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Revista Curinga Edição 25

Revista Laboratorial do Curso de Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.

Revista Laboratorial do Curso de Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.

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A UNIVERSIDADEREFLETIDA<br />

<strong>Revista</strong> Laboratório | Jornalismo | UFOP<br />

Junho de 2018 | Ano VIII<br />

<strong>25</strong>


4 5 10<br />

EDITORIAL<br />

14<br />

desafios da<br />

universidade<br />

entrevista com fernando haddad<br />

darcy ribeiro<br />

o homem de fazimentos<br />

22 30<br />

40 unidade em construção<br />

46<br />

54<br />

64<br />

14<br />

78<br />

conflito<br />

pedagógico<br />

diploma, como<br />

te quero!<br />

tempo e<br />

espaço de<br />

mudar


SUMÁRIO


A Universidade é, sem dúvidas, o lugar das<br />

transformações. O papel da instituição sempre foi - e<br />

continua sendo - muito maior do que a formação<br />

profissional. Aqui, somos colocados diante de<br />

inquietações, da procura pelo saber, impulsos que nos<br />

movem no caminho em busca de respostas.<br />

A <strong>25</strong>ª CURINGA surge a partir da necessidade de<br />

compreender o que é preciso para que a Universidade<br />

continue sendo o lugar adequado para a descoberta.<br />

Um dossiê que busca entender quais passos<br />

possibilitaram se chegar até aqui. Além disso, refletir<br />

como a Universidade encontra, apesar das dificuldades,<br />

maneiras de continuar acolhendo a mudança. A<br />

partir de um olhar de dentro dessa estrutura e,<br />

portanto sobre nós mesmos, buscamos apresentar<br />

um apanhado do contexto histórico, dos conflitos e<br />

das perspectivas para o futuro. Trata-se de encarar<br />

como temos construído até aqui - e como iremos<br />

construir - o nosso papel.<br />

O momento de lançamento dessa edição é<br />

pensado justamente pela proximidade com datas<br />

simbólicas para a instituição, como a comemoração<br />

dos 50 anos da Universidade Federal de Ouro<br />

Preto (Ufop), em 2019, e de como esse momento<br />

serve para refletir sobre ela e sobre os projetos que<br />

proporcionaram sua renovação e ampliação, como<br />

o Programa de Expansão de e Reestruturação das<br />

Universidades Federais (Reuni), já interrompido,<br />

que completaria 10 anos em 2018. Como resultado<br />

do Programa, celebramos também a marca dos 10<br />

anos da implantação do Instituto de Ciências Sociais<br />

Aplicadas (Icsa) em Mariana/MG e da chegada do<br />

próprio curso de Jornalismo na cidade.<br />

A capacidade de resistir da Universidade,<br />

permite sua continuidade, mesmo em momentos<br />

de incertezas. Por isso, destacamos as memórias<br />

de quem lutou, como na Ditadura Civil-Militar,<br />

e os relatos de quem luta hoje: por espaço, por<br />

autonomia, por igualdade como as mulheres e pela<br />

pesquisa brasileira.<br />

Assim, voltamos nosso olhar para as pessoas,<br />

grande motivo da constituição desse espaço.<br />

Mostramos a visão de sujeitos sobre a instituição e<br />

de personalidades históricas, como Darcy Ribeiro,<br />

cujo trabalho foi fundamental para a formação da<br />

educação brasileira. E também de quem ainda segue<br />

nesse trabalho, como o ex-Ministro da Educação,<br />

Fernando Haddad, que conversou com a revista sobre<br />

os desafios para a Universidade brasileira.<br />

A edição acompanha a constante movimentação<br />

experimentada nesse espaço. Como em uma dança,<br />

onde os passos encontram barreiras, pausas,<br />

ritmos. É nessas situações que a Universidade tem<br />

encontrado outros passos, refeitos, improvisados para<br />

que, mesmo em novas direções, possam continuar. A<br />

capacidade de reinventar-se permite sua longevidade.<br />

É nisso que seguimos acreditando.<br />

Boa leitura!<br />

EDITORIAL<br />

Expediente<br />

<strong>Curinga</strong> é uma publicação da disciplina Laboratório<br />

Impresso II. <strong>Revista</strong> produzida pelos alunos do curso<br />

de Jornalismo da Ufop.<br />

Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (Icsa).<br />

Departamento de Jornalismo (Dejor).<br />

Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).<br />

Professores Responsáveis<br />

Frederico Tavares - 11311/MG (Texto)<br />

Flávio Valle (Fotografia)<br />

Dayane do Carmo Barretos (Planejamento Visual)<br />

Editores de Texto<br />

Aline Vilela<br />

Matheus Effgen<br />

Editores de Arte<br />

Flávio Reis<br />

Daniela Ebner<br />

Editoras de Fotografia<br />

Mariana Reis<br />

Nayara Freitas<br />

Editores Multimídia<br />

Matheus Iglesias<br />

João Renato Negromonte<br />

REPÓRTERES<br />

DIAGRAMADORES<br />

FOTÓGRAFOS<br />

Monitora<br />

Júlia Rocha<br />

Junho/2018<br />

Endereço<br />

Rua do Catete, 166 - Centro<br />

35420-000, Mariana - MG


Texto:<br />

Foto:<br />

Arte:<br />

Aline vilela<br />

Nayara Freitas<br />

Daniela Ebner<br />

Desafios<br />

da<br />

Universidade<br />

Com tranquilidade, Haddad nos recebeu para entrevista.<br />

O ex-Ministro dos governos Lula e Dilma não esconde a satisfação<br />

com o trabalho que realizou durante sua passagem pelo Ministério<br />

da Educação (MEC), entre julho de 2005 e janeiro de 2012.<br />

Sua gestão ficou conhecida por ampliar o acesso ao Ensino<br />

Superior. Com o Plano de Desenvolvimento da Educação a longo<br />

prazo, o país se uniu por meio da educação. Não por acaso, o<br />

ex-ministro foi escolhido pela equipe da <strong>Curinga</strong> para um<br />

bate-papo sobre como as políticas na área da Educação afetam<br />

a Universidade. O modelo de Ensino Superior conhecido por<br />

muitos estudantes hoje é um reflexo dos programas criados<br />

durante sua passagem pelo MEC.<br />

Desde que saiu da Prefeitura de São Paulo, em 2016,<br />

Haddad atua como professor no Insper, uma Instituição de<br />

Ensino Superior e Pesquisa, sem fins lucrativos, onde nos<br />

recebeu. Incisivo, não fugiu a nenhuma pergunta e,<br />

com simplicidade, refletiu sobre como o modelo atual de<br />

Universidade precisa ser repensado.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 5


