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O PETRUCIO PETRUCIO

Conto naturalista sobre um papagaio retirado da floresta e vive a vida toda lutando para voltar pra casa. Um misto de ficção e realidade.

Conto naturalista sobre um papagaio retirado da floresta e vive a vida toda lutando para voltar pra casa. Um misto de ficção e realidade.

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2<br />

Eu sou Vitor Corleone<br />

Moreira da Silva. Nasci em<br />

Belo Horizonte, MG em 27 de<br />

Setembro de 1984.<br />

Sou escritor desde 2001 e<br />

componho músicas. Também<br />

sou poeta, artista plástico e<br />

calígrafo.<br />

O Papagaio Petrúcio é o<br />

primeiro conto que eu<br />

escrevo. É antes de tudo um<br />

desafio cumprido, onde eu<br />

procurei desenvolver uma<br />

leitura que fosse para todos os<br />

públicos, mesmo sendo um<br />

conto. Daí a minha idéia de<br />

mixar a realidade com a ficção<br />

e fazer algo diferente, algo<br />

que fosse capaz de prender a<br />

atenção das pessoas, mesmo<br />

leitores com características e<br />

até idades diferentes.<br />

Outras obras: Amor de<br />

Veraneio, Quarenta Passos<br />

Até o Campo; Soneto, Convite<br />

Para Sonhar, O Coração Não<br />

Nega.


Comentário<br />

Petrúcio possuía a vontade de viver! Um papagaio que<br />

nasceu na floresta e desde cedo aprendeu a amar sua casa,<br />

estabelecendo uma ligação mística com as forças da natureza.<br />

Porém quando os acontecimentos o obrigaram a adotar<br />

uma nova postura, passou a aprender com tudo que<br />

presenciava, tanto as coisas boas quanto as coisas ruins.<br />

Demonstrou que a esperança é capaz de mudar qualquer<br />

coisa, inclusive nossos destinos mais cruéis. Foi amado e<br />

odiado nos ambientes em que esteve e quando tudo parecia ter<br />

chegado ao fim, o conto nos revela que na verdade o fim é o<br />

começo de tudo.<br />

O conto traz uma mistura de realidade e ficção, onde o<br />

objetivo principal é mostrar os malefícios do tráfico de<br />

animais silvestres, numa óptica subjetiva dos próprios<br />

animais. O papagaio Petrúcio vem contar tudo aquilo que<br />

presenciou sobre esse mal que devasta várias espécies da<br />

fauna brasileira.<br />

O conto demonstra ainda que independente de qualquer<br />

coisa, a determinação é capaz de operar milagres, e no fim o<br />

amor sempre prevalece!<br />

Eu me sinto feliz em ter escrito esse conto no ano de<br />

2001, em Belo Horizonte, e hoje estar realizando a sua edição.<br />

Claro que algumas coisas, idéias, trechos, precisei revisar<br />

para que ficasse mais coerente com o contexto do conto, mas a<br />

idéia central e os acontecimentos mantive inalterados, pois<br />

muito mais do que uma obra belíssima, é inevitavelmente uma<br />

etapa do meu aprendizado artístico.<br />

Belo Horizonte, 21 de Maio de 2005<br />

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Vitor Moreira<br />

PRIMEIRA PARTE<br />

Capítulo 1<br />

Amor! Sentimento tão grandioso que se multiplica dentro de cada um<br />

de nós como semente de girassol produzida pela perfeição da natureza, e<br />

que gera novas folhas e sementes! Amor é como grão solitário que se bem<br />

regado pelas águas da felicidade, tal qual as flores pela chuva da primavera,<br />

é capaz de transformar desertos secos, de solo rachado, em florestas<br />

repletas de vida, e cobrir de flores coloridas as pedras cinzentas cheias de<br />

tristeza e solidão.<br />

Todos nós, independente da espécie, temos o poder de lutar pelo<br />

amor, não o amor limitado aos nossos semelhantes, mas um amor de tal<br />

forma incondicional, capaz de mudar no coração dos homens mais<br />

perversos o ódio, transformando em luz, não importando o quanto tudo seja<br />

difícil! Esse é o sentido das nossas vidas, justamente lutar com bom ânimo<br />

eterno por aquilo que nos fará feliz. Tendo esperança, podemos mover um<br />

universo inteiro, retirar as pedras do caminho e atravessar oceanos de águas<br />

turbulentas.<br />

Vida! Bem tão precioso que tivemos o prazer de experimentar na<br />

complexa experiência da criação do universo! Somos privilegiados por essa<br />

dádiva, mas nem todos sabem dar o valor adequado a esse momento, e<br />

acabam por subtrair da perfeição da vida em harmonia o equilíbrio, a paz e<br />

continuidade de tudo aquilo que a natureza criou. Existe infelicidade<br />

porque nem todos têm o amor. Há os frutos estragados no seio da terra, e<br />

esses tentam com a sua falta de amor contaminar os bons frutos, tirando<br />

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deles a felicidade. A vida é bonita, pois existe luta e esforço, tudo que se<br />

faz na vida se torna lembrança e experiência! Há os momentos de dor e os<br />

momentos de riso.<br />

Porém enquanto existir esperança sempre haverá o amor, e há de<br />

prevalecer contra toda a maldade do mundo.<br />

Somos como as gotas da chuva, que caem do céu num mergulho da<br />

divina providência para a continuidade da vida! Nós damos as nossas vidas<br />

a cada instante para que haja continuidade...<br />

Foi em um dia de chuva na floresta que eu nasci. Havia barulho e<br />

luzes no céu cortando o ar, bruscamente chegavam à mata e quebravam<br />

galhos de imensas árvores. O vento soprava lá fora e algumas gotas de<br />

chuva molhavam as costas de meu pai que protegia a entrada do buraco<br />

feito na árvore, no tronco da árvore, onde cada pedacinho de madeira foi<br />

retirado por eles para que pudéssemos nascer.<br />

Mal podia abrir os olhos e meu bico era frágil, mole. Eu podia<br />

enxergar o vulto dele lá naquela entrada, era uma imagem cinzenta através<br />

da membrana fina dos olhos. Tremia mas olhava atento e sem demonstrar<br />

fraqueza para o interior do buraco onde nós estávamos.<br />

Meu corpo não tinha forças e estava quente embaixo daquelas penas.<br />

Ficava o tempo todo agarrado nos outros irmãos, e nos aquecíamos.<br />

Fui o último rebento de uma ninhada de cinco papagaios. O pai toda<br />

hora deixava o ninho e buscava comida para a gente, mesmo se estivesse<br />

chovendo, eu o via sair voando e quando chegava, se sacudia do lado de<br />

fora do buraco para se secar um pouco e depois entrava. Nenhum de nós<br />

tinha penas e havia calor debaixo da mãe.<br />

Passados alguns dias a chuva parou e então a mãe saiu também para<br />

buscar comida e nós ficamos lá naquele amontoado de mato seco, pedaços<br />

de galhos, penas e terra. No início gritávamos assustados ou ansiosos pela<br />

comida, mas depois passamos a ficar mais silenciosos, aprendendo a ouvir<br />

os sons que vinham lá de fora do buraco.<br />

Os outros quatro irmãos estavam diferentes de mim. Eles tinham<br />

penas aparecendo pelo corpo e eu continuava só com penugens brancas,<br />

eles eram maiores e mais fortes. Era feio, mas eu era menor que eles, era<br />

mais fraco, não tinha como ser diferente. As minhas penas logo iriam<br />

aparecer e eu iria crescer.<br />

Depois de um tempo eu ainda tinha poucas penas ao contrário dos<br />

outros filhotes. Era o preferido do meu pai e ele sempre me alimentava<br />

primeiro, talvez por preocupação, por ver que eu era menor, mais frágil. Ao<br />

contrário da mãe, que nitidamente demonstrava gostar mais de meus irmãos<br />

mais emplumados que eu. Ela sempre ficava coçando-lhes, procurando<br />

penugens soltas e as tirava com carinho, mas jamais havia feito isso em<br />

mim.<br />

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Papai era um enorme papagaio selvagem, tinha uma calvície em<br />

cima da cabeça desde que nasceu. Ele contava que nunca teve penas<br />

naquela parte da cabeça. Talvez por essa razão desse mais atenção a mim<br />

que aos meus outros irmãos, justamente pela minha falta de penas,<br />

pensando que os outros se pareciam mais com a mãe e que eu era parecido<br />

com ele.<br />

Passados alguns dias voltou a chover forte na floresta! A toda hora os<br />

raios cortavam o céu, os trovões faziam barulhos tão fortes que a árvore<br />

tremia. Ficamos em nosso ninho. A mãe falava sobre a vida, sobre o que<br />

era a chuva e a grande importância que ela representava para a vida na<br />

floresta, mas eu não entendia direito como os raios vinham. Só sei que eles<br />

quebravam muitos galhos de árvores, isso me dava medo! Não fazia<br />

sentido para mim que fizesse calor pra que depois viesse a chuva. Como a<br />

água virava vento quente e depois virava água de novo. A parte da comida<br />

eu entendi bem, que era só procurar pela floresta, parecia ser muito<br />

divertido e emocionante! Eu escutava tudo que eles contavam, maravilhado<br />

e ansioso para conhecer esse lugar chamado floresta, devia ser algo muito<br />

maravilhoso! Eu sentia isso na forma como eles falavam desse lugar, que<br />

estava do lado de fora do nosso ninho, aqui tão perto.<br />

Os outros irmãos não estavam tão ansiosos, eles eram quietos, e eu<br />

era muito agitado, queria aprender, queria conhecer a floresta. Queria que<br />

minhas penas crescessem rápido, que eu ficasse maior e que pudesse voar<br />

como o papai, pela floresta. Eu iria muito longe!<br />

Eu sentia medo, mas com o tempo fui entendendo muito sobre as<br />

coisas. Passei a admirar a chuva e entendia a sua necessidade para a<br />

floresta, para o crescimento das árvores que nos davam comida e para a<br />

vida de todos os animais.<br />

Certo dia, quando estávamos no ninho os dois foram procurar<br />

comida. Nós escutávamos lá de dentro muitos sons de animais, alguns<br />

assustadores, outros de uma melodia tão bonita que agradava o ouvido. Nós<br />

não podíamos ver, mas pelo que eu escutava podia sentir uma coisa<br />

maravilhosa!<br />

Fui o primeiro a chegar a cabeça para fora do ninho, desobedecendo<br />

os meus pais, mas não resisti...eu queria ver a floresta.<br />

Pelo que eles contavam da floresta parecia ser algo tão maravilhoso!<br />

Eu sentia vontade de crescer logo e poder conhecer tudo o que falavam. A<br />

floresta seria a minha casa e eu viveria lá como os meus pais e como todos<br />

os animais.<br />

Era realmente um paraíso! Uma vista maravilhosa! Havia uma árvore<br />

enorme na frente do nosso ninho, uma palmeira! Havia muito verde e os<br />

animais, havia flores...<br />

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Passaram-se dois meses e meus irmãos já estavam saindo do ninho e<br />

arriscando pequenos vôos. Eu preferia ficar perto do pai e só saía com ele.<br />

A mãe ficava vigiando por causa de outros animais que ela chamava de<br />

gaviões. Eu nunca vi um na floresta de perto, só escutava um assovio<br />

distante e quando escutava os outros filhotes ficavam calados, só ouvindo e<br />

quietos. Eu sempre perguntava se era o gavião e ela respondia que sim, e<br />

logo em seguida ordenava silêncio. Ela tinha muito medo dos gaviões, dizia<br />

que eles atacavam os outros pássaros e ninhos.<br />

Minhas penas começaram a crescer só que em cima da cabeça não<br />

tinha pena. O papai disse que eu iria ficar igual a ele. Eu não me importei,<br />

afinal adorava o papai! Ele era forte e muito corajoso!<br />

Mais algum tempo e já estávamos voando bem! Iríamos aprender a<br />

sobreviver na floresta. Eles ensinavam a procurar girassol, castanhas, frutos<br />

e insetos nas árvores, mostravam os que não podíamos comer e ensinavam<br />

muito sobre as folhas que nos faziam mal. A cada momento aprendíamos<br />

algo novo, sempre voando juntos, afinal papai falou que se um papagaio<br />

ficasse sozinho não poderia enfrentar os animais maldosos da floresta, mas<br />

se estivessem em grupo nenhum animal teria coragem de atacar, nem<br />

mesmo o gavião.<br />

Eram dias felizes que passávamos voando naquela mata fechada<br />

cheia de galhos e folhas onde quase não dava pra ver a luz do sol. Havia,<br />

porém uma árvore grande onde nos galhos de cima era possível ver aquela<br />

grande bola de fogo se escondendo atrás da paisagem anunciando a noite.<br />

Eu sempre ia até nas manhãs pra ver o sol.<br />

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Um dia fui até lá e vi um pássaro grande vindo em minha direção.<br />

Era o gavião, fiquei com medo e comecei a descer pelo galho, bastante<br />

atrapalhado e tendo dificuldade com os galhos. O gavião se aproximava e<br />

fazia um som assustador, era o som da morte! Então vi muitos pássaros<br />

grandes voando em minha direção, tinham o peito amarelo e as costas<br />

azuis. Eram muito coloridos, gritavam muito alto! Nem pude contar, mas o<br />

céu parecia se colorir de azul e amarelo, como um enxame de abelhas! O<br />

gavião ficou com medo e voou em retirada. Eu continuava descendo e<br />

consegui ver que aqueles pássaros enormes perseguiram o gavião até que<br />

ele sumisse na distância.<br />

- Não precisa mais ter medo jovenzinho. Os irmãos já o afugentaram.<br />

- Quem é você?<br />

- Eu sou uma arara. Somos aves que tomam conta dessa parte da<br />

floresta. Conheço bem o seu pai, somos muito amigos.<br />

- Que bom! Eu vim ver o sol e aquele pássaro veio voando.<br />

- Aqui em cima é meio perigoso! É justamente onde os gaviões ficam<br />

observando, à espera de pássaros desavisados e pequenos animais. Tome<br />

mais cuidado, evite ficar vindo aqui sozinho. Seu pai não falou que não<br />

pode andar sozinho?<br />

- Falou, mas os outros não gostam de ver o sol. Eu adoro ver a<br />

floresta daqui de cima! É tudo tão bonito!<br />

- É verdade! A floresta é muito bonita! Nós protegemos nossas crias<br />

e cuidamos da floresta sempre, para que nossa morada seja sempre assim,<br />

tão verde e tão bela!<br />

Quando desci, depois de ficar conversando com aquela arara fui<br />

procurar comida, logo encontrei com o papai. Ele estava cuidando das<br />

penas e arrancando algumas penugens, coisa normal entre nós. Falei pra ele<br />

que conheci uma arara no alto da floresta e que ficamos conversando por<br />

um tempo. Ele falou que na floresta havia várias araras diferentes, umas<br />

eram vermelhas, outras azuis e outras bem coloridas em azul, amarelo e<br />

verde. Falou que os papagaios, as araras, as jandaias e outros pássaros com<br />

o bico parecido com o nosso eram primos distantes, por isso se davam<br />

muito bem na floresta.<br />

Ele me levou em outros lugares da floresta para conhecer as jandaias<br />

e outros papagaios diferentes de nós. Depois conhecemos um pássaro<br />

chamado príncipe negro que segundo o pai também era um parente distante<br />

de nossa espécie. Ele era desconfiado, ficou tímido atrás de um galho de<br />

árvore por muito tempo só fazendo perguntas, mas depois de um tempo<br />

veio conversar conosco. Maritacas, periquitos...ficava pensando: como<br />

pode haver tantas cores assim nos nossos parentes e nós somos verdes?<br />

Achava engraçado, mas algo neles era tão familiar! Era como se fossemos<br />

diferentes só no tamanho e nas cores, e por dentro todos éramos exatamente<br />

iguais, nos medos e na coragem, no carinho e no amor!<br />

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Havia um grupo de papagaios que tinham as penas do peito roxas e<br />

tinham ninhos perto de um rio. Nós ficamos a certa distância e vieram<br />

quatro papagaios para conversar conosco e ver quem era.<br />

Quando viram que era o papai ficaram mais despreocupados.<br />

Falaram que existe um limite de território para os papagaios por causa dos<br />

ninhos, mas que os amigos eram bem-vindos.<br />

Nós não fomos muito perto dos ninhos porque eles falaram que as<br />

fêmeas ficavam nervosas e podiam atacar, mas do alto de uma árvore nos<br />

mostraram seus filhotes. Eles estavam muito pequenos ainda e as mães<br />

procuravam penugens soltas nos filhotes.<br />

Perguntei por que cada um deles tinha apenas um ou dois filhotes e<br />

um deles falou que são uma espécie de papagaios que não dão muitos<br />

filhotes, e que por isso tem cada vez menos na floresta.<br />

Depois que ficamos certo tempo conversando com os papagaios,<br />

papai me mostrou as jandaias. Elas eram alegres e voavam sempre em<br />

grupo, muitas jandaias juntas.<br />

Eram muito agitadas e gritavam muito! De repente saiam todas em<br />

revoada sem motivo algum e ficavam bailando no ar por alguns instantes,<br />

por isso ficamos pouco tempo perto delas porque todo aquele barulho<br />

estava muito irritante! Mas uma coisa que elas tinham é uma alegria<br />

contagiante! Uma energia que jamais se acabava! Estavam sempre sorrindo<br />

e brincando, até os que já eram adultos...quebravam pequenos galhos e<br />

ficavam descascando, se coçavam, arrancavam penas...<br />

Depois de comermos bastantes sementes e raízes, fomos pra junto<br />

dos outros irmãos, que passaram o dia inteiro com a nossa mãe, lá para os<br />

lados do rio. Já estávamos todos com o papo bem cheios e cansados depois<br />

de um dia inteiro na floresta.<br />

Eu gostava de alisar as minhas penas ao final do dia, sobre um galho<br />

alto de palmeira que ficava em frente à árvore que era nosso ninho,<br />

procurava penugens, mas naquele pedacinho da cabeça não iria nascer pena<br />

mesmo, eu seria um papagaio careca até o dia de minha morte.<br />

Eu via o sol se esconder entre as árvores e silenciosamente a noite<br />

descer sobre a mata, deixando o céu cheio de estrelas e a lua...sereno e<br />

sono, então todos juntos adormecíamos enquanto os grilos e vaga-lumes<br />

faziam uma festa de luz e som nas partes baixas das árvores.<br />

As manhãs eram para mim aventuras cada vez mais emocionantes<br />

naquele paraíso que aprendi a amar de uma maneira tão grande que não<br />

seria possível comparar a nada nesse mundo! Uma energia intensa me<br />

ligava à floresta e eu sentia até mesmo a respiração das folhas das árvores<br />

ou o canto das águas correndo pela cachoeira.<br />

Cada coisa nova que eu descobria ou aprendia com os pais ou com os<br />

outros pássaros me deixava maravilhado! A vida é tão bela! O nosso lar é<br />

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algo tão cheio de felicidade e amor! A cada dia nós vivemos o esporte da<br />

existência, procurando comida e aprendizado.<br />

A floresta era um imenso labirinto repleto de coisas bonitas, e cada<br />

dia eu conhecia um animal diferente! Depois do que aconteceu com o<br />

gavião, os pais diziam para ficarmos por perto, para descobrirmos aos<br />

poucos a floresta e sempre voltarmos para o mesmo lugar. Foi assim que<br />

aprendemos aos poucos a vida em grupo. Papai ensinou que somente<br />

quando estivermos em grupo teremos força suficiente para deixar com<br />

medo os animais maldosos, que somente em grupo podemos fazer alguma<br />

coisa.<br />

Havia flores, e muitas borboletas voavam ao redor delas. Uma<br />

explosão de colorido e magia. O perfume delas exalava por entre os troncos<br />

das árvores, me encantando mais a cada manhã! Os pais disseram que essa<br />

época do ano muitas flores apareciam na floresta, que era época para<br />

namoro dos papagaios, e que as flores eram o sinal da chegada da estação.<br />

Disse que isso acontecia todos os anos, e que nós cinco éramos os<br />

primeiros filhotes, e que até o fim da vida dos dois, todos os anos voltarão<br />

ao mesmo lugar onde nascemos, no mesmo tempo, na chegada das flores,<br />

para dar a vida a outros filhotes.<br />

A primeira vez que eu vi a cachoeira foi como a descoberta de um<br />

mundo novo! O portal dos sonhos! Era real, mas eu não acreditava em<br />

tamanha beleza e perfeição. Lembro que eu voava seguindo um beija-flor<br />

muito colorido! Era bonito o modo como ele procurava entre as flores<br />

aquelas que mais agradavam. Fui me distanciando do caminho que sempre<br />

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seguia e acabei deparando com aquele espelho d’água. Havia muitas rochas<br />

formando uma imensa parede e a água corria entre elas com imponência e<br />

majestade!<br />

A água do lago era mais gelada que a do rio, e saciava mais a sede!<br />

- Olá bichinho da água!<br />

- Não sou um bichinho da água, sou um peixe, e meu nome é<br />

Vernacleto.<br />

- Você pode conversar comigo? Que bom!<br />

- Claro que posso! Eu converso como qualquer animal, mas tenho<br />

que entrar na água toda hora para respirar.<br />

No lago, que era onde a cachoeira acabava vivia um peixe muito<br />

solitário, o Vernacleto, que com o passar do tempo deixou de ser assim,<br />

pois todos os dias eu ia lá pela manhã para vê-lo e fazer companhia. Era<br />

menos perigoso que o alto da árvore grande.<br />

- Bom dia Vernacleto! Meu amigão!<br />

- Bom dia papagaio!<br />

O Vernacleto foi meu primeiro grande amigo.<br />

- O que você fez ontem na floresta? Conta aí pra mim...<br />

- Ah, muitas coisas! Conheci uns pássaros que cantam muito bonito!<br />

Papai me levou pra conhecer um lugar que tem umas raízes muito doces, eu<br />

adorei!<br />

- Que bom! Fico feliz por você!<br />

- E você?<br />

- Ah papagaio, você sabe...não existem outros peixes aqui, então eu<br />

fico nadando de um lado para o outro, por entre as pedras...só venho pra cá<br />

mesmo quando você aparece.<br />

Ficávamos conversando por um tempo, ele saltava na água cristalina,<br />

contava coisas sobre o rio, histórias tão fascinantes! Eu achava incrível,<br />

pois aquilo que eu descobria todos os dias, o meu mundo, era apenas a<br />

parte de cima, e abaixo das águas havia todo um universo, repleto de<br />

descobertas, mitos, perigos.<br />

- Vernacleto, o que você quer que eu pegue pra você? Frutinhas ou<br />

alguns insetos?<br />

- Você vai me deixar mal-acostumado desse jeito.<br />

- É que você é meu amigo e eu gosto muito de você!<br />

- Também gosto muito de você papagaio! É um tanto falador, mas é<br />

um papagaio legal!<br />

Eu pegava frutinhas e insetos e jogava para o Vernacleto. Ele sempre<br />

agradecia com um salto bem alto e jogava água para todos os lados.<br />

- Nossa! Dessa vez você saltou bem alto heim Vernacleto!<br />

- Você não viu nada, espere até o próximo salto.<br />

Eu gostava muito do meu amigo, mesmo que fossemos tão diferentes<br />

um do outro! É como se por dentro fossemos exatamente iguais!<br />

11


- Olha: eu já vou indo embora. Amanhã pela manhã volto aqui pra te<br />

ver.<br />

- Tudo bem meu amigo! Toma cuidado na floresta!<br />

- Pode deixar!<br />

Quando contei ao papai sobre minhas idas ao rio, ele falou para ter<br />

cuidado, quase proibindo, pois existem animais dentro da água que atacam<br />

outros animais que vão até lá para beber água. Ele só não proibiu porque<br />

disse que eu precisava ir aprendendo aos poucos a sobrevivência, que nem<br />

sempre teria a proteção deles. Quando perguntei ao Vernacleto ele falou<br />

dos jacarés e das cobras. Ensinou tudo que era necessário para escapar<br />

deles.<br />

Eu insistia para ver um jacaré, mas o Vernacleto não me levava onde<br />

eles ficavam. Dizia que não conseguiria escapar deles se o avistassem. Que<br />

eu poderia voar, mas as águas eram o seu mundo e não poderia sair dele.<br />

A vida a cada dia se mostrava para mim como ensinamento e amor!<br />

Eu amava a floresta e respirava junto com as árvores, numa ligação<br />

harmônica tão perfeita que parecia que eu estava ligado à floresta em<br />

energia, que eu era parte do húmus que ficava na terra alimentando-a<br />

eternamente.<br />

Sim! Eu era parte do húmus da terra! Eu era parte das águas do rio!<br />

Eu era parte do ar que corria!<br />

Fui aprendendo o sentido das coisas, de tudo aquilo que meus pais<br />

falavam quando nascemos e que estava tão ansioso por descobrir. Minha<br />

identidade com a floresta amadurecia cada vez mais e eu sabia o meu lugar<br />

na natureza.<br />

Uma energia tão intensa crescia entre a floresta e eu! Algo que não<br />

se pode explicar com palavras apenas. Era a energia da vida, fluindo em<br />

cada parte do meu corpo!<br />

Amava aquele lugar! Amava sim, sem condições ou imposições,<br />

apenas um amor puro e intenso!<br />

Descobri um amor tão forte por cada árvore, por cada forma de<br />

vida... tudo se completava numa trama esplendida do criador de toda essa<br />

maravilha!<br />

Eu fazia parte de cada coisa toda! Até ao ar que respirava dava valor,<br />

e quando achava alguma semente, raiz, ou larva, num sentimento de<br />

agradecimento à natureza me alimentava sem desperdício, para que não<br />

fosse em vão a criação daquele alimento até o dia de saciar minha fome.<br />

Havia alegria em meu vôo e eu tinha um grande amigo!<br />

Eu conhecia muitos animais na floresta, eu gostava de cada manhã de<br />

sol ou até mesmo de chuva, e me sentia orgulhoso em voltar para a árvore<br />

do nosso ninho toda tarde, cansado e cada vez mais forte!<br />

12


Certo dia, em um dos meus vôos da manhã, eu encontrei piando entre<br />

as árvores, um canário-da-terra. Era filhote, mas já sabia voar. O que me<br />

chamou a atenção foi o tom triste e desesperado com que piava, como se<br />

estivesse aflito. Chamava-se João e estava preso em uma coisa chamada<br />

armadilha, assim o papai disse que essas coisas se chamavam. Ele apenas<br />

contava, mas nunca teve coragem de mostrar uma para a gente e sempre<br />

dizia para não chegarmos perto. Era a única coisa que o papai tinha medo,<br />

tinha medo até de falar a respeito. Era uma armação frágil de linha, mas<br />

para o João seria impossível sair dali. Eu era pouco maior que um<br />

periquito, mas tinha uma força muito grande no bico, pois ficava muito<br />

tempo quebrando galhos e roendo troncos das árvores para me fortalecer.<br />

Senti medo ao lembrar do que o papai falava, mas fiquei aflito vendo<br />

aquele pequeno pássaro se debatendo. Lembrei do dia que as araras me<br />

salvaram do gavião e senti que eu precisava salvar aquele pequeno pássaro.<br />

Eu era bom e precisava ajudá-lo. Então fui até lá e despedacei o fio da<br />

armadilha com uma única bicada. Ele saiu voando daquele pau-d’arco e<br />

disse para ter cuidado com os homens. Disse que os homens estavam por<br />

perto.<br />

Homens? O que será que ele quis dizer?<br />

Então eu avistei coisa nova. Eram duas criaturas diferentes dos<br />

animais da floresta! Cobriam o corpo com coisas coloridas e soltavam<br />

fumaça por um canudinho que colocavam na boca.<br />

As criaturas deveriam ser os tais homens. Eles colocaram perto da<br />

árvore uma porção de sementes de girassol e aveia. Estavam dentro de uma<br />

13


caixa com uma porta aberta. Eu nunca havia visto tantas sementes juntas no<br />

mesmo lugar. Na floresta ficávamos a manhã toda procurando e<br />

conseguíamos tão pouco.<br />

Eu estava com fome e fiquei indeciso olhando para os homens<br />

sumindo na mata. Eu não estava mais vendo os dois seres. Fiquei um bom<br />

tempo naquele galho olhando e nem as folhas da mata se mexiam. A fome<br />

aumentou muito e eu estava seduzido por aquela imagem, e então eu desci.<br />

Quando olhei de perto era a visão de um pequeno manjar, um paraíso de<br />

guloseimas! Já podia sentir o óleo circulando em minha garganta. Eu estava<br />

faminto e entrei naquela caixa. Foi quando a porta se fechou e eu tentava de<br />

todas as formas sair. Fui ficando desesperado e gritava, mas ninguém vinha<br />

me ajudar.<br />

Foi quando eu escutei alguma coisa se aproximando e fiquei calado,<br />

assim como os pais ensinaram. As folhas secas eram pisadas. Eu ouvia<br />

algum tipo de animal fazendo barulho, porém não havia escutado nada<br />

parecido até hoje. Era um som demorado e outro animal correspondia.<br />

Palavras! Eram os homens e estavam dizendo palavras. A sua forma de<br />

comunicar me deixou com medo, eu ficava quieto, pensando que não<br />

perceberiam minha presença naquela caixa.<br />

Meu coração batia forte de uma forma que jamais bateu antes...<br />

Senti bruscamente a caixa sendo erguida e meu corpo jogado para<br />

baixo com o impulso.<br />

Novamente comecei a me debater num desejo desesperado de sair<br />

dali, pois não sabia o que estava acontecendo mas foi inútil. Passado algum<br />

tempo a porta se abriu e quando saí fui parar em uma caixa de ferro grande,<br />

com muitos furos e dentro vários pássaros que eu já tinha visto na floresta<br />

voando livres. Eles se debatiam e eu já não tinha mais forças para voar,<br />

então fiquei no canto apenas observando aquela cena desesperadora.<br />

- Acho que já está bom!<br />

- É, essa época do ano é muito boa mesmo!<br />

- Não te falei, é só chegar o calor que aparecem filhotes, aí fica fácil!<br />

Não são tão ariscos como os grandes e é bem mais fácil vender.<br />

- Aqui, pra não morrer muito, vamos deixar destampado até chegar à<br />

estrada, aí depois cobrimos, senão vai ser viagem perdida.<br />

- Você se preocupa demais com esses bichos, se morrer voltamos e<br />

pegamos mais. É de graça mesmo!<br />

- Certo. Agora vamos.<br />

A caixa enorme onde estávamos e que os dois homens chamavam de<br />

gaiola foi colocada dentro de uma coisa que fazia barulho e andava rolando<br />

pelo chão soltando fumaça preta.<br />

Era um animal sem vida e sem pêlos, com cores que não pareciam<br />

ser da mata. Os dois homens chamavam de caminhonete. A coisa seguiu<br />

caminho no meio da mata onde não havia muitas árvores e chegou a um<br />

14


lugar diferente! Não havia terra e uma trilha cinza seguia em linha reta.<br />

Havia uma linha amarela no meio do estranho caminho e ele cortava a<br />

floresta. Eu olhava para o lado de fora sentindo uma angústia<br />

desesperadora em meu coração, meus olhos estavam cheios, tão cheios de<br />

tristeza que até as nuvens dos dias de chuva em que nasci teriam inveja. Os<br />

outros pássaros já estavam cansados e já não voavam dentro daquela<br />

armação procurando fugir. Meu coração batia forte e eu sentia os medos da<br />

vida! Num aperto senti que tudo iria mudar, senti arrancado de mim tudo<br />

que eu sou. Ao ver a floresta se distanciando cada vez mais senti que a<br />

minha vida ficava ali e somente meu corpo estava naquela gaiola com os<br />

outros pássaros. Eu gritava, esperando que algum animal pudesse me<br />

socorrer, mas era em vão.<br />

O carro parou depois de um tempo e um dos homens veio, cobriu a<br />

gaiola com um manto escuro e abafado, então depois disso não vi mais<br />

nada.<br />

*****<br />

Capítulo 2<br />

Era um lugar estranho e não havia árvore. Havia muitos homens no<br />

mesmo lugar. Era fechado e cada pássaro estava em uma gaiola diferente.<br />

Havia homens com pêlos maiores na cabeça e não tinham pêlos no rosto.<br />

Depois de um tempo percebi que eram as fêmeas da estranha espécie<br />

chamada homem.<br />

15


Estávamos pendurados, longe do chão. No alto não se via o sol, mas<br />

havia vários globos de luz parecidos com o sol, e quando um dos homens<br />

queria, podia desligar o globo simplesmente tocando em um quadrado que<br />

ficava na parede.<br />

Que lugar era esse? Onde se encaixa esse momento no curso da<br />

minha vida? Que sentido, que parte do ensinamento era essa? Cadê meus<br />

pais, os meus irmãos, a floresta e tudo que eu conheci?<br />

Eu não podia sentir o cheiro da floresta, e isso me fez perceber que<br />

aquele lugar era longe de minha casa. Os sons da floresta foram<br />

substituídos pelos sons dos carros que passavam do lado de fora do quarto<br />

onde estávamos.<br />

Eu a tudo observava procurando respostas, tentando entender o que<br />

estava acontecendo.<br />

As pessoas davam aos dois homens umas coisas finas parecidas com<br />

folhas de árvore. Era colorido e eles chamavam de dinheiro. Depois eles<br />

escolhiam o pássaro que iriam levar embora.<br />

Todos os dias eu ficava naquele lugar e vi os pássaros indo embora<br />

um após o outro. Dois morreram na gaiola tentando fugir. Machucaram<br />

tanto o próprio corpo, se chocando contra aquelas armações de madeira que<br />

acabaram por morrer, talvez pelas feridas ou pela angústia de não estar<br />

mais na floresta. Eu ficava quieto e em silêncio. Observava aquilo tudo<br />

procurando entender a razão de tanta maldade e qual seria o motivo de<br />

estarmos dentro daquelas gaiolas sem poder voar.<br />

Havia um pequeno homem chamado Teleco. Todos os dias ele ia lá<br />

naquele lugar para colocar comida para nós e às vezes ficava brincando<br />

com um ou outro pássaro. Ele não parecia ser tão cruel quanto os outros<br />

dois homens que me tiraram da floresta.<br />

Novos pássaros da floresta chegaram na outra semana, entre eles o<br />

pequeno canário-da-terra João. Ele contou que viu quando fui aprisionado<br />

pelos homens, que depois disso voou pela floresta para contar à minha<br />

família, falou da tristeza que meus pais sentiram e dos gritos de desespero<br />

deles. Contou da saudade que sentiram nos outros dias depois que parti,<br />

que meus irmãos procuraram pela floresta e gritavam meu nome. Depois<br />

João falou que caiu em outra armadilha na floresta quando estava<br />

procurando comida. Disse que estava com fome e achou que conseguiria<br />

tirar os grãos de alpiste da armadilha sem ficar preso. Disse que acreditou<br />

que poderia, espelhando-se na minha coragem em tirá-lo da armadilha.<br />

Eu mal prestei atenção ao que ele falava depois que disse sobre<br />

minha família. Meus olhos caíram ao chão como duas gotas de chuva e a<br />

tristeza se apossou de todo o meu corpo naquele momento.<br />

Qual a razão de tamanha maldade? Que mal eu fiz a esses homens<br />

para roubarem dessa maneira a minha felicidade? Se é pra viver assim me<br />

mata vida! Tira desse beco sem saída essa pobre alma que desde o<br />

16


nascimento não cometeu erro algum e hoje aprisionado padece de<br />

felicidade, abandonado no canto de uma parede.<br />

Minha tristeza era evidente e minha pequena alma de papagaio se<br />

despedaçava de dor dentro de mim quando ele contava sobre a floresta e<br />

sobre os dias que se passaram depois que eu saí.<br />

Eu já não tinha forças para comer e a saudade de tudo que eu estava<br />

acostumado a ser e viver atormentava tanto que meu coração sangrava as<br />

tristezas todas. Fui criando um ódio cada vez maior daqueles dois homens<br />

que todos os dias avistava passando de um lado para o outro mostrando os<br />

pássaros a outros homens que iam lá naquele lugar. Por vezes sonhei que os<br />

machucava, fugindo da gaiola e salvando aqueles pássaros... salvando a<br />

minha própria vida.<br />

Em poucos dias João foi comprado por um homem que o viu<br />

cantando e gostou muito do som que fazia. Quando vi que iriam levar o<br />

João comecei a gritar e um dos homens que me tirou da floresta bateu na<br />

gaiola para que eu ficasse quieto. Naquele momento eu disse adeus ao<br />

João, o pequeno canário, e num olhar triste ele simplesmente respondeu:<br />

até logo!<br />

Ele disse que podia sentir a intensidade do ódio nos meus olhos,<br />

disse que era algo que nunca havia sentido antes, que pairava no ar como<br />

cheiro de dama-da-noite.<br />

17


Eu fui comprado por um menino que passava de carro com seu pai e<br />

parou em frente daquele lugar onde nós éramos deixados. O pai dele disse<br />

para que escolhesse um pássaro e ele me escolheu. Mesmo que eu não<br />

tivesse muitas penas na cabeça era o único papagaio ali, os outros eram<br />

pássaros pequenos. Eu brincava com uma bolinha de madeira, procurando<br />

quebrá-la para sentir a mesma sensação que sentia quando quebrava os<br />

galhos das árvores ou as castanhas lá na floresta. O Teleco havia colocado<br />

a bolinha para que eu não ficasse tão triste. Parecia entender o que se<br />

passava comigo naquele lugar tão fechado.<br />

O menino que me levou tinha uma toca grande e bonita, mas eles não<br />

chamam de toca e sim casa.<br />

Quando o menino chegou, me colocou em uma árvore que tinha em<br />

uma pequena relva a qual rodeava a casa. Era o jardim.<br />

Quando chegava a noite ele me colocava dentro da casa sobre a mesa<br />

da cozinha em uma outra gaiola. Essa era de metal, pois as de madeira eu<br />

destruía, procurando afiar o bico.<br />

A mãe dele não gostava que eu ficasse lá naquela mesa, com medo<br />

que eu sujasse tudo. Ora, girassol espalha as cascas quando eu como, e não<br />

vá querer que eu tome água sem chacoalhar o bico, pois foi assim que<br />

aprendi lá na floresta. Com o tempo fui percebendo que ela jamais gostaria<br />

de mim. Era uma pessoa muito fechada, muito triste de espírito!<br />

Eu achava tudo estranho naquele lugar chamado cidade e sempre<br />

sentia, com muita dor em meu coração, saudades da floresta. Sentia minha<br />

inocência de animal das matas esmaecer dentro de mim, dando lugar à<br />

malícia, a um sentimento tão corrupto! Eu estava me tornando uma outra<br />

coisa com tudo que estava aprendendo na cidade.<br />

Certo dia, o Serginho, que era o meu dono, disse que à noite todos<br />

iriam a uma festa. Ele me explicou o que era e eu não entendi bem, mas<br />

ouvi a tudo bem atento. À noite quando eu já estava dormindo na gaiola na<br />

cozinha, ouvi barulho de passos. Para mim seria o Serginho. Sempre nas<br />

noites em que não conseguia dormir ia até a cozinha na ponta dos pés para<br />

não acordar seus pais e tomava um copo de leite. O tal leite segundo ele<br />

vinha de um animal chamado vaca. Eu pensava que era invenção dele,<br />

afinal papai nunca falou desse animal lá na floresta e eu achava que todos<br />

os animais viviam na floresta.<br />

O barulho dos passos era semelhante então eu comecei a conversar:<br />

- Olá... cadê o louro?<br />

- Ei Nestor! Você disse alguma coisa?<br />

- Eu não chefe. Achei que tinha sido o senhor.<br />

18


- Será que tem alguém em casa? Vamos dar uma olhada na cozinha.<br />

Passos mais silenciosos do que os primeiros se aproximaram e eu<br />

cantava uma música. A mesma que aprendi a cantar todas as manhãs. De<br />

repente um dedo acendeu a luz. Não era o Serginho nem o pai dele, o<br />

Pedro. Eles eram sempre os primeiros a acordar todas as manhãs, e me<br />

tiravam para fora da casa, me colocavam para tomar sol na árvore do<br />

jardim.<br />

Eram dois homens. Eu interrompi minha música e tive medo. Era<br />

como ver um dos animais da floresta. Fiquei encolhido observando aquelas<br />

duas criaturas assustadoras!<br />

- Ei chefe! O que vamos fazer com o papagaio?<br />

- Leva ele junto com as coisas. Talvez a gente consiga um bom<br />

dinheiro com ele já que está falando bem. Coloca dentro do saco e vamos<br />

sair logo daqui.<br />

- Mas chefe...<br />

- Menos conversa Nestor. Quem manda aqui sou eu entendeu?<br />

- Sim chefe, mas ele tem o bico afiado! Eu não coloco a mão nele<br />

não. Vou levar com gaiola e tudo.<br />

Então fui colocado em um saco abafado que estava cheio de coisas<br />

da dona Amanda. Alguns colares que ela usava no pescoço, vasilhas,<br />

dinheiro...<br />

Os dois saíram da casa rápido e entraram em um carro que estava<br />

parado na rua um pouco distante do portão.<br />

Eu estava assustado, mas fiquei em silêncio para ver o que estava<br />

acontecendo.<br />

Quando o carro começou a andar eu comecei a observar aquelas<br />

luzes todas. Eu nunca havia visto a noite e as estrelas aqui, assim desse<br />

jeito. Lá na floresta quando começava a anoitecer todos nós nos<br />

escondíamos no ninho por causa dos animais da noite, e pela abertura do<br />

ninho podíamos ver um céu todo repleto de estrelas e a lua clareando a<br />

noite. Aqui o céu não tem tantas estrelas e existem muitas luzes nas ruas!<br />

- Amanhã mesmo você vai à loja de pássaros e tenta vender esse<br />

bicho Nestor.<br />

- Ah chefe! Vamos ficar com ele. Ele sabe cantar e quero ensinar a<br />

falar meu nome. É muito esperto e eu sempre gostei de animais de<br />

estimação.<br />

- Nada disso. Não quero ficar ouvindo esse bicho o tempo todo<br />

falando na minha cabeça.<br />

- Está bem chefe. Mas eu ainda acho que a gente deve ficar com ele.<br />

Amanheceu chovendo. O Nestor me colocou em uma gaiola pequena<br />

e cobriu com um pano escuro. Por uma pequena abertura eu conseguia ver<br />

o beco. Parecia com as trilhas da floresta, mas em vez de árvores havia<br />

somente casas, e em vez de animais, pessoas. Ele foi caminhando comigo<br />

19


por esse beco e alguns respingos de chuva me alcançavam debaixo do<br />

guarda-chuva. O cheiro de terra molhada e ar frio das manhãs chuvosas na<br />

floresta... que tristeza! Que saudade da minha vida! Que castigo tão cruel é<br />

