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<strong>Orion</strong> é um fanzine de sci-fi e Fantasia com a uma<br />
versão electrónica (web) e uma impressa (apenas<br />
para os colaboradores)<br />
Coordenação e edição: Renato Abreu<br />
Colaboração neste número: Renato Abreu, Nuno<br />
Russo, Daniel Maia, José de Matos-Cruz, Sofia<br />
Gonçalves Lobo<br />
Mail: Zorion@sapo.pt<br />
Acesso á versão electrónica:<br />
https://zorion2.wixsite.com/website<br />
Facebook (com informação sobre as colaborações e<br />
autores): https://www.facebook.com/Zorion-<br />
257337514876298/<br />
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Silêncio<br />
Sofia Guilherme Lobo<br />
Nasci no silêncio, um mundo de imagens sem sons, gestos a imitar<br />
palavras, uma dança simbólica plena de significado. Um silêncio eterno,<br />
etéreo, glorioso em todo o seu esplendor. Nasci no espaço, o meu<br />
silêncio, a mão que embalava o meu berço, em suaves ondas<br />
melancólicas de plena felicidade. No espaço não há cima , ou baixo; não<br />
há frio ou calor, não há multidões, não há sons...<br />
Vejo minha mãe a dançar, ela dançava muito, no silêncio, com o<br />
meu pai, rodopiando nos corredores vazios, o meu pai ajudava-a a<br />
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voar, e nós, eu e meus irmãos, seguíamos atrás. Às vezes íamos lá<br />
para fora e, entre as altas velas, continuávamos a dançar, um ritual<br />
de adoração à eternidade.<br />
No espaço não há tempo, não é contado, não há pressa , não<br />
vamos a lado algum, não temos horário, seguimos o nosso ritmo,<br />
parado, lento, um ritmo cheio de descobertas, complementado com<br />
novos significados. No silêncio, não há espera, não há desejos,<br />
ansiedade, em tudo há uma paz inexplicável, uma união plena com<br />
o mistério do universo, a última grande fronteira.<br />
No espaço, não há outros, apenas nós. Um dia vieram outros. O<br />
mundo dos outros era diferente, não tinha velas, a ausência dos<br />
altos mastros era uma novidade para mim, o mundo deles era<br />
gigante, tão grande como uma pequena lua, ruidosa e frenética. Eles<br />
desconheciam o silêncio e eu lamentei-os, que estranha existência.<br />
A nossa nave entrou no seu interior, o encontro estava marcado.<br />
- Vamos entregar os novos mapas e reabastecer. – explicou o<br />
meu pai. – Não te preocupes Natal, nós não vamos sair e eles não<br />
vão entrar.<br />
Não compreendi porque não podíamos entrar naquele mundo<br />
diferente do nosso. Aquele mundo não era assim tão grande tendo<br />
em conta o número de pessoas que ali viviam, compartilhando o<br />
mesmo espaço. Centenas delas, muito barulhentas, falavam muito,<br />
palavras sem sentido, frases inúteis, sem explicação. Porque<br />
precisavam de falar tanto? Eu não precisava de explicar a minha<br />
mãe o que precisava, ela sabia sempre o que e quando. Quando<br />
estava triste, quando estava contente, quando tinha fome, quando<br />
tinha sede, quando queria saber alguma coisa. No nosso mundo não<br />
precisávamos de todas aquelas palavras, sabíamos sempre o que<br />
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fazer, quando, onde e como, bastava um olhar, um gesto, um<br />
sorriso, um toque, um rodopio nos corredores, uma festa entre os<br />
mastros, onde o único som era o nosso próprio riso de tanta<br />
felicidade. Aqueles sons todos eram uma novidade, uma tentação<br />
que desconhecia, como quando descobríamos uma nova estrela ou<br />
uma nova galáxia e era atraída por ela, para o desconhecido ainda<br />
para descobrir, e como uma nova descoberta qualquer, parti em<br />
busca dela, afundei-me naquele movimento frenético de gentes de<br />
falas rápidas, sempre a correr, tudo a mim me espantava. Então,<br />
