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incómodo, acabando por afastar-se,<br />
sorrateira, do local ermo até à beira<br />
de Fafe. Tocava o ventre como se, no<br />
desconforto, o amaciasse, ao<br />
transpor o umbral da sua casa. Ainda<br />
a tempo de esgueirar-se, enquanto a<br />
madrugada ia avançando a noite<br />
em transe, entre os primeiros laivos<br />
de luz num céu de nuvens plúmbeas.<br />
Foste lá fora ver se chovia?<br />
perguntoulhe a mãe, entre<br />
ensonada e irónica, meio erguida na<br />
cama que partilhavam.<br />
Não dava para ver até onde ia<br />
a insinuação, nem Leónia se<br />
importava muito. Tinha mais com que<br />
se ralar. Aliás, nem sabia, naquela<br />
solitária relação de duas fêmeas<br />
crispadas, em que coabitavam, até<br />
que ponto a velha não lhe teria<br />
pegado a monstruosa depravação de<br />
que era maldita e fruidora.<br />
Por isso, e silenciosa, Leónia<br />
apenas se deitou como de costume <br />
ao contrário, com a cabeça para os<br />
pés de Cacilda.<br />
Pouco mais tarde, Leónia<br />
ressonava, abandonando-se a uma<br />
esquisita languidez. Às vezes,<br />
agitada numa espécie de esgares<br />
trémulos. Nem ela saberia se eram<br />
pormenores fortuitos de um<br />
pesadelo, ou o mal que a infectara a<br />
corromper-lhe tudo por dentro. Como<br />
um monstro caprichoso assim<br />
gerado, insaciável, a desapossá-la da<br />
sua perversão funesta e sonâmbula.<br />
Durante os meses depois,<br />
Leónia Garça sentiu-o alastrar em si,<br />
ao disputar-lhe impunemente os<br />
órgãos e as tripas. Deformando-a,<br />
até. Ora, incapaz de lutar contra o<br />
que crescia no seu âmago, ocupada<br />
e debilitada, nunca mais a inclemente<br />
teve ganas de se metamorfosear.<br />
Era, pois, duplamente<br />
devassada. Despossuída dos seus<br />
territórios de apetite, devastada na<br />
fúria que lhe acirrava a fome<br />
carniceira.<br />
Aos poucos, Leónia, que já<br />
quase nada dizia, deixou mesmo de<br />
falar. Mantinha-se debaixo de telha,<br />
abatida e baça. Usava agora um<br />
avental, talvez para disfarçar a bossa<br />
que lhe ia alargando, por baixo dos<br />
seios inchados.<br />
Enfim, Leónia só se dava com<br />
Cacilda, sem lhe emprestar atenção.<br />
Também, ninguém estranharia, pois<br />
todos a consideravam um bicho do<br />
mato. Uma aberração que piorara<br />
após a morte de seu pai, por alcunha<br />
o Rasgado, o qual teimara em entrar<br />
no Porto, rompendo o cordão<br />
sanitário ali imposto, contra a<br />
epidemia que empestara pelo ano de<br />
1899.<br />
Coisas para esquecer. Só que<br />
a memória é capciosa, e deixa<br />
marcas ou sequelas. Como ao longo<br />
da história, em que a herança dos<br />
heróis guerreiros se precipita através<br />
de gerações, entre ruínas e litanias.<br />
Sobre Leónia, Cacilda Garça<br />
que sabia tudo era uma testemunha<br />
obsoleta ou vingativa. Às vezes<br />
detestava a filha, outras vezes<br />
invejava a fera. Em si, a matrona<br />
definhara como um estafermo<br />
matreiro. Um parasita que, sempre<br />
em vigília, continuava às voltas de<br />
Leónia - aquela força bruta e<br />
excepcional, a desmanchar-se.<br />
Germinando com os seus próprios<br />
meios.<br />
Leónia e a maternidade. A<br />
custo. E casta. Até que, repugnante,<br />
a criatura saiu-lhe pelo umbigo. Não<br />
era parecida com nada conhecido.<br />
Os SobreNaturais