />
- O que foi Juca?<br />
- Um acidente pai, na estrada...<br />
O Juquinha então subiu no cavalo e o Adamastor pegou o outro<br />
cavalo e foram para o local. Então voei até o Juquinha e pousei em seu<br />
ombro.<br />
Na beira da estrada havia um carro vermelho virado e em seu interior<br />
uma mulher cheia de sangue. O Adamastor com grande dificuldade<br />
conseguiu abrir a porta do carro e tirá-la de dentro.<br />
Dentro do carro eu vi um brinquedo igual a um brinquedo do<br />
Serginho com o qual sempre brincava comigo, chamado telefone. Eu fui até<br />
lá e mexi nos botões igual ao Serginho e do telefone começou a sair um<br />
barulho, uma voz perguntando umas coisas. Fiquei repetindo as palavras<br />
que escutava, sobre o carro que virou na estrada e o pai do Juquinha estava<br />
salvando a moça, falei que tinha sangue e que o Adamastor era muito<br />
chato. A voz de mulher que saía do telefone perguntou meu nome e eu<br />
respondi. Depois ela perguntou o endereço, acho que era o número da<br />
plaquinha do Adamastor, então falei um por um. Ela escutava os gritos dos<br />
dois tentando ajudar a moça do carro.<br />
A voz do telefone começou a ficar brava e disse que ia mandar<br />
alguém até lá porque eu estava passando trote então eu saí de perto do<br />
telefone. Aquele não era engraçado igual o do Serginho, nem tinha<br />
musiquinhas.<br />
Passavam alguns carros pela estrada e nenhum deles parava, só viam<br />
o que estava acontecendo e depois iam embora.<br />
O Juquinha havia chegado com um balde cheio de água e um pano.<br />
O Adamastor limpou o rosto dela e colocou o pano molhado em sua testa.<br />
28
Assustei quando depois de algum tempo vi uma coisa no céu que<br />
parecia um brinquedo do Serginho, mas era muito maior! Foi quando o<br />
Juquinha falou:<br />
- Olha o helicóptero!<br />
Então eu me escondi na árvore e vi o enorme brinquedo pousar no<br />
mato. Três pessoas saíram do brinquedo igual os bonequinhos do Serginho.<br />
Eles colocaram a moça em uma tábua branca com umas cordas e estavam<br />
colocando a moça dentro do brinquedo. Então voei pra trás do balde e<br />
fiquei olhando da beirada. Estava curioso pra ver o que iria acontecer.<br />
Então chegaram dois carros cheios de luzes piscando, havia sirenes,<br />
igual aos brinquedos do Serginho. Quando os carros pararam, eu me<br />
assustei e voei até uma árvore na encosta da estrada e fiquei escondido,<br />
ouvindo o que conversavam...<br />
- E o senhor é o Petrúcio?<br />
- Não...me chamo Adamastor.<br />
- Quem é o Petrúcio então? Recebemos um chamado na central e até<br />
pensamos que seria um trote, porém os Bombeiros confirmaram o acidente<br />
e o helicóptero veio pra cá de imediato.<br />
- Petrúcio é o meu papagaio.<br />
- Então quer dizer que um papagaio acionou o serviço policial?<br />
Vamos com calma gente, o meu dia está cheio de ocorrências...<br />
- Só pode ter sido ele, nós nem temos telefone...<br />
- Ei pai, o Petrúcio estava dentro do carro.<br />
- Não é possível, será?<br />
Após examinarem o interior do carro, confirmaram a hipótese,<br />
devido a uma prova que acabei deixando sobre o telefone por acaso...mas<br />
espera aí...não é o que estão pensando, foi uma pena que se soltou de mim,<br />
além das marcas de pata que ficaram no telefone, porque minhas patas<br />
estavam sujas.<br />
- Ah sim! Foi o Petrúcio sim.<br />
- Incrível! Nunca vi nada parecido! Precisamos acionar o jornal para<br />
fazer uma reportagem.<br />
Outro carro com sirene estava chegando. Esse era um caminhão e iria<br />
levar o carro da moça para arrumar. Era bonito! Tinha um guincho igual o<br />
caminhão do Serginho. Parecia até que as pessoas estavam brincando!<br />
Tudo era igual às brincadeiras do Serginho, mas lá não tinha a moça com<br />
sangue e os carrinhos eram pequenos.<br />
Enquanto isso o policial anotava tudo que o Adamastor falava em<br />
uma prancheta...<br />
Chegaram mais carros e o Juquinha gritou para o pai que eles<br />
estavam na televisão, umas pessoas, umas coisas estranhas ligadas, luzes...<br />
- E o papagaio?<br />
29
- Ah! O papagaio o meu filho Juca encontrou perto do poço que tem<br />
ali na frente, deve ter se perdido dos donos, pararam por algum motivo na<br />
beira da estrada e...<br />
- Não, não...ele pertence a uma família da cidade. Houve um roubo<br />
de alguns objetos de valor na casa e os ladrões acabaram levando o<br />
papagaio também. Veja esse jornal. Estavam oferecendo até uma<br />
recompensa pelo papagaio.<br />
- Quer dizer que vão levar o Petrúcio?<br />
- Vão sim Juca. Vão levá-lo para os donos.<br />
O Juquinha começou a chorar bem alto e o Adamastor tentava<br />
consolá-lo, sentindo grande satisfação porque eu iria embora, e tentando<br />
esconder isso do Juquinha.<br />
Foi quando um dos homens disse:<br />
- Escuta garoto: temos lá no quartel vários filhotes de pastor-alemão<br />
e não serão todos aproveitados, apenas os que passaram nos testes para o<br />
policiamento. Treinar esses bichos dá muito trabalho! O que você acha de<br />
eu trazer um desses filhotes para você? Se você cuidar bem dele...vai virar<br />
um mascote nota dez! se quiser mando trazer agora mesmo.<br />
Fiquei torcendo para o Juquinha recusar a oferta tentadora do guarda:<br />
trocar um papagaio que dizia palavrão e era odiado pelo pai, por um cão de<br />
raça que seria amado pelos dois. Cruzei minhas patinhas, mas foi em vão<br />
meu esforço de ave... eu iria sair daquele lugar.<br />
O Juquinha concordou em me trocar pelo cão sardento. Fui levado de<br />
volta para a cidade. Imagina só: trocar um papagaio bonitão e boa pinta que<br />
nem eu por um cão cheio de pulgas. Ah, quer saber, o Juquinha não era tão<br />
esperto assim. E pensar que ele que colocou esse nome em mim e agora eu<br />
já aprendi, agora vai ser Petrúcio mesmo, já o decorei e não dá pra mudar.<br />
Gosto do Serginho, mas aqui na casa do Juquinha eu tinha muita<br />
árvore, tinha os outros pássaros...aqui parecia um pouco com a minha<br />
floresta. Eu vivi dias mais felizes aqui, na esperança que aparecesse algum<br />
papagaio do meio do mato pra me ajudar, pra ensinar o caminho de<br />
casa...agora vou ter que ir embora para aquele lugar sem árvores...<br />
- Petrúcio!<br />
Num salto deixei o galho daquela árvore onde me escondi do<br />
movimento e realizei a triste caminhada da derrota, em direção ao carro da<br />
polícia. Foi quando o Juquinha tentou me dizer o que eu já sabia, mas<br />
dificilmente acreditava.<br />
- Petrúcio eu...<br />
- Nenhuma palavra Juquinha, eu já ouvi tudo, currupaco.<br />
E nossa despedida teve um clima de enterro. Foi até bom para que<br />
ele se lembrasse de mim, como uma coisa boa, que vem, e que<br />
passa...como a infância ou a primavera, a chuva da floresta e as descobertas<br />
que eu fiz lá naquele paraíso antes dos homens me trazerem pra cá.<br />
30
Os repórteres ficavam me filmando o tempo todo e me chamavam de<br />
herói. Eles disseram que eu iria aparecer em muitos lugares, então pensei<br />
que alguém na floresta iria me ver e vir me ajudar. Somente depois de<br />
muito tempo fui descobrir que somente os homens assistiam televisão, e<br />
quando eles falaram que eu apareceria em muitos lugares, estava dizendo<br />
que meu rosto triste estaria dentro da casa de cada habitante desse lugar.<br />
Num único momento eu estaria em toda parte, menos na floresta.<br />
Já na estrada, de volta à cidade, passei a ter pressentimentos ruins<br />
sobre meu retorno à casa do Serginho. Parecia tão distante do meu destino!<br />
Capítulo 5<br />
Todos na casa haviam mudado muito o comportamento comigo<br />
passados alguns meses! O Serginho ganhou brinquedos novos, bonitos e<br />
coloridos! Já não me dava mais atenção como antes. Se eu quisesse tomar<br />
sol de manhã, eu mesmo tinha que ir até a árvore, músicas no rádio já não<br />
ouvia mais, pois não ligavam o rádio da cozinha pela manhã. A casa ficou<br />
mais sombria, mais cinzenta, é como se uma energia ruim tivesse levado os<br />
sorrisos daquele lugar.<br />
O Serginho todos os dias pela manhã ia até um lugar que ele<br />
chamava de escola. Ele saía bem cedo antes do sol nascer e nem tinha<br />
tempo para pelo menos me acariciar como antigamente. O sr. Pedro era<br />
quem o levava e depois ia trabalhar. Ele ficava fora o dia todo e quando<br />
chegava estava muito cansado, tinha no rosto uma expressão triste todas as<br />
noites em que ia até a cozinha tomar um copo d’água antes de dormir.<br />
A dona Amanda ficava sozinha em casa nas manhãs. Algumas vezes<br />
um homem ia lá depois de alguns minutos, onze ou doze giros do ponteiro<br />
fininho do relógio da sala que tanto gosto de ficar observando, aprendi a<br />
contar o tempo assim, aqui nesse lugar, convivendo com a minha solidão.<br />
A dona Amanda gostava muito do homem e sempre ficavam sorrindo<br />
muito lá na sala e depois eu não escutava mais os dois.<br />
Certo dia eu estava brincando na cozinha com um pedaço de<br />
madeira. Ninguém abriu a janela pra eu sair e os dois saíram depressa<br />
porque o sr. Pedro teria uma reunião. Ouvi barulhos na casa e fui ver o que<br />
era.<br />
Parecia que não havia ninguém na casa, mas eu escutava barulhos no<br />
segundo andar, conversas, gritos, sorrisos. Eu pensei em subir a escada ou<br />
voar até lá, mas fiquei com medo afinal não sabia o que era então voltei lá<br />
para a cozinha e fiquei escondido, apenas ouvindo.<br />
Nos dias seguintes aconteceu tudo de novo, exatamente igual. Era<br />
incrível como a cena se repetia do mesmo jeito todos os dias após a saída<br />
do Serginho e do pai. Eu sempre ficava escutando sem saber o motivo<br />
daquele barulho.<br />
31
Uma noite o sr. Pedro foi até a cozinha e quando abriu a geladeira eu<br />
acordei. Ele pegou um pedaço de bolo de chocolate e pôs um outro pedaço<br />
do meu lado numa rara cena de gentileza que eu já nem estava acostumado<br />
a receber. Ele parecia triste com alguma coisa, lembro que se sentou na<br />
cadeira da cozinha e eu desci da gaiola até a mesa, depois caminhei para<br />
perto dele.<br />
Ele conversava sozinho sobre algumas coisas que eu não entendia<br />
enquanto guardava aquela fisionomia triste e cansada no rosto.<br />
Eu comecei a conversa, bom, repetir coisas, afinal é isso que todo<br />
papagaio faz. Imitei as palavras que o Serginho me ensinou, algumas que<br />
eu aprendi com o Juquinha então me lembrei dos estranhos barulhos que eu<br />
escutava todas as manhãs e nessa hora o sr. Pedro prestou muita atenção no<br />
que eu repetia. Ele me ouviu dizer muitas coisas e ficou imóvel, somente<br />
me observando. Senti sua fisionomia mudar como se num dia de sol as<br />
nuvens encobrissem o sol.<br />
Ele foi dormir com uma expressão diferente no olhar.<br />
No outro dia foi o primeiro a se levantar e ir até a cozinha. Ficou<br />
parado perto de mim esperando que eu dissesse algo.<br />
Eu lembro que comecei a cantar uma música e ele interrompia.<br />
Demorei um pouco a entender que ele queria que eu repetisse os sons das<br />
manhãs que tanto me atormentavam.<br />
Ele me colocou do lado de fora só que dessa vez dentro da gaiola.<br />
Estava fechada e eu não pude sair. Depois ele subiu até o quarto e pegou a<br />
roupa dele de ir para o trabalho e foi sem o Serginho.<br />
Ouvindo o barulho do carro saindo a dona Amanda levantou<br />
correndo, olhou pela janela e pegou o telefone. Eu a vi na janela<br />
conversando com o brinquedo igual o Serginho fazia.<br />
Quando ela desceu até a cozinha eu pude ver que o Serginho chegou<br />
atrás de pijama, interrompendo a ligação...<br />
- Serginho? O que faz aqui? Seu pai não te levou para a escola hoje?<br />
- Não. Ele saiu e eu nem tinha acordado ainda.<br />
- Então se arruma que eu vou preparar o seu café, mas anda logo que<br />
eu não posso me atrasar. Vem uma amiga aqui e não quero deixar a visita<br />
esperando.<br />
Depois de tomarem café saíram. Dois minutos depois o sr. Pedro<br />
chegou em casa sem o carro e subiu correndo para o segundo andar.<br />
Um tempo depois, não sei bem porque do lado de fora não dava pra<br />
ver o relógio, bom, pelo movimento do sol acho que uma hora, a dona<br />
Amanda chegou e quando estava abrindo a porta, o homem que ia lá todas<br />
as manhãs chegou. Ele a abraçou igual o sr. Pedro costumava fazer.<br />
Depois eles entraram na casa e passou muito tempo. Eu conseguia<br />
ouvir a voz do sr. Pedro porque ele estava falando muito alto mas não dava<br />
para entender nada.<br />
32
Foi aí que escutei um barulho alto e fiquei assustado! Depois outro<br />
barulho. Comecei a bater asas dentro da gaiola e ela caiu do prego. Então o<br />
sr. Pedro saiu da casa carregando duas malas e colocando perto do portão.<br />
Voltou correndo pra dentro da casa e voltou com um lençol com muitos<br />
brinquedos do Serginho e colocou perto das malas. Depois me pegou no<br />
chão e colocou perto das outras coisas.<br />
Ele saiu apressado pelo portão e pouco tempo depois voltou com o<br />
carro. Colocou tudo lá dentro da parte de trás, inclusive minha gaiola. Lá<br />
dentro era abafado, não dava nem pra respirar direito e estava muito quente<br />
e escuro.<br />
Eu não vi mais nada que estava acontecendo ao meu redor, somente<br />
ouvia o barulho que o carro fazia ao passar pelas ruas. Permaneci quieto<br />
tentando me segurar na grade enquanto tudo era sacudido naquele lugar<br />
abafado.<br />
- Sérgio! Sérgio!<br />
- Oi pai! Cadê a mamãe? Ela não veio me buscar? Vocês trocaram<br />
hoje?<br />
- Não filho. Ela não pôde vir te buscar.<br />
- E pra onde estamos indo?<br />
- Tenho uma surpresa: vamos ficar uns dias na casa da vovó Matilde.<br />
- Oba! Que legal pai! E a mamãe?<br />
- Ela terá que ficar em casa filho.<br />
- E nós vamos de barco?<br />
- Vamos sim! Dessa vez num barco enorme! Você vai adorar!<br />
Mais de um quarto do dia já havia se passado e eu naquela clausura,<br />
naquele lugar escuro.<br />
De repente o carro parou e o sr. Pedro colocou um pano escuro sobre<br />
a gaiola e foi tirando as coisas. Vi que um outro homem estava ajudando<br />
ele, depois não deu pra ver mais nada.<br />
Uma profunda calmaria do lado de fora e todo o tormento do mundo<br />
esmagado em seu interior, circulando por minhas artérias e meus<br />
pensamentos. Toda vez que eu me emociono ou existe suspense, sei que<br />
algo vai acontecer, e isso me preocupa.<br />
Quando tiraram o pano, senti como se estivesse sendo jogado no ar.<br />
Todas as minhas preocupações fugiram de seu interior e eu fui o último<br />
tripulante a deixar a prisão.<br />
A primeira voz que ouvi foi a voz do sr. Pedro que me disse:<br />
- Escuta papagaio: não repita mais aquelas palavras que você ouviu<br />
em casa entendeu? Não pode, não repita...<br />
- Palavra, palavra, currupaco!<br />
- Isso, palavra... não repita. Ah, deixa, é claro que você não iria<br />
entender.<br />
33
- Isso coroa. Eu to sacando, currupaco. Pó-de-arroz vem brigar. Dá o<br />
pé!<br />
Estávamos viajando em uma coisa chamada barco e era rodeado de<br />
água. Quando o Serginho me levou do lado de fora eu fiquei olhando a<br />
água. Havia mata em volta e parecia muito com a floresta. Fiquei olhando<br />
fixo pra água pra ver se avistava o Vernacleto, meu amigo peixe naquela<br />
imensidão de águas, mas não dava pra ver nada. A água era escura, não<br />
parecia com a água da cachoeira lá no meio da floresta onde eu nasci.<br />
Ao olhar a mata meus olhos se encheram...<br />
Deu vontade de sair voando para o mato, mas tive receio. Não sabia<br />
onde estava e tinha medo que algum animal me pegasse caso eu caísse na<br />
água, assim como o Vernacleto me ensinou sobre os predadores da água.<br />
Dava pra ver muitos passarinhos voando nos galhos, se assustando com o<br />
barco. Eu não conhecia aqueles pássaros e tentava falar com eles de longe,<br />
gritava em saudação, mas não me respondiam, deviam achar que era o<br />
barco quem falava.<br />
O sobe e desce do barco levou rapidamente minha capacidade de<br />
permanecer de pé. Fiquei tonto e enjoado de tanto olhar para o horizonte,<br />
para aquelas árvores, lá ao longe, bem longe, uma ilha distante que era o<br />
destino do barco. Eu sentia algo diferente! Um cheiro diferente!<br />
Comecei a caminhar pelo piso do barco, bem perto das paredes, até<br />
que o efeito da maresia foi passando.<br />
Quando vi o Serginho voei pra perto dele e nós fomos conhecer o<br />
barco todo. Havia corredores, escadas, janelas e muitas pessoas observando<br />
a paisagem da mata.<br />
Não consigo entender como essas pessoas se admiram tanto ao ver a<br />
natureza e mesmo assim destroem. São as pessoas que compram os<br />
passarinhos e com isso tiram a vida da floresta. Como pode ser assim?<br />
O Serginho estava alegre e me dava atenção. Quando ele estava<br />
longe dos seus brinquedos bobos, voltava a ser meu amigo e passávamos<br />
momentos agradáveis juntos.<br />
Nós estávamos viajando na parte de baixo do barco. O Serginho<br />
falou que o andar de cima era para o pessoal rico. Só que eu queria ver a<br />
floresta lá de cima. Talvez eu pudesse ver onde eu morava e voava pra lá,<br />
talvez os meus irmãos ou amigos estivessem voando e eu só poderia ver se<br />
subisse até lá em cima. Se eu pudesse ver a palmeira, saberia que era lá. Fui<br />
ficando impaciente, ansioso! Talvez eu estivesse tão próximo de casa e só<br />
poderia descobrir se ousasse deixar a companhia do Serginho.<br />
Eu voei até lá e o Serginho veio atrás de mim pela escada. Havia<br />
uma grade que servia de entrada, mas estava fechada e o Serginho não pôde<br />
me seguir. Pela primeira vez desde que eu vim parar nesse lugar senti<br />
liberdade, senti que poderia fazer o que eu quisesse.<br />
34
Olhando para a floresta dava pra ver que não era a mesma floresta<br />
onde eu nasci. Meus olhos entristecidos observavam aqueles animais e<br />
pássaros, mas não é a mesma floresta que eu nasci, de onde eu vim e pra<br />
onde sonho voltar. Eu saberia se fosse ela, afinal um papagaio jamais<br />
esquece das coisas, todas as coisas que acontecem ficam pra sempre<br />
guardadas no coração de um papagaio. Papagaio aprende, ensina, e tudo<br />
que olha se lembra...essa não é a minha floresta.<br />
Desapontado eu saí daquele mastro de metal onde fica a bandeira.<br />
Sozinho, fui andar pelo andar de cima do barco. Era um lugar diferente do<br />
andar de baixo! Tinha muitos objetos bonitos, copos de cristal, panos...uma<br />
mesa de mogno bem grande mas o que mais me impressionou foram os<br />
copos de cristal. Eu devia saber, as águas da cachoeira na floresta tinham a<br />
cor do cristal, e devem ter até hoje. Pena eu não saber voltar para a floresta,<br />
conversar lá no rio com o peixe Vernacleto e acabar com a preocupação<br />
dos meus pais que devem chorar minha perda até hoje sem ter notícias<br />
minhas.<br />
Faltava nesse lugar uma coisa despercebida por todos em meio a<br />
tantos objetos coloridos: a minha felicidade. Órfão da vida, eu era uma<br />
energia infeliz, e havia tanta infelicidade em meus olhos que até mesmo as<br />
flores seriam capazes de murchar ao sentir a minha tristeza.<br />
Nesse momento eu caminhando lembrei das primeiras flores que vi<br />
lá na floresta quando eu saí do ninho, das cores e do perfume.<br />
Para tentar esquecer da tristeza passei a observar os homens e suas<br />
ações.<br />
Os homens mantêm formalidades e aparências que nunca irei<br />
compreender, mas sempre observava atento.<br />
Chegando perto do corrimão, comecei a sentir um estranho estímulo<br />
que arrepiava minhas penas. Um cheiro tão conhecido, mas que eu não<br />
conseguia me lembrar o que era.<br />
Resolvi descobrir de onde vinha e cada vez mais me aproximava do<br />
corrimão, seu segredo deveria estar na próxima curva já que o vento vinha<br />
de lá.<br />
Após dobrar a seta tive uma grande surpresa: encontrei uma fêmea,<br />
uma papagaia muito bonita, verde numa tonalidade tão clara que somente<br />
vi em minha mãe num dia de sol lá na floresta. Muito esnobe que nem me<br />
deu atenção quando mexi com ela assobiando, da maneira que o Nestor me<br />
ensinou.<br />
Ela tomava sol em cima do corrimão. Era a primeira vez que eu via<br />
um outro da minha espécie, depois de muito tempo longe da floresta...<br />
- Olá! Qual é o seu nome, currupaco???<br />
- E por que eu diria a você?<br />
- Por que eu perguntei, currupaco.<br />
- Você é um papagaio de segunda classe. Vê se te enxerga, sujo...<br />
35
- E você é uma chatinha sua...<br />
- O meu nome é Sophia, seu deselegante.<br />
Caramba, fiquei pensando o que seria deselegante, mas tudo bem, eu<br />
estava muito feliz em ver um outro papagaio que nem me preocupei. Eu<br />
tinha que puxar assunto.<br />
Ela, entretanto conversava de uma maneira diferente dos animais,<br />
dos pássaros. Não sei, parece até que nunca foi livre, das matas...que não<br />
nasceu na floresta.<br />
- Sophia? Sophia? Há, há, há...horrível, horrível...<br />
- E o seu? Deve ser uma maravilha não é? Príncipe do lixo!<br />
- Currupaco...o meu nome é Petrúcio.<br />
- Há, há, há, Petrúcio. Não me faça rir, currupacooo. O nome mais<br />
feio que já ouvi, crock!<br />
- Mas foi o nome que o Juquinha me deu, e gosto muito entendeu?<br />
- Juquinha? Quem é esse?<br />
- Bem! É uma longa história. Crock, vou contar para você...tudo<br />
começou quando eu nasci na floresta num dia de chuva, e...<br />
Quando comecei a contar a minha história percebi que ela ficava<br />
maravilhada ao saber como era a floresta. Sophia não conhecia a floresta,<br />
nem sabia o que era. Nasceu de um casal de papagaios que ficava preso no<br />
sítio dos pais de seus donos. Era uma papagaia bastante legal! Só o que<br />
incomodava mesmo eram as palavras difíceis que ela aprendeu ao longo da<br />
vida e essa arrogância.<br />
- Puxa! São muitas aventuras interessantes!<br />
- E você? Já viveu alguma aventura?<br />
- Não. Desde que nasci vivo na casa dos meus donos e o máximo de<br />
aventura que já tive é essa viagem com eles. Moramos numa casa grande e<br />
meu viveiro é grande, dá até pra voar dentro dele.<br />
- Escuta Sophia: quer viver uma aventura de verdade?<br />
- Uma aventura? Seria muito bom!<br />
- Então vem comigo, currupaco!<br />
Aproveitando que o almoço era servido tarde, fomos até a cozinha.<br />
Lá estavam dois cozinheiros distraídos consultando um livro de receitas.<br />
Voamos até a parte de cima do armário onde havia várias panelas e<br />
vasilhas. Então fizemos força para derrubar as panelas e os dois se<br />
assustaram bastante! Acabamos derramando o açúcar dentro da panela que<br />
estava no fogo...então saímos de lá voando pela mesma porta que entramos.<br />
Quando chegamos ao mastro não conseguimos conter o riso, a piada era<br />
ótima!<br />
Olhar para o rosto dela sorrindo me trouxe um sentimento novo, uma<br />
anestesia para as mágoas todas que eu vinha sentindo nos últimos tempos!<br />
Depois fomos até a sala do capitão do barco ver se havia alguma<br />
coisa interessante. Houve uma algazarra enorme quando a Sophia pisou no<br />
36
otão que faz tocar uma sirene, foi sem querer, ela caminhava pelo painel.<br />
Então nos escondemos debaixo de uma mesa e ouvimos o barulho de<br />
passos se aproximando. Quando ele entrou na sala nós fugimos.<br />
A Sophia era curiosa, mas muito desajeitada!<br />
Nossas gargalhadas eram altas e trouxeram alegria à parte mais alta<br />
do barco, onde as pessoas tinham mais dinheiro e quase nenhum tempo<br />
para se divertirem, apenas tratar de ganhar mais dinheiro.<br />
Depois chegamos até a sala onde os donos da Sophia estavam.<br />
Ficaram surpresos em me ver e perguntaram, achando que eu não<br />
responderia:<br />
- Qual é o seu nome louro?<br />
- Meu nome é Petrúcio, e o seu coroa?<br />
Houve uma fisionomia de surpresa no rosto daquele homem então<br />
ele franziu a testa, olhou pra mim por um breve instante e disse:<br />
- Oh, olhe que gracinha Dara, o louro sabe falar!<br />
- Oh, mas que formidável!<br />
- Diga mais alguma coisa papagaio, vamos!<br />
Eles não estavam acostumados a ver e ouvir um papagaio falar. A<br />
Sophia havia dito que raramente falava com seus donos na casa onde<br />
viviam. Disse que isso foi depois de um dia que seu dono deu um tapa nela<br />
por ter rasgado um jornal que ele estava lendo na mesa da cozinha. Disse<br />
que depois disso ficou mais calada, só conversando às vezes quando o rádio<br />
estava ligado.<br />
Talvez tenha sido esse isolamento que provocou naquela bela<br />
papagaia a incapacidade de sorrir, uma doença que pode ser fatal em<br />
qualquer papagaio se não for tratada a tempo. Sinto-me feliz por tê-la feito<br />
sorrir tantas vezes nesse dia!<br />
Então no tempo que fiquei conversando com seus donos disse a eles<br />
como era minha vida desde que saí da floresta e o rumo que tomou minha<br />
história de papagaio. Claro que para eles não passava de um conto que<br />
meus donos ensinaram, para eles era apenas graça, piada...mas a Sophia<br />
ouvia atenta e olhava com olhos que pareciam singelos. Ela parecia estar<br />
admirada quando eu falava sobre como era a floresta.<br />
Então contei algumas piadas para o Cristóvão, que era o dono da<br />
Sophia – nominho feio, mas tudo bem – na verdade o nome das pessoas é<br />
feio... e então várias vezes o silêncio se quebrou, dando mais alegria a essa<br />
parte mais alta do barco.<br />
Logo se formou um pequeno grupo de curiosos ao meu redor e não<br />
seguravam as gargalhadas quando eu contava as piadas que o Nestor havia<br />
me ensinado. Era uma piada que falava de um elefante branco, então o<br />
dono do circo perguntou: elefante, quem roubou a sua cor? E o elefante<br />
respondeu...não vou falar porque é palavrão, mas é o que você pensou.<br />
37
Cristóvão quis conhecer o meu dono, o Serginho. Fomos então pela<br />
escada até o andar de baixo.<br />
Sophia e eu ficamos no corrimão próximo observando a<br />
movimentação das pessoas. Eu sentia uma estranha atração por ela, de<br />
alguma forma me tornava mais próximo de minha casa. Quando ela estava<br />
por perto eu sentia uma sensação inigualável de vida, outras sensações<br />
eram provocadas pelo cheiro dela e então contei tudo a ela. O que eu sentia,<br />
aquela sensação diferente.<br />
Ela falou que os seus donos eram empresários e patrocinavam festas<br />
de rodeio. Ela me explicou, mas eu não entendi nada do que ela falou sobre<br />
o tal rodeio, então deixei pra lá. Nem cheguei a ficar curioso.<br />
Sophia olhou para mim de uma forma que jamais havia visto, com<br />
algo diferente no olhar então me disse para irmos dar uma volta pelo barco.<br />
- Olá! Você é o Serginho? Dono do papagaio Petrúcio?<br />
- Sim, sou eu. Você o encontrou?<br />
- Bem...na verdade eu estava interessado em comprar o louro de<br />
você. Eu tenho uma papagaia muito bonita e eles estão se dando muito<br />
bem! Interessa-se em vendê-lo? Tenho um viveiro enorme, bem bonito!<br />
- Mas eu o tenho de estimação, meu pai que me deu de presente e...<br />
- O que se passa por aqui?<br />
- Olá, o senhor deve ser o pai do Serginho. Bom garoto...<br />
- Sim sou eu. Aconteceu alguma coisa?<br />
- Então...eu tenho uma papagaia e coincidentemente o papagaio do<br />
Serginho a encontrou lá em cima quando ela tomava sol. Fiquei admirado<br />
como os dois se deram bem, na verdade eu adorei aquele papagaio e estou<br />
disposto a pagar qualquer preço para tê-lo.<br />
- O seu preço seria qual?<br />
- Digamos dez mil reais.<br />
- Espere um pouco, vou falar com meu filho.<br />
- Tudo bem! Ficarei esperando aqui mesmo!<br />
Nisso nós dois voltamos de um encontro às escondidas, algo que eu<br />
jamais havia sentido...estar com a Sophia, nos acariciarmos, nos sentirmos!<br />
Realmente uma grade surpresa e era a primeira vez que eu namorava!<br />
Indeciso e curioso sobre o que estava acontecendo percebi que o<br />
Serginho estava me vendendo para o Cristóvão. Vi que eles falavam de<br />
dinheiro e o senhor Pedro concordava com o que o Cristóvão estava<br />
falando.<br />
Fiquei um pouco triste afinal eu teria um outro dono, já era o quarto:<br />
Serginho, Nestor, Juquinha e agora o Cristóvão. Será que ninguém me quer<br />
não? Quê custa então me devolver para a floresta? É lá o meu lugar e aqui<br />
eu não sou feliz. Sou passado de mão em mão como se fosse um produto,<br />
um objeto da mobília da casa...<br />
38
Mas a Sophia estava feliz, e queria me ver feliz também. O Serginho<br />
me chamou, mas acabei voando atrás dela pelo barco tentando alcançá-la.<br />
Minha revoada colocou fim ao acordo comercial dos dois,<br />
influenciado pelo senhor Pedro. Enquanto eu voava pensei que talvez<br />
nunca mais fosse vê-los de novo, mas eu estava feliz, havia alguém da<br />
minha espécie comigo, agora tudo seria mais fácil nesse lugar tão diferente<br />
da floresta! Eu não estaria mais sozinho, seria mais fácil!<br />
Para sentir cada vez mais forte o cheiro do corpo da Sophia, comecei<br />
a voar rápido! Parecia um raio e minha provocadora passou a ser minha<br />
vítima.<br />
Ela gritava enquanto voava pelo navio em direção à sua gaiola.<br />
Chegou cansada ao alto da parede branca ao lado da porta do quarto<br />
de seus donos. Descansava na entrada da gaiola de metal, mas se assustou<br />
quando cruzei a curva do corredor. Ela entrou na casinha e então e em<br />
poucos segundos cheguei.<br />
Estava ligeiramente assanhado com a presença da Sophia! Ficamos<br />
ali namorando e o próximo período foi marcado por grande agitação<br />
naquele corredor deserto onde não se ouviam vozes humanas. Carinhos!<br />
Estávamos carinhosos um com o outro! Ela ficou um bom tempo<br />
procurando penugens soltas nas minhas asas, nos bicamos e ficamos<br />
juntinhos enquanto a noite chegava.<br />
Lembrei do fim das tardes lá na floresta quando nos reuníamos para<br />
dormir, meus pais, meus irmãos e eu. O calor dos nossos corpos aquecia a<br />
todos.<br />
Depois de muito tempo o sino que anunciava a meia-noite tocou,<br />
baixinho e eu adormecia junto à ela na gaiola.<br />
Capítulo 6<br />
Chegou a manhã e o menino desembarcava com seu pai na ilha que<br />
não era mais distante, então voei até o corrimão da parte de cima do barco<br />
para vê-los. Não contente com a visão que tive, fui mais além, até a ponta<br />
do navio. Eles se distanciavam e eu estava triste em vê-los indo embora! O<br />