algo quebrou o encanto, entre aquela cortina de corpos gritando,<br />
correndo, apanharam-me, pegaram-me ao colo. Erguendo-me até<br />
aos seus olhos. Tinha uns olhos lindos, castanho-avelã, um rosto<br />
moreno, tão escuro, comparado com a cor da minha pele, muito<br />
rosada, limpa e imaculada. Sorria encantador.<br />
- Olá Natal! – Disse ele. – Que fazes aqui? Não devias ter saído<br />
do barco, este lugar não é muito bom para ti. Vamos voltar? A tua<br />
família deve estar preocupada.<br />
- Como te chamas? – Perguntei curiosa.<br />
- Raul.<br />
- Raul...-saboreia o nome. Um nome, não um número. No meu<br />
mundo tínhamos números, inventávamos os nomes quando<br />
queríamos uns dias chamava-me Ana, outros Diana, outros, Maria;<br />
naqueles dias, era Natal, porque diziam que era Dezembro e em<br />
Dezembro havia um dia chamado Natal.<br />
O meu mundo era um barco, fôra o que ele chamara. Mas não é<br />
um barco, é a Viper! O que é um barco?<br />
Enquanto me levava para a Viper, ele não explicava o que era<br />
um barco, porque é que não dizia? Não entendia a minha dúvida?<br />
Então compreendi, eles falavam muito porque tinham necessidade de<br />
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comunicar, eram muitos cada um no seu próprio mundo.<br />
Interagiam como autómatos.<br />
- Lamento muito. – Disse triste.<br />
- O que lamentas?<br />
- Estares sozinho.<br />
-Eu não estou sozinho. Estou bem acompanhado, neste momento<br />
por ti. Olha, estamos a chegar!<br />
O barco. Minha mãe sabia o que era um barco, um mundo<br />
antigo construído pelos primeiros cartógrafos, navegadores de outro<br />
universo a que chamavam de mares e ela mostrou-me esses mares,<br />
um átomo comparado com o nosso. A Viper não era uma barco,<br />
assim que pude procurei outra vez Raul para lhe explicar o que era<br />
um barco. Ele não devia saber, para ter usado esse termo de<br />
comparação.<br />
Desta vez fui eu que o encontrei, num lugar a que chamavam<br />
ginásio, onde estavam muitos homens a trabalhar com máquinas.<br />
Máquinas pesadas, suavam e faziam caretas enquanto os músculos<br />
do corpo protestavam com aquele esforço anormal. Porque faziam<br />
eles aquilo? Raul era um deles, deitado numa maca, mãos elevavam<br />
e baixavam uma barra com pesos nas pontas. Levantou a barra e eu<br />
peguei nela e pousei-a no descanso. Raul olhou para as mão vazias ,<br />
voltou-se e viu-me. Confusão, surpresa.<br />
- Natal! Não te disseram para não saíres do barco?<br />
- Tu disseste. – Corrigi.<br />
- Não voltes a fazer isso!<br />
Limpou o suor da testa com uma toalha, peguei outra vez nos<br />
pesos, para os sentir. Não eram muito pesados, em alta aceleração<br />
suportava pesos maiores sem grande esforço. Voltei a coloca-lo no<br />
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descanso.<br />
- Pensei que fosse mais pesado. – Disse.<br />
- Para ti pode não ser, para mim é.<br />
- Porquê?<br />
- És uma nascida no espaço, foste gerada e criada em alta<br />
gravidade. Por isso, és mais forte.<br />
- O que é ser mais forte?<br />
- Para nascida no espaço falas muito! – Exclamou.<br />
- Se eu não falar, não me compreende. É por isso que são tão<br />
barulhentos.<br />
- Barulhentos? Nós?<br />
- Ch... – fiz encostando um dedo aos lábios. – Ouve!<br />
Durante alguns segundos ele calou-se e ouviu com atenção. O<br />
som das máquinas, uma enchente a falar ao mesmo tempo, palavras<br />
soltas aqui e ali, ruído de fundo. Era isso, estática de um rádio mal<br />
sintonizado. Era isso o que eu ouvia.<br />
- Natal, não é ruído, é a maneira de nós comunicar-mos.<br />
- Se tens dor, precisas de dizer que sofres. - Lamentou<br />
- É verdade. Nós somos diferentes, por isso não nos<br />
