You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
um rapazinho como os outros. Professor<br />
primário em Fontarcada, uma aldeia do<br />
Minho, Walter Semedo tratava todos os<br />
alunos com estímulo, mas ao filho parecia<br />
tê-lo sob suspeita. Lucas tentava<br />
acamaradar, mas não fazia nada para<br />
atenuar as diferenças.<br />
Por exemplo, se tocasse num<br />
penedo, Lucas era capaz de sentir-lhe o<br />
coração a palpitar. Se olhasse para o céu,<br />
admirava o percurso das nuvens como<br />
um mistério fantástico. Com volúpia,<br />
mergulhava as mãos na água. Diante de<br />
um cão ou de um boi, tinha imensa pena<br />
por percebê-los confinados a uma<br />
entediante e menorizada existência como<br />
animais.<br />
Para Walter, talvez Lucas fosse,<br />
portanto, um fraco ou um esquisito, a<br />
espevitar tortuosamente. Em sua<br />
mansidão obediente resplandecia,<br />
porém, a ingenuidade invulnerável dos<br />
inocentes...<br />
Nessa noite densa e negra como<br />
breu, Walter voltara a requintar-se.<br />
Chamou Lucas à sala, entregou-lhe a<br />
chave da Escola e mandou-o lá buscar o<br />
Livro de Leitura da 4ª Classe, de que se<br />
tinha esquecido e precisava para<br />
preparar, ainda, a lição de amanhã.<br />
Lucas não respondeu, nem sequer<br />
pestanejou, ao olhá-lo de frente, sentado<br />
à cabeceira da mesa, com uns papéis<br />
espalhados e a fumar um Português<br />
Suave. Limitou-se a sair de casa, levando<br />
uma pilha acesa, e a avançar na<br />
escuridão como podia.<br />
Ambos sabiam, pai e filho, que<br />
Lucas tinha de seguir por um carreiro<br />
sinuoso, cheio de vegetação, onde se<br />
dizia que a certa altura apareciam almas<br />
do outro mundo. Não importa se era<br />
verdade, ou não. Sempre que lá<br />
passavam, mesmo de dia, Lucas não<br />
conseguia disfarçar alguma inquietação,<br />
pelo turbilhão dos espíritos em redor. E<br />
agora que se aproximava do local,<br />
sozinho a desafiar as trevas, Lucas tinha<br />
a certeza de que o pai o seguia<br />
mentalmente, com aquela sua expressão<br />
de gozo.<br />
Já na curva do caminho que descia<br />
até ao sítio inevitável, mesmo antes de<br />
começar uma subida íngreme, varreu<br />
Lucas a sensação de que não poderia<br />
resistir. Apagou a lanterna e, pois, deixouse<br />
inundar pelo luar que o atraía, cada<br />
vez mais intenso. Dizendo muito baixinho,<br />
para si mesmo: «Se me safo desta, ainda<br />
tenho que voltar outra vez por aqui!». E lá<br />
se foi...<br />
- Olá, lembras-te de mim? – escutou<br />
Lucas, a perturbar-lhe a letargia. Era um<br />
vulto engraçado, reparou, como num<br />
sonho.<br />
A voz insistiu, mais nítida:<br />
- Não te lembras?... Em miúdos,<br />
fomos colegas de carteira!<br />
Aquelas feições pareciam-lhe, já,<br />
reconhecíveis:<br />
- Sim… Tu és o Calcitas do Alpalhão!<br />
- Pois sou… E tu és o Lucas Sem-<br />
Medo! - exclamou, afável, o inesperado<br />
interlocutor.<br />
Intrigado, Lucas procurava reagir,<br />
enquanto ia recuperando do espanto. O<br />
Calcitas do Alpalhão explicou, insistindo:<br />
- Semedo, Sem-Medo… Era assim<br />
que nós te chamávamos!<br />
Lucas estava, já, capacitado. E<br />
lembrava-se do próprio nome. Aquele era<br />
o Nelo, um maroto com sete vidas, que<br />
andava sempre a roubar o giz, às<br />
escondidas do pai, e costumava dar-lhe<br />
caneladas.<br />
- Ó Nelo, que surpresa ver-te assim!<br />
Nelo, o eterno Calcitas do Alpalhão,<br />
soltou uma gargalhada:<br />
- Ah, já te recordas do meu nome…<br />
Mas, para ti, eu era o Calcitas do<br />
Alpalhão… A propósito, sabes qual a<br />
origem da alcunha?