esse que está acontecendo comigo? Fui tirado da floresta e agora estou aqui<br />

nesse lugar tão cheio de maldade, sem saber o que vai acontecer comigo.<br />

O que será essa trama toda da vida, do destino? Por que isso está<br />

acontecendo comigo?<br />

Essas reflexões machucavam muito por dentro. O desespero é algo<br />

tão impressionante! Não posso sair daqui, sei que em algum lugar minha<br />

família chora minha perda e nem ao menos posso dizer que ainda estou<br />

vivo.<br />

Toda hora que o Nestor passava por algum conhecido levantava o<br />

pano para me mostrar. Ele gostava quando eu ficava repetindo o nome dele,<br />

e olha que aprendi na primeira vez que ele pediu pra que eu falasse. Estava<br />

me ensinando palavras novas que as pessoas achavam graça quando eu<br />

falava.<br />

A loja de pássaros estava fechada naquele dia, então o Nestor voltou<br />

comigo para a sua casa. Na verdade nem era uma loja de pássaros. Era a<br />

casa daqueles dois homens. Eles vendiam pássaros escondido. Na frente da<br />

loja era uma loja de ração para animais e nos fundos ficavam os pássaros.<br />

Era tarde. Por volta de quatro horas. O Gilmar chegou apressado em<br />

casa com um jornal que tinha minha foto com o Serginho. Lembro bem da<br />

foto. Foi logo que eu cheguei. Eu deveria saber, aquela falta de penas na<br />

cabeça era reconhecível em qualquer lugar do mundo.<br />

- Ei Nestor, já tinha visto isso aqui antes?<br />

- Sim chefe. Hoje cedo quando fui levar o papagaio na loja, mas<br />

como não sei ler...<br />

- Idiota! E por que não me avisou? Os donos do papagaio estão<br />

procurando o bicho e ofereceram recompensa. Eles vão nos achar. Você<br />

mostrou esse bicho pra favela inteira.<br />

- E o que vamos fazer chefe?<br />

- Pega o que der pra pegar, vamos cair fora. Ficar escondidos na casa<br />

perto da estrada e deixar esse bicho em algum lugar. Não podemos deixá-lo<br />

aqui senão vão ter certeza que fomos nós. A gente o deixa em algum lugar,<br />

se alguém achar e colocar a culpa em nós é só negar.<br />

- Mas chefe, e se ele entregar a gente? Ele sabe falar nossos nomes e<br />

pra onde estamos indo. O papagaio é muito inteligente e ouve só uma vez<br />

as coisas e aprende.<br />

- Não seja tolo Nestor! De onde tirou essa idéia?<br />

- Acho que temos que levar ele. Não vai dar pra gente pegar a<br />

recompensa mesmo.<br />

- Gilmar, currupaco... Nestor, currupaco...<br />

20


Capítulo 3<br />

O Nestor havia se tornado um camarada meu durante a viagem.<br />

Ensinava todo tipo de truque, mexer com as minas, contar umas piadas<br />

maneiras, falar mal dos barbeiros na estrada e dizer um montão de palavras<br />

que as pessoas chamavam de palavrão.<br />

O Lugar para onde estávamos indo não ficava muito longe da cidade.<br />

Havia mato e cada vez que a brisa chegava às minhas narinas eu lembrava<br />

do frescor da mata virgem que era meu antigo lar. A brisa vinha tocando<br />

levemente nas árvores na encosta da estrada.<br />

Por um momento, olhando para o lado de fora, pensei que estava<br />

voltando para a floresta e que aquele pesadelo estava para acabar. Meu<br />

coração voltou a bater com felicidade e eu estava ansioso, por isso<br />

observava atento o mato do lado de fora, para ver se reconhecia algum<br />

trecho, talvez o lugar onde começava a estrada de terra onde o carro estava<br />

quando fui capturado. Então eu simplesmente sairia voando para lá.<br />

Dentro do carro o Gilmar permanecia tenso e disse ao Nestor para<br />

me esconder dentro da jaqueta dele para que o policial não visse. Eu<br />

lembro que eu estava no ombro do Nestor e ele me pegou rápido e<br />

escondeu com brutalidade.<br />

- Olá seu guarda! Tudo em cima?<br />

- Eh... só rotina mesmo. Posso ver sua habilitação e os documentos<br />

do carro?<br />

- Claro! Aqui está ela.<br />

Parecia que o Nestor não tomava banho há dias e aquele cheiro me<br />

incomodou. Tentei sair e ele começou a se contorcer dando uns gritos<br />

baixos.<br />

- Que há com seu amigo?<br />

- Nada não seu guarda. O Juliano está com uma baita diarréia e<br />

precisamos correr. Até logo!<br />

- Até logo! E dirijam com prudência.<br />

- Ei Nestor... que foi aquilo lá atrás? Queria que nos pegassem com o<br />

papagaio?<br />

- Não chefe. Claro que não, mas esse papagaio começou a me fazer<br />

cócegas.<br />

- Não era cócegas seu idiota... eu estava te arranhando, currupaco...<br />

olha só o que eu fiz.<br />

- Minha nossa!<br />

- Rá, rá, rá! Muito boa papagaio! Aí Nestor, bem você me disse pra<br />

trazer esse bicho, foi mesmo uma ótima idéia! Agora vejo que foi mesmo.<br />

Eu conseguia copiar tudo, bastava ver ou ouvir. Eu rabisquei as letras<br />

de um time de futebol no peito dele. Eu não entendia muito bem do<br />

21


assunto, mas ele torcia para um time chamado Flamengo e o Gilmar para o<br />

outro time, o Cruzeiro. Lembro que o Serginho gostava do Santos e o pai<br />

dele gostava do Atlético. Eles ficavam discutindo futebol e eu já tinha visto<br />

na casa do Serginho, na televisão as letras que diziam CMA, e ele não<br />

gostava. Era isso, um monte de pessoas que gostavam do tal Cruzeiro, e<br />

como o Nestor não gostava eu resolvi me vingar.<br />

Eu conseguia copiar tudo que via ou que ouvia. Talvez a saudade de<br />

casa e a vontade de voltar me deixavam ansioso, e eu substituía essas<br />

coisas por uma criteriosa atenção a tudo que via.<br />

Se eu tivesse nascido gente gostaria de ser pintor, e queria pintar a<br />

floresta onde nasci e todos os animais e plantas, mas por outro lado, se não<br />

tivesse nascido papagaio não teria desvendado a floresta onde nasci e não<br />

teria conhecido coisas tão bonitas lá!<br />

Então passamos em frente a um riacho com uma água verde e suja!<br />

Lembrei-me do meu amigo das águas limpas e cristalinas da floresta, o<br />

peixe Vernacleto. Novamente a tristeza chegou aos meus pensamentos.<br />

Lembrei do dia em que ele me ensinou que debaixo da água havia um<br />

universo tão amplo como o da floresta, do lado de fora da água, agora estou<br />

descobrindo um outro universo aqui nesse lugar cheio de pessoas e carros.<br />

Seria tão bom se eu pudesse construir o meu próprio universo,<br />

somente com as coisas que eu gosto, e tirar tudo o que me entristece!<br />

Mudar as coisas de lugar, tirar o ódio do coração dessas pessoas e acabar<br />

com a minha tristeza! Eu iria morar num lugar com várias palmeiras, para<br />

todos os dias pela manhã comer buriti vendo o sol surgir atrás de uma<br />

montanha verde de mata densa. Eu gostaria de me molhar nas águas do rio<br />

e de ser feliz com todos os animais. Esse paraíso existe, e eu fui tirado de lá<br />

e trazido para esse lugar horrível! Lá não havia o ódio e até mesmo o<br />

gavião só caçava os animais para se alimentar, aqui existe ódio e<br />

desonestidade. Eu nem sabia o que era isso e agora eu sei.<br />

Nós chegamos a uma casa velha e um pouco assustadora depois de<br />

umas poucas horas de viagem no carro do Gilmar. Era noite e após<br />

acenderem os lampiões da casa, o Gilmar arrumou as duas camas que tinha<br />

no quarto da casa, único cômodo do segundo andar. Havia muita sujeira,<br />

muita poeira naquele lugar!<br />

O Nestor estava fazendo comida para eles como fazia todos os dias.<br />

Depois ele colocou girassol e pedaços de maçã em uma vasilha para mim.<br />

Os dois ficaram um tempo jogando baralho e bebendo muito. Eu<br />

permaneci no alto de um guarda-roupas velho observando os dois.<br />

Então fomos dormir.<br />

Embora cansado, meus sonhos eram tão tristes. Eu sabia que aquele<br />

lugar não era perto da minha floresta e isso reduziu minha esperança<br />

naquela noite.<br />

22


Eu escutava os grilos do lado de fora da casa, mas o som não era<br />

igual ao som dos grilos da floresta. Havia perfume de flores, mas também<br />

não era semelhante.<br />

*****<br />

Ouvindo o barulho alto dos tiros eu acordei assustado e voei pelo<br />

quarto, batendo nas paredes. Havia pouca luz, somente a lua. Tentei achar<br />

refúgio.<br />

- Esquece, vamos cair fora. – gritou o Gilmar.<br />

Quando pousei na beira da janela vi os dois correndo pelo gramado<br />

na direção do carro.<br />

- A gente não devia ter vindo pra cá chefe. O fantasma do Wilson tá<br />

assombrando a casa.<br />

- Eu vi Nestor. Era o fantasma do Wilson, que você matou, lembra?<br />

- Chefe, mas o senhor me obrigou a fazer aquilo.<br />

- O sujeito estava prestes a nos entregar para a polícia. O que você<br />

queria que eu fizesse?<br />

- O pior é que deixamos nossas coisas na casa e teremos que voltar lá<br />

para pegar.<br />

- Nada disso. Eu estou indo embora. Não vou ficar aqui nem mais<br />

um minuto. Temos grana, compramos novas roupas.<br />

- Mas e o papagaio?<br />

- Esquece o papagaio. Esse bicho só tem nos causado problemas. Se<br />

tivéssemos deixado ele na cidade, lá naquela casa que assaltamos no outro<br />

dia, não precisaríamos ter vindo parar aqui. Eu to com minha carteira e a<br />

grana das jóias está aqui. Vamos voltar pra cidade e esse papagaio que se<br />

vire.<br />

- Coitado do papagaio!<br />

- Esquece! Coitados somos nós. Ele que se arrume, afinal não nasceu<br />

quadrado.<br />

- Eu gostava dele!<br />

Quando os dois saíram com o carro eu tentei segui-los voando, mas<br />

eu já não voava tão bem como antes, na floresta... minha casa, minha<br />

floresta tão amada que levo em minhas recordações mais doces e mais<br />

tristes...cada vez mais tristes.<br />

Estava difícil voar como antes, afinal desde que os dois homens me<br />

tiraram da floresta eu só ficava em gaiola! Eu fiquei cansado rápido, tinha<br />

certo tempo que eu não voava assim por tanto tempo, eu estava fora de<br />

forma e fui me cansando cada vez mais enquanto o carro sumia na distância<br />

à noite a caminho da cidade. Senti como se fosse um dos meus primeiros<br />

vôos...<br />

Então os perdi na distância e no escuro da noite. A luz do farol foi<br />

sumindo e eu ainda tentei voar mais rápido para os calnançar.<br />

23


Mas eu fiquei ali, naquele galho de árvore. O único que consegui<br />

alcançar depois do cansaço do vôo. Era noite e havia desespero, o rumo dos<br />

perdidos.<br />

Minha vida dependeria da sorte, pois eu estava só, num lugar<br />

desconhecido. Que acontecimentos a vida reservaria para mim?<br />

Cansado, com medo e sem saber o que fazer, tentei me esconder nas<br />

folhas da árvore, com medo de algum predador, das cobras, dos animais da<br />

noite e até mesmo do gavião.<br />

Eu estava sozinho, e era apenas um papagaio. Não havia nem mesmo<br />

outros pássaros diferentes para ficarmos juntos e tentarmos afastar os<br />

outros animais com o nosso barulho.<br />

Papai dizia que um papagaio sozinho não pode fazer nada, mas eu<br />

não fui premiado com o direito da escolha, minha vida foi roubada da<br />

floresta e deixada numa árvore, num lugar que não conheço, num universo<br />

que somente tem revelado tristeza, decepção e dor ao meu coração que bate<br />

com tanta angústia que nem mesmo todas as flores da floresta, em beleza e<br />

perfume seriam capazes de se equiparar a tamanha infelicidade que esse<br />

lugar me presenteou desde que vim parar aqui.<br />

A vida é um grande enigma! Qual o motivo de viver? Nós sonhamos<br />

desde o dia que nascemos e nunca conseguiremos realizar todos os sonhos.<br />

Tudo é difícil desde a comida até a sobrevivência! Há sempre mais perigos<br />

do que segurança! Há sempre mais tristeza e decepção do que felicidade!<br />

Por isso cada vez que estamos felizes queremos que dure para sempre, mas<br />

nada na vida dura para sempre...tudo morre, as plantas, a água, os animais,<br />

o ar, a noite e até mesmo as estrelas e todo o universo!<br />

Eu só queria voltar pra minha casa e voltar a viver!<br />

24


Capítulo 4<br />

- Juca, não quero que você faça mais nenhuma grosseria entendeu?<br />

Você já é um garoto crescido! Já tem idade para assumir certas<br />

responsabilidades, comportamento...<br />

Mesmo eu pegando no sono meu pai prosseguia em seu sermão de<br />

boas maneiras, sem saber que na verdade era ele quem fazia as coisas<br />

erradas e que quando eu não concordava, a razão era minha.<br />

Então quando anoiteceu eu fugi de casa. Ele brigou comigo por coisa<br />

boba, e sempre acaba descontando outros problemas em mim quando vai<br />

falar algo.<br />

Não gosto dos amigos dele! São pessoas maldosas!<br />

Ele não entende que eu tenho minha maneira de pensar, mesmo o<br />

respeitando muito eu não posso negar que tem coisas que acho errado.<br />

Os amigos dele são todos cachaceiros e ficam vindo aqui em casa só<br />

pra encher a cara. Hoje fui falar com um deles e o pai não gostou, mas na<br />

verdade ele também não gosta que esse pessoal venha tantas vezes aqui em<br />

casa comer a nossa comida e beber a pinga que ele compra toda semana.<br />

Ele os trata bem mesmo assim por causa que deve favores a eles, favores<br />

que nunca falou pra mim do que se tratava, mas acho que deve ser dinheiro.<br />

Eles entram na mata que fica lá para os lados da serra e caçam<br />

muitos animais. Essa é a grande diversão deles, mas isso sempre me<br />

incomodou, não acho certo.<br />

25


Algumas vezes eles voltam com tatus agonizando, outras vezes<br />

onças, e em outras vezes eles matam os animais, tiram a pele e trazem para<br />

secar no varal como se fosse uma roupa, para depois vender.<br />

*****<br />

Juquinha havia fugido de sua casa na mesma noite em que o Nestor e<br />

o Gilmar foram embora daquela casa velha. A casa do Juquinha ficava<br />

longe, coisa de uns dez minutos de vôo, na direção da cidade.<br />

Fui encontrado pelo Juquinha, adormecido junto de uma construção<br />

rasa chamada poço, que ficava na metade do caminho entre a estrada e a<br />

casa dele. Eu estava exausto e procurei comida por perto e não havia nada,<br />

então quando pousei naquela construção acabei dormindo.<br />

Assustei-me com o barulho dos seus passos, esmagando folhas secas.<br />

Pensei que fosse algum animal, ou lobo ou onça. Eu já vi o desenho do<br />

lobo na casa do Serginho, em uma revista que tinha uma lua cheia na capa,<br />

igual à que estava no céu naquele final de madrugada.<br />

Quando vi o garoto fiquei mais tranqüilo e lembrei do Serginho. Não<br />

senti maldade nem agressividade no seu semblante, por isso permaneci<br />

quieto até que se aproximasse.<br />

Lembro bem do nosso primeiro diálogo naquele encontro. Ele estava<br />

triste e eu apavorado. Ele tinha bolo e eu comi um pedacinho.<br />

- Ei papagaio! De onde você veio?<br />

- Selva, floresta do papagaio, currupaco, floresta, selva... papagaio...<br />

Uma apresentação informal de personalidades, em que eu era o astro<br />

maior, já que sou protagonista dessa história...<br />

- E qual é o seu nome?<br />

- Nome, nome, currupaco!<br />

- Hum! Acho que você não tem um nome. Está bem. Eu tinha um<br />

pombo chamado Petrúcio, só que ele morreu algum tempo atrás quando era<br />

muito velho! Eu vou te chamar de Petrúcio está bem?<br />

- Petrúcio, Petrúcio, currupaco!<br />

Pela primeira vez que reconhecia o significado de um nome: era o<br />

que diferenciava o Serginho do Juquinha, o Nestor do Gilmar e eu dos<br />

outros papagaios da minha família.<br />

Isso aconteceu no dia em que ele fugiu e no mesmo dia, motivado<br />

pela grande descoberta, voltou pra casa me levando junto.<br />

O pai dele estava arrependido por ter gritado e pediu desculpas.<br />

Achou uma boa idéia que o menino tivesse um bicho de estimação para<br />

fazer companhia já que naquela casa havia muita solidão e naquele campo<br />

nenhum amigo. Era um verdadeiro exílio, sem pessoas e somente mato.<br />

Uma visão bonita para mim, pois lembrava da floresta onde nasci. Eu nem<br />

sei pra que lado ela fica, e nem sei como pedir para alguém me levar pra lá.<br />

Só consigo falar o que aprendo e nem sei formular as minhas próprias<br />

26


frases de apelo. Sou um animal que pode falar, mas me sinto mudo e sem<br />

ações ao mesmo tempo. Essa situação sempre fez com que meu coração<br />

batesse no compasso do desespero, por dentro minha alma chorando toda<br />

hora e esperando ansioso o momento de sair dessa prisão, desse lugar.<br />

Vontade de ir embora para minha floresta e reencontrar meus pais, irmãos,<br />

os outros animais, o peixe Vernacleto. Vontade de viver de novo e esquecer<br />

de tudo que se passou nesse lugar tão cheio de infelicidade e confusão.<br />

O pai dele era um cara muito chato e se zangava com tudo! Seu<br />

nome era Adamastor e sempre achava ruim quando eu dizia:<br />

- Fica frio coroa, currupaco!<br />

- Juca, ou você manda esse bicho imprestável calar ou teremos<br />

ensopado de louro no jantar.<br />

- Coroa, pó-de-arroz, pó-de-arroz, currupaco!<br />

Algumas vezes me jogava arroz cru, outras vezes água fria...<br />

Adamastor vivia na casa com o Juquinha, e algumas vezes saía com<br />

uma espingarda e ficava muito tempo na mata que havia nas imediações.<br />

Era possível ouvir o barulho de tiros. Ele caçava animais juntamente com<br />

uns homens que iam até lá nos fins de semana. Divertiam-se com a morte<br />

de lobos, pacas, onças e jacarés. Quando voltavam traziam animais mortos<br />

e em algumas vezes comiam, em outras tiravam a pele para vender.<br />

Tudo era muito triste de se ver e o Juquinha não gostava do que o pai<br />

fazia.<br />

O Juquinha sempre me levava pra fora da casa quando eu falava<br />

demais. O Adamastor não gostava nem um pouco das coisas que eu dizia.<br />

Nestes dias em que permaneci na casa, sem perceber acabei cultivando um<br />

grande inimigo.<br />

Um dia quando o Juquinha foi pegar água no poço, seguindo<br />

conselhos do próprio Juquinha, veio falar comigo:<br />

- Escuta bicho imprestável: de onde você veio?<br />

- Selva, selva...<br />

- E onde você aprendeu a falar palavrão?<br />

- Merda, currupaco...anda Nestor, pega logo as jóias, currupaco...<br />

- O que foi?<br />

- Ei mane, vai encarar é? Vai encarar? Vamos pra casa na beira da<br />

estrada, a polícia vai achar a gente, currupaco...<br />

O Adamastor ficou intrigado com o que eu estava falando, porém<br />

acabei bicando o dedo dele até sangrar porque ele veio pegar em mim.<br />

Então ele coberto de fúria me colocou dentro de um balde d’água<br />

mergulhando várias vezes como se quisesse me afogar aos poucos. Foi<br />

quando o Juquinha chegou e ficou furioso com a atitude do pai.<br />

Naquela mesma tarde, um casal amigo dele, chamados Webert e Ana<br />

Paola foram visitar a casa. Juquinha os tratou de um modo grosseiro por<br />

estar com raiva do Adamastor, então à noite os dois discutiram de novo.<br />

27


E agora, depois de tudo isso que aconteceu, chegamos ao momento<br />

atual, horas depois do sermão. Eu já acordei e dentro de alguns minutos,<br />

Juquinha e eu vamos até a estrada esperar por uma correspondência,<br />

sempre deixada na caixa de metal que tem o nome do Adamastor e um<br />

número 13284.<br />

Já havia passado horas e nada do Juquinha aparecer na porta da casa.<br />

Eu esperava do lado de fora no galho da árvore para irmos.<br />

Seu pai abriu a porta com extrema rapidez e fui jogado para o canto<br />

pelo muro de madeira que se move para fora da casa.<br />

Percebi que o Juquinha já havia partido sem mim, talvez ordem do<br />

seu pai. O Adamastor nem veio ver se eu havia me contundido, ele não era<br />

tão legal quanto o Nestor.<br />

Longe vi o Juquinha gritando e chamando por ele. Corria com muita<br />

pressa para chegar até a casa:<br />

- Pai! Vem logo pai!<br />

- O que foi Juca?<br />

- Um acidente pai, na estrada...<br />

O Juquinha então subiu no cavalo e o Adamastor pegou o outro<br />

cavalo e foram para o local. Então voei até o Juquinha e pousei em seu<br />

ombro.<br />

Na beira da estrada havia um carro vermelho virado e em seu interior<br />

uma mulher cheia de sangue. O Adamastor com grande dificuldade<br />

conseguiu abrir a porta do carro e tirá-la de dentro.<br />

Dentro do carro eu vi um brinquedo igual a um brinquedo do<br />

Serginho com o qual sempre brincava comigo, chamado telefone. Eu fui até<br />

lá e mexi nos botões igual ao Serginho e do telefone começou a sair um<br />

barulho, uma voz perguntando umas coisas. Fiquei repetindo as palavras<br />

que escutava, sobre o carro que virou na estrada e o pai do Juquinha estava<br />

salvando a moça, falei que tinha sangue e que o Adamastor era muito<br />

chato. A voz de mulher que saía do telefone perguntou meu nome e eu<br />

respondi. Depois ela perguntou o endereço, acho que era o número da<br />

plaquinha do Adamastor, então falei um por um. Ela escutava os gritos dos<br />

dois tentando ajudar a moça do carro.<br />

A voz do telefone começou a ficar brava e disse que ia mandar<br />

alguém até lá porque eu estava passando trote então eu saí de perto do<br />

telefone. Aquele não era engraçado igual o do Serginho, nem tinha<br />

musiquinhas.<br />

Passavam alguns carros pela estrada e nenhum deles parava, só viam<br />

o que estava acontecendo e depois iam embora.<br />

O Juquinha havia chegado com um balde cheio de água e um pano.<br />

O Adamastor limpou o rosto dela e colocou o pano molhado em sua testa.<br />

28


Assustei quando depois de algum tempo vi uma coisa no céu que<br />

parecia um brinquedo do Serginho, mas era muito maior! Foi quando o<br />

Juquinha falou:<br />

- Olha o helicóptero!<br />

Então eu me escondi na árvore e vi o enorme brinquedo pousar no<br />

mato. Três pessoas saíram do brinquedo igual os bonequinhos do Serginho.<br />

Eles colocaram a moça em uma tábua branca com umas cordas e estavam<br />

colocando a moça dentro do brinquedo. Então voei pra trás do balde e<br />

fiquei olhando da beirada. Estava curioso pra ver o que iria acontecer.<br />

Então chegaram dois carros cheios de luzes piscando, havia sirenes,<br />

igual aos brinquedos do Serginho. Quando os carros pararam, eu me<br />

assustei e voei até uma árvore na encosta da estrada e fiquei escondido,<br />

ouvindo o que conversavam...<br />

- E o senhor é o Petrúcio?<br />

- Não...me chamo Adamastor.<br />

- Quem é o Petrúcio então? Recebemos um chamado na central e até<br />

pensamos que seria um trote, porém os Bombeiros confirmaram o acidente<br />

e o helicóptero veio pra cá de imediato.<br />

- Petrúcio é o meu papagaio.<br />

- Então quer dizer que um papagaio acionou o serviço policial?<br />

Vamos com calma gente, o meu dia está cheio de ocorrências...<br />

- Só pode ter sido ele, nós nem temos telefone...<br />

- Ei pai, o Petrúcio estava dentro do carro.<br />

- Não é possível, será?<br />

Após examinarem o interior do carro, confirmaram a hipótese,<br />

devido a uma prova que acabei deixando sobre o telefone por acaso...mas<br />

espera aí...não é o que estão pensando, foi uma pena que se soltou de mim,<br />

além das marcas de pata que ficaram no telefone, porque minhas patas<br />

estavam sujas.<br />

- Ah sim! Foi o Petrúcio sim.<br />

- Incrível! Nunca vi nada parecido! Precisamos acionar o jornal para<br />

fazer uma reportagem.<br />

Outro carro com sirene estava chegando. Esse era um caminhão e iria<br />

levar o carro da moça para arrumar. Era bonito! Tinha um guincho igual o<br />

caminhão do Serginho. Parecia até que as pessoas estavam brincando!<br />

Tudo era igual às brincadeiras do Serginho, mas lá não tinha a moça com<br />

sangue e os carrinhos eram pequenos.<br />

Enquanto isso o policial anotava tudo que o Adamastor falava em<br />

uma prancheta...<br />

Chegaram mais carros e o Juquinha gritou para o pai que eles<br />

estavam na televisão, umas pessoas, umas coisas estranhas ligadas, luzes...<br />

- E o papagaio?<br />

29


- Ah! O papagaio o meu filho Juca encontrou perto do poço que tem<br />

ali na frente, deve ter se perdido dos donos, pararam por algum motivo na<br />

beira da estrada e...<br />

- Não, não...ele pertence a uma família da cidade. Houve um roubo<br />

de alguns objetos de valor na casa e os ladrões acabaram levando o<br />

papagaio também. Veja esse jornal. Estavam oferecendo até uma<br />

recompensa pelo papagaio.<br />

- Quer dizer que vão levar o Petrúcio?<br />

- Vão sim Juca. Vão levá-lo para os donos.<br />

O Juquinha começou a chorar bem alto e o Adamastor tentava<br />

consolá-lo, sentindo grande satisfação porque eu iria embora, e tentando<br />

esconder isso do Juquinha.<br />

Foi quando um dos homens disse:<br />

- Escuta garoto: temos lá no quartel vários filhotes de pastor-alemão<br />

e não serão todos aproveitados, apenas os que passaram nos testes para o<br />

policiamento. Treinar esses bichos dá muito trabalho! O que você acha de<br />

eu trazer um desses filhotes para você? Se você cuidar bem dele...vai virar<br />

um mascote nota dez! se quiser mando trazer agora mesmo.<br />

Fiquei torcendo para o Juquinha recusar a oferta tentadora do guarda:<br />

trocar um papagaio que dizia palavrão e era odiado pelo pai, por um cão de<br />

raça que seria amado pelos dois. Cruzei minhas patinhas, mas foi em vão<br />

meu esforço de ave... eu iria sair daquele lugar.<br />

O Juquinha concordou em me trocar pelo cão sardento. Fui levado de<br />

volta para a cidade. Imagina só: trocar um papagaio bonitão e boa pinta que<br />

nem eu por um cão cheio de pulgas. Ah, quer saber, o Juquinha não era tão<br />

esperto assim. E pensar que ele que colocou esse nome em mim e agora eu<br />

já aprendi, agora vai ser Petrúcio mesmo, já o decorei e não dá pra mudar.<br />

Gosto do Serginho, mas aqui na casa do Juquinha eu tinha muita<br />

árvore, tinha os outros pássaros...aqui parecia um pouco com a minha<br />

floresta. Eu vivi dias mais felizes aqui, na esperança que aparecesse algum<br />

papagaio do meio do mato pra me ajudar, pra ensinar o caminho de<br />

casa...agora vou ter que ir embora para aquele lugar sem árvores...<br />

- Petrúcio!<br />

Num salto deixei o galho daquela árvore onde me escondi do<br />

movimento e realizei a triste caminhada da derrota, em direção ao carro da<br />

polícia. Foi quando o Juquinha tentou me dizer o que eu já sabia, mas<br />

dificilmente acreditava.<br />

- Petrúcio eu...<br />

- Nenhuma palavra Juquinha, eu já ouvi tudo, currupaco.<br />

E nossa despedida teve um clima de enterro. Foi até bom para que<br />

ele se lembrasse de mim, como uma coisa boa, que vem, e que<br />

passa...como a infância ou a primavera, a chuva da floresta e as descobertas<br />

que eu fiz lá naquele paraíso antes dos homens me trazerem pra cá.<br />

30


Os repórteres ficavam me filmando o tempo todo e me chamavam de<br />

herói. Eles disseram que eu iria aparecer em muitos lugares, então pensei<br />

que alguém na floresta iria me ver e vir me ajudar. Somente depois de<br />

muito tempo fui descobrir que somente os homens assistiam televisão, e<br />

quando eles falaram que eu apareceria em muitos lugares, estava dizendo<br />

que meu rosto triste estaria dentro da casa de cada habitante desse lugar.<br />

Num único momento eu estaria em toda parte, menos na floresta.<br />

Já na estrada, de volta à cidade, passei a ter pressentimentos ruins<br />

sobre meu retorno à casa do Serginho. Parecia tão distante do meu destino!<br />

Capítulo 5<br />

Todos na casa haviam mudado muito o comportamento comigo<br />

passados alguns meses! O Serginho ganhou brinquedos novos, bonitos e<br />

coloridos! Já não me dava mais atenção como antes. Se eu quisesse tomar<br />

sol de manhã, eu mesmo tinha que ir até a árvore, músicas no rádio já não<br />

ouvia mais, pois não ligavam o rádio da cozinha pela manhã. A casa ficou<br />

mais sombria, mais cinzenta, é como se uma energia ruim tivesse levado os<br />

sorrisos daquele lugar.<br />

O Serginho todos os dias pela manhã ia até um lugar que ele<br />

chamava de escola. Ele saía bem cedo antes do sol nascer e nem tinha<br />

tempo para pelo menos me acariciar como antigamente. O sr. Pedro era<br />

quem o levava e depois ia trabalhar. Ele ficava fora o dia todo e quando<br />

chegava estava muito cansado, tinha no rosto uma expressão triste todas as<br />

noites em que ia até a cozinha tomar um copo d’água antes de dormir.<br />

A dona Amanda ficava sozinha em casa nas manhãs. Algumas vezes<br />

um homem ia lá depois de alguns minutos, onze ou doze giros do ponteiro<br />

fininho do relógio da sala que tanto gosto de ficar observando, aprendi a<br />

contar o tempo assim, aqui nesse lugar, convivendo com a minha solidão.<br />

A dona Amanda gostava muito do homem e sempre ficavam sorrindo<br />

muito lá na sala e depois eu não escutava mais os dois.<br />

Certo dia eu estava brincando na cozinha com um pedaço de<br />

madeira. Ninguém abriu a janela pra eu sair e os dois saíram depressa<br />

porque o sr. Pedro teria uma reunião. Ouvi barulhos na casa e fui ver o que<br />

era.<br />

Parecia que não havia ninguém na casa, mas eu escutava barulhos no<br />

segundo andar, conversas, gritos, sorrisos. Eu pensei em subir a escada ou<br />

voar até lá, mas fiquei com medo afinal não sabia o que era então voltei lá<br />

para a cozinha e fiquei escondido, apenas ouvindo.<br />

Nos dias seguintes aconteceu tudo de novo, exatamente igual. Era<br />

incrível como a cena se repetia do mesmo jeito todos os dias após a saída<br />

do Serginho e do pai. Eu sempre ficava escutando sem saber o motivo<br />

daquele barulho.<br />

31


Uma noite o sr. Pedro foi até a cozinha e quando abriu a geladeira eu<br />

acordei. Ele pegou um pedaço de bolo de chocolate e pôs um outro pedaço<br />

do meu lado numa rara cena de gentileza que eu já nem estava acostumado<br />

a receber. Ele parecia triste com alguma coisa, lembro que se sentou na<br />

cadeira da cozinha e eu desci da gaiola até a mesa, depois caminhei para<br />

perto dele.<br />

Ele conversava sozinho sobre algumas coisas que eu não entendia<br />

enquanto guardava aquela fisionomia triste e cansada no rosto.<br />

Eu comecei a conversa, bom, repetir coisas, afinal é isso que todo<br />

papagaio faz. Imitei as palavras que o Serginho me ensinou, algumas que<br />

eu aprendi com o Juquinha então me lembrei dos estranhos barulhos que eu<br />

escutava todas as manhãs e nessa hora o sr. Pedro prestou muita atenção no<br />

que eu repetia. Ele me ouviu dizer muitas coisas e ficou imóvel, somente<br />

me observando. Senti sua fisionomia mudar como se num dia de sol as<br />

nuvens encobrissem o sol.<br />

Ele foi dormir com uma expressão diferente no olhar.<br />

No outro dia foi o primeiro a se levantar e ir até a cozinha. Ficou<br />

parado perto de mim esperando que eu dissesse algo.<br />

Eu lembro que comecei a cantar uma música e ele interrompia.<br />

Demorei um pouco a entender que ele queria que eu repetisse os sons das<br />

manhãs que tanto me atormentavam.<br />

Ele me colocou do lado de fora só que dessa vez dentro da gaiola.<br />

Estava fechada e eu não pude sair. Depois ele subiu até o quarto e pegou a<br />

roupa dele de ir para o trabalho e foi sem o Serginho.<br />

Ouvindo o barulho do carro saindo a dona Amanda levantou<br />

correndo, olhou pela janela e pegou o telefone. Eu a vi na janela<br />

conversando com o brinquedo igual o Serginho fazia.<br />

Quando ela desceu até a cozinha eu pude ver que o Serginho chegou<br />

atrás de pijama, interrompendo a ligação...<br />

- Serginho? O que faz aqui? Seu pai não te levou para a escola hoje?<br />

- Não. Ele saiu e eu nem tinha acordado ainda.<br />

- Então se arruma que eu vou preparar o seu café, mas anda logo que<br />

eu não posso me atrasar. Vem uma amiga aqui e não quero deixar a visita<br />

esperando.<br />

Depois de tomarem café saíram. Dois minutos depois o sr. Pedro<br />

chegou em casa sem o carro e subiu correndo para o segundo andar.<br />

Um tempo depois, não sei bem porque do lado de fora não dava pra<br />

ver o relógio, bom, pelo movimento do sol acho que uma hora, a dona<br />

Amanda chegou e quando estava abrindo a porta, o homem que ia lá todas<br />

as manhãs chegou. Ele a abraçou igual o sr. Pedro costumava fazer.<br />

Depois eles entraram na casa e passou muito tempo. Eu conseguia<br />

ouvir a voz do sr. Pedro porque ele estava falando muito alto mas não dava<br />

para entender nada.<br />

32


Foi aí que escutei um barulho alto e fiquei assustado! Depois outro<br />

barulho. Comecei a bater asas dentro da gaiola e ela caiu do prego. Então o<br />

sr. Pedro saiu da casa carregando duas malas e colocando perto do portão.<br />

Voltou correndo pra dentro da casa e voltou com um lençol com muitos<br />

brinquedos do Serginho e colocou perto das malas. Depois me pegou no<br />

chão e colocou perto das outras coisas.<br />

Ele saiu apressado pelo portão e pouco tempo depois voltou com o<br />

carro. Colocou tudo lá dentro da parte de trás, inclusive minha gaiola. Lá<br />

dentro era abafado, não dava nem pra respirar direito e estava muito quente<br />

e escuro.<br />

Eu não vi mais nada que estava acontecendo ao meu redor, somente<br />

ouvia o barulho que o carro fazia ao passar pelas ruas. Permaneci quieto<br />

tentando me segurar na grade enquanto tudo era sacudido naquele lugar<br />

abafado.<br />

- Sérgio! Sérgio!<br />

- Oi pai! Cadê a mamãe? Ela não veio me buscar? Vocês trocaram<br />

hoje?<br />

- Não filho. Ela não pôde vir te buscar.<br />

- E pra onde estamos indo?<br />

- Tenho uma surpresa: vamos ficar uns dias na casa da vovó Matilde.<br />

- Oba! Que legal pai! E a mamãe?<br />

- Ela terá que ficar em casa filho.<br />

- E nós vamos de barco?<br />

- Vamos sim! Dessa vez num barco enorme! Você vai adorar!<br />

Mais de um quarto do dia já havia se passado e eu naquela clausura,<br />

naquele lugar escuro.<br />

De repente o carro parou e o sr. Pedro colocou um pano escuro sobre<br />

a gaiola e foi tirando as coisas. Vi que um outro homem estava ajudando<br />

ele, depois não deu pra ver mais nada.<br />

Uma profunda calmaria do lado de fora e todo o tormento do mundo<br />

esmagado em seu interior, circulando por minhas artérias e meus<br />

pensamentos. Toda vez que eu me emociono ou existe suspense, sei que<br />

algo vai acontecer, e isso me preocupa.<br />

Quando tiraram o pano, senti como se estivesse sendo jogado no ar.<br />

Todas as minhas preocupações fugiram de seu interior e eu fui o último<br />

tripulante a deixar a prisão.<br />

A primeira voz que ouvi foi a voz do sr. Pedro que me disse:<br />

- Escuta papagaio: não repita mais aquelas palavras que você ouviu<br />

em casa entendeu? Não pode, não repita...<br />

- Palavra, palavra, currupaco!<br />

- Isso, palavra... não repita. Ah, deixa, é claro que você não iria<br />

entender.<br />

33


- Isso coroa. Eu to sacando, currupaco. Pó-de-arroz vem brigar. Dá o<br />

pé!<br />

Estávamos viajando em uma coisa chamada barco e era rodeado de<br />

água. Quando o Serginho me levou do lado de fora eu fiquei olhando a<br />

água. Havia mata em volta e parecia muito com a floresta. Fiquei olhando<br />

fixo pra água pra ver se avistava o Vernacleto, meu amigo peixe naquela<br />

imensidão de águas, mas não dava pra ver nada. A água era escura, não<br />

parecia com a água da cachoeira lá no meio da floresta onde eu nasci.<br />

Ao olhar a mata meus olhos se encheram...<br />

Deu vontade de sair voando para o mato, mas tive receio. Não sabia<br />

onde estava e tinha medo que algum animal me pegasse caso eu caísse na<br />

água, assim como o Vernacleto me ensinou sobre os predadores da água.<br />

Dava pra ver muitos passarinhos voando nos galhos, se assustando com o<br />

barco. Eu não conhecia aqueles pássaros e tentava falar com eles de longe,<br />

gritava em saudação, mas não me respondiam, deviam achar que era o<br />

barco quem falava.<br />

O sobe e desce do barco levou rapidamente minha capacidade de<br />

permanecer de pé. Fiquei tonto e enjoado de tanto olhar para o horizonte,<br />

para aquelas árvores, lá ao longe, bem longe, uma ilha distante que era o<br />

destino do barco. Eu sentia algo diferente! Um cheiro diferente!<br />

Comecei a caminhar pelo piso do barco, bem perto das paredes, até<br />

que o efeito da maresia foi passando.<br />

Quando vi o Serginho voei pra perto dele e nós fomos conhecer o<br />

barco todo. Havia corredores, escadas, janelas e muitas pessoas observando<br />

a paisagem da mata.<br />

Não consigo entender como essas pessoas se admiram tanto ao ver a<br />

natureza e mesmo assim destroem. São as pessoas que compram os<br />

passarinhos e com isso tiram a vida da floresta. Como pode ser assim?<br />

O Serginho estava alegre e me dava atenção. Quando ele estava<br />

longe dos seus brinquedos bobos, voltava a ser meu amigo e passávamos<br />

momentos agradáveis juntos.<br />

Nós estávamos viajando na parte de baixo do barco. O Serginho<br />

falou que o andar de cima era para o pessoal rico. Só que eu queria ver a<br />

floresta lá de cima. Talvez eu pudesse ver onde eu morava e voava pra lá,<br />

talvez os meus irmãos ou amigos estivessem voando e eu só poderia ver se<br />

subisse até lá em cima. Se eu pudesse ver a palmeira, saberia que era lá. Fui<br />

