15.07.2018 Views

Orion_1

https://zorion2.wixsite.com/website

https://zorion2.wixsite.com/website

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

O MENINO DA LUA<br />

Sofia Guilherme Lobo<br />

Adriano era uma criança da Lua. Vivia<br />

numa pequena casa cinzenta entre<br />

muitas outras casas cinzentas, no mar<br />

da serenidade, ligadas umas às outras<br />

por tubos octogonais também cinzentos.<br />

Era uma casa sem janelas, totalmente<br />

fechada, com uma temperatura<br />

constante, sempre esterilizada, tudo<br />

sempre limpo, com um leve cheiro de<br />

hospital que já ninguem notava. E, como<br />

todas as crianças da Lua, Adriano nunca<br />

saía para o exterior, era um prisioneiro<br />

sem saber, daquela casa e daqueles<br />

tubos, como ruas cobertas estreitas, que<br />

o levavam ao centro comercial ou à<br />

escola.<br />

Um dia Adriano saíu daqueles tubos. Foi<br />

numa visita de estudo, mas preparada<br />

com pompa e circunstância, como um<br />

grante evento, já era crescidinho, já<br />

podia usar um escafandro, por isso, já<br />

podia dar o primeiro passeio na<br />

paisagem lunar. Muito excitado, ansioso,<br />

Adriano, como todas as outras crianças,<br />

passaram pelas portas de<br />

descompressão, e entrou no deserto<br />

sem fim do mar da serenidade.<br />

Assustou-se com o espaço, era muito<br />

espaço, vazio até ao infinito. O máximo<br />

de espaço livre a que estava habituado<br />

era às salas de recreio da escola. As<br />

casas cinzentas vistas do exterior, ao<br />

longe, pareciam um pequeno brinquedo<br />

escuro, frio e feio naquela paisagem<br />

parada, como um erro natural, que<br />

estragava o seu encantamento. E, lá no<br />

alto, naquele céu estrelado e negro, uma<br />

forma branca e azul sorria para ele,<br />

maravilhosa, ao lado de um Sol<br />

ofuscante, ainda mais distante. Sabia o<br />

que era, a Terra, a mãe já lhe falara<br />

nela, de como os seus avós, ainda muito<br />

jovens, tinham fugido dela, praticamente<br />

apenas com a roupa que tinham no<br />

corpo e em pouco tempo conseguiram o<br />

direito a uma vida próspera e lucrativa na<br />

Lua. Adriano observava a Terra distante,<br />

como um bela canção envolvente,<br />

transmitindo sonhos cor-de-rosa à sua<br />

mente de menino de cinco anos e,<br />

quando voltaram para o cinzento,<br />

Adriano continuava a ouvir a mesma<br />

canção, como o canto das sereias,<br />

atraindo os marinheiros, e no seu<br />

coração crescia a ânsia e a dúvida. Já<br />

não era uma criança da Lua como todas<br />

as outras, era uma criança que olhava<br />

para a Terra e o Sol suspirando de<br />

saudades de algo que não conhecia. Ao<br />

fim de alguns dias, logo esqueceu o seu<br />

sonho dourado e as fantasias deixaramno<br />

com uma leve sensação de vazio, até<br />

que um dia, a brincar na casa do avô,<br />

encontrou um velho baú de madeira.<br />

Tinha um toque estranho, ligeiramente<br />

áspero mas agradável ao mesmo tempo.<br />

- O que é isto avô? – Perguntou<br />

transbordando de curiosidade.<br />

- É uma arca de madeira, uma<br />

antiguidade, já não existem muitas.<br />

- Para que serve?<br />

- Guarda coisas, olha...<br />

O avô levantou a tampa do baú expondo<br />

o seu conteúdo. Adriano nunca tinha<br />

visto uma revista, ou papel sequer, e ali,<br />

à sua frente, estavam centenas de<br />

revistas, revistas feitas de papel já muito<br />

velho, de cores esbatidas, enrugado pelo<br />

uso, e naquele papel estava a Terra,<br />

como recordações paradas num dado<br />

momento para mais tarde recordar.<br />

Maravilhado, Adriano não voltou a<br />

afastar-se daquelas revistas e daquelas<br />

recordações que não eram suas e<br />

