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1999_Luzes-ApostoloPulchrum

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LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

valores que a Escadaria Dourada exprime de modo extraordinário.<br />

A elevação se manifesta, por exemplo, na disposição<br />

das janelas cegas e das portas ao longo de um muro<br />

muito alto, formando uma linha perpendicular tão ascendente<br />

que, para a limitação do campo visual de<br />

quem a observa, ela como que se perde numa região superior,<br />

digamos o “céu” da atenção humana.<br />

Essa linha vertical fica assegurada por uma obra-prima<br />

de equilíbrio, composta de dois elementos. Em primeiro<br />

lugar, as janelas cegas atenuam o que a parede<br />

talvez tivesse de muito pesado, ou de muito liso e enfadonho.<br />

E depois, a força e o vigor da porta, que parece<br />

sustentar o bem-proporcionado de todo o conjunto.<br />

A nota de coerência, por sua vez, surge no moucharabié,<br />

todo ele feito de harmonias correlatas, que dão<br />

idéia de lógica, estabilidade e coesão. O teto, o corpo e<br />

a base, amparados por uma maravilhosa peanha — verdadeira<br />

obra de arte, com seus lavores que parecem<br />

rendas de pedra — formam uma linda e suave harmonia.<br />

Como harmônicas são também as duas extremidades<br />

simétricas, confinando ambas com as rampas laterais.<br />

Esse moucharabié assim concebido é rico em sugestões<br />

que se desdobram, como se fossem grandes leques<br />

de conseqüências, que acabam se fechando no mesmo<br />

ponto de onde partiram. Quer dizer, as harmonias brotam<br />

dele e para ele voltam, como de um rio sairiam dois<br />

afluentes os quais, chegados a um extremo, começam a<br />

retornar para a via essencial. E nisso temos então realçada<br />

a nota de coerência.<br />

Depois, como ponto terminal da escada, uma magnífica<br />

manifestação de certeza. Quando se esperaria que<br />

fosse morrer de modo comum e trivial, ela como que<br />

ressurge e se estende em movimentos diversos. O seu<br />

fecho, com os dois braços ou corrimões, é uma espécie<br />

de afirmação fundamental, é a última conseqüência, segura<br />

e proclamativa. É o ápice da harmonia: a leveza e a<br />

força, o compacto e o filigranesco extraordinários!<br />

E o hierático. As figuras dos dragões parecem pensar<br />

e dizer: “Isto é assim mesmo, e nós atacamos quem o<br />

negar!” Dir-se-ia a robustez e a vigilância a serviço da<br />

elevação e da coerência...<br />

<br />

Por outro lado, o mesmo moucharabié dá a idéia de<br />

enquadrar algo mais delicado e mais interno. Ele tem<br />

seu segredo. É como que um sacrário. Sua porta, esguia<br />

e linda como peça arquitetônica, ladeada por figuras esculpidas<br />

que lhe constituem magnífica moldura, parece<br />

abrir para um corredor profundo, que se perde além. É<br />

o senso do mistério, presente em tantas e tão esplendorosas<br />

obras de arte.<br />

Alguém poderia me dizer: “Mas, Dr. Plinio, essa é a<br />

porta da rua!”<br />

Pouco importa. Para o olho humano, a arquitetura<br />

comporta também essas simbologias. E, a meu ver, mais<br />

uma vez temos aqui um superior exemplo de coerência<br />

e elevação, magnificamente expressas no conjunto desse<br />

moucharabié.<br />

<br />

A gravura retrata um aspecto muito bonito, que é a<br />

pequena vida de todos os dias ao pé do monumento.<br />

Então são duas mulheres, meio latinas, meio mouras,<br />

que se dirigem para os degraus; é um homem cheio de<br />

vitalidade e decisão, subindo a escada, ou um casal que<br />

por ali passeia e conversa calmamente. São dois fidalgos,<br />

compondo a cena com a riqueza de seus trajes e o<br />

luzir de suas espadas; é um fiel que se aproxima da pia<br />

de água benta, enquanto uma mulher ao mesmo tempo<br />

reza e descansa, observando outro grupo de pessoas<br />

que trocam idéias junto à imponente escadaria.<br />

Esta visão nos conduz aos adornos do monumento,<br />

igualmente belos. Vale notar que toda a ornamentação<br />

visa ao gracioso, e compensa o que o grandioso teria<br />

por demais de severo. Não se vê aí um enfeite o qual,<br />

exceção feita dos dragões, não seja tão ameno que quase<br />

convide ao sorriso. Há, por exemplo, uma espécie de<br />

concha, soberba, cuja singeleza de linhas compensa o<br />

que ela tem de extremamente trabalhado. É a graça<br />

suavizando a severidade da grandeza...<br />

<br />

Uma última consideração. Dir-se-ia que essa construção,<br />

na qual se misturam estilos da Renascença e aspectos<br />

mouriscos, é o contrário do gótico. Entretanto,<br />

as ogivas da parede lateral se harmonizam de tal maneira<br />

com o conjunto da escada que são indispensáveis<br />

para compor o quadro.<br />

De fato, embora as decorações e os desenhos sofram<br />

influências renascentistas e árabes, o espírito inspirador<br />

dessa obra de arte ainda é o gótico. A nota ogival é a<br />

que nela predomina. O moucharabié, por exemplo, poder-se-ia<br />

chamar “variações dentro de uma ogiva”.<br />

Além do mais, o fator coerência de que acima falávamos,<br />

presente em todo o conjunto, é também muito<br />

próprio da arte ogival e, portanto, gótica. Como lhe é<br />

igualmente própria, na decoração, uma certa leveza, a<br />

mesma que se acha difusa nesse monumento. Assim,<br />

encontramos o casamento do gótico com a Escadaria<br />

Dourada. Obra que reputo uma verdadeira magnificência!<br />

<br />

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