sr. Pedro carregando numa das mãos uma mala e o lençol que guardava os<br />
brinquedos do Serginho, um outro homem carregava a outra mala, cada vez<br />
mais distantes enquanto o barco voltava ao percurso.<br />
A certa distância ainda dava para ver o sr. Pedro e o Serginho no<br />
cais, entrando em um carro e seguindo pela rua que dava acesso ao cais. O<br />
Serginho tinha nas mãos um algodão doce e nem chegou a olhar para trás.<br />
Para onde estaria indo? E achando que meu sussurro partiria o ar e<br />
quebraria as barreiras sonoras do adeus, me despedi com um som baixinho.<br />
O senhor Pedro não era tão legal quanto o Nestor, e era menos<br />
esperto que o Juquinha!<br />
39
Capítulo 7<br />
Eu havia me tornado uma celebridade! Divertia as pessoas do barco<br />
todas as noites contando piadas e cantando.<br />
Um dos amigos do Cristóvão queria me levar em seu programa de<br />
televisão para que eu contasse as piadas que eu já conhecia, e outras que o<br />
Cristóvão ensinava. Nos primeiros dias o Cristóvão estava mais atencioso<br />
comigo, agora quando chegava perto de mim era para mostrar a algum<br />
amigo. Dizia para eu contar algumas piadas e depois ficava conversando<br />
com o amigo.<br />
Eu fazia sucesso com o pessoal e isso passou a incomodar a Sophia<br />
que sempre passava despercebida por todos e quando era notada era apenas<br />
como a namorada do papagaio.<br />
Sophia estava bastante resmungona! Não sorria para ninguém e não<br />
achava graça das minhas piadas...eu sempre tentava conversar com ela mas<br />
era ignorado.<br />
Eu não estava entendendo porque ela estava agindo assim, esse seu<br />
comportamento tão ofensivo! Eu tentava acabar com o gelo. Até que um<br />
dia ela falou que não estava mais gostando de mim por causa da minha<br />
fama, que minha popularidade afetou o sentimento que ela sentia por mim.<br />
40
Achei que fosse somente um desabafo dela. A Sophia estava<br />
diferente! Não me deixava dormir junto com ela na casinha então passei a<br />
dormir debaixo dentro de uma caixa de madeira que ficava perto da casinha<br />
dela. Naquela mesma noite a Sophia me armou uma cilada...<br />
- Onde está o colar Jonas?<br />
- Eu não sei querida. Vamos continuar procurando.<br />
- Eu juro que havia deixado o colar sobre a mesa.<br />
- Como pode? Será que algum dos empregados entrou aqui no<br />
quarto?<br />
- Não, isso seria impossível! Apenas a janela ficou aberta. É uma<br />
janela pequena! Não há como uma pessoa ter entrado aqui.<br />
- Onde estará esse bendito colar?<br />
Jonas e Elisa eram o casal mais rico que viajava naquele barco, assim<br />
a Sophia falou. Ela pegou entre as jóias de Elisa seu colar preferido de ouro<br />
e esmeraldas.<br />
- Ei Raul, onde estão meu colar de pérolas e meu anel de brilhantes<br />
que você me deu de presente em meu último aniversário?<br />
- Ah Cinthia, eu não sei. Não sou guardião das suas coisas. Você<br />
sempre deixa tudo jogado, é natural que sumam.<br />
- Mas não pode ser. Deixei sobre a cama para usar essa noite e<br />
enquanto fui tomar banho, desapareceram.<br />
- Procura direito. Talvez tenha deixado em outro lugar...<br />
- Não, tenho certeza que deixei aqui mesmo em cima da cama.<br />
Raul e Cinthia eram estrangeiros. Eu nem sei o que é isso, mas a<br />
Sophia falou que era quem morava em outras terras. Então pensei que eu<br />
era estrangeiro também afinal a floresta não era aqui. Deve ser então que<br />
eles moram numa outra cidade que tem outras florestas, é...<br />
Sophia falou que os dois estavam fazendo uma viagem pela costa<br />
brasileira para comemorarem uma quantidade de tempo de casado. Ela<br />
pegou as jóias e colocou entre as minhas coisas, alguns presentes que<br />
ganhei do pessoal do barco.<br />
Era noite e sem saber de nada lá estava eu no palco do barzinho.<br />
Vários músicos tocavam instrumentos todas as noites e eu contava piadas.<br />
Vi uma movimentação dos empregados. Então depois de um tempo o<br />
capitão do navio foi até o Cristóvão e o chamou para acompanhá-lo.<br />
Depois o Cristóvão voltou e chamou sua mulher.<br />
Partiu de uma denúncia anônima, eu não tinha dúvidas que era a<br />
Sophia...um empregado do barco encontrou as jóias entre minhas coisas.<br />
Mesmo sem ter feito nada de errado, fui desmascarado e o Cristóvão ficou<br />
morrendo de vergonha, me chamava de pássaro maldito. Ele ficou com<br />
vergonha dos seus amigos porque era meu dono e para todos eu era o<br />
responsável.<br />
41
O Cristóvão bateu em mim com uma blusa enrolada e molhada assim<br />
que entrou. Dentro do quarto ele me jogava com força contra a parede e eu<br />
gritava, me jogou água gelada várias vezes e me deu dois tapas nas costas<br />
com a mão aberta...fiquei tremendo e sentindo dores, muitas dores por todo<br />
o corpo. Penas arrepiadas e desesperado! Achei que iria morrer naquela<br />
hora, vendo tamanha fúria naquele humano.<br />
Fui colocado em uma gaiola e deixado do lado de fora do barco. A<br />
noite estava fria e por isso fiquei bem encolhido para tentar me aquecer<br />
enquanto a água ia secando. No meio da madrugada senti um vento muito<br />
forte vindo das águas e eu ainda não estava todo seco, minhas patas geladas<br />
e meu estômago vazio. Eu não sabia se me preocupava com as dores ou<br />
com o papo sem alimento algum. A Sophia estava dentro do quarto.<br />
Olhando na imensidão das águas procurava respostas para a minha<br />
vida, pensava no meu destino, nas coisas que vinham acontecendo comigo.<br />
As estrelas no céu pareciam tão distantes! Muito mais distantes que as<br />
estrelas que eu avistava todas as noites lá na floresta.<br />
Pela manhã eu estava encolhido, estava me sentindo muito triste com<br />
o que tinha acontecido! Na gaiola ninguém havia colocado comida e eu<br />
olhava pelos cantos para ver se havia alguma coisa para comer, algum<br />
farelo pelo menos. Então passou um casal e estavam comendo bolachas,<br />
eles colocaram duas bolachas na minha gaiola e foi só isso que comi nesse<br />
dia. Nem água o Cristóvão colocou. Quando ele passou por mim para<br />
entrar no quarto nem percebeu que eu estava ali. Fiquei com medo e me<br />
encolhi ao vê-lo sair de novo de dentro do quarto.<br />
Depois disso, todas as manhãs a Sophia ia até a gaiola onde eu estava<br />
para caçoar de mim.<br />
Ela estava muito mudada, assim como as pessoas! A alegria do<br />
segundo andar daquele barco tinha acabado e depois de alguns dias as<br />
pessoas me procuravam discretamente quando não havia ninguém por perto<br />
para ouvir piadas ou colocar alguma coisa de comer para mim, já que o<br />
Cristóvão não colocava. Só o Cristóvão ainda duvidava, se mantinha<br />
distante e era outra pessoa que vinha colocar ração e frutas para mim,<br />
sempre outra pessoa. Eu não podia mais sair da gaiola e quando alguém<br />
chegava perto de mim Sophia ficava com raiva. Era ignorada novamente<br />
por todos e vista apenas como a ex-namorada do papagaio.<br />
Numa noite ela apareceu e disse:<br />
- Vamos Petrúcio! O barco está afundando e todos estão dormindo.<br />
Não consigo chegar até a sala do capitão, me ajude a tocar o alarme.<br />
- Mas como eu vou sair daqui? Currupaco?<br />
- Deixa que eu abra a porta.<br />
Ela abriu a portinhola da gaiola com o bico demonstrando muita<br />
facilidade em abri-la, coisa que eu não havia tentado antes.<br />
42
Voei pelo navio até chegar à sala do capitão. Estranhei porque a<br />
porta estava aberta e o capitão estava com o leme...mas eu acreditei na<br />
Sophia, ela pediu para apertar o botão do alarme e foi isso que eu fiz.<br />
Pousei de forma certeira sobre o botão de alarme, o mesmo que<br />
Sophia havia disparado antes e com o peso do meu corpo, fiz o alarme<br />
tocar.<br />
Nisso o capitão olhou para mim e tentou me acertar com uma garrafa<br />
de bebida que estava bebendo.<br />
Voei de lá e voltei para cima da minha gaiola. Nisso ela disse para eu<br />
esperar que ela iria chamar o Cristóvão. Na verdade ela foi para sua gaiola<br />
e ficou esperando tudo acontecer.<br />
Todos no barco entraram em desespero e saíram correndo pelos<br />
corredores procurando botes. Acharam que o barco iria afundar. Eram<br />
muitas pessoas, correndo desesperadas, para se salvar do papagaio<br />
Petrúcio.<br />
Algumas pessoas já estavam nos botes salva-vidas até que o capitão<br />
cambaleando chegou e deu ordem para os funcionários disserem que foi<br />
tudo um engano e que o papagaio que fugiu da gaiola e provocou tudo<br />
aquilo.<br />
Ao chegar à gaiola, o Cristóvão me colocou pra dentro e trancou a<br />
porta com um arame. Depois jogou água gelada em mim.<br />
Algumas pessoas disseram que só voltariam para o barco se eu fosse<br />
embora de lá. Um chegou a dizer que preferia ficar sem sorrir, só falando<br />
de negócios a ficar no mesmo barco que eu, que eu era perigoso e que foi<br />
uma péssima idéia do Cristóvão me comprar!<br />
Fui chamado de muitas coisas, e não entendia nada que estava<br />
acontecendo. Senti saudade do Juquinha, queria sair daquele barco, queria<br />
uma maneira de acabar com tudo isso que estava acontecendo comigo. Será<br />
que eu fui marcado pela vida para sofrer todo tipo de coisa ruim nesse<br />
lugar?<br />
Fui colocado em um dos botes salva-vidas pelo Cristóvão, colocaram<br />
ração e frutas. Lançado ao mar onde somente água eu podia ver em meu<br />
redor. As águas estavam turvas e tive muito medo! Vi o barco se afastar e<br />
ficar cada vez menor na distância até desaparecer completamente. Pensei<br />
em voar, mas tive medo de não conseguir voar até onde tivesse terra firme<br />
e acabasse caindo nas águas esgotado pelo esforço.<br />
Durante muitos dias só tive golfinhos como companheiros. Eram<br />
parecidos com o Vernacleto, porém eram muito maiores! Eles brincavam<br />
comigo e saltavam da água. Era bonito! Algumas vezes eu picava pedaços<br />
de frutas e jogava no ar e algum deles saltava para pegar.<br />
Então um dia apareceu longe um barco negro, velho e assustador!<br />
Foi se aproximando até chegar muito perto do bote. Era um barco que<br />
43
oubava as pessoas em outros barcos e seus ocupantes eram chamados de<br />
piratas.<br />
Uma vez na casa do Serginho vi na televisão os piratas, mas esses<br />
não eram iguais, não tinham perna-de-pau e nem olheira, e no barco não<br />
havia bandeira com caveira desenhada. Logo fui capturado pelo Rodolfo,<br />
um dos piratas.<br />
Ele desceu até o bote para ver se havia alguma coisa de valor e<br />
acabou me colocando no seu ombro e voltando para o barco.<br />
Os piratas eram bem legais comigo e me deixaram falar qualquer<br />
coisa! Acharam legal que eu conversasse, falaram que o outro papagaio era<br />
sem graça e por isso ficou preso com os outros bichos. Eu não entendi e<br />
deixei pra lá.<br />
Fiquei muito amigo do pirata que comandava o barco, chamado<br />
Henrico pelos outros piratas. Ele passava o dia olhando por um tubo preto<br />
que fazia as coisas parecerem mais perto. Dizia que era pra ver se havia<br />
algum barco se aproximando.<br />
O Henrico sempre gritava muito com os outros, mas quando chegava<br />
a noite todos ficavam muito felizes e bebiam bastante até ficarem bêbados<br />
e dormir no próprio chão do barco.<br />
Havia entre eles um pirata que quase não falava nada, mas sempre<br />
que ia falar todos no barco ouviam atentos. Era respeitado até mesmo pelo<br />
pirata que comandava o barco, ele nunca lhe dava ordens. Não consegui<br />
que ele dissesse o seu nome ou que ele sorrisse de alguma piada. Falavam<br />
os outros piratas que o homem era o amuleto de sorte daquele barco<br />
saqueador. Seu silêncio fez com que eu me distanciasse dele, derrotado por<br />
não ter conseguido vê-lo sorrir.<br />
Uma noite vi que ele estava olhando para o mar e quando voltou os<br />
olhos para o meu lado os olhos dele tinham uma luz azul que mesmo no<br />
escuro iluminava. Eram como duas lanternas em minha direção. Fiquei<br />
imóvel e com medo! Não havia mais ninguém por perto.<br />
Ele não sorria e seu rosto estava gelado à vista. Ficou me olhando<br />
como se procurasse alguma coisa em mim.<br />
De repente uma espécie de raio saiu do olho dele e veio em minha<br />
direção. Depois disso não me lembro de mais nada que aconteceu.<br />
Quando acordei estava em um porão cheio de jóias, dinheiro, peles<br />
de animais, algumas cores bem conhecidas, de animais que eu já havia<br />
encontrado na floresta. Havia uma gaiola grande com muitos pássaros<br />
diferentes.<br />
A gaiola era parecida com a que me trouxe da floresta, fiquei com<br />
medo e pensei em fugir mas ouvi uma voz conhecida.<br />
- Ei Petrúcio, se lembra de mim?<br />
- Não acredito! Sophia? O que faz aqui? Como você está diferente,<br />
está muito gorda!<br />
44
- Deixe de dizer bobagem, currupaco. Esses homens roubaram nosso<br />
navio depois que você foi colocado no bote e me trouxeram para essa<br />
gaiola imunda com esses pássaros encardidos.<br />
- Búúúúú!<br />
Era incrível, mas assim como Sophia e eu, todos os outros pássaros<br />
que eu não conhecia falavam e vaiaram a papagaia quando ela chamou a<br />
todos de encardidos. Quando todos me contaram o que estava acontecendo<br />
percebi que os piratas não eram tão legais assim.<br />
- Petrúcio, você tem que me tirar daqui.<br />
- É...tira todo mundo daqui, rápido! – gritou um deles.<br />
- Não antes de você se desculpar comigo por tudo de ruim que me<br />
fez.<br />
- O quê? Isso é que não. Eu não fiz nada.<br />
- Peça desculpas logo Sophia. Foi você que fez tudo aquilo naquele<br />
barco. Eu apanhei muito por sua causa e quase morri.<br />
- Está bem, currupaco, desculpa.<br />
- Agora diga: Petrúcio é o meu mestre! Petrúcio manda!<br />
Quando ela repetiu todos os outros pássaros começaram a gargalhar,<br />
cada um em seu modo de piar. Sophia era uma papagaia rica muito metida<br />
e arrogante, mas naquele momento estava sendo o alvo das brincadeiras.<br />
- Tudo bem! Acabou a palhaçada seus pássaros repugnantes!<br />
- Calma Sophia, currupaco...há, há, há...<br />
- Bem papagaio, pode nos tirar daqui?<br />
- Não dá. Estamos muito longe da terra, no meio da água. Não<br />
conseguiremos voar até lá. Temos que arrumar uma forma de pedir ajuda.<br />
- Nesse navio pirata? Nossa única chance seria se a policia viesse até<br />
aqui.<br />
- Não Hermes, o papagaio tem razão. Uma vez ouvi uma história<br />
sobre um código de sinais que pode ser mandado por rádio.<br />
- Sim, é um código Morse. Mas por acaso você sabe bicar nesse<br />
código?<br />
- Eu não mas o pica-pau sabe.<br />
- O que tenho eu aí heim pombos?<br />
- Escute Jackson: você sabe código Morse não sabe?<br />
- Claro que sim, todos os pica-paus sabem. Na verdade meus pais<br />
contam que teve um homem que conseguiu aprender esse código, que na<br />
verdade pertence aos pica-paus. Eles diziam que ele ensinou aos homens<br />
para que se comunicassem igual aos pica-paus e...<br />
- Tudo bem Jackson, chega, só queremos saber se mandaria uma<br />
mensagem para a guarda costeira para que venham nos buscar.<br />
- E o que eu ganho com isso? O que eu ganho em troca?<br />
- Bom! Você voltará para a floresta.<br />
- Grande coisa. Eu quero é verdinhas...<br />
45
- Olha Jackson. Toma aqui essa nota que eu achei jogada ali no canto<br />
do porão. Agora diga se vai cooperar ou não...<br />
- Ta bem, mas se essa nota for falsa vai ter vingança.<br />
- Então está tudo acertado, vamos papagaio, abra logo essa porta e<br />
vamos lá mandar a mensagem.<br />
- Não, ficaram loucos? Esse barco está cheio de bandidos. Vocês têm<br />
que ter mais malícia. Até eu que era um papagaio inocente já aprendi nesse<br />
lugar que não podemos ser de todo bondosos, que temos que guardar<br />
sentimentos maldosos também e em algumas vezes colocar pra fora, agir de<br />
maneira má. Isso tudo é necessário nesse lugar tão cheio de interesses<br />
pessoais onde não podemos confiar nas pessoas.<br />
- O que faremos então?<br />
- Vamos pra mensagem primeiro, você diz assim: papai do céu,<br />
venha buscar o Petrúcio que ele quer voltar para a floresta. Ajude os<br />
passarinhos e abençoe todos os meninos bonzinhos, e então...<br />
- Pare com isso papagaio? Ficou louco? O que está fazendo? Uma<br />
oração?<br />
- Mas é assim que o Serginho fazia quando queria pedir algo.<br />
- E quem é Serginho?<br />
- É...quem é esse Serginho?<br />
- O Serginho? Tudo bem...<br />
- Não...por favor não, currupaco. Não deviam ter perguntado isso...<br />
- Espera Sophia, deixa ele contar.<br />
- Bem! Respondendo à pergunta, currupaco...vou contar para vocês a<br />
história: tudo começou quando eu nasci lá na floresta num dia de muita<br />
chuva e...<br />
No período em que eu contei a minha história de vida o Jackson<br />
destruiu setenta e seis notas de dinheiro. Jackson era um pica-pau que tinha<br />
essa estranha mania de bicar dinheiro.<br />
Se deixássemos, ele acabaria com todas as notas que estavam<br />
naquele lugar, dentro daquele porão cheio de jóias, peles de animais,<br />
dinheiro...mas tínhamos coisas muito importantes para fazer e o tempo era<br />
precioso demais para nós!<br />
- Tudo bem...vamos acabar com a perda de tempo. Jackson, deixa<br />
que eu vou te falar a mensagem. Ouçam o que vamos fazer: Petrúcio deixa<br />
a porta do viveiro aberta e quando cair a noite, você como de costume vai<br />
lá distrair os piratas contando suas piadas e histórias engraçadas! Tenta os<br />
fazer beberem bastante bebida, e...<br />
46
Capítulo 8<br />
...e então a moça disse para o dentista:<br />
- O que eu faço agora?<br />
E o dentista respondeu:<br />
- Abre a boca, currupaco.<br />
- Rá, rá, rá! Essa foi ótima!<br />
- Muito boa mesmo! Foi realmente uma grande sorte termos<br />
encontrado esse papagaio naquele bote!<br />
- Conta outra pássaro. Conta de novo aquela do missionário, ou<br />
talvez a do telefonema anônimo.<br />
- Ah Rodolfo. Deixa o papagaio em paz e vai pegar mais rum pra<br />
gente.<br />
- E por que só eu tenho que fazer isso? Todo mundo bebe, mas na<br />
hora de carregar o galão só sobra pra mim. Isso não é justo, vocês estão<br />
muito folgados ultimamente!<br />
- Vai logo e não reclama cara.<br />
Enquanto eu estava distraindo os piratas, vi o Jackson voando junto<br />
com o Hermes até a sala do Henrico e depois de algum tempo saíram de lá<br />
e foram para o alto do mastro do barco. Eles foram muito rápidos! O<br />
Jackson deve ser bom mesmo nesse código que eles falaram. Contei pouco<br />
mais de um minuto entre o momento em que entraram e saíram.<br />
47
Devem estranhar tamanha habilidade minha em marcar o tempo<br />
mesmo estando fazendo outra coisa, bem...é que na casa do Serginho, meu<br />
primeiro dono havia um relógio bonito na sala, e ficava de frente para a<br />
cozinha onde eu dormia.<br />
Era minha diversão naquele lugar tão parado, marcar o tempo<br />
observando os ponteiros do relógio girando sem parar. Os ponteiros eram<br />
dourados e eu sabia reconhecer essa cor. Era a cor do girassol da mata,<br />
minha terra natal...<br />
Ah, cada vez que me lembro da floresta me dá um desgosto tão forte,<br />
acompanhado de uma sensação seca no interior do bico...um sentimento de<br />
paixão tão distante e impossível de alcançar! Acredito que o sentido da<br />
minha vida seja voltar para a floresta, é...na verdade eu tenho certeza disso.<br />
Se por um lado é desesperador estar nesse lugar cheio de pessoas, por outro<br />
eu já sei o que muitos humanos, aliás até animais não sabem: descobri o<br />
sentido da vida, pelo menos o sentido da minha vida. Não sei se é isso que<br />
os humanos chamam de nostalgia, mas sei que machuca demais o peito, no<br />
lado que fica o meu coração. Eu sou o papagaio Petrúcio...<br />
O passarinho após concluir seu trabalho, mandando a mensagem e<br />
após permanecer no mastro junto com o Hermes, como se avistasse um<br />
distante sinal, uma luz, voou até a sala onde estavam as coisas de valor.<br />
Então cada pássaro, vagarosamente para não levantarem suspeitas, voava<br />
até o mastro. A cada minuto um pássaro saia de dentro da sala. Eu contava<br />
piadas e sempre fazia referência à bebida, isso deixava os piratas com<br />
vontade de beber mais. Havia muitas garrafas jogadas pelos cantos do<br />
barco e eles estavam muito bêbados depois de horas tomando aquelas<br />
coisas! Comecei a cantar músicas e eles foram dormindo. Nenhum deles<br />
percebeu nada que estava acontecendo. Minhas músicas eram tristes e<br />
fizeram todos dormirem. Só o Rodolfo não havia dormido ainda. Ficava<br />
ouvindo atento às minhas músicas e em alguns momentos chegou a chorar,<br />
falando que se lembrava da sua infância.<br />
Voltei a contar umas piadas pra ver se ele dormia, mas o Rodolfo<br />
ouvia atento, mesmo bêbado. Voltei então a cantar e ele até chegou a cantar<br />
junto. Então vi uma luz se aproximar dele e o tocar no ombro.<br />
Imediatamente o Rodolfo dormiu de maneira tão inesperada que o copo de<br />
bebida que segurava caiu no chão.<br />
Foi quando surgiu de uma das salas do barco o homem que eles<br />
chamavam de amuleto. Eu havia me distraído e nem percebi que ele era o<br />
único que não estava ouvindo as minhas piadas. Na verdade eu não o tinha<br />
visto ainda naquele dia. Estava sem roupas como um animal selvagem das<br />
matas e circulava como mosca em sua face uma luz calma, parecia uma luz<br />
de realização plena, da liberdade...finalmente pude ouvir as suas sábias<br />
palavras.<br />
48
- Fiquei impressionado com a sua determinação! Fez o que achou<br />
correto pequeno guerreiro. Agora a luz da sua aura está mais brilhante!<br />
Mesmo a noite ou o dia não serão suficientes para destruir o seu sucesso.<br />
Lá onde se escondem as páginas que ainda não foram lidas está escrito que<br />
o bom ensinará o caminho da amizade e vencerá o maquiavelismo, mas<br />
pena, mártir, será obscuro seu reinado nos dias da carne.<br />
- Quem é você, crock?<br />
- Diga-me primeiro: o que mais você quer em sua vida?<br />
- Que meus amigos e eu possamos voltar para a floresta.<br />
- A graça é concedida aos que procuram a realização de um sonho.<br />
Mesmo que doa, o caminho que o destino coloca em sua frente é<br />
necessário, pois sua realização será maior que a de qualquer outro pássaro<br />
deste planeta.<br />
- Eu não entendo o que está dizendo.<br />
Eu estava com medo. Aquele estranho homem com olhos brilhando e<br />
aquela luz voando em volta do rosto me disse que estava me vigiando<br />
desde que eu cheguei aqui, que sabia tudo sobre mim e sobre todas aquelas<br />
pessoas que estavam no barco.<br />
Os pássaros observavam de longe, lá do mastro, com medo. Eu<br />
também estava com medo...<br />
- Então eis que te conto tudo o que virá. O que era um ser se<br />
transformará em outro, onde havia pureza nascerá perversidade e vingança,<br />
mas no fim o amor vingará. Vai ser assim e eu sei. Eu sou o destino!<br />
O homem finalmente revelou seu nome, e como se realizasse uma<br />
mágica, sumiu no barco, sendo desintegrado pelos ventos da brisa e virando<br />
apenas uma poeira que também logo desapareceu, seguindo em direção ao<br />
horizonte.<br />
Fui para o mastro do navio me unir aos outros e fiquei mudo. Estava<br />
muito assustado com tudo que estava acontecendo. Era noite e eu estava<br />
receoso com muitas coisas.<br />
Alguns dos pássaros pensaram que eu estava bêbado porque os<br />
piratas me deram uma vasilha com um pouco de vinho, então me senti<br />
muito confuso com as idéias, uma sensação de euforia...<br />
Havia uma luz se aproximando, na verdade eram cinco luzes. Cinco<br />
navios.<br />
Os tripulantes dos dois primeiros navios subiram no barco dos piratas<br />
segurando muitas armas. Esperavam haver algum tipo de reação, mas todos<br />
no barco dormiam e estavam muito bêbados para reagirem a qualquer<br />
coisa. Todos os piratas foram presos e quando o Henrico saia algemado<br />
olhou para o mastro onde estávamos. Olhei dentro dos olhos dele e senti<br />
que naquele momento o ódio o consumia e ele sabia que era eu o<br />
responsável.<br />
49
Voamos então para um dos navios e ficamos por lá, em cima de um<br />
mastro, até que retornassem para a terra, no mesmo ponto onde entrei pela<br />
primeira vez em um navio.<br />
Amanheceu depressa e saímos de lá. Éramos pássaros perdidos em<br />
um mundo enorme e não sabíamos como voltar para a floresta. Não<br />
podíamos ficar também no mesmo lugar para não sermos capturados.<br />
Estávamos com fome. Chegamos a uma praça movimentada e então<br />
Sophia decidiu se separar do grupo. Estava exausta e tinha dificuldades<br />
para nos acompanhar! Ela estava muito gorda! Eu não conseguia imaginar<br />
como ela havia crescido tanto em tão pouco tempo. Eu a conheci há quinze<br />
dias atrás. No início nós éramos namorados, mas depois a Sophia me<br />
prejudicou muito então fiquei triste com ela.<br />
Eu evitava falar com a Sophia e ela me evitava mais ainda. Tinha<br />
vergonha de olhar nos meus olhos.<br />
Antes de a Sophia ir embora veio até mim e pediu perdão por tudo<br />
que havia acontecido de ruim, falou bem baixinho em meu ouvido para que<br />
os outros não escutassem. Ela disse que não poderia viver na floresta,<br />
apesar de ser um lugar muito bonito pelo que eu contava. Disse que jamais<br />
iria me esquecer, desejou boa sorte para mim e para os outros pássaros,<br />
pediu para que eu nunca a esquecesse também, que nunca mais teria outro<br />
namorado e desejou que nos encontrássemos algum dia, mesmo que no céu<br />
após morrermos.<br />
Ela então se virou e começou a caminhar enquanto uma lágrima<br />
rolou do meu olho direito.<br />
Tinha uma ótima aparência aquela papagaia! Era a mais limpa do<br />
grupo e pelo fato de ter uma alimentação boa desde pequena, tinha penas<br />
bonitas, vistosas! Decidimos esperar para ver o que iria acontecer. Nenhum<br />
de nós fez nada para impedir que ela fosse. Ela nos atrasava em tudo e os<br />
outros pássaros reclamavam comigo, mas eu insistia em dar uma chance a<br />
ela. Na verdade eu sabia que se ela fosse para a floresta não iria se adaptar.<br />
Nossa vida é bonita, mas é cheia de desafios! Conquistamos a cada dia o<br />
direito de viver numa floresta que nos dá tudo, mas que devemos conhecer,<br />
pois existem limites e perigos.<br />
Por causa de sua aparência física, gorducha e de penas brilhantes,<br />
logo encontrou um senhor que levava em suas mãos um grande saco. Ela<br />
foi caminhando até ele e quando a viu ele colocou o dedo e ela subiu. Era<br />
um senhor já de idade que pareceu ficar muito contente com a Sophia. Ele<br />
passou a mão em sua cabeça e sorriu. Então ele despejou na praça aquele<br />
grande saco e logo uma imensidão de pombos se reuniu no local. Não sei se<br />
guiados por instinto ou fome, rumaram para lá o Hermes e o Ângelo.<br />
Ficamos na árvore esperando que voltassem.<br />
Os dois enturmaram com os outros pombos, eles viviam em bando<br />
naquela cidade, e decidiram ficar. Os pombos eram bem legais e nos<br />
50
convidaram pra ficar com eles na cidade, mas recusamos. Estávamos<br />
decididos a voltar para a floresta.<br />
Deixamos os pombos e nos despedimos do Hermes e do Ângelo.<br />
Antes de ir eles trouxeram comida para a gente. Pelo menos os dois teriam<br />
bastante alimento naquela praça.<br />
Agora éramos somente três: o pica-pau Jackson, o curió Tadeu e eu,<br />
o papagaio Petrúcio. Vagando pela cidade e procurando a floresta.<br />
Nós voávamos por aquelas ruas cheias de pessoas e de carros, todos<br />
muito apressados querendo sempre chegar a algum lugar. A luta pela<br />
sobrevivência aqui nesse mundo até se parece com a floreta, porém o<br />
predador é o tempo e a adversidade é a concorrência.<br />
Os dois ficavam me cobrando sobre a floresta, colocando em mim<br />
toda a responsabilidade de achar o caminho. Isso me entristecia muito, pois<br />
eu também estava querendo encontrar logo o caminho de volta.<br />
Ao passar por uma rua, ouvi o canto inigualável de um amigo, o<br />
canário-da-terra João. Vinha de longe e cortei a distância do ar para me<br />
aproximar. Tadeu e Jackson vinham atrás me seguindo. De alguma maneira<br />
me viam como um líder, um exemplo de obstinação na luta para voltar para<br />
a floresta. Eles nem eram da mesma floresta que eu mas queriam ir pra lá.<br />
Quando me aproximei vi o João preso em uma frágil gaiola feita de<br />
madeira e bambu.<br />
Seu dono o observava cantar enquanto tomava uma bebida cheia de<br />
espuma com outros homens.<br />
Esperei meu sangue ferver, coisa que ocorre comigo nos instantes de<br />
fúria e faz minha íris se contorcer...então voei ao encontro do objeto com<br />
51
utalidade. João percebeu minha aproximação e começou a voar dentro da<br />
gaiola para que a balançasse, isso reforçou ainda mais o efeito do meu<br />
choque.<br />
Quando bati na gaiola ela caiu no chão e por uma fresta aberta com o<br />
choque o canário fugiu. Foi quando um dos homens jogou a tal bebida em<br />
mim tentando me espantar, porém armei as asas e voei ao encontro dele,<br />
arranhando seu rosto com as unhas ao me debater. Saí daquele lugar a<br />
procura do João que saiu desesperado em direção aos telhados.<br />
João piava longe angustiado, Tadeu disse que um gavião o<br />
encurralou em uma árvore e então fui até lá desesperado com medo que<br />
algo pudesse acontecer com ele. Quando vi o gavião, um instinto diferente<br />
tomou conta de mim então parti pra cima dele, e por trás dei uma forte<br />
bicada em suas costas, arrancando penas, o que fez com que ele saísse<br />
voando, assustado, sem mesmo olhar para trás.<br />
O gavião era assustador! Ele era maior que eu e tinha um cheiro<br />
ruim! Seu grito era um grito ameaçador, soava como som da morte, quando<br />
sabemos que alguma coisa ruim vai acontecer.<br />
Eu estava com muito medo por isso saímos logo dali e fomos nos<br />
esconder.<br />
A cidade era bem conhecida pelo João. Seu dono todas as tardes o<br />
levava para passear por ela, dentro de sua gaiola de madeira.<br />
Foi difícil convencer o canário a não retornar para o dono, pois o<br />
pequeno conseguia gostar do homem que o mantinha preso, mas entre viver<br />
na prisão e voltar para a floresta, nem mesmo o canário optaria pela<br />
primeira opção. Ele também tinha saudades de lá.<br />