ficando impaciente, ansioso! Talvez eu estivesse tão próximo de casa e só<br />

poderia descobrir se ousasse deixar a companhia do Serginho.<br />

Eu voei até lá e o Serginho veio atrás de mim pela escada. Havia<br />

uma grade que servia de entrada, mas estava fechada e o Serginho não pôde<br />

me seguir. Pela primeira vez desde que eu vim parar nesse lugar senti<br />

liberdade, senti que poderia fazer o que eu quisesse.<br />

34


Olhando para a floresta dava pra ver que não era a mesma floresta<br />

onde eu nasci. Meus olhos entristecidos observavam aqueles animais e<br />

pássaros, mas não é a mesma floresta que eu nasci, de onde eu vim e pra<br />

onde sonho voltar. Eu saberia se fosse ela, afinal um papagaio jamais<br />

esquece das coisas, todas as coisas que acontecem ficam pra sempre<br />

guardadas no coração de um papagaio. Papagaio aprende, ensina, e tudo<br />

que olha se lembra...essa não é a minha floresta.<br />

Desapontado eu saí daquele mastro de metal onde fica a bandeira.<br />

Sozinho, fui andar pelo andar de cima do barco. Era um lugar diferente do<br />

andar de baixo! Tinha muitos objetos bonitos, copos de cristal, panos...uma<br />

mesa de mogno bem grande mas o que mais me impressionou foram os<br />

copos de cristal. Eu devia saber, as águas da cachoeira na floresta tinham a<br />

cor do cristal, e devem ter até hoje. Pena eu não saber voltar para a floresta,<br />

conversar lá no rio com o peixe Vernacleto e acabar com a preocupação<br />

dos meus pais que devem chorar minha perda até hoje sem ter notícias<br />

minhas.<br />

Faltava nesse lugar uma coisa despercebida por todos em meio a<br />

tantos objetos coloridos: a minha felicidade. Órfão da vida, eu era uma<br />

energia infeliz, e havia tanta infelicidade em meus olhos que até mesmo as<br />

flores seriam capazes de murchar ao sentir a minha tristeza.<br />

Nesse momento eu caminhando lembrei das primeiras flores que vi<br />

lá na floresta quando eu saí do ninho, das cores e do perfume.<br />

Para tentar esquecer da tristeza passei a observar os homens e suas<br />

ações.<br />

Os homens mantêm formalidades e aparências que nunca irei<br />

compreender, mas sempre observava atento.<br />

Chegando perto do corrimão, comecei a sentir um estranho estímulo<br />

que arrepiava minhas penas. Um cheiro tão conhecido, mas que eu não<br />

conseguia me lembrar o que era.<br />

Resolvi descobrir de onde vinha e cada vez mais me aproximava do<br />

corrimão, seu segredo deveria estar na próxima curva já que o vento vinha<br />

de lá.<br />

Após dobrar a seta tive uma grande surpresa: encontrei uma fêmea,<br />

uma papagaia muito bonita, verde numa tonalidade tão clara que somente<br />

vi em minha mãe num dia de sol lá na floresta. Muito esnobe que nem me<br />

deu atenção quando mexi com ela assobiando, da maneira que o Nestor me<br />

ensinou.<br />

Ela tomava sol em cima do corrimão. Era a primeira vez que eu via<br />

um outro da minha espécie, depois de muito tempo longe da floresta...<br />

- Olá! Qual é o seu nome, currupaco???<br />

- E por que eu diria a você?<br />

- Por que eu perguntei, currupaco.<br />

- Você é um papagaio de segunda classe. Vê se te enxerga, sujo...<br />

35


- E você é uma chatinha sua...<br />

- O meu nome é Sophia, seu deselegante.<br />

Caramba, fiquei pensando o que seria deselegante, mas tudo bem, eu<br />

estava muito feliz em ver um outro papagaio que nem me preocupei. Eu<br />

tinha que puxar assunto.<br />

Ela, entretanto conversava de uma maneira diferente dos animais,<br />

dos pássaros. Não sei, parece até que nunca foi livre, das matas...que não<br />

nasceu na floresta.<br />

- Sophia? Sophia? Há, há, há...horrível, horrível...<br />

- E o seu? Deve ser uma maravilha não é? Príncipe do lixo!<br />

- Currupaco...o meu nome é Petrúcio.<br />

- Há, há, há, Petrúcio. Não me faça rir, currupacooo. O nome mais<br />

feio que já ouvi, crock!<br />

- Mas foi o nome que o Juquinha me deu, e gosto muito entendeu?<br />

- Juquinha? Quem é esse?<br />

- Bem! É uma longa história. Crock, vou contar para você...tudo<br />

começou quando eu nasci na floresta num dia de chuva, e...<br />

Quando comecei a contar a minha história percebi que ela ficava<br />

maravilhada ao saber como era a floresta. Sophia não conhecia a floresta,<br />

nem sabia o que era. Nasceu de um casal de papagaios que ficava preso no<br />

sítio dos pais de seus donos. Era uma papagaia bastante legal! Só o que<br />

incomodava mesmo eram as palavras difíceis que ela aprendeu ao longo da<br />

vida e essa arrogância.<br />

- Puxa! São muitas aventuras interessantes!<br />

- E você? Já viveu alguma aventura?<br />

- Não. Desde que nasci vivo na casa dos meus donos e o máximo de<br />

aventura que já tive é essa viagem com eles. Moramos numa casa grande e<br />

meu viveiro é grande, dá até pra voar dentro dele.<br />

- Escuta Sophia: quer viver uma aventura de verdade?<br />

- Uma aventura? Seria muito bom!<br />

- Então vem comigo, currupaco!<br />

Aproveitando que o almoço era servido tarde, fomos até a cozinha.<br />

Lá estavam dois cozinheiros distraídos consultando um livro de receitas.<br />

Voamos até a parte de cima do armário onde havia várias panelas e<br />

vasilhas. Então fizemos força para derrubar as panelas e os dois se<br />

assustaram bastante! Acabamos derramando o açúcar dentro da panela que<br />

estava no fogo...então saímos de lá voando pela mesma porta que entramos.<br />

Quando chegamos ao mastro não conseguimos conter o riso, a piada era<br />

ótima!<br />

Olhar para o rosto dela sorrindo me trouxe um sentimento novo, uma<br />

anestesia para as mágoas todas que eu vinha sentindo nos últimos tempos!<br />

Depois fomos até a sala do capitão do barco ver se havia alguma<br />

coisa interessante. Houve uma algazarra enorme quando a Sophia pisou no<br />

36


otão que faz tocar uma sirene, foi sem querer, ela caminhava pelo painel.<br />

Então nos escondemos debaixo de uma mesa e ouvimos o barulho de<br />

passos se aproximando. Quando ele entrou na sala nós fugimos.<br />

A Sophia era curiosa, mas muito desajeitada!<br />

Nossas gargalhadas eram altas e trouxeram alegria à parte mais alta<br />

do barco, onde as pessoas tinham mais dinheiro e quase nenhum tempo<br />

para se divertirem, apenas tratar de ganhar mais dinheiro.<br />

Depois chegamos até a sala onde os donos da Sophia estavam.<br />

Ficaram surpresos em me ver e perguntaram, achando que eu não<br />

responderia:<br />

- Qual é o seu nome louro?<br />

- Meu nome é Petrúcio, e o seu coroa?<br />

Houve uma fisionomia de surpresa no rosto daquele homem então<br />

ele franziu a testa, olhou pra mim por um breve instante e disse:<br />

- Oh, olhe que gracinha Dara, o louro sabe falar!<br />

- Oh, mas que formidável!<br />

- Diga mais alguma coisa papagaio, vamos!<br />

Eles não estavam acostumados a ver e ouvir um papagaio falar. A<br />

Sophia havia dito que raramente falava com seus donos na casa onde<br />

viviam. Disse que isso foi depois de um dia que seu dono deu um tapa nela<br />

por ter rasgado um jornal que ele estava lendo na mesa da cozinha. Disse<br />

que depois disso ficou mais calada, só conversando às vezes quando o rádio<br />

estava ligado.<br />

Talvez tenha sido esse isolamento que provocou naquela bela<br />

papagaia a incapacidade de sorrir, uma doença que pode ser fatal em<br />

qualquer papagaio se não for tratada a tempo. Sinto-me feliz por tê-la feito<br />

sorrir tantas vezes nesse dia!<br />

Então no tempo que fiquei conversando com seus donos disse a eles<br />

como era minha vida desde que saí da floresta e o rumo que tomou minha<br />

história de papagaio. Claro que para eles não passava de um conto que<br />

meus donos ensinaram, para eles era apenas graça, piada...mas a Sophia<br />

ouvia atenta e olhava com olhos que pareciam singelos. Ela parecia estar<br />

admirada quando eu falava sobre como era a floresta.<br />

Então contei algumas piadas para o Cristóvão, que era o dono da<br />

Sophia – nominho feio, mas tudo bem – na verdade o nome das pessoas é<br />

feio... e então várias vezes o silêncio se quebrou, dando mais alegria a essa<br />

parte mais alta do barco.<br />

Logo se formou um pequeno grupo de curiosos ao meu redor e não<br />

seguravam as gargalhadas quando eu contava as piadas que o Nestor havia<br />

me ensinado. Era uma piada que falava de um elefante branco, então o<br />

dono do circo perguntou: elefante, quem roubou a sua cor? E o elefante<br />

respondeu...não vou falar porque é palavrão, mas é o que você pensou.<br />

37


Cristóvão quis conhecer o meu dono, o Serginho. Fomos então pela<br />

escada até o andar de baixo.<br />

Sophia e eu ficamos no corrimão próximo observando a<br />

movimentação das pessoas. Eu sentia uma estranha atração por ela, de<br />

alguma forma me tornava mais próximo de minha casa. Quando ela estava<br />

por perto eu sentia uma sensação inigualável de vida, outras sensações<br />

eram provocadas pelo cheiro dela e então contei tudo a ela. O que eu sentia,<br />

aquela sensação diferente.<br />

Ela falou que os seus donos eram empresários e patrocinavam festas<br />

de rodeio. Ela me explicou, mas eu não entendi nada do que ela falou sobre<br />

o tal rodeio, então deixei pra lá. Nem cheguei a ficar curioso.<br />

Sophia olhou para mim de uma forma que jamais havia visto, com<br />

algo diferente no olhar então me disse para irmos dar uma volta pelo barco.<br />

- Olá! Você é o Serginho? Dono do papagaio Petrúcio?<br />

- Sim, sou eu. Você o encontrou?<br />

- Bem...na verdade eu estava interessado em comprar o louro de<br />

você. Eu tenho uma papagaia muito bonita e eles estão se dando muito<br />

bem! Interessa-se em vendê-lo? Tenho um viveiro enorme, bem bonito!<br />

- Mas eu o tenho de estimação, meu pai que me deu de presente e...<br />

- O que se passa por aqui?<br />

- Olá, o senhor deve ser o pai do Serginho. Bom garoto...<br />

- Sim sou eu. Aconteceu alguma coisa?<br />

- Então...eu tenho uma papagaia e coincidentemente o papagaio do<br />

Serginho a encontrou lá em cima quando ela tomava sol. Fiquei admirado<br />

como os dois se deram bem, na verdade eu adorei aquele papagaio e estou<br />

disposto a pagar qualquer preço para tê-lo.<br />

- O seu preço seria qual?<br />

- Digamos dez mil reais.<br />

- Espere um pouco, vou falar com meu filho.<br />

- Tudo bem! Ficarei esperando aqui mesmo!<br />

Nisso nós dois voltamos de um encontro às escondidas, algo que eu<br />

jamais havia sentido...estar com a Sophia, nos acariciarmos, nos sentirmos!<br />

Realmente uma grade surpresa e era a primeira vez que eu namorava!<br />

Indeciso e curioso sobre o que estava acontecendo percebi que o<br />

Serginho estava me vendendo para o Cristóvão. Vi que eles falavam de<br />

dinheiro e o senhor Pedro concordava com o que o Cristóvão estava<br />

falando.<br />

Fiquei um pouco triste afinal eu teria um outro dono, já era o quarto:<br />

Serginho, Nestor, Juquinha e agora o Cristóvão. Será que ninguém me quer<br />

não? Quê custa então me devolver para a floresta? É lá o meu lugar e aqui<br />

eu não sou feliz. Sou passado de mão em mão como se fosse um produto,<br />

um objeto da mobília da casa...<br />

38


Mas a Sophia estava feliz, e queria me ver feliz também. O Serginho<br />

me chamou, mas acabei voando atrás dela pelo barco tentando alcançá-la.<br />

Minha revoada colocou fim ao acordo comercial dos dois,<br />

influenciado pelo senhor Pedro. Enquanto eu voava pensei que talvez<br />

nunca mais fosse vê-los de novo, mas eu estava feliz, havia alguém da<br />

minha espécie comigo, agora tudo seria mais fácil nesse lugar tão diferente<br />

da floresta! Eu não estaria mais sozinho, seria mais fácil!<br />

Para sentir cada vez mais forte o cheiro do corpo da Sophia, comecei<br />

a voar rápido! Parecia um raio e minha provocadora passou a ser minha<br />

vítima.<br />

Ela gritava enquanto voava pelo navio em direção à sua gaiola.<br />

Chegou cansada ao alto da parede branca ao lado da porta do quarto<br />

de seus donos. Descansava na entrada da gaiola de metal, mas se assustou<br />

quando cruzei a curva do corredor. Ela entrou na casinha e então e em<br />

poucos segundos cheguei.<br />

Estava ligeiramente assanhado com a presença da Sophia! Ficamos<br />

ali namorando e o próximo período foi marcado por grande agitação<br />

naquele corredor deserto onde não se ouviam vozes humanas. Carinhos!<br />

Estávamos carinhosos um com o outro! Ela ficou um bom tempo<br />

procurando penugens soltas nas minhas asas, nos bicamos e ficamos<br />

juntinhos enquanto a noite chegava.<br />

Lembrei do fim das tardes lá na floresta quando nos reuníamos para<br />

dormir, meus pais, meus irmãos e eu. O calor dos nossos corpos aquecia a<br />

todos.<br />

Depois de muito tempo o sino que anunciava a meia-noite tocou,<br />

baixinho e eu adormecia junto à ela na gaiola.<br />

Capítulo 6<br />

Chegou a manhã e o menino desembarcava com seu pai na ilha que<br />

não era mais distante, então voei até o corrimão da parte de cima do barco<br />

para vê-los. Não contente com a visão que tive, fui mais além, até a ponta<br />

do navio. Eles se distanciavam e eu estava triste em vê-los indo embora! O<br />

sr. Pedro carregando numa das mãos uma mala e o lençol que guardava os<br />

brinquedos do Serginho, um outro homem carregava a outra mala, cada vez<br />

mais distantes enquanto o barco voltava ao percurso.<br />

A certa distância ainda dava para ver o sr. Pedro e o Serginho no<br />

cais, entrando em um carro e seguindo pela rua que dava acesso ao cais. O<br />

Serginho tinha nas mãos um algodão doce e nem chegou a olhar para trás.<br />

Para onde estaria indo? E achando que meu sussurro partiria o ar e<br />

quebraria as barreiras sonoras do adeus, me despedi com um som baixinho.<br />

O senhor Pedro não era tão legal quanto o Nestor, e era menos<br />

esperto que o Juquinha!<br />

39


Capítulo 7<br />

Eu havia me tornado uma celebridade! Divertia as pessoas do barco<br />

todas as noites contando piadas e cantando.<br />

Um dos amigos do Cristóvão queria me levar em seu programa de<br />

televisão para que eu contasse as piadas que eu já conhecia, e outras que o<br />

Cristóvão ensinava. Nos primeiros dias o Cristóvão estava mais atencioso<br />

comigo, agora quando chegava perto de mim era para mostrar a algum<br />

amigo. Dizia para eu contar algumas piadas e depois ficava conversando<br />

com o amigo.<br />

Eu fazia sucesso com o pessoal e isso passou a incomodar a Sophia<br />

que sempre passava despercebida por todos e quando era notada era apenas<br />

como a namorada do papagaio.<br />

Sophia estava bastante resmungona! Não sorria para ninguém e não<br />

achava graça das minhas piadas...eu sempre tentava conversar com ela mas<br />

era ignorado.<br />

Eu não estava entendendo porque ela estava agindo assim, esse seu<br />

comportamento tão ofensivo! Eu tentava acabar com o gelo. Até que um<br />

dia ela falou que não estava mais gostando de mim por causa da minha<br />

fama, que minha popularidade afetou o sentimento que ela sentia por mim.<br />

40


Achei que fosse somente um desabafo dela. A Sophia estava<br />

diferente! Não me deixava dormir junto com ela na casinha então passei a<br />

dormir debaixo dentro de uma caixa de madeira que ficava perto da casinha<br />

dela. Naquela mesma noite a Sophia me armou uma cilada...<br />

- Onde está o colar Jonas?<br />

- Eu não sei querida. Vamos continuar procurando.<br />

- Eu juro que havia deixado o colar sobre a mesa.<br />

- Como pode? Será que algum dos empregados entrou aqui no<br />

quarto?<br />

- Não, isso seria impossível! Apenas a janela ficou aberta. É uma<br />

janela pequena! Não há como uma pessoa ter entrado aqui.<br />

- Onde estará esse bendito colar?<br />

Jonas e Elisa eram o casal mais rico que viajava naquele barco, assim<br />

a Sophia falou. Ela pegou entre as jóias de Elisa seu colar preferido de ouro<br />

e esmeraldas.<br />

- Ei Raul, onde estão meu colar de pérolas e meu anel de brilhantes<br />

que você me deu de presente em meu último aniversário?<br />

- Ah Cinthia, eu não sei. Não sou guardião das suas coisas. Você<br />

sempre deixa tudo jogado, é natural que sumam.<br />

- Mas não pode ser. Deixei sobre a cama para usar essa noite e<br />

enquanto fui tomar banho, desapareceram.<br />

- Procura direito. Talvez tenha deixado em outro lugar...<br />

- Não, tenho certeza que deixei aqui mesmo em cima da cama.<br />

Raul e Cinthia eram estrangeiros. Eu nem sei o que é isso, mas a<br />

Sophia falou que era quem morava em outras terras. Então pensei que eu<br />

era estrangeiro também afinal a floresta não era aqui. Deve ser então que<br />

eles moram numa outra cidade que tem outras florestas, é...<br />

Sophia falou que os dois estavam fazendo uma viagem pela costa<br />

brasileira para comemorarem uma quantidade de tempo de casado. Ela<br />

pegou as jóias e colocou entre as minhas coisas, alguns presentes que<br />

ganhei do pessoal do barco.<br />

Era noite e sem saber de nada lá estava eu no palco do barzinho.<br />

Vários músicos tocavam instrumentos todas as noites e eu contava piadas.<br />

Vi uma movimentação dos empregados. Então depois de um tempo o<br />

capitão do navio foi até o Cristóvão e o chamou para acompanhá-lo.<br />

Depois o Cristóvão voltou e chamou sua mulher.<br />

Partiu de uma denúncia anônima, eu não tinha dúvidas que era a<br />

Sophia...um empregado do barco encontrou as jóias entre minhas coisas.<br />

Mesmo sem ter feito nada de errado, fui desmascarado e o Cristóvão ficou<br />

morrendo de vergonha, me chamava de pássaro maldito. Ele ficou com<br />

vergonha dos seus amigos porque era meu dono e para todos eu era o<br />

responsável.<br />

41


O Cristóvão bateu em mim com uma blusa enrolada e molhada assim<br />

que entrou. Dentro do quarto ele me jogava com força contra a parede e eu<br />

gritava, me jogou água gelada várias vezes e me deu dois tapas nas costas<br />

com a mão aberta...fiquei tremendo e sentindo dores, muitas dores por todo<br />

o corpo. Penas arrepiadas e desesperado! Achei que iria morrer naquela<br />

hora, vendo tamanha fúria naquele humano.<br />

Fui colocado em uma gaiola e deixado do lado de fora do barco. A<br />

noite estava fria e por isso fiquei bem encolhido para tentar me aquecer<br />

enquanto a água ia secando. No meio da madrugada senti um vento muito<br />

forte vindo das águas e eu ainda não estava todo seco, minhas patas geladas<br />

e meu estômago vazio. Eu não sabia se me preocupava com as dores ou<br />

com o papo sem alimento algum. A Sophia estava dentro do quarto.<br />

Olhando na imensidão das águas procurava respostas para a minha<br />

vida, pensava no meu destino, nas coisas que vinham acontecendo comigo.<br />

As estrelas no céu pareciam tão distantes! Muito mais distantes que as<br />

estrelas que eu avistava todas as noites lá na floresta.<br />

Pela manhã eu estava encolhido, estava me sentindo muito triste com<br />

o que tinha acontecido! Na gaiola ninguém havia colocado comida e eu<br />

olhava pelos cantos para ver se havia alguma coisa para comer, algum<br />

farelo pelo menos. Então passou um casal e estavam comendo bolachas,<br />

eles colocaram duas bolachas na minha gaiola e foi só isso que comi nesse<br />

dia. Nem água o Cristóvão colocou. Quando ele passou por mim para<br />

entrar no quarto nem percebeu que eu estava ali. Fiquei com medo e me<br />

encolhi ao vê-lo sair de novo de dentro do quarto.<br />

Depois disso, todas as manhãs a Sophia ia até a gaiola onde eu estava<br />

para caçoar de mim.<br />

Ela estava muito mudada, assim como as pessoas! A alegria do<br />

segundo andar daquele barco tinha acabado e depois de alguns dias as<br />

pessoas me procuravam discretamente quando não havia ninguém por perto<br />

para ouvir piadas ou colocar alguma coisa de comer para mim, já que o<br />

Cristóvão não colocava. Só o Cristóvão ainda duvidava, se mantinha<br />

distante e era outra pessoa que vinha colocar ração e frutas para mim,<br />

sempre outra pessoa. Eu não podia mais sair da gaiola e quando alguém<br />

chegava perto de mim Sophia ficava com raiva. Era ignorada novamente<br />

por todos e vista apenas como a ex-namorada do papagaio.<br />

Numa noite ela apareceu e disse:<br />

- Vamos Petrúcio! O barco está afundando e todos estão dormindo.<br />

Não consigo chegar até a sala do capitão, me ajude a tocar o alarme.<br />

- Mas como eu vou sair daqui? Currupaco?<br />

- Deixa que eu abra a porta.<br />

Ela abriu a portinhola da gaiola com o bico demonstrando muita<br />

facilidade em abri-la, coisa que eu não havia tentado antes.<br />

42


Voei pelo navio até chegar à sala do capitão. Estranhei porque a<br />

porta estava aberta e o capitão estava com o leme...mas eu acreditei na<br />

Sophia, ela pediu para apertar o botão do alarme e foi isso que eu fiz.<br />

Pousei de forma certeira sobre o botão de alarme, o mesmo que<br />

Sophia havia disparado antes e com o peso do meu corpo, fiz o alarme<br />

tocar.<br />

Nisso o capitão olhou para mim e tentou me acertar com uma garrafa<br />

de bebida que estava bebendo.<br />

Voei de lá e voltei para cima da minha gaiola. Nisso ela disse para eu<br />

esperar que ela iria chamar o Cristóvão. Na verdade ela foi para sua gaiola<br />

e ficou esperando tudo acontecer.<br />

Todos no barco entraram em desespero e saíram correndo pelos<br />

corredores procurando botes. Acharam que o barco iria afundar. Eram<br />

muitas pessoas, correndo desesperadas, para se salvar do papagaio<br />

Petrúcio.<br />

Algumas pessoas já estavam nos botes salva-vidas até que o capitão<br />

cambaleando chegou e deu ordem para os funcionários disserem que foi<br />

tudo um engano e que o papagaio que fugiu da gaiola e provocou tudo<br />

aquilo.<br />

Ao chegar à gaiola, o Cristóvão me colocou pra dentro e trancou a<br />

porta com um arame. Depois jogou água gelada em mim.<br />

Algumas pessoas disseram que só voltariam para o barco se eu fosse<br />

embora de lá. Um chegou a dizer que preferia ficar sem sorrir, só falando<br />

de negócios a ficar no mesmo barco que eu, que eu era perigoso e que foi<br />

uma péssima idéia do Cristóvão me comprar!<br />

Fui chamado de muitas coisas, e não entendia nada que estava<br />

acontecendo. Senti saudade do Juquinha, queria sair daquele barco, queria<br />

uma maneira de acabar com tudo isso que estava acontecendo comigo. Será<br />

que eu fui marcado pela vida para sofrer todo tipo de coisa ruim nesse<br />

lugar?<br />

Fui colocado em um dos botes salva-vidas pelo Cristóvão, colocaram<br />

ração e frutas. Lançado ao mar onde somente água eu podia ver em meu<br />

redor. As águas estavam turvas e tive muito medo! Vi o barco se afastar e<br />

ficar cada vez menor na distância até desaparecer completamente. Pensei<br />

em voar, mas tive medo de não conseguir voar até onde tivesse terra firme<br />

e acabasse caindo nas águas esgotado pelo esforço.<br />

Durante muitos dias só tive golfinhos como companheiros. Eram<br />

parecidos com o Vernacleto, porém eram muito maiores! Eles brincavam<br />

comigo e saltavam da água. Era bonito! Algumas vezes eu picava pedaços<br />

de frutas e jogava no ar e algum deles saltava para pegar.<br />

Então um dia apareceu longe um barco negro, velho e assustador!<br />

Foi se aproximando até chegar muito perto do bote. Era um barco que<br />

43


oubava as pessoas em outros barcos e seus ocupantes eram chamados de<br />

piratas.<br />

Uma vez na casa do Serginho vi na televisão os piratas, mas esses<br />

não eram iguais, não tinham perna-de-pau e nem olheira, e no barco não<br />

havia bandeira com caveira desenhada. Logo fui capturado pelo Rodolfo,<br />

um dos piratas.<br />

Ele desceu até o bote para ver se havia alguma coisa de valor e<br />

acabou me colocando no seu ombro e voltando para o barco.<br />

Os piratas eram bem legais comigo e me deixaram falar qualquer<br />

coisa! Acharam legal que eu conversasse, falaram que o outro papagaio era<br />

sem graça e por isso ficou preso com os outros bichos. Eu não entendi e<br />

deixei pra lá.<br />

Fiquei muito amigo do pirata que comandava o barco, chamado<br />

Henrico pelos outros piratas. Ele passava o dia olhando por um tubo preto<br />

que fazia as coisas parecerem mais perto. Dizia que era pra ver se havia<br />

algum barco se aproximando.<br />

O Henrico sempre gritava muito com os outros, mas quando chegava<br />

a noite todos ficavam muito felizes e bebiam bastante até ficarem bêbados<br />

e dormir no próprio chão do barco.<br />

Havia entre eles um pirata que quase não falava nada, mas sempre<br />

que ia falar todos no barco ouviam atentos. Era respeitado até mesmo pelo<br />

pirata que comandava o barco, ele nunca lhe dava ordens. Não consegui<br />

que ele dissesse o seu nome ou que ele sorrisse de alguma piada. Falavam<br />

os outros piratas que o homem era o amuleto de sorte daquele barco<br />

saqueador. Seu silêncio fez com que eu me distanciasse dele, derrotado por<br />

não ter conseguido vê-lo sorrir.<br />

Uma noite vi que ele estava olhando para o mar e quando voltou os<br />

olhos para o meu lado os olhos dele tinham uma luz azul que mesmo no<br />

escuro iluminava. Eram como duas lanternas em minha direção. Fiquei<br />

imóvel e com medo! Não havia mais ninguém por perto.<br />

Ele não sorria e seu rosto estava gelado à vista. Ficou me olhando<br />

como se procurasse alguma coisa em mim.<br />

De repente uma espécie de raio saiu do olho dele e veio em minha<br />

direção. Depois disso não me lembro de mais nada que aconteceu.<br />

Quando acordei estava em um porão cheio de jóias, dinheiro, peles<br />

de animais, algumas cores bem conhecidas, de animais que eu já havia<br />

encontrado na floresta. Havia uma gaiola grande com muitos pássaros<br />

diferentes.<br />

A gaiola era parecida com a que me trouxe da floresta, fiquei com<br />

medo e pensei em fugir mas ouvi uma voz conhecida.<br />

- Ei Petrúcio, se lembra de mim?<br />

- Não acredito! Sophia? O que faz aqui? Como você está diferente,<br />

está muito gorda!<br />

44


- Deixe de dizer bobagem, currupaco. Esses homens roubaram nosso<br />

navio depois que você foi colocado no bote e me trouxeram para essa<br />

gaiola imunda com esses pássaros encardidos.<br />

- Búúúúú!<br />

Era incrível, mas assim como Sophia e eu, todos os outros pássaros<br />

que eu não conhecia falavam e vaiaram a papagaia quando ela chamou a<br />

todos de encardidos. Quando todos me contaram o que estava acontecendo<br />

percebi que os piratas não eram tão legais assim.<br />

- Petrúcio, você tem que me tirar daqui.<br />

- É...tira todo mundo daqui, rápido! – gritou um deles.<br />

- Não antes de você se desculpar comigo por tudo de ruim que me<br />

fez.<br />

- O quê? Isso é que não. Eu não fiz nada.<br />

- Peça desculpas logo Sophia. Foi você que fez tudo aquilo naquele<br />

barco. Eu apanhei muito por sua causa e quase morri.<br />

- Está bem, currupaco, desculpa.<br />

- Agora diga: Petrúcio é o meu mestre! Petrúcio manda!<br />

Quando ela repetiu todos os outros pássaros começaram a gargalhar,<br />

cada um em seu modo de piar. Sophia era uma papagaia rica muito metida<br />

e arrogante, mas naquele momento estava sendo o alvo das brincadeiras.<br />

- Tudo bem! Acabou a palhaçada seus pássaros repugnantes!<br />

- Calma Sophia, currupaco...há, há, há...<br />

- Bem papagaio, pode nos tirar daqui?<br />

- Não dá. Estamos muito longe da terra, no meio da água. Não<br />

conseguiremos voar até lá. Temos que arrumar uma forma de pedir ajuda.<br />

- Nesse navio pirata? Nossa única chance seria se a policia viesse até<br />

aqui.<br />

- Não Hermes, o papagaio tem razão. Uma vez ouvi uma história<br />

sobre um código de sinais que pode ser mandado por rádio.<br />

- Sim, é um código Morse. Mas por acaso você sabe bicar nesse<br />

código?<br />

- Eu não mas o pica-pau sabe.<br />

- O que tenho eu aí heim pombos?<br />

- Escute Jackson: você sabe código Morse não sabe?<br />

- Claro que sim, todos os pica-paus sabem. Na verdade meus pais<br />

contam que teve um homem que conseguiu aprender esse código, que na<br />

verdade pertence aos pica-paus. Eles diziam que ele ensinou aos homens<br />

para que se comunicassem igual aos pica-paus e...<br />

- Tudo bem Jackson, chega, só queremos saber se mandaria uma<br />

mensagem para a guarda costeira para que venham nos buscar.<br />

- E o que eu ganho com isso? O que eu ganho em troca?<br />

- Bom! Você voltará para a floresta.<br />

- Grande coisa. Eu quero é verdinhas...<br />

45


- Olha Jackson. Toma aqui essa nota que eu achei jogada ali no canto<br />

do porão. Agora diga se vai cooperar ou não...<br />

- Ta bem, mas se essa nota for falsa vai ter vingança.<br />

- Então está tudo acertado, vamos papagaio, abra logo essa porta e<br />

vamos lá mandar a mensagem.<br />

- Não, ficaram loucos? Esse barco está cheio de bandidos. Vocês têm<br />

que ter mais malícia. Até eu que era um papagaio inocente já aprendi nesse<br />

lugar que não podemos ser de todo bondosos, que temos que guardar<br />

sentimentos maldosos também e em algumas vezes colocar pra fora, agir de<br />

maneira má. Isso tudo é necessário nesse lugar tão cheio de interesses<br />

pessoais onde não podemos confiar nas pessoas.<br />

- O que faremos então?<br />

- Vamos pra mensagem primeiro, você diz assim: papai do céu,<br />

venha buscar o Petrúcio que ele quer voltar para a floresta. Ajude os<br />

passarinhos e abençoe todos os meninos bonzinhos, e então...<br />

- Pare com isso papagaio? Ficou louco? O que está fazendo? Uma<br />

oração?<br />

- Mas é assim que o Serginho fazia quando queria pedir algo.<br />

- E quem é Serginho?<br />

- É...quem é esse Serginho?<br />

- O Serginho? Tudo bem...<br />

- Não...por favor não, currupaco. Não deviam ter perguntado isso...<br />

- Espera Sophia, deixa ele contar.<br />

- Bem! Respondendo à pergunta, currupaco...vou contar para vocês a<br />

história: tudo começou quando eu nasci lá na floresta num dia de muita<br />

chuva e...<br />

No período em que eu contei a minha história de vida o Jackson<br />

destruiu setenta e seis notas de dinheiro. Jackson era um pica-pau que tinha<br />

essa estranha mania de bicar dinheiro.<br />

Se deixássemos, ele acabaria com todas as notas que estavam<br />

naquele lugar, dentro daquele porão cheio de jóias, peles de animais,<br />

dinheiro...mas tínhamos coisas muito importantes para fazer e o tempo era<br />

precioso demais para nós!<br />

- Tudo bem...vamos acabar com a perda de tempo. Jackson, deixa<br />

que eu vou te falar a mensagem. Ouçam o que vamos fazer: Petrúcio deixa<br />

a porta do viveiro aberta e quando cair a noite, você como de costume vai<br />

lá distrair os piratas contando suas piadas e histórias engraçadas! Tenta os<br />

fazer beberem bastante bebida, e...<br />

46


Capítulo 8<br />

...e então a moça disse para o dentista:<br />

- O que eu faço agora?<br />

E o dentista respondeu:<br />

- Abre a boca, currupaco.<br />

- Rá, rá, rá! Essa foi ótima!<br />

- Muito boa mesmo! Foi realmente uma grande sorte termos<br />

encontrado esse papagaio naquele bote!<br />

- Conta outra pássaro. Conta de novo aquela do missionário, ou<br />

talvez a do telefonema anônimo.<br />

- Ah Rodolfo. Deixa o papagaio em paz e vai pegar mais rum pra<br />

gente.<br />

- E por que só eu tenho que fazer isso? Todo mundo bebe, mas na<br />

hora de carregar o galão só sobra pra mim. Isso não é justo, vocês estão<br />

muito folgados ultimamente!<br />

- Vai logo e não reclama cara.<br />

Enquanto eu estava distraindo os piratas, vi o Jackson voando junto<br />

com o Hermes até a sala do Henrico e depois de algum tempo saíram de lá<br />

e foram para o alto do mastro do barco. Eles foram muito rápidos! O<br />

Jackson deve ser bom mesmo nesse código que eles falaram. Contei pouco<br />

mais de um minuto entre o momento em que entraram e saíram.<br />

47


Devem estranhar tamanha habilidade minha em marcar o tempo<br />

mesmo estando fazendo outra coisa, bem...é que na casa do Serginho, meu<br />

primeiro dono havia um relógio bonito na sala, e ficava de frente para a<br />

cozinha onde eu dormia.<br />

Era minha diversão naquele lugar tão parado, marcar o tempo<br />

observando os ponteiros do relógio girando sem parar. Os ponteiros eram<br />

dourados e eu sabia reconhecer essa cor. Era a cor do girassol da mata,<br />

minha terra natal...<br />

Ah, cada vez que me lembro da floresta me dá um desgosto tão forte,<br />

acompanhado de uma sensação seca no interior do bico...um sentimento de<br />

paixão tão distante e impossível de alcançar! Acredito que o sentido da<br />

minha vida seja voltar para a floresta, é...na verdade eu tenho certeza disso.<br />

Se por um lado é desesperador estar nesse lugar cheio de pessoas, por outro<br />

eu já sei o que muitos humanos, aliás até animais não sabem: descobri o<br />

sentido da vida, pelo menos o sentido da minha vida. Não sei se é isso que<br />

os humanos chamam de nostalgia, mas sei que machuca demais o peito, no<br />

lado que fica o meu coração. Eu sou o papagaio Petrúcio...<br />

O passarinho após concluir seu trabalho, mandando a mensagem e<br />

após permanecer no mastro junto com o Hermes, como se avistasse um<br />

distante sinal, uma luz, voou até a sala onde estavam as coisas de valor.<br />

Então cada pássaro, vagarosamente para não levantarem suspeitas, voava<br />

até o mastro. A cada minuto um pássaro saia de dentro da sala. Eu contava<br />

piadas e sempre fazia referência à bebida, isso deixava os piratas com<br />

vontade de beber mais. Havia muitas garrafas jogadas pelos cantos do<br />

barco e eles estavam muito bêbados depois de horas tomando aquelas<br />

coisas! Comecei a cantar músicas e eles foram dormindo. Nenhum deles<br />

percebeu nada que estava acontecendo. Minhas músicas eram tristes e<br />

fizeram todos dormirem. Só o Rodolfo não havia dormido ainda. Ficava<br />

ouvindo atento às minhas músicas e em alguns momentos chegou a chorar,<br />

falando que se lembrava da sua infância.<br />

Voltei a contar umas piadas pra ver se ele dormia, mas o Rodolfo<br />

ouvia atento, mesmo bêbado. Voltei então a cantar e ele até chegou a cantar<br />

junto. Então vi uma luz se aproximar dele e o tocar no ombro.<br />

Imediatamente o Rodolfo dormiu de maneira tão inesperada que o copo de<br />

bebida que segurava caiu no chão.<br />

Foi quando surgiu de uma das salas do barco o homem que eles<br />

chamavam de amuleto. Eu havia me distraído e nem percebi que ele era o<br />

único que não estava ouvindo as minhas piadas. Na verdade eu não o tinha<br />

visto ainda naquele dia. Estava sem roupas como um animal selvagem das<br />

matas e circulava como mosca em sua face uma luz calma, parecia uma luz<br />

de realização plena, da liberdade...finalmente pude ouvir as suas sábias<br />

palavras.<br />

48


- Fiquei impressionado com a sua determinação! Fez o que achou<br />

correto pequeno guerreiro. Agora a luz da sua aura está mais brilhante!<br />

Mesmo a noite ou o dia não serão suficientes para destruir o seu sucesso.<br />

Lá onde se escondem as páginas que ainda não foram lidas está escrito que<br />

o bom ensinará o caminho da amizade e vencerá o maquiavelismo, mas<br />

pena, mártir, será obscuro seu reinado nos dias da carne.<br />

- Quem é você, crock?<br />

- Diga-me primeiro: o que mais você quer em sua vida?<br />

- Que meus amigos e eu possamos voltar para a floresta.<br />

- A graça é concedida aos que procuram a realização de um sonho.<br />

Mesmo que doa, o caminho que o destino coloca em sua frente é<br />

necessário, pois sua realização será maior que a de qualquer outro pássaro<br />

deste planeta.<br />

- Eu não entendo o que está dizendo.<br />

Eu estava com medo. Aquele estranho homem com olhos brilhando e<br />

aquela luz voando em volta do rosto me disse que estava me vigiando<br />

desde que eu cheguei aqui, que sabia tudo sobre mim e sobre todas aquelas<br />

pessoas que estavam no barco.<br />

Os pássaros observavam de longe, lá do mastro, com medo. Eu<br />

também estava com medo...<br />

- Então eis que te conto tudo o que virá. O que era um ser se<br />

transformará em outro, onde havia pureza nascerá perversidade e vingança,<br />

mas no fim o amor vingará. Vai ser assim e eu sei. Eu sou o destino!<br />

O homem finalmente revelou seu nome, e como se realizasse uma<br />

mágica, sumiu no barco, sendo desintegrado pelos ventos da brisa e virando<br />

apenas uma poeira que também logo desapareceu, seguindo em direção ao<br />

horizonte.<br />

Fui para o mastro do navio me unir aos outros e fiquei mudo. Estava<br />

muito assustado com tudo que estava acontecendo. Era noite e eu estava<br />

receoso com muitas coisas.<br />

Alguns dos pássaros pensaram que eu estava bêbado porque os<br />

piratas me deram uma vasilha com um pouco de vinho, então me senti<br />

muito confuso com as idéias, uma sensação de euforia...<br />

Havia uma luz se aproximando, na verdade eram cinco luzes. Cinco<br />

navios.<br />

Os tripulantes dos dois primeiros navios subiram no barco dos piratas<br />

segurando muitas armas. Esperavam haver algum tipo de reação, mas todos<br />

no barco dormiam e estavam muito bêbados para reagirem a qualquer<br />

coisa. Todos os piratas foram presos e quando o Henrico saia algemado<br />

olhou para o mastro onde estávamos. Olhei dentro dos olhos dele e senti<br />

que naquele momento o ódio o consumia e ele sabia que era eu o<br />

responsável.<br />

49


Voamos então para um dos navios e ficamos por lá, em cima de um<br />

mastro, até que retornassem para a terra, no mesmo ponto onde entrei pela<br />

primeira vez em um navio.<br />

Amanheceu depressa e saímos de lá. Éramos pássaros perdidos em<br />

um mundo enorme e não sabíamos como voltar para a floresta. Não<br />

podíamos ficar também no mesmo lugar para não sermos capturados.<br />

Estávamos com fome. Chegamos a uma praça movimentada e então<br />

Sophia decidiu se separar do grupo. Estava exausta e tinha dificuldades<br />

para nos acompanhar! Ela estava muito gorda! Eu não conseguia imaginar<br />

como ela havia crescido tanto em tão pouco tempo. Eu a conheci há quinze<br />

dias atrás. No início nós éramos namorados, mas depois a Sophia me<br />

prejudicou muito então fiquei triste com ela.<br />

Eu evitava falar com a Sophia e ela me evitava mais ainda. Tinha<br />

vergonha de olhar nos meus olhos.<br />

Antes de a Sophia ir embora veio até mim e pediu perdão por tudo<br />

que havia acontecido de ruim, falou bem baixinho em meu ouvido para que<br />

os outros não escutassem. Ela disse que não poderia viver na floresta,<br />

apesar de ser um lugar muito bonito pelo que eu contava. Disse que jamais<br />

iria me esquecer, desejou boa sorte para mim e para os outros pássaros,<br />

pediu para que eu nunca a esquecesse também, que nunca mais teria outro<br />

namorado e desejou que nos encontrássemos algum dia, mesmo que no céu<br />

após morrermos.<br />

Ela então se virou e começou a caminhar enquanto uma lágrima<br />

rolou do meu olho direito.<br />

Tinha uma ótima aparência aquela papagaia! Era a mais limpa do<br />

grupo e pelo fato de ter uma alimentação boa desde pequena, tinha penas<br />

bonitas, vistosas! Decidimos esperar para ver o que iria acontecer. Nenhum<br />

de nós fez nada para impedir que ela fosse. Ela nos atrasava em tudo e os<br />

outros pássaros reclamavam comigo, mas eu insistia em dar uma chance a<br />

ela. Na verdade eu sabia que se ela fosse para a floresta não iria se adaptar.<br />