Como o senhor enxerga a Universidade e sua importância<br />

para o Brasil?<br />

Fernando Haddad (FH): Olha, a Universidade é<br />

onde se forja a identidade nacional. Sobretudo pelas<br />

características do Brasil, a Universidade pública é onde,<br />

depois da expansão, da reserva de vagas, o país se encontra.<br />

Uma identidade nunca antes conseguida, porque<br />

era uma Universidade muito excludente. E agora<br />

ela é muito mais representativa daquilo que é o Brasil.<br />

Você tem negros, pobres, trabalhadores. Um encontro<br />

essencial. Não é só o que ela produz, de forma tangível,<br />

que é importante. É o que ela produz de forma intangível,<br />

é o contato face a face de todas as classes sociais, de<br />

todas as etnias, de todas as raças, de toda a diversidade,<br />

que faz com que ela se torne um centro irradiador<br />

de pensamento crítico, de criatividade.<br />

Pensando nesse papel da Universidade, como o<br />

senhor acha que a educação pode mudar o futuro<br />

do país?<br />

FH: Nós saímos de três para oito milhões de universitários<br />

no país. Não há como essa massa crítica<br />

não fazer diferença. Sobretudo em um momento de<br />

crise. Ela é fundamental para repensar os caminhos<br />

que nós já percorremos, ver onde erramos e onde<br />

acertamos. É um equívoco imaginar que dando acesso<br />

a uma pequena parcela da sociedade você vai ter os<br />

mesmos resultados que dando acesso a todos. É um<br />

equívoco. Se você pegar os melhores, não importa que<br />

sejam poucos, eles são os melhores, é um erro. Você<br />

precisa de escala. Um país se faz com massa crítica.<br />

Então, é isso que vai criar novos caminhos.<br />

Como foram os bastidores para criação do<br />

Reuni?<br />

FH: Quando o ex-presidente Lula foi reeleito em<br />

2006, me encomendou o maior plano educacional da<br />

história do país: “Eu quero fazer o maior plano educacional<br />

da história do país”. Criamos, então, o Plano de<br />

Desenvolvimento da Educação (PDE). Uma das ações<br />

do PDE era levar para toda cidade, com um número<br />

específico de habitantes, que não tinha Universidade<br />

pública, um campus universitário. E reforçar os campi<br />

universitários já existentes. Nós tínhamos mais ou menos<br />

148 cidades com campi universitários. Reforçamos<br />

esses campi e abrimos novos 126, depois chegou a 173<br />

(após o governo Lula). Foi um processo de interiorização.<br />

Nós tínhamos um diagnóstico que as regiões<br />

metropolitanas estavam absorvendo toda a juventude.<br />

E o interior, mesmo cidades importantes do interior,<br />

estavam sendo esvaziadas. Então, levar a Universidade<br />

para o interior era uma maneira de manter o jovem, se<br />

não na sua cidade, nas proximidades, na sua região, e<br />

valorizar o interior, para que não apenas nove a quinze<br />

regiões metropolitanas absorvessem o contingente populacional<br />

do Brasil inteiro. Além disso, a gente queria<br />

promover a mobilidade entre os estudantes. A ideia de<br />

acabar com o vestibular era um ingrediente importante<br />

desse processo. Porque todos os brasileiros conseguem<br />

fazer o Enem, mas nem todos conseguiam fazer o vestibular.<br />

Com o Enem, o Sisu, a expansão, nós entendíamos<br />

que estávamos integrando o país pela educação.<br />

O processo de implantação do Reuni era autônomo<br />

para cada Universidade ou padronizado pelo Ministério<br />

da Educação?<br />

FH: O Ministério da Educação não participou da<br />

discussão interna das universidades. A Universidade é<br />

que apresentava o seu plano de expansão. Cada Instituição<br />

que aderia tinha um decreto. E neste decreto, se<br />

estabelecia parâmetros. Mas, ele não dizia para a universidade:<br />

“você tem que abrir tal curso e fechar outro,<br />

você tem que abrir em tal lugar e não abrir em outro”.<br />

Isso não era papel do Ministério da Educação. O papel<br />

do MEC era dar o dinheiro, cobrar os indicadores de<br />

resultados. Depois, por ocasião do Enem, que foi um<br />

reforço ao Reuni, houve uma cobrança ao MEC para a<br />

assistência estudantil. Nós criamos o Plano Nacional<br />

de Assistência Estudantil (Pnaes), que foi uma conjugação<br />

de coisas. O Reuni tem de ser visto dentro de um<br />

contexto, que acabou com o vestibular e reservou 50%<br />

das vagas nas Universidades para estudantes de escola<br />