Aprendi que as outras espécies de pássaros não se apegam tanto à<br />
família quanto os papagaios. Não se importam em viver sozinhos e logo<br />
esquecem dos parentes.<br />
Para descobrirmos o caminho de volta para a floresta, nós<br />
precisaríamos ir até a loja de pássaros e esperar que os homens saíssem<br />
com a caminhonete para seguirmos, descobrindo assim o caminho da mata.<br />
Não foi difícil para o João achar a loja de pássaros no meio daqueles<br />
prédios e casas do bairro. Nós fomos para o telhado e ficamos observando<br />
por muito tempo pela janela.<br />
Havia novos pássaros nas gaiolas, e entre eles estavam meus irmãos.<br />
Tomado pelo sentimento de fúria que embriagava minha íris eu voei<br />
até a loja de pássaros e como uma munição de revólver ataquei o homem<br />
que estava sentado na mesa com uma bicada muito forte no pescoço, tal<br />
qual um alicate comprimindo o frágil fio do cobre.<br />
Movido ainda pela fúria arranhei com as unhas o seu rosto várias<br />
vezes enquanto ele tentava se proteger. Havia ódio em minhas ações e eu<br />
não era assim, aprendi a odiar quando vim parar nesse lugar.<br />
52
Eu gritava para soltar meus irmãos, repetidas vezes gritava a mesma<br />
coisa, para que soltasse meus irmãos e deixasse a floresta em paz.<br />
Ele estava machucado e havia sangue na ferida. Com as mãos no<br />
rosto e gritando saiu correndo em direção à porta da loja, correu pela rua<br />
até a farmácia.<br />
As novas gaiolas tinham molas nas portas, o que tornava para mim<br />
ou para os outros pássaros impossível de abrir. O Jackson tentava quebrar a<br />
madeira, mas era inútil.<br />
Fiquei do lado de fora da gaiola dos meus irmãos, quieto, num<br />
instinto de proteção e saudade. Perguntei sobre a floresta, sobre os pais,<br />
sobre as flores, sobre a vida. Eu sentia um sentimento de angústia e<br />
esperança. Sofria comigo por pensar que tudo aquilo que estava<br />
acontecendo comigo também iria acontecer com eles.<br />
Então tivemos que fugir da loja quando o outro homem apareceu<br />
correndo, só que o Tadeu não teve tanta sorte e acabou sendo capturado<br />
pelo homem dentro da loja.<br />
- Faça alguma coisa Petrúcio...<br />
- É inútil. Não há nada que eu possa fazer, crock.<br />
Voamos até o telhado da casa em frente e ficamos observando da<br />
janela. O homem veio e olhou todas as gaiolas, depois fechou as janelas da<br />
loja e saiu.<br />
Naquela situação somente uma pessoa poderia me ajudar: o meu<br />
camarada Nestor.<br />
- Escute Jackson. Você e o João ficam aqui e eu vou procurar, crock,<br />
um camarada meu pra nos ajudar.<br />
- E quando você volta?<br />
- Vou tentar falar com ele, crock, ainda hoje, currupaco. Vou voltar<br />
logo. Daqui de cima dá pra ver a frente da loja. Se algum pássaro sair de lá<br />
vocês vão atrás e vejam onde estão levando, currupaco.<br />
Está bem, mas tome cuidado.<br />
Deixei os dois em um sobrado que havia em frente à loja e fui até a<br />
casa do Nestor, que ficava próxima da loja, uns dois quarteirões.<br />
Chegando ao beco comecei a chamar por ele:<br />
- Nestor, crock, Nestor...<br />
- Que barulheira é essa, papagaio bobo?<br />
- Quem são vocês?<br />
- Nós somos pardais ora. Você nunca viu pardais antes?<br />
- Sim, mas não de perto, nunca conversei com pardais.<br />
- E por que você está gritando aí em frente dessa porta feito um<br />
louco?<br />
- É que preciso da ajuda do Nestor para tirar alguns amigos meus que<br />
estão presos na loja de pássaros.<br />
- E acha que ele vai te ajudar?<br />
53
- Claro, currupaco. Ele é um camarada meu.<br />
- Rá, rá, rá...então esquece papagaio. Os dois homens que moram<br />
nessa casa estão presos na cadeia.<br />
- O que é uma cadeia, currupaco?<br />
- É uma espécie de gaiola gigante para colocar os humanos que se<br />
comportam mal.<br />
- Ah sim! Como os piratas. Eles estão na cadeia, crock.<br />
- Piratas? Que piratas?<br />
- Os piratas do navio. Vou contar para vocês, currupaco...<br />
- Esquece papagaio. Aí vem o Montanha, se esconde.<br />
Montanha era um gato enorme que vivia nos arredores. Eu já havia<br />
escutado uma conversa sinistra de algumas rolinhas sobre esse bicho no dia<br />
que estava na casa do Nestor. Dessa vez havia aparecido de repente e<br />
cercado um dos pardais no canto do beco.<br />
- Minha nossa! Ele vai pegar o Rufino.<br />
- Precisamos fazer alguma coisa.<br />
- Deixa comigo, currupaco.<br />
Voei para uma passagem do beco atrás do gato e gritei alto.<br />
Ele se assustou e virou para o meu lado...<br />
- Muito bem gato horroroso. A sua hora chegou, currupaco.<br />
Movido pela raiva, o gato virou para o meu lado e veio correndo<br />
igual a um touro. Esperei o pardal voar e comecei a voar também pelo beco<br />
a uma altura baixa. O gato vinha correndo atrás de mim.<br />
Eu não queria me livrar dele, estava planejando uma forma de aplicar<br />
um castigo naquele animal malvado.<br />
Foi quando vi na calçada da rua dois homens carregando um vidro<br />
enorme! Voei até lá e em uma passagem quase encostando no chão passei<br />
por baixo do vidro. Foi quando o gato saltou para cair sobre mim e acabou<br />
batendo no vidro. Olhei para trás e vi o seu focinho todo amassado<br />
enquanto escorregava. Então um dos homens tocou o Montanha ameaçando<br />
dar um chute e ele saiu meio zonzo, em seguida começou a andar<br />
cambaleando.<br />
Não contente com isso, voei para cima dele e fiz em sua pele com o<br />
bico o que um pião faz com as mãos no tal rodeio que a Sophia falou. A<br />
sensação foi incrível! Os gritos de dor do Montanha eram ouvidos pelas<br />
pessoas que logo se aproximaram para ver o gato apanhando do papagaio.<br />
Eu grudei minhas duas patas nas suas costas e com o bico fiquei<br />
apertando sua pele com muita força! Batia as asas e me contorcia...<br />
Após este dia, o Montanha nunca mais foi visto naquele beco onde<br />
morava o Nestor.<br />
- Puxa! Aquilo foi incrível papagaio! Você é um grande herói!<br />
- É que eu sei aprontar algumas, crock.<br />
- Aquele gato nojento vai ficar bem longe agora.<br />
54
- É...mas eu tenho que ir agora para a cadeia pegar o Nestor, crock.<br />
Vocês sabem onde fica?<br />
- Sim. Mas você não conseguirá tirá-lo de lá.<br />
- Por que, currupaco?<br />
- As celas da cadeia são trancadas e os guardas escondem a chave.<br />
Os pardais, em sinal de gratidão aceitaram me levar até a cadeia. No<br />
caminho eles me explicaram como funcionava aquele lugar, mas fomos<br />
interrompidos no caminho por três aves, os gaviões.<br />
Um deles era o gavião que eu ataquei. Devia estar me procurando<br />
para se vingar.<br />
Os pardais disseram para permanecermos escondidos enquanto as<br />
aves ralhavam com alguns bem-te-vis. Só que os bem-te-vis eram muito<br />
espertos e conseguiam espantar os gaviões todas as vezes que se<br />
aproximavam do seu território.<br />
- No fim da rua é a cadeia papagaio. Tome cuidado com os gatos.<br />
Quando cheguei debaixo da janela da cela, vi que dois gatos<br />
amedrontavam um ratinho. Eram gatos pequenos e logo se tornaram meu<br />
alvo. Gritei alto e eles se assustaram.<br />
Ficaram me encarando e só se aproximando de mansinho, mas<br />
quando abri minhas grandes asas e meu bico, dando um grito ainda mais<br />
alto e assustador que o primeiro, os dois saíram em disparada.<br />
Nesse dia me tornei herói para os pardais e para os ratos, já que o<br />
ratinho logo tratou de contar a história para os seus primos, que contaram<br />
para os seus amigos, que contaram para os tios...logo todos os ratos da<br />
cidade já conheciam a minha história.<br />
Quando voei até a janela, vi o Gilmar e o Nestor jogando damas.<br />
- Olá pessoal, crock! Lembram-se de mim, currupaco?<br />
- Papagaio! Como veio parar aqui?<br />
- Aconteceram muitas coisas desde que vocês saíram correndo da<br />
casa lá na estrada, currupaco. Eu estou precisando de ajuda para tirar<br />
alguns pássaros da loja de pássaros, currupaco.<br />
- E acha que podemos ajudar é? Pássaro idiota!<br />
- Não Gilmar. Talvez nós possamos fazer um acordo com o<br />
papagaio. Se ele foi esperto o suficiente para vir até aqui, quem sabe? Não<br />
temos nada a perder.<br />
- Ah Nestor! Está brincando? Acha que esse pássaro vai tirar a gente<br />
daqui?<br />
- Ah é Gilmar, currupaco? Olha e aprende como se faz, crock.<br />
Passei pela grade da cela e fui caminhando até a mesinha onde estava<br />
a chave e, bem... esse filme tem mocinho tá? Então não estranhem se eu<br />
disser que o guarda estava dormindo, isso acontece mesmo, não só nos<br />
filmes e novelas. Levei a chave até o Gilmar e ele abriu a cela. Saímos de<br />
mansinho para não despertar o guarda que dormia.<br />
55
Depois de sairmos da cadeia, fomos nos esconder na casa de um<br />
amigo do Gilmar que era viciado em rodeios, sua casa tinha muita coisa,<br />
fotografias, uma cabeça de um touro. Animal estranho, na floresta eu<br />
jamais vi um desses.<br />
Lá na casa fizemos um trato que eu deveria cumprir.<br />
- Faremos hoje à noite, certo papagaio?<br />
- Certo, currupaco.<br />
Retornei então ao velho sobrado onde meus amigos me aguardavam.<br />
Contei que eu havia conseguido ajuda e que os outros pássaros iriam sair de<br />
lá naquela mesma noite.<br />
Com um inigualável canto de aviso, o João cantador deu resposta aos<br />
pássaros da loja, que trataram de se alimentar bem na próxima hora, já que<br />
após a fuga seria mais difícil conseguir alimento.<br />
Eu estava faminto, mas não havia como conseguir comida, apenas<br />
aguardei que passassem as horas enquanto meu papo reclamava fome. Este<br />
foi o segundo dia em que passei fome e...<br />
Já era noite. Os homens que trabalhavam na loja de pássaros<br />
fecharam mais cedo por causa do outro que estava machucado. Ele tinha no<br />
pescoço e no rosto a marca visível de um grande curativo.<br />
Não demorou muito tempo e vi o Nestor e o Gilmar apontando na<br />
esquina. Voei pra frente da loja e fiquei esperando que eles chegassem.<br />
- Escuta papagaio: você fica esperando na esquina, vigiando, e se<br />
vier alguém você dá um sinal. Grita alto.<br />
- Tudo bem, currupaco! Mas não esqueça de nenhum pássaro. Solta<br />
eles que eles sabem pra onde tem que voar.<br />
- E não se esqueça do acordo entendeu?<br />
- Sim, crock, o trato, currupaco.<br />
Quando fui pra esquina da rua fiquei vigiando. Notei que abriram a<br />
porta com grande facilidade. Pouco tempo depois vi vários pássaros saindo<br />
de lá e voando para o sobrado onde estavam o Jackson e o João.<br />
Nestor fechou calmamente a porta, deixando-a como estava antes.<br />
Depois me chamou e disse para assegurar meus favores. Iria me dar um<br />
saco de sementes de girassol, que era parte do acordo, somente no carro,<br />
concordei...<br />
Fui falar com os outros pássaros:<br />
- Escuta pessoal: amanhã bem cedo quando o sol nascer nós iremos<br />
embora, mas agora tratem de ficar aqui entenderam, currupaco?<br />
- Sim irmão, mas como acharemos o caminho?<br />
- Aqueles homens terão que ir novamente à floresta pegar novos<br />
pássaros. Nós iremos escondidos na caminhonete e quando chegarmos à<br />
floresta voaremos livres, currupaco.<br />
- Mas isso não impede que eles capturem a gente de novo...<br />
56
- Nem sempre Lúcia, crock. O tempo vai nos ensinar a lidar com esse<br />
mal que é a caça, currupaco...mas por enquanto podemos ficar<br />
despreocupados. Cada um de nós já foi capturado de um jeito diferente, só<br />
temos que ensinar uns aos outros sobre as armadilhas da floresta. Irmãos,<br />
vocês se lembram de quando os nossos pais nos ensinavam a escapar dos<br />
predadores, do gavião, a procurar comida? Aqueles dias maravilhosos onde<br />
estávamos descobrindo a vida? Pois bem, agora é hora de ensinar novas<br />
coisas, ensinar a escapar das armadilhas dos homens. Vocês vieram pra cá,<br />
já sentiram na pele o desespero, temos que espalhar essa história na mata e<br />
alertar a todos os animais.<br />
- E como essa história vai terminar Petrúcio? Essa guerra não vai ter<br />
fim?<br />
- Amanhã mesmo. Quando eles forem o Nestor vai fazer uma ligação<br />
anônima para a polícia e falar que os homens estão traficando pássaro<br />
ilegalmente.<br />
- E o que é uma ligação?<br />
- Não posso explicar agora irmão, crock. Tenho que ir, fazer uma<br />
coisa para aqueles homens. Escutem pássaros: se eu não voltar até a hora<br />
que os homens saírem, quero que partam sem mim, currupaco.<br />
- Mas aonde você vai?<br />
- Não posso dizer agora, mas lembrem-se do que eu disse. Se eu não<br />
aparecer apenas digam ao papai e à mamãe que os amo, e que nunca<br />
esqueci deles.<br />
Eu voei de volta, ao encontro dos dois, sentindo grande esperança<br />
que aquilo tudo estava prestes a terminar, que na manhã seguinte eu<br />
finalmente iria voltar pra casa, pra floresta.<br />
Deixei lá naquele sobrado o pica-pai Jackson, o canário-da-terra<br />
João, o curió Tadeu, as três jandaias Luí, Luz e Lúc, os coleirinhas Ern,<br />
Piua, Malandro, Leão, Erel, Ast e Joça, o azulão Tostão e meus quatro<br />
irmãos Crec, Graac, Áat e Aru.<br />
Segui com o Nestor e o Gilmar até o carro que estava parado na outra<br />
rua. Seu motorista era um homem viciado em montaria e rodeios, que<br />
sonhava ser um pião de rodeio e montar nos touros.<br />
Finalmente pude comer alguma coisa! As sementes estavam bem<br />
frescas! Seu sabor era bom, até pareciam ter vindo da floresta...ah, estou<br />
tão perto de voltar para lá... que felicidade que meu coração está sentindo<br />
nesse instante! A possibilidade de voltar a viver a minha vida, e apagar essa<br />
tristeza toda, tudo que aconteceu nesse lugar comigo. Eu estou muito perto,<br />
eu vou conseguir!<br />
57
Capítulo 9<br />
- E então papagaio? Sabe o que fazer?<br />
- Sim, currupaco.<br />
Fui até a entrada da joalheria. Havia uma pequena passagem,<br />
descoberta de vidro e ferros decorativos. Ficava no alto e eu só poderia<br />
passar voando. Era muito estreita e nas primeiras tentativas não consegui<br />
passar pela pequena abertura. Só poderia passar voando. Então tive que me<br />
concentrar e voar mais alto que a entrada, então impulsionado pelo vôo<br />
fechei as asas e consegui entrar.<br />
Do lado de dentro fiz tudo do jeito que eles disseram. Fui até as<br />
prateleiras e comecei a pegar as jóias, uma a uma e levar até a passagem.<br />
Fui jogando todos aqueles objetos e eles recolhiam do lado de fora.<br />
Havia alguns muito brilhantes e coloridos, muito bonitos e durante<br />
mais de uma hora eu fiquei pegando as jóias da joalheria e jogando para<br />
eles do lado de fora. Eles sempre falando para eu pegar mais e procurar<br />
pelos objetos mais brilhantes e maiores.<br />
Havia um cofre e pensei que os objetos mais bonitos estariam lá. Eu<br />
sabia o que era um cofre, pois o Serginho tinha um brinquedo igual. Ah,<br />
que saudade do Serginho...e o Juquinha? Será que se deu bem com o<br />
cachorro? Bom, isso não importa muito agora, daqui a pouco quando<br />
amanhecer vou voltar pra floresta.<br />
Ao lado do cofre tinha um botão vermelho que pensei ser o botão de<br />
abrir o cofre, mas quando apertei um monte de luzes começou a piscar e<br />
eram vermelhas. As luzes cortavam as paredes de um lado a outro e<br />
58
também no chão. Muito barulho, uma sirene alta tocava enquanto várias<br />
câmeras estavam viradas na minha direção. Só então percebi que as<br />
câmeras estavam lá o tempo todo me vigiando e voltavam-se para o lado<br />
onde eu estava.<br />
Eu já tinha visto algo parecido no barco grande onde conheci a<br />
Sophia, no quarto de Dara, mulher do Cristóvão. Sophia disse que ela era<br />
uma produtora de eventos muito famosa e tinha muitos objetos de valor,<br />
que não queria ninguém entrando no seu quarto e por isso mandou colocar<br />
as luzes e as câmeras, que isso impedia que qualquer um entrasse no quarto<br />
para pegar alguma coisa.<br />
Sophia falou que se atravessarmos as luzes elas fazem machucado<br />
em nós, por isso acuado fiquei ao lado do cofre, imóvel, enquanto aquele<br />
terrível barulho de alarme prosseguia.<br />
Sem saber o que fazer, só pensei em gritar naquele momento. Foi<br />
quando o barulho se interrompeu repentinamente.<br />
- Currupacoooo...<br />
Todas as luzes se apagaram e a porta da joalheria se abriu. Vários<br />
homens entraram na joalheria. Quando fui voar um deles me acertou com<br />
um sapato e eu caí num canto com a asa machucada.<br />
Gritava de dor e a última coisa que vi foi um pano ser jogado em<br />
cima de mim.<br />
Ouvi quando vários carros com sirene passaram em frente à<br />
joalheria. Um homem pegou o pano com brutalidade e me jogou dentro de<br />
uma caixa, depois fui jogado na parte de trás do carro e saímos de lá.<br />
Não me dava conta do que havia acontecido comigo. Fui levado para<br />
um lugar cheio de pessoas e fiquei na caixa enquanto os homens que me<br />
trouxeram conversavam. Minha asa estava inchada e não conseguia movêla.<br />
Sentia dor e desespero, estava tudo tão confuso que por certo tempo não<br />
consegui coordenar as idéias, nem mesmo fazia idéia do que estava<br />
acontecendo, foi tudo muito rápido.<br />
Passados alguns dias naquela caixa veio uma mulher e fez um<br />
curativo em minha asa, senti que a asa estava no lugar certo de novo, mas<br />
ainda não conseguia mexer. A mulher me colocou em uma gaiola e eu<br />
ficava em um corredor onde muitos homens estavam dentro de celas, assim<br />
como o lugar em que o Nestor e o Gilmar estavam.<br />
Era um lugar muito sujo com um cheiro insuportável. Os homens<br />
ficavam mexendo comigo, esperando que eu falasse. Algumas vezes<br />
jogavam água em mim.<br />
Por várias vezes me deixavam sem comida, e sentia fome.<br />
Pensei que talvez os outros pássaros já estivessem na floresta. Foi<br />
um raro momento para sorrir e pelo menos dessa preocupação me ausentei.<br />
Um pássaro pequeno veio voando até a gaiola onde eu estava, e<br />
quando pousou eu percebi que era o Ern.<br />
59
- Ern, o que faz aqui? Você devia estar na floresta com os outros.<br />
- Nós todos havíamos decidido naquela noite que não voltaríamos<br />
sem você, Petrúcio. Aqueles homens foram até a floresta novamente e só a<br />
Lúc foi na carroceria do carro, para alertar os pássaros da floresta e ensinar<br />
sobre as armadilhas. Ela ficou por lá e um pássaro preto muito esperto veio<br />
na carroceria para aprender o caminho...ele está conosco e estamos<br />
esperando você para voltarmos.<br />
- E os homens, conseguiram pegar outros pássaros?<br />
- Infelizmente sim Petrúcio, a maioria pássaros novos que não tinha<br />
experiência ou que não deu atenção à Lúc. Ele falou que não tinha notícias<br />
dos seus pais para trazer pois não os viu, mas disse que outros papagaios<br />
falaram que eles foram para um lugar mais escondido na mata onde os<br />
caçadores não conseguiam chegar.<br />
- Ainda teremos que conviver muito tempo com esse mal, mas<br />
tomara que os animais da floresta aprendam a fugir dessas armadilhas.<br />
- Tomara.<br />
- E como me encontrou, currupaco?<br />
- Uma coruja falou pra gente. Ela estava em uma árvore em frente à<br />
joalheria que você assaltou. Olha Petrúcio, todos os pássaros da cidade<br />
sabem o que você fez, além disso a coruja falou que apareceu em muitos<br />
jornais.<br />
- Eu cometi um grande erro, mas foi por amor, por desespero e agora<br />
veja o que me aconteceu. Escute Ern, quero que todos vocês voltem<br />
imediatamente para a floresta, porque eu não conseguirei. Sinto que minha<br />
vida está chegando ao fim.<br />
Durante um tempo fiquei conversando com o Ern e ele disse coisas<br />
horríveis sobre o Nestor.<br />
- Mas não pode ser, currupaco. O Nestor é um amigão meu,<br />
currupaco.<br />
- Ah é? Então por que você acha que está nessa gaiola?<br />
Fomos interrompidos por um guarda que abriu a porta que dava<br />
acesso às celas. O Ern passou por ele como um foguete e saiu voando pela<br />
outra sala até chegar à rua.<br />
Vendo o Ern sumindo senti que aquilo é o mais próximo que já<br />
cheguei de voltar pra casa, e meu coração deverá se contentar em saber que<br />
os pássaros conseguiram voltar.<br />
A minha vida de sofrimento e desilusão, caos de sentimentos, roubo<br />
do amor e da paixão que eu cultivei, minha mata, casa que já não posso<br />
morar, esmaecendo em minhas lembranças...tristeza!<br />
- Muito bem pássaro. Chegou a hora de você abrir o bico. Vamos ver<br />
se conseguimos tirar alguma informação de você.<br />
- Aonde vou, currupaco?<br />
60
- Você vai para um lugar pior que o banco dos réus. Vamos ver se<br />
fala tudo que queremos ouvir.<br />
Lá na sala várias pessoas me aguardavam. Fui colocado em cima de<br />
uma mesa e havia um homem chamado Fonseca que ficava perto de mim.<br />
Era fácil perceber como as pessoas me olhavam com ódio. Senti que<br />
eu era a vergonha do mundo animal. Eu já estava condenado antes mesmo<br />
de qualquer sentença.<br />
Então entrou na sala o Adamastor para tentar fazer com que eu<br />
falasse algo. Ele disse coisas horríveis sobre mim quando um dos homens<br />
perguntava, parecia que o homem exercia algum tipo de autoridade sobre<br />
as outras pessoas, pois quando mandava se calarem todos ficavam calados.<br />
Passado algum tempo entrou na sala o Cristóvão...<br />
- Petrúcio é cleptomaníaco! Um animal que ganha a confiança dos<br />
outros para usufruir de certos poderes. Praticou inúmeros furtos no navio<br />
onde viajava. Esse pássaro é a escória do mundo animal, vergonha da<br />
natureza! Foi treinado para roubar e vai continuar cometendo delitos se não<br />
for exterminado.<br />
O Fonseca tentava convencer as outras pessoas que eu era um animal<br />
apenas, que não tinha ciência das coisas que fazia.<br />
Depois apareceu o Rubens, um dos donos da loja de pássaros. Saiuse<br />
muito bem diante das perguntas, mas fiquei muito agitado com a<br />
presença dele. Eu sentia ódio, queria atacá-lo. Ele se complicou com<br />
algumas declarações. Estava sendo investigado por causa da loja de<br />
pássaros, pois não tinham registro, a loja era ilegal.<br />
O culpado de eu estar aqui, o Rubens, juntamente com o outro<br />
homem.<br />
Depois entrou na sala o sr. Pedro, que disse que eu me infiltrei na<br />
casa dele para facilitar o assalto que ocorreu na casa. Disse que quando<br />
todos na casa saíram eu avisei meus comparsas. Disse que recebia ameaças<br />
diariamente e acusou os assaltantes pelo assassinato da dona Amanda e do<br />
Ricardo enquanto viajou com seu filho.<br />
O sr. Pedro estava usando algemas, estava preso e alegava que não<br />
havia matado a dona Amanda e o amante dela. Ele foi embaralhando cada<br />
vez mais o seu depoimento, falando coisas desconexas, me acusando.<br />
E foi assim que terminou o caso do assassinato da dona Amanda e do<br />
Ricardo, o homem que todos os dias ia até a casa pelas manhãs: o Serginho<br />
passou a morar na casa da avó, que se chamava Matilde e o sr. Pedro foi a<br />
julgamento, foi condenado. Ficou na prisão por pouco tempo e depois foi<br />
solto. Um homem bem visto pela sociedade dos humanos, com um bom<br />
currículo, assim é que chamam o conhecimento aqui. Aquela palavra por<br />
um tempo não saiu da minha mente, uxoricídio, eu não conseguia<br />
pronunciá-la direito mas não me esqueço de quando escutei lá naquela sala.<br />
61
Os dois homens que iam até a floresta capturar animais também<br />
foram presos. Quando deixaram a cadeia decidiram não ir mais até a<br />
floresta buscar animais, mas continuaram vendendo pássaros e ração.<br />
E foi assim que os pássaros ficaram livres deles e puderam seguir a<br />
vida em paz. Eu sentia angústia em não poder estar com eles, tudo o que eu<br />
queria era ser um animal da mata, mas estou cada vez mais me tornando<br />
como um desses animais daqui, que usam roupas, cada vez mais igual!<br />
Quando terminou eles tentavam fazer com que eu falasse alguma<br />
coisa, que desse pistas sobre as jóias. Diziam que eu havia tirado uma<br />
fortuna em jóias daquela joalheria mas eu fiquei em silêncio durante todo o<br />
tempo, sem dizer nada. Pensava com ódio em muitas pessoas, em muitos<br />
acontecimentos, e por um tempo acabei desligando minha percepção,<br />
sonhando acordado.<br />
Depois fui jogado em um porão que eu não sabia onde era, não havia<br />
comida nem água, mas para minha surpresa todos os dias os ratos levavam<br />
comida para mim.<br />
Naquele porão não havia nada, nem poleiros nem objetos, apenas um<br />
pequeno buraco na parede que era por onde os ratos entravam para trazer<br />
comida. Os homens me colocaram lá para morrer.<br />
O destino me visitava todos os dias para me trazer novidades. Ele<br />
surgia como que por encanto, sem entrar por nenhuma porta ou janela.<br />
Falava sobre o mundo lá fora.<br />
Ele falou que na cidade havia sido inaugurada uma lanchonete muito<br />
grande com meu nome, brincando depois que o dono da lanchonete devia<br />
gostar de mim ou ter se familiarizado com a história maluca do papagaio<br />
assaltante.<br />
Num raro momento percebi que lá no navio eu não estava<br />
embriagado, e não estava alucinando sobre as visitas dele ao porão. Foi<br />
esse estranho ser chamado destino que se transformou em coruja, era ele<br />
também o amuleto que se apegou antes ao Henrico e agora me persegue.<br />
Precisava me livrar dele, só trazia azar para mim.<br />
Ouvindo-me dizer essas palavras se magoou o destino e foi embora,<br />
procurar outro dono. Eu não havia percebido que estava atrás de mim<br />
quando eu disse que ele dava azar, ah, foi até melhor assim...<br />
Era um ser mágico que podia se transformar em pessoas e animais,<br />
atravessava paredes, soltava raios nos olhos. Mas se não podia me tirar<br />
daqui e me mandar de volta pra floresta eu achei que não precisaria dessa<br />
amizade.<br />
A última coisa que ele me falou é que os dois homens abriram uma<br />
lanchonete perto do local onde era a loja de pássaros e colocaram o nome<br />
de Petrúcio’s bar. Disse que muitas pessoas iam lá por causa da fama que a<br />
história do papagaio ladrão alcançou.<br />
62
Minha condenação foi horrível! Trancado em um porão fechado<br />
durante anos. A comida que os ratos traziam me manteve vivo, porém era<br />
ruim, apenas restos. A fome não detalhava paladar ou agrado, entretanto.<br />
Eu queria morrer e acabar com aquele pesadelo, mas os ratos confiavam<br />
muito em mim. Eu era um herói para eles.<br />
Aquele passarinho alegre, não tem mais motivos para sorrir. Quem<br />
sabe as lágrimas que já chorei formem um rio pelas ruas e estradas daqui<br />
até a floresta, e o Vernacleto, meu amigo peixe, venha nadando pelo rio<br />
para fazer companhia a um solitário papagaio, o Petrúcio...<br />
- Currupaco!<br />
Um dia, após muito tempo, um homem abriu a porta e ficou imóvel<br />
olhando para mim, parecia estar vendo um fantasma. Eu estava vivo depois<br />
de vários anos deixado naquele porão fechado, sem água e comida.<br />
Os olhos dele estavam maravilhados, espantado, confuso e com<br />
medo! Então ele fechou a porta e saiu correndo pelo corredor.<br />
Logo várias pessoas vieram ver se eu estava realmente vivo. Elas<br />
olhavam de longe na entrada da porta. Olhavam para mim e para o restante<br />
do porão, onde não havia mais nada.<br />
Eu olhava fixo para elas, sem sair do lugar, ali parado no chão de<br />
terra, no meio do porão, com um olhar de ódio.<br />
63
SEGUNDA PARTE<br />
No ápice de um novo começo me encontrei, quando um homem<br />
abriu a porta do porão e saiu de perto. Eu saí de lá e meus olhos doeram,<br />
pois eu já não sabia o que era a luz. O sol era algo tão desconhecido quanto<br />
no meu nascimento, quando os olhos se abriram e viram a claridade da<br />
floresta. O corpo estava pesado, pois depois de muito tempo eu não<br />
caminhava tanto, era apenas o porão, nada mais. O piso tinha azulejos de<br />
cor marrom claro, eu olhava para o chão enquanto dava um passo após o<br />
outro.<br />
Surrado pela vida e castigado pelos homens que me deram por<br />
morto, hoje um fantasma saindo do túmulo. Os dois homens ficavam me<br />
olhando e eu sentia os seus pensamentos atordoados.<br />
Caminhei pelo corredor vagarosamente enquanto nas celas os presos<br />
batiam palmas e gritavam.<br />
Fui caminhando até a saída da prisão onde havia um portão aberto. O<br />
guarda que manteve o portão aberto me encarava com medo, aguardando<br />
minha saída. Quando saí, voltou a trancá-lo.<br />
Uma pessoa tirou fotografias do momento em que eu caminhei e do<br />
momento em que o portão foi fechado atrás de mim.<br />
Quase não me lembrava mais o que era voar. Meu primeiro vôo foi<br />
como aqueles na floresta quando fui capturado e lançado nesta horrível<br />
cidade.<br />
Foi logo que saí pelo portão.<br />
Tudo que aconteceu comigo aqui foi ruim, poucas coisas que gostei<br />
só serviram para me fazer mal, como a amizade do Nestor e a Sophia.<br />
Jurei que me vingaria de todos. A primeira coisa que fiz foi procurar<br />
os pardais. Andava vagaroso pela cidade, minhas asas só não atrofiaram<br />
por completo porque eu me movimentava no porão.<br />
Quando os encontrei e disse quem era, me disseram onde vivia a<br />
papagaia Sophia. Minha intenção era encontrar o Cristóvão.<br />
Demorou muito tempo para que eu os encontrasse.<br />
De todos os pardais que eu havia conhecido naquele beco em frente à<br />
casa do Gilmar, só havia restado o Rufino, que por sinal já era um pássaro<br />
velho. Os outros pardais que estavam com ele, ou eram filhotes ou netos<br />
dos antigos pardais. Era impressionante a maneira como me tratavam! Eu<br />
era verdadeiramente um ídolo para eles...<br />
Então ao sair dali voei pela cidade mais uma vez. Passaram-se<br />
algumas horas e cheguei ao subúrbio. Havia ali uma casa branca com<br />
janelas claras, em tom de azul, lugar onde eu poderia encontrar a Sophia,<br />
segundo eles.<br />
64
Havia um muro baixo, no quintal algumas flores e hortaliças. A porta<br />
fechada não me deixou outra escolha senão voar por cima da casa.<br />
Do outro lado havia um quintal com duas árvores médias. Ao pousar<br />
numa delas vi a Sophia na varanda com um outro papagaio pequeno.<br />
Ela conversava com ele e brincavam com uma bola de isopor.<br />
Quando ela me viu na árvore falou para o pequeno papagaio que<br />