Nossa vida é bonita, mas é cheia de desafios! Conquistamos a cada dia o<br />

direito de viver numa floresta que nos dá tudo, mas que devemos conhecer,<br />

pois existem limites e perigos.<br />

Por causa de sua aparência física, gorducha e de penas brilhantes,<br />

logo encontrou um senhor que levava em suas mãos um grande saco. Ela<br />

foi caminhando até ele e quando a viu ele colocou o dedo e ela subiu. Era<br />

um senhor já de idade que pareceu ficar muito contente com a Sophia. Ele<br />

passou a mão em sua cabeça e sorriu. Então ele despejou na praça aquele<br />

grande saco e logo uma imensidão de pombos se reuniu no local. Não sei se<br />

guiados por instinto ou fome, rumaram para lá o Hermes e o Ângelo.<br />

Ficamos na árvore esperando que voltassem.<br />

Os dois enturmaram com os outros pombos, eles viviam em bando<br />

naquela cidade, e decidiram ficar. Os pombos eram bem legais e nos<br />

50


convidaram pra ficar com eles na cidade, mas recusamos. Estávamos<br />

decididos a voltar para a floresta.<br />

Deixamos os pombos e nos despedimos do Hermes e do Ângelo.<br />

Antes de ir eles trouxeram comida para a gente. Pelo menos os dois teriam<br />

bastante alimento naquela praça.<br />

Agora éramos somente três: o pica-pau Jackson, o curió Tadeu e eu,<br />

o papagaio Petrúcio. Vagando pela cidade e procurando a floresta.<br />

Nós voávamos por aquelas ruas cheias de pessoas e de carros, todos<br />

muito apressados querendo sempre chegar a algum lugar. A luta pela<br />

sobrevivência aqui nesse mundo até se parece com a floreta, porém o<br />

predador é o tempo e a adversidade é a concorrência.<br />

Os dois ficavam me cobrando sobre a floresta, colocando em mim<br />

toda a responsabilidade de achar o caminho. Isso me entristecia muito, pois<br />

eu também estava querendo encontrar logo o caminho de volta.<br />

Ao passar por uma rua, ouvi o canto inigualável de um amigo, o<br />

canário-da-terra João. Vinha de longe e cortei a distância do ar para me<br />

aproximar. Tadeu e Jackson vinham atrás me seguindo. De alguma maneira<br />

me viam como um líder, um exemplo de obstinação na luta para voltar para<br />

a floresta. Eles nem eram da mesma floresta que eu mas queriam ir pra lá.<br />

Quando me aproximei vi o João preso em uma frágil gaiola feita de<br />

madeira e bambu.<br />

Seu dono o observava cantar enquanto tomava uma bebida cheia de<br />

espuma com outros homens.<br />

Esperei meu sangue ferver, coisa que ocorre comigo nos instantes de<br />

fúria e faz minha íris se contorcer...então voei ao encontro do objeto com<br />

51


utalidade. João percebeu minha aproximação e começou a voar dentro da<br />

gaiola para que a balançasse, isso reforçou ainda mais o efeito do meu<br />

choque.<br />

Quando bati na gaiola ela caiu no chão e por uma fresta aberta com o<br />

choque o canário fugiu. Foi quando um dos homens jogou a tal bebida em<br />

mim tentando me espantar, porém armei as asas e voei ao encontro dele,<br />

arranhando seu rosto com as unhas ao me debater. Saí daquele lugar a<br />

procura do João que saiu desesperado em direção aos telhados.<br />

João piava longe angustiado, Tadeu disse que um gavião o<br />

encurralou em uma árvore e então fui até lá desesperado com medo que<br />

algo pudesse acontecer com ele. Quando vi o gavião, um instinto diferente<br />

tomou conta de mim então parti pra cima dele, e por trás dei uma forte<br />

bicada em suas costas, arrancando penas, o que fez com que ele saísse<br />

voando, assustado, sem mesmo olhar para trás.<br />

O gavião era assustador! Ele era maior que eu e tinha um cheiro<br />

ruim! Seu grito era um grito ameaçador, soava como som da morte, quando<br />

sabemos que alguma coisa ruim vai acontecer.<br />

Eu estava com muito medo por isso saímos logo dali e fomos nos<br />

esconder.<br />

A cidade era bem conhecida pelo João. Seu dono todas as tardes o<br />

levava para passear por ela, dentro de sua gaiola de madeira.<br />

Foi difícil convencer o canário a não retornar para o dono, pois o<br />

pequeno conseguia gostar do homem que o mantinha preso, mas entre viver<br />

na prisão e voltar para a floresta, nem mesmo o canário optaria pela<br />

primeira opção. Ele também tinha saudades de lá.<br />

Aprendi que as outras espécies de pássaros não se apegam tanto à<br />

família quanto os papagaios. Não se importam em viver sozinhos e logo<br />

esquecem dos parentes.<br />

Para descobrirmos o caminho de volta para a floresta, nós<br />

precisaríamos ir até a loja de pássaros e esperar que os homens saíssem<br />

com a caminhonete para seguirmos, descobrindo assim o caminho da mata.<br />

Não foi difícil para o João achar a loja de pássaros no meio daqueles<br />

prédios e casas do bairro. Nós fomos para o telhado e ficamos observando<br />

por muito tempo pela janela.<br />

Havia novos pássaros nas gaiolas, e entre eles estavam meus irmãos.<br />

Tomado pelo sentimento de fúria que embriagava minha íris eu voei<br />

até a loja de pássaros e como uma munição de revólver ataquei o homem<br />

que estava sentado na mesa com uma bicada muito forte no pescoço, tal<br />

qual um alicate comprimindo o frágil fio do cobre.<br />

Movido ainda pela fúria arranhei com as unhas o seu rosto várias<br />

vezes enquanto ele tentava se proteger. Havia ódio em minhas ações e eu<br />

não era assim, aprendi a odiar quando vim parar nesse lugar.<br />

52


Eu gritava para soltar meus irmãos, repetidas vezes gritava a mesma<br />

coisa, para que soltasse meus irmãos e deixasse a floresta em paz.<br />

Ele estava machucado e havia sangue na ferida. Com as mãos no<br />

rosto e gritando saiu correndo em direção à porta da loja, correu pela rua<br />

até a farmácia.<br />

As novas gaiolas tinham molas nas portas, o que tornava para mim<br />

ou para os outros pássaros impossível de abrir. O Jackson tentava quebrar a<br />

madeira, mas era inútil.<br />

Fiquei do lado de fora da gaiola dos meus irmãos, quieto, num<br />

instinto de proteção e saudade. Perguntei sobre a floresta, sobre os pais,<br />

sobre as flores, sobre a vida. Eu sentia um sentimento de angústia e<br />

esperança. Sofria comigo por pensar que tudo aquilo que estava<br />

acontecendo comigo também iria acontecer com eles.<br />

Então tivemos que fugir da loja quando o outro homem apareceu<br />

correndo, só que o Tadeu não teve tanta sorte e acabou sendo capturado<br />

pelo homem dentro da loja.<br />

- Faça alguma coisa Petrúcio...<br />

- É inútil. Não há nada que eu possa fazer, crock.<br />

Voamos até o telhado da casa em frente e ficamos observando da<br />

janela. O homem veio e olhou todas as gaiolas, depois fechou as janelas da<br />

loja e saiu.<br />

Naquela situação somente uma pessoa poderia me ajudar: o meu<br />

camarada Nestor.<br />

- Escute Jackson. Você e o João ficam aqui e eu vou procurar, crock,<br />

um camarada meu pra nos ajudar.<br />

- E quando você volta?<br />

- Vou tentar falar com ele, crock, ainda hoje, currupaco. Vou voltar<br />

logo. Daqui de cima dá pra ver a frente da loja. Se algum pássaro sair de lá<br />

vocês vão atrás e vejam onde estão levando, currupaco.<br />

Está bem, mas tome cuidado.<br />

Deixei os dois em um sobrado que havia em frente à loja e fui até a<br />

casa do Nestor, que ficava próxima da loja, uns dois quarteirões.<br />

Chegando ao beco comecei a chamar por ele:<br />

- Nestor, crock, Nestor...<br />

- Que barulheira é essa, papagaio bobo?<br />

- Quem são vocês?<br />

- Nós somos pardais ora. Você nunca viu pardais antes?<br />

- Sim, mas não de perto, nunca conversei com pardais.<br />

- E por que você está gritando aí em frente dessa porta feito um<br />

louco?<br />

- É que preciso da ajuda do Nestor para tirar alguns amigos meus que<br />

estão presos na loja de pássaros.<br />

- E acha que ele vai te ajudar?<br />

53


- Claro, currupaco. Ele é um camarada meu.<br />

- Rá, rá, rá...então esquece papagaio. Os dois homens que moram<br />

nessa casa estão presos na cadeia.<br />

- O que é uma cadeia, currupaco?<br />

- É uma espécie de gaiola gigante para colocar os humanos que se<br />

comportam mal.<br />

- Ah sim! Como os piratas. Eles estão na cadeia, crock.<br />

- Piratas? Que piratas?<br />

- Os piratas do navio. Vou contar para vocês, currupaco...<br />

- Esquece papagaio. Aí vem o Montanha, se esconde.<br />

Montanha era um gato enorme que vivia nos arredores. Eu já havia<br />

escutado uma conversa sinistra de algumas rolinhas sobre esse bicho no dia<br />

que estava na casa do Nestor. Dessa vez havia aparecido de repente e<br />

cercado um dos pardais no canto do beco.<br />

- Minha nossa! Ele vai pegar o Rufino.<br />

- Precisamos fazer alguma coisa.<br />

- Deixa comigo, currupaco.<br />

Voei para uma passagem do beco atrás do gato e gritei alto.<br />

Ele se assustou e virou para o meu lado...<br />

- Muito bem gato horroroso. A sua hora chegou, currupaco.<br />

Movido pela raiva, o gato virou para o meu lado e veio correndo<br />

igual a um touro. Esperei o pardal voar e comecei a voar também pelo beco<br />

a uma altura baixa. O gato vinha correndo atrás de mim.<br />

Eu não queria me livrar dele, estava planejando uma forma de aplicar<br />

um castigo naquele animal malvado.<br />

Foi quando vi na calçada da rua dois homens carregando um vidro<br />

enorme! Voei até lá e em uma passagem quase encostando no chão passei<br />

por baixo do vidro. Foi quando o gato saltou para cair sobre mim e acabou<br />

batendo no vidro. Olhei para trás e vi o seu focinho todo amassado<br />

enquanto escorregava. Então um dos homens tocou o Montanha ameaçando<br />

dar um chute e ele saiu meio zonzo, em seguida começou a andar<br />

cambaleando.<br />

Não contente com isso, voei para cima dele e fiz em sua pele com o<br />

bico o que um pião faz com as mãos no tal rodeio que a Sophia falou. A<br />

sensação foi incrível! Os gritos de dor do Montanha eram ouvidos pelas<br />

pessoas que logo se aproximaram para ver o gato apanhando do papagaio.<br />

Eu grudei minhas duas patas nas suas costas e com o bico fiquei<br />

apertando sua pele com muita força! Batia as asas e me contorcia...<br />

Após este dia, o Montanha nunca mais foi visto naquele beco onde<br />

morava o Nestor.<br />

- Puxa! Aquilo foi incrível papagaio! Você é um grande herói!<br />

- É que eu sei aprontar algumas, crock.<br />

- Aquele gato nojento vai ficar bem longe agora.<br />

54


- É...mas eu tenho que ir agora para a cadeia pegar o Nestor, crock.<br />

Vocês sabem onde fica?<br />

- Sim. Mas você não conseguirá tirá-lo de lá.<br />

- Por que, currupaco?<br />

- As celas da cadeia são trancadas e os guardas escondem a chave.<br />

Os pardais, em sinal de gratidão aceitaram me levar até a cadeia. No<br />

caminho eles me explicaram como funcionava aquele lugar, mas fomos<br />

interrompidos no caminho por três aves, os gaviões.<br />

Um deles era o gavião que eu ataquei. Devia estar me procurando<br />

para se vingar.<br />

Os pardais disseram para permanecermos escondidos enquanto as<br />

aves ralhavam com alguns bem-te-vis. Só que os bem-te-vis eram muito<br />

espertos e conseguiam espantar os gaviões todas as vezes que se<br />

aproximavam do seu território.<br />

- No fim da rua é a cadeia papagaio. Tome cuidado com os gatos.<br />

Quando cheguei debaixo da janela da cela, vi que dois gatos<br />

amedrontavam um ratinho. Eram gatos pequenos e logo se tornaram meu<br />

alvo. Gritei alto e eles se assustaram.<br />

Ficaram me encarando e só se aproximando de mansinho, mas<br />

quando abri minhas grandes asas e meu bico, dando um grito ainda mais<br />

alto e assustador que o primeiro, os dois saíram em disparada.<br />

Nesse dia me tornei herói para os pardais e para os ratos, já que o<br />

ratinho logo tratou de contar a história para os seus primos, que contaram<br />

para os seus amigos, que contaram para os tios...logo todos os ratos da<br />

cidade já conheciam a minha história.<br />

Quando voei até a janela, vi o Gilmar e o Nestor jogando damas.<br />

- Olá pessoal, crock! Lembram-se de mim, currupaco?<br />

- Papagaio! Como veio parar aqui?<br />

- Aconteceram muitas coisas desde que vocês saíram correndo da<br />

casa lá na estrada, currupaco. Eu estou precisando de ajuda para tirar<br />

alguns pássaros da loja de pássaros, currupaco.<br />

- E acha que podemos ajudar é? Pássaro idiota!<br />

- Não Gilmar. Talvez nós possamos fazer um acordo com o<br />

papagaio. Se ele foi esperto o suficiente para vir até aqui, quem sabe? Não<br />

temos nada a perder.<br />

- Ah Nestor! Está brincando? Acha que esse pássaro vai tirar a gente<br />

daqui?<br />

- Ah é Gilmar, currupaco? Olha e aprende como se faz, crock.<br />

Passei pela grade da cela e fui caminhando até a mesinha onde estava<br />

a chave e, bem... esse filme tem mocinho tá? Então não estranhem se eu<br />

disser que o guarda estava dormindo, isso acontece mesmo, não só nos<br />

filmes e novelas. Levei a chave até o Gilmar e ele abriu a cela. Saímos de<br />

mansinho para não despertar o guarda que dormia.<br />

55


Depois de sairmos da cadeia, fomos nos esconder na casa de um<br />

amigo do Gilmar que era viciado em rodeios, sua casa tinha muita coisa,<br />

fotografias, uma cabeça de um touro. Animal estranho, na floresta eu<br />

jamais vi um desses.<br />

Lá na casa fizemos um trato que eu deveria cumprir.<br />

- Faremos hoje à noite, certo papagaio?<br />

- Certo, currupaco.<br />

Retornei então ao velho sobrado onde meus amigos me aguardavam.<br />

Contei que eu havia conseguido ajuda e que os outros pássaros iriam sair de<br />

lá naquela mesma noite.<br />

Com um inigualável canto de aviso, o João cantador deu resposta aos<br />

pássaros da loja, que trataram de se alimentar bem na próxima hora, já que<br />

após a fuga seria mais difícil conseguir alimento.<br />

Eu estava faminto, mas não havia como conseguir comida, apenas<br />

aguardei que passassem as horas enquanto meu papo reclamava fome. Este<br />

foi o segundo dia em que passei fome e...<br />

Já era noite. Os homens que trabalhavam na loja de pássaros<br />

fecharam mais cedo por causa do outro que estava machucado. Ele tinha no<br />

pescoço e no rosto a marca visível de um grande curativo.<br />

Não demorou muito tempo e vi o Nestor e o Gilmar apontando na<br />

esquina. Voei pra frente da loja e fiquei esperando que eles chegassem.<br />

- Escuta papagaio: você fica esperando na esquina, vigiando, e se<br />

vier alguém você dá um sinal. Grita alto.<br />

- Tudo bem, currupaco! Mas não esqueça de nenhum pássaro. Solta<br />

eles que eles sabem pra onde tem que voar.<br />

- E não se esqueça do acordo entendeu?<br />

- Sim, crock, o trato, currupaco.<br />

Quando fui pra esquina da rua fiquei vigiando. Notei que abriram a<br />

porta com grande facilidade. Pouco tempo depois vi vários pássaros saindo<br />

de lá e voando para o sobrado onde estavam o Jackson e o João.<br />

Nestor fechou calmamente a porta, deixando-a como estava antes.<br />

Depois me chamou e disse para assegurar meus favores. Iria me dar um<br />

saco de sementes de girassol, que era parte do acordo, somente no carro,<br />

concordei...<br />

Fui falar com os outros pássaros:<br />

- Escuta pessoal: amanhã bem cedo quando o sol nascer nós iremos<br />

embora, mas agora tratem de ficar aqui entenderam, currupaco?<br />

- Sim irmão, mas como acharemos o caminho?<br />

- Aqueles homens terão que ir novamente à floresta pegar novos<br />

pássaros. Nós iremos escondidos na caminhonete e quando chegarmos à<br />

floresta voaremos livres, currupaco.<br />

- Mas isso não impede que eles capturem a gente de novo...<br />

56


- Nem sempre Lúcia, crock. O tempo vai nos ensinar a lidar com esse<br />

mal que é a caça, currupaco...mas por enquanto podemos ficar<br />

despreocupados. Cada um de nós já foi capturado de um jeito diferente, só<br />

temos que ensinar uns aos outros sobre as armadilhas da floresta. Irmãos,<br />

vocês se lembram de quando os nossos pais nos ensinavam a escapar dos<br />

predadores, do gavião, a procurar comida? Aqueles dias maravilhosos onde<br />

estávamos descobrindo a vida? Pois bem, agora é hora de ensinar novas<br />

coisas, ensinar a escapar das armadilhas dos homens. Vocês vieram pra cá,<br />

já sentiram na pele o desespero, temos que espalhar essa história na mata e<br />

alertar a todos os animais.<br />

- E como essa história vai terminar Petrúcio? Essa guerra não vai ter<br />

fim?<br />

- Amanhã mesmo. Quando eles forem o Nestor vai fazer uma ligação<br />

anônima para a polícia e falar que os homens estão traficando pássaro<br />

ilegalmente.<br />

- E o que é uma ligação?<br />

- Não posso explicar agora irmão, crock. Tenho que ir, fazer uma<br />

coisa para aqueles homens. Escutem pássaros: se eu não voltar até a hora<br />

que os homens saírem, quero que partam sem mim, currupaco.<br />

- Mas aonde você vai?<br />

- Não posso dizer agora, mas lembrem-se do que eu disse. Se eu não<br />

aparecer apenas digam ao papai e à mamãe que os amo, e que nunca<br />

esqueci deles.<br />

Eu voei de volta, ao encontro dos dois, sentindo grande esperança<br />

que aquilo tudo estava prestes a terminar, que na manhã seguinte eu<br />

finalmente iria voltar pra casa, pra floresta.<br />

Deixei lá naquele sobrado o pica-pai Jackson, o canário-da-terra<br />

João, o curió Tadeu, as três jandaias Luí, Luz e Lúc, os coleirinhas Ern,<br />

Piua, Malandro, Leão, Erel, Ast e Joça, o azulão Tostão e meus quatro<br />

irmãos Crec, Graac, Áat e Aru.<br />

Segui com o Nestor e o Gilmar até o carro que estava parado na outra<br />

rua. Seu motorista era um homem viciado em montaria e rodeios, que<br />

sonhava ser um pião de rodeio e montar nos touros.<br />

Finalmente pude comer alguma coisa! As sementes estavam bem<br />

frescas! Seu sabor era bom, até pareciam ter vindo da floresta...ah, estou<br />

tão perto de voltar para lá... que felicidade que meu coração está sentindo<br />

nesse instante! A possibilidade de voltar a viver a minha vida, e apagar essa<br />

tristeza toda, tudo que aconteceu nesse lugar comigo. Eu estou muito perto,<br />

eu vou conseguir!<br />

57


Capítulo 9<br />

- E então papagaio? Sabe o que fazer?<br />

- Sim, currupaco.<br />

Fui até a entrada da joalheria. Havia uma pequena passagem,<br />

descoberta de vidro e ferros decorativos. Ficava no alto e eu só poderia<br />

passar voando. Era muito estreita e nas primeiras tentativas não consegui<br />

passar pela pequena abertura. Só poderia passar voando. Então tive que me<br />

concentrar e voar mais alto que a entrada, então impulsionado pelo vôo<br />

fechei as asas e consegui entrar.<br />

Do lado de dentro fiz tudo do jeito que eles disseram. Fui até as<br />

prateleiras e comecei a pegar as jóias, uma a uma e levar até a passagem.<br />

Fui jogando todos aqueles objetos e eles recolhiam do lado de fora.<br />

Havia alguns muito brilhantes e coloridos, muito bonitos e durante<br />

mais de uma hora eu fiquei pegando as jóias da joalheria e jogando para<br />

eles do lado de fora. Eles sempre falando para eu pegar mais e procurar<br />

pelos objetos mais brilhantes e maiores.<br />

Havia um cofre e pensei que os objetos mais bonitos estariam lá. Eu<br />

sabia o que era um cofre, pois o Serginho tinha um brinquedo igual. Ah,<br />

que saudade do Serginho...e o Juquinha? Será que se deu bem com o<br />

cachorro? Bom, isso não importa muito agora, daqui a pouco quando<br />

amanhecer vou voltar pra floresta.<br />

Ao lado do cofre tinha um botão vermelho que pensei ser o botão de<br />

abrir o cofre, mas quando apertei um monte de luzes começou a piscar e<br />

eram vermelhas. As luzes cortavam as paredes de um lado a outro e<br />

58


também no chão. Muito barulho, uma sirene alta tocava enquanto várias<br />

câmeras estavam viradas na minha direção. Só então percebi que as<br />

câmeras estavam lá o tempo todo me vigiando e voltavam-se para o lado<br />

onde eu estava.<br />

Eu já tinha visto algo parecido no barco grande onde conheci a<br />

Sophia, no quarto de Dara, mulher do Cristóvão. Sophia disse que ela era<br />

uma produtora de eventos muito famosa e tinha muitos objetos de valor,<br />

que não queria ninguém entrando no seu quarto e por isso mandou colocar<br />

as luzes e as câmeras, que isso impedia que qualquer um entrasse no quarto<br />

para pegar alguma coisa.<br />

Sophia falou que se atravessarmos as luzes elas fazem machucado<br />

em nós, por isso acuado fiquei ao lado do cofre, imóvel, enquanto aquele<br />

terrível barulho de alarme prosseguia.<br />

Sem saber o que fazer, só pensei em gritar naquele momento. Foi<br />

quando o barulho se interrompeu repentinamente.<br />

- Currupacoooo...<br />

Todas as luzes se apagaram e a porta da joalheria se abriu. Vários<br />

homens entraram na joalheria. Quando fui voar um deles me acertou com<br />

um sapato e eu caí num canto com a asa machucada.<br />

Gritava de dor e a última coisa que vi foi um pano ser jogado em<br />

cima de mim.<br />

Ouvi quando vários carros com sirene passaram em frente à<br />

joalheria. Um homem pegou o pano com brutalidade e me jogou dentro de<br />

uma caixa, depois fui jogado na parte de trás do carro e saímos de lá.<br />

Não me dava conta do que havia acontecido comigo. Fui levado para<br />

um lugar cheio de pessoas e fiquei na caixa enquanto os homens que me<br />

trouxeram conversavam. Minha asa estava inchada e não conseguia movêla.<br />

Sentia dor e desespero, estava tudo tão confuso que por certo tempo não<br />

consegui coordenar as idéias, nem mesmo fazia idéia do que estava<br />

acontecendo, foi tudo muito rápido.<br />

Passados alguns dias naquela caixa veio uma mulher e fez um<br />

curativo em minha asa, senti que a asa estava no lugar certo de novo, mas<br />

ainda não conseguia mexer. A mulher me colocou em uma gaiola e eu<br />

ficava em um corredor onde muitos homens estavam dentro de celas, assim<br />

como o lugar em que o Nestor e o Gilmar estavam.<br />

Era um lugar muito sujo com um cheiro insuportável. Os homens<br />

ficavam mexendo comigo, esperando que eu falasse. Algumas vezes<br />

jogavam água em mim.<br />

Por várias vezes me deixavam sem comida, e sentia fome.<br />

Pensei que talvez os outros pássaros já estivessem na floresta. Foi<br />

um raro momento para sorrir e pelo menos dessa preocupação me ausentei.<br />

Um pássaro pequeno veio voando até a gaiola onde eu estava, e<br />

quando pousou eu percebi que era o Ern.<br />

59


- Ern, o que faz aqui? Você devia estar na floresta com os outros.<br />

- Nós todos havíamos decidido naquela noite que não voltaríamos<br />

sem você, Petrúcio. Aqueles homens foram até a floresta novamente e só a<br />

Lúc foi na carroceria do carro, para alertar os pássaros da floresta e ensinar<br />

sobre as armadilhas. Ela ficou por lá e um pássaro preto muito esperto veio<br />

na carroceria para aprender o caminho...ele está conosco e estamos<br />

esperando você para voltarmos.<br />

- E os homens, conseguiram pegar outros pássaros?<br />

- Infelizmente sim Petrúcio, a maioria pássaros novos que não tinha<br />

experiência ou que não deu atenção à Lúc. Ele falou que não tinha notícias<br />

dos seus pais para trazer pois não os viu, mas disse que outros papagaios<br />

falaram que eles foram para um lugar mais escondido na mata onde os<br />

caçadores não conseguiam chegar.<br />

- Ainda teremos que conviver muito tempo com esse mal, mas<br />

tomara que os animais da floresta aprendam a fugir dessas armadilhas.<br />

- Tomara.<br />

- E como me encontrou, currupaco?<br />

- Uma coruja falou pra gente. Ela estava em uma árvore em frente à<br />

joalheria que você assaltou. Olha Petrúcio, todos os pássaros da cidade<br />

sabem o que você fez, além disso a coruja falou que apareceu em muitos<br />

jornais.<br />

- Eu cometi um grande erro, mas foi por amor, por desespero e agora<br />

veja o que me aconteceu. Escute Ern, quero que todos vocês voltem<br />

imediatamente para a floresta, porque eu não conseguirei. Sinto que minha<br />

vida está chegando ao fim.<br />

Durante um tempo fiquei conversando com o Ern e ele disse coisas<br />

horríveis sobre o Nestor.<br />

- Mas não pode ser, currupaco. O Nestor é um amigão meu,<br />

currupaco.<br />

- Ah é? Então por que você acha que está nessa gaiola?<br />

Fomos interrompidos por um guarda que abriu a porta que dava<br />

acesso às celas. O Ern passou por ele como um foguete e saiu voando pela<br />

outra sala até chegar à rua.<br />

Vendo o Ern sumindo senti que aquilo é o mais próximo que já<br />

cheguei de voltar pra casa, e meu coração deverá se contentar em saber que<br />

os pássaros conseguiram voltar.<br />

A minha vida de sofrimento e desilusão, caos de sentimentos, roubo<br />

do amor e da paixão que eu cultivei, minha mata, casa que já não posso<br />

morar, esmaecendo em minhas lembranças...tristeza!<br />

- Muito bem pássaro. Chegou a hora de você abrir o bico. Vamos ver<br />

se conseguimos tirar alguma informação de você.<br />

- Aonde vou, currupaco?<br />

60


- Você vai para um lugar pior que o banco dos réus. Vamos ver se<br />

fala tudo que queremos ouvir.<br />

Lá na sala várias pessoas me aguardavam. Fui colocado em cima de<br />

uma mesa e havia um homem chamado Fonseca que ficava perto de mim.<br />

Era fácil perceber como as pessoas me olhavam com ódio. Senti que<br />

eu era a vergonha do mundo animal. Eu já estava condenado antes mesmo<br />

de qualquer sentença.<br />

Então entrou na sala o Adamastor para tentar fazer com que eu<br />

falasse algo. Ele disse coisas horríveis sobre mim quando um dos homens<br />

perguntava, parecia que o homem exercia algum tipo de autoridade sobre<br />

as outras pessoas, pois quando mandava se calarem todos ficavam calados.<br />

Passado algum tempo entrou na sala o Cristóvão...<br />

- Petrúcio é cleptomaníaco! Um animal que ganha a confiança dos<br />

outros para usufruir de certos poderes. Praticou inúmeros furtos no navio<br />

onde viajava. Esse pássaro é a escória do mundo animal, vergonha da<br />

natureza! Foi treinado para roubar e vai continuar cometendo delitos se não<br />

for exterminado.<br />

O Fonseca tentava convencer as outras pessoas que eu era um animal<br />

apenas, que não tinha ciência das coisas que fazia.<br />

Depois apareceu o Rubens, um dos donos da loja de pássaros. Saiuse<br />

muito bem diante das perguntas, mas fiquei muito agitado com a<br />

presença dele. Eu sentia ódio, queria atacá-lo. Ele se complicou com<br />

algumas declarações. Estava sendo investigado por causa da loja de<br />

pássaros, pois não tinham registro, a loja era ilegal.<br />

O culpado de eu estar aqui, o Rubens, juntamente com o outro<br />

homem.<br />

Depois entrou na sala o sr. Pedro, que disse que eu me infiltrei na<br />

casa dele para facilitar o assalto que ocorreu na casa. Disse que quando<br />

todos na casa saíram eu avisei meus comparsas. Disse que recebia ameaças<br />

diariamente e acusou os assaltantes pelo assassinato da dona Amanda e do<br />

Ricardo enquanto viajou com seu filho.<br />

O sr. Pedro estava usando algemas, estava preso e alegava que não<br />

havia matado a dona Amanda e o amante dela. Ele foi embaralhando cada<br />

vez mais o seu depoimento, falando coisas desconexas, me acusando.<br />

E foi assim que terminou o caso do assassinato da dona Amanda e do<br />

Ricardo, o homem que todos os dias ia até a casa pelas manhãs: o Serginho<br />

passou a morar na casa da avó, que se chamava Matilde e o sr. Pedro foi a<br />

julgamento, foi condenado. Ficou na prisão por pouco tempo e depois foi<br />

solto. Um homem bem visto pela sociedade dos humanos, com um bom<br />

currículo, assim é que chamam o conhecimento aqui. Aquela palavra por<br />

um tempo não saiu da minha mente, uxoricídio, eu não conseguia<br />

pronunciá-la direito mas não me esqueço de quando escutei lá naquela sala.<br />

61


Os dois homens que iam até a floresta capturar animais também<br />

foram presos. Quando deixaram a cadeia decidiram não ir mais até a<br />

floresta buscar animais, mas continuaram vendendo pássaros e ração.<br />

E foi assim que os pássaros ficaram livres deles e puderam seguir a<br />

vida em paz. Eu sentia angústia em não poder estar com eles, tudo o que eu<br />

queria era ser um animal da mata, mas estou cada vez mais me tornando<br />

como um desses animais daqui, que usam roupas, cada vez mais igual!<br />

Quando terminou eles tentavam fazer com que eu falasse alguma<br />

coisa, que desse pistas sobre as jóias. Diziam que eu havia tirado uma<br />

fortuna em jóias daquela joalheria mas eu fiquei em silêncio durante todo o<br />

tempo, sem dizer nada. Pensava com ódio em muitas pessoas, em muitos<br />

acontecimentos, e por um tempo acabei desligando minha percepção,<br />

sonhando acordado.<br />

Depois fui jogado em um porão que eu não sabia onde era, não havia<br />

comida nem água, mas para minha surpresa todos os dias os ratos levavam<br />

comida para mim.<br />

Naquele porão não havia nada, nem poleiros nem objetos, apenas um<br />

pequeno buraco na parede que era por onde os ratos entravam para trazer<br />

comida. Os homens me colocaram lá para morrer.<br />

O destino me visitava todos os dias para me trazer novidades. Ele<br />

surgia como que por encanto, sem entrar por nenhuma porta ou janela.<br />

Falava sobre o mundo lá fora.<br />

Ele falou que na cidade havia sido inaugurada uma lanchonete muito<br />

grande com meu nome, brincando depois que o dono da lanchonete devia<br />

gostar de mim ou ter se familiarizado com a história maluca do papagaio<br />

assaltante.<br />

Num raro momento percebi que lá no navio eu não estava<br />

embriagado, e não estava alucinando sobre as visitas dele ao porão. Foi<br />

esse estranho ser chamado destino que se transformou em coruja, era ele<br />

também o amuleto que se apegou antes ao Henrico e agora me persegue.<br />

Precisava me livrar dele, só trazia azar para mim.<br />

Ouvindo-me dizer essas palavras se magoou o destino e foi embora,<br />

procurar outro dono. Eu não havia percebido que estava atrás de mim<br />

quando eu disse que ele dava azar, ah, foi até melhor assim...<br />

Era um ser mágico que podia se transformar em pessoas e animais,<br />

atravessava paredes, soltava raios nos olhos. Mas se não podia me tirar<br />

daqui e me mandar de volta pra floresta eu achei que não precisaria dessa<br />

amizade.<br />

A última coisa que ele me falou é que os dois homens abriram uma<br />

lanchonete perto do local onde era a loja de pássaros e colocaram o nome<br />

de Petrúcio’s bar. Disse que muitas pessoas iam lá por causa da fama que a<br />

história do papagaio ladrão alcançou.<br />

62


Minha condenação foi horrível! Trancado em um porão fechado<br />

durante anos. A comida que os ratos traziam me manteve vivo, porém era<br />

ruim, apenas restos. A fome não detalhava paladar ou agrado, entretanto.<br />

Eu queria morrer e acabar com aquele pesadelo, mas os ratos confiavam<br />

muito em mim. Eu era um herói para eles.<br />

Aquele passarinho alegre, não tem mais motivos para sorrir. Quem<br />

sabe as lágrimas que já chorei formem um rio pelas ruas e estradas daqui<br />

até a floresta, e o Vernacleto, meu amigo peixe, venha nadando pelo rio<br />

para fazer companhia a um solitário papagaio, o Petrúcio...<br />

- Currupaco!<br />

Um dia, após muito tempo, um homem abriu a porta e ficou imóvel<br />

olhando para mim, parecia estar vendo um fantasma. Eu estava vivo depois<br />

de vários anos deixado naquele porão fechado, sem água e comida.<br />

Os olhos dele estavam maravilhados, espantado, confuso e com<br />

medo! Então ele fechou a porta e saiu correndo pelo corredor.<br />

Logo várias pessoas vieram ver se eu estava realmente vivo. Elas<br />

olhavam de longe na entrada da porta. Olhavam para mim e para o restante<br />

do porão, onde não havia mais nada.<br />

Eu olhava fixo para elas, sem sair do lugar, ali parado no chão de<br />

terra, no meio do porão, com um olhar de ódio.<br />

63


SEGUNDA PARTE<br />

No ápice de um novo começo me encontrei, quando um homem<br />

abriu a porta do porão e saiu de perto. Eu saí de lá e meus olhos doeram,<br />

pois eu já não sabia o que era a luz. O sol era algo tão desconhecido quanto<br />

no meu nascimento, quando os olhos se abriram e viram a claridade da<br />

floresta. O corpo estava pesado, pois depois de muito tempo eu não<br />

caminhava tanto, era apenas o porão, nada mais. O piso tinha azulejos de<br />

cor marrom claro, eu olhava para o chão enquanto dava um passo após o<br />

outro.<br />

Surrado pela vida e castigado pelos homens que me deram por<br />

morto, hoje um fantasma saindo do túmulo. Os dois homens ficavam me<br />

olhando e eu sentia os seus pensamentos atordoados.<br />

Caminhei pelo corredor vagarosamente enquanto nas celas os presos<br />

batiam palmas e gritavam.<br />

Fui caminhando até a saída da prisão onde havia um portão aberto. O<br />

guarda que manteve o portão aberto me encarava com medo, aguardando<br />

minha saída. Quando saí, voltou a trancá-lo.<br />

Uma pessoa tirou fotografias do momento em que eu caminhei e do<br />

momento em que o portão foi fechado atrás de mim.<br />

Quase não me lembrava mais o que era voar. Meu primeiro vôo foi<br />

como aqueles na floresta quando fui capturado e lançado nesta horrível<br />

cidade.<br />

Foi logo que saí pelo portão.<br />

Tudo que aconteceu comigo aqui foi ruim, poucas coisas que gostei<br />

só serviram para me fazer mal, como a amizade do Nestor e a Sophia.<br />

Jurei que me vingaria de todos. A primeira coisa que fiz foi procurar<br />

os pardais. Andava vagaroso pela cidade, minhas asas só não atrofiaram<br />

por completo porque eu me movimentava no porão.<br />

Quando os encontrei e disse quem era, me disseram onde vivia a<br />

papagaia Sophia. Minha intenção era encontrar o Cristóvão.<br />

Demorou muito tempo para que eu os encontrasse.<br />

De todos os pardais que eu havia conhecido naquele beco em frente à<br />

casa do Gilmar, só havia restado o Rufino, que por sinal já era um pássaro<br />

velho. Os outros pardais que estavam com ele, ou eram filhotes ou netos<br />

dos antigos pardais. Era impressionante a maneira como me tratavam! Eu<br />

era verdadeiramente um ídolo para eles...<br />

Então ao sair dali voei pela cidade mais uma vez. Passaram-se<br />

algumas horas e cheguei ao subúrbio. Havia ali uma casa branca com<br />

janelas claras, em tom de azul, lugar onde eu poderia encontrar a Sophia,<br />

segundo eles.<br />

64


Havia um muro baixo, no quintal algumas flores e hortaliças. A porta<br />

fechada não me deixou outra escolha senão voar por cima da casa.<br />

Do outro lado havia um quintal com duas árvores médias. Ao pousar<br />

numa delas vi a Sophia na varanda com um outro papagaio pequeno.<br />

Ela conversava com ele e brincavam com uma bola de isopor.<br />

Quando ela me viu na árvore falou para o pequeno papagaio que<br />

entrasse em casa, achando que eu não o tinha visto.<br />

- Quem é você, currupaco?<br />

- Não se lembra mais de mim Sophia? Ou será que você assim como<br />

os meus antigos donos está me ignorando ou vingando em mim os seus<br />

problemas?<br />

- Petrúcio? É você? Você não deveria estar na floresta com os outros<br />

pássaros?<br />

- Todos esses anos desde que nos separamos naquela praça eu estive<br />

preso, currupaco.<br />

- Preso? Como aqueles piratas, crock?<br />

- Sim.<br />

- Mas o que aconteceu Petrúcio?<br />

- Foi assim que aconteceu: nós tínhamos que encontrar a loja de<br />

pássaros para voltar para a floresta e então...<br />

“Na verdade eu já sabia que o Petrúcio estava preso, que os homens<br />

o colocaram num porão para morrer. Uma coruja de olhos bem brilhantes<br />

sempre vinha até aqui para me trazer notícias do Petrúcio, mas depois de<br />

um tempo achei que era mentira dela, até que um dia desapareceu de vez.<br />

Olhando novamente para o Petrúcio depois de todo esse tempo<br />

novamente me veio um aperto no coração por tudo de ruim que eu fiz para<br />

ele...mas um sentimento tão bonito, uma coisa tão preciosa invadiu meu<br />

coração e só pude ficar imóvel olhando para ele.”<br />

Depois de contar minha história, perguntei à Sophia sobre aquele<br />

pequeno papagaio e ela disse que seus novos donos o haviam comprado há<br />

alguns anos.<br />

Não acreditei no que me disse aquela papagaia. Dava para perceber<br />

quando mentia. Eu sabia perfeitamente quem era aquele papagaio, e parecia<br />

muito com o meu pai. Nisso me lembrei de coisas tão distantes, da minha<br />

infância na floresta, dos conselhos de vida que papai nos dava...<br />

A vida é sempre assim, nós vivemos e passamos aos filhos o<br />

resultado das experiências. Minha experiência de vida, porém, e os calos<br />

em minha face são coisas que não tive a oportunidade, e nem terei, de<br />

contar ao meu filhote. Só espero que a Sophia tenha dito a ele o que o pai já<br />