pública. É nesse contexto que o Reuni acontece. E do<br />

mesmo jeito que nós pedíamos adesão, oferecíamos a<br />

contrapartida. Essa contrapartida era tão satisfatória,<br />

que todas as Universidades aderiram. Não impusemos<br />

a adesão a ninguém e não ia haver sanção nenhuma à<br />

Universidade que não quisesse.<br />

As políticas afirmativas, considerando o Pnaes,<br />

permitiram que alunos de baixa renda ingressem<br />

em Universidades. Porém, muitos alunos alegam<br />

existir um abismo que os diferencia dos demais<br />

estudantes, que possuem melhores condições de


estudo durante a vida acadêmica. Quando vocês<br />

pensaram na implantação do Programa de cotas,<br />

o que foi pensado para auxiliar estes alunos na<br />

permanência, diante de outras dificuldades, além<br />

das financeiras?<br />

FH: Cada Universidade tinha o seu plano pedagógico.<br />

Teve Universidade, por exemplo, que acabou<br />

com os Departamentos. A Universidade Federal<br />

do ABC nasceu sem Departamento. Ela tem um ciclo<br />

básico de três anos. Isso favorece muito o desenvolvimento<br />

intelectual de quem está defasado, por<br />

exemplo. Mas o principal pleito da UNE (União<br />

Nacional dos Estudantes), dos Reitores, era garantir<br />

condições materiais: bibliotecas equipadas, restaurante<br />

universitário, bolsas de estudo. Teve uma<br />

explosão de bolsas para graduação. Vou te dar uma<br />

exemplo: o Pibid é parte do PDE. A gente não teria feito<br />

a expansão das licenciaturas sem o Pibid. O Pibid é<br />

uma bolsa de iniciação à docência comparável ao Pibic,<br />

de iniciação científica, ao PET, que dava condições da<br />

pessoa se manter dentro da Universidade, reforçando<br />

o aspecto acadêmico. Não era só o dinheiro de graça,<br />

era o dinheiro com a pesquisa. O Proext, Programa de<br />

extensão, era dinheiro na veia. Quem se interessa mais<br />

pela extensão? Alunos de baixa renda. Então foi um<br />

conjunto de medidas, não foi uma coisa isolada. É por<br />

isso que eu falo: isolar o Reuni de cotas, de Enem, de<br />

Pibid, isolar o Reuni de tudo, da interiorização, é um<br />

equívoco. Você não pode pensar o Reuni isolado, porque<br />

ele está dentro de um plano. Um projeto chamado<br />

Plano de Desenvolvimento da Educação.<br />

O senhor teve a ideia do Prouni quando ainda<br />

era Secretário Executivo do MEC. Como teve<br />

esta ideia?<br />

FH: Foi minha mulher, na verdade. Porque ela<br />

trabalhava para o Senador Cristovam Buarque, e<br />

uma das tarefas era responder as cartas que chegavam<br />

ao gabinete. A maioria era de pedido de<br />

bolsa e uma parte era de mães desesperadas porque<br />

não estavam conseguindo pagar o Fies. Eu tinha<br />

tido uma ideia aqui na Prefeitura de São Paulo, de<br />

trocar o ISS (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza)<br />

das Instituições por bolsa, e aí minha esposa<br />

me falou: “por que você não pensa em algo igual para<br />

o Governo Federal?”. E começou a insistir comigo.<br />

Mas eu não dei muita bola, porque não tinha dado<br />

certo em São Paulo. Até que veio uma carta, de uma<br />

mãe muito chorosa porque tinha perdido o filho e estava<br />

pagando o Fies... E você sabe que mulher manda<br />

na gente… Ai não teve jeito, eu comecei a trabalhar.<br />

Nós dois juntos apresentamos pro Cristovam, mas ele<br />

não deu bola, não deu nenhuma bola. Aí entrou o Tarso<br />

Genro, e quando ele bateu o olho, falou: “sensacional”.<br />

Pegou o projeto, colocou debaixo do braço e<br />

aprovou. Aprovou junto ao Lula primeiro, e depois foi<br />

pro Congresso. Ficou bonito.<br />

O senhor acha que existe uma diferença entre o<br />

papel da Universidade pública e da Universidade<br />

privada?<br />

FH: Olha, eu gostaria que o Brasil tivesse dinheiro<br />

para oferecer Universidade pública para todo<br />

É complicado isso, um país<br />

que investiu tão pouco em educação ao<br />

longo da sua história, quando<br />

resolve investir, dão um golpe para cortar.<br />

Qual o sentido disso?<br />

Fernando Haddad<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 7


mundo. Aí você teria uma situação como a de alguns<br />

países da Europa. Isso não acontece hoje. Então, você<br />

é obrigado a bolar formas de inclusão das mais variadas,<br />

Prouni, Reuni, Fies. O Fies não tinha seguro,<br />

