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LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
valores que a Escadaria Dourada exprime de modo extraordinário.<br />
A elevação se manifesta, por exemplo, na disposição<br />
das janelas cegas e das portas ao longo de um muro<br />
muito alto, formando uma linha perpendicular tão ascendente<br />
que, para a limitação do campo visual de<br />
quem a observa, ela como que se perde numa região superior,<br />
digamos o “céu” da atenção humana.<br />
Essa linha vertical fica assegurada por uma obra-prima<br />
de equilíbrio, composta de dois elementos. Em primeiro<br />
lugar, as janelas cegas atenuam o que a parede<br />
talvez tivesse de muito pesado, ou de muito liso e enfadonho.<br />
E depois, a força e o vigor da porta, que parece<br />
sustentar o bem-proporcionado de todo o conjunto.<br />
A nota de coerência, por sua vez, surge no moucharabié,<br />
todo ele feito de harmonias correlatas, que dão<br />
idéia de lógica, estabilidade e coesão. O teto, o corpo e<br />
a base, amparados por uma maravilhosa peanha — verdadeira<br />
obra de arte, com seus lavores que parecem<br />
rendas de pedra — formam uma linda e suave harmonia.<br />
Como harmônicas são também as duas extremidades<br />
simétricas, confinando ambas com as rampas laterais.<br />
Esse moucharabié assim concebido é rico em sugestões<br />
que se desdobram, como se fossem grandes leques<br />
de conseqüências, que acabam se fechando no mesmo<br />
ponto de onde partiram. Quer dizer, as harmonias brotam<br />
dele e para ele voltam, como de um rio sairiam dois<br />
afluentes os quais, chegados a um extremo, começam a<br />
retornar para a via essencial. E nisso temos então realçada<br />
a nota de coerência.<br />
Depois, como ponto terminal da escada, uma magnífica<br />
manifestação de certeza. Quando se esperaria que<br />
fosse morrer de modo comum e trivial, ela como que<br />
ressurge e se estende em movimentos diversos. O seu<br />
fecho, com os dois braços ou corrimões, é uma espécie<br />
de afirmação fundamental, é a última conseqüência, segura<br />
e proclamativa. É o ápice da harmonia: a leveza e a<br />
força, o compacto e o filigranesco extraordinários!<br />
E o hierático. As figuras dos dragões parecem pensar<br />
e dizer: “Isto é assim mesmo, e nós atacamos quem o<br />
negar!” Dir-se-ia a robustez e a vigilância a serviço da<br />
elevação e da coerência...<br />
<br />
Por outro lado, o mesmo moucharabié dá a idéia de<br />
enquadrar algo mais delicado e mais interno. Ele tem<br />
seu segredo. É como que um sacrário. Sua porta, esguia<br />
e linda como peça arquitetônica, ladeada por figuras esculpidas<br />
que lhe constituem magnífica moldura, parece<br />
abrir para um corredor profundo, que se perde além. É<br />
o senso do mistério, presente em tantas e tão esplendorosas<br />
obras de arte.<br />
Alguém poderia me dizer: “Mas, Dr. Plinio, essa é a<br />
porta da rua!”<br />
Pouco importa. Para o olho humano, a arquitetura<br />
comporta também essas simbologias. E, a meu ver, mais<br />
uma vez temos aqui um superior exemplo de coerência<br />
e elevação, magnificamente expressas no conjunto desse<br />
moucharabié.<br />
<br />
A gravura retrata um aspecto muito bonito, que é a<br />
pequena vida de todos os dias ao pé do monumento.<br />
Então são duas mulheres, meio latinas, meio mouras,<br />
que se dirigem para os degraus; é um homem cheio de<br />
vitalidade e decisão, subindo a escada, ou um casal que<br />
por ali passeia e conversa calmamente. São dois fidalgos,<br />
compondo a cena com a riqueza de seus trajes e o<br />
luzir de suas espadas; é um fiel que se aproxima da pia<br />
de água benta, enquanto uma mulher ao mesmo tempo<br />
reza e descansa, observando outro grupo de pessoas<br />
que trocam idéias junto à imponente escadaria.<br />
Esta visão nos conduz aos adornos do monumento,<br />
igualmente belos. Vale notar que toda a ornamentação<br />
visa ao gracioso, e compensa o que o grandioso teria<br />
por demais de severo. Não se vê aí um enfeite o qual,<br />
exceção feita dos dragões, não seja tão ameno que quase<br />
convide ao sorriso. Há, por exemplo, uma espécie de<br />
concha, soberba, cuja singeleza de linhas compensa o<br />
que ela tem de extremamente trabalhado. É a graça<br />
suavizando a severidade da grandeza...<br />
<br />
Uma última consideração. Dir-se-ia que essa construção,<br />
na qual se misturam estilos da Renascença e aspectos<br />
mouriscos, é o contrário do gótico. Entretanto,<br />
as ogivas da parede lateral se harmonizam de tal maneira<br />
com o conjunto da escada que são indispensáveis<br />
para compor o quadro.<br />
De fato, embora as decorações e os desenhos sofram<br />
influências renascentistas e árabes, o espírito inspirador<br />
dessa obra de arte ainda é o gótico. A nota ogival é a<br />
que nela predomina. O moucharabié, por exemplo, poder-se-ia<br />
chamar “variações dentro de uma ogiva”.<br />
Além do mais, o fator coerência de que acima falávamos,<br />
presente em todo o conjunto, é também muito<br />
próprio da arte ogival e, portanto, gótica. Como lhe é<br />
igualmente própria, na decoração, uma certa leveza, a<br />
mesma que se acha difusa nesse monumento. Assim,<br />
encontramos o casamento do gótico com a Escadaria<br />
Dourada. Obra que reputo uma verdadeira magnificência!<br />
<br />
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