fez, as coisas boas, a esperança e a força de vontade.<br />

Mas também não insisti em perguntar mais sobre o papagaio. Era<br />

notável que ela não queria falar, além do mais esse papagaio nasceu numa<br />

65


casa na cidade e não sabe as coisas que nós da floresta sabemos, não pode<br />

viver como nós. Sophia ficou mais ajuizada, mais responsável...<br />

Ela não tinha notícias sobre seus antigos donos, mas sabia sobre o<br />

Gilmar e seu comparsa, o Nestor. Disse que a tal coruja falou que moravam<br />

numa casa grande e bonita, cercada por um muro bem alto.<br />

Despedindo-me da Sophia, segui meu caminho. Ao olhar para trás<br />

enquanto voava notei que ela olhava para mim de uma forma muito pura,<br />

diferente daquele olhar cheio de ciúmes e até mesmo raiva.<br />

“Olhando o Petrúcio indo embora, em silêncio meu coração parecia<br />

se comunicar com o dele...<br />

Petrúcio, eu não queria perder mais do que eu já perdi. Tive medo,<br />

me desculpa! Fiquei com medo que o levasse. Vi o quanto você sofreu, vi o<br />

sofrimento dos outros pássaros. Aqui é seguro, nós só temos isso...<br />

Volta Petrúcio...volta...volta...”<br />

Nossas vidas são engraçadas, podemos viver uma vida tranquila e<br />

sem problemas ou então sofrer tudo o que de ruim o destino poderia jogar<br />

em nosso caminho.<br />

Eu não conheci a felicidade plena após ser roubado da mata, só o que<br />

tive foram algumas fatias espalhadas em cada canto, assim como migalhas<br />

jogadas para os pássaros próximo aos bancos de uma praça.<br />

Meu sorriso é como as gotas da chuva que caem na terra, e embora<br />

sejam muitas, ainda fica uma flor sem receber as águas e murcha na terra<br />

seca, longe do alcance da tempestade.<br />

As horas passavam. Tive dificuldade, aliás, bastante dificuldade para<br />

encontrar a casa que ela falou. Foi difícil entrar. Havia cães e embora eu<br />

tentasse falar com eles pareciam robôs programados para obedecer. Latiam<br />

para mim e então saí de lá e fiquei sobre uma árvore do lado de fora,<br />

vigiando apenas.<br />

Depois de um tempo consegui entrar voando por uma janela. Na casa<br />

somente estavam os empregados. Mais tarde percebi que o Nestor também<br />

estava, dormia em um dos quartos.<br />

Eu me escondia quando alguém passava, queria vingança. Nada<br />

podia atrapalhar e ser visto alertaria os dois sobre minha presença.<br />

Lá no segundo andar era a biblioteca. Ao lado ficavam os quartos,<br />

entre eles o do Nestor.<br />

As baratas, que também admiravam bastante a minha história me<br />

ajudavam. Elas estavam orientadas pelos chefões da rataria de me ajudar no<br />

que eu precisasse para fazer minha vingança contra os dois.<br />

Expliquei qual era o meu plano e elas sabiam exatamente o que<br />

fazer, o que me impressionou muito! Baratas são seres que conhecem toda<br />

a casa, todas as ruas...andam por tudo e sabem se esconder, são organizadas<br />

e conhecem locais que nem mesmo os moradores de uma casa imaginam<br />

que exista.<br />

66


Trouxeram um gravador. Era pequeno e leve! Não deu trabalho para<br />

carregar. Fui arrastando pelo chão até chegar à biblioteca. Elas olhavam<br />

admiradas esperando pra ver o que eu ia fazer, e me seguiam admiradas<br />

com tudo. Elas sabiam até mexer no gravador.<br />

Eu me sentia habilidoso para fazer as coisas...não sei, algo de<br />

diferente em mim. Algumas vezes ficava pensando se isso teria alguma<br />

coisa a ver com o que aconteceu no navio tempos atrás, quando conheci o<br />

destino...o certo é que eu não era o mesmo pássaro, havia algo diferente!<br />

Então elas foram se espalhando, dizendo que alguém se aproximava.<br />

Ouvi passos subindo a escada. Deixei o gravador lá no canto encostado na<br />

parede e tratei de me esconder na biblioteca. Era a única porta aberta<br />

naquele corredor.<br />

Havia uma sala bonita com um piano, fechada apenas por uma<br />

bambinela, não me arrisquei.<br />

A mulher que trabalhava na casa subiu para limpar o andar de cima<br />

com um aspirador de pó.<br />

Foi quando vi o Nestor, saindo do seu quarto.<br />

Ele abraçou a mulher e a levou para o quarto de onde havia saído.<br />

Conversavam alguma coisa e a porta estava semi-aberta, mas não<br />

podiam ver a entrada da biblioteca.<br />

Continuei então a arrastar o gravador até a biblioteca, carreguei até<br />

uma estande de livros e o deixei sobre a estande, escondido.<br />

No corredor ouvi sons que já havia ouvido antes na casa do<br />

Serginho.<br />

Saí de lá rapidamente e novamente os cães latiam. Foi então que<br />

entrei em outro quarto, através de uma janela aberta. Era o quarto do<br />

Gilmar.<br />

Fiquei escondido no quarto até que caísse a noite.<br />

Quando anoiteceu o Gilmar abriu a porta, pegou uma roupa no<br />

armário e foi tomar banho. Depois de um tempo saiu do banheiro e vestiu a<br />

roupa.<br />

Nestor bateu na porta do quarto e perguntou se já estava pronto.<br />

Ele deu um grito e logo saiu do quarto, passados alguns<br />

minutos...apressado!<br />

Então ouvi o barulho do carro, de cor laranja, dando a partida. Com<br />

certeza iriam pra farra, encher a cara de bebida.<br />

Era tarde e os dois empregados já estavam dormindo. Então saí do<br />

quarto e caminhei até a cozinha para pôr em prática o meu plano. Alguns<br />

ratos estavam me ajudando. Eram doze ratos e lembro até seus nomes:<br />

Roque, Tomáz Rói-Rói, Dentinho, Chiquita Bela, Paraguaçu, Berimbau,<br />

Mane Ozório, Mariazinha Dá Vinte, Robertão Delicado, Rei Rinchado,<br />

Tonhão Rei do Esgoto e Riso Ruído.<br />

67


Paraguaçu era o único dos ratos que morava na casa. Os outros eram<br />

amigos seus que sempre iam lá para fazerem festas com as comidas da<br />

casa.<br />

Ofereceram-se para ajudar assim como ele, assim que souberam que<br />

era eu que estava na casa. Eles queriam se vingar porque um dos amigos<br />

deles havia sido morto tempos atrás pelo Nestor. Eu era um ídolo para<br />

aqueles ratos, aliás depois de tudo que aconteceu, acho que para a maioria<br />

dos animais pequenos da cidade.<br />

Condicionado pelo Paraguaçu e sob minhas ordens, os outros ratos<br />

foram executando suas tarefas: Roque, Berimbau e Rei Rinchado tiraram<br />

uma lata de óleo do armário e derramaram pela cozinha de ponta a ponta;<br />

Chiquita Bela e Tomáz Rói-Rói pegaram em outro armário onde eram<br />

guardadas ferramentas, varas de pescar e outros utensílios, o carretel de<br />

linha de pescaria, cujo fio era praticamente invisível, usado para enganar os<br />

peixes do rio. Foram desenrolando e a Chiquita segurou a ponta do fio,<br />

depois foi correndo pela casa entre as mesas e cadeiras. Os ratos eram<br />

muito habilidosos! Eu estava impressionado! Alguns deles pegaram palitos<br />

e foram para o andar de cima, na direção do quarto dos empregados que<br />

dormiam, então algumas baratas colocaram os palitos no buraco da<br />

fechadura, para evitar que os empregados saíssem dos quartos na hora que<br />

começasse tudo.<br />

Cada rato pegou um saquinho com pólvora e fez um montinho em<br />

cada degrau da escada, uma fina linha ligava o estopim colocado por<br />

Robertão Delicado. Eles pareciam ter até ensaiado tudo, agiam com muita<br />

naturalidade e habilidade! Para acender ele usaria um aparelho que eles<br />

ligavam o fogão, era bonito e fazia faísca como as de um raio.<br />

Pegaram um vidro de catchup e levaram até o segundo andar, quando<br />

chegaram estavam exaustos. Era pesado, então abri com o bico fazendo um<br />

furo e fui pingando pelo corredor até a sala do piano.<br />

Riso Ruído já havia terminado seu trabalho. Colocou velas ao redor<br />

da porta e em alguns locais do corredor...acendi usando o aparelhinho que<br />

funcionava apenas apertando. Era bonito e interessante! Nem era difícil de<br />

usar!<br />

Um deles colocou uma lanterna atrás da bambinela camurça que<br />

fechava a porta da sala do piano. Era uma cena de terror preparada para<br />

apanhar os dois. Uma porta grande e bonita que se abria para fora. A<br />

bambinela era de tecido fino e transparente como a seda. Minha sombra<br />

ficava gigantesca à frente da lanterna, atrás da cortina.<br />

Na biblioteca os ratos roíam livros, deixavam jogados pelo chão,<br />

transformavam o lugar, deixando tudo muito desorganizado.<br />

Na cozinha outros deles partiam frutas, comiam bastante, abriam<br />

latas de farinha, de arroz e deixavam tudo muito espalhado.<br />

68


Capítulo 2<br />

Era bem tarde quando ouvi o barulho do carro chegando. Estava<br />

disposto a levar às últimas consequências o sentimento de vingança que<br />

jamais foi meu, aprendi nesse lugar tão malicioso.<br />

Nesse momento fui para a biblioteca e liguei o gravador, precisava<br />

gravar os dois conversando.<br />

Nestor abriu a porta e entraram. Estavam muito bêbados e<br />

conversavam alto. Gilmar trazia nas mãos uma garrafa com bebida já pela<br />

metade.<br />

Ao tropeçarem na fita que estava no caminho caíram no chão<br />

gritaram alto, tentaram se levantar e caíram mais duas vezes até chegar<br />

perto da escada.<br />

Os empregados gritavam querendo sair dos quartos, mas as portas<br />

estavam emperradas. Eles escutavam os gritos desesperados e eu nem sabia<br />

o motivo de gritarem tanto. Foi aí que percebi que nos quartos havia uma<br />

quantidade muito grande de baratas.<br />

A noite era fria e algum dos ratos deve ter chamado todas as baratas<br />

do bairro para ficarem na casa, dentro dos quartos dos empregados. O<br />

alarde se transformou num perfeito coral de terror através dos gritos, e olha<br />

que nem foi planejado esse detalhe, mas ficou muito bem elaborado!<br />

Foi quando um deles acendeu a trilha de pólvora que explodia a cada<br />

montinho, formando uma bola de luz e fumaça em cada degrau.<br />

- Corre Nestor, corre. Socorro!<br />

- O que aconteceu Gilmar?<br />

- O chão não me deixa ficar em pé.<br />

- Vem. Dá a sua mão.<br />

Foi quando o Nestor também caiu no chão da cozinha, coberto de<br />

óleo.<br />

Os dois foram se arrastando até a escada e subiram com muita<br />

dificuldade pelos degraus...desesperados e ouvindo os gritos, o cheiro de<br />

fumaça na casa por causa da pólvora...havia medo naqueles homens.<br />

Quando estavam chegando ao último degrau apaguei a luz do<br />

corredor e voei até a sala do piano sem que me vissem.<br />

Quando comecei a pisar nas teclas do piano, o pavor tomou conta<br />

dos dois, já paralisados pela comoção ao ver o sangue e as velas.<br />

Correram para a biblioteca totalmente apavorados depois que eu voei<br />

para a frente da lanterna e meu vulto surgiu enorme na cortina. Era lá na<br />

biblioteca que estava o gravador, eu precisava de sorte agora para que eles<br />

pudessem conversar o que eu queria que conversassem.<br />

Na expectativa, os ratos assistiam de camarote a fantástica<br />

apresentação. A vista que tinham da entrada do corredor era ótima!<br />

69


Dava para ouvir de longe o que conversavam...<br />

- Você viu aquilo Gilmar?<br />

- Claro que vi. Acha que sou cego?<br />

- Era o Petrúcio. O Petrúcio. A alma dele voltou pra nos pegar.<br />

- A culpa foi sua. Foi você que o deixou lá naquela joalheria que<br />

fomos assaltar.<br />

- Mas você sempre me culpa por tudo. E além disso a idéia de<br />

assaltar aquele lugar foi sua. O nosso trato era só em sair da cadeia, então a<br />

gente iria pegar os pássaros naquela loja pra eles voltarem pra floresta.<br />

- Eu sei que a idéia foi minha, mas você bem que foi.<br />

- Fui porque você e o Fred insistiram.<br />

- Psit...fala baixo. O fantasma pode nos ouvir.<br />

Durante os minutos seguintes nenhum som foi ouvido, atirado ao ar<br />

dentro da biblioteca. Foi aí que um dos empregados conseguiu arrombar a<br />

porta do quarto e se deparou com aquela bagunça.<br />

Eu ficava escondido atrás do piano, só ouvindo as conversas. O<br />

empregado conseguiu abrir a porta da empregada e eles foram ajudar os<br />

dois na biblioteca. Muitas baratas iam saindo dos dois quartos e correndo<br />

pelo corredor. Os ratos cuidaram para que as baratas fossem logo embora<br />

afinal só iriam atrapalhar naquela hora.<br />

Os dois empregados acharam que toda aquela bagunça havia sido<br />

provocada pelos chefes, como era de costume acontecer. Depois de os<br />

colocarem nos seus quartos para dormir foram arrumar a casa.<br />

Quando eles desceram não havia ninguém no corredor, então fui<br />

lentamente até a biblioteca. Entrei. Tirei a fita do gravador com cuidado<br />

para não quebrá-la com meu bico.<br />

Furtivamente saí voando pela janela que ainda estava aberta, no meio<br />

da noite, levando comigo a prova da traição daqueles homens.<br />

Quando voava pela cidade percebi que muitas corujas aclamavam<br />

dos galhos das árvores, morcegos batiam asas próximo ao meu caminho.<br />

Eu estava realmente me tornando uma celebridade nesse lugar!<br />

Voltei ao mesmo portão que pouco tempo atrás se abriu perante<br />

meus olhos. Dessa vez sem esperar que se abrisse voei por cima dele e fui<br />

até o lugar que me interessava.<br />

Havia um homem de plantão cochilando em uma mesa e quando fiz<br />

barulho despertou depressa. Olhou para mim com medo, parecendo estar<br />

vendo um fantasma. Na verdade era isso que eu virei naquele lugar, uma<br />

aberração da natureza, um ser que a morte rejeitou.<br />

Então deixei a fita em cima da mesa e voei para a janela, olhei<br />

novamente para o rosto daquele homem e sai voando daquele lugar.<br />

Ao sair dali procurava um lugar para passar a noite.<br />

Vi no alto de um arranha-céu um homem sem roupas que como os<br />

animais, me felicitava. Tinha a pele manchada como a pele de um animal e<br />

70


seus pés eram virados para trás. Levava consigo uma arma igual à de um<br />

índio.<br />

Tive medo, mas algo nele era muito familiar, então me aproximei.<br />

- Olá Petrúcio, vim ver como estava se saindo.<br />

- Quem é você?<br />

- Eu sou o espírito que protege a floresta, e tenho protegido você<br />

todo esse tempo, desde que soube. Sou eu quem faz os caçadores se<br />

perderem na mata e afugento os animais que estão na mira das armas deles.<br />

- Você mora na floresta de onde eu vim?<br />

- Sim. Na verdade em todas as florestas. Eu sou o espírito que<br />

percorre a mata para protegê-la das mãos dos homens, que com suas armas<br />

e facões cada vez mais tentam destruir a beleza da terra por causa dos seus<br />

interesses. Eu sou o Curupira!<br />

- Mas o que eu tenho a ver com toda essa história? Por que têm<br />

acontecido tantas coisas comigo?<br />

- No futuro Petrúcio, a sua história será o motivo de uma coisa<br />

maior, que nem você pode entender. Quero que saiba de uma coisa: tudo<br />

tem o seu propósito. Nada acontece por acaso na vida de ninguém.<br />

Entretanto Petrúcio, estou preocupado com o rumo que as coisas podem<br />

tomar, por isso estou aqui para te dar mais que um conselho, é quase uma<br />

ordem...<br />

- O que é? Diga?<br />

- Não perca o controle das coisas. Muitas coisas que você nem<br />

imagina que seriam capazes estão perto de ocorrer. Não deixe o lado ruim<br />

prevalecer de forma alguma, ainda mais nesse momento em que vão<br />

acontecer coisas muito grandes! Resista e faça somente o que for justo. Não<br />

se deixe passar dos limites Petrúcio. Adeus!<br />

- Mas você vai embora? Deixa-me ir junto. Quero ir para a floresta!<br />

Quero voltar para a minha casa, para junto dos outros animais! Espere, não<br />

vai embora, por favor, não!<br />

- Tudo tem o seu propósito. Há o tempo certo para tudo, isso você<br />

vai descobrir algum dia. Os animais da floresta estão contando com você o<br />

tempo todo.<br />

- Espere...<br />

Sumiu. Assim de repente. Ficou no ar um cheiro de floresta, as<br />

árvores, a brisa da mata nas manhãs.<br />

Triste, sozinho e cansado, eu dormi naquele mesmo lugar,<br />

embriagado pelo cheiro de floresta que ficou no ar. Ao fechar os olhos,<br />

imaginei dormindo num galho de árvore em minha casa, em sonhos podia<br />

ouvir os arrulhos na mata, o som de formigas carregando folhas pelos<br />

troncos das árvores, os lobos, as onças...tudo era vida em meu sonho! Era<br />

tão real, tão mágico! Enquanto dormi me senti de novo num lugar sem<br />

maldades nem ambição, onde havia a luta pela vida, porém sem o desejo<br />

71


voraz de passar por cima dos direitos alheios. A floresta é coletiva! A<br />

natureza dá a vida e os animais respeitam os fundamentos da própria vida,<br />

sem ultrapassar jamais o limite do território. Lá existe cooperação e<br />

nenhum descrédito pelas diferenças, aqui ao contrário existe racismo e<br />

exclusão. Em minha casa a natureza dá o alimento todos os dias de graça e<br />

todos os seres comem, mas aqui os homens precisam trabalhar muitas horas<br />

para conseguí-lo, e, além disso, a natureza humana é tão maldosa que<br />

alguns ficam sem ter o que comer, enquanto que na mesa de outros há<br />

muita fartura. Os que olham pela janela, no frio das noites do inverno se<br />

saciam de imagens de tanta riqueza, enquanto que lá de dentro os que<br />

ceiam jogam os restos fora, e nem no lixo pode o faminto vasculhar para<br />

procurar as migalhas.<br />

***<br />

“Eis que ele dorme, sentindo paz no seu coração! Mas é um sonho de<br />

ilusão apenas, o que está escrito para a sua história ainda é muito doloroso!<br />

Mais doloroso do que muitos outros mais fortes que ele poderiam suportar!<br />

Eu me encanto com essa criatura e não aceitei a sua recusa em<br />

definitivo. Entretanto é necessário uma força maior para que essa coisa tão<br />

complexa, esse sentimento novo exceda os limites da compreensão.<br />

É necessário que haja uma reviravolta na concepção dos limites, por<br />

isso irei provocar mudanças que irão abalar a cidade.”<br />

***<br />

72


Quando o sol apontou no horizonte olhei para ele de uma maneira<br />

nova. Meus olhos estavam ainda muito sonolentos, mas tinha uma visão<br />

diferente do sol! Era um outro sol!<br />

O que é isso? Tenho mãos?<br />

O que houve comigo? Tenho pés...minha pele, minhas penas...tudo<br />

sumiu...<br />

Será isto um sonho? Será que não acordei ainda?<br />

Estou muito confuso...<br />

- Acalme-se Petrúcio, sou o responsável por esta intervenção nas leis<br />

da natureza.<br />

- O que você fez comigo? O que está acontecendo? O que está<br />

acontecendo comigo?<br />

- Você agora é uma pessoa, não é mais um papagaio. Eu o<br />

transformei para que você possa realizar as mudanças.<br />

- Mas eu não quero ficar assim, eu não quero ficar...<br />

- Calma! A mudança é apenas temporária. Na verdade há um grande<br />

tesouro em suas mãos e com a minha intervenção esse tesouro poderá<br />

finalmente ser mostrado à humanidade. Para atingir todo o seu potencial<br />

era necessário romper os limites da aceitação e fazer algo que não é<br />

permitido, mas eu assumi esse risco, afinal é por algo que vai valer a pena!<br />

Então de repente fui transportado dali e como se estivesse numa<br />

outra dimensão o destino foi me mostrando o mundo. Vi um rio muito<br />

bonito e numa parte dele havia muitos troncos de árvore cortados. Estavam<br />

próximos à mata. Homens cortavam os troncos sem parar enquanto que<br />

muitos pássaros voavam, abandonando os seus ninhos, muitos deles com<br />

ovos e filhotes sem penas.<br />

Uma parte da mata estava pegando fogo e os animais corriam sem<br />

direção, procurando fugir das chamas. As cobras eram alcançadas pelo<br />

fogo e morriam pelo caminho, queimadas. Depois vi a mata queimada e<br />

muitos animais viraram cinza. Não havia verde e longe, alguns homens<br />

observavam as cinzas, demarcando locais para construção de casas para as<br />

pessoas e falando em plantar grama para colocar animais.<br />

Depois ele me transportou para outro lugar e lá havia uma lagoa<br />

cheia de lixo e um cheiro muito ruim vinha de lá. Havia milhares de peixes<br />

mortos e boiavam em meio ao lixo.<br />

Eu não conseguia acreditar em tanta destruição. Parecia que toda a<br />

vida estava condenada. Então o destino me levou para a estrada onde ficava<br />

a casa escondida do Nestor e do Gilmar, na saída da cidade. Caminhando<br />

como uma pessoa normal ele foi andando em direção à casa do Juquinha.<br />

Um grande azar! Justamente a direção que eu precisava seguir para chegar<br />

até a casa dele. Deu até certo desânimo saber que o destino estaria lá.<br />

73


Depois me vi sentado em uma cadeira, quase que instantaneamente, e<br />

parecia que aquela visão do destino andando na estrada foi somente um<br />

pensamento vago...<br />

- Vamos lá. O promotor e o juiz gostariam de ouvir seu depoimento<br />

agora.<br />

Quando o delegado ouviu a fita, chamou os outros guardas e foi até a<br />

casa do Nestor e do Gilmar para prendê-los. Isso aconteceu logo que deixei<br />

a fita lá naquela cadeia.<br />

Eu não os vivi, mas até o dia do julgamento se passaram alguns<br />

meses, mas o destino me transportou até a data em que os dois estavam<br />

para ser condenados.<br />

No julgamento fui arrolado como testemunha e contei tudo o que<br />

sabia. O homem que os defendia era o mesmo que me acusou tempos atrás,<br />

antes de me deixarem preso naquele porão. Entretanto minhas razões eram<br />

fortes, e ele não pôde fazer muito.<br />

Eu tinha uma nova identidade, tinha documentos, usava roupas como<br />

as pessoas. Fui plantado nessa cidade através do destino.<br />

Os dois foram condenados. O Fred, que foi comparsa dos dois no dia<br />

do assalto à joalheria, não foi encontrado pelos investigadores. Mas eu iria<br />

procurá-lo. Eu sabia coisas sobre ele, sabia que gostava de rodeios e que<br />

agora tinha muito dinheiro. Assim que eu resolvesse contas antigas com o<br />

pai do Juquinha iria trás dele também.<br />

Minha nova missão era encontrar o meu alvo. Uma pessoa ignorante,<br />

feia, burra, chata, repugnante e suja chamada Adamastor!<br />

Saindo daquele lugar, entretanto encontrei numa rua um cão morto,<br />

um carro havia passado por cima dele. Havia um outro cão que ficava<br />

olhando atento da calçada, talvez esperando que seu companheiro se<br />

levantasse. Uma cena triste! É como se aquele cão não soubesse o que é a<br />

morte.<br />

Caminhei até lá e instintivamente perguntei ao cão porque observava<br />

o companheiro e ele falou para mim que seu amigo iria atravessar a rua<br />

para ver se encontrava um pedaço de osso, que estava faminto.<br />

Eu até cheguei a me assustar pelo fato do cão ter respondido, mas me<br />

lembrei que eu era um animal e não uma pessoa. As pessoas sim são<br />

irracionais e não entendem, mas os animais entendem os outros animais e<br />

até as pessoas.<br />

Então falei para aquele cão me seguir que eu iria conseguir algo para<br />

que se alimentasse. Entramos em uma padaria e o dono veio tocando o<br />

animal, mas eu o repreendi falando que o cão estava comigo e que eu iria<br />

comprar algo que comesse, pois estava com fome.<br />

Algumas pessoas presentes olhavam com estranheza o fato de eu<br />

estar alimentando um cão de rua, e nós dois olhamos ainda mais assustados<br />

para aquelas pessoas. Elas são egoístas demais para entender que os seres<br />

74


humanos tomaram todo o planeta, e como consequência os animais que<br />

com o tempo os próprios humanos domesticaram, foram sujeitados à<br />

dependência, não por vontade própria, mas por necessidade.<br />

Após aquele cão comer vários salgados, paguei o homem que estava<br />

no caixa com dinheiro que o destino tinha deixado em meu bolso, dentro de<br />

uma carteira. O homem perguntou se eu tinha trocado e eu respondi que<br />

não. Não sabia nem o que era valor. Eu era apenas um papagaio no corpo<br />

de um homem, não havia estudado em escola como o Serginho então muito<br />

pouco das regras sociais dessa gente eu sabia, mas sabia o bastante para<br />

perceber a hostilidade de toda a sociedade.<br />

Depois fiquei ainda um tempo conversando com aquele cão. Ele<br />

sabia quem eu era, disse que os animais todos da cidade estavam sabendo,<br />

que comentavam muito sobre o que estava acontecendo e me desejou boa<br />

sorte.<br />

Quando perguntei para onde iria ele falou que é um cão das ruas, que<br />

nunca teve dono e que conhece todos os buracos da cidade. Que estava<br />

triste e faminto, mas que depois de receber minha atenção e conversar<br />

comigo se sentiu melhor.<br />

Disse que iria procurar novas companhias, pois o cão que havia sido<br />

atropelado era um grande amigo.<br />

Então esperei que o cachorro fosse embora. Fiquei observando ele<br />

sumir na distância, abanando o rabinho, numa ginga de andar típica dos<br />

cães de rua.<br />

Caminhando pela rua em direção da casa onde eu estava morando vi<br />

num sinal de ônibus algumas crianças fazendo malabarismos com bolas e<br />

depois de um tempo passavam pelos carros pedindo dinheiro...<br />

A hostilidade desse lugar com os animais deixou um semblante de<br />

tristeza e revolta muito grandes em mim. Eles não se preocupam nem com<br />

os da sua espécie. Ao chegar à casa que o destino providenciou, fui tomar<br />

um banho e não parava de pensar nas coisas que tive conhecimento. Parece<br />

que as pessoas só se preocupam com os seus semelhantes próximos, e até<br />

com os da mesma espécie que são menos favorecidos são impiedosos em<br />

cuidados e ajuda, quem dirá então com os animais.<br />

É triste ver a natureza sempre à mercê dessa raça tão maldosa e cega!<br />

Eles se espalharam pelo planeta e para todo o resto se tornaram uma praga,<br />

um enxame que só tende a crescer e destruir tudo, sugar da terra o que ela<br />

tem para oferecer e quando não houver mais nada, até sua própria espécie<br />

esmaecer.<br />

75


Capítulo 3<br />

- Vai Roger! Pega essa...<br />

- Au! Au! Au!<br />

- Boa garoto! Essa foi demais!<br />

- Arf! Arf! Arf!<br />

- Juca, venha cá!<br />

- Está bem pai. Espere aqui Roger que eu já volto. Quê foi pai?<br />

Aconteceu alguma coisa?<br />

- Quero que pegue a bicicleta e vá até a casa da dona Joana pegar<br />

uma encomenda para mim.<br />

- A dona Joana? A bruxa?<br />

- Já te disse para não chamá-la de bruxa Juca. Será que tenho que<br />

ficar repetindo isso todo o tempo?<br />

- Ah pai, aquela mulher parece uma bruxa! Mora naquela casa<br />

assustadora!<br />

- Deixe de dizer besteiras e vá logo que preciso das peças ainda hoje<br />

para o rodeio que teremos quinta-feira. As peles serão um sucesso de<br />

vendas e quero ver a qualidade do produto.<br />

- Não sei por que você fica matando esses animais, me dá muita pena<br />

e...<br />

- Vai logo fazer o que te mandei moleque.<br />

76


- Está bem pai. Vem Roger.<br />

- Vê se não demora Juca.<br />

- Tudo bem! O Roger e eu voltamos antes das quatorze horas.<br />

- Está bem então. Até as duas da tarde em ponto.<br />

Certo tempo depois...<br />

- Dona Joana!<br />

- o quê é? Quem está me chamando?<br />

- Sou eu, o Juca.<br />

- Ah é você? Eu estava esperando que seu pai viesse pegar as roupas.<br />

Deixei no canto da sala, pode pegar.<br />

Nisso o Roger latiu para ela abanando o rabinho...<br />

- Ah cachorro idiota! Saia daí senão jogo água fria em você.<br />

- Calma dona Joana. Ele só está brincando com a senhora.<br />

- Pulando desse jeito? Chama isso de brincadeira Juca?<br />

- Ah, o Roger é um cachorro bem legal!<br />

- Esse cão é um monstro! Isso sim. Detesto animais, principalmente<br />

cachorros!<br />

- Bom dona Joana. Eu já vou porque meu pai e eu combinamos que<br />

eu chegaria em casa antes das duas para ele começar a organizar essas<br />

roupas.<br />

- Está bem então e, diga ao seu pai que eu estarei lá.<br />

- Tudo bem! Eu direi a ele.<br />

As preparações para o show de rodeio começaram com o pai do<br />

Juquinha estampando camisetas coloridas que a dona Joana fez. O meu<br />

dono nunca concordou, porém com o fato do pai e alguns amigos ficarem<br />

caçando animais da região para fazer peles, e convenhamos, as peles ficam<br />

horríveis! Eles costumam nos chamar para ir junto, mas o Juquinha nunca<br />

aceitou.<br />

Um campo vasto que fica perto da estrada, entre a casa deles e a<br />

cidade começou a ser cercado, algumas árvores foram cortadas para abrir<br />

caminho e arquibancadas foram sendo erguidas. Grades, barraquinhas para<br />

uma grande festa!<br />

Nos outros anos a festa de rodeio foi mais longe, mas esse ano<br />

decidiram fazer aqui perto de casa onde o terreno plano é maior!<br />

Essa festa todo ano passa por aqui no mês de agosto. É a festa do<br />

peão boiadeiro que percorre o país de norte a sul, levando ao público e aos<br />

participantes as emoções da festa.<br />

***<br />

Ao ler o jornal pela manhã tive uma expressão muito grande de<br />

realização. A notícia do rodeio era interessante demais! Era o lugar ideal<br />

para colocar em prática a minha vingança contra o Adamastor, que ficava<br />

77


caçando os animais e matando para se divertir. E era bem provável que eu<br />

fosse encontrar o Fred por lá.<br />

Pensando nas possibilidades, deixei de ir para os arredores da casa do<br />

Juquinha. Fiquei esperando o dia do rodeio.<br />

Quando chegou o dia, pedi que um táxi viesse me buscar e pedi para<br />

ir até o lugar onde haveria o rodeio. O taxista disse que só seria à noite mas<br />

eu disse que queria ver como estava tudo, que queria passear e que já<br />

ficaria por lá.<br />

***<br />

- Já acabou de instalar o sistema de som Gonzales?<br />

- Já Nelson. Já está tudo pronto!<br />

- Então solta a voz homem...<br />

- E começa a festa do pião boiadeiro, recheada de mulher bonita! Lá<br />

no céu a lua acesa, cá na terra a natureza. Em cima do touro está o pião,<br />

saltando da boca o coração...o pasto verde está de prova da coragem<br />

rancheira que corta a alma do homem comum...abriu a porteira do destino e<br />

o touro vai seguindo, vai saltando o touro louco, pião pulando solto rodopia<br />

na arena, grande emoção que invade a cena...é a festa do rodeio que está só<br />

começando...<br />

- Êita sonzeira boa demais! Ficou muito perfeito!<br />

- Claro! Como o gênio aqui não tem problema.<br />

- Deixa de ser convencido homem, e vamos lá ver como estão os<br />

cavalos.<br />

- Calma, o Frederico já está cuidando deles.<br />

- Não sei Gonzales. Eu não confio nesse homem.<br />

- Por que Nelson?<br />

- Não sei, mas ele não me inspira confiança. Desde que está<br />

trabalhando conosco ele é assim, calado e misterioso. Ninguém sabe ao<br />

certo de onde ele veio. Tem grana, mas gosta de trabalhar como pião...<br />

- Ah Nelson. Deixa o cara em paz. Além disso é o único toureiro<br />

bom que temos na equipe.<br />

- E o quê há de errado com os nosso piões?<br />

- Mas é diferente. Eles são montadores. Com a muleta nas mãos<br />

ninguém consegue competir com o Frederico.<br />

- Bom, isso é verdade.<br />

- Então homem. Deixa de cisma e vamos atacar o estoque de cerveja<br />

antes que a senhora Dara chegue. Essa mulher é insuportável! Ela injeta<br />

dinheiro no rodeio mas na verdade o que ela gosta é de mandar e<br />

desmandar na piãozada.<br />

78


- Não. Ela e o marido só chegarão amanhã na hora do show do<br />

Frederico. Temos o caminho aberto.<br />

- Então, o último que chegar é o sapo.<br />

- Ei! Você me pegou desprevenido.<br />

Os dois foram interrompidos de continuarem sua festinha por uma<br />

terceira figura que surgiu de repente:<br />

- E então Nelson e Gonzales...prontos para atacar as moscas?<br />

- Tereza? O quê faz aqui?<br />

-Vocês acharam mesmo que eu deixaria vocês chegarem perto desse<br />

amontoado de caixas de cerveja? Ora, eu não sou tão louca assim. Logo<br />

que ouvi vocês tocando o som eu vim pra cá assegurar que não tentariam.<br />

- Viu só sua besta quadrada, a idéia foi sua.<br />

- Ah, solta a voz...solta a voz. Se eu tivesse esperado, nessa hora a<br />

gente já tinha tomado todas. E outra, pare de ser mal educado e dá boa<br />

tarde ao moço...<br />

- Ei parem de discutir suas criancinhas bobas. Esse é um espectador<br />

do rodeio. Ele quis vir mais cedo para ver os cavalos e os touros. É um<br />

amante dos rodeios.<br />

- É verdade! Eu resolvi vir para ver como se prepara um rodeio,<br />

estive vendo vocês dois trabalharem e vejo que parecem estar muito<br />

ocupados, então decidi vir conversar com a Tereza, foi aí que ela viu vocês<br />

correndo até aqui.<br />

- Ah Tereza...só uma vai, ninguém dará falta.<br />

E ela depois de relutar um pouco...<br />

- Como é que se diz?<br />

- Por favor Terezinha linda...<br />

- Não está bom. Tentem outra vez.<br />

- Por favor Terezinha linda, maravilhosa, docinho de côco...<br />

- Assim está melhor. Tomem, e não apareçam mais aqui até a hora<br />

do rodeio entenderam?<br />

- Sim fofura...<br />

Passados segundos, uns vinte, e alguns milésimos.<br />

- Viu só Nelson? Com jeitinho a gente consegue.<br />

- Está brincando? Pensa que é fácil dizer essas coisas para a Tereza?<br />

- O que tem a ver? Ela é uma mulher gentil, refinada e muito legal!<br />

- Sim Gonzales, mas fico mal de dizer que ela é bonita. Você se<br />

esquece que ela é a mulher mais feia que já conhecemos no mundo inteiro<br />

em nossos anos de estrada?<br />

- Não fala assim. Do pescoço pra baixo ela é divina!<br />

- Não acredito! E aquelas mulheres lá da outra cidade grande? Todas<br />

bonitonas e perfumadas!<br />

79


- Não. Aquelas mulheres não chegam nem aos pés da Tereza. Eu<br />

vejo nela o sentido de ser uma verdadeira mulher, são as atitudes. A Tereza<br />

faz as coisas seguindo seu coração e não a sua razão.<br />

- Gonzales? A cerveja já fez efeito em você?<br />

- Por que está dizendo isso?<br />

- É que você está delirando!<br />

- Pode ser Nelson, mas amanhã depois que eu derrotar o matador eu<br />

vou me declarar pra ela na frente de todos.<br />

- É. Você está mesmo delirando. Nada pode vencer o matador<br />

entendeu? Aquele é o mais cruel touro do mundo, esqueça. Pega outro<br />

touro.<br />

- Pensa que eu sou frouxo é?<br />

Então resolvi interromper a conversa e ver como eles estavam se<br />

sentindo.<br />

Gostei muito desse peão Gonzales. É diferente de todos os sujeitos<br />

que já conheci, diferente em seus ideais e acredita nas coisas mais simples<br />

que existem como o amor, a amizade e a alegria de bem viver, com paz.<br />

Farei dele uma pessoa mais feliz no futuro...ele merece, e eu sou o<br />

destino.<br />

Cheguei aqui assim que os organizadores anunciaram que<br />

precisariam de pessoas para trabalhar. Eu queria ver de perto o que o<br />

Petrúcio iria fazer aqui, então maquinei para que todos estivessem aqui.<br />

Fico imaginando o que estaria planejando aquela cabeça semi-calva<br />

do papagaio Petrúcio. Da última vez que o vi, ele tinha muito ódio no<br />

olhar...nem reparou que era eu, e se ele já está aqui, é porque alguma coisa<br />

muito pesada está para acontecer.<br />

Eu queria que ele aprendesse mais sobre as pessoas para enriquecer<br />

suas virtudes, porém ele virou uma máquina de ódio e vingança. Acho que<br />

me enganei em meu propósito, mas quero ver que mudanças podem<br />

acontecer com o papagaio.<br />

- O matador não vai dar nem pro começo.<br />

Ele tinha um brilho no olhar que chegava a congelar o ar. Ele estava<br />

conversando com a mulher e ao me olhar de lado, confesso que até eu<br />

mesmo tive receio pelas atitudes do Petrúcio.<br />

- Você está pirado Gonzales! Completamente louco!<br />

Seu ódio está maior agora, eu sinto. Eu sou o destino, não deveria ser<br />

assim.<br />

- Você vai ver Nelson. Já estou até imaginando o Tarcísio narrando...<br />

“abriu a porteira onde está o touro matador que sai furioso rumo ao centro<br />

da arena, o pião é valente em cima dele, dá um giro sensacional. A galera<br />

vai à loucura nas arquibancadas e o pião segura o touro à unha no centro da<br />