tinha exigência de fiador. Como é que pobre vai ter<br />

fiador? Então tiramos fiador, criamos o fundo, baixamos<br />

o juro, estendemos o prazo de pagamento. Fizemos<br />

seguro. Se o cara morrer está quitada a dívida. Os<br />

Institutos Federais, nós ampliamos. São mais de 500<br />

escolas técnicas no país oferecendo curso superior,<br />

também. A Universidade Aberta do Brasil (UAB) é<br />

outra estratégia. Não adianta você imaginar que você<br />

vai resolver um problema desse tamanho, com uma<br />

só estratégia, em um país com poucos recursos. Você<br />

tem que multiplicar as oportunidades e deixar o aluno,<br />

de acordo com as necessidades dele, se encaixar<br />

dentro dessas possibilidades. Tem o cara que vai para<br />

Ouro Preto, tem o cara que vai ficar em São Paulo com<br />

uma bolsa do Prouni, tem o cara que não vai conseguir<br />

nem uma coisa e nem outra e vai pro Fies, tem o<br />

que vai fazer à distância, e tem o que vai pro Instituto<br />

Federal fazer uma graduação mais curta de dois ou<br />

três anos. Às vezes o debate sobre educação é muito<br />

dogmático. A vida não é assim, a vida não é tudo ou<br />

nada. Sobretudo, porque você está prejudicando gente,<br />

quando você fala tudo ou nada, você vai prejudicar<br />

os mais vulneráveis. É uma postura elitista.<br />

Nós saímos de três para<br />

oito milhões de universitários no país.<br />

Não há como essa massa crítica<br />

não fazer diferença. Sobretudo em um<br />

momento de crise.<br />

Fernando Haddad<br />

Recentemente, dois grandes grupos educacionais,<br />

Kroton e Anhanguera, se fundiram, formando uma<br />

das maiores empresas educacionais do mundo.<br />

Além do mais, outros grupos educacionais começaram<br />

a entrar do mercado financeiro. Como o<br />

senhor enxerga esse processo de mercantilização<br />

da educação?<br />

FH: Conforme eu te disse, por mim era tudo público.<br />

Mas, não é realista. Tem um longo caminho ainda,<br />

nós temos necessidades mais básicas a cumprir. E mesmo<br />

com o incremento que teve a Universidade pública,<br />

nós temos muito mais gente fora do que dentro. Então<br />

a gente tem que avançar muito. Eu acho que se o MEC<br />

regular bem, não tem problema. Ou seja, na minha<br />

época a gente fechava muito curso sem qualidade. Deu<br />

uma parada isso. Porque o problema do setor privado<br />

é que ele tem sentir o “bafo do MEC no cangote”. Entendeu?<br />

Ele tem que saber que, se ele não trabalhar na<br />

qualidade, o MEC vai lá e fecha. Nós chegamos a fechar<br />

curso de Medicina, de Direito. Porque não tinha qualidade.<br />

Cortamos Fies e Prouni de cursos ruins. Quando<br />

você vai em um hospital e é mal atendido, você vai ficar<br />

doente. Você vai saber que está doente. Mas que você<br />

vai ser um mau profissional, você só vai saber depois.<br />

Então, por isso, nesses mercados, que você tem a educação<br />

muito assimétrica, o poder público tem que entrar,<br />

para regular. Porque a informação é assimétrica,<br />

você não sabe que está sendo lesado.<br />

Para o senhor, como a reforma trabalhista afeta a<br />

educação?<br />

FH: A notícia que eu tenho, que o setor imediatamente<br />

mais afetado pela reforma trabalhista, foi justamente<br />

o corpo docente das Instituições privadas. Está<br />

tendo precarização do trabalho docente em algumas<br />

Instituições particulares.<br />

De que forma que o senhor percebe isso?<br />

FH: A ideia do trabalho intermitente, a ideia da<br />

pejotização. Esses dois mecanismos pejotização e<br />

trabalho intermitente podem depreciar muito o<br />

trabalho do professor.<br />

Hoje temos um teto, que limita os gastos públicos<br />

nas áreas sociais à inflação, pelos próximos 20<br />

anos. Como o senhor vê esse congelamento, votado<br />

pelo Governo Temer, nos investimentos para a<br />

educação?<br />

FH: Rídiculo. Como é que um país com tanta coisa<br />

para fazer pode ficar 20 anos com os investimentos<br />

congelados? Não tem sentido. Tudo bem conter gasto<br />

público se tiver algum risco para as finanças do Estado.<br />

Em determinadas épocas você tem que puxar um<br />

pouco o “freio de mão”. Mas vai cortar em educação?<br />

Você não tem futuro sem educação. Pense em uma<br />

família. Na primeira dificuldade você vai cortar os<br />

gastos em educação? Você não faz isso. Se um pai não<br />