aprendeu a conhecer animais e plantas,<br />

e onde viviam, no mar, nas montanhas


ou nos desertos, como o seu segredo<br />

privado muito íntimo que não desejava<br />

compartilhar com ninguém e alimentava<br />

o seu desejo de ver a realidade em todas<br />

aquelas coisas das revistas.<br />

Um dia a mãe foi ter com ele, muito<br />

lamentosa, a professora queixava-se do<br />

filho querido, que sonhava acordado, as<br />

notas desciam muito e parecia muito<br />

infeliz. A senhora, a que não lhe passara<br />

despercebida as horas que o filho perdia<br />

com as velhas revistas do pai, tinha uma<br />

revista nova na mão. Uma revista atual,<br />

que mandara vir da Terra especialmente<br />

para o efeito e que lhe custara meio<br />

ordenado mensal, devido aos portes de<br />

transporte.<br />

- Adriano. – Chamou. – Ouve o que a<br />

mãe tem para te dizer. A Terra já não é<br />

um lugar muito bonito para se viver, os<br />

mares estão negros, os desertos<br />

radioativos e as montanhas são montes<br />

de terra e pedra estéreis. As florestas<br />

arderam e na Terra já não há oxigénio<br />

para respirar, e os últimos animais vivem<br />

em jardins zoológicos, dentro de cidades<br />

cobertas por um céu artificial, onde as<br />

pessoas vivem entaladas, quase sem<br />

espaço para respirar. A Terra que vês<br />

nessas revistas já não existe há muito<br />

tempo, desde o tempo do teu avô. Ele<br />

teve sorte, veio para a Lua antes da<br />

Guerra, depois desta, a Terra tornou-se<br />

um lugar terrível para se viver. Os<br />

homens destruiram-na.<br />

A senhora deu-lhe então a revista, uma<br />

revista de papel de silicone a 3D, que<br />

revelava a verdade sobre a Terra, a<br />

doença, a fome, a revolta e as pequenas<br />

guerras internas pelo poder. Mas,<br />

mesmo depois de ver tudo isto, de olhar<br />

de frente para uma realidade cruel,<br />

Adriano continuava a suspirar pela Terra,<br />

a Terra das grandes florestas tropicais e<br />

de todos aqueles animais lindos, uma<br />

Terra que já não existia a não ser nos<br />

seus sonhos de menino doce, porque<br />

não acreditava que o homem podesse<br />

destruir algo de tão belo e escolher o<br />

cinzento frio da Lua ao invés do ar fresco<br />

das montanhas e do calor do Sol.<br />

- O Sol já não existe para ninguém.-<br />

Lamentava a mãe.<br />

- Eu quero ver o sol na Terra mãe, levame<br />

a ver o Sol!<br />

A senhora desgostosa já não sabia o<br />

que fazer para acabar com a obcessão<br />

do seu querido filho, que lhe era precioso<br />

acima de todas as coisas, sem lhe dar<br />

um desgosto. Pediu conselho a seu pai e<br />

este sábio senhor, muito resoluto<br />

decidiu:<br />

- Ele quer ir à Terra, então eu levo-o!<br />

- Mas pai, como o pode levar?<br />

- Filha, há muito tempo que decidi que<br />

não ia morrer sem voltar a pisar o chão<br />

onde nasci, tenho algumas economias<br />

de parte para esse efeito, vou apenas<br />

um pouco mais cedo do que esperava e<br />

com companhia.<br />

- Mas será sensato?<br />

- Depois de ele ver e sentir na pele<br />

realmente o esterco que aquilo é,<br />

Adriano não vai voltar a suspirar pela<br />

Terra, nunca mais! Garanto isso!<br />

E o Adriano foi à Terra com o avô.<br />

Em trinta anos era a primeira criança da<br />

Lua a ir à Terra, e todos estavam<br />

entusiasmados com isso. Todos queriam<br />

alguma coisa, os seus amiginhos da<br />

escola, professores, vizinhos e até<br />

desconhecidos iam bater-lhe à porta<br />

para pedir qualquer coisa. Uma menina<br />

queria um cão, sabia que havia muitos<br />

cães na Terra, a maior parte sem dono e<br />

na Lua eram tão caros que só os ricos os<br />