arena...<br />

80


***<br />

Vim aqui procurando vingança. Sim, de maneira irrestrita, porém<br />

precisei parar para ajudar uma pessoa.<br />

A Tereza é uma mulher muito interessante! Confesso que não<br />

encontrei bondade e simplicidade assim em nenhuma pessoa que conheci<br />

desde que saí da selva. Senti a sua tristeza de uma forma muito rara!<br />

Ela me contou da solidão de uma forma que eu não pensei que um<br />

humano pudesse sentir, parecia eu, no sofrimento dela. Isso me tocou.<br />

Eu prometi para ela que iríamos dar um jeito nessa falta de<br />

perspectiva para a vida, que iria ajudar a ser uma pessoa mais viva, mas<br />

isso tinha que começar pela sua aparência. Eu não falei nada, mas ela era<br />

bem mal arrumada! Não passava nenhuma maquiagem e nem cuidava dos<br />

cabelos. Eu já vi isso, foi na casa do Serginho. A mãe dele usava muitas<br />

coisas no rosto, outras no cabelo. Eu não sabia o nome, mas o cheiro era<br />

inconfundível, por isso, como ainda era cedo, deixei de lado os meus<br />

planos e fui com ela até a cidade para comprarmos produtos de beleza.<br />

Quando o táxi parou, pedi que dentro de duas horas nos buscasse,<br />

pois que tinha muito que fazer no rodeio. O taxista concordou e então<br />

entramos na loja.<br />

Eu cheirava as embalagens abertas para reconhecer os cheiros dos<br />

produtos, pois eu não sabia ler, o destino se esqueceu de providenciar essa<br />

faculdade ao me transformar em pessoa.<br />

Não tive dificuldades. Então fomos até o caixa e dei dinheiro à moça<br />

do caixa, ela me devolveu outros dinheiros e saímos de lá.<br />

Passamos em uma loja que tinha roupas de mulher e eu ajudei a<br />

Tereza a comprar uma roupa que ela gostou.<br />

Gostei muito de conhecer essa humana! Ela não possuía maldade,<br />

tinha simplicidade e dava para perceber que sua alma era singela, que não<br />

tinha interesses nem ousadias em prejudicar os outros.<br />

Nós voltamos para o lugar do rodeio. Chegando lá fui ajudar a<br />

arrumar a Tereza. Lavamos o cabelo, cortamos as unhas...foi a primeira vez<br />

que usei um cortador para unha, eu nunca precisei, afinal cortava tudo que<br />

quisesse com o meu próprio bico. A unha ficou muito bonita depois de<br />

passar o esmalte! Eu sentia que a Tereza estava se sentindo melhor, estava<br />

ficando mais arrumada!<br />

Depois ela foi tomar banho e passou muitos cremes, perfumes,<br />

sabão...quando ela saiu e trocou de roupa estava uma outra pessoa! Muito<br />

mais elegante, com um short jeans e uma blusa com um grande laço na<br />

frente, de botas e um chapéu de rodeio pendurado no pescoço.<br />

Após passarmos a maquiagem eu disse à ela que terminasse de se<br />

arrumar que eu queria comer alguma coisa.<br />

81


Eu até fiquei feliz ajudando ela a se arrumar mas minha intenção<br />

aqui era outra, e eu não queria me desviar do meu...<br />

- Petrúcio!<br />

- Vai ficar me vigiando aqui também?<br />

- Olha, só estou preocupado. Não era bem isso que eu tinha em<br />

mente quando o transformei.<br />

- Você acha que pode brincar com os seres assim? Não, os seres não<br />

são marionetes suas, que você faz o que bem quer. Todos temos<br />

sentimentos e emoções, nós amamos e odiamos, sorrimos e choramos,<br />

vencemos ou perdemos. Todo ser é dotado de uma vida, e essa vida é curta<br />

e única. Mas isso você não entende, na verdade você não entende nada.<br />

- Não é isso. Você está enganado.<br />

- Me deixa em paz. Eu vim aqui fazer uma coisa e agora quero paz.<br />

- Petrúcio, há sempre uma outra maneira de resolver as coisas.você<br />

não era assim, sua alma era pura, você aprendeu o ódio. Eu só queria curálo<br />

antes que você voltasse para sua casa. Você é muito importante, pode<br />

fazer coisas que nem imagina.<br />

- Vou começar agora...<br />

Capítulo 4<br />

- Bem-vindos a mais uma sensacional festa do pião boiadeiro. É<br />

muito satisfatório para eu estar narrando esta festa maravilhosa, para todos<br />

os organizadores, principalmente a senhora Dara que é esposa do senhor<br />

Cristóvão, que foi quem tornou possível a realização de um rodeio tão<br />

grande como essa cidade jamais viu.<br />

Ao ouvir esses nomes eu estava perto das báias dos cavalos. Então<br />

parecia que o tempo havia parado. Eu olhei para uma barraquinha e o<br />

destino estava lá com uma roupa de boiadeiro. Ele tomava algum tipo de<br />

bebida e ao olhar para mim sorriu com malícia, lentamente.<br />

Eu olhava para ele com um olhar frio e depois de alguns segundos<br />

virei as costas e continuei andando até as báias enquanto o locutor<br />

continuava falando...<br />

- É bom ver a alegria que se espalha entre todos aqui presentes.<br />

Quem dera que essa alegria fosse eterna entre todos os nossos irmãos que<br />

estão lá longe, espalhados por esse mundão de Deus...quem me dera poder<br />

desenhar esse mesmo sorriso nas faces de todos os meninos que sofrem<br />

com a fome e com o frio, nos viadutos, no sertão. Quero dizer a todos que<br />

para mim é uma honra ser ouvido por todos vocês, e saibam que sempre<br />

vou falar, sempre, enquanto houver forças, para que se mantenha acesa a<br />

chama forte do rodeio que nos une, e se chama amizade!<br />

Das báias eu ouvia o que o locutor falava, enquanto conversava com<br />

os cavalos. Eles contavam coisas horríveis sobre o tratamento dos<br />

82


tratadores. Eu fiquei escutando e eles sabiam quem eu era. Pedindo para<br />

ajudá-los acabaram mudando o meu plano de vingança. Foi quando eu ouvi<br />

o locutor falando sobre o touro matador:<br />

- E hoje, como atração inicial temos o peão Gonzales montando o<br />

feroz matador na porteira número seis...<br />

Então eu deixei os cavalos, prometendo ajudá-los, e fui ver o que<br />

aconteceria na arena. Estava curioso sobre o touro matador...<br />

- Olhos atentos para o peão mas principalmente para esse touro que<br />

poucos ousam desafiar. Abriu a porteira do destino e em cima da fera o<br />

menino, valente em cima do touro pra provar que é homem...<br />

A Tereza estava do outro lado da arena, muito bonita e arrumada.<br />

Sorria e batia palmas ao ver o peão Gonzales montando o matador...<br />

- Matador vai saltando, machucando mato e terra com seus passos,<br />

rodopia na arena que de tamanha emoção fica pequena...é a festa do peão<br />

de rodeio que está só começando. Foi vencido o touro matador pelo valente<br />

peão Gonzales, e a arena vai à loucura nas arquibancadas.<br />

Dois amigos dele vêm abraçá-lo enquanto que outros quatro tentam<br />

segurar o touro matador e voltar com ele para a porteira.<br />

- Beleza! Foi demais Gonzales! Você está machucado? Tem alguma<br />

coisa em você que está quebrada?<br />

- Sim Oscar. Eu estou todo quebrado. Me ajuda a chegar lá no<br />

microfone.<br />

- Está bem...já que você está decidido a fazer isso. O Nelson falou...<br />

- Afastem-se, afastem-se. Deixem-no respirar, eu cuido dele.<br />

- Nossa Tereza, como você está bonita hoje!<br />

- Não. Espera um pouco Tereza que eu tenho que falar uma coisa.<br />

Espera aqui na arena.<br />

Eu observava de longe a cena e a Tereza, tendo as duas mãos<br />

entrelaçadas à altura da cintura, olhou para mim sorrindo e entusiasmada.<br />

Notei também que dentro da báia o touro matador estava furioso, porém os<br />

peões já haviam fechado a porteira. A Tereza ficou no centro da arena<br />

esperando para ver o que o Gonzales iria dizer.<br />

- Eu gostaria de dizer que maior que a coragem que tive para<br />

enfrentar o matador estou tendo agora em me declarar para a mulher que é<br />

dona do meu coração, que é a Tereza...<br />

Olhei para a multidão gritando e aplaudindo enquanto o Gonzales<br />

falava e nem percebi que o touro estava cada vez mais furioso. Olhei para o<br />

destino e ele estava muito bêbado, com um copo de bebida na mão e<br />

abraçado com duas mulheres, olhos avermelhados, sorrindo e se<br />

esbaldando...<br />

- Essa mulher que está na arena é o alecrim do meu campo, é o meu<br />

sol...ela é...<br />

83


O matador quebrou a porteira. Gonzales ficou mudo no palco,<br />

congelado deixou o microfone cair, imóvel, incapaz perante a situação.<br />

Quando vi, ele já estava na metade do caminho. Homens gritavam. Os<br />

peões tentavam pará-lo com uma corda.<br />

Era a única coisa que estava dentro da arena, então ele foi direto.<br />

Usava um short jeans e a blusinha que compramos ainda hoje. Tinha os<br />

cabelos lisos e a maquiagem contornava seu rosto.<br />

Foi um segundo muito triste. O matador deu uma chifrada nas costas<br />

da mulher que ainda tentou correr, porém não pôde dar nenhum passo e foi<br />

atingida pelo touro.<br />

Fiquei observando a agilidade das pessoas que trabalhavam no<br />

rodeio em tirá-la e socorrer.<br />

Houve muito tumulto. Havia uma equipe de televisão transmitindo o<br />

rodeio e quando houve o acidente a organização disse que faria uma<br />

coletiva com a imprensa. Na verdade percebi que eram ordens do<br />

Cristóvão. Eles provavelmente iriam até lá para dar a entrevista e evitar que<br />

o rodeio ficasse manchado, subornando os repórteres.<br />

Tudo aqui perto da casa do Juquinha estava diferente! Muito mudou,<br />

até as árvores. Antes havia várias e agora somente algumas restaram. Já se<br />

passou muito tempo desde que eu fui embora com aquele policial, só meu<br />

desejo de vingança não mudou.<br />

Não havia visto ainda o Adamastor nem o Juquinha, mas eu sei que<br />

estava com sorte, pois na mesma noite poderia me vingar do Adamastor, do<br />

Cristóvão que era casado com a Dara, organizadora do rodeio e do Fred,<br />

que iria duelar com o matador. Quer saber, até que o destino fez alguma<br />

coisa de útil pra variar.<br />

Em passos bem silenciosos caminhei até perto do lugar onde o touro<br />

estava sendo castigado por alguns homens com chicotes.<br />

Após receber vários golpes, os homens saíram, deixando o touro com<br />

várias marcas pelo corpo. Então fiz força para subir em uma janela e tentei<br />

conversar com o touro. Ele me compreendia, porém olhava para o chão,<br />

não havia me visto ainda, pensava que era um animal.<br />

Quando me viu se surpreendeu. Parecia assustado.<br />

- Touro, você está bem?<br />

- Sim papagaio. Já estou acostumado a apanhar desses homens. Ouvi<br />

falar da sua história, mas pensei que fosse apenas um conto, uma lenda.<br />

- Infelizmente minha história é real. Mas aqueles homens batem em<br />

você sempre? Talvez pelas maldades que você faz, olha o que aconteceu<br />

hoje...<br />

- Não, eu não sou mal. São eles que me provocam fazendo todo tipo<br />

de malvadeza comigo para que eu me zangue e entre na arena. Tudo o que<br />

eu queria era voltar para meus antigos donos. Eu morava numa fazenda<br />

perto do mar, muito além dessa estrada. Foi lá que nasci e, vendido por<br />

84


meus donos para cobrir uma dívida. Fui revelado ao mundo como o<br />

matador, touro terrível!<br />

- E quanto aos outros animais? Também acontecem queixas?<br />

- Todos nós temos lamentações. Somos marcados com chicote e os<br />

cavalos são mordidos por abelhas e marimbondos para ficarem nervosos na<br />

hora do rodeio. É tudo muito sofrido aqui dentro! Quando as pessoas se<br />

admiram vendo um desses homens se equilibrando sobre nós, nem<br />

imaginam o que ocorre... tanto sofrimento. Não existe boi ou touro que seja<br />

mal, todos nascemos apenas para servir às pessoas em troca de alimento e<br />

moradia. Contentamos-nos com a grama que nasce de graça nos campos e a<br />

água da chuva, e fornecemos carne para que as pessoas sejam alimentadas.<br />

Ao carregar os carros de boi fazemos com devoção ao trabalho e quando<br />

pastamos, até mesmo os animais ferozes afugentamos das proximidades da<br />

casa dos nossos donos. Mas desde que meu dono precisou me vender que<br />

tenho sofrido.<br />

Seguimos uma longa conversa, uma prosa muito inspiradora, até que<br />

eu disse:<br />

- Escute touro: como você já sabe da minha história não vou perder<br />

tempo contando tudo a você...há algum tempo atrás eu fiz um pacto com<br />

um humano e isso modificou a minha vida para sempre, agora estou<br />

disposto a fazer um novo pacto com você.<br />

- O que quer dizer pássaro?<br />

- Estou dizendo que vou tirar vocês das mãos dessas pessoas.<br />

- Sei que você é muito talentoso Petrúcio, e já ouvi histórias incríveis<br />

como a vez em que você enfrentou piratas, também da vez em enfrentou<br />

um gato para salvar um outro pássaro, mas não creio que seja capaz, e<br />

perdoe a minha falta de esperança.<br />

- Se todos fizerem a sua parte dará certo.<br />

Combinamos um plano que tiraria todos os animais do rodeio e eu<br />

poderia me vingar do Adamastor e do Cristóvão.<br />

O matador disse que havia um pó que fazia o corpo todo arder<br />

quando era jogado, que com ele os touros e cavalos eram torturados e era<br />

esse um dos motivos que fazia os animais ficarem saltando. Estava<br />

guardado dentro de uma caixa na porteira número dois. Então eu fui lá<br />

pegar e havia um rapaz tomando conta.<br />

- Olá amigo, tudo bem?<br />

- Oba! Que deseja o senhor?<br />

- Então, eu trabalho pra uma fazenda aqui perto. Estou ajudando a<br />

cuidar dos bichos e estamos dando uma lição no matador.<br />

- Mas como que eu num vi tua cara ainda no rodeio?<br />

- A senhora Dara ligou pro meu patrão hoje cedo e...<br />

- Claro, claro, a senhora Dara. Ela está por aqui?<br />

- Não, ela só vai vir amanhã mesmo.<br />

85


- E o que você precisa pegar, pode ficar à vontade.<br />

- Eles falaram pra pegar um tal pó pra jogar no matador.<br />

- Ah sim, vou pegar pra você.<br />

Esses trabalhadores tinham medo da Dara. Conhecendo aquele<br />

pessoal fico até imaginando o tipo de tratamento que ela dava a essas<br />

pessoas.<br />

Então fui procurar o cavalo Eleu. O matador falou que as camisetas<br />

do Adamastor estavam dentro de uma das báias, justamente a que ficava ao<br />

lado da báia do cavalo.<br />

Fui perguntando aos cavalos e nenhum deles era o Eleu.<br />

Como eu poderia saber qual era a báia? Foi aí que novamente eu tive<br />

um momento de sorte.<br />

Um cão bonito, muito grande veio correndo em minha direção, e seu<br />

dono veio correndo atrás.<br />

Era o Juquinha. Ao vê-lo meus olhos brilharam!<br />

- Desculpa moço, ele não morde não. É um cachorro muito esperto.<br />

Juquinha estava mais crescido, mas era o mesmo garoto! Fiquei<br />

receoso de conversar com ele por causa da emoção, então apenas disse que<br />

estava tudo bem e que ele tirasse o cachorro de perto de mim.<br />

Eu vi que ele estava dentro de uma das báias, lá ao fundo. Era uma<br />

das últimas báias.<br />

Quando cheguei até lá vi que havia muitas camisetas do rodeio e<br />

também roupas feitas com pele de animais. O Juquinha estava tomando<br />

conta das roupas, por isso eu ainda não o tinha visto no rodeio. Ele trancou<br />

a báia e saiu com o cachorro, talvez estivesse indo comer alguma coisa.<br />

Foi aí que vi um animal fantástico sendo trazido por um homem! Foi<br />

colocado no estábulo próximo da báia. Sua aparência tinha uma sábia<br />

soberania! O mais lustroso manga-larga que eu já tinha visto!<br />

Quando o homem deixou o cavalo eu falei que o Adamastor me<br />

deixou tomando conta das roupas, mas que perdi a chave. Disse que<br />

mandei o Juquinha procurar e ele estava demorando.<br />

Então o homem, que trabalhava nas báias me mostrou como se abria<br />

a báia sem usar a chave. Fingi estar surpreso e agradeci.<br />

Essas pessoas demonstram uma ingenuidade bem aflorada! Bom,<br />

mas também eu sou o papagaio Petrúcio, contar histórias é minha<br />

especialidade!<br />

Apressei em derramar o pó sobre as camisetas e as peles e seguindo<br />

conselho do matador saí de lá imediatamente, pois até o pó que ficava no ar<br />

irritava os olhos e a pele.<br />

Então fui até o estábulo para ver de perto o cavalo Eleu. Contei a ele<br />

tudo o que estava acontecendo e ele planejou um plano que era bem melhor<br />

do que o meu, e olha que eu planejava bem.<br />

86


Meu plano seria tirar todos os animais dali, mas quando falei isso<br />

com o Eleu ele até riu, perguntando em seguida como eu faria isso.<br />

Foi aí que entrou a genialidade daquele cavalo, e seu plano embora<br />

maquiavélico demais, funcionaria melhor que o meu.<br />

Aprendi vingança nesse lugar! Eu não possuía maldades agora tudo<br />

que eu faço vai prejudicar alguém de certa forma. Eu que era feliz lá na<br />

selva agora não encontro alegria em nada. Hoje eu sou uma aberração da<br />

vida, não tenho mais a minha identidade, não sou mais o papagaio filhote<br />

que voava na mata, nem sou mais o papagaio Petrúcio que teve vários<br />

donos na cidade, e ora estava numa gaiola, ora solto. Sou agora uma pessoa<br />

como as pessoas daqui, e mesmo sabendo que é por pouco tempo, sei que<br />

nunca mais serei o mesmo papagaio quando voltar à minha forma original.<br />

Retornei então até o local onde o matador estava.<br />

- Escute matador: já estão anunciando a entrada do Fred. Parece que<br />

ele vai montar em um cavalo.<br />

- Sim, ele sempre monta num cavalo no primeiro dia do rodeio. No<br />

segundo dia ele faz a tourada.<br />

- Certo, vou aproveitar a situação daquele acidente lá na arena pra<br />

colocar a mídia contra a organização do rodeio. Depois nos falamos,<br />

preciso correr.<br />

Rapidamente fui procurar um telefone para ligar para a polícia. Eu<br />

precisava aproveitar que estariam todos os meus inimigos juntos para<br />

acabar com a felicidade de todos eles.<br />

Contei que os animais do rodeio estavam sendo torturados nas báias,<br />

falei dos chicotes, das abelhas e marimbondos, do pó que arde...contei<br />

sobre as peles de animais que seriam vendidas, e estavam dentro de uma<br />

das báias...<br />

O atendente parecia não se importar muito com o que eu estava<br />

falando então tive que apelar, contei que um dos toureiros era um indivíduo<br />

procurado, que juntamente com dois que foram condenados recentemente<br />

assaltou uma joalheria anos atrás. O atendente nem mesmo esperou que eu<br />

terminasse e disse que estava mandando as viaturas, que era pra eu<br />

aguardar próximo à saída do rodeio para fazer contato com eles.<br />

Nossa natureza carece de mais cuidado. Hoje mais uma vez percebi<br />

isso. Quis denunciar pessoas que torturam diversos animais para lucrar<br />

milhões com rodeio, quis denunciar o Adamastor que fica caçando animais<br />

para tirar as peles e vender como roupas e não deram importância, mas<br />

quando falei que o Fred estava no rodeio e era um dos toureiros<br />

rapidamente mandaram as viaturas.<br />

O crime é sempre crime, não importa qual seja o crime. Mas hoje eu<br />

vi que mesmo aqueles que precisam proteger a natureza não deram muita<br />

importância à ela.<br />

E então fui pra perto da arena para ver o que iria acontecer:<br />

87


- E do outro lado o alazão valente. Com certeza o espetáculo está<br />

garantido com essa montaria.<br />

Porém os animais já haviam combinado entre si para não saírem da<br />

porteira. Quando ela foi aberta o valente nem se moveu.<br />

As pessoas da platéia começaram a vaiar bem alto ao confiante<br />

alazão valente e ao Fred enquanto ele tentava provocar o cavalo com a<br />

espora. O valente apenas saltava, tentando suportar a dor, mas voltava a<br />

ficar imóvel em seguida.<br />

Então veio caminhando lentamente, pela porteira número seis o<br />

matador. Ao sair de sua prisão roçou a pata esquerda no chão da arena e<br />

liberou seu som de guerra. As pessoas da platéia foram hipnotizadas pelo<br />

som do touro...vibraram.<br />

Então o valente saiu da báia finalmente e ficou sobre duas patas, não<br />

obedecendo aos comandos do Fred, que apenas se equilibrava sobre o<br />

animal, até que não agüentou mais e caiu na terra. Então o valente voltou<br />

pra dentro da báia e na arena ficaram só o matador e o Fred.<br />

O matador foi para cima do Fred que escapava do touro usando a<br />

ginga do corpo, enquanto que outros peões corriam em direção à arena.<br />

Havia poucos peões por perto, já que a montaria seria em cavalo e não<br />

haveria rodeio de touros que são os mais perigosos.<br />

O Fred tentava escapar do touro e quando o touro conseguiu acertar<br />

uma chifrada, Fred segurou os dois chifres do matador enquanto o matador<br />

sacudia a cabeça com violência, arrastando o Fred no chão.<br />

As pessoas que vigiavam as báias dos cavalos foram para a arena<br />

tentar segurar o matador juntamente com os peões.<br />

Aproveitando o momento, abri todas elas, fazendo com que os<br />

animais saíssem e se espalhassem. Dois cavalos chegaram até correr em<br />

disparada em direção à arena, atacando alguns peões.<br />

Lá na arena os peões conseguiram resgatar o Fred, com vários<br />

machucados, mas o matador ainda estava solto.<br />

Levaram o Fred para uma ambulância que ficava parada perto da<br />

arena para atender a todos que se machucassem ou passassem mal.<br />

Os animais soltos correndo de um canto a outro, alguns peões<br />

feridos, as pessoas na arquibancada detestando o show mal feito, e eis que<br />

chegaram as viaturas de polícia, rapidamente fazendo contato comigo no<br />

local combinado.<br />

A reportagem já havia observado a movimentação e vieram correndo<br />

ao encontro da gente.<br />

Era uma confusão imensa! Eu tentava passar as informações para os<br />

policiais, mas a todo momento chegavam pessoas com coceiras provocadas<br />

pelas camisetas do rodeio, havia muita gritaria, então deixei a muvuca e<br />

puxei um dos policiais para fora de todo aquele alvoroço. Disse a ele onde<br />

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estava o Fred, onde estavam as roupas feitas de pele de animal, falei dos<br />

maus tratos que os animais estavam sofrendo.<br />

Com muito custo os policiais conseguiram atender todas as pessoas,<br />

elas reclamavam de coceiras por causa da camiseta do rodeio, em algumas<br />

delas as marcas eram visíveis. Bem o matador falou que esse pó era forte,<br />

agora essas pessoas sabem o que os animais sofrem para poder pular e se<br />

contorcer na arena enquanto elas dão risada e tomam sorvete.<br />

- Venham! Vou mostrar a vocês onde estão as peles. O responsável<br />

realiza caça não autorizada há vários anos e tem causado um profundo<br />

desequilíbrio ambiental na região.<br />

Ao chegar à báia encontrei o Adamastor guardando as peles e as<br />

blusas para sair de fininho do rodeio.<br />

- Senhor Adamastor, o senhor está preso por caça ilegal de animais<br />

silvestres e terá ainda que dar explicações sobre possível intoxicação<br />

provocada por roupas.<br />

- Mas isso tudo não faz sentido, essas roupas estão em perfeito<br />

estado!<br />

A reportagem filmava tudo e mostrando as peles dos animais, falava<br />

em crime contra a natureza. Depois o repórter vindo me entrevistar,<br />

perguntou meu nome, e eu preferindo não falar meu nome disse o que<br />

sabia. Era a minha oportunidade de fazer alguma coisa. Meu coração batia<br />

forte afinal eu tive medo de não estar preparado para o que o destino<br />

colocou em minha frente, um peso muito grande, muito difícil de carregar.<br />

Milhões de pensamentos atordoavam minha cabeça, mas com muita<br />

naturalidade consegui falar...<br />

- Descobri esse esquema de caça de animais quando passei alguns<br />

dias na casa do envolvido, lá presenciei que ele e um grupo de indivíduos<br />

costumavam ir até as matas próximas e traziam várias peles de animais,<br />

cascos, animais mortos. Uma cena muito forte de se ver. Embora o filho<br />

dele, o Juca sempre tenha dado conselhos ao pai para parar com essa<br />

atividade ilegal, o pai nunca deu ouvidos ao filho.<br />

- E sobre a denúncia de que os animais do rodeio estariam sofrendo<br />

maus tratos, isto procede senhor?<br />

- Sim, a denúncia é verdadeira. Presenciei alguns peões batendo com<br />

chicotes em um touro, em outros casos eles chegam a colocar abelhas e<br />

marimbondos para ferroar os animais. Isso os deixa extremamente<br />

agressivos. Os animais que vocês vêem saltando dentro da arena de rodeio<br />

na verdade são dóceis, eles ficam é sofrendo por causa das ferroadas e por<br />

isso ficam saltando. Há ainda casos em que os peões amarram as partes<br />

íntimas deles para que fiquem saltando na arena, e só ficam dóceis<br />

novamente quando conseguem soltar as amarras.<br />

89


- Tudo isso que o senhor está relatando é uma denúncia muito grave!<br />

Parece que tem até um foragido da justiça que trabalha para o rodeio. O que<br />

o senhor sabe sobre isso?<br />

- O nome dele é Fred. Ele participou de um assalto a uma joalheria<br />

tempos atrás e usaram um papagaio para entrar por uma fresta e ir jogando<br />

as jóias. Vocês devem ter conhecimento dessa história. Não sei muito, mas<br />

parece que uns guardas colocaram o papagaio num porão sem comida nem<br />

água para que morresse e depois de muito tempo ao abrir o porão lá estava<br />

o papagaio, vivo, como se fosse uma alma penada.<br />

- Sim, transmitimos pela televisão esse fato. Depois o papagaio saiu<br />

voando e se foi, achamos que voltou pra casa.<br />

- Não. Dizem que o papagaio voltou para se vingar de todos aqueles<br />

que fizeram alguma coisa contra ele. Os policiais falaram que o mesmo<br />

papagaio foi até a delegacia levando uma fita com uma gravação dos outros<br />

dois envolvidos no roubo das jóias na qual eles confessavam o roubo.<br />

- Tudo isso é uma história muito impressionante. O senhor acha que<br />

a natureza poderia se vingar assim?<br />

- Todo animal, toda planta, até mesmo as pedras e as águas, existem<br />

no mundo para promover a paz. Entretanto a humanidade com seu desejo<br />

de consumir cada vez mais tem provocado inúmeras feridas, tem caçado os<br />

animais da floresta, matado, cortado uma quantidade muito grande de<br />

árvores, tem poluído os rios. A natureza perde cada vez mais espaço e algo<br />

precisa ser feito, essa destruição precisa parar. Uma vez meu pai disse que<br />

sozinho não podemos fazer muita coisa, mas se um grupo maior tentar<br />

alguma coisa, esse grupo será mais forte. Precisamos preservar a natureza<br />

agora senão no futuro não vai restar mais nada.<br />

Enquanto eu falava o pai do Juquinha era levado para dentro da<br />

viatura, o Fred com o braço enfaixado e os animais eram colocados dentro<br />

dos caminhões. Os policiais disseram que seriam levados para um abrigo<br />

de animais na cidade onde seriam medicados.<br />

O Juquinha que presenciava tudo chegou perto de mim depois que os<br />

repórteres saíram...<br />

- Petrúcio?<br />

- Juquinha, como você sabe?<br />

- Pelo jeito de você falar. Como isso aconteceu?<br />

- É uma história muito complicada. Tem uma coisa, é um homem,<br />

ele é o destino. Fez com que eu virasse uma pessoa.<br />

- Você fez a coisa certa! Mesmo ele sendo meu pai isso tinha que<br />

parar.<br />

- Tem muito tempo que eu não te vejo Juquinha. Você cresceu<br />

muito!<br />

- É...o tempo corre mesmo. Mas o que você vai fazer agora?<br />

90


- Eu tenho mais uma coisa a fazer. Os dois homens que me<br />

trouxeram da floresta. Eles precisam parar. Sempre vão até a floresta para<br />

capturar pássaros. Isso tem que parar agora, só assim eu vou ter paz de<br />

verdade.<br />

- Eu posso ajudar?<br />

- É perigoso Juquinha. Esses homens devem ser perigosos.<br />

- Não importo. Pode contar comigo!<br />

Que coisa. Quem poderia imaginar? Encontrar o Juquinha e<br />

conversar com ele depois de todo esse tempo.<br />

Enquanto as pessoas deixavam o rodeio entrei no caminhão onde<br />

estavam os animais do rodeio e percebi que o motorista pegou o sentido<br />

contrário.<br />

- Ei: você está indo na direção errada, a cidade é pra lá.<br />

- Não se preocupe Petrúcio. Sou eu.<br />

- Quem é você?<br />

- Já não se lembra de mim? Sou o protetor da floresta. As pessoas me<br />

chamam de Curupira, e eu posso me transformar. Estive conversando com<br />

você no dia em que você virou gente.<br />

- E pra onde estamos indo?<br />

- Você não sabe, mas esse abrigo onde os policiais falaram que os<br />

animais ficam guardados não é higiênico, não é seguro, a alimentação deles<br />

é ruim. Eles ficam praticamente amontoados. Adoecem e morrem.<br />

- E onde vamos deixar todos esses animais?<br />

- Vamos levar para o antigo dono do matador. É um conhecido meu,<br />

muito velho e muito pobre, mas com uma generosidade enorme com os<br />

animais!<br />

- Mas você sabe onde ele mora? E o outro caminhão? Quem está<br />

dirigindo?<br />

- Ora Petrúcio, você sabe quem.<br />

Então como num passe de mágica fui transportado para o outro<br />

caminhão e o destino estava dirigindo. É tudo muito confuso então fiquei<br />

só olhando enquanto ele sorria e fumava um cigarro pelo canto da boca e<br />

cantava músicas sertanejas, gritando com a cabeça pelo lado de fora do<br />

caminhão.<br />

Depois de um tempo ele parou o caminhão e desceu. Então disse que<br />

era para eu dirigir, mas eu não sabia, então ele foi dizendo o que era pra eu<br />

fazer.<br />

Um dos momentos mais difíceis da minha vida foi dar a partida<br />

naquele caminhão e guiá-lo pela estrada.<br />

Virar a chave foi fácil, depois pisei no acelerador e virei a marcha. O<br />

caminhão saiu em disparada.<br />

Entrelacei as mãos no volante com medo e fui guiando o caminhão.<br />

91


Eu sentia que não poderia controlar aquele volante, mas toda vez que<br />

pensava em desistir lembrava do sofrimento daqueles animais na<br />

carroceria. Isso me dava forças para continuar.<br />

No retrovisor eu via uma sombras negras que seguiam o caminhão<br />

semelhante a fantasmas. Eram sombras de ódio e batiam nas árvores e<br />

ficavam no meio do caminho. Perguntei ao destino o que era aquilo e ele<br />

respondeu que tudo que fazemos de bom carrega o ódio das pessoas más.<br />

Que esse ódio procura nos tirar a fé, desacreditar nossas boas ações e<br />

nossos sonhos, mas não conseguem nos atingir enquanto nossa<br />

determinação estiver alta.<br />

Passaram-se várias horas e o dia já estava começando a clarear.<br />

Vínhamos pela estrada correndo com muita velocidade. O outro caminhão<br />

estava a minha frente e olhando para o lado não vi ninguém.<br />

Então pela estrada vinha correndo em alta velocidade um homem<br />

com muitas pernas e pés. Ultrapassou o caminhão e parou, longe.<br />

Quando o caminhão começou a se aproximar, percebi que era o<br />

destino, pois tomou sua forma original. Então parei o caminhão.<br />

Desci e fui ao seu encontro. Ele aguardava na beira de um penhasco<br />

que terminava no mar, de onde dava para ver as ondas batendo nas pedras.<br />

É bonito o mar, parece uma floresta só que nesse caso, para os<br />

peixes. O Vernacleto adoraria um lugar como esse.<br />

Enquanto caminhava olhando para o mar lembrava do meu amigo.<br />

Dos saltos que ele dava quando eu jogava pedaços de fruta e pequenos<br />

insetos na água. Tenho saudade de tudo aquilo, da minha casa, das árvores,<br />

da conexão que eu tinha com toda a natureza...<br />

- Por que você fez isso?<br />

- Apenas queria sentir a liberdade. E você precisava se virar sozinho.<br />

Passei a noite toda tendo que virar o volante.<br />

- Não será por que sou um papagaio e não deveria estar dirigindo um<br />

caminhão transformado em humano?<br />

- Ah Petrúcio, você tem um senso de humor...<br />

- O que você quer?<br />

- Tenho que revelar Petrúcio: você é um dos maiores homens que já<br />

segui nesse chão brasileiro. A vida te deu uma decência necessária para ser<br />

invejado.<br />

- Deixa de sermão. Que eu te conheço bem. Fala logo o que você<br />

quer dessa vez.<br />

- Eu vim para te auxiliar na sua jornada. Como pensa que conseguiria<br />

levar seus companheiros por essa estrada sendo um mero papagaio.<br />

- Nós estávamos juntos, e quando vários se juntam numa mesma<br />

causa é mais fácil conseguir as coisas.<br />

- Exato! Agora você chegou onde eu queria.<br />

- O que quer dizer?<br />

92


- Já reparou que nessa cidade inteira somente você está preocupado<br />

com a natureza?<br />

- Infelizmente sim.<br />

- Acredito que você é a pessoa certa para iniciar algo novo, uma<br />

coisa maior do que simplesmente vingança. Você pode modificar a forma<br />

como as pessoas enxergam.<br />

- Essas pessoas não têm bondade no coração.<br />

- Mas você...<br />

- Ei vocês dois: não podemos ficar aqui o dia inteiro.<br />

- O Curupira tem razão. Vamos lá Petrúcio, tira os animais de cima<br />

do caminhão que a viagem chegou ao fim.<br />

- Mas aqui? No meio do nada?<br />

- É necessário. Por acaso acha que os donos dos animais já não<br />

colocaram os capangas para nos seguir? Cristóvão está furioso!<br />

Depois de todos os animais descerem dos caminhões, ficaram na<br />

beira da estrada enquanto que os dois entraram nos caminhões e aceleraram<br />

na direção do penhasco, jogando os dois caminhões.<br />

Eu corri para a beira do penhasco e vi lá embaixo os dois caminhões<br />

destruídos nas pedras.<br />

Então os dois apareceram novamente. E com roupas diferentes, de<br />

peão.<br />

Eles começaram a chamar os animais para o meio do mato, do outro<br />

lado do penhasco e eles iam seguindo em fila de animais, como nas<br />

fazendas.<br />

- Você vai ficar aí parado Petrúcio? Vamos logo que a viagem é<br />

longa.<br />

Então corri atrás deles.<br />

O alazão Eleu ficou para trás e se ofereceu para que eu montasse<br />

nele. Como eu nunca havia feito isso antes tive um pouco de dificuldade.<br />

- Segure-se Petrúcio. Agora nós vamos correr de verdade!<br />

Então começou a correr pelo mato e eu senti uma sensação muito<br />

boa! Era uma liberdade diferente, um alívio para todas as dores que eu<br />

sentia naquele lugar. Eu era um jovem, mas os outros da minha idade não<br />

se pareciam comigo. Os jovens daqui gostavam de se divertir e ir a festas,<br />

mas eu somente possuía a imagem de um humano, por dentro era o<br />

papagaio Petrúcio, e embora pudesse falar e interagir com as pessoas, me<br />

sentia aprisionado.<br />

Correr com o alazão Eleu naquela campina foi maravilhoso!<br />

Remediou meu corpo de um pouco de alegria.<br />

Depois ele parou no alto da campina e eu podia ver os dois lá<br />

embaixo trazendo os animais. O matador bufava bem alto, ansioso para<br />

chegar ao lugar para onde estávamos indo, cheio de saudades no coração!<br />

93


Havia os cavalos Petty, Roque, Alazão e Zumbi, a égua Dalila, os<br />

touros Sanção, Matador, Caititu e Péricles, além do Eleu, que estava<br />

comigo.<br />

O destino vinha pelo caminho conversando com um dos touros como<br />

se contasse piadas. Já o Curupira tinha pressa, precisava voltar logo para as<br />