faz isso, por que o Estado vai fazer? Há áreas que devem<br />

ser preservadas. Você não corta educação do seu<br />

filho, porque você sabe que isso vai ter consequências<br />

desastrosas para o futuro.<br />

Há também a reforma do Ensino Médio, que retira<br />

a obrigatoriedade de disciplinas que estimulam o<br />

pensamento crítico. Como que o senhor vê isso?<br />

FH: Isso é fruto da Escola Sem Partido. A escola sem<br />

partido ela visa a não formação de indivíduos autônomos.<br />

Ela quer indivíduos robóticos, que aprendam a<br />

cumprir tarefas, sem visão crítica das coisas. Quando,<br />

na verdade, uma escola tem que ter uma pluralidade de<br />

visões. Eles querem suprimir isso do currículo.<br />

Mas o senhor acha que essa proposta vai para<br />

frente?<br />

FH: Acho que não. Até Históra eles são contra.<br />

Eles são contra você estudar História. Porque<br />

História faz você pensar, né? Eles são contra. Vai<br />

falar de Ditadura Militar, para que? Eles acham<br />

que todo historiador é comunista. Se você gosta<br />

de História é comunista.


Essa junção da Escola sem Partido, do congelamento<br />

dos gastos. Se juntar tudo parece que realmente<br />

estão querendo criar uma sociedade não<br />

pensante...<br />

FH: É. Eles têm medo de educação. Eles têm<br />

muito medo de educar as pessoas. Tanto é que o Brasil<br />

é um dos últimos países a assumir a agenda da<br />

educação. Nós nunca assumimos para valer a agenda<br />

da educação. A não ser no começo do século<br />

XXI, e com o pouco que nós assumimos, eles estão<br />

querendo se desonerar.<br />

Quais são as consequências desse congelamento<br />

para políticas públicas, como as que o senhor ajudou<br />

a implantar?<br />

FH: Primeiro é que não vai haver mais expansão.<br />

E, segundo, que pode haver deterioração. É complicado<br />

isso: um país que investiu tão pouco em educação<br />

ao longo da sua história, quando resolve investir, dão<br />

um golpe para cortar. Qual o sentido disso? Não tem<br />

cabimento isso!<br />

Baseado nesse atual cenário político de congelamento<br />

de verbas, é preciso pensar um novo<br />

modelo de Universidades públicas?<br />

FH: É preciso avançar, entende? Você não pode<br />

ficar parado. O mundo não se permite mais ficar<br />

parado, em nada. Existe possibilidade da gente<br />

ganhar eficiência. Por exemplo, está tendo muita<br />

evasão. A gente tem que agir, não podemos ficar parados.<br />

Eu acho errado a maneira como a gente está organizando<br />

os primeiros anos. Os dois primeiros anos<br />

de graduação. É muito rígido. Precisava ser um currí-<br />

culo um pouquinho mais flexível, para permitir que<br />

o aluno não fique em uma camisa de força, quando<br />

entra na faculdade. Tem que ter um pouquinho mais<br />

de flexibilidade. Quem sabe assim, a gente consiga<br />

atingir mais gente fazendo isso. A transferência de<br />

um curso para outro é muito burocrática. Você tem<br />

que fazer o Enem de novo, você perde tempo. Você<br />

não aproveita créditos. Então, são coisas que nós<br />

temos que repensar.<br />

Em 2017, o senhor fez uma “tour” por algumas<br />

Universidades do país. O que isso pode significar?<br />

Que numa próxima gestão o senhor esteja de volta<br />

como ministro? Que o senhor foi só ver o seu trabalho?<br />

Pode significar o quê?<br />

FH: Eu tenho muitos amigos, felizmente, nas<br />

Universidades. Porque foi um momento muito legal.<br />

É um lugar onde eu gosto de discutir o país. Porque<br />

você junta vários especialistas. Tem dois lugares<br />

onde eu me sinto muito bem para discutir. Um é o<br />

movimento social. Quando eles se organizam, é<br />

muito bacana, mesmo sendo setorial. Movimento<br />

de moradia, movimento de mobilidade urbana,<br />

cicloativismo... Esses lugares são muito legais. E a<br />

Universidade também. Hoje em dia, você tem uma<br />

diversidade que antes não tinha. Hoje o cara levanta<br />

a mão e fala “sou da favela tal, minha mãe é lavadeira,<br />

meu pai é pedreiro”. Olha a riqueza que você tem<br />

hoje. Você tem uma riqueza de debate. O cara está<br />

levando para Universidade problemas que a Universidade<br />

antes desconhecia. Então isso tudo é importante.<br />

Mas sim, eu visitei, em 2017 eu dei uma rodada<br />

boa. Pode significar tudo.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 9