misturarmos, por isso não podes sair do barco. Este mundo é mau<br />
para ti. Podes ficar doente.<br />
- Levas-me ao colo?<br />
- Levo.<br />
Lá voltei eu outra vez para o barco ao colo. Raul não foi logo<br />
embora, mostrei-lhe o meu mundo e dancei para ele como minha<br />
mãe dançava para o meu pai. Raul ria, os olhos dele riam, o seu riso<br />
era a minha música.<br />
Não voltei a sair do barco. Raul voltou para me ver dançar . No<br />
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arco não precisávamos de falar, eu compreendia-o e ele<br />
compreendia-me. Às vezes pegava-me ao colo e rodopiava comigo,<br />
era feliz e eu era feliz com ele. Mas o dia da partida estava próximo<br />
, meus pais acabavam os últimos mapas, Raul veio para se despedir<br />
mas eu não estava lá para ele.<br />
Tinha doze anos e vivia o meu primeiro amor. Meu coração<br />
chorava e minha mãe, no meu quarto, embalava-me ternamente,<br />
beijava-me o rosto molhado pelas lágrimas , num silêncio que<br />
nunca poderia compartilhar com Raul.<br />
Os anos passaram, com o tempo, voltei a dançar, encontramosnos<br />
com outros como nós, meus irmãos mudaram para outros<br />
mundos, só deles, com as suas mulheres e às vezes vinham visitarnos,<br />
com os filhos, meus sobrinhos, doces presentes em todos os<br />
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meus aniversários.<br />
No silêncio, os outros voltaram.<br />
Um gigante fechado. Grandes buracos no casco, faltava-lhe a<br />
proa, como uma ferida enorme, e o gigante estava parado no vazio,<br />
um cadáver em decomposição, uma nave abandonada. Não. Uma<br />
nave assassinada. Restos de uma supernova nas redondezas, foram<br />
apanhados pela onda e ali ficaram. Através da janela, imaginei<br />
todos aqueles sons a desintegrarem-se num micro segundo. As idas<br />
e vindas, as pressas em chegar a lado algum, a terrível solidão por<br />
detrás de todo aquele ruído de fundo, estática de um rádio mal<br />
sintonizado. Como eu tinha pena deles, tão fechados dentro do seu<br />
próprio mundo que já não conseguiam entrar no mundo dos outros.<br />
- Mãe, pode haver sobreviventes?<br />
Ela não respondeu, não era preciso, um gesto e já estava. O<br />
escafandro, como uma boa filha, abandonou o interior da<br />
progenitora connosco no interior. De perto, a devastação era ainda<br />
maior. Parte do casco estava literalmente derretido, todo o seu<br />
interior fora exposto às mais altas temperaturas e à fúria tremenda<br />
de uma supernova. Procurávamos o frigorífico. Todas as naves<br />
tinham um lugar mais protegido do que os outros, albergando uma<br />
grande quantidade de casulos de hibersono. Um seguro de precaução<br />
em caso de acidente.<br />
Chegámos. Centenas de casulos expostos na vertical em gravidade<br />
zero. Alguns tinham-se avariado e transformaram-se em caixões<br />
onde os restos mortais repousavam já no seu sono eterno. Homens,<br />
mulheres e crianças. Chorei ao imaginar todas aquelas vidas, que não<br />
eram números , aterrorizadas, com medo, com dor, procurando a<br />
salvação do hibersono , correndo para a morte. Havia sobreviventes,<br />
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oito, entre centenas, que rebocámos para o barco. Entre eles,<br />
através da tampa de vidro, reconheci Raul, exactamente como o<br />
tinha deixado. Um jovem de dezoito anos ainda em fase de<br />
crescimento.<br />
Não se tinham afastado muito, apenas dois dias do ponto do<br />
nosso encontro, onde nos tínhamos separado, muito tempo atrás.<br />
Pensei no tempo, algo que não fazia uso. Tinha sobrinhos já homens.<br />
Trinta anos? Talvez, mais um menos um.<br />
Nós sabíamos, vigiávamos aquela estrela quando a aproximação,<br />
depois disso, fotografámos e estudamos o acontecimento durante<br />