entrasse em casa, achando que eu não o tinha visto.<br />
- Quem é você, currupaco?<br />
- Não se lembra mais de mim Sophia? Ou será que você assim como<br />
os meus antigos donos está me ignorando ou vingando em mim os seus<br />
problemas?<br />
- Petrúcio? É você? Você não deveria estar na floresta com os outros<br />
pássaros?<br />
- Todos esses anos desde que nos separamos naquela praça eu estive<br />
preso, currupaco.<br />
- Preso? Como aqueles piratas, crock?<br />
- Sim.<br />
- Mas o que aconteceu Petrúcio?<br />
- Foi assim que aconteceu: nós tínhamos que encontrar a loja de<br />
pássaros para voltar para a floresta e então...<br />
“Na verdade eu já sabia que o Petrúcio estava preso, que os homens<br />
o colocaram num porão para morrer. Uma coruja de olhos bem brilhantes<br />
sempre vinha até aqui para me trazer notícias do Petrúcio, mas depois de<br />
um tempo achei que era mentira dela, até que um dia desapareceu de vez.<br />
Olhando novamente para o Petrúcio depois de todo esse tempo<br />
novamente me veio um aperto no coração por tudo de ruim que eu fiz para<br />
ele...mas um sentimento tão bonito, uma coisa tão preciosa invadiu meu<br />
coração e só pude ficar imóvel olhando para ele.”<br />
Depois de contar minha história, perguntei à Sophia sobre aquele<br />
pequeno papagaio e ela disse que seus novos donos o haviam comprado há<br />
alguns anos.<br />
Não acreditei no que me disse aquela papagaia. Dava para perceber<br />
quando mentia. Eu sabia perfeitamente quem era aquele papagaio, e parecia<br />
muito com o meu pai. Nisso me lembrei de coisas tão distantes, da minha<br />
infância na floresta, dos conselhos de vida que papai nos dava...<br />
A vida é sempre assim, nós vivemos e passamos aos filhos o<br />
resultado das experiências. Minha experiência de vida, porém, e os calos<br />
em minha face são coisas que não tive a oportunidade, e nem terei, de<br />
contar ao meu filhote. Só espero que a Sophia tenha dito a ele o que o pai já<br />
fez, as coisas boas, a esperança e a força de vontade.<br />
Mas também não insisti em perguntar mais sobre o papagaio. Era<br />
notável que ela não queria falar, além do mais esse papagaio nasceu numa<br />
65
casa na cidade e não sabe as coisas que nós da floresta sabemos, não pode<br />
viver como nós. Sophia ficou mais ajuizada, mais responsável...<br />
Ela não tinha notícias sobre seus antigos donos, mas sabia sobre o<br />
Gilmar e seu comparsa, o Nestor. Disse que a tal coruja falou que moravam<br />
numa casa grande e bonita, cercada por um muro bem alto.<br />
Despedindo-me da Sophia, segui meu caminho. Ao olhar para trás<br />
enquanto voava notei que ela olhava para mim de uma forma muito pura,<br />
diferente daquele olhar cheio de ciúmes e até mesmo raiva.<br />
“Olhando o Petrúcio indo embora, em silêncio meu coração parecia<br />
se comunicar com o dele...<br />
Petrúcio, eu não queria perder mais do que eu já perdi. Tive medo,<br />
me desculpa! Fiquei com medo que o levasse. Vi o quanto você sofreu, vi o<br />
sofrimento dos outros pássaros. Aqui é seguro, nós só temos isso...<br />
Volta Petrúcio...volta...volta...”<br />
Nossas vidas são engraçadas, podemos viver uma vida tranquila e<br />
sem problemas ou então sofrer tudo o que de ruim o destino poderia jogar<br />
em nosso caminho.<br />
Eu não conheci a felicidade plena após ser roubado da mata, só o que<br />
tive foram algumas fatias espalhadas em cada canto, assim como migalhas<br />
jogadas para os pássaros próximo aos bancos de uma praça.<br />
Meu sorriso é como as gotas da chuva que caem na terra, e embora<br />
sejam muitas, ainda fica uma flor sem receber as águas e murcha na terra<br />
seca, longe do alcance da tempestade.<br />
As horas passavam. Tive dificuldade, aliás, bastante dificuldade para<br />
encontrar a casa que ela falou. Foi difícil entrar. Havia cães e embora eu<br />
tentasse falar com eles pareciam robôs programados para obedecer. Latiam<br />
para mim e então saí de lá e fiquei sobre uma árvore do lado de fora,<br />
vigiando apenas.<br />
Depois de um tempo consegui entrar voando por uma janela. Na casa<br />
somente estavam os empregados. Mais tarde percebi que o Nestor também<br />
estava, dormia em um dos quartos.<br />
Eu me escondia quando alguém passava, queria vingança. Nada<br />
podia atrapalhar e ser visto alertaria os dois sobre minha presença.<br />
Lá no segundo andar era a biblioteca. Ao lado ficavam os quartos,<br />
entre eles o do Nestor.<br />
As baratas, que também admiravam bastante a minha história me<br />
ajudavam. Elas estavam orientadas pelos chefões da rataria de me ajudar no<br />
que eu precisasse para fazer minha vingança contra os dois.<br />
Expliquei qual era o meu plano e elas sabiam exatamente o que<br />
fazer, o que me impressionou muito! Baratas são seres que conhecem toda<br />
a casa, todas as ruas...andam por tudo e sabem se esconder, são organizadas<br />
e conhecem locais que nem mesmo os moradores de uma casa imaginam<br />
que exista.<br />
66
Trouxeram um gravador. Era pequeno e leve! Não deu trabalho para<br />
carregar. Fui arrastando pelo chão até chegar à biblioteca. Elas olhavam<br />
admiradas esperando pra ver o que eu ia fazer, e me seguiam admiradas<br />
com tudo. Elas sabiam até mexer no gravador.<br />
Eu me sentia habilidoso para fazer as coisas...não sei, algo de<br />
diferente em mim. Algumas vezes ficava pensando se isso teria alguma<br />
coisa a ver com o que aconteceu no navio tempos atrás, quando conheci o<br />
destino...o certo é que eu não era o mesmo pássaro, havia algo diferente!<br />
Então elas foram se espalhando, dizendo que alguém se aproximava.<br />
Ouvi passos subindo a escada. Deixei o gravador lá no canto encostado na<br />
parede e tratei de me esconder na biblioteca. Era a única porta aberta<br />
naquele corredor.<br />
Havia uma sala bonita com um piano, fechada apenas por uma<br />
bambinela, não me arrisquei.<br />
A mulher que trabalhava na casa subiu para limpar o andar de cima<br />
com um aspirador de pó.<br />
Foi quando vi o Nestor, saindo do seu quarto.<br />
Ele abraçou a mulher e a levou para o quarto de onde havia saído.<br />
Conversavam alguma coisa e a porta estava semi-aberta, mas não<br />
podiam ver a entrada da biblioteca.<br />
Continuei então a arrastar o gravador até a biblioteca, carreguei até<br />
uma estande de livros e o deixei sobre a estande, escondido.<br />
No corredor ouvi sons que já havia ouvido antes na casa do<br />
Serginho.<br />
Saí de lá rapidamente e novamente os cães latiam. Foi então que<br />
entrei em outro quarto, através de uma janela aberta. Era o quarto do<br />
Gilmar.<br />
Fiquei escondido no quarto até que caísse a noite.<br />
Quando anoiteceu o Gilmar abriu a porta, pegou uma roupa no<br />
armário e foi tomar banho. Depois de um tempo saiu do banheiro e vestiu a<br />
roupa.<br />
Nestor bateu na porta do quarto e perguntou se já estava pronto.<br />
Ele deu um grito e logo saiu do quarto, passados alguns<br />
minutos...apressado!<br />
Então ouvi o barulho do carro, de cor laranja, dando a partida. Com<br />
certeza iriam pra farra, encher a cara de bebida.<br />
Era tarde e os dois empregados já estavam dormindo. Então saí do<br />
quarto e caminhei até a cozinha para pôr em prática o meu plano. Alguns<br />
ratos estavam me ajudando. Eram doze ratos e lembro até seus nomes:<br />
Roque, Tomáz Rói-Rói, Dentinho, Chiquita Bela, Paraguaçu, Berimbau,<br />
Mane Ozório, Mariazinha Dá Vinte, Robertão Delicado, Rei Rinchado,<br />
Tonhão Rei do Esgoto e Riso Ruído.<br />
67
Paraguaçu era o único dos ratos que morava na casa. Os outros eram<br />
amigos seus que sempre iam lá para fazerem festas com as comidas da<br />
casa.<br />
Ofereceram-se para ajudar assim como ele, assim que souberam que<br />
era eu que estava na casa. Eles queriam se vingar porque um dos amigos<br />
deles havia sido morto tempos atrás pelo Nestor. Eu era um ídolo para<br />
aqueles ratos, aliás depois de tudo que aconteceu, acho que para a maioria<br />
dos animais pequenos da cidade.<br />
Condicionado pelo Paraguaçu e sob minhas ordens, os outros ratos<br />
foram executando suas tarefas: Roque, Berimbau e Rei Rinchado tiraram<br />
uma lata de óleo do armário e derramaram pela cozinha de ponta a ponta;<br />
Chiquita Bela e Tomáz Rói-Rói pegaram em outro armário onde eram<br />
guardadas ferramentas, varas de pescar e outros utensílios, o carretel de<br />
linha de pescaria, cujo fio era praticamente invisível, usado para enganar os<br />
peixes do rio. Foram desenrolando e a Chiquita segurou a ponta do fio,<br />
depois foi correndo pela casa entre as mesas e cadeiras. Os ratos eram<br />
muito habilidosos! Eu estava impressionado! Alguns deles pegaram palitos<br />
e foram para o andar de cima, na direção do quarto dos empregados que<br />
dormiam, então algumas baratas colocaram os palitos no buraco da<br />
fechadura, para evitar que os empregados saíssem dos quartos na hora que<br />
começasse tudo.<br />
Cada rato pegou um saquinho com pólvora e fez um montinho em<br />
cada degrau da escada, uma fina linha ligava o estopim colocado por<br />
Robertão Delicado. Eles pareciam ter até ensaiado tudo, agiam com muita<br />
naturalidade e habilidade! Para acender ele usaria um aparelho que eles<br />
ligavam o fogão, era bonito e fazia faísca como as de um raio.<br />
Pegaram um vidro de catchup e levaram até o segundo andar, quando<br />
chegaram estavam exaustos. Era pesado, então abri com o bico fazendo um<br />
furo e fui pingando pelo corredor até a sala do piano.<br />
Riso Ruído já havia terminado seu trabalho. Colocou velas ao redor<br />
da porta e em alguns locais do corredor...acendi usando o aparelhinho que<br />
funcionava apenas apertando. Era bonito e interessante! Nem era difícil de<br />
usar!<br />
Um deles colocou uma lanterna atrás da bambinela camurça que<br />
fechava a porta da sala do piano. Era uma cena de terror preparada para<br />
apanhar os dois. Uma porta grande e bonita que se abria para fora. A<br />
bambinela era de tecido fino e transparente como a seda. Minha sombra<br />
ficava gigantesca à frente da lanterna, atrás da cortina.<br />
Na biblioteca os ratos roíam livros, deixavam jogados pelo chão,<br />
transformavam o lugar, deixando tudo muito desorganizado.<br />
Na cozinha outros deles partiam frutas, comiam bastante, abriam<br />
latas de farinha, de arroz e deixavam tudo muito espalhado.<br />
68
Capítulo 2<br />
Era bem tarde quando ouvi o barulho do carro chegando. Estava<br />
disposto a levar às últimas consequências o sentimento de vingança que<br />
jamais foi meu, aprendi nesse lugar tão malicioso.<br />
Nesse momento fui para a biblioteca e liguei o gravador, precisava<br />
gravar os dois conversando.<br />
Nestor abriu a porta e entraram. Estavam muito bêbados e<br />
conversavam alto. Gilmar trazia nas mãos uma garrafa com bebida já pela<br />
metade.<br />
Ao tropeçarem na fita que estava no caminho caíram no chão<br />
gritaram alto, tentaram se levantar e caíram mais duas vezes até chegar<br />
perto da escada.<br />
Os empregados gritavam querendo sair dos quartos, mas as portas<br />
estavam emperradas. Eles escutavam os gritos desesperados e eu nem sabia<br />
o motivo de gritarem tanto. Foi aí que percebi que nos quartos havia uma<br />
quantidade muito grande de baratas.<br />
A noite era fria e algum dos ratos deve ter chamado todas as baratas<br />
do bairro para ficarem na casa, dentro dos quartos dos empregados. O<br />
alarde se transformou num perfeito coral de terror através dos gritos, e olha<br />
que nem foi planejado esse detalhe, mas ficou muito bem elaborado!<br />
Foi quando um deles acendeu a trilha de pólvora que explodia a cada<br />
montinho, formando uma bola de luz e fumaça em cada degrau.<br />
- Corre Nestor, corre. Socorro!<br />
- O que aconteceu Gilmar?<br />
- O chão não me deixa ficar em pé.<br />
- Vem. Dá a sua mão.<br />
Foi quando o Nestor também caiu no chão da cozinha, coberto de<br />
óleo.<br />
Os dois foram se arrastando até a escada e subiram com muita<br />
dificuldade pelos degraus...desesperados e ouvindo os gritos, o cheiro de<br />
fumaça na casa por causa da pólvora...havia medo naqueles homens.<br />
Quando estavam chegando ao último degrau apaguei a luz do<br />
corredor e voei até a sala do piano sem que me vissem.<br />
Quando comecei a pisar nas teclas do piano, o pavor tomou conta<br />
dos dois, já paralisados pela comoção ao ver o sangue e as velas.<br />
Correram para a biblioteca totalmente apavorados depois que eu voei<br />
para a frente da lanterna e meu vulto surgiu enorme na cortina. Era lá na<br />
biblioteca que estava o gravador, eu precisava de sorte agora para que eles<br />
pudessem conversar o que eu queria que conversassem.<br />
Na expectativa, os ratos assistiam de camarote a fantástica<br />
apresentação. A vista que tinham da entrada do corredor era ótima!<br />
69
Dava para ouvir de longe o que conversavam...<br />
- Você viu aquilo Gilmar?<br />
- Claro que vi. Acha que sou cego?<br />
- Era o Petrúcio. O Petrúcio. A alma dele voltou pra nos pegar.<br />
- A culpa foi sua. Foi você que o deixou lá naquela joalheria que<br />
fomos assaltar.<br />
- Mas você sempre me culpa por tudo. E além disso a idéia de<br />
assaltar aquele lugar foi sua. O nosso trato era só em sair da cadeia, então a<br />
gente iria pegar os pássaros naquela loja pra eles voltarem pra floresta.<br />
- Eu sei que a idéia foi minha, mas você bem que foi.<br />
- Fui porque você e o Fred insistiram.<br />
- Psit...fala baixo. O fantasma pode nos ouvir.<br />
Durante os minutos seguintes nenhum som foi ouvido, atirado ao ar<br />
dentro da biblioteca. Foi aí que um dos empregados conseguiu arrombar a<br />
porta do quarto e se deparou com aquela bagunça.<br />
Eu ficava escondido atrás do piano, só ouvindo as conversas. O<br />
empregado conseguiu abrir a porta da empregada e eles foram ajudar os<br />
dois na biblioteca. Muitas baratas iam saindo dos dois quartos e correndo<br />
pelo corredor. Os ratos cuidaram para que as baratas fossem logo embora<br />
afinal só iriam atrapalhar naquela hora.<br />
Os dois empregados acharam que toda aquela bagunça havia sido<br />
provocada pelos chefes, como era de costume acontecer. Depois de os<br />
colocarem nos seus quartos para dormir foram arrumar a casa.<br />
Quando eles desceram não havia ninguém no corredor, então fui<br />
lentamente até a biblioteca. Entrei. Tirei a fita do gravador com cuidado<br />
para não quebrá-la com meu bico.<br />
Furtivamente saí voando pela janela que ainda estava aberta, no meio<br />
da noite, levando comigo a prova da traição daqueles homens.<br />
Quando voava pela cidade percebi que muitas corujas aclamavam<br />
dos galhos das árvores, morcegos batiam asas próximo ao meu caminho.<br />
Eu estava realmente me tornando uma celebridade nesse lugar!<br />
Voltei ao mesmo portão que pouco tempo atrás se abriu perante<br />
meus olhos. Dessa vez sem esperar que se abrisse voei por cima dele e fui<br />
até o lugar que me interessava.<br />
Havia um homem de plantão cochilando em uma mesa e quando fiz<br />
barulho despertou depressa. Olhou para mim com medo, parecendo estar<br />
vendo um fantasma. Na verdade era isso que eu virei naquele lugar, uma<br />
aberração da natureza, um ser que a morte rejeitou.<br />
Então deixei a fita em cima da mesa e voei para a janela, olhei<br />
novamente para o rosto daquele homem e sai voando daquele lugar.<br />
Ao sair dali procurava um lugar para passar a noite.<br />
Vi no alto de um arranha-céu um homem sem roupas que como os<br />
animais, me felicitava. Tinha a pele manchada como a pele de um animal e<br />
70
seus pés eram virados para trás. Levava consigo uma arma igual à de um<br />
índio.<br />
Tive medo, mas algo nele era muito familiar, então me aproximei.<br />
- Olá Petrúcio, vim ver como estava se saindo.<br />
- Quem é você?<br />
- Eu sou o espírito que protege a floresta, e tenho protegido você<br />
todo esse tempo, desde que soube. Sou eu quem faz os caçadores se<br />
perderem na mata e afugento os animais que estão na mira das armas deles.<br />
- Você mora na floresta de onde eu vim?<br />
- Sim. Na verdade em todas as florestas. Eu sou o espírito que<br />
percorre a mata para protegê-la das mãos dos homens, que com suas armas<br />
e facões cada vez mais tentam destruir a beleza da terra por causa dos seus<br />
interesses. Eu sou o Curupira!<br />
- Mas o que eu tenho a ver com toda essa história? Por que têm<br />
acontecido tantas coisas comigo?<br />
- No futuro Petrúcio, a sua história será o motivo de uma coisa<br />
maior, que nem você pode entender. Quero que saiba de uma coisa: tudo<br />
tem o seu propósito. Nada acontece por acaso na vida de ninguém.<br />
Entretanto Petrúcio, estou preocupado com o rumo que as coisas podem<br />
tomar, por isso estou aqui para te dar mais que um conselho, é quase uma<br />
ordem...<br />
- O que é? Diga?<br />
- Não perca o controle das coisas. Muitas coisas que você nem<br />
imagina que seriam capazes estão perto de ocorrer. Não deixe o lado ruim<br />
prevalecer de forma alguma, ainda mais nesse momento em que vão<br />
acontecer coisas muito grandes! Resista e faça somente o que for justo. Não<br />
se deixe passar dos limites Petrúcio. Adeus!<br />
- Mas você vai embora? Deixa-me ir junto. Quero ir para a floresta!<br />
Quero voltar para a minha casa, para junto dos outros animais! Espere, não<br />
vai embora, por favor, não!<br />
- Tudo tem o seu propósito. Há o tempo certo para tudo, isso você<br />
vai descobrir algum dia. Os animais da floresta estão contando com você o<br />
tempo todo.<br />
- Espere...<br />
Sumiu. Assim de repente. Ficou no ar um cheiro de floresta, as<br />
árvores, a brisa da mata nas manhãs.<br />
Triste, sozinho e cansado, eu dormi naquele mesmo lugar,<br />
embriagado pelo cheiro de floresta que ficou no ar. Ao fechar os olhos,<br />
imaginei dormindo num galho de árvore em minha casa, em sonhos podia<br />
ouvir os arrulhos na mata, o som de formigas carregando folhas pelos<br />
troncos das árvores, os lobos, as onças...tudo era vida em meu sonho! Era<br />
tão real, tão mágico! Enquanto dormi me senti de novo num lugar sem<br />
maldades nem ambição, onde havia a luta pela vida, porém sem o desejo<br />
71
voraz de passar por cima dos direitos alheios. A floresta é coletiva! A<br />
natureza dá a vida e os animais respeitam os fundamentos da própria vida,<br />
sem ultrapassar jamais o limite do território. Lá existe cooperação e<br />
nenhum descrédito pelas diferenças, aqui ao contrário existe racismo e<br />
exclusão. Em minha casa a natureza dá o alimento todos os dias de graça e<br />
todos os seres comem, mas aqui os homens precisam trabalhar muitas horas<br />
para conseguí-lo, e, além disso, a natureza humana é tão maldosa que<br />
alguns ficam sem ter o que comer, enquanto que na mesa de outros há<br />
muita fartura. Os que olham pela janela, no frio das noites do inverno se<br />
saciam de imagens de tanta riqueza, enquanto que lá de dentro os que<br />
ceiam jogam os restos fora, e nem no lixo pode o faminto vasculhar para<br />
procurar as migalhas.<br />
***<br />
“Eis que ele dorme, sentindo paz no seu coração! Mas é um sonho de<br />
ilusão apenas, o que está escrito para a sua história ainda é muito doloroso!<br />
Mais doloroso do que muitos outros mais fortes que ele poderiam suportar!<br />
Eu me encanto com essa criatura e não aceitei a sua recusa em<br />
definitivo. Entretanto é necessário uma força maior para que essa coisa tão<br />
complexa, esse sentimento novo exceda os limites da compreensão.<br />
É necessário que haja uma reviravolta na concepção dos limites, por<br />
isso irei provocar mudanças que irão abalar a cidade.”<br />
***<br />
72
Quando o sol apontou no horizonte olhei para ele de uma maneira<br />
nova. Meus olhos estavam ainda muito sonolentos, mas tinha uma visão<br />
diferente do sol! Era um outro sol!<br />
O que é isso? Tenho mãos?<br />
O que houve comigo? Tenho pés...minha pele, minhas penas...tudo<br />
sumiu...<br />
Será isto um sonho? Será que não acordei ainda?<br />
Estou muito confuso...<br />
- Acalme-se Petrúcio, sou o responsável por esta intervenção nas leis<br />
da natureza.<br />
- O que você fez comigo? O que está acontecendo? O que está<br />
acontecendo comigo?<br />
- Você agora é uma pessoa, não é mais um papagaio. Eu o<br />
transformei para que você possa realizar as mudanças.<br />
- Mas eu não quero ficar assim, eu não quero ficar...<br />
- Calma! A mudança é apenas temporária. Na verdade há um grande<br />
tesouro em suas mãos e com a minha intervenção esse tesouro poderá<br />
finalmente ser mostrado à humanidade. Para atingir todo o seu potencial<br />
era necessário romper os limites da aceitação e fazer algo que não é<br />
permitido, mas eu assumi esse risco, afinal é por algo que vai valer a pena!<br />
Então de repente fui transportado dali e como se estivesse numa<br />
outra dimensão o destino foi me mostrando o mundo. Vi um rio muito<br />
bonito e numa parte dele havia muitos troncos de árvore cortados. Estavam<br />
próximos à mata. Homens cortavam os troncos sem parar enquanto que<br />
muitos pássaros voavam, abandonando os seus ninhos, muitos deles com<br />
ovos e filhotes sem penas.<br />
Uma parte da mata estava pegando fogo e os animais corriam sem<br />
direção, procurando fugir das chamas. As cobras eram alcançadas pelo<br />
fogo e morriam pelo caminho, queimadas. Depois vi a mata queimada e<br />
muitos animais viraram cinza. Não havia verde e longe, alguns homens<br />
observavam as cinzas, demarcando locais para construção de casas para as<br />
pessoas e falando em plantar grama para colocar animais.<br />
Depois ele me transportou para outro lugar e lá havia uma lagoa<br />
cheia de lixo e um cheiro muito ruim vinha de lá. Havia milhares de peixes<br />
mortos e boiavam em meio ao lixo.<br />
Eu não conseguia acreditar em tanta destruição. Parecia que toda a<br />
vida estava condenada. Então o destino me levou para a estrada onde ficava<br />
a casa escondida do Nestor e do Gilmar, na saída da cidade. Caminhando<br />
como uma pessoa normal ele foi andando em direção à casa do Juquinha.<br />
Um grande azar! Justamente a direção que eu precisava seguir para chegar<br />
até a casa dele. Deu até certo desânimo saber que o destino estaria lá.<br />
73
Depois me vi sentado em uma cadeira, quase que instantaneamente, e<br />
parecia que aquela visão do destino andando na estrada foi somente um<br />
pensamento vago...<br />
- Vamos lá. O promotor e o juiz gostariam de ouvir seu depoimento<br />
agora.<br />
Quando o delegado ouviu a fita, chamou os outros guardas e foi até a<br />
casa do Nestor e do Gilmar para prendê-los. Isso aconteceu logo que deixei<br />
a fita lá naquela cadeia.<br />
Eu não os vivi, mas até o dia do julgamento se passaram alguns<br />
meses, mas o destino me transportou até a data em que os dois estavam<br />
para ser condenados.<br />
No julgamento fui arrolado como testemunha e contei tudo o que<br />
sabia. O homem que os defendia era o mesmo que me acusou tempos atrás,<br />
antes de me deixarem preso naquele porão. Entretanto minhas razões eram<br />
fortes, e ele não pôde fazer muito.<br />
Eu tinha uma nova identidade, tinha documentos, usava roupas como<br />
as pessoas. Fui plantado nessa cidade através do destino.<br />
Os dois foram condenados. O Fred, que foi comparsa dos dois no dia<br />
do assalto à joalheria, não foi encontrado pelos investigadores. Mas eu iria<br />
procurá-lo. Eu sabia coisas sobre ele, sabia que gostava de rodeios e que<br />
agora tinha muito dinheiro. Assim que eu resolvesse contas antigas com o<br />
pai do Juquinha iria trás dele também.<br />
Minha nova missão era encontrar o meu alvo. Uma pessoa ignorante,<br />
feia, burra, chata, repugnante e suja chamada Adamastor!<br />
Saindo daquele lugar, entretanto encontrei numa rua um cão morto,<br />
um carro havia passado por cima dele. Havia um outro cão que ficava<br />
olhando atento da calçada, talvez esperando que seu companheiro se<br />
levantasse. Uma cena triste! É como se aquele cão não soubesse o que é a<br />
morte.<br />
Caminhei até lá e instintivamente perguntei ao cão porque observava<br />
o companheiro e ele falou para mim que seu amigo iria atravessar a rua<br />
para ver se encontrava um pedaço de osso, que estava faminto.<br />
Eu até cheguei a me assustar pelo fato do cão ter respondido, mas me<br />
lembrei que eu era um animal e não uma pessoa. As pessoas sim são<br />
irracionais e não entendem, mas os animais entendem os outros animais e<br />
até as pessoas.<br />
Então falei para aquele cão me seguir que eu iria conseguir algo para<br />
que se alimentasse. Entramos em uma padaria e o dono veio tocando o<br />
animal, mas eu o repreendi falando que o cão estava comigo e que eu iria<br />
comprar algo que comesse, pois estava com fome.<br />
Algumas pessoas presentes olhavam com estranheza o fato de eu<br />
estar alimentando um cão de rua, e nós dois olhamos ainda mais assustados<br />
para aquelas pessoas. Elas são egoístas demais para entender que os seres<br />
74
humanos tomaram todo o planeta, e como consequência os animais que<br />
com o tempo os próprios humanos domesticaram, foram sujeitados à<br />
dependência, não por vontade própria, mas por necessidade.<br />
Após aquele cão comer vários salgados, paguei o homem que estava<br />
no caixa com dinheiro que o destino tinha deixado em meu bolso, dentro de<br />
uma carteira. O homem perguntou se eu tinha trocado e eu respondi que<br />
não. Não sabia nem o que era valor. Eu era apenas um papagaio no corpo<br />
de um homem, não havia estudado em escola como o Serginho então muito<br />
pouco das regras sociais dessa gente eu sabia, mas sabia o bastante para<br />
perceber a hostilidade de toda a sociedade.<br />
Depois fiquei ainda um tempo conversando com aquele cão. Ele<br />
sabia quem eu era, disse que os animais todos da cidade estavam sabendo,<br />
que comentavam muito sobre o que estava acontecendo e me desejou boa<br />
sorte.<br />
Quando perguntei para onde iria ele falou que é um cão das ruas, que<br />
nunca teve dono e que conhece todos os buracos da cidade. Que estava<br />
triste e faminto, mas que depois de receber minha atenção e conversar<br />
comigo se sentiu melhor.<br />
Disse que iria procurar novas companhias, pois o cão que havia sido<br />
atropelado era um grande amigo.<br />
Então esperei que o cachorro fosse embora. Fiquei observando ele<br />
sumir na distância, abanando o rabinho, numa ginga de andar típica dos<br />
cães de rua.<br />
Caminhando pela rua em direção da casa onde eu estava morando vi<br />
num sinal de ônibus algumas crianças fazendo malabarismos com bolas e<br />
depois de um tempo passavam pelos carros pedindo dinheiro...<br />
A hostilidade desse lugar com os animais deixou um semblante de<br />
tristeza e revolta muito grandes em mim. Eles não se preocupam nem com<br />
os da sua espécie. Ao chegar à casa que o destino providenciou, fui tomar<br />
um banho e não parava de pensar nas coisas que tive conhecimento. Parece<br />
que as pessoas só se preocupam com os seus semelhantes próximos, e até<br />
com os da mesma espécie que são menos favorecidos são impiedosos em<br />
cuidados e ajuda, quem dirá então com os animais.<br />
É triste ver a natureza sempre à mercê dessa raça tão maldosa e cega!<br />
Eles se espalharam pelo planeta e para todo o resto se tornaram uma praga,<br />
um enxame que só tende a crescer e destruir tudo, sugar da terra o que ela<br />
tem para oferecer e quando não houver mais nada, até sua própria espécie<br />
esmaecer.<br />
75
Capítulo 3<br />
- Vai Roger! Pega essa...<br />
- Au! Au! Au!<br />
- Boa garoto! Essa foi demais!<br />
- Arf! Arf! Arf!<br />
- Juca, venha cá!<br />
- Está bem pai. Espere aqui Roger que eu já volto. Quê foi pai?<br />
Aconteceu alguma coisa?<br />
- Quero que pegue a bicicleta e vá até a casa da dona Joana pegar<br />
uma encomenda para mim.<br />
- A dona Joana? A bruxa?<br />
- Já te disse para não chamá-la de bruxa Juca. Será que tenho que<br />
ficar repetindo isso todo o tempo?<br />
- Ah pai, aquela mulher parece uma bruxa! Mora naquela casa<br />
assustadora!<br />
- Deixe de dizer besteiras e vá logo que preciso das peças ainda hoje<br />
para o rodeio que teremos quinta-feira. As peles serão um sucesso de<br />
vendas e quero ver a qualidade do produto.<br />
- Não sei por que você fica matando esses animais, me dá muita pena<br />
e...<br />
- Vai logo fazer o que te mandei moleque.<br />
76
- Está bem pai. Vem Roger.<br />
- Vê se não demora Juca.<br />
- Tudo bem! O Roger e eu voltamos antes das quatorze horas.<br />
- Está bem então. Até as duas da tarde em ponto.<br />
Certo tempo depois...<br />
- Dona Joana!<br />
- o quê é? Quem está me chamando?<br />
- Sou eu, o Juca.<br />
- Ah é você? Eu estava esperando que seu pai viesse pegar as roupas.<br />
Deixei no canto da sala, pode pegar.<br />
Nisso o Roger latiu para ela abanando o rabinho...<br />
- Ah cachorro idiota! Saia daí senão jogo água fria em você.<br />
- Calma dona Joana. Ele só está brincando com a senhora.<br />
- Pulando desse jeito? Chama isso de brincadeira Juca?<br />
- Ah, o Roger é um cachorro bem legal!<br />
- Esse cão é um monstro! Isso sim. Detesto animais, principalmente<br />
cachorros!<br />
- Bom dona Joana. Eu já vou porque meu pai e eu combinamos que<br />
eu chegaria em casa antes das duas para ele começar a organizar essas<br />
roupas.<br />
- Está bem então e, diga ao seu pai que eu estarei lá.<br />
- Tudo bem! Eu direi a ele.<br />
As preparações para o show de rodeio começaram com o pai do<br />
Juquinha estampando camisetas coloridas que a dona Joana fez. O meu<br />
dono nunca concordou, porém com o fato do pai e alguns amigos ficarem<br />
caçando animais da região para fazer peles, e convenhamos, as peles ficam<br />
horríveis! Eles costumam nos chamar para ir junto, mas o Juquinha nunca<br />
aceitou.<br />
Um campo vasto que fica perto da estrada, entre a casa deles e a<br />
cidade começou a ser cercado, algumas árvores foram cortadas para abrir<br />
caminho e arquibancadas foram sendo erguidas. Grades, barraquinhas para<br />
uma grande festa!<br />
Nos outros anos a festa de rodeio foi mais longe, mas esse ano<br />
decidiram fazer aqui perto de casa onde o terreno plano é maior!<br />
Essa festa todo ano passa por aqui no mês de agosto. É a festa do<br />