podiam ter, mais por capricho do que por


amor. A mãe estava disposta a pagar o<br />

transporte que era apenas meio salário e<br />

o avô do Adriano disse logo que não,<br />

pois iriam trazer muitos cães e alguns<br />

gatos para animar, todos os que lhes<br />

fosse permitido e seriam um grande<br />

prazer para ele poder oferecê-los a todas<br />

as crianças da colónia. A menina saltou<br />

de alegria, a mãe da menina chorou<br />

emocionada e Adriano olhou para o avô<br />

em completa adoração todo inchado.<br />

Aquele era o seu avô e como se sentia<br />

orgulhoso por isso...<br />

E o Adriano foi à Terra do avô e visitou<br />

todos aqueles lugares que via nas<br />

fotografias das velhas revistas e viu o<br />

que o homem tinha feito à Terra.<br />

- Foi a ganância Adriano. A doença mais<br />

terrível do universo, é isto o que a<br />

ganância faz. – E abraçou o pequenino<br />

que chorava amargamente perante toda<br />

aquela devastação, enquanto era<br />

obrigado a engolir os mares poluidos, as<br />

florestas destruidas, a vida assassinada.<br />

- O inverno nuclear – Dizia o avô. - Foi<br />

tudo destruído.<br />

E, lá em cima, o céu era cinzento e não<br />

se via o Sol, escondido por detrás de<br />

cortinas radioativas que contaminavam<br />

toda a Terra, e sem Sol, a vida não podia<br />

existir, sem Sol a Terra transformara-se<br />

num túmulo, um túmulo onde milhares<br />

de pessoas ainda eram obrigadas a<br />

viver, enquanto esperavam pela<br />

oportunidade de fugir.<br />

Adriano queria voltar para casa, a sua<br />

casa cinzenta e fria já não lhe parecia<br />

assim muito feia, a paisagem lunar tinha<br />

até um certo encantamento e aí podia<br />

andar, dentro de um escafandro e<br />

brincar com os seus amigos a ver quem<br />

saltava mais alto.<br />

No último dia, o avô, como prometido,<br />

apanhou todos os cães vadios que<br />

conseguiu encontrar e, depois de uma<br />

inspeção veterinária, foram embarcados.<br />

Adriano ficou na rua à espera do avô e,<br />

nessa altura, passou uma menina<br />

pequena como ele, de rosto sujo e<br />

cabelo oleoso que até podia seu louro,<br />

vestida de trapos e pés descalços já<br />

pretos, a planta dos pés semelhante a<br />

cascos. A menina parou, olhou para ele,<br />

o rosto iluminou-se com um sorriso de<br />

orelha a orelha, exibindo uma boca sem<br />

dentes, os olhos, de um azul irreal<br />

iluminaram-se perante o seu sorriso,<br />

toda ela resplandecia. Abraçava um cão<br />

pequenino, uma bola de pelo, de<br />

grandes orelhas, com o focinho negro<br />

poisado nos seus braços, muito<br />

quietinho.<br />

- Toma, é para ti! – Disse numa vózinha<br />

fina e delicada. – Ele só quer muito amor<br />

e carinho.<br />

Adriano abriu a boca espantado<br />

enquanto a garota lhe entregava a vida<br />

que abraçava com tanto medo de a<br />

perder, e antes que tivesse tempo de<br />

dizer alguma coisa, a menina, rindo<br />

delicada, correu, com os seus pés<br />

grotescos, linda como a Terra. Ficou<br />

apenas o pequeno cãozinho agora nos<br />

seus braços, inquieto e ganindo de leve,<br />

já com saudades da sua dona e Adriano<br />

sorriu primeiro tímido, depois à medida<br />

que a compreensão o invadia, sorriu<br />

completamente satisfeito, radiante, os<br />

olhos voltavam a sonhar e ria também,<br />

enquanto chamava eufórico o avô que<br />

logo veio a correr:<br />

- O que foi Adriano? – Perguntou o<br />

velho senhor confuso com a mudança<br />

súbita do estado de espírito do neto.<br />

- Olha! - Disse estendendo a criatura,<br />

invadido por uma felicidade que só as<br />

crianças conseguem sentir. – Eu vi o Sol<br />

e o Céu e ele deu-me a Terra!