daRcy<br />

ribeiro<br />

O homem<br />

fazimentos de<br />

O Campus Darcy Ribeiro, da Universidade<br />

de Brasília (UnB), possui mais 500 mil m² de área construída,<br />

onde estão abrigados edifícios símbolos do ensino<br />

superior brasileiro. Todos os dias, mais de 50 mil pessoas<br />

circulam no “Darcy”. Essas dimensões grandiosas são apenas<br />

pistas da importância para a educação brasileira do educador<br />

que lhe fundou e que ainda é lembrado mesmo depois<br />

de 20 anos de sua morte.<br />

Entre todas as outras ocupações que exerceu durante sua<br />

vida - ensaísta, romancista, antropólogo e etnólogo - a de<br />

educador, como ele costumava destacar, era a primeira que<br />

usava para se definir. Foi por meio dela que ele começou seus<br />

trabalhos e foi pela educação que algumas de suas maiores<br />

obras foram feitas.<br />

Não haveria de ser diferente. A educação o acompanhava<br />

desde a infância. Sua mãe era professora primária em Montes<br />

Claros, em Minas Gerais, onde Ribeiro nasceu, em 1922,<br />

e viveu até sua adolescência, quando mudou-se para o Rio<br />

de Janeiro, em 1939, para cursar Medicina. Logo abandonou<br />

o curso. Em 1946, se formou em Ciências Sociais com especialização<br />

em Antropologia na Universidade de São Paulo<br />

(USP). No ano seguinte à sua formatura, ingressou no Serviço<br />

de Proteção aos Índios (SPI), onde conheceu várias aldeias<br />

indígenas e, através deste trabalho, lançou seu primeiro<br />

livro. Durante esse período, atuou na fundação do Museu<br />

do Índio, no Rio de Janeiro, e do Parque do Xingu, no Mato<br />

Grosso. Empenhou-se em conhecer as necessidades e as<br />

pessoas com quem trabalhava, característica que o acompanhou<br />

em outros trabalhos.<br />

Uma jornada pelo saber<br />

Matheus Effgen<br />

Bruno Miné<br />

Flávio Reis<br />

Texto:<br />

Ilustração:<br />

Diagramação:<br />

Nesses primeiros anos como profissional, Darcy<br />

demonstrava seu apreço pelos verbos pensar e fazer. “Tinha<br />

um compromisso muito grande como o Brasil”,<br />

como afirma o antropólogo Mércio Gomes, ex-presidente<br />

da Fundação Nacional do Índio (Funai), amigo e parceiro<br />

profissional do educador.<br />

No governo do Presidente Juscelino Kubitschek (1956-<br />

1961), foi membro da equipe que criou as diretrizes do setor<br />

educacional. Nesse grupo, conheceu Anísio Teixeira, um<br />

dos precursores na implantação do ensino público no Brasil,<br />

com quem compartilhava alguns de seus ideais. As ideias<br />

de Anísio serviram de inspiração para projetos futuros de<br />

Darcy, como a fundação dos Centros Integrados de Educação<br />

Pública (CIEPs). Para Teixeira, Ribeiro possuía a<br />

“coragem dos insistentes”.