peão boiadeiro que percorre o país de norte a sul, levando ao público e aos<br />
participantes as emoções da festa.<br />
***<br />
Ao ler o jornal pela manhã tive uma expressão muito grande de<br />
realização. A notícia do rodeio era interessante demais! Era o lugar ideal<br />
para colocar em prática a minha vingança contra o Adamastor, que ficava<br />
77
caçando os animais e matando para se divertir. E era bem provável que eu<br />
fosse encontrar o Fred por lá.<br />
Pensando nas possibilidades, deixei de ir para os arredores da casa do<br />
Juquinha. Fiquei esperando o dia do rodeio.<br />
Quando chegou o dia, pedi que um táxi viesse me buscar e pedi para<br />
ir até o lugar onde haveria o rodeio. O taxista disse que só seria à noite mas<br />
eu disse que queria ver como estava tudo, que queria passear e que já<br />
ficaria por lá.<br />
***<br />
- Já acabou de instalar o sistema de som Gonzales?<br />
- Já Nelson. Já está tudo pronto!<br />
- Então solta a voz homem...<br />
- E começa a festa do pião boiadeiro, recheada de mulher bonita! Lá<br />
no céu a lua acesa, cá na terra a natureza. Em cima do touro está o pião,<br />
saltando da boca o coração...o pasto verde está de prova da coragem<br />
rancheira que corta a alma do homem comum...abriu a porteira do destino e<br />
o touro vai seguindo, vai saltando o touro louco, pião pulando solto rodopia<br />
na arena, grande emoção que invade a cena...é a festa do rodeio que está só<br />
começando...<br />
- Êita sonzeira boa demais! Ficou muito perfeito!<br />
- Claro! Como o gênio aqui não tem problema.<br />
- Deixa de ser convencido homem, e vamos lá ver como estão os<br />
cavalos.<br />
- Calma, o Frederico já está cuidando deles.<br />
- Não sei Gonzales. Eu não confio nesse homem.<br />
- Por que Nelson?<br />
- Não sei, mas ele não me inspira confiança. Desde que está<br />
trabalhando conosco ele é assim, calado e misterioso. Ninguém sabe ao<br />
certo de onde ele veio. Tem grana, mas gosta de trabalhar como pião...<br />
- Ah Nelson. Deixa o cara em paz. Além disso é o único toureiro<br />
bom que temos na equipe.<br />
- E o quê há de errado com os nosso piões?<br />
- Mas é diferente. Eles são montadores. Com a muleta nas mãos<br />
ninguém consegue competir com o Frederico.<br />
- Bom, isso é verdade.<br />
- Então homem. Deixa de cisma e vamos atacar o estoque de cerveja<br />
antes que a senhora Dara chegue. Essa mulher é insuportável! Ela injeta<br />
dinheiro no rodeio mas na verdade o que ela gosta é de mandar e<br />
desmandar na piãozada.<br />
78
- Não. Ela e o marido só chegarão amanhã na hora do show do<br />
Frederico. Temos o caminho aberto.<br />
- Então, o último que chegar é o sapo.<br />
- Ei! Você me pegou desprevenido.<br />
Os dois foram interrompidos de continuarem sua festinha por uma<br />
terceira figura que surgiu de repente:<br />
- E então Nelson e Gonzales...prontos para atacar as moscas?<br />
- Tereza? O quê faz aqui?<br />
-Vocês acharam mesmo que eu deixaria vocês chegarem perto desse<br />
amontoado de caixas de cerveja? Ora, eu não sou tão louca assim. Logo<br />
que ouvi vocês tocando o som eu vim pra cá assegurar que não tentariam.<br />
- Viu só sua besta quadrada, a idéia foi sua.<br />
- Ah, solta a voz...solta a voz. Se eu tivesse esperado, nessa hora a<br />
gente já tinha tomado todas. E outra, pare de ser mal educado e dá boa<br />
tarde ao moço...<br />
- Ei parem de discutir suas criancinhas bobas. Esse é um espectador<br />
do rodeio. Ele quis vir mais cedo para ver os cavalos e os touros. É um<br />
amante dos rodeios.<br />
- É verdade! Eu resolvi vir para ver como se prepara um rodeio,<br />
estive vendo vocês dois trabalharem e vejo que parecem estar muito<br />
ocupados, então decidi vir conversar com a Tereza, foi aí que ela viu vocês<br />
correndo até aqui.<br />
- Ah Tereza...só uma vai, ninguém dará falta.<br />
E ela depois de relutar um pouco...<br />
- Como é que se diz?<br />
- Por favor Terezinha linda...<br />
- Não está bom. Tentem outra vez.<br />
- Por favor Terezinha linda, maravilhosa, docinho de côco...<br />
- Assim está melhor. Tomem, e não apareçam mais aqui até a hora<br />
do rodeio entenderam?<br />
- Sim fofura...<br />
Passados segundos, uns vinte, e alguns milésimos.<br />
- Viu só Nelson? Com jeitinho a gente consegue.<br />
- Está brincando? Pensa que é fácil dizer essas coisas para a Tereza?<br />
- O que tem a ver? Ela é uma mulher gentil, refinada e muito legal!<br />
- Sim Gonzales, mas fico mal de dizer que ela é bonita. Você se<br />
esquece que ela é a mulher mais feia que já conhecemos no mundo inteiro<br />
em nossos anos de estrada?<br />
- Não fala assim. Do pescoço pra baixo ela é divina!<br />
- Não acredito! E aquelas mulheres lá da outra cidade grande? Todas<br />
bonitonas e perfumadas!<br />
79
- Não. Aquelas mulheres não chegam nem aos pés da Tereza. Eu<br />
vejo nela o sentido de ser uma verdadeira mulher, são as atitudes. A Tereza<br />
faz as coisas seguindo seu coração e não a sua razão.<br />
- Gonzales? A cerveja já fez efeito em você?<br />
- Por que está dizendo isso?<br />
- É que você está delirando!<br />
- Pode ser Nelson, mas amanhã depois que eu derrotar o matador eu<br />
vou me declarar pra ela na frente de todos.<br />
- É. Você está mesmo delirando. Nada pode vencer o matador<br />
entendeu? Aquele é o mais cruel touro do mundo, esqueça. Pega outro<br />
touro.<br />
- Pensa que eu sou frouxo é?<br />
Então resolvi interromper a conversa e ver como eles estavam se<br />
sentindo.<br />
Gostei muito desse peão Gonzales. É diferente de todos os sujeitos<br />
que já conheci, diferente em seus ideais e acredita nas coisas mais simples<br />
que existem como o amor, a amizade e a alegria de bem viver, com paz.<br />
Farei dele uma pessoa mais feliz no futuro...ele merece, e eu sou o<br />
destino.<br />
Cheguei aqui assim que os organizadores anunciaram que<br />
precisariam de pessoas para trabalhar. Eu queria ver de perto o que o<br />
Petrúcio iria fazer aqui, então maquinei para que todos estivessem aqui.<br />
Fico imaginando o que estaria planejando aquela cabeça semi-calva<br />
do papagaio Petrúcio. Da última vez que o vi, ele tinha muito ódio no<br />
olhar...nem reparou que era eu, e se ele já está aqui, é porque alguma coisa<br />
muito pesada está para acontecer.<br />
Eu queria que ele aprendesse mais sobre as pessoas para enriquecer<br />
suas virtudes, porém ele virou uma máquina de ódio e vingança. Acho que<br />
me enganei em meu propósito, mas quero ver que mudanças podem<br />
acontecer com o papagaio.<br />
- O matador não vai dar nem pro começo.<br />
Ele tinha um brilho no olhar que chegava a congelar o ar. Ele estava<br />
conversando com a mulher e ao me olhar de lado, confesso que até eu<br />
mesmo tive receio pelas atitudes do Petrúcio.<br />
- Você está pirado Gonzales! Completamente louco!<br />
Seu ódio está maior agora, eu sinto. Eu sou o destino, não deveria ser<br />
assim.<br />
- Você vai ver Nelson. Já estou até imaginando o Tarcísio narrando...<br />
“abriu a porteira onde está o touro matador que sai furioso rumo ao centro<br />
da arena, o pião é valente em cima dele, dá um giro sensacional. A galera<br />
vai à loucura nas arquibancadas e o pião segura o touro à unha no centro da<br />
arena...<br />
80
***<br />
Vim aqui procurando vingança. Sim, de maneira irrestrita, porém<br />
precisei parar para ajudar uma pessoa.<br />
A Tereza é uma mulher muito interessante! Confesso que não<br />
encontrei bondade e simplicidade assim em nenhuma pessoa que conheci<br />
desde que saí da selva. Senti a sua tristeza de uma forma muito rara!<br />
Ela me contou da solidão de uma forma que eu não pensei que um<br />
humano pudesse sentir, parecia eu, no sofrimento dela. Isso me tocou.<br />
Eu prometi para ela que iríamos dar um jeito nessa falta de<br />
perspectiva para a vida, que iria ajudar a ser uma pessoa mais viva, mas<br />
isso tinha que começar pela sua aparência. Eu não falei nada, mas ela era<br />
bem mal arrumada! Não passava nenhuma maquiagem e nem cuidava dos<br />
cabelos. Eu já vi isso, foi na casa do Serginho. A mãe dele usava muitas<br />
coisas no rosto, outras no cabelo. Eu não sabia o nome, mas o cheiro era<br />
inconfundível, por isso, como ainda era cedo, deixei de lado os meus<br />
planos e fui com ela até a cidade para comprarmos produtos de beleza.<br />
Quando o táxi parou, pedi que dentro de duas horas nos buscasse,<br />
pois que tinha muito que fazer no rodeio. O taxista concordou e então<br />
entramos na loja.<br />
Eu cheirava as embalagens abertas para reconhecer os cheiros dos<br />
produtos, pois eu não sabia ler, o destino se esqueceu de providenciar essa<br />
faculdade ao me transformar em pessoa.<br />
Não tive dificuldades. Então fomos até o caixa e dei dinheiro à moça<br />
do caixa, ela me devolveu outros dinheiros e saímos de lá.<br />
Passamos em uma loja que tinha roupas de mulher e eu ajudei a<br />
Tereza a comprar uma roupa que ela gostou.<br />
Gostei muito de conhecer essa humana! Ela não possuía maldade,<br />
tinha simplicidade e dava para perceber que sua alma era singela, que não<br />
tinha interesses nem ousadias em prejudicar os outros.<br />
Nós voltamos para o lugar do rodeio. Chegando lá fui ajudar a<br />
arrumar a Tereza. Lavamos o cabelo, cortamos as unhas...foi a primeira vez<br />
que usei um cortador para unha, eu nunca precisei, afinal cortava tudo que<br />
quisesse com o meu próprio bico. A unha ficou muito bonita depois de<br />
passar o esmalte! Eu sentia que a Tereza estava se sentindo melhor, estava<br />
ficando mais arrumada!<br />
Depois ela foi tomar banho e passou muitos cremes, perfumes,<br />
sabão...quando ela saiu e trocou de roupa estava uma outra pessoa! Muito<br />
mais elegante, com um short jeans e uma blusa com um grande laço na<br />
frente, de botas e um chapéu de rodeio pendurado no pescoço.<br />
Após passarmos a maquiagem eu disse à ela que terminasse de se<br />
arrumar que eu queria comer alguma coisa.<br />
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Eu até fiquei feliz ajudando ela a se arrumar mas minha intenção<br />
aqui era outra, e eu não queria me desviar do meu...<br />
- Petrúcio!<br />
- Vai ficar me vigiando aqui também?<br />
- Olha, só estou preocupado. Não era bem isso que eu tinha em<br />
mente quando o transformei.<br />
- Você acha que pode brincar com os seres assim? Não, os seres não<br />
são marionetes suas, que você faz o que bem quer. Todos temos<br />
sentimentos e emoções, nós amamos e odiamos, sorrimos e choramos,<br />
vencemos ou perdemos. Todo ser é dotado de uma vida, e essa vida é curta<br />
e única. Mas isso você não entende, na verdade você não entende nada.<br />
- Não é isso. Você está enganado.<br />
- Me deixa em paz. Eu vim aqui fazer uma coisa e agora quero paz.<br />
- Petrúcio, há sempre uma outra maneira de resolver as coisas.você<br />
não era assim, sua alma era pura, você aprendeu o ódio. Eu só queria curálo<br />
antes que você voltasse para sua casa. Você é muito importante, pode<br />
fazer coisas que nem imagina.<br />
- Vou começar agora...<br />
Capítulo 4<br />
- Bem-vindos a mais uma sensacional festa do pião boiadeiro. É<br />
muito satisfatório para eu estar narrando esta festa maravilhosa, para todos<br />
os organizadores, principalmente a senhora Dara que é esposa do senhor<br />
Cristóvão, que foi quem tornou possível a realização de um rodeio tão<br />
grande como essa cidade jamais viu.<br />
Ao ouvir esses nomes eu estava perto das báias dos cavalos. Então<br />
parecia que o tempo havia parado. Eu olhei para uma barraquinha e o<br />
destino estava lá com uma roupa de boiadeiro. Ele tomava algum tipo de<br />
bebida e ao olhar para mim sorriu com malícia, lentamente.<br />
Eu olhava para ele com um olhar frio e depois de alguns segundos<br />
virei as costas e continuei andando até as báias enquanto o locutor<br />
continuava falando...<br />
- É bom ver a alegria que se espalha entre todos aqui presentes.<br />
Quem dera que essa alegria fosse eterna entre todos os nossos irmãos que<br />
estão lá longe, espalhados por esse mundão de Deus...quem me dera poder<br />
desenhar esse mesmo sorriso nas faces de todos os meninos que sofrem<br />
com a fome e com o frio, nos viadutos, no sertão. Quero dizer a todos que<br />
para mim é uma honra ser ouvido por todos vocês, e saibam que sempre<br />
vou falar, sempre, enquanto houver forças, para que se mantenha acesa a<br />
chama forte do rodeio que nos une, e se chama amizade!<br />
Das báias eu ouvia o que o locutor falava, enquanto conversava com<br />
os cavalos. Eles contavam coisas horríveis sobre o tratamento dos<br />
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tratadores. Eu fiquei escutando e eles sabiam quem eu era. Pedindo para<br />
ajudá-los acabaram mudando o meu plano de vingança. Foi quando eu ouvi<br />
o locutor falando sobre o touro matador:<br />
- E hoje, como atração inicial temos o peão Gonzales montando o<br />
feroz matador na porteira número seis...<br />
Então eu deixei os cavalos, prometendo ajudá-los, e fui ver o que<br />
aconteceria na arena. Estava curioso sobre o touro matador...<br />
- Olhos atentos para o peão mas principalmente para esse touro que<br />
poucos ousam desafiar. Abriu a porteira do destino e em cima da fera o<br />
menino, valente em cima do touro pra provar que é homem...<br />
A Tereza estava do outro lado da arena, muito bonita e arrumada.<br />
Sorria e batia palmas ao ver o peão Gonzales montando o matador...<br />
- Matador vai saltando, machucando mato e terra com seus passos,<br />
rodopia na arena que de tamanha emoção fica pequena...é a festa do peão<br />
de rodeio que está só começando. Foi vencido o touro matador pelo valente<br />
peão Gonzales, e a arena vai à loucura nas arquibancadas.<br />
Dois amigos dele vêm abraçá-lo enquanto que outros quatro tentam<br />
segurar o touro matador e voltar com ele para a porteira.<br />
- Beleza! Foi demais Gonzales! Você está machucado? Tem alguma<br />
coisa em você que está quebrada?<br />
- Sim Oscar. Eu estou todo quebrado. Me ajuda a chegar lá no<br />
microfone.<br />
- Está bem...já que você está decidido a fazer isso. O Nelson falou...<br />
- Afastem-se, afastem-se. Deixem-no respirar, eu cuido dele.<br />
- Nossa Tereza, como você está bonita hoje!<br />
- Não. Espera um pouco Tereza que eu tenho que falar uma coisa.<br />
Espera aqui na arena.<br />
Eu observava de longe a cena e a Tereza, tendo as duas mãos<br />
entrelaçadas à altura da cintura, olhou para mim sorrindo e entusiasmada.<br />
Notei também que dentro da báia o touro matador estava furioso, porém os<br />
peões já haviam fechado a porteira. A Tereza ficou no centro da arena<br />
esperando para ver o que o Gonzales iria dizer.<br />
- Eu gostaria de dizer que maior que a coragem que tive para<br />
enfrentar o matador estou tendo agora em me declarar para a mulher que é<br />
dona do meu coração, que é a Tereza...<br />
Olhei para a multidão gritando e aplaudindo enquanto o Gonzales<br />
falava e nem percebi que o touro estava cada vez mais furioso. Olhei para o<br />
destino e ele estava muito bêbado, com um copo de bebida na mão e<br />
abraçado com duas mulheres, olhos avermelhados, sorrindo e se<br />
esbaldando...<br />
- Essa mulher que está na arena é o alecrim do meu campo, é o meu<br />
sol...ela é...<br />
83
O matador quebrou a porteira. Gonzales ficou mudo no palco,<br />
congelado deixou o microfone cair, imóvel, incapaz perante a situação.<br />
Quando vi, ele já estava na metade do caminho. Homens gritavam. Os<br />
peões tentavam pará-lo com uma corda.<br />
Era a única coisa que estava dentro da arena, então ele foi direto.<br />
Usava um short jeans e a blusinha que compramos ainda hoje. Tinha os<br />
cabelos lisos e a maquiagem contornava seu rosto.<br />
Foi um segundo muito triste. O matador deu uma chifrada nas costas<br />
da mulher que ainda tentou correr, porém não pôde dar nenhum passo e foi<br />
atingida pelo touro.<br />
Fiquei observando a agilidade das pessoas que trabalhavam no<br />
rodeio em tirá-la e socorrer.<br />
Houve muito tumulto. Havia uma equipe de televisão transmitindo o<br />
rodeio e quando houve o acidente a organização disse que faria uma<br />
coletiva com a imprensa. Na verdade percebi que eram ordens do<br />
Cristóvão. Eles provavelmente iriam até lá para dar a entrevista e evitar que<br />
o rodeio ficasse manchado, subornando os repórteres.<br />
Tudo aqui perto da casa do Juquinha estava diferente! Muito mudou,<br />
até as árvores. Antes havia várias e agora somente algumas restaram. Já se<br />
passou muito tempo desde que eu fui embora com aquele policial, só meu<br />
desejo de vingança não mudou.<br />
Não havia visto ainda o Adamastor nem o Juquinha, mas eu sei que<br />
estava com sorte, pois na mesma noite poderia me vingar do Adamastor, do<br />
Cristóvão que era casado com a Dara, organizadora do rodeio e do Fred,<br />
que iria duelar com o matador. Quer saber, até que o destino fez alguma<br />
coisa de útil pra variar.<br />
Em passos bem silenciosos caminhei até perto do lugar onde o touro<br />
estava sendo castigado por alguns homens com chicotes.<br />
Após receber vários golpes, os homens saíram, deixando o touro com<br />
várias marcas pelo corpo. Então fiz força para subir em uma janela e tentei<br />
conversar com o touro. Ele me compreendia, porém olhava para o chão,<br />
não havia me visto ainda, pensava que era um animal.<br />
Quando me viu se surpreendeu. Parecia assustado.<br />
- Touro, você está bem?<br />
- Sim papagaio. Já estou acostumado a apanhar desses homens. Ouvi<br />
falar da sua história, mas pensei que fosse apenas um conto, uma lenda.<br />
- Infelizmente minha história é real. Mas aqueles homens batem em<br />
você sempre? Talvez pelas maldades que você faz, olha o que aconteceu<br />
hoje...<br />
- Não, eu não sou mal. São eles que me provocam fazendo todo tipo<br />
de malvadeza comigo para que eu me zangue e entre na arena. Tudo o que<br />
eu queria era voltar para meus antigos donos. Eu morava numa fazenda<br />
perto do mar, muito além dessa estrada. Foi lá que nasci e, vendido por<br />
84
meus donos para cobrir uma dívida. Fui revelado ao mundo como o<br />
matador, touro terrível!<br />
- E quanto aos outros animais? Também acontecem queixas?<br />
- Todos nós temos lamentações. Somos marcados com chicote e os<br />
cavalos são mordidos por abelhas e marimbondos para ficarem nervosos na<br />
hora do rodeio. É tudo muito sofrido aqui dentro! Quando as pessoas se<br />
admiram vendo um desses homens se equilibrando sobre nós, nem<br />
imaginam o que ocorre... tanto sofrimento. Não existe boi ou touro que seja<br />
mal, todos nascemos apenas para servir às pessoas em troca de alimento e<br />
moradia. Contentamos-nos com a grama que nasce de graça nos campos e a<br />
água da chuva, e fornecemos carne para que as pessoas sejam alimentadas.<br />
Ao carregar os carros de boi fazemos com devoção ao trabalho e quando<br />
pastamos, até mesmo os animais ferozes afugentamos das proximidades da<br />
casa dos nossos donos. Mas desde que meu dono precisou me vender que<br />
tenho sofrido.<br />
Seguimos uma longa conversa, uma prosa muito inspiradora, até que<br />
eu disse:<br />
- Escute touro: como você já sabe da minha história não vou perder<br />
tempo contando tudo a você...há algum tempo atrás eu fiz um pacto com<br />
um humano e isso modificou a minha vida para sempre, agora estou<br />
disposto a fazer um novo pacto com você.<br />
- O que quer dizer pássaro?<br />
- Estou dizendo que vou tirar vocês das mãos dessas pessoas.<br />
- Sei que você é muito talentoso Petrúcio, e já ouvi histórias incríveis<br />
como a vez em que você enfrentou piratas, também da vez em enfrentou<br />
um gato para salvar um outro pássaro, mas não creio que seja capaz, e<br />
perdoe a minha falta de esperança.<br />
- Se todos fizerem a sua parte dará certo.<br />
Combinamos um plano que tiraria todos os animais do rodeio e eu<br />
poderia me vingar do Adamastor e do Cristóvão.<br />
O matador disse que havia um pó que fazia o corpo todo arder<br />
quando era jogado, que com ele os touros e cavalos eram torturados e era<br />
esse um dos motivos que fazia os animais ficarem saltando. Estava<br />
guardado dentro de uma caixa na porteira número dois. Então eu fui lá<br />
pegar e havia um rapaz tomando conta.<br />
- Olá amigo, tudo bem?<br />
- Oba! Que deseja o senhor?<br />
- Então, eu trabalho pra uma fazenda aqui perto. Estou ajudando a<br />
cuidar dos bichos e estamos dando uma lição no matador.<br />
- Mas como que eu num vi tua cara ainda no rodeio?<br />
- A senhora Dara ligou pro meu patrão hoje cedo e...<br />
- Claro, claro, a senhora Dara. Ela está por aqui?<br />
- Não, ela só vai vir amanhã mesmo.<br />
85
- E o que você precisa pegar, pode ficar à vontade.<br />
- Eles falaram pra pegar um tal pó pra jogar no matador.<br />
- Ah sim, vou pegar pra você.<br />
Esses trabalhadores tinham medo da Dara. Conhecendo aquele<br />
pessoal fico até imaginando o tipo de tratamento que ela dava a essas<br />
pessoas.<br />
Então fui procurar o cavalo Eleu. O matador falou que as camisetas<br />
do Adamastor estavam dentro de uma das báias, justamente a que ficava ao<br />
lado da báia do cavalo.<br />
Fui perguntando aos cavalos e nenhum deles era o Eleu.<br />
Como eu poderia saber qual era a báia? Foi aí que novamente eu tive<br />
um momento de sorte.<br />
Um cão bonito, muito grande veio correndo em minha direção, e seu<br />
dono veio correndo atrás.<br />
Era o Juquinha. Ao vê-lo meus olhos brilharam!<br />
- Desculpa moço, ele não morde não. É um cachorro muito esperto.<br />
Juquinha estava mais crescido, mas era o mesmo garoto! Fiquei<br />
receoso de conversar com ele por causa da emoção, então apenas disse que<br />
estava tudo bem e que ele tirasse o cachorro de perto de mim.<br />
Eu vi que ele estava dentro de uma das báias, lá ao fundo. Era uma<br />
das últimas báias.<br />
Quando cheguei até lá vi que havia muitas camisetas do rodeio e<br />
também roupas feitas com pele de animais. O Juquinha estava tomando<br />
conta das roupas, por isso eu ainda não o tinha visto no rodeio. Ele trancou<br />
a báia e saiu com o cachorro, talvez estivesse indo comer alguma coisa.<br />
Foi aí que vi um animal fantástico sendo trazido por um homem! Foi<br />
colocado no estábulo próximo da báia. Sua aparência tinha uma sábia<br />
soberania! O mais lustroso manga-larga que eu já tinha visto!<br />
Quando o homem deixou o cavalo eu falei que o Adamastor me<br />
deixou tomando conta das roupas, mas que perdi a chave. Disse que<br />
mandei o Juquinha procurar e ele estava demorando.<br />
Então o homem, que trabalhava nas báias me mostrou como se abria<br />
a báia sem usar a chave. Fingi estar surpreso e agradeci.<br />
Essas pessoas demonstram uma ingenuidade bem aflorada! Bom,<br />
mas também eu sou o papagaio Petrúcio, contar histórias é minha<br />
especialidade!<br />
Apressei em derramar o pó sobre as camisetas e as peles e seguindo<br />
conselho do matador saí de lá imediatamente, pois até o pó que ficava no ar<br />
irritava os olhos e a pele.<br />
Então fui até o estábulo para ver de perto o cavalo Eleu. Contei a ele<br />
tudo o que estava acontecendo e ele planejou um plano que era bem melhor<br />
do que o meu, e olha que eu planejava bem.<br />
86
Meu plano seria tirar todos os animais dali, mas quando falei isso<br />
com o Eleu ele até riu, perguntando em seguida como eu faria isso.<br />
Foi aí que entrou a genialidade daquele cavalo, e seu plano embora<br />
maquiavélico demais, funcionaria melhor que o meu.<br />
Aprendi vingança nesse lugar! Eu não possuía maldades agora tudo<br />
que eu faço vai prejudicar alguém de certa forma. Eu que era feliz lá na<br />
selva agora não encontro alegria em nada. Hoje eu sou uma aberração da<br />
vida, não tenho mais a minha identidade, não sou mais o papagaio filhote<br />
que voava na mata, nem sou mais o papagaio Petrúcio que teve vários<br />
donos na cidade, e ora estava numa gaiola, ora solto. Sou agora uma pessoa<br />
como as pessoas daqui, e mesmo sabendo que é por pouco tempo, sei que<br />
nunca mais serei o mesmo papagaio quando voltar à minha forma original.<br />
Retornei então até o local onde o matador estava.<br />
- Escute matador: já estão anunciando a entrada do Fred. Parece que<br />
ele vai montar em um cavalo.<br />
- Sim, ele sempre monta num cavalo no primeiro dia do rodeio. No<br />
segundo dia ele faz a tourada.<br />
- Certo, vou aproveitar a situação daquele acidente lá na arena pra<br />
colocar a mídia contra a organização do rodeio. Depois nos falamos,<br />
preciso correr.<br />
Rapidamente fui procurar um telefone para ligar para a polícia. Eu<br />
precisava aproveitar que estariam todos os meus inimigos juntos para<br />
acabar com a felicidade de todos eles.<br />
Contei que os animais do rodeio estavam sendo torturados nas báias,<br />
falei dos chicotes, das abelhas e marimbondos, do pó que arde...contei<br />
sobre as peles de animais que seriam vendidas, e estavam dentro de uma<br />
das báias...<br />
O atendente parecia não se importar muito com o que eu estava<br />
falando então tive que apelar, contei que um dos toureiros era um indivíduo<br />
procurado, que juntamente com dois que foram condenados recentemente<br />
assaltou uma joalheria anos atrás. O atendente nem mesmo esperou que eu<br />
terminasse e disse que estava mandando as viaturas, que era pra eu<br />
aguardar próximo à saída do rodeio para fazer contato com eles.<br />
Nossa natureza carece de mais cuidado. Hoje mais uma vez percebi<br />
isso. Quis denunciar pessoas que torturam diversos animais para lucrar<br />
milhões com rodeio, quis denunciar o Adamastor que fica caçando animais<br />
para tirar as peles e vender como roupas e não deram importância, mas<br />
quando falei que o Fred estava no rodeio e era um dos toureiros<br />
rapidamente mandaram as viaturas.<br />
O crime é sempre crime, não importa qual seja o crime. Mas hoje eu<br />
vi que mesmo aqueles que precisam proteger a natureza não deram muita<br />
importância à ela.<br />
E então fui pra perto da arena para ver o que iria acontecer:<br />
87
- E do outro lado o alazão valente. Com certeza o espetáculo está<br />
garantido com essa montaria.<br />
Porém os animais já haviam combinado entre si para não saírem da<br />
porteira. Quando ela foi aberta o valente nem se moveu.<br />
As pessoas da platéia começaram a vaiar bem alto ao confiante<br />
alazão valente e ao Fred enquanto ele tentava provocar o cavalo com a<br />
espora. O valente apenas saltava, tentando suportar a dor, mas voltava a<br />
ficar imóvel em seguida.<br />
Então veio caminhando lentamente, pela porteira número seis o<br />
matador. Ao sair de sua prisão roçou a pata esquerda no chão da arena e<br />
liberou seu som de guerra. As pessoas da platéia foram hipnotizadas pelo<br />
som do touro...vibraram.<br />
Então o valente saiu da báia finalmente e ficou sobre duas patas, não<br />
obedecendo aos comandos do Fred, que apenas se equilibrava sobre o<br />
animal, até que não agüentou mais e caiu na terra. Então o valente voltou<br />
pra dentro da báia e na arena ficaram só o matador e o Fred.<br />
O matador foi para cima do Fred que escapava do touro usando a<br />
ginga do corpo, enquanto que outros peões corriam em direção à arena.<br />
Havia poucos peões por perto, já que a montaria seria em cavalo e não<br />
haveria rodeio de touros que são os mais perigosos.<br />
O Fred tentava escapar do touro e quando o touro conseguiu acertar<br />
uma chifrada, Fred segurou os dois chifres do matador enquanto o matador<br />
sacudia a cabeça com violência, arrastando o Fred no chão.<br />
As pessoas que vigiavam as báias dos cavalos foram para a arena<br />
tentar segurar o matador juntamente com os peões.<br />
Aproveitando o momento, abri todas elas, fazendo com que os<br />
animais saíssem e se espalhassem. Dois cavalos chegaram até correr em<br />
disparada em direção à arena, atacando alguns peões.<br />
Lá na arena os peões conseguiram resgatar o Fred, com vários<br />
machucados, mas o matador ainda estava solto.<br />
Levaram o Fred para uma ambulância que ficava parada perto da<br />
arena para atender a todos que se machucassem ou passassem mal.<br />
Os animais soltos correndo de um canto a outro, alguns peões<br />
feridos, as pessoas na arquibancada detestando o show mal feito, e eis que<br />
chegaram as viaturas de polícia, rapidamente fazendo contato comigo no<br />
local combinado.<br />
A reportagem já havia observado a movimentação e vieram correndo<br />
ao encontro da gente.<br />
Era uma confusão imensa! Eu tentava passar as informações para os<br />
policiais, mas a todo momento chegavam pessoas com coceiras provocadas<br />
pelas camisetas do rodeio, havia muita gritaria, então deixei a muvuca e<br />
puxei um dos policiais para fora de todo aquele alvoroço. Disse a ele onde<br />
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estava o Fred, onde estavam as roupas feitas de pele de animal, falei dos<br />
maus tratos que os animais estavam sofrendo.<br />
Com muito custo os policiais conseguiram atender todas as pessoas,<br />
elas reclamavam de coceiras por causa da camiseta do rodeio, em algumas<br />
delas as marcas eram visíveis. Bem o matador falou que esse pó era forte,<br />
agora essas pessoas sabem o que os animais sofrem para poder pular e se<br />
contorcer na arena enquanto elas dão risada e tomam sorvete.<br />
- Venham! Vou mostrar a vocês onde estão as peles. O responsável<br />
realiza caça não autorizada há vários anos e tem causado um profundo<br />
desequilíbrio ambiental na região.<br />
Ao chegar à báia encontrei o Adamastor guardando as peles e as<br />
blusas para sair de fininho do rodeio.<br />
- Senhor Adamastor, o senhor está preso por caça ilegal de animais<br />
silvestres e terá ainda que dar explicações sobre possível intoxicação<br />
provocada por roupas.<br />
- Mas isso tudo não faz sentido, essas roupas estão em perfeito<br />
estado!<br />
A reportagem filmava tudo e mostrando as peles dos animais, falava<br />
em crime contra a natureza. Depois o repórter vindo me entrevistar,<br />
perguntou meu nome, e eu preferindo não falar meu nome disse o que<br />
sabia. Era a minha oportunidade de fazer alguma coisa. Meu coração batia<br />
forte afinal eu tive medo de não estar preparado para o que o destino<br />