ARRANCA DO PEITO ESSE FUROR<br />

QUE TE EXPÕE, FERA E FELINA<br />

José de Matos-Cruz<br />

11 de Março de 1906<br />

Alvoroçada, arfante, Leónia<br />

raspou, então, ambas as garras pelo<br />

rosto, do qual escorria aquela<br />

amálgama de porcarias, suores e de<br />

pêlos. Instantes depois, recobrava o<br />

ânimo, enquanto ia passando as que<br />

já eram mãos por todo o corpo, até<br />

tornear em si a forma humana.<br />

Lambeu, com uma última<br />

delícia de animal, os lábios ainda<br />

entumecidos, onde havia alguns<br />

resquícios do sangue que, pouco<br />

antes, regurgitava pelo pescoço da<br />

sua vítima. Os dentes que lhe<br />

cravara, com o frenesim de predador,<br />

tinham-se reduzido ao aspecto banal<br />

num facies feminino.<br />

Além da bruma densa que<br />

castrava o olhar furtivo de Leónia, o<br />

espesso matagal permitia-lhe<br />

escapar a qualquer assalto de<br />

surpresa ou curiosidade. Compôs-se,<br />

pois, com os andrajos esfarrapados<br />

que lhe restavam, disfarçando a loba<br />

ávida sob uma felina sensualidade,<br />

que lhe era tão natural.<br />

Depois, Leónia suspirou.<br />

Estava já inteiramente refeita,<br />

equilibrada pela sua transcendência.<br />

E predisposta à normalidade, como<br />

outrora lhe tinha acontecido. Só que,<br />

desta vez, o instinto turbilhava nela<br />

emoções contraditórias, como se<br />

frustrasse a plena consumação da<br />

mulher incompleta.<br />

Desta vez, algo da voraz<br />

caçada impregnara a mutação<br />

primordial. Não era pânico ou agonia,<br />

antes uma inquietação que lhe<br />

dilacerasse as vísceras, até se<br />

entranhar na própria consciência de<br />

Leónia.<br />

Dolorida, contaminada.<br />

Em vão, Leónia tentou um<br />

vómito que a libertasse daquele


incómodo, acabando por afastar-se,<br />

sorrateira, do local ermo até à beira<br />

de Fafe. Tocava o ventre como se, no<br />

desconforto, o amaciasse, ao<br />

transpor o umbral da sua casa. Ainda<br />

a tempo de esgueirar-se, enquanto a<br />

madrugada ia avançando ­ a noite<br />

em transe, entre os primeiros laivos<br />

de luz num céu de nuvens plúmbeas.<br />

­ Foste lá fora ver se chovia?<br />

­ perguntou­lhe a mãe, entre<br />

ensonada e irónica, meio erguida na<br />

cama que partilhavam.<br />

Não dava para ver até onde ia<br />

a insinuação, nem Leónia se<br />

importava muito. Tinha mais com que<br />

se ralar. Aliás, nem sabia, naquela<br />

solitária relação de duas fêmeas<br />

crispadas, em que coabitavam, até<br />

que ponto a velha não lhe teria<br />

pegado a monstruosa depravação de<br />

que era maldita e fruidora.<br />

Por isso, e silenciosa, Leónia<br />

apenas se deitou como de costume ­<br />

ao contrário, com a cabeça para os<br />

pés de Cacilda.<br />

Pouco mais tarde, Leónia<br />

ressonava, abandonando-se a uma<br />

esquisita languidez. Às vezes,<br />

agitada numa espécie de esgares<br />

trémulos. Nem ela saberia se eram<br />

pormenores fortuitos de um<br />

pesadelo, ou o mal que a infectara a<br />

corromper-lhe tudo por dentro. Como<br />

um monstro caprichoso assim<br />

gerado, insaciável, a desapossá-la da<br />

sua perversão funesta e sonâmbula.<br />

Durante os meses depois,<br />

Leónia Garça sentiu-o alastrar em si,<br />

ao disputar-lhe impunemente os<br />

órgãos e as tripas. Deformando-a,<br />

até. Ora, incapaz de lutar contra o<br />

que crescia no seu âmago, ocupada<br />

e debilitada, nunca mais a inclemente<br />