muito tempo, foi tudo registado, mas, no nosso silêncio, não nos<br />
lembrámos que os outros não tinham como saber, não estavam ali<br />
para estudar o comportamento das estrelas, apenas para morrer<br />
por causa de uma delas.<br />
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ESTREMECE O CONVENTO, COM VENTO NAS ENTRANHAS<br />
José de Matos-Cruz<br />
19 de Fevereiro de 1918<br />
A um canto do compartimento austero, ténue, Grael estava<br />
com o corpo estendido sobre o catre. Dorido, a tiritar,<br />
desfeito. Sem o aperceber. Num plano latente ao sofrimento,<br />
a sua mente flutuava, porém transida ao tormento carnal.<br />
Afinal, o padecer etéreo transcendia-o.<br />
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O martírio físico de Grael, as partes que o supliciavam, eram<br />
as incompletas. As suas costas, com dois buracos, negros<br />
coágulos encobertos por um lençol de linho, ensanguentado e<br />
descomposto. Grael tentava não se mexer, fazer esforço, com<br />
receio de abrir de novo as feridas. Há pouco ainda na<br />
condição humana, porém sabia muito bem como esta era<br />
débil e vulnerável. Como poderia, mesmo, sucumbir. O olhar<br />
vítreo de Grael permitia-lhe enxergar, vagamente, as pontas<br />
dos pés sujos, macerados, e as unhas desfeitas de tanto se<br />
arrastar até àquele lugar. Quando os braços haviam já<br />
desfalecido, em flacidez, num inútil e defraudado anseio<br />
alado. Fora a última, desesperada tentativa de Grael - ao<br />
menos, para se manter erguido. Ele que estava habituado a<br />
pairar, gracioso. Num ritmo harmónico das suas asas, que lhe<br />
tinham sido extraídas. E Grael sentira, em cada instante, o<br />
ímpeto dos músculos, dos tendões, das veias a desenraizar-se,<br />
de dentro dele cá para fora, até ter diante de si um despojo<br />
caótico de penas murchas e filamentos rasgados. Grael era,<br />
até então, um ser por essência - sem projecto ou impacto, e<br />
que portanto não oferecia resistência. Infortunado em destino.<br />
Assim. Inconformado à existência? Não nascido,virtual,<br />
imaturo àquele turbilhão de inclemência e desagregação, sobre<br />
o qual não possuía matriz, tudo para ele pareceria virgem e<br />
final, horrendo e terreno. Ninguém e a alternidade. O seu<br />
invólucro frágil, espírito apenas, ali jazia - devastado,<br />
entretanto, pelas crescentes emoções primordiais. Por tal<br />
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fenómeno extraordinário, também Grael só ia agora<br />
adquirindo consciência de haver chegado a um edifício<br />
imponente, recôndito. Pedras em ruínas, de um tempo e de<br />
um templo ao abandono. Algo de um culto que se lhe<br />
assemelhava - destruído e espoliado. Refúgio? Sepulcro? No<br />
seu interior, como tudo o que era obscuro, Grael lograra o<br />
último albergue para o íntimo recolhimento. E um leito de<br />
agonia... Então, Grael optou por uma atitude de recuperação.<br />
Como aquelas viagens que nós fazemos imóveis, entre o sono e<br />
o sonho, com o corpo, mutante, a restabelecer-se - febril, sob<br />
o seu próprio rumo e ritmo. Desprovido já da utopia<br />
intrínseca, restava a Grael uma autopurificação. Células,<br />
órgãos, nervos, ossos, tecidos, cartilagens - tudo a regenerarse,<br />
num consolo primário, até que pudesse porventura atingir<br />
o limiar da ascese. Quantos o almejam? É precário, porém, o<br />
apogeu. As muralhas tolhem aos que não se elevam. Quem<br />
Grael foi, irradiava candura, ciente embora da perversão nas<br />
trevas. Ora, não há limites infinitos. Aquela mesma<br />
construção em que se acolhia, agora e em escombros,<br />
bradara outrora aos céus, até soçobrar à instalação dos<br />
desígnios marciais. Conventos por quartéis. Aqui, em Portugal,<br />