Mais tarde, em 1959, por meio de um decreto<br />

presidencial, Darcy tornou-se o responsável, novamente<br />

com o apoio de Anísio, por guiar o projeto de<br />

criação da UnB e tornou-se seu primeiro reitor, em 1961.<br />

Preocupado com a influência negativa de algumas<br />

entidades brasileiras “cuja alienação se reflete sobre<br />

a universidade”, como afirmou em seu livro, A<br />

Universidade necessária (1969), Ribeiro propôs um<br />

outro modelo para a instituição. A nova Universidade<br />

deveria servir como exemplo para o ensino superior do<br />

país, baseada na experiência de outras Universidades do<br />

mundo e onde o saber pudesse ser costruído de maneira<br />

integrada, para que se tornasse um centro nacional de<br />

produção científica e cultural.<br />

Em 1962, assumiu o Ministério da Educação<br />

durante o governo do Presidente João Goulart (1961-<br />

1964) e em seguida foi chefe do Gabinete Civil da<br />

Presidência da República. Com o Golpe Civil-Militar de<br />

1964, teve seus direitos políticos cassados, foi deposto<br />

do cargo de professor da UnB e exilado do país.<br />

Em 1990, foi eleito Senador pelo Rio de Janeiro. No<br />

cargo, seu maior feito foi a construção da Lei de Diretrizes<br />

e Bases da Educação Nacional (LDB), batizada<br />

com seu nome em homenagem póstuma.<br />

Apesar de seu empenho, o educador reconhecia<br />

que o ensino brasileiro, principalmente o superior, ainda<br />

estava longe de cumprir com o que ele acreditava<br />

ser seu objetivo: “A crise da educação no Brasil não é<br />

uma crise; é um projeto”. Na posse de Cristovam Buarque,<br />

em 1985, primeiro reitor eleito por voto direto<br />

na UnB após a ditadura, Darcy afirmou: “nesta tarefa<br />

de desvendamento das causas ocultas e ocultadas de<br />

nosso atraso nacional é que temos sido mais coniventes”.<br />

E apesar de também acreditar ter “fracassado em<br />

tudo o que tentou na vida”, sua trajetória prova o contrário.<br />

A marca de seus feitos são motivos, ainda hoje,<br />

de tributo ao seu trabalho e à sua preocupação com a<br />

educação. Seu grande desafio foi o de pensar, entender<br />

e transformar o Brasil. Como ele mesmo se intitulou,<br />

era um homem de fazimentos.<br />

Persistência<br />

Darcy costumava se comparar às serpentes, pois<br />

sempre encontrava maneiras de se revestir de novas<br />

“peles”. Foi assim que, durante o exílio, partiu<br />

para uma nova fase. Nos anos em que esteve fora,<br />

frequentou e morou em diversos países, e mais uma<br />

vez seu trabalho com a educação pareceu ser seu<br />

destino. Lecionou na Universidade da República<br />

Oriental do Uruguai e esteve envolvido em seu projeto<br />

de reforma, assim como na Venezuela, onde também<br />

colaborou para a reforma da Universidade Central<br />

da República. No Chile, a convite do Presidente<br />

Salvador Allende, foi um dos pesquisadores do<br />

Instituto de Estudos Internacionais.<br />

Somente em 1976, mais de 10 anos após o exílio,<br />

Ribeiro pôde retornar definitivamente ao Brasil e<br />

iniciar uma nova etapa de obras, desta vez, através<br />

da política. Preocupado com a educação de base,<br />

iniciou, ao lado do então Governador do Rio de Janeiro<br />

(1983-1987), Leonel Brizola, um dos projetos mais<br />

ambiciosos ao qual se dedicou: a criação e expansão<br />

dos CIEPs. Os CIEPs ofereciam aos alunos da rede<br />

estadual de ensino um currículo de aulas em período<br />

integral, atividades culturais e esportivas. Com foco<br />

no ensino público de qualidade, o projeto fornecia<br />

também atendimento de saúde e refeições completas,<br />

das 08h às 17h. Foram mais de 500 unidades construídas<br />

e milhares de pessoas envolvidas. O projeto<br />

foi celebrado pelo modelo inovador que apresentou,<br />

como afirmou Oscar Niemeyer, responsável pela arquitetura<br />

das escolas: “O Ciep foi um sucesso, é a<br />

escola de que nós precisávamos”.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 11


Fotos:<br />

Bailarinas:<br />

Mariana Reis<br />

Nayara Freitas<br />

Laura Electo<br />

Alba Barboza


Identidade


Texto:<br />

foto:<br />

Arte:<br />

Gabriela Teleésforo<br />

Wandeir Campos<br />

Paula Koch<br />

SURGE UM<br />

NOVO PERFIL<br />

Políticas de ação afirmativa possibilitaram<br />

a entrada de novas camadas sociais nas<br />

Universidades brasileiras. Isso não quer<br />

dizer que as condições de permanência<br />

sejam as mesmas para todos.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 15


