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A ARTE DO DRAGÃO<br />

EM SEPARAR AS ÁGUAS<br />

José de Matos-Cruz<br />

28 de Julho de 1975<br />

Quando a carruagem estremecia,<br />

nalgum troço mais tortuoso dos carris,<br />

todo aquele corpo obeso e flácido se<br />

agitava também. Até amainar aos<br />

poucos, como as pequeninas vagas que<br />

esmorecem na praia, tendo embora antes<br />

delas um mar colossal. Só que ali havia<br />

apenas uma massa corpórea, ondulante,<br />

agitada pelos micro-estertores.<br />

No banco em frente, contemplando<br />

aquele fantástico Silvano S. Jorge, todo<br />

espojado sobre os quatro lugares<br />

marcados, o pasmado Bonifácio<br />

Pintassilgo dir-se-ia um pigmeu, ainda<br />

mais ridículo atrás do seu nariz bicudo,<br />

praticamente sem queixo e com uma<br />

poupa no cabelo ao estilo crista de galo.<br />

Sulcando a noite cúmplice, o<br />

comboio ia galgando quilómetros, numa<br />

viagem cujo destino marcado, saindo de<br />

Santa Apolónia em Lisboa, à hora do<br />

jantar, era a estação de Atocha, quando<br />

em Madrid as trevas começavam<br />

lentamente a dissipar-se.<br />

Velhos conhecidos do acaso<br />

existencial, Silvano e Pintassilgo tinham<br />

ficado espantados com tal reencontro ­<br />

únicos passageiros num banal e mal<br />

iluminado compartimento de 2ª Classe.<br />

Deram um pelo outro já em marcha, e por<br />

mera coincidência.<br />

Após alguma cavaqueira, chegou a<br />

altura de dormitarem. Com o seu pudor<br />

habitual, Pintassilgo apenas vestiu,<br />

apressado, o casaco do pijama. Despido<br />

de preconceitos, Silvano decidira pôr-se à<br />

vontade. Uma atitude no mínimo<br />

chocante, sendo ele um dragão.<br />

­ E se entra alguém, e te vê assim?<br />

­ perguntou, inquieto, Bonifácio<br />

Pintassilgo. Situações como aquela<br />

deixavam-no sempre atrapalhado.<br />

Silvano S. Jorge roncou e pareceu<br />

sorrir.<br />

- Não te preocupes, eu já estou<br />

habituado. Aliás, o revisor só volta depois<br />

da fronteira, para devolver os<br />

passaportes, e as pessoas nem olham<br />

para mim! - sossegou-o Silvano,<br />

abanando ligeiramente a cauda.<br />

Apesar de tudo, Pintassilgo a custo<br />

conseguiria piar um suspiro. Todavia,<br />

acalmou, tentando espairecer:<br />

- Quem diria que, ao fim de tanto<br />

tempo, realmente te encontraria...<br />

­ O mesmo direi eu! ­ reafirmou<br />

Silvano, com falso entusiasmo. Bem lá no<br />

fundo do seu íntimo em ardente<br />

combustão, tinha ganas de gozar a<br />

frigidez de Pintassilgo ­ um carácter<br />

frustrado, como se em toda a<br />

ambiguidade se achasse traído pelo<br />

aspecto ridículo d’ave de rapina.<br />

A propósito, pois, Silvano inquiriu:<br />

- E tu, como é que consegues esse<br />

fastio de manter as aparências?<br />

Pintassilgo dissimulou um<br />

cacarejar, entre ofendido e magoado:<br />

- Não entendo a tua insinuação.<br />

Que coisa… Meu caro, eu sou um<br />

hipocondríaco, não um antropófago!<br />

«Pois, pois…», cogitou Silvano,<br />

enquanto uma fumarada lhe saía pelos<br />

dois orifícios logo acima da boca informe.<br />

Às tantas, era difícil controlar-se,<br />

engolindo as palavras que teria para<br />

dizer, não fossem precisamente as<br />

goelas a sua zona crítica ­ entre tudo o<br />

que lhe apetecia deitar cá para fora, e a<br />

comichão incandescente que o oprimia,<br />

quando o ar se tornava irrespirável.<br />

Pintassilgo reparou no incómodo<br />

em que arfava o companheiro, e sentiu

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