na opção inversa aos guerreiros que se converteram em<br />
sagrados. A espada de fogo em contraste ao espectáculo da<br />
morte. Forjando o afã de liberdade, num mundo consumido<br />
pelas labaredas do aniquilamento. Exércitos que um dia, ainda<br />
ontem, fenderam o vão entre as alturas e as profundezas.<br />
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Preenchendo tal vazio com o urro da animalidade, o pavor<br />
avulso, os combatentes estropiados, os cadáveres em<br />
putrefacção, os esqueletos ávidos da sua argamassa palpitante.<br />
Agora, tudo em Grael se confundia e distinguia, se definia e<br />
deprimia. Com um gemido, ampliava o silêncio coral que ia<br />
assombrando este país em decomposição - petrificado quanto<br />
ao signo astral e ancestral, exacerbado pelo ritual necrofílico.<br />
Gerando monstros, despovoado, exultando com a mutilação,<br />
exaltando ao precipício a sua própria mística. Um cálice<br />
sublimado, corrupto pela sede da ressurreição. Atraído e<br />
dissecado, eis Grael perante a normalidade. Despedaçado.<br />
Implícito. O fluido da vida era o sopro que o transformara. O<br />
homem, entre anjo e besta.<br />
Os SobreNaturais<br />
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A FORMA DA ÁGUA<br />
Nuno Russo<br />
Antes de mais, «A Forma da Água» é um belíssimo filme<br />
para os amantes da sétima arte em geral e do género de<br />
fantasia romântica em particular. Guillermo del Toro volta a<br />
mostrar a sua garra num género que aborda como ninguém<br />
desde que surgiu em cena em Hollywood no limiar dos anos<br />
90.<br />
Com uma fotografia a fazer lembrar «A Cidade das Crianças<br />
Perdidas» de Jean-Pierre Jeunet e uma banda sonora<br />
recortada de «O Fabuloso Destino de Amélie» do mesmo<br />
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ealizador, este filme conta a improvável história de uma<br />
mulher – Elisa Esposito (brilhantemente interpretada por<br />
Sally Hawkins) – incapaz de falar devido a um acidente na<br />
infância, que vem a travar conhecimento com um anfíbio<br />
humanóide (retratado pelo sempre excelente Doug Jones)<br />
pescado na América do Sul e aprisionado nas instalações de<br />
um centro de pesquisa norte-americano. Rapidamente<br />
começam a entender-se por meio de linguagem gestual e<br />
corporal até ao dia em que Elisa resolve tentar libertar o ser<br />
peculiar para o devolver ao seu meio ambiente.<br />
Não se pode partir para este filme com um olho crítico e<br />
realista, pois há imensas cenas que desafiam os limites do<br />
absurdo (o quarto submerso onde Elisa e o anfíbio se<br />
relacionam mais intimamente é o melhor exemplo). Mais vale<br />
deixarmo-nos levar pela bela narrativa fantasista – onde até<br />
cabe um número musical entre os protagonistas – e<br />
deliciarmo-nos com os pormenores que nos salpicam os<br />
sentidos.<br />
É de realçar também o papel de Michael Shannon que, apesar<br />
de ter nascido para fazer de vilão, não chega a ser<br />
verdadeiramente um monstro, trata-se sim de uma pessoa<br />
levada a agir por necessidade e desespero, ao contrário do<br />
infame capitão Vidal de «O Labirinto do Fauno» que era um<br />
puro sádico.<br />
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No cômputo geral, «A Forma da Água» é um bom filme, mas<br />
não se sobrepõe a «O Labirinto do Fauno» que continua a ser<br />
a obra-prima do realizador mexicano devido ao facto de o<br />
espectador poder acompanhar esse filme do ponto de vista da<br />
crua realidade ou da negra fantasia. Em «A Forma da Água»<br />
a realidade está suspensa e a esperança mora ao fundo da<br />
rua. Altamente recomendável para quem gosta de sonhos<br />
agridoces.<br />
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