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ARRANCA DO PEITO ESSE FUROR<br />
QUE TE EXPÕE, FERA E FELINA<br />
José de Matos-Cruz<br />
11 de Março de 1906<br />
Alvoroçada, arfante, Leónia<br />
raspou, então, ambas as garras pelo<br />
rosto, do qual escorria aquela<br />
amálgama de porcarias, suores e de<br />
pêlos. Instantes depois, recobrava o<br />
ânimo, enquanto ia passando as que<br />
já eram mãos por todo o corpo, até<br />
tornear em si a forma humana.<br />
Lambeu, com uma última<br />
delícia de animal, os lábios ainda<br />
entumecidos, onde havia alguns<br />
resquícios do sangue que, pouco<br />
antes, regurgitava pelo pescoço da<br />
sua vítima. Os dentes que lhe<br />
cravara, com o frenesim de predador,<br />
tinham-se reduzido ao aspecto banal<br />
num facies feminino.<br />
Além da bruma densa que<br />
castrava o olhar furtivo de Leónia, o<br />
espesso matagal permitia-lhe<br />
escapar a qualquer assalto de<br />
surpresa ou curiosidade. Compôs-se,<br />
pois, com os andrajos esfarrapados<br />
que lhe restavam, disfarçando a loba<br />
ávida sob uma felina sensualidade,<br />
que lhe era tão natural.<br />
Depois, Leónia suspirou.<br />
Estava já inteiramente refeita,<br />
equilibrada pela sua transcendência.<br />
E predisposta à normalidade, como<br />
outrora lhe tinha acontecido. Só que,<br />
desta vez, o instinto turbilhava nela<br />
emoções contraditórias, como se<br />
frustrasse a plena consumação da<br />
mulher incompleta.<br />
Desta vez, algo da voraz<br />
caçada impregnara a mutação<br />
primordial. Não era pânico ou agonia,<br />
antes uma inquietação que lhe<br />
dilacerasse as vísceras, até se<br />
entranhar na própria consciência de<br />
Leónia.<br />
Dolorida, contaminada.<br />
Em vão, Leónia tentou um<br />
vómito que a libertasse daquele