O ÚLTIMO ENCANTO DE CALCITAS DO ALPALHÃO José de Matos-Cruz Às vezes, Lucas tinha vontade de odiar o pai, que o colocava em situações de inquietação e quase transe, sempre com um sorriso nos lábios. Enquanto jovem precoce, pensava: «Será que ele faz isto por sadismo, ou para experimentar se eu tenho medo?» Mesmo assim, Lucas nunca deixava de cumprir uma ordem - e, longe de se achar valente, cada vez confiava mais na sua normalidade. A mãe pouco se importava, ou fazia de conta a tudo. É certo, Lucas jamais fora
um rapazinho como os outros. Professor primário em Fontarcada, uma aldeia do Minho, Walter Semedo tratava todos os alunos com estímulo, mas ao filho parecia tê-lo sob suspeita. Lucas tentava acamaradar, mas não fazia nada para atenuar as diferenças. Por exemplo, se tocasse num penedo, Lucas era capaz de sentir-lhe o coração a palpitar. Se olhasse para o céu, admirava o percurso das nuvens como um mistério fantástico. Com volúpia, mergulhava as mãos na água. Diante de um cão ou de um boi, tinha imensa pena por percebê-los confinados a uma entediante e menorizada existência como animais. Para Walter, talvez Lucas fosse, portanto, um fraco ou um esquisito, a espevitar tortuosamente. Em sua mansidão obediente resplandecia, porém, a ingenuidade invulnerável dos inocentes... Nessa noite densa e negra como breu, Walter voltara a requintar-se. Chamou Lucas à sala, entregou-lhe a chave da Escola e mandou-o lá buscar o Livro de Leitura da 4ª Classe, de que se tinha esquecido e precisava para preparar, ainda, a lição de amanhã. Lucas não respondeu, nem sequer pestanejou, ao olhá-lo de frente, sentado à cabeceira da mesa, com uns papéis espalhados e a fumar um Português Suave. Limitou-se a sair de casa, levando uma pilha acesa, e a avançar na escuridão como podia. Ambos sabiam, pai e filho, que Lucas tinha de seguir por um carreiro sinuoso, cheio de vegetação, onde se dizia que a certa altura apareciam almas do outro mundo. Não importa se era verdade, ou não. Sempre que lá passavam, mesmo de dia, Lucas não conseguia disfarçar alguma inquietação, pelo turbilhão dos espíritos em redor. E agora que se aproximava do local, sozinho a desafiar as trevas, Lucas tinha a certeza de que o pai o seguia mentalmente, com aquela sua expressão de gozo. Já na curva do caminho que descia até ao sítio inevitável, mesmo antes de começar uma subida íngreme, varreu Lucas a sensação de que não poderia resistir. Apagou a lanterna e, pois, deixouse inundar pelo luar que o atraía, cada vez mais intenso. Dizendo muito baixinho, para si mesmo: «Se me safo desta, ainda tenho que voltar outra vez por aqui!». E lá se foi... - Olá, lembras-te de mim? – escutou Lucas, a perturbar-lhe a letargia. Era um vulto engraçado, reparou, como num sonho. A voz insistiu, mais nítida: - Não te lembras?... Em miúdos, fomos colegas de carteira! Aquelas feições pareciam-lhe, já, reconhecíveis: - Sim… Tu és o Calcitas do Alpalhão! - Pois sou… E tu és o Lucas Sem- Medo! - exclamou, afável, o inesperado interlocutor. Intrigado, Lucas procurava reagir, enquanto ia recuperando do espanto. O Calcitas do Alpalhão explicou, insistindo: - Semedo, Sem-Medo… Era assim que nós te chamávamos! Lucas estava, já, capacitado. E lembrava-se do próprio nome. Aquele era o Nelo, um maroto com sete vidas, que andava sempre a roubar o giz, às escondidas do pai, e costumava dar-lhe caneladas. - Ó Nelo, que surpresa ver-te assim! Nelo, o eterno Calcitas do Alpalhão, soltou uma gargalhada: - Ah, já te recordas do meu nome… Mas, para ti, eu era o Calcitas do Alpalhão… A propósito, sabes qual a origem da alcunha?