florestas. Disse que estava apenas fazendo um favor ao destino por serem<br />

conhecidos há muito tempo, mas que tinha suas obrigações em outros<br />

cantos.<br />

Demorei pra perceber, mas a grama onde os animais passavam ficava<br />

amassada, e logo em seguida começava a nascer árvores que foram ficando<br />

cada vez maiores, como se escondessem o caminho por onde estávamos<br />

vindo. Uma parede foi se formando. Era bonita, lembrava a floresta onde<br />

eu nasci!<br />

Quanto mais caminhávamos a estrada ficava menor, transformandose<br />

numa linha fina lá embaixo. A sensação que sentia era única! Estava<br />

entusiasmado! Eu via minhas mãos e meus pés sobre o alazão enquanto<br />

caminhava pelo campo.<br />

Demorou toda a manhã a nossa caminhada. Até que longe avistei<br />

uma porteira e nela um homem aguardava.<br />

Os animais foram se aproximando juntamente com os dois e eu fui<br />

chegando depois com o Eleu.<br />

O homem era velho e os dois já o conheciam, logo desci do alazão e<br />

ele se juntou aos outros animais. Entraram na fazenda e o homem nos<br />

chamou para almoçar, que já estava pronto.<br />

Então almoçamos bastante, afinal todos estávamos com fome. Bem,<br />

na verdade nem sei se esses dois sentem fome, frio ou medo.<br />

Antes de irmos embora fui ver os animais. Estavam todos num<br />

grande pasto e o matador veio se despedir. Agradeceu por tudo que<br />

havíamos feito e me desejou boa sorte em minha jornada, dizendo que eu<br />

também receberia a minha recompensa logo, para ser forte, afinal muitos<br />

animais dependiam de mim.<br />

Então ao voltar para junto dos outros nos despedimos do dono do<br />

lugar e saímos.<br />

No meio do caminho o Curupira falou:<br />

- Bom meus caros, agora tenho que voltar aos meus afazeres.<br />

- Obrigado mais uma vez primo! Fico te devendo essa.<br />

- Não se preocupe...quando menos esperar vai ter que me pagar<br />

mesmo.<br />

Então ele foi virando um redemoinho de vento, começou a ir em<br />

direção do mato e desapareceu.<br />

Então voltamos na direção da estrada, só que por uma outra estrada<br />

de terra, não pelo caminho de onde viemos.<br />

- Você não se cansa?<br />

94


- Não, e você?<br />

- Estou um pouco cansado!<br />

Mas já? E olha que o cavalo se ofereceu pra te levar na ida pra que<br />

você estivesse descansado na hora de descer a serra.<br />

- É que é muito longe, e não estou acostumado a andar. Esqueceu<br />

que sou um pássaro?<br />

- Ora Petrúcio, não precisamos ser tudo aquilo que a vida nos impõe.<br />

Você deve se adequar a cada ambiente. Precisa interagir com a harmonia<br />

daqui, da mesma forma que conseguia com a floresta, somente assim<br />

poderá entender a essência das coisas.<br />

- Não, esse lugar não é igual à floresta. A energia daqui é maldosa!<br />

Não existe a mesma magia que existe lá na minha casa.<br />

- Talvez você tenha razão Petrúcio, talvez tenha...<br />

- Olá! Os moços querem carona?<br />

- Ora amigo, até que seria uma boa. Ainda faltam uns quatro<br />

quilômetros até a rodovia.<br />

- Então vamo entrá oras!<br />

O homem estava de carro, levando sua mulher para fazer compras na<br />

cidade mais próxima dali, e nos deu carona até a rodovia.<br />

Chegando lá descemos e o destino se sentou em uma pedra.<br />

- E aí? Pra onde vamos agora?<br />

- Voltar pra cidade.<br />

- Mas parados aqui? Como pretende...<br />

- Calma Petrúcio! Você é impaciente demais! Nossa carona logo vai<br />

chegar.<br />

- Não há nada nesse lugar e a estrada é deserta.<br />

Então um carro passou por nós e parou logo à frente na estrada.<br />

Então ele se levantou da pedra e ficou aguardando. O carro voltou e<br />

novamente parou perto de onde estávamos. Então uma mulher muito bonita<br />

chegou à janela...<br />

- Demorei não né?<br />

- Claro que não minha querida. Vamos Petrúcio!<br />

Eles se conheciam. Destino foi no banco da frente conversando com<br />

aquela mulher de cabelos compridos que dirigia o carro. Eles sorriam muito<br />

e falavam de coisas que eu não entendia.<br />

Eu fiquei no banco de trás olhando a estrada e procurando prestar<br />

atenção no que eles falavam.<br />

Havia alguma coisa na voz dela que parecia prender a minha<br />

atenção! Era uma voz diferente, como se viesse do mar. Era parecida com<br />

as ondas do mar quando encontravam a areia da praia!<br />

- Petrúcio, você poderia descansar um pouco. Por que não dorme? –<br />

disse ela.<br />

- Não, prefiro ficar olhando a estrada.<br />

95


- A viagem vai ser um pouco longa, se fosse você...<br />

- Não quero descansar. Estou muito...<br />

- Aposto que consigo fazer você dormir com uma música.<br />

Então ela começou a cantar e de repente adormeci. Quase que<br />

instantaneamente.<br />

***<br />

- Mas isso é ridículo! Como é que essas pessoas conseguiram roubar<br />

os dois caminhões e vir até aqui sem que ninguém visse nada?<br />

- É uma história incrível senhor Cristóvão! Estão dizendo que os<br />

homens eram mágicos, teve peão que viu um deles conversando com os<br />

cavalos.<br />

- Seremos motivo de piada se essa história for além.<br />

- Bom senhor Cristóvão, meus homens já procuraram nas imediações<br />

e não existe nenhuma fazenda ou sítio. Como o senhor pode ver a mata é<br />

fechada e nada poderia passar por essas árvores.<br />

- Eu sei Arnaldo, eu sei, recolha seus homens e vamos voltar pra<br />

cidade. Também vasculhamos de helicóptero e não há nenhum sítio por<br />

perto. Na certa eles já planejavam roubar o gado, devem ter trocado de<br />

caminhão e jogaram esses dois na ribanceira para nos despistar.<br />

- Será que eles não morreram e alguém saqueou o gado?<br />

- Eu até pensei nisso, mas como alguém iria subir todo esse gado dos<br />

dois caminhões? É uma ribanceira muito íngreme! Não Arnaldo, na certa<br />

trocaram de caminhão e seguiram viagem.<br />

- Bom senhor Cristóvão. Se o senhor quiser que os homens<br />

verifiquem nas cidades próximas.<br />

- Não, deixa isso pra lá. São poucos animais, não compensa. A perda<br />

maior são os caminhões. Vou voltar pra cidade no helicóptero, quando<br />

vocês chegarem lá me avisem. Vou ter que dar explicações sobre tudo de<br />

ruim que aconteceu no rodeio. Tenho que ver o que os advogados vão<br />

fazer.<br />

- É uma pena mesmo o que houve!<br />

- É incrível como aconteceu tanta coisa ruim ao mesmo tempo! Dois<br />

empregados hospitalizados por causa do mesmo touro e o pior: um deles<br />

era foragido da justiça, vários peões feridos, mais de vinte pessoas<br />

intoxicadas por causa de simples camisetas, dois caminhões roubados, uma<br />

dezena de animais, peles de animais escondidas dentro do meu rodeio...<br />

- Esquisito não é patrão?<br />

- Se eu fosse supersticioso acreditaria que tem alguma coisa<br />

aprontando pra cima de mim.<br />

- Não, essas coisas não existem.<br />

- Pois é...bom, recolha seus homens e voltem para a cidade.<br />

- Certo patrão.<br />

96


- Vamos voltar patrão?<br />

- Sim Jarbas, pode decolar.<br />

- Que estranho!<br />

- O que foi?<br />

- Não sei, essa mata na beira da estrada. Parece que não havia esta<br />

mata antes.<br />

- Deve ser impressão sua. Você tem trabalhado demais!<br />

- E então senhor Cristóvão? Alguma novidade?<br />

- Não Jarbas. Infelizmente não. Vamos decolar. Quero chegar logo à<br />

cidade porque minha esposa está uma pilha de nervos com essa história<br />

toda.<br />

- Também pudera. Essa cidade só tem gente da língua grande, e a<br />

imprensa está em cima disso.<br />

- É verdade. Eu só queria saber quem era aquele rapaz que fez as<br />

acusações à imprensa. Não sei...havia algo de tão familiar nele! É como se<br />

eu já tivesse visto aquele rosto antes, aquele modo de falar.<br />

- Ele falava engraçado! Parecia voz de papagaio.<br />

- Não sei, mas tenho medo que esse rapaz signifique problemas. Eu<br />

tive problemas uma vez, mas foi com um papagaio de verdade, numa<br />

viagem de barco.<br />

- Sério patrão?<br />

- Sim! Tão repugnante quanto aquele rapazinho da entrevista!<br />

Acredita que estávamos fazendo uma viagem de navio, tínhamos uma<br />

fêmea de papagaio e um garoto no navio por coincidência tinha um<br />

papagaio macho. Ele voava pelo navio e acabou encontrando com a Sophia,<br />

nossa papagaia.<br />

- Sim...<br />

- Então acabei comprando o bicho e ele começou a furtar jóias dos<br />

outros tripulantes.<br />

- Que coisa heim!<br />

- É...depois me livrei dele, o navio acabou sendo saqueado mais tarde<br />

por piratas que levaram tudo, até mesmo a papagaia. Depois disso não<br />

viajamos mais de navio.<br />

- Nossa! Que história!<br />

- É...os donos dele estavam fugindo. Fiquei sabendo mais tarde que o<br />

pai do garoto havia assassinado a mulher e o amante dentro de casa, que foi<br />

levar o garoto pra escola e ao voltar pra casa encontrou os dois se<br />

abraçando. Ele foi preso e o filho hoje mora com a avó.<br />

- É...acontece cada coisa.<br />

- Pra você ver Jarbas. Os dias de hoje estão muito violentos! Roubos,<br />

assaltos, assassinatos...está cada vez mais difícil sair de casa...<br />

***<br />

97


Nossa! Eu devo ter dormido muito tempo!<br />

Como foi que cheguei até aqui? Será que o destino que me trouxe? E<br />

aquela mulher...parecia uma sereia! Ela me fez dormir só de começar a<br />

cantar. O Vernacleto uma vez falou de uma criatura mágica que vivia nas<br />

águas, ele a chamava de Mãe D’água mas disse que todos os outros seres a<br />

chamavam de Iara...falava que ela tinha o poder de encantar com a voz.<br />

Será que aquela estranha mulher desconhecida é essa Iara?<br />

Não faz sentido, por que ela estaria aqui? Guiando um carro ao invés<br />

de estar nas florestas? Tudo está tão incompreensível!<br />

Nossa, minha face no espelho...realmente dormi muito mesmo, fiquei<br />

até com marcas!<br />

- Com licença senhor! Vim trazer seu café da manhã.<br />

Não reparei que a porta estava aberta, mas na verdade não me<br />

importo muito com isso. Ainda não assimilei os costumes dessas pessoas.<br />

Os humanos trancam suas portas para se proteger de outros humanos. Isso<br />

não faz sentido! Na floresta, os animais somente se protegem de animais de<br />

outras espécies que vem para atacar ou roubar ovos...aqui os outros<br />

humanos roubam objetos e dinheiro, e até matam.<br />

- Ah sim, muito obrigado!<br />

- Espero que o senhor tenha apreciado a canção da Iara!<br />

- O quê? Como você?<br />

- Acalme-se Petrúcio. Você está muito confuso! Na verdade como<br />

acha que veio parar aqui?<br />

- Eu não sei, eu...<br />

98


- Existem muitos te auxiliando no que você vai fazer. É como se as<br />

forças da natureza tivessem se unido para ajudar a mudar as coisas. Tudo<br />

ficou tão mais difícil! Antes nós protegíamos as florestas, isso foi antes<br />

quando a bondade no coração das pessoas era superior ao desejo de<br />

consumir e obter cada vez mais vantagens. Agora a quantidade de pessoas<br />

que tem bondade diminuiu muito, e com isso a nossa força.<br />

- É sério?<br />

- Sim! Para os humanos somos somente lendas, figuras do folclore,<br />

mas enquanto acreditavam que havia alguém interessado em proteger a<br />

floresta, que havia entidades mágicas que cuidavam dos animais e plantas,<br />

das águas e do ar, nós tínhamos uma força mística, mas os tempos estão<br />

mudando...cada vez mais pessoas vão até a floresta para cortar as árvores,<br />

caçar os animais, apanhar os passarinhos. Às vezes tiram os pássaros do<br />

ninho e ao voltar os pais ficam desesperados pensando que algum animal<br />

os levou, e então por dias clamam na floresta até que a tristeza os consuma.<br />

- Sim! É uma coisa muito triste mesmo!<br />

- Quando você conseguiu soltar os pássaros e fazer com que<br />

voltassem para a floresta os seres mágicos ficaram sabendo e decidimos vir<br />

ajudar você a fazer algo por toda a floresta.<br />

- E como eles estão? Meus pais? Meus irmãos? O Vernacleto?<br />

Diga...<br />

- O Vernacleto é um peixe muito velho, ele está bem maior do que a<br />

última vez que o viu...tem mais de cem mil filhotes...<br />

- Filhotes? Mas no lago só ele vivia...<br />

- Não, o Boto conseguiu umas namoradas para ele. Isso tudo<br />

aconteceu depois que a sua história se espalhou na floresta.<br />

- E quem é o Boto?<br />

- É outra criatura mágica da floresta.<br />

- E meus familiares?<br />

- Estão todos bem! Seus irmãos todos já têm muitos filhotes e até os<br />

filhotes deles já tem cria. Na verdade todos os animais da floresta te<br />

admiram muito e esperam ansiosos pela sua volta.<br />

- E quando vou voltar? Quando isso tudo vai acabar?<br />

- Precisávamos de alguém com um sentimento de vingança e justiça<br />

necessários para auxiliar a equilibrar as coisas, que devolvesse a paz entre a<br />

floresta e a cidade...mas não havia nenhuma pessoa assim nesse lugar, e por<br />

isso o destino precisou transformar a sua natureza.<br />

- Mas eu não sou uma pessoa, sou um papagaio.<br />

- Não importa Petrúcio...podemos ser tudo aquilo que nós quisermos!<br />

Nossas vontades nos levam aos lugares que jamais pensamos existir!<br />

Enquanto existir esperança, sempre haverá uma saída! Agora se apronte<br />

que você tem muitas coisas a fazer. Esqueça um pouco da vingança, você<br />

tem que ajudar toda a floresta.<br />

99


Então o estranho mordomo colocou um cachimbo na boca e foi<br />

virando um redemoinho de vento até desaparecer completamente no quarto.<br />

Eu estava com fome então fui comer o que tinha trago...pão com<br />

gergelim, amendoins, água mineral e bolo com castanhas e nozes. Bom, eu<br />

estava no corpo de um humano, mas ainda era um papagaio não é mesmo?<br />

Lógico que eu não iria querer ovos com bacon.<br />

Então fui caminhar. Queria ver a loja de pássaros. O Rubens e o<br />

outro homem foram presos um tempo atrás, na época em que me acusaram<br />

de ter ajudado os Nestor, Gilmar e Fred a assaltarem a joalheria.<br />

Eles já estavam sendo investigados por causa do comércio ilegal dos<br />

pássaros. Eu só queria saber se ainda faziam alguma coisa errada.<br />

Na verdade o que eu queria mesmo era me vingar deles. Foram os<br />

responsáveis por eu estar aqui e por tudo que aconteceu comigo.<br />

Ao chegar à loja estavam o Rubens e o garoto Teleco...o mesmo que<br />

uma vez me deu o meu primeiro presente...<br />

- Posso ajudar moço? Disse o Rubens.<br />

- Pode sim. Eu estou procurando um pássaro para dar de presente.<br />

- Bom, nós temos canários, periquitos, calopsitas, o que o senhor<br />

deseja?<br />

- Não...eu queria um papagaio. Um amigo disse que você tinham<br />

aqui.<br />

- Não sei do que está falando. Nós não trabalhamos com pássaro<br />

silvestre.<br />

- Bom, é que esse meu amigo tem uma criação de capinha e sempre<br />

compra aqui. Não se preocupe, sou de confiança.<br />

- Teleco!<br />

- Sim pai!<br />

- Tome conta da loja que eu vou lá dentro servir um café pro moço.<br />

- Tudo bem pai.<br />

Então nós fomos para a parte de trás da loja, no mesmo lugar onde eu<br />

fui colocado assim que cheguei à cidade.<br />

- Olha moço, vou ser sincero...pássaro silvestre dá uma grana, mas eu<br />

já tive muitos problemas com isso. Eu até fui preso, tive que pagar uma<br />

multa muito alta, tive que vender meu carro, só sobrou a caminhonete,<br />

venha aqui fora, vou te mostrar.<br />

Então eu vi a caminhonete que me trouxe pra cá. Estava ainda com<br />

aquela gaiola grande. Meus olhos se encheram de lágrimas e eu tentei<br />

disfarçar. O homem estava nervoso e tremia...então disse gaguejando:<br />

- Não precisa disfarçar Petrúcio. Eu sei que é você.<br />

- O quê? Como que...<br />

- Aconteceu muita coisa depois que você ficou preso naquele porão.<br />

Um sentimento de culpa muito grande tomou conta de mim. Em sonhos eu<br />

100


via muita coisa, até que veio aqui um sujeito falando umas coisas, me<br />

dando muitos conselhos.<br />

- É...<br />

- No início eu pensei que era um doido, mas o cara sabia tudo sobre a<br />

minha vida. Disse que todos os dias conversava com você. Falou que você<br />

iria se vingar.<br />

- Eu sei quem é...<br />

- Pois bem Petrúcio, eu estou aqui e mudei. Quero te dizer que eu<br />

sinto muito por tudo o que aconteceu e te peço perdão. Na verdade peço<br />

perdão a todos os papagaios, estou muito arrependido e só peço que não<br />

faça nada comigo e com a minha família.<br />

- Cadê o outro homem?<br />

- Ele morreu no ano passado. Tinha uma doença incurável e não<br />

resistiu...<br />

Comecei a caminhar...<br />

- Aonde você vai Petrúcio?<br />

- Vou terminar o que eu vim fazer aqui. Se você sabe quem eu sou<br />

então deve saber também tudo que está pra acontecer.<br />

- Sim...e obrigado Petrúcio!<br />

- Você não mudou Rubens...tem pássaros presos em gaiolas.<br />

- Sim, mas esses pássaros não são do nosso país.<br />

- São pássaros, e pássaros tem asas para voar, bico para carregar<br />

galhos para fazerem seus ninhos. As árvores são os seus poleiros naturais, o<br />

sol da manhã é a sua luz e a escuridão da noite tendo as estrelas e o<br />

plenilúnio é que é o momento do seu sono. A natureza rege o horário de<br />

acordar, de dormir, de se alimentar. As gaiolas são uma prisão eterna! As<br />

pessoas acham que os fazem felizes dando água, frutas e ração, mas a<br />

natureza os dá isso em fartura quando estão em liberdade. Você viu a<br />

gaiola humana quando esteve preso, e foi alimentado. Você era culpado e<br />

pagou sua pena, estes que estão presos nada fizeram.<br />

Ao olhar para trás vi que o homem chorava e não quis me olhar nos<br />

olhos.<br />

O caso do papagaio repercutiu na cidade. A história de um ser<br />

mágico que virou homem era contada em muitos lugares.<br />

As pessoas morriam de rir ao ouvir o conto. Poucos sentiram ódio<br />

como o Cristóvão que perdeu uma grande quantidade de dinheiro tendo que<br />

indenizar as pessoas que compraram as camisetas do Adamastor.<br />

O Nestor, o Gilmar, o Fred e o pirata Henrico estavam presos, e não<br />

podiam ouvir falar no conto do papagaio Petrúcio que se enfureciam,<br />

outros presos como o Rodolfo achavam engraçado.<br />

Quando cheguei a casa estava lá o destino me esperando.<br />

- O que você quer?<br />

101


- Bom...eu esperava que você não ficasse tão exposto, mas isso até<br />

que ajudou em nossos planos!<br />

- O que quer dizer?<br />

- Acalme-se!<br />

- Nossos planos? Eu não tenho plano algum com você. Isso tudo é<br />

muito confuso e está me deixando louco!<br />

- Bom Petrúcio, é que...<br />

- Ah, me deixe em paz!<br />

- Estou aqui com a intimação para o julgamento do Adamastor. Você<br />

é uma das testemunhas.<br />

- Ótimo! Tenho muito o que falar.<br />

- Você precisa controlar essa raiva Petrúcio...<br />

- Estou bem assim, nada me fará mudar o meu jeito de ser! Não é<br />

você e nenhum outro desses fantasmas que está me atormentando e fazendo<br />

essas coisas todas acontecerem comigo.<br />

- Petrúcio, venha aqui na janela...quero te mostrar uma coisa.<br />

Então ao chegar à janela vi vários pássaros, canários belgas e<br />

periquitos australianos voando pelo céu. Eles pareciam não saber o que era<br />

a liberdade...brincavam no ar, davam voltas, cantavam...<br />

- Nem tudo é apenas vingança Petrúcio. Há uma maneira inteligente<br />

de se resolver as coisas! Hoje você conseguiu libertar muitos pássaros<br />

apenas com palavras...tempos atrás precisou machucar um homem<br />

atacando com selvageria. Você precisa enxergar melhor a natureza das<br />

coisas, parar de ser tão impulsivo e usar essa inteligência que você tem,<br />

você precisa mudar um pouco.<br />

- Sou um animal selvagem! Sou da floresta e na floresta atacamos<br />

para nos defender.<br />

- Mas eu só estou tentando fazer você entender...<br />

- Eu só queria voltar pra floresta e esquecer que um dia vim parar<br />

nesse lugar, mas se você e esse bando de fantasmas não quer me levar de<br />

volta...<br />

- Petrúcio, eu...<br />

- Chega de conversa, me deixa...<br />

- Está bem Petrúcio! Estou tentando te ajudar, mas eu já escolhi você<br />

para isso...vou deixar a sua natureza, o seu instinto agir...<br />

102


Capítulo 6<br />

- Ordem no tribunal! Ordem...<br />

Era ele. O juiz era o destino. Por que esse cara fica me seguindo? Já<br />

estou cansado dele! Será que o destino vai estar em todo lugar? Interferindo<br />

em tudo que eu for fazer?<br />

- Faça entrar a próxima testemunha.<br />

Nisso o guarda chamou a testemunha Joana. Não me lembro o seu<br />

sobrenome.<br />

- Perante a sagrada escritura, jura dizer a verdade, somente a verdade<br />

e nada mais que a verdade?<br />

- Sim meritíssimo.<br />

- Com a palavra o advogado de acusação.<br />

Em meio ao público que assistia ao julgamento estava o menino<br />

Juca. Ele já havia me visto. Eu pensava no que seria da sua vida se o pai<br />

fosse condenado.<br />

Às vezes o juiz batia o martelinho sobre a mesa apenas por não ter o<br />

que fazer. Que figura! Eu olhava para ele ora com raiva, ora com pena.<br />

Passaram-se horas de julgamento até que me chamaram para depor:<br />

- Senhor Petrúcio, conte-nos exatamente o que aconteceu.<br />

- Sim meritíssimo. Quando fiquei sabendo que haveria um rodeio, eu<br />

fui lá para conhecer...eu tinha curiosidade para saber o que era um rodeio,<br />

foi aí que ao chegar vi que muitos animais eram maltratados e...<br />

- Protesto senhor meritíssimo! Disse o advogado do Adamastor e do<br />

Cristóvão.<br />

- Protesto negado. Continue o depoimento.<br />

- Procurei saber mais a respeito e descobri que os touros e os cavalos<br />

eram do réu Cristóvão e de sua mulher Dara. Vi que não eram animais<br />

bravos, mas quando eram provocados ficavam violentos para entrar na<br />

arena de rodeio. Cheguei a presenciar o momento das chicotadas.<br />

103


- Senhor Petrúcio: o senhor acredita que o réu tinha conhecimento<br />

desses fatos?<br />

- Sim senhor meritíssimo. Com certeza o dono desses animais sabia<br />

da situação, mas como ganhava muito dinheiro com os rodeios nem se<br />

importava com a situação dos animais.<br />

- Protesto senhor meritíssimo...<br />

- Ordem, ordem! Protesto negado. Senhor Petrúcio, e com relação<br />

aos casacos de pele se animais, o que o senhor te m a dizer.<br />

Nesse momento eu olhei para o Adamastor, para o Juca, para os<br />

presentes...<br />

- Tenho certeza que o réu Adamastor era quem promovia a caça de<br />

animais nas proximidades de sua casa e pretendia vender as peles no<br />

rodeio.<br />

- Absurdo...<br />

- Não é possível!<br />

- Ordem! Ordem no tribunal!<br />

Não resisti. Não havia fundamento em mentir. Não era vingança,<br />

mas justiça apenas. Não sabia o que iria acontecer com o Juquinha, mas eu<br />

também fui retirado dos meus pais, e os humanos não são melhores que eu.<br />

Ao olhar para o destino novamente ele parecia tranquilizado! Queria<br />

ter certeza que eu faria a coisa certa. Sabia o que eu estava pensando.<br />

Felizmente para o Adamastor ele teve sua pena convertida em<br />

serviço comunitário além de uma multa de valor bem elevado, que foi paga<br />

pelo Cristóvão. Já o Cristóvão teve que pagar muitas cestas básicas, que<br />

foram doadas para creches da cidade.<br />

Na saída do tribunal havia uma quantidade enorme de repórteres que<br />

me cercaram...<br />

- Senhor Petrúcio! Por favor...<br />

- Senhor Petrúcio...<br />

- É verdade que o senhor presenciou pessoas batendo nos animais do<br />

rodeio? Eles utilizam de selvageria com os animais?<br />

- Sim! Esses animais usados em rodeios não são bravos. Os peões<br />

usam insetos para os picarem, um pó que causa ardência e amarram os<br />

animais com cordas apertadas para que fiquem saltando tentando amenizar<br />

a dor.<br />

- E com relação a um dos envolvidos ter praticado caça naquela<br />

localidade? Havia peles de animais? O que o senhor sabe?<br />

- Também pude verificar. Vi muitas peles em forma de casaco. Ele<br />

foi julgado por isso e terá que arcar com os prejuízos, porém prejuízo maior<br />

é para a natureza. Lá naquele lugar já não existem animais, pois todos<br />

morreram.<br />

- E com relação ao rodeio, o que mais o senhor sabe?<br />

104


- Na verdade toda essa cidade é culpada. São as pessoas que vão aos<br />

rodeios, as pessoas não têm consciência das atrocidades que são cometidas<br />

com os animais. Um pássaro na gaiola por exemplo, se soubessem de onde<br />

ele veio, a forma como foi capturado, ser retirado de seu lar, da sua<br />

liberdade, ser impedido de procriar...enquanto a floresta vai ficando cada<br />

vez mais vazia e sem vida. Com isso vocês mesmos não se preocupam.<br />

- O senhor faz parte de alguma organização de proteção animal?<br />

- Não, na verdade é coisa do destino mesmo eu estar aqui<br />

hoje...levando essas palavras para muitas pessoas. Vocês que estão<br />

assistindo a televisão, devem pensar mais na natureza, em proteger os<br />

animais e as plantas, a floresta...muitas vezes é bom ter um pássaro em casa<br />

ou outro animal da selva, mas tenha a certeza: esse animal não deveria ser<br />

retirado da floresta. É lá a sua casa, os animais da selva que nasceram na<br />

selva devem ficar na selva, não na casa de ninguém, presos. Para isso<br />

existem cachorros e gatos que são animais domésticos.<br />

- O senhor acha que a falta de legislação favorece o contrabando?<br />

- Sim! São os homens que fazem as leis dos homens, e por isso<br />

acabam olhando apenas os seus interesses pessoais e partidários. Mas tenho<br />

certeza que muitas pessoas irão se conscientizar a partir de hoje!<br />

- E o que as pessoas poderiam fazer?<br />

- É importante entregar os animais silvestres que estão ilegais nas<br />

casas para o órgão que defende o meio ambiente. Lá os animais serão<br />

tratados e voltarão para a floresta que é o lugar deles. É preciso ainda que<br />

os políticos votem leis para garantir a proteção da natureza, pois pode<br />

parecer pouca coisa, mas se não houver proteção agora, no futuro não<br />

existirá mais nenhum animal silvestre. Os seus netos talvez não tenham a<br />

oportunidade de ver um pássaro silvestre voar...<br />

Então comecei a sentir uma estranha dor no abdômen...<br />

- Senhor, o senhor está bem? Está se contorcendo...<br />

- Se afastem! Está acontecendo alguma coisa comigo.<br />

- Alguém chame uma ambulância...<br />

- Olhem, ele está...<br />

- Minha nossa! O que é isso?<br />

Eu fui me contorcendo, diminuindo de tamanho. Pontas fincavam<br />

minha pele e penas saíam.<br />

Rapidamente voltei a ser o papagaio Petrúcio e as câmeras filmavam.<br />

- Olhem isso: é incrível!<br />

- Um grande milagre, vejam só!<br />

Saí voando assustado do meio daquelas pessoas tentando achar um<br />

lugar para me esconder...cada vez mais alto...olhava para trás e as pessoas<br />

ficavam menores.<br />

Depois de muito voar acabei ficando cansado e parei em cima de um<br />

prédio. Era na saída da cidade e eu estava muito confuso!<br />

105


Fiquei ali um tempo tentando recuperar as energias e havia uma<br />

fadiga enorme nos meus músculos. A respiração era ofegante...<br />

De repente um helicóptero veio na direção do prédio...era o<br />

Cristóvão...<br />

Saí voando o mais rápido que pude e ele veio seguindo de<br />

helicóptero...quando começava a se aproximar eu desviava e ele vinha<br />

atrás...<br />

Tentei voltar para o meio da cidade, voando por entre os prédios e<br />

casas... e ele continuava me seguindo. Tinha o som da morte!<br />

Havia muita raiva em seus olhos...aquele barulho do helicóptero...fez<br />

lembrar de quando eu estava na casa do Juquinha, quando houve o acidente<br />

com o carro...pensamentos confusos me dominavam e eu gritava...<br />

Então pensei que se despistasse o helicóptero conseguiria voar para<br />

os lados da casa do Juquinha.<br />

Comecei a voar mais perto dos prédios e eles ficavam de longe com<br />

o helicóptero.<br />

Lá embaixo muitas pessoas observavam o que estava acontecendo.<br />

Havia muito alvoroço na cidade por causa da reportagem em que eu virei<br />

papagaio em frente às câmeras. Eu tentava despistar a atenção do<br />

Cristóvão, mas ele sempre rodeava os prédios e me achava...<br />

Foi quando muitos pombos começaram a voar das praças, das<br />

árvores, dos telhados e então o céu ficou todo cheio de pombos! Centenas<br />

de pombos voando junto comigo.<br />

O Cristóvão chegou o corpo para o lado de fora do helicóptero e deu<br />

um tiro de espingarda, quase desequilibrando por causa do vento forte<br />

debaixo da hélice do helicóptero...<br />

Os pombos então se separaram assustados com o barulho e saíram<br />

voando em retirada...e eu voltei a voar sozinho.<br />

Novamente o Cristóvão deu um tiro que pegou de raspão em minha<br />

asa esquerda e senti dor, mas continuei voando.<br />

Cada vez mais cansado e tendo somente a opção de voar reto na<br />

direção da casa do Juquinha comecei a voar, perdendo cada vez mais<br />

altitude...sentia que minha vida estava perto do fim...<br />

Ele deu mais um tiro e eu senti o som da munição passar perto de<br />

mim.<br />

O helicóptero vinha logo atrás e eu já estava na saída da cidade...<br />

Então o Cristóvão colocou novamente o corpo para fora do<br />

helicóptero mas não ouvi barulho de tiro.<br />

Com medo e sentindo minha asa esquerda latejando continuei<br />

voando da maneira que podia, e ao olhar para trás vi o helicóptero<br />

descendo rapidamente para o chão e pousando na estrada.<br />

106


Consegui voar ainda mais uns três quilômetros, então acabei caindo<br />

próximo de uma placa. Minha asa sangrava e eu me sentia cada vez mais<br />

fraco.<br />

Não sei se pelo cansaço ou pelo ferimento comecei a ver tudo tão<br />

embaçado, tão cinza...<br />

Então quando abri de novo os olhos estava na casa do Juquinha, com<br />

um curativo na minha asa.<br />

- O que aconteceu?<br />

- Eu te encontrei perto da estrada Petrúcio. Saiu no plantão do jornal<br />

no meio do desenho que um homem havia sofrido um acidente aqui perto e<br />

eu fui lá pra ver.<br />

- É...<br />

- Nossa, essa história é muito maluca! Mostrou você na televisão<br />

virando papagaio, foi incrível! Muitas pessoas estão procurando você e...<br />

- O que aconteceu com o homem?<br />

- Não sei. Quando eu cheguei lá um helicóptero já tinha socorrido ele<br />

no chão. A reportagem só falou que ele foi levado inconsciente pelo piloto<br />

do helicóptero. Algumas pessoas disseram que ele caiu do helicóptero.<br />

Quando fui ouvindo os comentários fiquei sabendo que era o dono do<br />

rodeio, que ele estava te perseguindo, então voltei procurando você pelo<br />

caminho, mas não achei, foi aí que trouxe o Roger para me ajudar.<br />

- Que coisa...estranho, não estou sentindo mais a dor na asa. Esse<br />

curativo é bom mesmo!<br />

- Olha Petrúcio: na verdade você quebrou a sua asa esquerda. Eu até<br />

tentei...<br />

- O que quer dizer Juca?<br />

- Você não tem mais a asa esquerda Petrúcio. Eu demorei muito pra<br />

te achar e já estava quase morto. Sua asa estava cheia de bichinhos. Eu tive<br />

que cortar. Tem três dias que você está aqui em casa, esses dias deixei você<br />

no meu quarto escondido do meu pai e só agora você conseguiu abrir os<br />

olhos. Eu estava te alimentando com fubá e água numa seringa...<br />

- O quê?<br />

- Foi a única solução. Eu fiz esse curativo pra parar de sangrar senão<br />

você morreria.<br />

Fiquei imóvel...pensamentos voavam em minha cabeça numa<br />

velocidade muito grande.<br />

Minha vida! Voar pela floresta em cada manhã, entre as folhas e os<br />

galhos...ir até o lago...<br />

Mutilado! Eu que era alegre e possuía esperança agora me vejo sem<br />

lugar pra onde ir...<br />

Deixasse morrer naquele mato ao lado da estrada onde caí. Foi<br />

justamente o carinho do Juquinha que se tornou a minha decepção mais<br />

dolorosa, mais difícil de aceitar.<br />

107


Desde o primeiro instante em que vim parar aqui eu só pensava em<br />

voltar pra casa. Foram dias e noites muito longos de sofrimento! Eu<br />

pensava na floresta, em todas as formas de vida...eu tinha uma conexão<br />

espiritual com a seiva da vida.<br />

Era o papagaio selvagem, sem nome, mas com liberdade! Minha<br />

alma era como lava de alegria a cada manhã, e ao recolher o vôo da tarde,<br />

quando o sol estava se pondo, cansado e com o papo cheio de alimento,<br />

suspirava as brisas da noite, quando as rosas da floresta perfumavam o ar e<br />

as estrelas cintilantes acesas no céu tornavam o céu da floresta o mais<br />

bonito do mundo!<br />

- Em que eu posso te ajudar Petrúcio? Se houver alguma coisa que eu<br />

possa fazer por você.<br />

- Leva até a cidade. Ainda é cedo e o seu pai só volta mais tarde. Vou<br />

até a loja de pássaros. Quero morrer na floresta.<br />

- Você não vai morrer Petrúcio. Vou cuidar de você. Você vai ficar<br />

bem...<br />

- Juquinha!<br />

- Tudo bem Petrúcio.<br />

O Juquinha chorava enquanto pegava uma mochila e colocava o<br />

cestinho na bicicleta. Ele colocou também uma garupa adaptada para o<br />

Roger.<br />

Eu fiquei olhando para o curativo na minha asa, olhei para o<br />

horizonte, abri a asa direita e o toco de asa que restou da esquerda. Meus<br />

olhos se encheram.<br />

Então quando ele terminou de colocar o cestinho nós fomos pela<br />

estrada a caminho da cidade.<br />

O Juquinha se desenvolvia rapidamente! Já não brincava como antes<br />

e sua estatura aumentava rápido! Não me esqueço nunca do dia que nos<br />

encontramos no caminho, perto de sua casa, quando fui deixado naquela<br />

casa pelo Nestor e pelo Gilmar.<br />

E hoje depois de tanto tempo, quando eu estava mais necessitado de<br />

viver a vida que eu sempre vivi, com saudade da minha floresta querida,<br />

rever meus amigos e irmãos, é justamente o dia mais triste da minha vida.<br />

Embora o carinho do Juquinha e sua preocupação comigo pouparam minha<br />

vida, é como se meu coração o culpasse por não ter deixado que eu<br />

morresse sem ter o desgosto de não poder mais voar.<br />

Hoje sou um papagaio enfraquecido de saúde e de esperança. A<br />

folhagem do tempo cobre o solo da minha vida. Sinto que tão breve<br />

deixarei a existência mortal para encontrar a tal felicidade que o destino me<br />

prometeu na aurora da minha conturbada história.<br />

Ele falou que iria me ajudar. Falou que depois disso tudo viria a<br />

recompensa. Eu acreditei nele. Agora estou aqui nessa situação. Eu odeio o<br />

destino!<br />

108


Vejo com dificuldade tudo ao meu redor...vista cansada. Estou com<br />

saudade da floresta! Que me importa o vigor e a saúde? Queria só a<br />

felicidade!<br />

Enquanto viajava em pensamentos tão distantes, grandiosos, o<br />

Juquinha contava sobre tudo que havia acontecido depois da confusão no<br />

rodeio.<br />

Falou que o peão Gonzáles acabou assumindo o relacionamento com<br />

Tereza e que ficaram noivos. Que ela começou a cuidar mais da sua beleza,<br />

que foi por minha causa, que eu incentivei ela a descobrir sua beleza e se<br />

cuidar. Disse que a cada dia que passava ela ficava mais bonita.<br />

O Nelson na verdade era o destino, essa era a sua identidade. Ele<br />

começou a cantar músicas de samba nos bares da cidade. Continua solteiro<br />

mas tem mais de dez namoradas.<br />

Falou que o Adamastor agora está trabalhando na roça, que fica o dia<br />

todo no trabalho e à noite volta pra casa. Sorrindo falou pra mim que acha<br />

que ele está namorando a dona Joana escondido, aquela que parece bruxa e<br />

que fazia os casacos com as peles de animais que o Adamastor e seus<br />

colegas caçavam.<br />

Então de repente o Juquinha ficou calado e parou a bicicleta. No<br />

caminho havia dois lobos, na margem da estrada. Estava prestes a nos<br />

atacar quando o Roger desceu da garupa e começou a encarar os dois lobos.<br />

O Roger era um pastor alemão grande e os lobos eram um pouco<br />

menores que ele, mas eram dois. Eu estava dentro da caixa e o Juquinha ia<br />

fugir. Foi quando falei pra ele ajudar o Roger, que sozinho não se pode<br />

fazer muita coisa, mas quando existe união tudo fica mais fácil.<br />

Então ele pegou umas pedras e jogou na direção dos lobos. O Roger<br />

começou a latir e os lobos acabaram entrando na mata à beira da estrada.<br />

Continuamos então a caminho da cidade.<br />

O Juquinha demorou uma hora pra chegar até as primeiras casas.<br />

Para que as pessoas não me vissem ele me levou numa caixa com furos.<br />

Fui dizendo a ele o caminho para a loja de pássaros e nos aproximávamos<br />

cada vez mais de lá...<br />

Chegando lá, já não havia a loja de pássaros. Somente mesas,<br />

cadeiras e alguns homens pintavam as paredes.<br />

O Juquinha disse que queria falar com o Rubens, então um dos<br />

pintores foi chamá-lo.<br />

- É verdade! Aí quando eu falei que o Petrúcio estava dentro da caixa<br />

no cestinho da bicicleta o homem se assustou. Falou rapidamente para<br />

entrarmos e dentro da casa fez questão de pegar a caixa e abrir para que o<br />

Petrúcio saísse.<br />

Então o Rubens foi lá dentro e trouxe biscoitos, chocolate quente e<br />

serviu ao Juquinha. Trouxe também ração numa tigela e deu ao Roger.<br />

109


Ele falou que não trabalharia mais com pássaros. Que estava<br />

terminando de pintar a loja e que seria uma lanchonete. Disse que pensou<br />

muito sobre o que eu havia falado, que se sentiu mal por manter os animais<br />

presos em gaiolas e que trabalharia com outra atividade...<br />

- Mas Petrúcio...em que eu posso te ajudar?<br />

- Quero que me explique o caminho pra voltar pra floresta, de onde<br />

vocês me tiraram.<br />

- Petrúcio. Lá é muito longe, não dá pra ir de bicicleta. Tem que ser<br />

de carro.<br />

- Se o senhor explicar eu dou um jeito.<br />

- Não Juca, não é tão fácil assim. Petrúcio, fique aqui. Eu prometo<br />

que levo você de volta para a floresta no sábado, assim que terminar de<br />

pintar a lanchonete.<br />

- Mas é que...<br />

- Deixe Juquinha. Pode deixar. É o que eu quero.<br />

- Petrúcio...<br />

- A única coisa que eu quero agora é voltar para a floresta. Não tenho<br />

muito tempo de vida e só quero sentir de novo a alegria de estar em casa.<br />

- Vou sentir saudade Petrúcio!<br />

- Estarei sempre com você Juquinha! Enquanto tivermos esperança<br />

haverá sempre uma energia nos unindo, não só nós dois, mas a todos<br />

aqueles que protegem a natureza. Nisso o Rubens deixou cair uma lágrima.<br />

Os olhos do Juquinha estavam cheios de lágrimas. O Roger estava do<br />

lado de fora da loja, esperando o Juquinha. Ele ficou um tempo ainda me<br />

olhando e eu fui caminhando em direção à cozinha.<br />

- Adeus Petrúcio!<br />

Eu não respondi nada. Fiquei imóvel, de costas para ele enquanto ele<br />

virava as costas e saía da casa. Então eu me virei e olhando o garoto sair<br />

disse um adeus baixo, triste e fraco!<br />

110


Capítulo 7<br />

Nos outros dias eu permaneci dentro da casa, sem coragem de nem<br />

ao menos olhar para o sol aqui nessa cidade. Ficava o dia inteiro na janela<br />

da cozinha esperando o tempo passar, ansioso e angustiado depois de tudo<br />

que aconteceu. Sentia o peso de toda a minha vida!<br />

Os pedreiros que estavam trabalhando na reforma da loja passavam<br />

perto de mim e eu contava piadas para eles sempre que pediam. Minha voz<br />

era triste e minhas piadas eram as mesmas, mas eu sentia algo diferente nas<br />

piadas, havia mais sabedoria!<br />

O Rubens evitava olhar para mim. Parecia sentir vergonha. Até que<br />

no sábado, pela manhã, pouco antes de sairmos ele me chamou...<br />

- Petrúcio. Preciso te contar uma coisa.<br />

- Fale Rubens.<br />

- O Amadeu, meu antigo sócio não está morto. Na verdade eu tive<br />

medo de você, medo que fizesse alguma coisa.<br />

- Você mentiu?<br />

- Olha Petrúcio. Ele ainda é meu sócio, na verdade um tempo atrás<br />

ele abriu uma lanchonete na cidade. Ele me aconselhou a sair antes desse<br />

negócio de pássaros. Começou a ganhar um bom dinheiro na lanchonete.<br />

Ele ficou com medo depois daquilo que aconteceu na loja, quando você<br />

atacou.<br />

- Sei...<br />

- Fiquei com medo que você fizesse algo de mal para ele. Ele<br />

colocou o seu nome na lanchonete e hoje ela é famosa na cidade! Servem<br />

111


muitos sanduíches diferentes e o Amadeu se tornou um defensor da causa<br />

animal, realmente um protetor do meio ambiente! Ele mudou muito!<br />

- E por que você não me falou isso antes?<br />

- Eu estava com medo de você...<br />

- Medo de mim? Eu já nem posso mais voar, já não posso mais fazer<br />

nada!<br />

- Não, não é medo de você bicar ou arranhar com as unhas, é medo<br />

da sua pessoa Petrúcio.<br />

- Conversa...<br />

- Petrúcio, tem mais uma coisa...<br />

- O que é?<br />

- Ele está aqui. Quando contei pra ele a história ele veio para falar<br />

com você. Você aceita falar com ele?<br />

- Deixa Rubens, eu converso com ele.<br />

- Então você é o Amadeu?<br />

- Petrúcio...eu quero te pedir desculpas por tudo que<br />

aconteceu...dizer que eu sempre carregarei essa culpa imensa por tudo que<br />

aconteceu, por toda a minha vida.<br />

- Eu também Petrúcio.<br />

- Sabe Petrúcio...essa história toda serviu para abrir a mente de<br />

muitas pessoas. Você trouxe uma nova consciência a muitas pessoas aqui<br />

nessa cidade...<br />

- Tenha certeza que nós vamos fazer o possível pra preservar cada<br />

vez mais a natureza Petrúcio. Agora entendemos o sentido das coisas.<br />

- Nós precisávamos de algo para abrir nossas mentes, da enorme<br />

besteira que estávamos fazendo. Por gostar de animais achávamos que<br />

estávamos fazendo o bem prendendo na gaiola, mas isso tudo só serviu<br />

para o nosso próprio ego e nada mais.<br />

- De agora em diante tudo vai mudar Petrúcio.<br />

- Sabe Petrúcio...quando vi aquela reportagem fiquei muito<br />

constrangido! Um sentimento de culpa muito grande tomou conta de mim.<br />

Agora sei o quanto a natureza pode ser forte, a ponto de te transformar<br />

numa pessoa para vir até aqui e defender a floresta, pois nenhum homem<br />

fez isso.<br />

- Eu queria dizer que o dia em que vocês dois me capturaram na<br />

floresta, eu estava com fome, e ao ver que havia aquela quantidade de<br />

sementes fui até lá para me alimentar. Eu senti desespero quando aquela<br />

caixa se fechou.<br />

- Eu sei Petrúcio, nos desculpe!<br />

- Ao olhar para a floresta ficando pra trás senti que minha vida ficava<br />

pra trás. É assim que se sente cada animal que é retirado da mata e trazido<br />