teve ganas de se metamorfosear.<br />

Era, pois, duplamente<br />

devassada. Despossuída dos seus<br />

territórios de apetite, devastada na<br />

fúria que lhe acirrava a fome<br />

carniceira.<br />

Aos poucos, Leónia, que já<br />

quase nada dizia, deixou mesmo de<br />

falar. Mantinha-se debaixo de telha,<br />

abatida e baça. Usava agora um<br />

avental, talvez para disfarçar a bossa<br />

que lhe ia alargando, por baixo dos<br />

seios inchados.<br />

Enfim, Leónia só se dava com<br />

Cacilda, sem lhe emprestar atenção.<br />

Também, ninguém estranharia, pois<br />

todos a consideravam um bicho do<br />

mato. Uma aberração que piorara<br />

após a morte de seu pai, por alcunha<br />

o Rasgado, o qual teimara em entrar<br />

no Porto, rompendo o cordão<br />

sanitário ali imposto, contra a<br />

epidemia que empestara pelo ano de<br />

1899.<br />

Coisas para esquecer. Só que<br />

a memória é capciosa, e deixa<br />

marcas ou sequelas. Como ao longo<br />

da história, em que a herança dos<br />

heróis guerreiros se precipita através<br />

de gerações, entre ruínas e litanias.<br />

Sobre Leónia, Cacilda Garça<br />

que sabia tudo era uma testemunha<br />

obsoleta ou vingativa. Às vezes<br />

detestava a filha, outras vezes<br />

invejava a fera. Em si, a matrona<br />

definhara como um estafermo<br />

matreiro. Um parasita que, sempre<br />

em vigília, continuava às voltas de<br />

Leónia - aquela força bruta e<br />

excepcional, a desmanchar-se.<br />

Germinando com os seus próprios<br />

meios.<br />

Leónia e a maternidade. A<br />

custo. E casta. Até que, repugnante,<br />

a criatura saiu-lhe pelo umbigo. Não<br />

era parecida com nada conhecido.<br />

Os SobreNaturais


Louretta Kundri de Maria João Worm


ESTREMECE O CONVENTO,<br />

COM VENTO NAS ENTRANHAS<br />

José de Matos-Cruz<br />

19 de Fevereiro de 1918<br />

A um canto do compartimento austero,<br />

ténue, Grael estava com o corpo<br />

estendido sobre o catre. Dorido, a tiritar,<br />

desfeito. Sem o aperceber. Num plano<br />

latente ao sofrimento, a sua mente<br />

flutuava, porém transida ao tormento<br />

carnal. Afinal, o padecer etéreo<br />

transcendia-o.<br />

O martírio físico de Grael, as partes que<br />

o supliciavam, eram as incompletas. As<br />

suas costas, com dois buracos, negros<br />

coágulos encobertos por um lençol de<br />

linho, ensanguentado e descomposto.<br />

Grael tentava não se mexer, fazer<br />

esforço, com receio de abrir de novo as<br />

feridas. Há pouco ainda na condição<br />

humana, porém sabia muito bem como<br />

esta era débil e vulnerável. Como<br />

poderia, mesmo, sucumbir. O olhar<br />

vítreo de Grael permitia-lhe enxergar,<br />

vagamente, as pontas dos pés sujos,<br />

macerados, e as unhas desfeitas de<br />

tanto se arrastar até àquele lugar.<br />

Quando os braços<br />

haviam já desfalecido, em flacidez, num<br />

inútil e defraudado anseio alado. Fora a<br />

última, desesperada tentativa de Grael ­<br />

ao menos, para se manter erguido.<br />

Ele que estava habituado a pairar,<br />

gracioso. Num ritmo harmónico das suas<br />

asas, que lhe<br />

tinham sido extraídas. E Grael sentira,<br />

em cada instante, o ímpeto dos<br />

músculos, dos tendões, das veias a<br />

desenraizar-se, de dentro dele cá para<br />

fora, até ter diante de si um despojo


caótico de penas murchas e filamentos<br />

rasgados. Grael era, até então, um ser<br />

por essência ­ sem projecto ou impacto,<br />