colocou em minha frente, um peso muito grande, muito difícil de carregar.<br />
Milhões de pensamentos atordoavam minha cabeça, mas com muita<br />
naturalidade consegui falar...<br />
- Descobri esse esquema de caça de animais quando passei alguns<br />
dias na casa do envolvido, lá presenciei que ele e um grupo de indivíduos<br />
costumavam ir até as matas próximas e traziam várias peles de animais,<br />
cascos, animais mortos. Uma cena muito forte de se ver. Embora o filho<br />
dele, o Juca sempre tenha dado conselhos ao pai para parar com essa<br />
atividade ilegal, o pai nunca deu ouvidos ao filho.<br />
- E sobre a denúncia de que os animais do rodeio estariam sofrendo<br />
maus tratos, isto procede senhor?<br />
- Sim, a denúncia é verdadeira. Presenciei alguns peões batendo com<br />
chicotes em um touro, em outros casos eles chegam a colocar abelhas e<br />
marimbondos para ferroar os animais. Isso os deixa extremamente<br />
agressivos. Os animais que vocês vêem saltando dentro da arena de rodeio<br />
na verdade são dóceis, eles ficam é sofrendo por causa das ferroadas e por<br />
isso ficam saltando. Há ainda casos em que os peões amarram as partes<br />
íntimas deles para que fiquem saltando na arena, e só ficam dóceis<br />
novamente quando conseguem soltar as amarras.<br />
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- Tudo isso que o senhor está relatando é uma denúncia muito grave!<br />
Parece que tem até um foragido da justiça que trabalha para o rodeio. O que<br />
o senhor sabe sobre isso?<br />
- O nome dele é Fred. Ele participou de um assalto a uma joalheria<br />
tempos atrás e usaram um papagaio para entrar por uma fresta e ir jogando<br />
as jóias. Vocês devem ter conhecimento dessa história. Não sei muito, mas<br />
parece que uns guardas colocaram o papagaio num porão sem comida nem<br />
água para que morresse e depois de muito tempo ao abrir o porão lá estava<br />
o papagaio, vivo, como se fosse uma alma penada.<br />
- Sim, transmitimos pela televisão esse fato. Depois o papagaio saiu<br />
voando e se foi, achamos que voltou pra casa.<br />
- Não. Dizem que o papagaio voltou para se vingar de todos aqueles<br />
que fizeram alguma coisa contra ele. Os policiais falaram que o mesmo<br />
papagaio foi até a delegacia levando uma fita com uma gravação dos outros<br />
dois envolvidos no roubo das jóias na qual eles confessavam o roubo.<br />
- Tudo isso é uma história muito impressionante. O senhor acha que<br />
a natureza poderia se vingar assim?<br />
- Todo animal, toda planta, até mesmo as pedras e as águas, existem<br />
no mundo para promover a paz. Entretanto a humanidade com seu desejo<br />
de consumir cada vez mais tem provocado inúmeras feridas, tem caçado os<br />
animais da floresta, matado, cortado uma quantidade muito grande de<br />
árvores, tem poluído os rios. A natureza perde cada vez mais espaço e algo<br />
precisa ser feito, essa destruição precisa parar. Uma vez meu pai disse que<br />
sozinho não podemos fazer muita coisa, mas se um grupo maior tentar<br />
alguma coisa, esse grupo será mais forte. Precisamos preservar a natureza<br />
agora senão no futuro não vai restar mais nada.<br />
Enquanto eu falava o pai do Juquinha era levado para dentro da<br />
viatura, o Fred com o braço enfaixado e os animais eram colocados dentro<br />
dos caminhões. Os policiais disseram que seriam levados para um abrigo<br />
de animais na cidade onde seriam medicados.<br />
O Juquinha que presenciava tudo chegou perto de mim depois que os<br />
repórteres saíram...<br />
- Petrúcio?<br />
- Juquinha, como você sabe?<br />
- Pelo jeito de você falar. Como isso aconteceu?<br />
- É uma história muito complicada. Tem uma coisa, é um homem,<br />
ele é o destino. Fez com que eu virasse uma pessoa.<br />
- Você fez a coisa certa! Mesmo ele sendo meu pai isso tinha que<br />
parar.<br />
- Tem muito tempo que eu não te vejo Juquinha. Você cresceu<br />
muito!<br />
- É...o tempo corre mesmo. Mas o que você vai fazer agora?<br />
90
- Eu tenho mais uma coisa a fazer. Os dois homens que me<br />
trouxeram da floresta. Eles precisam parar. Sempre vão até a floresta para<br />
capturar pássaros. Isso tem que parar agora, só assim eu vou ter paz de<br />
verdade.<br />
- Eu posso ajudar?<br />
- É perigoso Juquinha. Esses homens devem ser perigosos.<br />
- Não importo. Pode contar comigo!<br />
Que coisa. Quem poderia imaginar? Encontrar o Juquinha e<br />
conversar com ele depois de todo esse tempo.<br />
Enquanto as pessoas deixavam o rodeio entrei no caminhão onde<br />
estavam os animais do rodeio e percebi que o motorista pegou o sentido<br />
contrário.<br />
- Ei: você está indo na direção errada, a cidade é pra lá.<br />
- Não se preocupe Petrúcio. Sou eu.<br />
- Quem é você?<br />
- Já não se lembra de mim? Sou o protetor da floresta. As pessoas me<br />
chamam de Curupira, e eu posso me transformar. Estive conversando com<br />
você no dia em que você virou gente.<br />
- E pra onde estamos indo?<br />
- Você não sabe, mas esse abrigo onde os policiais falaram que os<br />
animais ficam guardados não é higiênico, não é seguro, a alimentação deles<br />
é ruim. Eles ficam praticamente amontoados. Adoecem e morrem.<br />
- E onde vamos deixar todos esses animais?<br />
- Vamos levar para o antigo dono do matador. É um conhecido meu,<br />
muito velho e muito pobre, mas com uma generosidade enorme com os<br />
animais!<br />
- Mas você sabe onde ele mora? E o outro caminhão? Quem está<br />
dirigindo?<br />
- Ora Petrúcio, você sabe quem.<br />
Então como num passe de mágica fui transportado para o outro<br />
caminhão e o destino estava dirigindo. É tudo muito confuso então fiquei<br />
só olhando enquanto ele sorria e fumava um cigarro pelo canto da boca e<br />
cantava músicas sertanejas, gritando com a cabeça pelo lado de fora do<br />
caminhão.<br />
Depois de um tempo ele parou o caminhão e desceu. Então disse que<br />
era para eu dirigir, mas eu não sabia, então ele foi dizendo o que era pra eu<br />
fazer.<br />
Um dos momentos mais difíceis da minha vida foi dar a partida<br />
naquele caminhão e guiá-lo pela estrada.<br />
Virar a chave foi fácil, depois pisei no acelerador e virei a marcha. O<br />
caminhão saiu em disparada.<br />
Entrelacei as mãos no volante com medo e fui guiando o caminhão.<br />
91
Eu sentia que não poderia controlar aquele volante, mas toda vez que<br />
pensava em desistir lembrava do sofrimento daqueles animais na<br />
carroceria. Isso me dava forças para continuar.<br />
No retrovisor eu via uma sombras negras que seguiam o caminhão<br />
semelhante a fantasmas. Eram sombras de ódio e batiam nas árvores e<br />
ficavam no meio do caminho. Perguntei ao destino o que era aquilo e ele<br />
respondeu que tudo que fazemos de bom carrega o ódio das pessoas más.<br />
Que esse ódio procura nos tirar a fé, desacreditar nossas boas ações e<br />
nossos sonhos, mas não conseguem nos atingir enquanto nossa<br />
determinação estiver alta.<br />
Passaram-se várias horas e o dia já estava começando a clarear.<br />
Vínhamos pela estrada correndo com muita velocidade. O outro caminhão<br />
estava a minha frente e olhando para o lado não vi ninguém.<br />
Então pela estrada vinha correndo em alta velocidade um homem<br />
com muitas pernas e pés. Ultrapassou o caminhão e parou, longe.<br />
Quando o caminhão começou a se aproximar, percebi que era o<br />
destino, pois tomou sua forma original. Então parei o caminhão.<br />
Desci e fui ao seu encontro. Ele aguardava na beira de um penhasco<br />
que terminava no mar, de onde dava para ver as ondas batendo nas pedras.<br />
É bonito o mar, parece uma floresta só que nesse caso, para os<br />
peixes. O Vernacleto adoraria um lugar como esse.<br />
Enquanto caminhava olhando para o mar lembrava do meu amigo.<br />
Dos saltos que ele dava quando eu jogava pedaços de fruta e pequenos<br />
insetos na água. Tenho saudade de tudo aquilo, da minha casa, das árvores,<br />
da conexão que eu tinha com toda a natureza...<br />
- Por que você fez isso?<br />
- Apenas queria sentir a liberdade. E você precisava se virar sozinho.<br />
Passei a noite toda tendo que virar o volante.<br />
- Não será por que sou um papagaio e não deveria estar dirigindo um<br />
caminhão transformado em humano?<br />
- Ah Petrúcio, você tem um senso de humor...<br />
- O que você quer?<br />
- Tenho que revelar Petrúcio: você é um dos maiores homens que já<br />
segui nesse chão brasileiro. A vida te deu uma decência necessária para ser<br />
invejado.<br />
- Deixa de sermão. Que eu te conheço bem. Fala logo o que você<br />
quer dessa vez.<br />
- Eu vim para te auxiliar na sua jornada. Como pensa que conseguiria<br />
levar seus companheiros por essa estrada sendo um mero papagaio.<br />
- Nós estávamos juntos, e quando vários se juntam numa mesma<br />
causa é mais fácil conseguir as coisas.<br />
- Exato! Agora você chegou onde eu queria.<br />
- O que quer dizer?<br />
92
- Já reparou que nessa cidade inteira somente você está preocupado<br />
com a natureza?<br />
- Infelizmente sim.<br />
- Acredito que você é a pessoa certa para iniciar algo novo, uma<br />
coisa maior do que simplesmente vingança. Você pode modificar a forma<br />
como as pessoas enxergam.<br />
- Essas pessoas não têm bondade no coração.<br />
- Mas você...<br />
- Ei vocês dois: não podemos ficar aqui o dia inteiro.<br />
- O Curupira tem razão. Vamos lá Petrúcio, tira os animais de cima<br />
do caminhão que a viagem chegou ao fim.<br />
- Mas aqui? No meio do nada?<br />
- É necessário. Por acaso acha que os donos dos animais já não<br />
colocaram os capangas para nos seguir? Cristóvão está furioso!<br />
Depois de todos os animais descerem dos caminhões, ficaram na<br />
beira da estrada enquanto que os dois entraram nos caminhões e aceleraram<br />
na direção do penhasco, jogando os dois caminhões.<br />
Eu corri para a beira do penhasco e vi lá embaixo os dois caminhões<br />
destruídos nas pedras.<br />
Então os dois apareceram novamente. E com roupas diferentes, de<br />
peão.<br />
Eles começaram a chamar os animais para o meio do mato, do outro<br />
lado do penhasco e eles iam seguindo em fila de animais, como nas<br />
fazendas.<br />
- Você vai ficar aí parado Petrúcio? Vamos logo que a viagem é<br />
longa.<br />
Então corri atrás deles.<br />
O alazão Eleu ficou para trás e se ofereceu para que eu montasse<br />
nele. Como eu nunca havia feito isso antes tive um pouco de dificuldade.<br />
- Segure-se Petrúcio. Agora nós vamos correr de verdade!<br />
Então começou a correr pelo mato e eu senti uma sensação muito<br />
boa! Era uma liberdade diferente, um alívio para todas as dores que eu<br />
sentia naquele lugar. Eu era um jovem, mas os outros da minha idade não<br />
se pareciam comigo. Os jovens daqui gostavam de se divertir e ir a festas,<br />
mas eu somente possuía a imagem de um humano, por dentro era o<br />
papagaio Petrúcio, e embora pudesse falar e interagir com as pessoas, me<br />
sentia aprisionado.<br />
Correr com o alazão Eleu naquela campina foi maravilhoso!<br />
Remediou meu corpo de um pouco de alegria.<br />
Depois ele parou no alto da campina e eu podia ver os dois lá<br />
embaixo trazendo os animais. O matador bufava bem alto, ansioso para<br />
chegar ao lugar para onde estávamos indo, cheio de saudades no coração!<br />
93
Havia os cavalos Petty, Roque, Alazão e Zumbi, a égua Dalila, os<br />
touros Sanção, Matador, Caititu e Péricles, além do Eleu, que estava<br />
comigo.<br />
O destino vinha pelo caminho conversando com um dos touros como<br />
se contasse piadas. Já o Curupira tinha pressa, precisava voltar logo para as<br />
florestas. Disse que estava apenas fazendo um favor ao destino por serem<br />
conhecidos há muito tempo, mas que tinha suas obrigações em outros<br />
cantos.<br />
Demorei pra perceber, mas a grama onde os animais passavam ficava<br />
amassada, e logo em seguida começava a nascer árvores que foram ficando<br />
cada vez maiores, como se escondessem o caminho por onde estávamos<br />
vindo. Uma parede foi se formando. Era bonita, lembrava a floresta onde<br />
eu nasci!<br />
Quanto mais caminhávamos a estrada ficava menor, transformandose<br />
numa linha fina lá embaixo. A sensação que sentia era única! Estava<br />
entusiasmado! Eu via minhas mãos e meus pés sobre o alazão enquanto<br />
caminhava pelo campo.<br />
Demorou toda a manhã a nossa caminhada. Até que longe avistei<br />
uma porteira e nela um homem aguardava.<br />
Os animais foram se aproximando juntamente com os dois e eu fui<br />
chegando depois com o Eleu.<br />
O homem era velho e os dois já o conheciam, logo desci do alazão e<br />
ele se juntou aos outros animais. Entraram na fazenda e o homem nos<br />
chamou para almoçar, que já estava pronto.<br />
Então almoçamos bastante, afinal todos estávamos com fome. Bem,<br />
na verdade nem sei se esses dois sentem fome, frio ou medo.<br />
Antes de irmos embora fui ver os animais. Estavam todos num<br />
grande pasto e o matador veio se despedir. Agradeceu por tudo que<br />
havíamos feito e me desejou boa sorte em minha jornada, dizendo que eu<br />
também receberia a minha recompensa logo, para ser forte, afinal muitos<br />
animais dependiam de mim.<br />
Então ao voltar para junto dos outros nos despedimos do dono do<br />
lugar e saímos.<br />
No meio do caminho o Curupira falou:<br />
- Bom meus caros, agora tenho que voltar aos meus afazeres.<br />
- Obrigado mais uma vez primo! Fico te devendo essa.<br />
- Não se preocupe...quando menos esperar vai ter que me pagar<br />
mesmo.<br />
Então ele foi virando um redemoinho de vento, começou a ir em<br />
direção do mato e desapareceu.<br />
Então voltamos na direção da estrada, só que por uma outra estrada<br />
de terra, não pelo caminho de onde viemos.<br />
- Você não se cansa?<br />
94
- Não, e você?<br />
- Estou um pouco cansado!<br />
Mas já? E olha que o cavalo se ofereceu pra te levar na ida pra que<br />
você estivesse descansado na hora de descer a serra.<br />
- É que é muito longe, e não estou acostumado a andar. Esqueceu<br />
que sou um pássaro?<br />
- Ora Petrúcio, não precisamos ser tudo aquilo que a vida nos impõe.<br />
Você deve se adequar a cada ambiente. Precisa interagir com a harmonia<br />
daqui, da mesma forma que conseguia com a floresta, somente assim<br />
poderá entender a essência das coisas.<br />
- Não, esse lugar não é igual à floresta. A energia daqui é maldosa!<br />
Não existe a mesma magia que existe lá na minha casa.<br />
- Talvez você tenha razão Petrúcio, talvez tenha...<br />
- Olá! Os moços querem carona?<br />
- Ora amigo, até que seria uma boa. Ainda faltam uns quatro<br />
quilômetros até a rodovia.<br />
- Então vamo entrá oras!<br />
O homem estava de carro, levando sua mulher para fazer compras na<br />
cidade mais próxima dali, e nos deu carona até a rodovia.<br />
Chegando lá descemos e o destino se sentou em uma pedra.<br />
- E aí? Pra onde vamos agora?<br />
- Voltar pra cidade.<br />
- Mas parados aqui? Como pretende...<br />
- Calma Petrúcio! Você é impaciente demais! Nossa carona logo vai<br />
chegar.<br />
- Não há nada nesse lugar e a estrada é deserta.<br />
Então um carro passou por nós e parou logo à frente na estrada.<br />
Então ele se levantou da pedra e ficou aguardando. O carro voltou e<br />
novamente parou perto de onde estávamos. Então uma mulher muito bonita<br />
chegou à janela...<br />
- Demorei não né?<br />
- Claro que não minha querida. Vamos Petrúcio!<br />
Eles se conheciam. Destino foi no banco da frente conversando com<br />
aquela mulher de cabelos compridos que dirigia o carro. Eles sorriam muito<br />
e falavam de coisas que eu não entendia.<br />
Eu fiquei no banco de trás olhando a estrada e procurando prestar<br />
atenção no que eles falavam.<br />
Havia alguma coisa na voz dela que parecia prender a minha<br />
atenção! Era uma voz diferente, como se viesse do mar. Era parecida com<br />
as ondas do mar quando encontravam a areia da praia!<br />
- Petrúcio, você poderia descansar um pouco. Por que não dorme? –<br />
disse ela.<br />
- Não, prefiro ficar olhando a estrada.<br />
95
- A viagem vai ser um pouco longa, se fosse você...<br />
- Não quero descansar. Estou muito...<br />
- Aposto que consigo fazer você dormir com uma música.<br />
Então ela começou a cantar e de repente adormeci. Quase que<br />
instantaneamente.<br />
***<br />
- Mas isso é ridículo! Como é que essas pessoas conseguiram roubar<br />
os dois caminhões e vir até aqui sem que ninguém visse nada?<br />
- É uma história incrível senhor Cristóvão! Estão dizendo que os<br />
homens eram mágicos, teve peão que viu um deles conversando com os<br />
cavalos.<br />
- Seremos motivo de piada se essa história for além.<br />
- Bom senhor Cristóvão, meus homens já procuraram nas imediações<br />
e não existe nenhuma fazenda ou sítio. Como o senhor pode ver a mata é<br />
fechada e nada poderia passar por essas árvores.<br />
- Eu sei Arnaldo, eu sei, recolha seus homens e vamos voltar pra<br />
cidade. Também vasculhamos de helicóptero e não há nenhum sítio por<br />
perto. Na certa eles já planejavam roubar o gado, devem ter trocado de<br />
caminhão e jogaram esses dois na ribanceira para nos despistar.<br />
- Será que eles não morreram e alguém saqueou o gado?<br />
- Eu até pensei nisso, mas como alguém iria subir todo esse gado dos<br />
dois caminhões? É uma ribanceira muito íngreme! Não Arnaldo, na certa<br />
trocaram de caminhão e seguiram viagem.<br />
- Bom senhor Cristóvão. Se o senhor quiser que os homens<br />
verifiquem nas cidades próximas.<br />
- Não, deixa isso pra lá. São poucos animais, não compensa. A perda<br />
maior são os caminhões. Vou voltar pra cidade no helicóptero, quando<br />
vocês chegarem lá me avisem. Vou ter que dar explicações sobre tudo de<br />
ruim que aconteceu no rodeio. Tenho que ver o que os advogados vão<br />
fazer.<br />
- É uma pena mesmo o que houve!<br />
- É incrível como aconteceu tanta coisa ruim ao mesmo tempo! Dois<br />
empregados hospitalizados por causa do mesmo touro e o pior: um deles<br />
era foragido da justiça, vários peões feridos, mais de vinte pessoas<br />
intoxicadas por causa de simples camisetas, dois caminhões roubados, uma<br />
dezena de animais, peles de animais escondidas dentro do meu rodeio...<br />
- Esquisito não é patrão?<br />
- Se eu fosse supersticioso acreditaria que tem alguma coisa<br />
aprontando pra cima de mim.<br />
- Não, essas coisas não existem.<br />
- Pois é...bom, recolha seus homens e voltem para a cidade.<br />
- Certo patrão.<br />
96
- Vamos voltar patrão?<br />
- Sim Jarbas, pode decolar.<br />
- Que estranho!<br />
- O que foi?<br />
- Não sei, essa mata na beira da estrada. Parece que não havia esta<br />
mata antes.<br />
- Deve ser impressão sua. Você tem trabalhado demais!<br />
- E então senhor Cristóvão? Alguma novidade?<br />
- Não Jarbas. Infelizmente não. Vamos decolar. Quero chegar logo à<br />
cidade porque minha esposa está uma pilha de nervos com essa história<br />
toda.<br />
- Também pudera. Essa cidade só tem gente da língua grande, e a<br />
imprensa está em cima disso.<br />
- É verdade. Eu só queria saber quem era aquele rapaz que fez as<br />
acusações à imprensa. Não sei...havia algo de tão familiar nele! É como se<br />
eu já tivesse visto aquele rosto antes, aquele modo de falar.<br />
- Ele falava engraçado! Parecia voz de papagaio.<br />
- Não sei, mas tenho medo que esse rapaz signifique problemas. Eu<br />
tive problemas uma vez, mas foi com um papagaio de verdade, numa<br />
viagem de barco.<br />
- Sério patrão?<br />
- Sim! Tão repugnante quanto aquele rapazinho da entrevista!<br />
Acredita que estávamos fazendo uma viagem de navio, tínhamos uma<br />
fêmea de papagaio e um garoto no navio por coincidência tinha um<br />
papagaio macho. Ele voava pelo navio e acabou encontrando com a Sophia,<br />
nossa papagaia.<br />
- Sim...<br />
- Então acabei comprando o bicho e ele começou a furtar jóias dos<br />
outros tripulantes.<br />
- Que coisa heim!<br />
- É...depois me livrei dele, o navio acabou sendo saqueado mais tarde<br />
por piratas que levaram tudo, até mesmo a papagaia. Depois disso não<br />
viajamos mais de navio.<br />
- Nossa! Que história!<br />
- É...os donos dele estavam fugindo. Fiquei sabendo mais tarde que o<br />
pai do garoto havia assassinado a mulher e o amante dentro de casa, que foi<br />
levar o garoto pra escola e ao voltar pra casa encontrou os dois se<br />
abraçando. Ele foi preso e o filho hoje mora com a avó.<br />
- É...acontece cada coisa.<br />
- Pra você ver Jarbas. Os dias de hoje estão muito violentos! Roubos,<br />
assaltos, assassinatos...está cada vez mais difícil sair de casa...<br />
***<br />
97
Nossa! Eu devo ter dormido muito tempo!<br />
Como foi que cheguei até aqui? Será que o destino que me trouxe? E<br />
aquela mulher...parecia uma sereia! Ela me fez dormir só de começar a<br />
cantar. O Vernacleto uma vez falou de uma criatura mágica que vivia nas<br />
águas, ele a chamava de Mãe D’água mas disse que todos os outros seres a<br />
chamavam de Iara...falava que ela tinha o poder de encantar com a voz.<br />
Será que aquela estranha mulher desconhecida é essa Iara?<br />
Não faz sentido, por que ela estaria aqui? Guiando um carro ao invés<br />
de estar nas florestas? Tudo está tão incompreensível!<br />
Nossa, minha face no espelho...realmente dormi muito mesmo, fiquei<br />
até com marcas!<br />
- Com licença senhor! Vim trazer seu café da manhã.<br />
Não reparei que a porta estava aberta, mas na verdade não me<br />
importo muito com isso. Ainda não assimilei os costumes dessas pessoas.<br />
Os humanos trancam suas portas para se proteger de outros humanos. Isso<br />
não faz sentido! Na floresta, os animais somente se protegem de animais de<br />
outras espécies que vem para atacar ou roubar ovos...aqui os outros<br />
humanos roubam objetos e dinheiro, e até matam.<br />
- Ah sim, muito obrigado!<br />
- Espero que o senhor tenha apreciado a canção da Iara!<br />
- O quê? Como você?<br />
- Acalme-se Petrúcio. Você está muito confuso! Na verdade como<br />
acha que veio parar aqui?<br />
- Eu não sei, eu...<br />
98
- Existem muitos te auxiliando no que você vai fazer. É como se as<br />
forças da natureza tivessem se unido para ajudar a mudar as coisas. Tudo<br />
ficou tão mais difícil! Antes nós protegíamos as florestas, isso foi antes<br />
quando a bondade no coração das pessoas era superior ao desejo de<br />
consumir e obter cada vez mais vantagens. Agora a quantidade de pessoas<br />
que tem bondade diminuiu muito, e com isso a nossa força.<br />
- É sério?<br />
- Sim! Para os humanos somos somente lendas, figuras do folclore,<br />
mas enquanto acreditavam que havia alguém interessado em proteger a<br />
floresta, que havia entidades mágicas que cuidavam dos animais e plantas,<br />
das águas e do ar, nós tínhamos uma força mística, mas os tempos estão<br />
mudando...cada vez mais pessoas vão até a floresta para cortar as árvores,<br />
caçar os animais, apanhar os passarinhos. Às vezes tiram os pássaros do<br />
ninho e ao voltar os pais ficam desesperados pensando que algum animal<br />
os levou, e então por dias clamam na floresta até que a tristeza os consuma.<br />
- Sim! É uma coisa muito triste mesmo!<br />
- Quando você conseguiu soltar os pássaros e fazer com que<br />
voltassem para a floresta os seres mágicos ficaram sabendo e decidimos vir<br />
ajudar você a fazer algo por toda a floresta.<br />
- E como eles estão? Meus pais? Meus irmãos? O Vernacleto?<br />
Diga...<br />
- O Vernacleto é um peixe muito velho, ele está bem maior do que a<br />
última vez que o viu...tem mais de cem mil filhotes...<br />
- Filhotes? Mas no lago só ele vivia...<br />
- Não, o Boto conseguiu umas namoradas para ele. Isso tudo<br />
aconteceu depois que a sua história se espalhou na floresta.<br />
- E quem é o Boto?<br />
- É outra criatura mágica da floresta.<br />
- E meus familiares?<br />
- Estão todos bem! Seus irmãos todos já têm muitos filhotes e até os<br />
filhotes deles já tem cria. Na verdade todos os animais da floresta te<br />
admiram muito e esperam ansiosos pela sua volta.<br />
- E quando vou voltar? Quando isso tudo vai acabar?<br />
- Precisávamos de alguém com um sentimento de vingança e justiça<br />
necessários para auxiliar a equilibrar as coisas, que devolvesse a paz entre a<br />
floresta e a cidade...mas não havia nenhuma pessoa assim nesse lugar, e por<br />
isso o destino precisou transformar a sua natureza.<br />
- Mas eu não sou uma pessoa, sou um papagaio.<br />
- Não importa Petrúcio...podemos ser tudo aquilo que nós quisermos!<br />
Nossas vontades nos levam aos lugares que jamais pensamos existir!<br />
Enquanto existir esperança, sempre haverá uma saída! Agora se apronte<br />
que você tem muitas coisas a fazer. Esqueça um pouco da vingança, você<br />
tem que ajudar toda a floresta.<br />
99
Então o estranho mordomo colocou um cachimbo na boca e foi<br />
virando um redemoinho de vento até desaparecer completamente no quarto.<br />
Eu estava com fome então fui comer o que tinha trago...pão com<br />
gergelim, amendoins, água mineral e bolo com castanhas e nozes. Bom, eu<br />
estava no corpo de um humano, mas ainda era um papagaio não é mesmo?<br />
Lógico que eu não iria querer ovos com bacon.<br />
Então fui caminhar. Queria ver a loja de pássaros. O Rubens e o<br />
outro homem foram presos um tempo atrás, na época em que me acusaram<br />
de ter ajudado os Nestor, Gilmar e Fred a assaltarem a joalheria.<br />
Eles já estavam sendo investigados por causa do comércio ilegal dos<br />
pássaros. Eu só queria saber se ainda faziam alguma coisa errada.<br />
Na verdade o que eu queria mesmo era me vingar deles. Foram os<br />
responsáveis por eu estar aqui e por tudo que aconteceu comigo.<br />
Ao chegar à loja estavam o Rubens e o garoto Teleco...o mesmo que<br />
uma vez me deu o meu primeiro presente...<br />
- Posso ajudar moço? Disse o Rubens.<br />
- Pode sim. Eu estou procurando um pássaro para dar de presente.<br />
- Bom, nós temos canários, periquitos, calopsitas, o que o senhor<br />
deseja?<br />
- Não...eu queria um papagaio. Um amigo disse que você tinham<br />
aqui.<br />
- Não sei do que está falando. Nós não trabalhamos com pássaro<br />
silvestre.<br />
- Bom, é que esse meu amigo tem uma criação de capinha e sempre<br />
compra aqui. Não se preocupe, sou de confiança.<br />
- Teleco!<br />
- Sim pai!<br />
- Tome conta da loja que eu vou lá dentro servir um café pro moço.<br />
- Tudo bem pai.<br />
Então nós fomos para a parte de trás da loja, no mesmo lugar onde eu<br />
fui colocado assim que cheguei à cidade.<br />
- Olha moço, vou ser sincero...pássaro silvestre dá uma grana, mas eu<br />
já tive muitos problemas com isso. Eu até fui preso, tive que pagar uma<br />
multa muito alta, tive que vender meu carro, só sobrou a caminhonete,<br />
venha aqui fora, vou te mostrar.<br />
Então eu vi a caminhonete que me trouxe pra cá. Estava ainda com<br />
aquela gaiola grande. Meus olhos se encheram de lágrimas e eu tentei<br />
disfarçar. O homem estava nervoso e tremia...então disse gaguejando:<br />
- Não precisa disfarçar Petrúcio. Eu sei que é você.<br />
- O quê? Como que...<br />
- Aconteceu muita coisa depois que você ficou preso naquele porão.<br />
Um sentimento de culpa muito grande tomou conta de mim. Em sonhos eu<br />
100
via muita coisa, até que veio aqui um sujeito falando umas coisas, me<br />
dando muitos conselhos.<br />
- É...<br />
- No início eu pensei que era um doido, mas o cara sabia tudo sobre a<br />
minha vida. Disse que todos os dias conversava com você. Falou que você<br />
iria se vingar.<br />
- Eu sei quem é...<br />
- Pois bem Petrúcio, eu estou aqui e mudei. Quero te dizer que eu<br />
sinto muito por tudo o que aconteceu e te peço perdão. Na verdade peço<br />
perdão a todos os papagaios, estou muito arrependido e só peço que não<br />
faça nada comigo e com a minha família.<br />
- Cadê o outro homem?<br />
- Ele morreu no ano passado. Tinha uma doença incurável e não<br />
resistiu...<br />
Comecei a caminhar...<br />
- Aonde você vai Petrúcio?<br />
- Vou terminar o que eu vim fazer aqui. Se você sabe quem eu sou<br />
então deve saber também tudo que está pra acontecer.<br />
- Sim...e obrigado Petrúcio!<br />
- Você não mudou Rubens...tem pássaros presos em gaiolas.<br />
- Sim, mas esses pássaros não são do nosso país.<br />
- São pássaros, e pássaros tem asas para voar, bico para carregar<br />
galhos para fazerem seus ninhos. As árvores são os seus poleiros naturais, o<br />
sol da manhã é a sua luz e a escuridão da noite tendo as estrelas e o<br />
plenilúnio é que é o momento do seu sono. A natureza rege o horário de<br />
acordar, de dormir, de se alimentar. As gaiolas são uma prisão eterna! As<br />
pessoas acham que os fazem felizes dando água, frutas e ração, mas a<br />
natureza os dá isso em fartura quando estão em liberdade. Você viu a<br />
gaiola humana quando esteve preso, e foi alimentado. Você era culpado e<br />
pagou sua pena, estes que estão presos nada fizeram.<br />
Ao olhar para trás vi que o homem chorava e não quis me olhar nos<br />
olhos.<br />
O caso do papagaio repercutiu na cidade. A história de um ser<br />
mágico que virou homem era contada em muitos lugares.<br />
As pessoas morriam de rir ao ouvir o conto. Poucos sentiram ódio<br />
como o Cristóvão que perdeu uma grande quantidade de dinheiro tendo que<br />
indenizar as pessoas que compraram as camisetas do Adamastor.<br />
O Nestor, o Gilmar, o Fred e o pirata Henrico estavam presos, e não<br />
podiam ouvir falar no conto do papagaio Petrúcio que se enfureciam,<br />
outros presos como o Rodolfo achavam engraçado.<br />
Quando cheguei a casa estava lá o destino me esperando.<br />
- O que você quer?<br />
101
- Bom...eu esperava que você não ficasse tão exposto, mas isso até<br />
que ajudou em nossos planos!<br />
- O que quer dizer?<br />
- Acalme-se!<br />
- Nossos planos? Eu não tenho plano algum com você. Isso tudo é<br />
muito confuso e está me deixando louco!<br />
- Bom Petrúcio, é que...<br />
- Ah, me deixe em paz!<br />
- Estou aqui com a intimação para o julgamento do Adamastor. Você<br />
é uma das testemunhas.<br />
- Ótimo! Tenho muito o que falar.<br />
- Você precisa controlar essa raiva Petrúcio...<br />
- Estou bem assim, nada me fará mudar o meu jeito de ser! Não é<br />