para a cidade para servir de enfeite...olhem o que aconteceu comigo, vejam<br />

tudo que foi causado por vocês...<br />

112


Então eu não disse mais nada e os dois de cabeça baixa foram lá<br />

arrumar a caminhonete para irmos até a floresta.<br />

O Rubens falou que esta seria a última vez que aquele gaiolão seria<br />

usado.<br />

Às onze horas e trinta e quatro minutos o velho motor do animal de<br />

ferro rugiu novamente, para me levar embora da cidade fria que consegui<br />

requentar com um conto.<br />

No caminho as lembranças de toda a minha vida passavam por meus<br />

olhos.<br />

Como se tivesse acontecido a um segundo atrás: num dia chuvoso na<br />

selva, o último rebento da ninhada assinando sua rubrica no livro da vida.<br />

Minha vida na floresta foi feliz! Voei junto dos meus irmãos sob a<br />

proteção dos nossos pais.<br />

Até parece que foi ontem que o Serginho me comprou na loja de<br />

pássaros e eu, um filhote de papagaio fui levado por ele à sua toca branca<br />

de janelas azuis.<br />

Parece que foi ontem que o Nestor e o Gilmar me pegaram na casa<br />

dele e acabamos indo parar na casa fora da cidade.<br />

Parece tão recente eu ter conhecido o Juquinha e acabar retornando<br />

para a casa do Serginho.<br />

Fui parar no navio onde conheci a Sophia...ah! Sophia...qual será o<br />

nome que ela colocou em nosso filhote? Jamais saberei...<br />

Parece que foi ontem que conheci os piratas e os pássaros que<br />

estavam no navio deles...pássaros?<br />

Nesse momento, enquanto a caminhonete passa pelas ruas, vejo<br />

sobre os telhados das casas uma fileira imensa de pardais batendo as asas,<br />

pardais e pombos com seu arrulho.<br />

Nas árvores muitas rolinhas voando de um lado a outro numa cena<br />

emocionante!<br />

No alto de um poste havia um urubu e quando o carro passou ele<br />

ficou rente ao sol. Era como se houvesse um globo dourado ao redor do seu<br />

corpo. De asas abertas...<br />

Em algumas calçadas ratos e baratas se agitavam ao me ver passar.<br />

O silêncio urbano naquela cidade no horário do almoço foi quebrado<br />

quando eu, em ato de amistosa despedida batia a asa direita e o que restou<br />

da asa esquerda, gritando...não palavras, as inúmeras palavras que aprendi,<br />

mas o som nativo dos papagaios.<br />

Os pássaros da cidade respondiam com muito barulho! Bem-te-vis,<br />

andorinhas, pardais, pombos, sabiás...todos eles ao mesmo tempo...<br />

Juntaram-se a eles os cães com o latido, as cigarras, os grilos...e com<br />

um belo vôo digno de primavera as andorinhas-de-sobre-branco.<br />

Nesse momento o carro deixava a última rua da cidade, e entrava na<br />

rodovia que iria me legar para a floresta.<br />

113


Lembrei da minha prisão e do dia em que saí daquele porão onde fui<br />

colocado para morrer. Várias vezes as pessoas aqui fizeram maldades<br />

comigo...fui abandonado, jogado ao mar, colocado num porão sem comida,<br />

atiraram em mim...<br />

Lembrei da vingança...<br />

Eu me tornei um humano graças ao destino para ajudar os animais do<br />

rodeio e para mudar a cabeça das pessoas. Eu poderia viver entre eles, mas<br />

meu futuro não é esse...sou filho da selva, não um filho da cidade.<br />

Enquanto a estrada passava, lembrei do rodeio em que eu conversei<br />

com o touro matador e conheci o cavalo Eleu.<br />

Lembro de mim caindo naquela beira de estrada com a asa<br />

machucada e depois tudo se apagando...<br />

Chegou ao momento em que sou colocado na mesma gaiola que me<br />

trouxe para esta cidade, no mesmo carro, guiado pelos mesmos homens que<br />

me trouxeram para cá.<br />

No caminho...vejo em cada copa de árvore um pássaro cantando<br />

quando eu passo. Depois que passo param de cantar e voam.<br />

Antes de chegar à floresta, quero revelar um segredo que irá ficar<br />

aqui nessa mesma cidade: eu nunca tentei ser criativo, ou alegre, triste,<br />

esperto...<br />

Tudo o que eu fiz foi ser eu mesmo! Jamais procurei ser uma outra<br />

pessoa para agradar os outros. Consegui ser querido por muitos e odiado<br />

por outros tantos, fazendo apenas o que o meu instinto ordenava. Pois bem,<br />

enquanto eu vivi como homem entre os moradores da cidade, nas noites em<br />

que estava triste escrevia contos, piadas, histórias...também escrevi tudo o<br />

que os animais pensam das pessoas, da forma de tratamento, também sobre<br />

a relação espiritual com a natureza.<br />

Sei dos movimentos que tiveram início quando dei aquela entrevista.<br />

Muitas pessoas passaram a enxergar a natureza de uma forma diferente,<br />

mas não é ainda o bastante. Enquanto houver um único animal ou uma<br />

única árvore sendo maltratada, ainda existirá infelicidade.<br />

Antes de ir para aquele julgamento peguei aquelas folhas e coloquei<br />

dentro de um envelope. Deixei em algum lugar dessa cidade para que<br />

quando alguém um dia encontrar possa revelar ao mundo.<br />

Sei que esses contos que escrevi serão contados a muitas<br />

pessoas...sei que as piadas farão muitas pessoas darem gargalhadas...sei que<br />

as histórias trarão mais experiência à vida das pessoas.<br />

Então a caminhonete parou em frente a uma enorme árvore.<br />

- Petrúcio: a sua casa é aqui!<br />

- Juro Petrúcio, que nunca mais voltaremos aqui na floresta, e assim<br />

que chegarmos à cidade vou destruir esse gaiolão.<br />

Eu estava muito zonzo. Pedi para que o Rubens me tirasse do gaiolão<br />

e colocasse no chão. Senti que eu não teria forças para pular até o chão.<br />

114


- Eu perdôo vocês dois.<br />

Só isso, e eles foram embora. Tiveram vergonha de olhar pra trás.<br />

Olhando para o interior da mata, me volto para ela enquanto um<br />

vento calmo toca minhas penas.<br />

Cada vez que minhas patas tocam o solo e vou me aproximando do<br />

interior da mata ouço os bem-te-vis cantando alto, misturando o som ao<br />

som do azulão.<br />

Umas quarenta vezes o bem-te-vi cantou, anunciando aos pássaros da<br />

floresta...<br />

Foram se aglomerando nos galhos das árvores...muitas espécies,<br />

muitas cores, muitos sons diferentes.<br />

Quando eu fui chegando mais ao centro, na terra cheia de húmus e<br />

folhas secas parei de caminhar. Meu corpo cansado começou a ficar<br />

amolecido e já tinha dificuldades para ficar de pé.<br />

Era tarde e alguns poucos raios de sol passavam por entre as folhas e<br />

as copas das árvores e chegavam ao meu corpo. Quando um deles alcançou<br />

meus olhos lembrei das manhãs, onde eu ia até a copa daquela grande<br />

árvore para ver o sol...<br />

Nas árvores vários pássaros me observavam, entre eles o pica pau<br />

Jackson, o curió Tadeu com dezenas de outros curiós, o canário-da-terra<br />

João, muitas jandaias, coleiras, sabiás, bem-te-vis...azul...azulão...<br />

Andorinhas...andorinhas...<br />

Araras...<br />

Araras amarelas e azuis, grande quantidade delas, se apertando na<br />

árvore para me ver...<br />

Foi ficando escuro...<br />

Vi meus irmãos e meus pais, na verdade era um vulto deles,<br />

acinzentado...<br />

Um vulto acinzentado...<br />

Sentindo longe um canto embaraçado, que já não pude identificar<br />

que pássaro seria...<br />

Foi dando desespero...<br />

Não havia força para andar...<br />

Novamente um raio de sol alcançou um dos meus olhos...<br />

Meu corpo balançava...levemente...<br />

O sentido da vida...<br />

Caí no montinho de terra onde morri e a última coisa que ouvi antes<br />

de falecer, com os olhos se fechando e tudo ficando escuro foi o canto de<br />

todos aqueles pássaros e aves ao mesmo tempo. Um canto alto se<br />

despedindo de minha alma, que nesse mesmo instante abandonou meu<br />

corpo.<br />

Este foi o fim de minha vida.<br />

Não significou tristeza, mas liberdade!<br />

115


Meu corpo foi consumido pela terra e se misturou ao húmus, à seiva<br />

da vida que mantém viva cada árvore da floresta.<br />

Eu venci, pois protegi a floresta contra as pessoas, mesmo sozinho e<br />

contra animais muito mais nocivos que o gavião...<br />

Eu voltei pra casa! Esse foi o desejo que manteve viva a minha<br />

esperança. Era esse o sentido da minha vida e tudo que fiz foi por amor!<br />

E mesmo na minha morte ajudei a manter a vida da floresta. Naquele<br />

mesmo lugar nasceram vários girassóis, sempre voltados para onde vem a<br />

luz do sol, e minha alma foi para o céu dos passarinhos.<br />

Fim!<br />

“Às vezes, por sermos inexperientes demais nos assuntos da vida,<br />

não conseguimos dar o valor certo a um bem tão valioso que possuímos.<br />

Antes tivesse um vendaval o levado para muito longe daqui, onde<br />

houvesse alegria e paz em seu coração, do que vê-lo perdido entre desejos<br />

de vingança e esperança de voltar para o seu mundo..<br />

Antes tivesse a mão do tempo o transformado numa estrela que eu<br />

pudesse ver toda noite, ao invés de sua imagem se desintegrar cada vez<br />

mais como farelos nas minhas lembranças mais tristes daquele tempo que<br />

se foi para nunca mais voltar.<br />

Eu fui injusta e ingrata, por vaidade, e fui indigna por atitudes, mas<br />

recebi dele muito mais do que eu poderia, mais do que eu merecia...<br />

Nos dias de hoje a dignidade custa caro e existem dois mil, cento e<br />

oitenta e três canalhas para cada digno que se revele, ou até mais.<br />

O amor é o mais perverso de todos os sentimentos, porque é o mais<br />

importante e isso quem me ensinou foi a criatura mais importante de minha<br />

vida, depois de meu filhote Giancarlo. Um dia foi despertado em minha<br />

vida e muitos meses atrás, a vida me tirou, tirou os seus olhos dos meus<br />

numa despedida.<br />

Peço desculpas a alguém se o fiz chorar, se magoei...é que nem tudo<br />

na vida é como esperamos que fosse, e eu...”<br />

Papagaia Sophia<br />

“Bom...eu nasci e cresci sem a presença dele, aqui nessa mesma casa.<br />

Quando a mãe foi achada numa praça, toda suja de terra, ela estava prestes<br />

a botar um ovo, e desse ovo eu nasci. Ela disse que foi poucos dias depois<br />

que ela veio para essa casa. Que nossos donos ficaram muito contentes e<br />

cuidavam muito dela enquanto ela estava me chocando. Quando nasci eles<br />

ajudavam a me alimentar com papinha.<br />

116


Desde pequeno quando perguntava para minha mãe ela falava muitas<br />

coisas dele, sempre com um brilho no olhar, de admiração e saudade.<br />

Desde pequeno sentia muito orgulho do meu pai! As histórias dele sempre<br />

me motivaram a ser forte diante de qualquer situação.<br />

O meu pai foi o famoso papagaio Petrúcio, mas mesmo que fosse um<br />

papagaio qualquer, queria que tivesse me visto nascer e voar pela primeira<br />

vez aqui no quintal desta casa onde vivo com a mãe e nossos donos, que<br />

são um casal de idosos, enquanto eles se divertiam me ajudando quando eu<br />

ficava quieto no chão.<br />

Aqui numa das praças do bairro fizeram uma estátua de um<br />

papagaio. Quem mandou fazer foi um homem rico chamado Amadeu. A<br />

mãe falou que é idêntica ao pai, e que esse homem foi quem trouxe o pai da<br />

floresta pra cá, que depois de muito tempo se arrependeu de prender<br />

animais e virou outra pessoa. Algumas vezes a mãe voa até a praça e fica<br />

olhando para a estátua por algum tempo, e depois volta. Eu nunca perguntei<br />

nada para ela, evito tocar no assunto do pai porque ela sempre fica triste.<br />

Às vezes nos sonhos sinto que ele conversa comigo. Às vezes<br />

acordado, me perco em pensamentos e procuro imaginar sua fisionomia e<br />

sua voz. Ah, o Petrúcio era genial! Os pássaros daqui me conhecem por<br />

causa do meu pai, é como se eu fosse uma herança dele deixada aqui, um<br />

ídolo!<br />

O meu pai foi o papagaio mais famoso da floresta onde nasceu!<br />

Sei todas as piadas que ele contava, mas não sei contar tão bem<br />

quanto as pessoas falam que ele contava.<br />

Sou feliz e vivo uma vida quieta aqui nessa casa. Os nossos donos<br />

todos os dias nos dão comida e temos um pequeno jardim para pousar nos<br />

arbustos. Eu tinha vontade quando era mais novo de conhecer a floresta<br />

onde ele nasceu e morreu, mas pelo que alguns pássaros falam é um lugar<br />

perigoso! Eu não resistiria lá pois moro aqui na cidade desde que nasci.<br />

O meu pai foi o famoso papagaio Petrúcio, o mais famoso que já<br />

apareceu nesta cidade! Mudou muita coisa mesmo sendo somente um<br />

papagaio, mesmo que você tenha transformado ele em gente durante um<br />

tempo.<br />

A música que ele cantava todos os dias na casa de um dos seus<br />

donos, a mãe me ensinou num dia em que chovia bastante. Lembro bem<br />

que chovia muito e estávamos na varanda da nossa casa e sentíamos o<br />

vento gelado da chuva.<br />

Mamãe sempre falou que ele levava consigo o espírito da chuva, e<br />

que alguma coisa nele era semelhante a uma chuva forte e cheia de raios.<br />

Dizia que parecia ver muitos raios no interior dos seus olhos.<br />

Eu sou o papagaio Giancarlo, filhote do papagaio Petrúcio!<br />

Papagaio Giancarlo<br />

117


“Foi muito bom ter a presença dele em minha casa! Não dei o valor<br />

necessário para ele, fui desacostumando...no início era uma novidade! Algo<br />

extraordinário! Com o tempo foi se misturando à paisagem monótona dos<br />

meus brinquedos.<br />

Nunca percebi quanta tristeza passava por seus olhos e o quanto esse<br />

passarinho tinha para oferecer.<br />

Depois que fui morar com minha avó eu ganhei uma calopsita de um<br />

tio, eu acostumei ela fora da gaiola e ela era muito mansa!<br />

A casa onde morava com meus pais, acabei vendendo para não ter<br />

que voltar lá. Foi muito traumatizante quando descobri tudo que aconteceu,<br />

e o meu pai ainda foi preso. Hoje tenho minha mulher e uma filha.<br />

Trabalho numa indústria de energia elétrica e me sinto uma pessoa<br />

realizada!<br />

Ela tem dois cães e um gato de estimação que adotamos num abrigo<br />

para animais. Bom, ela queria um bichinho e eu não queria gastar, afinal<br />

sou muito economista. Então fomos numa feira de adoção de animais e<br />

acabei gostando tanto de um cão, que adotamos um cão pra ela, um gato<br />

pra minha mulher e outro cão pra minha filha.”<br />

Sérgio A. de Oliveira<br />

“Como era bom brincar com ele e ouvir cada uma de suas bobagens!<br />

O seu jeito engraçado me inspira até hoje, quando tenho que fazer alguma<br />

coisa.<br />

Sempre que toco o berrante lembro dele, que se separou da sua<br />

floresta que tanto amava para ensinar dignidade nessa nossa terra onde<br />

quando o sol nasce é para evaporar petróleo no asfalto.<br />

Hoje sou fazendeiro. Aquele meu cão, o Roger já morreu, mas<br />

deixou crias. Meu pai já está bem velho e casado. Continuo solteiro e moro<br />

na minha casa junto com meus empregados.<br />

Sei que lá do alto ele olha por todos aqueles que um dia foram seus<br />

amigos. Por isso não vou decepcioná-lo, mês que vem é a exposição de<br />

gado e montaria em cavalos. O rodeio acabou depois que houve aquela<br />

confusão quando ele estava aqui. Foi feita uma lei pelo prefeito proibindo<br />

os rodeios por causa da situação em que os touros e cavalos eram mantidos.<br />

Agora a exposição de gado tem atraído muito mais pessoas! Tem show<br />

sertanejo, muita comida, barracas, artesanato, bebidas e a área é bem<br />

maior!<br />

Quando ele foi embora, a única coisa que guardei, e guardo até hoje<br />

é uma pena de sua asa, que infelizmente tive que cortar. Toda vez que vou<br />

fazer exibição com cavalo adestrado coloco a pena no chapéu pra dar<br />

sorte.”<br />

Artemísio Joaquim Stanislau P. Pedroso (Juca)<br />

118


“É de onde vem toda a inspiração para a vida! Excita-nos a treinar a<br />

alma no mais complexo sistema sentimental! Esperança corre pelas artérias<br />

como se fosse o próprio sangue!<br />

O orgulho por realizar nossas vontades! A liberdade! A luta pela<br />

realização dos sonhos, como se fossemos um cavalo errante tentando fugir<br />

das águas de uma correnteza.<br />

A porta dos sonhos está sempre aberta para qualquer um que queira<br />

entrar e ele ensinou isso muito bem! Existem pesadelos e sonhos<br />

tranquilos, e para que no final o resultado dos sonhos seja o melhor<br />

possível, a esperança deve estar sempre acesa em nossos corações. Ele que<br />

nos mostrou isso.<br />

Ele foi um aventureiro que correu o mundo! Não tinha medos e foi<br />

jogado no pior covil de lobos. Ele foi uma jóia bruta que o tempo lapidou à<br />

sua maneira sem conseguir roubar sua forma original.<br />

Seu coração guardava um dom jamais visto com tamanha intensidade<br />

nessa cidade, em pureza, saudade, esperança e amor.<br />

Era um filho da terra legítimo! Suas penas flutuariam com mais<br />

graça que o aguapé da lagoa aqui da roça.<br />

Assim meu pai o definiu quando estava vivo. Na verdade todos os<br />

animais aqui da roça já ouviram falar da vez que o papagaio virou uma<br />

pessoa e salvou os antigos animais que viviam aqui de um dono maldoso<br />

que batia e machucava os animais.<br />

Vejo muitos pássaros voando no céu, mas nunca vi um papagaio.<br />

Não sei, acho que eles devem ter se escondido na floresta.”<br />

Alasão Ferrugem, filho do alasão Eleu<br />

“Meu pai falava que o papagaio tinha uma força de vontade muito<br />

grande e tinha a inteligência de uma pessoa. Falou que uns homens<br />

mágicos o transformaram em um humano para que ele ajudasse a ele e<br />

outros touros e cavalos a fugir de um rodeio. Eu não entendi muito bem<br />

quando ele me explicou o que era um rodeio. Na verdade eu nunca vi um,<br />

mas pelo que ele contava, é algo que eu nunca vou querer saber o que é.<br />

Meu pai falou que o maior amigo que teve na vida, foi o tal<br />

papagaio. Disse que ele salvou sua vida e que se não fosse ele nunca teria<br />

vindo para essa fazenda e nem poderia ter dado crias, porque dizia que no<br />

rodeio os touros não tinham contato com as fêmeas, que ficavam presos o<br />

tempo todo, sendo preparados para as festas de rodeio, sempre com<br />

tratamento ruim para ficarem bravos.<br />

Certa vez ele falou que a ida do papagaio para a cidade foi como se a<br />

cidade provasse um copo de água limpa e estranhou, pois só sabia provar<br />

água poluída. Ele contava muitas piadas do papagaio Petrúcio também.<br />

119


Não entendo você vir aqui depois de tantos anos procurando saber<br />

dessa história. Bom, mesmo pra você, aqui é um lugar tão longe, mas bem,<br />

cada um com a sua mania. Espero que tenha uma boa viagem de volta!”<br />

Touro Zangado, filho do touro matador<br />

“Nosso bisavô falava que ele era incrível! Um professor de coragem<br />

e persistência que ensinava desde coisas banais como a respiração correta<br />

quando se está voando para evitar cansaço até coisas mais complicadas<br />

como a essência da força da natureza.<br />

A cena mais impressionante que ele disse que viu na vida foi uma<br />

briga contra um gato chamado Montanha no passado. Eu sou feliz porque<br />

nosso bisavô contou essa história pra gente, e se não fosse o papagaio<br />

Petrúcio nós nunca teríamos nascido.<br />

Os outros pardais todos conhecem a história dele. Dizem que ele não<br />

tinha dublê nos momentos de perigo, era ele que se machucava em cada<br />

aventura...tinha coragem!”<br />

Pardal Rufo, bisneto do pardal Rufino<br />

“Ele era uma criatura vinda da brisa, do vento de longe. Atravessou<br />

essa parte do mundo em um dia de verão em que o sol rachava o asfalto e<br />

os gatos queriam nos fazer malvadeza. Logo trouxe consigo uma grande<br />

quantidade de nuvens para refrescar em nós aquilo que precisávamos, que<br />

era justamente esperança. O rato Paraguaçu assim se referia a ele...dizia<br />

que sua voz era determinada.<br />

Não cheguei a conhecer o papagaio Petrúcio, na verdade por que<br />

você está perguntando sobre esse papagaio depois de tanto tempo?<br />

- Bom...eu só queria saber se ainda se lembravam da história do<br />

papagaio Petrúcio, só isso.<br />

Ah bom! Mas então: os outros ratos que moram lá para os lados da<br />

saída da cidade sabem mais coisas. Só o que eu sei é o que o Paraguaçu<br />

contava para os outros ratos, e o que os outros ratos contaram para seus<br />

filhos, e eles para os outros filhos e depois contaram para os meus avós.<br />

- Tudo bem!<br />

Ah, lembrei de uma coisa: uma vez um rato me disse que o Petrúcio<br />

falou para ele que ‘quando a chuva vai embora deixa nossas ruas molhadas<br />

e o sol resseca tudo outra vez.’<br />

- O que será que ele quis dizer com isso? (pensei comigo mesmo, se<br />

talvez tivesse falhado em alguma coisa).<br />

Não sei, mas é uma frase bonita!”<br />

Rato Berto<br />

“Essa história quem contou foi um curió chamado Tadeu. Era mais<br />

ou menos assim: ele foi um tema bonito para uma poesia que fala de paz e<br />

120


de guerra! Suas atitudes desvendaram o universo oculto de um grande<br />

mestre, que aprendeu com as marcas que a vida deixou.<br />

Era um companheiro nas horas tristes e nas horas felizes, nas tardes<br />

prazerosas e confortáveis e até mesmo nos momentos da noite! Suas<br />

atitudes revelaram um espírito forte em um corpo que era apenas mortal<br />

como o de qualquer vivente.<br />

O Tadeu dizia que o desejo dele era voltar aqui para a floresta e viver<br />

a sua vida. Dizia que ele era como uma planta indefesa que foi roubada da<br />

terra, arrancada pelas mãos dos homens para satisfazer o desejo deles.<br />

Disse que ele todos os dias ia ver um antigo peixe que viveu num dos<br />

lagos da floresta, e que esse peixe era o único peixe que havia no lago. Que<br />

quando o papagaio Petrúcio foi embora o peixe ficou tão triste que o Boto<br />

teve que trazer mais peixes de outros lagos para fazerem companhia para<br />

ele.<br />

Os mais antigos falavam que quando o papagaio voltou para cá e<br />

morreu ali mesmo naquele lugar onde está o girassol, o Tadeu ficou o resto<br />

do dia cantando no mesmo galho, de tristeza. Disseram que o canto dele era<br />

tão triste que até as flores murcharam naquele dia.<br />

Disseram que depois que parou de cantar nunca mais cantou, até o<br />

dia de sua morte.”<br />

Curió Ji<br />

“Eu vi surgir do céu um anjo protetor! Brilhava como se fosse uma estrela<br />

e não possuía medos. Era uma estrela que não pertencia a nenhuma<br />

constelação.<br />

Mesmo sob a luz do sol todos podiam enxergar esta estrela.<br />

Por pouco tempo, e o céu levou o que era seu por direito: a sua<br />

estrela cadente, que veio à terra ensinar coragem e esperança.”<br />

Canário-da-terra João<br />

“Elas falavam que ele era um anjo lindo!<br />

Sabe, aquilo que provocamos com o toque das patas, como quando<br />

tocamos na água? Forma ondas e elas começam pequeninas, mas vão<br />

crescendo cada vez mais até chegar do outro lado da lagoa.<br />

Disseram que a alma dele era pura que já viram! Que ele tinha uma<br />

espécie de ligação com as árvores e com os animais.<br />

Uma delas disse que gostaria de se encontrar com ele numa próxima<br />

vida. Não sei muito, afinal nós jandaias voamos em grupo só dos parentes<br />

mesmo, não nos juntamos com as jandaias dos outros grupos.<br />

Bom, agora deixa eu ir que as outras estão se divertindo e quero fazer<br />

barulho também!”<br />

Jandaia Crica<br />

121


“Era uma dádiva da vida! Dá-se ao vento uma vez a cada grande<br />

intervalo de tempo...ao vento que corre pelas campinas com o aroma<br />

sublime da relva esverdeada, que carrega para outras matas o perfume dos<br />

lírios de cá. Lá onde vivem animais desconhecidos, porém vai corajoso o<br />

aroma que é filho da terra, tendo à frente uma vida de descobertas.<br />

Já pôde viver o nascimento do fruto silvestre, porque não se prende<br />

mais às suas raízes, exceto pela saudade que sente aquele que muito amou<br />

este lugar, cujas imagens jamais se apagaram, nem pelas marcas da vida,<br />

nem pelas folhagens secas de muitas primaveras!<br />

- Tio, que criatura é essa do lado de fora da água? É diferente dos<br />

animais daqui!<br />

Calma crianças. Ele é amigo de um amigo do peixe Vernacleto.”<br />

Boto, em palavras do peixe Vernacleto<br />

“Tudo o que eu poderia falar sobre ele todo mundo já sabe, pois o<br />

conto do papagaio Petrúcio é conhecido em todo o país, tanto nas florestas<br />

quanto nas cidades dos homens. Mas o que ninguém sabe é que antes de<br />

voltar, ele chamou meu pai em particular e pediu pra ser amigo do<br />

Vernacleto. Para ir lá pelas manhãs para conversar com ele um pouco.<br />

Petrúcio o achava engraçado e achou que isso faria bem ao seu amigo<br />

peixe.<br />

Ele disse que ia lá pelas manhãs, sempre que dava, conversava um<br />

pouco com ele, bicava umas árvores e até jogava algumas larvas para ele.<br />

Depois que apareceram outros peixes para ficarem com ele, ele parou<br />

de ir lá, afinal ele estava bem com os da sua espécie.<br />

Depois de um tempo acabou se distanciando um pouco da floresta.<br />

Foi procurar novos ambientes...<br />

Encontrou um parque florestal com árvores que eu achava mais<br />

agradáveis que as da floresta, aqui ele encontrava mais comida e passou a<br />

viver aqui. Procriou e teve várias crias que foram se espalhando pelo<br />

parque florestal e por outros lugares.”<br />

Jack, filhote do pica pau Jackson<br />

“Há tempos brotou da terra um novo fruto amado, forte igual à<br />

palmeira, valente como os ferozes animais da mata!<br />

Seu tronco foi castigado com o serrote e o machado. Infelizes<br />

aqueles que tentaram consumir seu tronco, e perderam dias e meses,<br />

perderam anos.<br />

Nada se compara à vontade de crescer, e me orgulho disso. Ele a<br />

executou de uma forma que nenhum de nossos ancestrais havia conseguido<br />

antes. Sofreu tanto o meu filho preferido em sua vida para ensinar a duas<br />

selvas diferentes o valor da honra e da esperança.<br />

122


Caiu um dia a indomável palmeira já sem oponentes...mesmo o<br />

machado, mesmo a serra, mesmo o homem da cidade...exceto pelas mãos<br />

do tempo, no mesmo lugar que nasceu.<br />

Orgulho-me de ter presenciado o nascimento! Ele sempre foi o meu<br />

preferido por ser tão parecido comigo.”<br />

Papagaio Lori, pai<br />

“Agora ele está descansando e a sua alegria será eterna!<br />

Fico triste ao lembrar do inocente desprezo ao ver que ele não tinha a<br />

mesma saúde e as penas dos outros.<br />

Lembro de um conto que um outro papagaio contava de um bichinho<br />

órfão que foi achado por uma pata, que era feio e os outros patos riam dele,<br />

mas que virou um cisne muito bonito quando cresceu.<br />

Eu tenho orgulho. Muitas lágrimas derramei quando foi roubado da<br />

floresta, sofri, e então desgostei um pouco da vida, ao te ver voltar, voltei a<br />

ter a esperança, e vendo-o morrer penei por muito tempo!”<br />

Papagaia Dria, mãe<br />

“Desde pequena, meu pai contava a história do meu tio avô. Nunca<br />

chegou a conhecê-lo, mas nosso avô foi salvo por ele, quando foi capturado<br />

aqui na floresta e levado para a cidade.<br />

Como se fosse alguma coisa de descendência, eu também nasci com<br />

uma pequena falta de penas na cabeça. Isso sempre foi um grande motivo<br />

de orgulho do meu avô.<br />

Não sei se você vai conseguir conversar com ele porque hoje ele<br />

mora do outro lado da floresta porque minha avó já morreu e ele nunca<br />

mais arrumou outra namorada, então foi morar com os papagaios que<br />

moram do outro lado, mas lá é muito difícil de chegar!”<br />

Papagaia Acca<br />

- Acho que você já perguntou para muitos não?<br />

Sim, na verdade eu já ouvi muitas histórias interessantes!<br />

- Imagino! Todos gostavam muito do papagaio Petrúcio!<br />

É verdade meu caro amigo!<br />

Petrúcio é uma espécie rara de homem! Alguém que sofreu as piores<br />

influências possíveis por parte das pessoas que o rodearam: primeiro seu<br />

sequestro pelos dois homens; depois de um tempo veio a indiferença do<br />

menino Serginho e as atitudes das pessoas da casa; Gilmar e Nestor;<br />

Adamastor, pai do Juquinha; piratas; o milionário Cristóvão; as pessoas da<br />

cidade que gostavam de pássaros presos em gaiolas.<br />

O Petrúcio tinha contato com tudo isso, recebia essa influência o<br />

tempo todo, tanto é que seu modo de ser guardava o maquiavelismo e o<br />

impulso vingativo desses personagens! Herdou dos dois ladrões a<br />

123


habilidade com as palavras grotescas e certas malandragens, pouco<br />

admiráveis!<br />

Talvez tenha sido esta floresta a principal responsável pelo seu bom<br />

caráter. Dizem que quando um animal nasce, acredita que a primeira coisa<br />

que vê é sua mãe, e no caso dele, pelo que fiquei sabendo, contado por ele<br />

mesmo, foi que a primeira imagem que viu na vida foi a claridade do lado<br />

de fora do ninho e as folhas das árvores. O papagaio presenciou a beleza da<br />

relva e as maravilhas do companheirismo! Ficou amigo de um peixe que<br />

vivia no lago aqui na floresta, seu primeiro grande amigo; salvou o canárioda-terra<br />

João de uma armadilha quando era apenas um filhote, nas folhas de<br />

um ipê, e ele vive até hoje aqui na mata. Acredito que isso marcou demais<br />

o pequeno papagaio Petrúcio, e todas as boas coisas que presenciou falaram<br />

mais alto, impedindo que a ave se tornasse corrupta na cidade grande.<br />

- É verdade! O dia que ele voltou eu não cheguei a tempo de vê-lo,<br />

estava ocupado afugentando alguns caçadores lá perto do terreno dos<br />

índios. Quando cheguei ele já havia falecido.<br />

Petrúcio recusou um convite de permanecer na cidade e viver como<br />

ser humano. Teria riqueza, fama. Isso tudo aconteceu no julgamento do pai<br />

do Juquinha, eu conversei com ele no corredor, antes dele deixar o fórum e<br />

fiquei extremamente irritado após ele dizer que iria voltar para a floresta.<br />

Nem percebi o que aconteceu do lado de fora. A transformação que eu fiz<br />

estava prestes a acabar e a vontade dele acelerou ainda mais o processo.<br />

Eu o testei ao transformá-lo em pessoa só para ter a certeza de que<br />

ele seria corrompido pelo sistema, pela ambição, mas eu estava errado. O<br />

Petrúcio pertencia à floresta e os animais jamais serão como os homens. Os<br />

homens pecam contra a sua existência, contra os seus semelhantes, deixam<br />

à mercê da sorte os menos favorecidos, o Petrúcio ao contrário tudo o que<br />

fez foi querer ajudar a todos os animais, não buscou nada para si, apenas<br />

para os outros.<br />

A última vez que o vi respirando foi em sua retirada triunfante da<br />

cidade, naquela velha gaiola, quando vários animais o saldavam. Eu estava<br />

um pouco ocupado e nem pude ir ao seu encontro. Estava tratando de<br />

assuntos urgentes, mas pude vê-lo da janela do prédio onde eu estava.<br />

Depois disso andei um pouco ocupado resolvendo assuntos pessoais<br />

e, quando eu fiquei sabendo o que havia acontecido quando ele chegou aqui<br />

fiquei muito chateado! Então decidi procurar as criaturas que tiveram<br />

algum contato mais intenso com ele para ver o que descobria. Vaguei por<br />

muitos lugares! Várias partes do estado, então hoje eu pude vir até a<br />

floresta e saber mais sobre a morte dele.<br />

Vi que o girassol que nasceu no lugar é realmente imenso! Eu até<br />

peguei esta semente, veja...<br />

Eu nunca pude compreender a natureza do Petrúcio, o que sentia ao<br />

recordar sua morada. Sou somente um vulto do fim dos dias e à meia-noite<br />

124


passo pelas ruas da cidade, eu não sou o eco de uma voz diferente, sou<br />

não...<br />

Enfim, a história termina onde começou. Este não é o mais<br />

romântico dos finais de história? Um viajante que retorna à sua casa?<br />

- Não, não é...ainda mais da forma que aconteceu.<br />

Eu sei meu amigo Curupira, mas não se esqueça que a esperança não<br />

deve morrer jamais!<br />

Saudações aos animais da floresta e à essência da vida que há neste<br />

lugar!<br />

Vitor Moreira, autor<br />

125


Capítulo 8<br />

Muitas vezes temos o poder de evitar que as coisas ruins aconteçam,<br />

mas somos tão impacientes em apenas pensar nos nossos interesses que<br />

deixamos de dar valor a coisas que são muito importantes para alguém ou<br />

para muitas formas de vida.<br />

Nós construímos o nosso universo! Não importa o quanto as coisas<br />

sejam difíceis, depende de nós mesmos mover as dificuldades para<br />

alcançarmos as nossas intenções.<br />

Forma-se a chuva na floresta, e estão presentes os raios...<br />

- E para onde você vai agora?<br />

Não sei Curupira. Conversei com muitas pessoas, animais...sabe,<br />

desde que isso tudo aconteceu eu me sinto um pouco culpado. Eu devia<br />

estar lá o tempo todo, mas acabei tendo alguns imprevistos. Estou voltando<br />

para a cidade, não quero mais incomodar e essa chuva está muito forte!<br />

- Acalme-se! Determinadas vezes nem mesmo o destino pode ser<br />

mudado.<br />

Não...você está errado! Nós podemos sim mudar o nosso destino! A<br />

infelicidade pode se converter até mesmo na felicidade plena! O fim é o<br />

começo, a vida se renova, o amor supera todos os limites! Chega...<br />

- O que está fazendo?<br />

Vê: essa semente de girassol? Pois bem, pode muito bem ser a<br />

semente da vida!<br />

126


Uma simples semente, perseverante contra todas as adversidades é<br />

capaz de sozinha transformar um deserto em um jardim ou floresta, como<br />

eu disse antes, o amor supera todos os limites!<br />

“Então ele jogou a semente de girassol para o alto e um raio a<br />

atingiu. Então uma pequena luz verde suspensa no ar foi caindo em direção<br />

a uma árvore. Olhei para a saída da floresta e ele caminhava rapidamente,<br />

até sumir em forma de vulto, se protegendo da chuva. Fui ver o que era a<br />

semente, mas uma papagaia começou a gritar. A luz verde parecia ter caído<br />

em seu ninho e ela protegia como se fosse um filhote. Deixei-a em seu<br />

ninho e saí dali para espantar os caçadores e madeireiros.”<br />

***<br />

“Amor! Sentimento tão grandioso que se multiplica dentro de cada<br />

um de nós como semente de girassol produzida pela perfeição da natureza,<br />

e que gera novas folhas e sementes. Amor é como grão solitário que se bem<br />

regado pelas águas da felicidade, tal qual as flores pela chuva da primavera,<br />

é capaz de transformar desertos secos, de solo rachado, em florestas<br />

repletas de vida, e cobrir de flores coloridas as pedras cinzentas repletas de<br />

tristeza e solidão.<br />

Todos nós, independente da espécie, temos o poder de lutar pelo<br />

amor, não o amor limitado aos nossos semelhantes, mas um amor de tal<br />

forma incondicional, capaz de mudar no coração dos homens mais<br />

perversos o ódio, transformando em luz, não importando o quanto tudo seja<br />

difícil! Esse é o sentido das nossas vidas, justamente lutar com bom ânimo<br />

eterno por aquilo que nos fará feliz. Tendo esperança, podemos mover um<br />

universo inteiro, retirar as pedras do caminho e atravessar oceanos de águas<br />

turbulentas.<br />

Vida! Bem tão precioso que tivemos o prazer de experimentar na<br />

complexa experiência da criação do universo! Somos privilegiados por essa<br />

dádiva, mas nem todos sabem dar o valor adequado a esse momento, e<br />

acabam por subtrair da perfeição da vida em harmonia o equilíbrio, a paz e<br />

continuidade de tudo aquilo que a natureza criou. Existe infelicidade<br />

porque nem todos têm o amor, há os frutos estragados no seio da terra, e<br />

esses tentam com a sua falta de amor contaminar os bons frutos, tirando<br />

deles a felicidade. A vida é bonita, pois existe luta e esforço, tudo que se<br />

faz na vida se torna lembrança e experiência. Há os momentos de dor e os<br />

momentos de riso.<br />

Porém enquanto existir esperança sempre haverá o amor, e há de<br />

prevalecer contra toda a maldade do mundo.<br />

Somos como as gotas da chuva, que caem do céu num mergulho da<br />

divina providência para a continuidade da vida. Nós damos as nossas vidas<br />

a cada instante para que haja continuidade...<br />

127


Foi em um dia de chuva na floresta que eu nasci. Havia barulho e<br />

luzes no céu cortando o ar, bruscamente chegavam à mata e quebravam<br />

galhos de imensas árvores. O vento soprava lá fora e algumas gotas de<br />

chuva molhavam as costas de meu pai que protegia a entrada do buraco<br />

feito na árvore, no tronco da árvore, onde cada pedacinho de terra foi<br />

retirado por eles para que pudéssemos nascer.<br />

Mal podia abrir os olhos e meu bico era frágil, mole. Eu podia<br />

enxergar o vulto dele lá naquela entrada, era uma imagem cinzenta através<br />

da membrana fina dos olhos. Tremia mas olhava atento e sem demonstrar<br />

fraqueza para o interior do buraco onde nós dois estávamos, aquela criatura<br />

verde e eu. Quando pude ver com mais nitidez vi que era um pássaro verde,<br />

um papagaio, e a criatura que me cobria era uma papagaia. Eu era um<br />

papagaio.<br />

Meu corpo não tinha forças e estava quente embaixo daquelas penas.<br />

Não sei, mas de alguma forma parecia que tudo aquilo já havia acontecido<br />

antes comigo. A primeira vez que pude olhar para o lado de fora do ninho<br />

feito no buraco da árvore, parecia que eu já conhecia cada pedacinho<br />

daquele imenso lençol verde de árvores, folhas, frutos.<br />

Um lugar que certamente irei amar por toda a vida e será a minha<br />

casa!”<br />

Fim!<br />

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