e que portanto não oferecia resistência.<br />

Infortunado em destino. Assim.<br />

Inconformado à existência? Não<br />

nascido,virtual, imaturo àquele turbilhão<br />

de inclemência e desagregação, sobre o<br />

qual não possuía matriz, tudo para ele<br />

pareceria virgem e final, horrendo e<br />

terreno. Ninguém e a alternidade. O seu<br />

invólucro frágil, espírito apenas, ali jazia<br />

­ devastado, entretanto, pelas<br />

crescentes emoções primordiais. Por tal<br />

fenómeno extraordinário, também Grael<br />

só ia agora adquirindo consciência de<br />

haver chegado a um edifício imponente,<br />

recôndito. Pedras em ruínas, de um<br />

tempo e de um templo ao abandono.<br />

Algo de um culto que se lhe<br />

assemelhava ­ destruído e espoliado.<br />

Refúgio? Sepulcro? No seu interior,<br />

como tudo o que era obscuro, Grael<br />

lograra o último albergue para o íntimo<br />

recolhimento. E um leito de agonia...<br />

Então, Grael optou por uma atitude de<br />

recuperação. Como aquelas viagens que<br />

nós fazemos imóveis, entre o sono e o<br />

sonho, com o corpo, mutante, a<br />

restabelecer­se ­ febril, sob o seu<br />

próprio rumo e ritmo. Desprovido já da<br />

utopia intrínseca, restava a Grael uma<br />

autopurificação. Células, órgãos, nervos,<br />

ossos, tecidos, cartilagens ­ tudo a<br />

regenerar-se, num consolo primário, até<br />

que pudesse porventura atingir o limiar<br />

da ascese. Quantos o almejam? É<br />

precário, porém, o apogeu. As muralhas<br />

tolhem aos que não se elevam. Quem<br />

Grael foi, irradiava candura, ciente<br />

embora da perversão nas trevas. Ora,<br />

não<br />

há limites infinitos. Aquela mesma<br />

construção em que se acolhia, agora e<br />

em escombros,<br />

bradara outrora aos céus, até soçobrar à<br />

instalação dos desígnios marciais.<br />

Conventos por quartéis. Aqui, em<br />

Portugal, na opção inversa aos<br />

guerreiros que se converteram em<br />

sagrados. A espada de fogo em<br />

contraste ao espectáculo da morte.<br />

Forjando o afã de liberdade, num mundo<br />

consumido pelas labaredas do<br />

aniquilamento. Exércitos que um dia,<br />

ainda ontem, fenderam o vão entre as<br />

alturas e as profundezas. Preenchendo<br />

tal vazio com o urro da animalidade, o<br />

pavor avulso, os combatentes<br />

estropiados, os cadáveres em<br />

putrefacção, os esqueletos ávidos da<br />

sua argamassa palpitante. Agora, tudo<br />

em Grael se confundia e distinguia, se<br />

definia e deprimia. Com um gemido,<br />

ampliava o silêncio coral que ia<br />

assombrando este país em<br />

decomposição ­ petrificado quanto ao<br />

signo astral e ancestral, exacerbado pelo<br />

ritual necrofílico. Gerando monstros,<br />

despovoado, exultando com a mutilação,<br />

exaltando ao precipício a sua própria<br />

mística. Um cálice sublimado, corrupto<br />

pela sede da ressurreição. Atraído e<br />

dissecado, eis Grael perante a<br />

normalidade. Despedaçado. Implícito. O<br />

fluido da vida era o sopro que o<br />

transformara. O homem, entre anjo e<br />

besta.<br />

Os SobreNaturais


O ÚLTIMO ENCANTO DE CALCITAS DO ALPALHÃO<br />

José de Matos-Cruz<br />

Às vezes, Lucas tinha vontade de odiar o pai, que o colocava em situações de<br />

inquietação e quase transe, sempre com um sorriso nos lábios. Enquanto jovem<br />

precoce, pensava: «Será que ele faz isto por sadismo, ou para experimentar se eu<br />

tenho medo?» Mesmo assim, Lucas nunca deixava de cumprir uma ordem - e, longe<br />