você e nenhum outro desses fantasmas que está me atormentando e fazendo<br />
essas coisas todas acontecerem comigo.<br />
- Petrúcio, venha aqui na janela...quero te mostrar uma coisa.<br />
Então ao chegar à janela vi vários pássaros, canários belgas e<br />
periquitos australianos voando pelo céu. Eles pareciam não saber o que era<br />
a liberdade...brincavam no ar, davam voltas, cantavam...<br />
- Nem tudo é apenas vingança Petrúcio. Há uma maneira inteligente<br />
de se resolver as coisas! Hoje você conseguiu libertar muitos pássaros<br />
apenas com palavras...tempos atrás precisou machucar um homem<br />
atacando com selvageria. Você precisa enxergar melhor a natureza das<br />
coisas, parar de ser tão impulsivo e usar essa inteligência que você tem,<br />
você precisa mudar um pouco.<br />
- Sou um animal selvagem! Sou da floresta e na floresta atacamos<br />
para nos defender.<br />
- Mas eu só estou tentando fazer você entender...<br />
- Eu só queria voltar pra floresta e esquecer que um dia vim parar<br />
nesse lugar, mas se você e esse bando de fantasmas não quer me levar de<br />
volta...<br />
- Petrúcio, eu...<br />
- Chega de conversa, me deixa...<br />
- Está bem Petrúcio! Estou tentando te ajudar, mas eu já escolhi você<br />
para isso...vou deixar a sua natureza, o seu instinto agir...<br />
102
Capítulo 6<br />
- Ordem no tribunal! Ordem...<br />
Era ele. O juiz era o destino. Por que esse cara fica me seguindo? Já<br />
estou cansado dele! Será que o destino vai estar em todo lugar? Interferindo<br />
em tudo que eu for fazer?<br />
- Faça entrar a próxima testemunha.<br />
Nisso o guarda chamou a testemunha Joana. Não me lembro o seu<br />
sobrenome.<br />
- Perante a sagrada escritura, jura dizer a verdade, somente a verdade<br />
e nada mais que a verdade?<br />
- Sim meritíssimo.<br />
- Com a palavra o advogado de acusação.<br />
Em meio ao público que assistia ao julgamento estava o menino<br />
Juca. Ele já havia me visto. Eu pensava no que seria da sua vida se o pai<br />
fosse condenado.<br />
Às vezes o juiz batia o martelinho sobre a mesa apenas por não ter o<br />
que fazer. Que figura! Eu olhava para ele ora com raiva, ora com pena.<br />
Passaram-se horas de julgamento até que me chamaram para depor:<br />
- Senhor Petrúcio, conte-nos exatamente o que aconteceu.<br />
- Sim meritíssimo. Quando fiquei sabendo que haveria um rodeio, eu<br />
fui lá para conhecer...eu tinha curiosidade para saber o que era um rodeio,<br />
foi aí que ao chegar vi que muitos animais eram maltratados e...<br />
- Protesto senhor meritíssimo! Disse o advogado do Adamastor e do<br />
Cristóvão.<br />
- Protesto negado. Continue o depoimento.<br />
- Procurei saber mais a respeito e descobri que os touros e os cavalos<br />
eram do réu Cristóvão e de sua mulher Dara. Vi que não eram animais<br />
bravos, mas quando eram provocados ficavam violentos para entrar na<br />
arena de rodeio. Cheguei a presenciar o momento das chicotadas.<br />
103
- Senhor Petrúcio: o senhor acredita que o réu tinha conhecimento<br />
desses fatos?<br />
- Sim senhor meritíssimo. Com certeza o dono desses animais sabia<br />
da situação, mas como ganhava muito dinheiro com os rodeios nem se<br />
importava com a situação dos animais.<br />
- Protesto senhor meritíssimo...<br />
- Ordem, ordem! Protesto negado. Senhor Petrúcio, e com relação<br />
aos casacos de pele se animais, o que o senhor te m a dizer.<br />
Nesse momento eu olhei para o Adamastor, para o Juca, para os<br />
presentes...<br />
- Tenho certeza que o réu Adamastor era quem promovia a caça de<br />
animais nas proximidades de sua casa e pretendia vender as peles no<br />
rodeio.<br />
- Absurdo...<br />
- Não é possível!<br />
- Ordem! Ordem no tribunal!<br />
Não resisti. Não havia fundamento em mentir. Não era vingança,<br />
mas justiça apenas. Não sabia o que iria acontecer com o Juquinha, mas eu<br />
também fui retirado dos meus pais, e os humanos não são melhores que eu.<br />
Ao olhar para o destino novamente ele parecia tranquilizado! Queria<br />
ter certeza que eu faria a coisa certa. Sabia o que eu estava pensando.<br />
Felizmente para o Adamastor ele teve sua pena convertida em<br />
serviço comunitário além de uma multa de valor bem elevado, que foi paga<br />
pelo Cristóvão. Já o Cristóvão teve que pagar muitas cestas básicas, que<br />
foram doadas para creches da cidade.<br />
Na saída do tribunal havia uma quantidade enorme de repórteres que<br />
me cercaram...<br />
- Senhor Petrúcio! Por favor...<br />
- Senhor Petrúcio...<br />
- É verdade que o senhor presenciou pessoas batendo nos animais do<br />
rodeio? Eles utilizam de selvageria com os animais?<br />
- Sim! Esses animais usados em rodeios não são bravos. Os peões<br />
usam insetos para os picarem, um pó que causa ardência e amarram os<br />
animais com cordas apertadas para que fiquem saltando tentando amenizar<br />
a dor.<br />
- E com relação a um dos envolvidos ter praticado caça naquela<br />
localidade? Havia peles de animais? O que o senhor sabe?<br />
- Também pude verificar. Vi muitas peles em forma de casaco. Ele<br />
foi julgado por isso e terá que arcar com os prejuízos, porém prejuízo maior<br />
é para a natureza. Lá naquele lugar já não existem animais, pois todos<br />
morreram.<br />
- E com relação ao rodeio, o que mais o senhor sabe?<br />
104
- Na verdade toda essa cidade é culpada. São as pessoas que vão aos<br />
rodeios, as pessoas não têm consciência das atrocidades que são cometidas<br />
com os animais. Um pássaro na gaiola por exemplo, se soubessem de onde<br />
ele veio, a forma como foi capturado, ser retirado de seu lar, da sua<br />
liberdade, ser impedido de procriar...enquanto a floresta vai ficando cada<br />
vez mais vazia e sem vida. Com isso vocês mesmos não se preocupam.<br />
- O senhor faz parte de alguma organização de proteção animal?<br />
- Não, na verdade é coisa do destino mesmo eu estar aqui<br />
hoje...levando essas palavras para muitas pessoas. Vocês que estão<br />
assistindo a televisão, devem pensar mais na natureza, em proteger os<br />
animais e as plantas, a floresta...muitas vezes é bom ter um pássaro em casa<br />
ou outro animal da selva, mas tenha a certeza: esse animal não deveria ser<br />
retirado da floresta. É lá a sua casa, os animais da selva que nasceram na<br />
selva devem ficar na selva, não na casa de ninguém, presos. Para isso<br />
existem cachorros e gatos que são animais domésticos.<br />
- O senhor acha que a falta de legislação favorece o contrabando?<br />
- Sim! São os homens que fazem as leis dos homens, e por isso<br />
acabam olhando apenas os seus interesses pessoais e partidários. Mas tenho<br />
certeza que muitas pessoas irão se conscientizar a partir de hoje!<br />
- E o que as pessoas poderiam fazer?<br />
- É importante entregar os animais silvestres que estão ilegais nas<br />
casas para o órgão que defende o meio ambiente. Lá os animais serão<br />
tratados e voltarão para a floresta que é o lugar deles. É preciso ainda que<br />
os políticos votem leis para garantir a proteção da natureza, pois pode<br />
parecer pouca coisa, mas se não houver proteção agora, no futuro não<br />
existirá mais nenhum animal silvestre. Os seus netos talvez não tenham a<br />
oportunidade de ver um pássaro silvestre voar...<br />
Então comecei a sentir uma estranha dor no abdômen...<br />
- Senhor, o senhor está bem? Está se contorcendo...<br />
- Se afastem! Está acontecendo alguma coisa comigo.<br />
- Alguém chame uma ambulância...<br />
- Olhem, ele está...<br />
- Minha nossa! O que é isso?<br />
Eu fui me contorcendo, diminuindo de tamanho. Pontas fincavam<br />
minha pele e penas saíam.<br />
Rapidamente voltei a ser o papagaio Petrúcio e as câmeras filmavam.<br />
- Olhem isso: é incrível!<br />
- Um grande milagre, vejam só!<br />
Saí voando assustado do meio daquelas pessoas tentando achar um<br />
lugar para me esconder...cada vez mais alto...olhava para trás e as pessoas<br />
ficavam menores.<br />
Depois de muito voar acabei ficando cansado e parei em cima de um<br />
prédio. Era na saída da cidade e eu estava muito confuso!<br />
105
Fiquei ali um tempo tentando recuperar as energias e havia uma<br />
fadiga enorme nos meus músculos. A respiração era ofegante...<br />
De repente um helicóptero veio na direção do prédio...era o<br />
Cristóvão...<br />
Saí voando o mais rápido que pude e ele veio seguindo de<br />
helicóptero...quando começava a se aproximar eu desviava e ele vinha<br />
atrás...<br />
Tentei voltar para o meio da cidade, voando por entre os prédios e<br />
casas... e ele continuava me seguindo. Tinha o som da morte!<br />
Havia muita raiva em seus olhos...aquele barulho do helicóptero...fez<br />
lembrar de quando eu estava na casa do Juquinha, quando houve o acidente<br />
com o carro...pensamentos confusos me dominavam e eu gritava...<br />
Então pensei que se despistasse o helicóptero conseguiria voar para<br />
os lados da casa do Juquinha.<br />
Comecei a voar mais perto dos prédios e eles ficavam de longe com<br />
o helicóptero.<br />
Lá embaixo muitas pessoas observavam o que estava acontecendo.<br />
Havia muito alvoroço na cidade por causa da reportagem em que eu virei<br />
papagaio em frente às câmeras. Eu tentava despistar a atenção do<br />
Cristóvão, mas ele sempre rodeava os prédios e me achava...<br />
Foi quando muitos pombos começaram a voar das praças, das<br />
árvores, dos telhados e então o céu ficou todo cheio de pombos! Centenas<br />
de pombos voando junto comigo.<br />
O Cristóvão chegou o corpo para o lado de fora do helicóptero e deu<br />
um tiro de espingarda, quase desequilibrando por causa do vento forte<br />
debaixo da hélice do helicóptero...<br />
Os pombos então se separaram assustados com o barulho e saíram<br />
voando em retirada...e eu voltei a voar sozinho.<br />
Novamente o Cristóvão deu um tiro que pegou de raspão em minha<br />
asa esquerda e senti dor, mas continuei voando.<br />
Cada vez mais cansado e tendo somente a opção de voar reto na<br />
direção da casa do Juquinha comecei a voar, perdendo cada vez mais<br />
altitude...sentia que minha vida estava perto do fim...<br />
Ele deu mais um tiro e eu senti o som da munição passar perto de<br />
mim.<br />
O helicóptero vinha logo atrás e eu já estava na saída da cidade...<br />
Então o Cristóvão colocou novamente o corpo para fora do<br />
helicóptero mas não ouvi barulho de tiro.<br />
Com medo e sentindo minha asa esquerda latejando continuei<br />
voando da maneira que podia, e ao olhar para trás vi o helicóptero<br />
descendo rapidamente para o chão e pousando na estrada.<br />
106
Consegui voar ainda mais uns três quilômetros, então acabei caindo<br />
próximo de uma placa. Minha asa sangrava e eu me sentia cada vez mais<br />
fraco.<br />
Não sei se pelo cansaço ou pelo ferimento comecei a ver tudo tão<br />
embaçado, tão cinza...<br />
Então quando abri de novo os olhos estava na casa do Juquinha, com<br />
um curativo na minha asa.<br />
- O que aconteceu?<br />
- Eu te encontrei perto da estrada Petrúcio. Saiu no plantão do jornal<br />
no meio do desenho que um homem havia sofrido um acidente aqui perto e<br />
eu fui lá pra ver.<br />
- É...<br />
- Nossa, essa história é muito maluca! Mostrou você na televisão<br />
virando papagaio, foi incrível! Muitas pessoas estão procurando você e...<br />
- O que aconteceu com o homem?<br />
- Não sei. Quando eu cheguei lá um helicóptero já tinha socorrido ele<br />
no chão. A reportagem só falou que ele foi levado inconsciente pelo piloto<br />
do helicóptero. Algumas pessoas disseram que ele caiu do helicóptero.<br />
Quando fui ouvindo os comentários fiquei sabendo que era o dono do<br />
rodeio, que ele estava te perseguindo, então voltei procurando você pelo<br />
caminho, mas não achei, foi aí que trouxe o Roger para me ajudar.<br />
- Que coisa...estranho, não estou sentindo mais a dor na asa. Esse<br />
curativo é bom mesmo!<br />
- Olha Petrúcio: na verdade você quebrou a sua asa esquerda. Eu até<br />
tentei...<br />
- O que quer dizer Juca?<br />
- Você não tem mais a asa esquerda Petrúcio. Eu demorei muito pra<br />
te achar e já estava quase morto. Sua asa estava cheia de bichinhos. Eu tive<br />
que cortar. Tem três dias que você está aqui em casa, esses dias deixei você<br />
no meu quarto escondido do meu pai e só agora você conseguiu abrir os<br />
olhos. Eu estava te alimentando com fubá e água numa seringa...<br />
- O quê?<br />
- Foi a única solução. Eu fiz esse curativo pra parar de sangrar senão<br />
você morreria.<br />
Fiquei imóvel...pensamentos voavam em minha cabeça numa<br />
velocidade muito grande.<br />
Minha vida! Voar pela floresta em cada manhã, entre as folhas e os<br />
galhos...ir até o lago...<br />
Mutilado! Eu que era alegre e possuía esperança agora me vejo sem<br />
lugar pra onde ir...<br />
Deixasse morrer naquele mato ao lado da estrada onde caí. Foi<br />
justamente o carinho do Juquinha que se tornou a minha decepção mais<br />
dolorosa, mais difícil de aceitar.<br />
107
Desde o primeiro instante em que vim parar aqui eu só pensava em<br />
voltar pra casa. Foram dias e noites muito longos de sofrimento! Eu<br />
pensava na floresta, em todas as formas de vida...eu tinha uma conexão<br />
espiritual com a seiva da vida.<br />
Era o papagaio selvagem, sem nome, mas com liberdade! Minha<br />
alma era como lava de alegria a cada manhã, e ao recolher o vôo da tarde,<br />
quando o sol estava se pondo, cansado e com o papo cheio de alimento,<br />
suspirava as brisas da noite, quando as rosas da floresta perfumavam o ar e<br />
as estrelas cintilantes acesas no céu tornavam o céu da floresta o mais<br />
bonito do mundo!<br />
- Em que eu posso te ajudar Petrúcio? Se houver alguma coisa que eu<br />
possa fazer por você.<br />
- Leva até a cidade. Ainda é cedo e o seu pai só volta mais tarde. Vou<br />
até a loja de pássaros. Quero morrer na floresta.<br />
- Você não vai morrer Petrúcio. Vou cuidar de você. Você vai ficar<br />
bem...<br />
- Juquinha!<br />
- Tudo bem Petrúcio.<br />
O Juquinha chorava enquanto pegava uma mochila e colocava o<br />
cestinho na bicicleta. Ele colocou também uma garupa adaptada para o<br />
Roger.<br />
Eu fiquei olhando para o curativo na minha asa, olhei para o<br />
horizonte, abri a asa direita e o toco de asa que restou da esquerda. Meus<br />
olhos se encheram.<br />
Então quando ele terminou de colocar o cestinho nós fomos pela<br />
estrada a caminho da cidade.<br />
O Juquinha se desenvolvia rapidamente! Já não brincava como antes<br />
e sua estatura aumentava rápido! Não me esqueço nunca do dia que nos<br />
encontramos no caminho, perto de sua casa, quando fui deixado naquela<br />
casa pelo Nestor e pelo Gilmar.<br />
E hoje depois de tanto tempo, quando eu estava mais necessitado de<br />
viver a vida que eu sempre vivi, com saudade da minha floresta querida,<br />
rever meus amigos e irmãos, é justamente o dia mais triste da minha vida.<br />
Embora o carinho do Juquinha e sua preocupação comigo pouparam minha<br />
vida, é como se meu coração o culpasse por não ter deixado que eu<br />
morresse sem ter o desgosto de não poder mais voar.<br />
Hoje sou um papagaio enfraquecido de saúde e de esperança. A<br />
folhagem do tempo cobre o solo da minha vida. Sinto que tão breve<br />
deixarei a existência mortal para encontrar a tal felicidade que o destino me<br />
prometeu na aurora da minha conturbada história.<br />
Ele falou que iria me ajudar. Falou que depois disso tudo viria a<br />
recompensa. Eu acreditei nele. Agora estou aqui nessa situação. Eu odeio o<br />
destino!<br />
108
Vejo com dificuldade tudo ao meu redor...vista cansada. Estou com<br />
saudade da floresta! Que me importa o vigor e a saúde? Queria só a<br />
felicidade!<br />
Enquanto viajava em pensamentos tão distantes, grandiosos, o<br />
Juquinha contava sobre tudo que havia acontecido depois da confusão no<br />
rodeio.<br />
Falou que o peão Gonzáles acabou assumindo o relacionamento com<br />
Tereza e que ficaram noivos. Que ela começou a cuidar mais da sua beleza,<br />
que foi por minha causa, que eu incentivei ela a descobrir sua beleza e se<br />
cuidar. Disse que a cada dia que passava ela ficava mais bonita.<br />
O Nelson na verdade era o destino, essa era a sua identidade. Ele<br />
começou a cantar músicas de samba nos bares da cidade. Continua solteiro<br />
mas tem mais de dez namoradas.<br />
Falou que o Adamastor agora está trabalhando na roça, que fica o dia<br />
todo no trabalho e à noite volta pra casa. Sorrindo falou pra mim que acha<br />
que ele está namorando a dona Joana escondido, aquela que parece bruxa e<br />
que fazia os casacos com as peles de animais que o Adamastor e seus<br />
colegas caçavam.<br />
Então de repente o Juquinha ficou calado e parou a bicicleta. No<br />
caminho havia dois lobos, na margem da estrada. Estava prestes a nos<br />
atacar quando o Roger desceu da garupa e começou a encarar os dois lobos.<br />
O Roger era um pastor alemão grande e os lobos eram um pouco<br />
menores que ele, mas eram dois. Eu estava dentro da caixa e o Juquinha ia<br />
fugir. Foi quando falei pra ele ajudar o Roger, que sozinho não se pode<br />
fazer muita coisa, mas quando existe união tudo fica mais fácil.<br />
Então ele pegou umas pedras e jogou na direção dos lobos. O Roger<br />
começou a latir e os lobos acabaram entrando na mata à beira da estrada.<br />
Continuamos então a caminho da cidade.<br />
O Juquinha demorou uma hora pra chegar até as primeiras casas.<br />
Para que as pessoas não me vissem ele me levou numa caixa com furos.<br />
Fui dizendo a ele o caminho para a loja de pássaros e nos aproximávamos<br />
cada vez mais de lá...<br />
Chegando lá, já não havia a loja de pássaros. Somente mesas,<br />
cadeiras e alguns homens pintavam as paredes.<br />
O Juquinha disse que queria falar com o Rubens, então um dos<br />
pintores foi chamá-lo.<br />
- É verdade! Aí quando eu falei que o Petrúcio estava dentro da caixa<br />
no cestinho da bicicleta o homem se assustou. Falou rapidamente para<br />
entrarmos e dentro da casa fez questão de pegar a caixa e abrir para que o<br />
Petrúcio saísse.<br />
Então o Rubens foi lá dentro e trouxe biscoitos, chocolate quente e<br />
serviu ao Juquinha. Trouxe também ração numa tigela e deu ao Roger.<br />
109
Ele falou que não trabalharia mais com pássaros. Que estava<br />
terminando de pintar a loja e que seria uma lanchonete. Disse que pensou<br />
muito sobre o que eu havia falado, que se sentiu mal por manter os animais<br />
presos em gaiolas e que trabalharia com outra atividade...<br />
- Mas Petrúcio...em que eu posso te ajudar?<br />
- Quero que me explique o caminho pra voltar pra floresta, de onde<br />
vocês me tiraram.<br />
- Petrúcio. Lá é muito longe, não dá pra ir de bicicleta. Tem que ser<br />
de carro.<br />
- Se o senhor explicar eu dou um jeito.<br />
- Não Juca, não é tão fácil assim. Petrúcio, fique aqui. Eu prometo<br />
que levo você de volta para a floresta no sábado, assim que terminar de<br />
pintar a lanchonete.<br />
- Mas é que...<br />
- Deixe Juquinha. Pode deixar. É o que eu quero.<br />
- Petrúcio...<br />
- A única coisa que eu quero agora é voltar para a floresta. Não tenho<br />
muito tempo de vida e só quero sentir de novo a alegria de estar em casa.<br />
- Vou sentir saudade Petrúcio!<br />
- Estarei sempre com você Juquinha! Enquanto tivermos esperança<br />
haverá sempre uma energia nos unindo, não só nós dois, mas a todos<br />
aqueles que protegem a natureza. Nisso o Rubens deixou cair uma lágrima.<br />
Os olhos do Juquinha estavam cheios de lágrimas. O Roger estava do<br />
lado de fora da loja, esperando o Juquinha. Ele ficou um tempo ainda me<br />
olhando e eu fui caminhando em direção à cozinha.<br />
- Adeus Petrúcio!<br />
Eu não respondi nada. Fiquei imóvel, de costas para ele enquanto ele<br />
virava as costas e saía da casa. Então eu me virei e olhando o garoto sair<br />
disse um adeus baixo, triste e fraco!<br />
110
Capítulo 7<br />
Nos outros dias eu permaneci dentro da casa, sem coragem de nem<br />
ao menos olhar para o sol aqui nessa cidade. Ficava o dia inteiro na janela<br />
da cozinha esperando o tempo passar, ansioso e angustiado depois de tudo<br />
que aconteceu. Sentia o peso de toda a minha vida!<br />
Os pedreiros que estavam trabalhando na reforma da loja passavam<br />
perto de mim e eu contava piadas para eles sempre que pediam. Minha voz<br />
era triste e minhas piadas eram as mesmas, mas eu sentia algo diferente nas<br />
piadas, havia mais sabedoria!<br />
O Rubens evitava olhar para mim. Parecia sentir vergonha. Até que<br />
no sábado, pela manhã, pouco antes de sairmos ele me chamou...<br />
- Petrúcio. Preciso te contar uma coisa.<br />
- Fale Rubens.<br />
- O Amadeu, meu antigo sócio não está morto. Na verdade eu tive<br />
medo de você, medo que fizesse alguma coisa.<br />
- Você mentiu?<br />
- Olha Petrúcio. Ele ainda é meu sócio, na verdade um tempo atrás<br />
ele abriu uma lanchonete na cidade. Ele me aconselhou a sair antes desse<br />
negócio de pássaros. Começou a ganhar um bom dinheiro na lanchonete.<br />
Ele ficou com medo depois daquilo que aconteceu na loja, quando você<br />
atacou.<br />
- Sei...<br />
- Fiquei com medo que você fizesse algo de mal para ele. Ele<br />
colocou o seu nome na lanchonete e hoje ela é famosa na cidade! Servem<br />
111
muitos sanduíches diferentes e o Amadeu se tornou um defensor da causa<br />
animal, realmente um protetor do meio ambiente! Ele mudou muito!<br />
- E por que você não me falou isso antes?<br />
- Eu estava com medo de você...<br />
- Medo de mim? Eu já nem posso mais voar, já não posso mais fazer<br />
nada!<br />
- Não, não é medo de você bicar ou arranhar com as unhas, é medo<br />
da sua pessoa Petrúcio.<br />
- Conversa...<br />
- Petrúcio, tem mais uma coisa...<br />
- O que é?<br />
- Ele está aqui. Quando contei pra ele a história ele veio para falar<br />
com você. Você aceita falar com ele?<br />
- Deixa Rubens, eu converso com ele.<br />
- Então você é o Amadeu?<br />
- Petrúcio...eu quero te pedir desculpas por tudo que<br />
aconteceu...dizer que eu sempre carregarei essa culpa imensa por tudo que<br />
aconteceu, por toda a minha vida.<br />
- Eu também Petrúcio.<br />
- Sabe Petrúcio...essa história toda serviu para abrir a mente de<br />
muitas pessoas. Você trouxe uma nova consciência a muitas pessoas aqui<br />
nessa cidade...<br />
- Tenha certeza que nós vamos fazer o possível pra preservar cada<br />
vez mais a natureza Petrúcio. Agora entendemos o sentido das coisas.<br />
- Nós precisávamos de algo para abrir nossas mentes, da enorme<br />
besteira que estávamos fazendo. Por gostar de animais achávamos que<br />
estávamos fazendo o bem prendendo na gaiola, mas isso tudo só serviu<br />
para o nosso próprio ego e nada mais.<br />
- De agora em diante tudo vai mudar Petrúcio.<br />
- Sabe Petrúcio...quando vi aquela reportagem fiquei muito<br />
constrangido! Um sentimento de culpa muito grande tomou conta de mim.<br />
Agora sei o quanto a natureza pode ser forte, a ponto de te transformar<br />
numa pessoa para vir até aqui e defender a floresta, pois nenhum homem<br />
fez isso.<br />
- Eu queria dizer que o dia em que vocês dois me capturaram na<br />
floresta, eu estava com fome, e ao ver que havia aquela quantidade de<br />
sementes fui até lá para me alimentar. Eu senti desespero quando aquela<br />
caixa se fechou.<br />
- Eu sei Petrúcio, nos desculpe!<br />
- Ao olhar para a floresta ficando pra trás senti que minha vida ficava<br />
pra trás. É assim que se sente cada animal que é retirado da mata e trazido<br />
para a cidade para servir de enfeite...olhem o que aconteceu comigo, vejam<br />
tudo que foi causado por vocês...<br />
112
Então eu não disse mais nada e os dois de cabeça baixa foram lá<br />
arrumar a caminhonete para irmos até a floresta.<br />
O Rubens falou que esta seria a última vez que aquele gaiolão seria<br />
usado.<br />
Às onze horas e trinta e quatro minutos o velho motor do animal de<br />
ferro rugiu novamente, para me levar embora da cidade fria que consegui<br />
requentar com um conto.<br />
No caminho as lembranças de toda a minha vida passavam por meus<br />
olhos.<br />
Como se tivesse acontecido a um segundo atrás: num dia chuvoso na<br />
selva, o último rebento da ninhada assinando sua rubrica no livro da vida.<br />
Minha vida na floresta foi feliz! Voei junto dos meus irmãos sob a<br />
proteção dos nossos pais.<br />
Até parece que foi ontem que o Serginho me comprou na loja de<br />
pássaros e eu, um filhote de papagaio fui levado por ele à sua toca branca<br />
de janelas azuis.<br />
Parece que foi ontem que o Nestor e o Gilmar me pegaram na casa<br />
dele e acabamos indo parar na casa fora da cidade.<br />
Parece tão recente eu ter conhecido o Juquinha e acabar retornando<br />
para a casa do Serginho.<br />
Fui parar no navio onde conheci a Sophia...ah! Sophia...qual será o<br />
nome que ela colocou em nosso filhote? Jamais saberei...<br />
Parece que foi ontem que conheci os piratas e os pássaros que<br />
estavam no navio deles...pássaros?<br />
Nesse momento, enquanto a caminhonete passa pelas ruas, vejo<br />
sobre os telhados das casas uma fileira imensa de pardais batendo as asas,<br />
pardais e pombos com seu arrulho.<br />
Nas árvores muitas rolinhas voando de um lado a outro numa cena<br />
emocionante!<br />
No alto de um poste havia um urubu e quando o carro passou ele<br />
ficou rente ao sol. Era como se houvesse um globo dourado ao redor do seu<br />
corpo. De asas abertas...<br />
Em algumas calçadas ratos e baratas se agitavam ao me ver passar.<br />
O silêncio urbano naquela cidade no horário do almoço foi quebrado<br />
quando eu, em ato de amistosa despedida batia a asa direita e o que restou<br />
da asa esquerda, gritando...não palavras, as inúmeras palavras que aprendi,<br />
mas o som nativo dos papagaios.<br />
Os pássaros da cidade respondiam com muito barulho! Bem-te-vis,<br />
andorinhas, pardais, pombos, sabiás...todos eles ao mesmo tempo...<br />
Juntaram-se a eles os cães com o latido, as cigarras, os grilos...e com<br />
um belo vôo digno de primavera as andorinhas-de-sobre-branco.<br />
Nesse momento o carro deixava a última rua da cidade, e entrava na<br />
rodovia que iria me legar para a floresta.<br />
113
Lembrei da minha prisão e do dia em que saí daquele porão onde fui<br />
colocado para morrer. Várias vezes as pessoas aqui fizeram maldades<br />
comigo...fui abandonado, jogado ao mar, colocado num porão sem comida,<br />
atiraram em mim...<br />
Lembrei da vingança...<br />
Eu me tornei um humano graças ao destino para ajudar os animais do<br />
rodeio e para mudar a cabeça das pessoas. Eu poderia viver entre eles, mas<br />
meu futuro não é esse...sou filho da selva, não um filho da cidade.<br />
Enquanto a estrada passava, lembrei do rodeio em que eu conversei<br />
com o touro matador e conheci o cavalo Eleu.<br />
Lembro de mim caindo naquela beira de estrada com a asa<br />
machucada e depois tudo se apagando...<br />
Chegou ao momento em que sou colocado na mesma gaiola que me<br />
trouxe para esta cidade, no mesmo carro, guiado pelos mesmos homens que<br />
me trouxeram para cá.<br />
No caminho...vejo em cada copa de árvore um pássaro cantando<br />
quando eu passo. Depois que passo param de cantar e voam.<br />
Antes de chegar à floresta, quero revelar um segredo que irá ficar<br />
aqui nessa mesma cidade: eu nunca tentei ser criativo, ou alegre, triste,<br />
esperto...<br />
Tudo o que eu fiz foi ser eu mesmo! Jamais procurei ser uma outra<br />
pessoa para agradar os outros. Consegui ser querido por muitos e odiado<br />
por outros tantos, fazendo apenas o que o meu instinto ordenava. Pois bem,<br />
enquanto eu vivi como homem entre os moradores da cidade, nas noites em<br />
que estava triste escrevia contos, piadas, histórias...também escrevi tudo o<br />
que os animais pensam das pessoas, da forma de tratamento, também sobre<br />
a relação espiritual com a natureza.<br />
Sei dos movimentos que tiveram início quando dei aquela entrevista.<br />
Muitas pessoas passaram a enxergar a natureza de uma forma diferente,<br />
mas não é ainda o bastante. Enquanto houver um único animal ou uma<br />
única árvore sendo maltratada, ainda existirá infelicidade.<br />
Antes de ir para aquele julgamento peguei aquelas folhas e coloquei<br />
dentro de um envelope. Deixei em algum lugar dessa cidade para que<br />
quando alguém um dia encontrar possa revelar ao mundo.<br />
Sei que esses contos que escrevi serão contados a muitas<br />
pessoas...sei que as piadas farão muitas pessoas darem gargalhadas...sei que<br />
as histórias trarão mais experiência à vida das pessoas.<br />
Então a caminhonete parou em frente a uma enorme árvore.<br />
- Petrúcio: a sua casa é aqui!<br />
- Juro Petrúcio, que nunca mais voltaremos aqui na floresta, e assim<br />
que chegarmos à cidade vou destruir esse gaiolão.<br />
Eu estava muito zonzo. Pedi para que o Rubens me tirasse do gaiolão<br />
e colocasse no chão. Senti que eu não teria forças para pular até o chão.<br />
114
- Eu perdôo vocês dois.<br />
Só isso, e eles foram embora. Tiveram vergonha de olhar pra trás.<br />
Olhando para o interior da mata, me volto para ela enquanto um<br />
vento calmo toca minhas penas.<br />
Cada vez que minhas patas tocam o solo e vou me aproximando do<br />
interior da mata ouço os bem-te-vis cantando alto, misturando o som ao<br />
som do azulão.<br />
Umas quarenta vezes o bem-te-vi cantou, anunciando aos pássaros da<br />
floresta...<br />
Foram se aglomerando nos galhos das árvores...muitas espécies,<br />
muitas cores, muitos sons diferentes.<br />
Quando eu fui chegando mais ao centro, na terra cheia de húmus e<br />
folhas secas parei de caminhar. Meu corpo cansado começou a ficar<br />
amolecido e já tinha dificuldades para ficar de pé.<br />
Era tarde e alguns poucos raios de sol passavam por entre as folhas e<br />
as copas das árvores e chegavam ao meu corpo. Quando um deles alcançou<br />
meus olhos lembrei das manhãs, onde eu ia até a copa daquela grande<br />
árvore para ver o sol...<br />
Nas árvores vários pássaros me observavam, entre eles o pica pau<br />
Jackson, o curió Tadeu com dezenas de outros curiós, o canário-da-terra<br />
João, muitas jandaias, coleiras, sabiás, bem-te-vis...azul...azulão...<br />
Andorinhas...andorinhas...<br />
Araras...<br />
Araras amarelas e azuis, grande quantidade delas, se apertando na<br />
árvore para me ver...<br />
Foi ficando escuro...<br />
Vi meus irmãos e meus pais, na verdade era um vulto deles,<br />
acinzentado...<br />
Um vulto acinzentado...<br />
Sentindo longe um canto embaraçado, que já não pude identificar<br />
que pássaro seria...<br />
Foi dando desespero...<br />
Não havia força para andar...<br />
Novamente um raio de sol alcançou um dos meus olhos...<br />
Meu corpo balançava...levemente...<br />
O sentido da vida...<br />
Caí no montinho de terra onde morri e a última coisa que ouvi antes<br />
de falecer, com os olhos se fechando e tudo ficando escuro foi o canto de<br />
todos aqueles pássaros e aves ao mesmo tempo. Um canto alto se<br />
despedindo de minha alma, que nesse mesmo instante abandonou meu<br />
corpo.<br />
Este foi o fim de minha vida.<br />
Não significou tristeza, mas liberdade!<br />
115
Meu corpo foi consumido pela terra e se misturou ao húmus, à seiva<br />
da vida que mantém viva cada árvore da floresta.<br />
Eu venci, pois protegi a floresta contra as pessoas, mesmo sozinho e<br />
contra animais muito mais nocivos que o gavião...<br />
Eu voltei pra casa! Esse foi o desejo que manteve viva a minha<br />
esperança. Era esse o sentido da minha vida e tudo que fiz foi por amor!<br />
E mesmo na minha morte ajudei a manter a vida da floresta. Naquele<br />
mesmo lugar nasceram vários girassóis, sempre voltados para onde vem a<br />
luz do sol, e minha alma foi para o céu dos passarinhos.<br />
Fim!<br />
“Às vezes, por sermos inexperientes demais nos assuntos da vida,<br />
não conseguimos dar o valor certo a um bem tão valioso que possuímos.<br />
Antes tivesse um vendaval o levado para muito longe daqui, onde<br />
houvesse alegria e paz em seu coração, do que vê-lo perdido entre desejos<br />
de vingança e esperança de voltar para o seu mundo..<br />
Antes tivesse a mão do tempo o transformado numa estrela que eu<br />
pudesse ver toda noite, ao invés de sua imagem se desintegrar cada vez<br />
mais como farelos nas minhas lembranças mais tristes daquele tempo que<br />
se foi para nunca mais voltar.<br />
Eu fui injusta e ingrata, por vaidade, e fui indigna por atitudes, mas<br />
recebi dele muito mais do que eu poderia, mais do que eu merecia...<br />
Nos dias de hoje a dignidade custa caro e existem dois mil, cento e<br />
oitenta e três canalhas para cada digno que se revele, ou até mais.<br />
O amor é o mais perverso de todos os sentimentos, porque é o mais<br />
importante e isso quem me ensinou foi a criatura mais importante de minha<br />
vida, depois de meu filhote Giancarlo. Um dia foi despertado em minha<br />
vida e muitos meses atrás, a vida me tirou, tirou os seus olhos dos meus<br />
numa despedida.<br />
Peço desculpas a alguém se o fiz chorar, se magoei...é que nem tudo<br />
na vida é como esperamos que fosse, e eu...”<br />
Papagaia Sophia<br />
“Bom...eu nasci e cresci sem a presença dele, aqui nessa mesma casa.<br />
Quando a mãe foi achada numa praça, toda suja de terra, ela estava prestes<br />
a botar um ovo, e desse ovo eu nasci. Ela disse que foi poucos dias depois<br />
que ela veio para essa casa. Que nossos donos ficaram muito contentes e<br />
cuidavam muito dela enquanto ela estava me chocando. Quando nasci eles<br />
ajudavam a me alimentar com papinha.<br />
116
Desde pequeno quando perguntava para minha mãe ela falava muitas<br />
coisas dele, sempre com um brilho no olhar, de admiração e saudade.<br />
Desde pequeno sentia muito orgulho do meu pai! As histórias dele sempre<br />
me motivaram a ser forte diante de qualquer situação.<br />
O meu pai foi o famoso papagaio Petrúcio, mas mesmo que fosse um<br />
papagaio qualquer, queria que tivesse me visto nascer e voar pela primeira<br />
vez aqui no quintal desta casa onde vivo com a mãe e nossos donos, que<br />
são um casal de idosos, enquanto eles se divertiam me ajudando quando eu<br />
ficava quieto no chão.<br />
Aqui numa das praças do bairro fizeram uma estátua de um<br />
papagaio. Quem mandou fazer foi um homem rico chamado Amadeu. A<br />
mãe falou que é idêntica ao pai, e que esse homem foi quem trouxe o pai da<br />
floresta pra cá, que depois de muito tempo se arrependeu de prender<br />
animais e virou outra pessoa. Algumas vezes a mãe voa até a praça e fica<br />
olhando para a estátua por algum tempo, e depois volta. Eu nunca perguntei<br />
nada para ela, evito tocar no assunto do pai porque ela sempre fica triste.<br />
Às vezes nos sonhos sinto que ele conversa comigo. Às vezes<br />
acordado, me perco em pensamentos e procuro imaginar sua fisionomia e<br />
sua voz. Ah, o Petrúcio era genial! Os pássaros daqui me conhecem por<br />
causa do meu pai, é como se eu fosse uma herança dele deixada aqui, um<br />
ídolo!<br />
O meu pai foi o papagaio mais famoso da floresta onde nasceu!<br />
Sei todas as piadas que ele contava, mas não sei contar tão bem<br />
quanto as pessoas falam que ele contava.<br />
Sou feliz e vivo uma vida quieta aqui nessa casa. Os nossos donos<br />
todos os dias nos dão comida e temos um pequeno jardim para pousar nos<br />
arbustos. Eu tinha vontade quando era mais novo de conhecer a floresta<br />
onde ele nasceu e morreu, mas pelo que alguns pássaros falam é um lugar<br />
perigoso! Eu não resistiria lá pois moro aqui na cidade desde que nasci.<br />
O meu pai foi o famoso papagaio Petrúcio, o mais famoso que já<br />
apareceu nesta cidade! Mudou muita coisa mesmo sendo somente um<br />
papagaio, mesmo que você tenha transformado ele em gente durante um<br />
tempo.<br />
A música que ele cantava todos os dias na casa de um dos seus<br />
donos, a mãe me ensinou num dia em que chovia bastante. Lembro bem<br />
que chovia muito e estávamos na varanda da nossa casa e sentíamos o<br />
vento gelado da chuva.<br />
Mamãe sempre falou que ele levava consigo o espírito da chuva, e<br />
que alguma coisa nele era semelhante a uma chuva forte e cheia de raios.<br />
Dizia que parecia ver muitos raios no interior dos seus olhos.<br />
Eu sou o papagaio Giancarlo, filhote do papagaio Petrúcio!<br />
Papagaio Giancarlo<br />
117
“Foi muito bom ter a presença dele em minha casa! Não dei o valor<br />
necessário para ele, fui desacostumando...no início era uma novidade! Algo<br />
extraordinário! Com o tempo foi se misturando à paisagem monótona dos<br />
meus brinquedos.<br />
Nunca percebi quanta tristeza passava por seus olhos e o quanto esse<br />
passarinho tinha para oferecer.<br />
Depois que fui morar com minha avó eu ganhei uma calopsita de um<br />
tio, eu acostumei ela fora da gaiola e ela era muito mansa!<br />
A casa onde morava com meus pais, acabei vendendo para não ter<br />
que voltar lá. Foi muito traumatizante quando descobri tudo que aconteceu,<br />
e o meu pai ainda foi preso. Hoje tenho minha mulher e uma filha.<br />
Trabalho numa indústria de energia elétrica e me sinto uma pessoa<br />
realizada!<br />
Ela tem dois cães e um gato de estimação que adotamos num abrigo<br />
para animais. Bom, ela queria um bichinho e eu não queria gastar, afinal<br />
sou muito economista. Então fomos numa feira de adoção de animais e<br />
acabei gostando tanto de um cão, que adotamos um cão pra ela, um gato<br />
pra minha mulher e outro cão pra minha filha.”<br />
Sérgio A. de Oliveira<br />
“Como era bom brincar com ele e ouvir cada uma de suas bobagens!<br />
O seu jeito engraçado me inspira até hoje, quando tenho que fazer alguma<br />
coisa.<br />
Sempre que toco o berrante lembro dele, que se separou da sua<br />
floresta que tanto amava para ensinar dignidade nessa nossa terra onde<br />
quando o sol nasce é para evaporar petróleo no asfalto.<br />
Hoje sou fazendeiro. Aquele meu cão, o Roger já morreu, mas<br />
deixou crias. Meu pai já está bem velho e casado. Continuo solteiro e moro<br />
na minha casa junto com meus empregados.<br />
Sei que lá do alto ele olha por todos aqueles que um dia foram seus<br />
amigos. Por isso não vou decepcioná-lo, mês que vem é a exposição de<br />
gado e montaria em cavalos. O rodeio acabou depois que houve aquela<br />
confusão quando ele estava aqui. Foi feita uma lei pelo prefeito proibindo<br />
os rodeios por causa da situação em que os touros e cavalos eram mantidos.<br />
Agora a exposição de gado tem atraído muito mais pessoas! Tem show<br />
sertanejo, muita comida, barracas, artesanato, bebidas e a área é bem<br />
maior!<br />
Quando ele foi embora, a única coisa que guardei, e guardo até hoje<br />
é uma pena de sua asa, que infelizmente tive que cortar. Toda vez que vou<br />
fazer exibição com cavalo adestrado coloco a pena no chapéu pra dar<br />
sorte.”<br />
Artemísio Joaquim Stanislau P. Pedroso (Juca)<br />
118
“É de onde vem toda a inspiração para a vida! Excita-nos a treinar a<br />
alma no mais complexo sistema sentimental! Esperança corre pelas artérias<br />
como se fosse o próprio sangue!<br />
O orgulho por realizar nossas vontades! A liberdade! A luta pela<br />
realização dos sonhos, como se fossemos um cavalo errante tentando fugir<br />
das águas de uma correnteza.<br />
A porta dos sonhos está sempre aberta para qualquer um que queira<br />
entrar e ele ensinou isso muito bem! Existem pesadelos e sonhos<br />
tranquilos, e para que no final o resultado dos sonhos seja o melhor<br />
possível, a esperança deve estar sempre acesa em nossos corações. Ele que<br />
nos mostrou isso.<br />
Ele foi um aventureiro que correu o mundo! Não tinha medos e foi<br />
jogado no pior covil de lobos. Ele foi uma jóia bruta que o tempo lapidou à<br />
sua maneira sem conseguir roubar sua forma original.<br />
Seu coração guardava um dom jamais visto com tamanha intensidade<br />
nessa cidade, em pureza, saudade, esperança e amor.<br />
Era um filho da terra legítimo! Suas penas flutuariam com mais<br />
graça que o aguapé da lagoa aqui da roça.<br />
Assim meu pai o definiu quando estava vivo. Na verdade todos os<br />
animais aqui da roça já ouviram falar da vez que o papagaio virou uma<br />
pessoa e salvou os antigos animais que viviam aqui de um dono maldoso<br />
que batia e machucava os animais.<br />
Vejo muitos pássaros voando no céu, mas nunca vi um papagaio.<br />
Não sei, acho que eles devem ter se escondido na floresta.”<br />
Alasão Ferrugem, filho do alasão Eleu<br />
“Meu pai falava que o papagaio tinha uma força de vontade muito<br />
grande e tinha a inteligência de uma pessoa. Falou que uns homens<br />
mágicos o transformaram em um humano para que ele ajudasse a ele e<br />
outros touros e cavalos a fugir de um rodeio. Eu não entendi muito bem<br />
quando ele me explicou o que era um rodeio. Na verdade eu nunca vi um,<br />
mas pelo que ele contava, é algo que eu nunca vou querer saber o que é.<br />
Meu pai falou que o maior amigo que teve na vida, foi o tal<br />
papagaio. Disse que ele salvou sua vida e que se não fosse ele nunca teria<br />
vindo para essa fazenda e nem poderia ter dado crias, porque dizia que no<br />
rodeio os touros não tinham contato com as fêmeas, que ficavam presos o<br />
tempo todo, sendo preparados para as festas de rodeio, sempre com<br />
tratamento ruim para ficarem bravos.<br />
Certa vez ele falou que a ida do papagaio para a cidade foi como se a<br />
cidade provasse um copo de água limpa e estranhou, pois só sabia provar<br />
água poluída. Ele contava muitas piadas do papagaio Petrúcio também.<br />
119
Não entendo você vir aqui depois de tantos anos procurando saber<br />
dessa história. Bom, mesmo pra você, aqui é um lugar tão longe, mas bem,<br />
cada um com a sua mania. Espero que tenha uma boa viagem de volta!”<br />
Touro Zangado, filho do touro matador<br />
“Nosso bisavô falava que ele era incrível! Um professor de coragem<br />
e persistência que ensinava desde coisas banais como a respiração correta<br />
quando se está voando para evitar cansaço até coisas mais complicadas<br />
como a essência da força da natureza.<br />
A cena mais impressionante que ele disse que viu na vida foi uma<br />
briga contra um gato chamado Montanha no passado. Eu sou feliz porque<br />
nosso bisavô contou essa história pra gente, e se não fosse o papagaio<br />
Petrúcio nós nunca teríamos nascido.<br />
Os outros pardais todos conhecem a história dele. Dizem que ele não<br />
tinha dublê nos momentos de perigo, era ele que se machucava em cada<br />
aventura...tinha coragem!”<br />
Pardal Rufo, bisneto do pardal Rufino<br />
“Ele era uma criatura vinda da brisa, do vento de longe. Atravessou<br />
essa parte do mundo em um dia de verão em que o sol rachava o asfalto e<br />
os gatos queriam nos fazer malvadeza. Logo trouxe consigo uma grande<br />
quantidade de nuvens para refrescar em nós aquilo que precisávamos, que<br />
era justamente esperança. O rato Paraguaçu assim se referia a ele...dizia<br />
que sua voz era determinada.<br />
Não cheguei a conhecer o papagaio Petrúcio, na verdade por que<br />
você está perguntando sobre esse papagaio depois de tanto tempo?<br />
- Bom...eu só queria saber se ainda se lembravam da história do<br />
papagaio Petrúcio, só isso.<br />
Ah bom! Mas então: os outros ratos que moram lá para os lados da<br />
saída da cidade sabem mais coisas. Só o que eu sei é o que o Paraguaçu<br />
contava para os outros ratos, e o que os outros ratos contaram para seus<br />
filhos, e eles para os outros filhos e depois contaram para os meus avós.<br />
- Tudo bem!<br />
Ah, lembrei de uma coisa: uma vez um rato me disse que o Petrúcio<br />
falou para ele que ‘quando a chuva vai embora deixa nossas ruas molhadas<br />
e o sol resseca tudo outra vez.’<br />
- O que será que ele quis dizer com isso? (pensei comigo mesmo, se<br />
talvez tivesse falhado em alguma coisa).<br />
Não sei, mas é uma frase bonita!”<br />
Rato Berto<br />
“Essa história quem contou foi um curió chamado Tadeu. Era mais<br />
ou menos assim: ele foi um tema bonito para uma poesia que fala de paz e<br />
120
de guerra! Suas atitudes desvendaram o universo oculto de um grande<br />
mestre, que aprendeu com as marcas que a vida deixou.<br />
Era um companheiro nas horas tristes e nas horas felizes, nas tardes<br />
prazerosas e confortáveis e até mesmo nos momentos da noite! Suas<br />
atitudes revelaram um espírito forte em um corpo que era apenas mortal<br />
como o de qualquer vivente.<br />
O Tadeu dizia que o desejo dele era voltar aqui para a floresta e viver<br />
a sua vida. Dizia que ele era como uma planta indefesa que foi roubada da<br />
terra, arrancada pelas mãos dos homens para satisfazer o desejo deles.<br />
Disse que ele todos os dias ia ver um antigo peixe que viveu num dos<br />
lagos da floresta, e que esse peixe era o único peixe que havia no lago. Que<br />
quando o papagaio Petrúcio foi embora o peixe ficou tão triste que o Boto<br />
teve que trazer mais peixes de outros lagos para fazerem companhia para<br />
ele.<br />
Os mais antigos falavam que quando o papagaio voltou para cá e<br />
morreu ali mesmo naquele lugar onde está o girassol, o Tadeu ficou o resto<br />
do dia cantando no mesmo galho, de tristeza. Disseram que o canto dele era<br />
tão triste que até as flores murcharam naquele dia.<br />
Disseram que depois que parou de cantar nunca mais cantou, até o<br />
dia de sua morte.”<br />
Curió Ji<br />
“Eu vi surgir do céu um anjo protetor! Brilhava como se fosse uma estrela<br />
e não possuía medos. Era uma estrela que não pertencia a nenhuma<br />
constelação.<br />
Mesmo sob a luz do sol todos podiam enxergar esta estrela.<br />
Por pouco tempo, e o céu levou o que era seu por direito: a sua<br />
estrela cadente, que veio à terra ensinar coragem e esperança.”<br />
Canário-da-terra João<br />
“Elas falavam que ele era um anjo lindo!<br />
Sabe, aquilo que provocamos com o toque das patas, como quando<br />
tocamos na água? Forma ondas e elas começam pequeninas, mas vão<br />
crescendo cada vez mais até chegar do outro lado da lagoa.<br />
Disseram que a alma dele era pura que já viram! Que ele tinha uma<br />
espécie de ligação com as árvores e com os animais.<br />
Uma delas disse que gostaria de se encontrar com ele numa próxima<br />
vida. Não sei muito, afinal nós jandaias voamos em grupo só dos parentes<br />
mesmo, não nos juntamos com as jandaias dos outros grupos.<br />
Bom, agora deixa eu ir que as outras estão se divertindo e quero fazer<br />
barulho também!”<br />
Jandaia Crica<br />
121
“Era uma dádiva da vida! Dá-se ao vento uma vez a cada grande<br />
intervalo de tempo...ao vento que corre pelas campinas com o aroma<br />
sublime da relva esverdeada, que carrega para outras matas o perfume dos<br />
lírios de cá. Lá onde vivem animais desconhecidos, porém vai corajoso o<br />
aroma que é filho da terra, tendo à frente uma vida de descobertas.<br />
Já pôde viver o nascimento do fruto silvestre, porque não se prende<br />
mais às suas raízes, exceto pela saudade que sente aquele que muito amou<br />
este lugar, cujas imagens jamais se apagaram, nem pelas marcas da vida,<br />
nem pelas folhagens secas de muitas primaveras!<br />
- Tio, que criatura é essa do lado de fora da água? É diferente dos<br />
animais daqui!<br />
Calma crianças. Ele é amigo de um amigo do peixe Vernacleto.”<br />
Boto, em palavras do peixe Vernacleto<br />
“Tudo o que eu poderia falar sobre ele todo mundo já sabe, pois o<br />
conto do papagaio Petrúcio é conhecido em todo o país, tanto nas florestas<br />
quanto nas cidades dos homens. Mas o que ninguém sabe é que antes de<br />
voltar, ele chamou meu pai em particular e pediu pra ser amigo do<br />
Vernacleto. Para ir lá pelas manhãs para conversar com ele um pouco.<br />
Petrúcio o achava engraçado e achou que isso faria bem ao seu amigo<br />
peixe.<br />
Ele disse que ia lá pelas manhãs, sempre que dava, conversava um<br />
pouco com ele, bicava umas árvores e até jogava algumas larvas para ele.<br />
Depois que apareceram outros peixes para ficarem com ele, ele parou<br />
de ir lá, afinal ele estava bem com os da sua espécie.<br />
Depois de um tempo acabou se distanciando um pouco da floresta.<br />
Foi procurar novos ambientes...<br />
Encontrou um parque florestal com árvores que eu achava mais<br />
agradáveis que as da floresta, aqui ele encontrava mais comida e passou a<br />
viver aqui. Procriou e teve várias crias que foram se espalhando pelo<br />
parque florestal e por outros lugares.”<br />
Jack, filhote do pica pau Jackson<br />
“Há tempos brotou da terra um novo fruto amado, forte igual à<br />
palmeira, valente como os ferozes animais da mata!<br />
Seu tronco foi castigado com o serrote e o machado. Infelizes<br />
aqueles que tentaram consumir seu tronco, e perderam dias e meses,<br />
perderam anos.<br />
Nada se compara à vontade de crescer, e me orgulho disso. Ele a<br />
executou de uma forma que nenhum de nossos ancestrais havia conseguido<br />
antes. Sofreu tanto o meu filho preferido em sua vida para ensinar a duas<br />
selvas diferentes o valor da honra e da esperança.<br />
122
Caiu um dia a indomável palmeira já sem oponentes...mesmo o<br />
machado, mesmo a serra, mesmo o homem da cidade...exceto pelas mãos<br />
do tempo, no mesmo lugar que nasceu.<br />
Orgulho-me de ter presenciado o nascimento! Ele sempre foi o meu<br />
preferido por ser tão parecido comigo.”<br />
Papagaio Lori, pai<br />
“Agora ele está descansando e a sua alegria será eterna!<br />
Fico triste ao lembrar do inocente desprezo ao ver que ele não tinha a<br />
mesma saúde e as penas dos outros.<br />
Lembro de um conto que um outro papagaio contava de um bichinho<br />
órfão que foi achado por uma pata, que era feio e os outros patos riam dele,<br />
mas que virou um cisne muito bonito quando cresceu.<br />
Eu tenho orgulho. Muitas lágrimas derramei quando foi roubado da<br />
floresta, sofri, e então desgostei um pouco da vida, ao te ver voltar, voltei a<br />
ter a esperança, e vendo-o morrer penei por muito tempo!”<br />
Papagaia Dria, mãe<br />
“Desde pequena, meu pai contava a história do meu tio avô. Nunca<br />
chegou a conhecê-lo, mas nosso avô foi salvo por ele, quando foi capturado<br />
aqui na floresta e levado para a cidade.<br />
Como se fosse alguma coisa de descendência, eu também nasci com<br />
uma pequena falta de penas na cabeça. Isso sempre foi um grande motivo<br />
de orgulho do meu avô.<br />
Não sei se você vai conseguir conversar com ele porque hoje ele<br />
mora do outro lado da floresta porque minha avó já morreu e ele nunca<br />
mais arrumou outra namorada, então foi morar com os papagaios que<br />
moram do outro lado, mas lá é muito difícil de chegar!”<br />
Papagaia Acca<br />
- Acho que você já perguntou para muitos não?<br />
Sim, na verdade eu já ouvi muitas histórias interessantes!<br />
- Imagino! Todos gostavam muito do papagaio Petrúcio!<br />
É verdade meu caro amigo!<br />
Petrúcio é uma espécie rara de homem! Alguém que sofreu as piores<br />
influências possíveis por parte das pessoas que o rodearam: primeiro seu<br />
sequestro pelos dois homens; depois de um tempo veio a indiferença do<br />
menino Serginho e as atitudes das pessoas da casa; Gilmar e Nestor;<br />
Adamastor, pai do Juquinha; piratas; o milionário Cristóvão; as pessoas da<br />
cidade que gostavam de pássaros presos em gaiolas.<br />
O Petrúcio tinha contato com tudo isso, recebia essa influência o<br />
tempo todo, tanto é que seu modo de ser guardava o maquiavelismo e o<br />
impulso vingativo desses personagens! Herdou dos dois ladrões a<br />
123
habilidade com as palavras grotescas e certas malandragens, pouco<br />
admiráveis!<br />
Talvez tenha sido esta floresta a principal responsável pelo seu bom<br />
caráter. Dizem que quando um animal nasce, acredita que a primeira coisa<br />
que vê é sua mãe, e no caso dele, pelo que fiquei sabendo, contado por ele<br />
mesmo, foi que a primeira imagem que viu na vida foi a claridade do lado<br />
de fora do ninho e as folhas das árvores. O papagaio presenciou a beleza da<br />
relva e as maravilhas do companheirismo! Ficou amigo de um peixe que<br />
vivia no lago aqui na floresta, seu primeiro grande amigo; salvou o canárioda-terra<br />
João de uma armadilha quando era apenas um filhote, nas folhas de<br />
um ipê, e ele vive até hoje aqui na mata. Acredito que isso marcou demais<br />
o pequeno papagaio Petrúcio, e todas as boas coisas que presenciou falaram<br />
mais alto, impedindo que a ave se tornasse corrupta na cidade grande.<br />
- É verdade! O dia que ele voltou eu não cheguei a tempo de vê-lo,<br />
estava ocupado afugentando alguns caçadores lá perto do terreno dos<br />
índios. Quando cheguei ele já havia falecido.<br />
Petrúcio recusou um convite de permanecer na cidade e viver como<br />
ser humano. Teria riqueza, fama. Isso tudo aconteceu no julgamento do pai<br />
do Juquinha, eu conversei com ele no corredor, antes dele deixar o fórum e<br />
fiquei extremamente irritado após ele dizer que iria voltar para a floresta.<br />
Nem percebi o que aconteceu do lado de fora. A transformação que eu fiz<br />
estava prestes a acabar e a vontade dele acelerou ainda mais o processo.<br />
Eu o testei ao transformá-lo em pessoa só para ter a certeza de que<br />
ele seria corrompido pelo sistema, pela ambição, mas eu estava errado. O<br />
Petrúcio pertencia à floresta e os animais jamais serão como os homens. Os<br />
homens pecam contra a sua existência, contra os seus semelhantes, deixam<br />
à mercê da sorte os menos favorecidos, o Petrúcio ao contrário tudo o que<br />
fez foi querer ajudar a todos os animais, não buscou nada para si, apenas<br />
para os outros.<br />
A última vez que o vi respirando foi em sua retirada triunfante da<br />
cidade, naquela velha gaiola, quando vários animais o saldavam. Eu estava<br />
um pouco ocupado e nem pude ir ao seu encontro. Estava tratando de<br />
assuntos urgentes, mas pude vê-lo da janela do prédio onde eu estava.<br />
Depois disso andei um pouco ocupado resolvendo assuntos pessoais<br />
e, quando eu fiquei sabendo o que havia acontecido quando ele chegou aqui<br />
fiquei muito chateado! Então decidi procurar as criaturas que tiveram<br />
algum contato mais intenso com ele para ver o que descobria. Vaguei por<br />
muitos lugares! Várias partes do estado, então hoje eu pude vir até a<br />
floresta e saber mais sobre a morte dele.<br />
Vi que o girassol que nasceu no lugar é realmente imenso! Eu até<br />
peguei esta semente, veja...<br />
Eu nunca pude compreender a natureza do Petrúcio, o que sentia ao<br />
recordar sua morada. Sou somente um vulto do fim dos dias e à meia-noite<br />
124
passo pelas ruas da cidade, eu não sou o eco de uma voz diferente, sou<br />
não...<br />
Enfim, a história termina onde começou. Este não é o mais<br />
romântico dos finais de história? Um viajante que retorna à sua casa?<br />
- Não, não é...ainda mais da forma que aconteceu.<br />
Eu sei meu amigo Curupira, mas não se esqueça que a esperança não<br />
deve morrer jamais!<br />
Saudações aos animais da floresta e à essência da vida que há neste<br />
lugar!<br />
Vitor Moreira, autor<br />
125
Capítulo 8<br />
Muitas vezes temos o poder de evitar que as coisas ruins aconteçam,<br />
mas somos tão impacientes em apenas pensar nos nossos interesses que<br />
deixamos de dar valor a coisas que são muito importantes para alguém ou<br />
para muitas formas de vida.<br />
Nós construímos o nosso universo! Não importa o quanto as coisas<br />
sejam difíceis, depende de nós mesmos mover as dificuldades para<br />
alcançarmos as nossas intenções.<br />
Forma-se a chuva na floresta, e estão presentes os raios...<br />
- E para onde você vai agora?<br />
Não sei Curupira. Conversei com muitas pessoas, animais...sabe,<br />
desde que isso tudo aconteceu eu me sinto um pouco culpado. Eu devia<br />
estar lá o tempo todo, mas acabei tendo alguns imprevistos. Estou voltando<br />
para a cidade, não quero mais incomodar e essa chuva está muito forte!<br />
- Acalme-se! Determinadas vezes nem mesmo o destino pode ser<br />
mudado.<br />
Não...você está errado! Nós podemos sim mudar o nosso destino! A<br />
infelicidade pode se converter até mesmo na felicidade plena! O fim é o<br />
começo, a vida se renova, o amor supera todos os limites! Chega...<br />
- O que está fazendo?<br />
Vê: essa semente de girassol? Pois bem, pode muito bem ser a<br />
semente da vida!<br />
126
Uma simples semente, perseverante contra todas as adversidades é<br />
capaz de sozinha transformar um deserto em um jardim ou floresta, como<br />
eu disse antes, o amor supera todos os limites!<br />
“Então ele jogou a semente de girassol para o alto e um raio a<br />
atingiu. Então uma pequena luz verde suspensa no ar foi caindo em direção<br />
a uma árvore. Olhei para a saída da floresta e ele caminhava rapidamente,<br />
até sumir em forma de vulto, se protegendo da chuva. Fui ver o que era a<br />
semente, mas uma papagaia começou a gritar. A luz verde parecia ter caído<br />
em seu ninho e ela protegia como se fosse um filhote. Deixei-a em seu<br />
ninho e saí dali para espantar os caçadores e madeireiros.”<br />
***<br />
“Amor! Sentimento tão grandioso que se multiplica dentro de cada<br />
um de nós como semente de girassol produzida pela perfeição da natureza,<br />
e que gera novas folhas e sementes. Amor é como grão solitário que se bem<br />
regado pelas águas da felicidade, tal qual as flores pela chuva da primavera,<br />
é capaz de transformar desertos secos, de solo rachado, em florestas<br />
repletas de vida, e cobrir de flores coloridas as pedras cinzentas repletas de<br />
tristeza e solidão.<br />
Todos nós, independente da espécie, temos o poder de lutar pelo<br />
amor, não o amor limitado aos nossos semelhantes, mas um amor de tal<br />
forma incondicional, capaz de mudar no coração dos homens mais<br />
perversos o ódio, transformando em luz, não importando o quanto tudo seja<br />
difícil! Esse é o sentido das nossas vidas, justamente lutar com bom ânimo<br />
eterno por aquilo que nos fará feliz. Tendo esperança, podemos mover um<br />
universo inteiro, retirar as pedras do caminho e atravessar oceanos de águas<br />
turbulentas.<br />
Vida! Bem tão precioso que tivemos o prazer de experimentar na<br />
complexa experiência da criação do universo! Somos privilegiados por essa<br />
dádiva, mas nem todos sabem dar o valor adequado a esse momento, e<br />
acabam por subtrair da perfeição da vida em harmonia o equilíbrio, a paz e<br />
continuidade de tudo aquilo que a natureza criou. Existe infelicidade<br />
porque nem todos têm o amor, há os frutos estragados no seio da terra, e<br />
esses tentam com a sua falta de amor contaminar os bons frutos, tirando<br />
deles a felicidade. A vida é bonita, pois existe luta e esforço, tudo que se<br />
faz na vida se torna lembrança e experiência. Há os momentos de dor e os<br />
momentos de riso.<br />
Porém enquanto existir esperança sempre haverá o amor, e há de<br />
prevalecer contra toda a maldade do mundo.<br />
Somos como as gotas da chuva, que caem do céu num mergulho da<br />
divina providência para a continuidade da vida. Nós damos as nossas vidas<br />
a cada instante para que haja continuidade...<br />
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Foi em um dia de chuva na floresta que eu nasci. Havia barulho e<br />
luzes no céu cortando o ar, bruscamente chegavam à mata e quebravam<br />
galhos de imensas árvores. O vento soprava lá fora e algumas gotas de<br />
chuva molhavam as costas de meu pai que protegia a entrada do buraco<br />
feito na árvore, no tronco da árvore, onde cada pedacinho de terra foi<br />
retirado por eles para que pudéssemos nascer.<br />
Mal podia abrir os olhos e meu bico era frágil, mole. Eu podia<br />
enxergar o vulto dele lá naquela entrada, era uma imagem cinzenta através<br />
da membrana fina dos olhos. Tremia mas olhava atento e sem demonstrar<br />
fraqueza para o interior do buraco onde nós dois estávamos, aquela criatura<br />
verde e eu. Quando pude ver com mais nitidez vi que era um pássaro verde,<br />
um papagaio, e a criatura que me cobria era uma papagaia. Eu era um<br />
papagaio.<br />
Meu corpo não tinha forças e estava quente embaixo daquelas penas.<br />
Não sei, mas de alguma forma parecia que tudo aquilo já havia acontecido<br />
antes comigo. A primeira vez que pude olhar para o lado de fora do ninho<br />
feito no buraco da árvore, parecia que eu já conhecia cada pedacinho<br />
daquele imenso lençol verde de árvores, folhas, frutos.<br />
Um lugar que certamente irei amar por toda a vida e será a minha<br />
casa!”<br />
Fim!<br />
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