de se achar valente, cada vez confiava mais na sua normalidade.<br />

A mãe pouco se importava, ou fazia de conta a tudo. É certo, Lucas jamais fora


um rapazinho como os outros. Professor<br />

primário em Fontarcada, uma aldeia do<br />

Minho, Walter Semedo tratava todos os<br />

alunos com estímulo, mas ao filho parecia<br />

tê-lo sob suspeita. Lucas tentava<br />

acamaradar, mas não fazia nada para<br />

atenuar as diferenças.<br />

Por exemplo, se tocasse num<br />

penedo, Lucas era capaz de sentir-lhe o<br />

coração a palpitar. Se olhasse para o céu,<br />

admirava o percurso das nuvens como<br />

um mistério fantástico. Com volúpia,<br />

mergulhava as mãos na água. Diante de<br />

um cão ou de um boi, tinha imensa pena<br />

por percebê-los confinados a uma<br />

entediante e menorizada existência como<br />

animais.<br />

Para Walter, talvez Lucas fosse,<br />

portanto, um fraco ou um esquisito, a<br />

espevitar tortuosamente. Em sua<br />

mansidão obediente resplandecia,<br />

porém, a ingenuidade invulnerável dos<br />

inocentes...<br />

Nessa noite densa e negra como<br />

breu, Walter voltara a requintar-se.<br />

Chamou Lucas à sala, entregou-lhe a<br />

chave da Escola e mandou-o lá buscar o<br />

Livro de Leitura da 4ª Classe, de que se<br />

tinha esquecido e precisava para<br />

preparar, ainda, a lição de amanhã.<br />

Lucas não respondeu, nem sequer<br />

pestanejou, ao olhá-lo de frente, sentado<br />

à cabeceira da mesa, com uns papéis<br />

espalhados e a fumar um Português<br />

Suave. Limitou-se a sair de casa, levando<br />

uma pilha acesa, e a avançar na<br />

escuridão como podia.<br />

Ambos sabiam, pai e filho, que<br />

Lucas tinha de seguir por um carreiro<br />

sinuoso, cheio de vegetação, onde se<br />

dizia que a certa altura apareciam almas<br />

do outro mundo. Não importa se era<br />

verdade, ou não. Sempre que lá<br />

passavam, mesmo de dia, Lucas não<br />

conseguia disfarçar alguma inquietação,<br />

pelo turbilhão dos espíritos em redor. E<br />

agora que se aproximava do local,<br />

sozinho a desafiar as trevas, Lucas tinha<br />

a certeza de que o pai o seguia<br />

mentalmente, com aquela sua expressão<br />

de gozo.<br />

Já na curva do caminho que descia<br />

até ao sítio inevitável, mesmo antes de<br />

começar uma subida íngreme, varreu<br />

Lucas a sensação de que não poderia<br />

resistir. Apagou a lanterna e, pois, deixouse<br />

inundar pelo luar que o atraía, cada<br />

vez mais intenso. Dizendo muito baixinho,<br />

para si mesmo: «Se me safo desta, ainda<br />

tenho que voltar outra vez por aqui!». E lá<br />

se foi...<br />

- Olá, lembras-te de mim? – escutou<br />

Lucas, a perturbar-lhe a letargia. Era um<br />

vulto engraçado, reparou, como num<br />

sonho.<br />

A voz insistiu, mais nítida:<br />

- Não te lembras?... Em miúdos,<br />

fomos colegas de carteira!<br />

Aquelas feições pareciam-lhe, já,<br />

reconhecíveis:<br />

- Sim… Tu és o Calcitas do Alpalhão!<br />

- Pois sou… E tu és o Lucas Sem-<br />

Medo! - exclamou, afável, o inesperado<br />

interlocutor.<br />

Intrigado, Lucas procurava reagir,<br />

enquanto ia recuperando do espanto. O<br />

Calcitas do Alpalhão explicou, insistindo:<br />

- Semedo, Sem-Medo… Era assim<br />

que nós te chamávamos!<br />

Lucas estava, já, capacitado. E<br />

lembrava-se do próprio nome. Aquele era<br />

o Nelo, um maroto com sete vidas, que<br />

andava sempre a roubar o giz, às<br />

escondidas do pai, e costumava dar-lhe<br />

caneladas.<br />

- Ó Nelo, que surpresa ver-te assim!<br />

Nelo, o eterno Calcitas do Alpalhão,<br />

soltou uma gargalhada:<br />

- Ah, já te recordas do meu nome…<br />

Mas, para ti, eu era o Calcitas do<br />

Alpalhão… A propósito, sabes qual a<br />

origem da alcunha?


Atrapalhado, Lucas Semedo volveu, como se fosse para salvar a alma:<br />

- Não faço a menor ideia, mas tenho a impressão de que te fica bem! É<br />

daquelas coisas que nos entram pelos ouvidos, na mocidade, colam-se à memória<br />

e, mais dia ou menos dia, acabam por sair-nos pela boca fora…<br />

Os SobreNaturais


A ARTE DO DRAGÃO<br />

EM SEPARAR AS ÁGUAS<br />

José de Matos-Cruz<br />

28 de Julho de 1975<br />

Quando a carruagem estremecia,<br />

nalgum troço mais tortuoso dos carris,<br />

todo aquele corpo obeso e flácido se<br />

agitava também. Até amainar aos<br />

poucos, como as pequeninas vagas que<br />

esmorecem na praia, tendo embora antes<br />

delas um mar colossal. Só que ali havia<br />

apenas uma massa corpórea, ondulante,<br />

agitada pelos micro-estertores.<br />

No banco em frente, contemplando<br />

aquele fantástico Silvano S. Jorge, todo<br />

espojado sobre os quatro lugares<br />

marcados, o pasmado Bonifácio<br />

Pintassilgo dir-se-ia um pigmeu, ainda<br />

mais ridículo atrás do seu nariz bicudo,<br />

praticamente sem queixo e com uma<br />

poupa no cabelo ao estilo crista de galo.<br />

Sulcando a noite cúmplice, o<br />

comboio ia galgando quilómetros, numa<br />

viagem cujo destino marcado, saindo de<br />

Santa Apolónia em Lisboa, à hora do<br />

jantar, era a estação de Atocha, quando<br />

em Madrid as trevas começavam<br />

lentamente a dissipar-se.<br />

Velhos conhecidos do acaso<br />

existencial, Silvano e Pintassilgo tinham<br />

ficado espantados com tal reencontro ­<br />

únicos passageiros num banal e mal<br />

iluminado compartimento de 2ª Classe.<br />

Deram um pelo outro já em marcha, e por<br />

mera coincidência.<br />

Após alguma cavaqueira, chegou a<br />

altura de dormitarem. Com o seu pudor<br />

habitual, Pintassilgo apenas vestiu,<br />

apressado, o casaco do pijama. Despido<br />

de preconceitos, Silvano decidira pôr-se à<br />

vontade. Uma atitude no mínimo<br />

chocante, sendo ele um dragão.<br />

­ E se entra alguém, e te vê assim?<br />

­ perguntou, inquieto, Bonifácio<br />

Pintassilgo. Situações como aquela<br />

deixavam-no sempre atrapalhado.<br />

Silvano S. Jorge roncou e pareceu<br />

sorrir.<br />

- Não te preocupes, eu já estou<br />

habituado. Aliás, o revisor só volta depois<br />

da fronteira, para devolver os<br />

passaportes, e as pessoas nem olham<br />

para mim! - sossegou-o Silvano,<br />

abanando ligeiramente a cauda.<br />

Apesar de tudo, Pintassilgo a custo<br />

conseguiria piar um suspiro. Todavia,<br />

acalmou, tentando espairecer:<br />

- Quem diria que, ao fim de tanto<br />

tempo, realmente te encontraria...<br />

­ O mesmo direi eu! ­ reafirmou<br />

Silvano, com falso entusiasmo. Bem lá no<br />

fundo do seu íntimo em ardente<br />

combustão, tinha ganas de gozar a<br />

frigidez de Pintassilgo ­ um carácter<br />

frustrado, como se em toda a<br />

ambiguidade se achasse traído pelo<br />

aspecto ridículo d’ave de rapina.<br />

A propósito, pois, Silvano inquiriu:<br />

- E tu, como é que consegues esse<br />

fastio de manter as aparências?<br />

Pintassilgo dissimulou um<br />

cacarejar, entre ofendido e magoado:<br />

- Não entendo a tua insinuação.<br />

Que coisa… Meu caro, eu sou um<br />

hipocondríaco, não um antropófago!<br />

«Pois, pois…», cogitou Silvano,<br />

enquanto uma fumarada lhe saía pelos<br />

dois orifícios logo acima da boca informe.<br />

Às tantas, era difícil controlar-se,<br />

engolindo as palavras que teria para<br />

dizer, não fossem precisamente as<br />

goelas a sua zona crítica ­ entre tudo o<br />

que lhe apetecia deitar cá para fora, e a<br />

comichão incandescente que o oprimia,<br />

quando o ar se tornava irrespirável.<br />

Pintassilgo reparou no incómodo<br />

em que arfava o companheiro, e sentiu


alguma lástima. Nem compadecido, nem apaziguador. Porém, lembrava a<br />

impressionante compleição atlética de Silvano em jovem, a sua natureza aguerrida<br />

em prodígios que, a ele próprio, acabaram por arrefecê-lo.<br />

Então, num ímpeto emocional, exclamou Pintassilgo:<br />

- Há dias em que é difícil viver assim!<br />

Ao inflamar-se, iam murchando as orelhas pontiagudas de Silvano:<br />

- Eu, sem vaidade, cá me vou aguentando...<br />

Nessa altura, o Ibéria Expresso atravessava o Túnel da Guardunha, lançando<br />

um silvo arrepiante ­ como a dilacerar as entranhas vacilantes entre humano e<br />

animal. Pintassilgo, é estranho, pairava do seu transe.<br />

- Às vezes, não contenho a minh’alma de pássaro, e solto-me...<br />

Talvez o mundo se reconciliasse, no êxtase velado de Silvano:<br />

- Eu só choro labaredas. E do meu fogo ninguém sai chamuscado, porque se<br />

ateou em lume brando.<br />

Os SobreNaturais

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!