O número de estudantes brasileiros que<br />

ingressam no Ensino Superior vem aumentando<br />

a cada ano. O sonho de ser aprovado no vestibular,<br />

até então privilégio de poucos, passou a ser uma<br />

realidade possível para as camadas menos favorecidas<br />

da sociedade. O avanço no sistema educacional<br />

é um somatório de lutas sociais, que reivindicam<br />

melhorias na qualidade do ensino, junto com a<br />

criação de políticas públicas de ação afirmativa, que<br />

democratizaram o acesso às Instituições de Ensino<br />

Superior (IES), possibilitando o surgimento de novos<br />

perfis sociais dentro das universidades.<br />

Os números do Instituto Nacional de Estudos e<br />

Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep)<br />

mostram o crescimento da população universitária.<br />

O Instituto é responsável pela aplicação do Censo<br />

da Educação Superior, uma pesquisa realizada nas<br />

IES, que produz, anualmente, dados e informações<br />

sobre a educação superior brasileira. Compreendese<br />

por IES as Universidades, Centros Universitários,<br />

Faculdades, Institutos Federais e Centros de Ensino<br />

pertencentes à federação.<br />

Os resultados do Censo de Educação Superior<br />

de 1998, momento em que o Exame Nacional do<br />

Ensino Médio (Enem) foi aplicado pela primeira vez,<br />

mostram que o número de matriculados nas IES era de<br />

aproximadamente 2 milhões. Em 2005, quando o ex-<br />

Ministro da Educação Tarso Genro instituiu o Prouni<br />

(Programa Universidade Para Todos), o número de<br />

matrículas nas IES alcançou a marca dos 4,5 milhões. O<br />

Prouni configura-se como ação afirmativa que concede<br />

bolsas de estudo, integrais e parciais, para alunos do<br />

Ensino Superior em instituições privadas, com ou sem<br />

fins lucrativos. As Instituições de Ensino Superior que<br />

aderem ao programa recebem isenção de tributos.<br />

O Enem foi criado em 1998, com o intuito de<br />

avaliar a qualidade do ensino no país e assim, definir<br />

as necessidades de cada região brasileira de acordo com<br />

os resultados. O modelo da prova que o Ministro da<br />

Educação do Governo Fernando Henrique Cardoso, Paulo<br />

Renato Souza, desenvolveu foi utilizado por dez anos, até<br />

2008. Em 2009, a reformulação do Enem contribuiu para<br />

o aumento do ingresso de estudantes no curso superior:<br />

o total de matrículas realizadas no ano, segundo o Censo<br />

da Educação do Inep, ultrapassou 5 milhões. No mesmo<br />

período, o portal mostrou que o número de inscritos no<br />

Enem foi de aproximadamente 6,7 milhões.<br />

A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade<br />

Racial (Seppir), criada pela Medida Provisória Nº 111,<br />

em 21 de março de 2003, foi uma resposta às lutas do<br />

Movimento Negro brasileiro, que ao longo da história<br />

resistiu à desigualdade e à discriminação. A Seppir<br />

foi inaugurada no mesmo dia em que a Organização<br />

das Nações Unidas instituiu o Dia Internacional<br />

pela Eliminação da Discriminação Racial. O órgão<br />

é responsável por formular, coordenar e articular<br />

políticas públicas que promovam a igualdade racial.<br />

Em seu site, a Seppir declara que “uma ação afirmativa<br />

não deve ser vista como um benefício, ou algo injusto.<br />

Pelo contrário, a ação só se faz necessária quando<br />

percebemos um histórico de injustiças e direitos que<br />

não foram assegurados.”<br />

No decorrer dos anos, várias medidas foram<br />

aprovadas em prol da melhora da qualidade do<br />

ensino no Brasil. Os diferentes governos propuseram<br />

leis, emendas, que permitiram hoje uma maior<br />

democratização do acesso às Universidades Públicas<br />

e as Instituições de Ensino Superior. Em 1996,<br />

no governo do ex-Presidente Fernando Henrique<br />

Cardoso, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação<br />

Nacional N° 9.394, passou a estabelecer normas<br />

e metas de adequação das políticas educacionais.<br />

A Lei, alterada ao longo dos anos para atender<br />

às distintas necessidades do sistema de ensino,<br />

reconheceu somente em 2013, por intermédio da<br />

alteração de N° 12.796, a diversidade étnico-racial<br />

como um princípio das diretrizes de 1996.<br />

O ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou,<br />

em 24 de abril de 2007, o decreto que criou o Programa<br />

de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das<br />

Universidades Federais, o Reuni. O Programa não só<br />

ampliou o acesso às Instituições, como possibilitou a<br />

permanência dos ingressantes no sistema de ensino.<br />

Também era uma preocupação do decreto a redução<br />

das taxas de evasão e a ocupação de vagas ociosas<br />

dentro das Universidades. Ainda no governo Lula, em<br />

2009, o Ministério da Educação instituiu o Sistema de<br />

Seleção Unificada (Sisu) no processo de candidatura<br />

às vagas das Instituições de Ensino Superior. O Sisu<br />

é um sistema digital do MEC, por meio do qual as<br />

Universidades oferecem vagas para candidatos<br />

participantes do Enem.<br />

A Pró-reitora de Assuntos Comunitários e<br />

Estudantis da Universidade Federal de Ouro


CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 17


“Eu fiz um esforço muito maior que meus<br />

outros colegas da escola. Fiz dois anos<br />

de cursinho pré vestibular comunitário,<br />

lá na esquina<br />

de casa.<br />

E meus<br />

colegas<br />

de sala<br />

fizeram<br />

um ano<br />

daquele<br />

pré-vestibular super caro.<br />

Eu tive que ficar muita<br />

noite acordada no ensino médio;<br />

é uma pressão muito grande para<br />

uma pessoa de dezesseis anos.”<br />

Dayannie dos Santos


Preto (Ufop), Natália de Souza Lisboa, é quem<br />

coordena o órgão responsável por facilitar o acesso<br />

e a permanência dos estudantes na Universidade<br />

mineira. A servidora acredita que “o Reuni foi<br />

um passo de democratização e interiorização<br />

da educação superior”. Lisboa, que também é<br />

professora de Direito e especialista em direitos<br />

humanos, afirma que o Reuni foi “um caminho e<br />

uma base para a construção dessas políticas de ação<br />

afirmativa que a gente tem hoje”.<br />

As políticas de ação afirmativa contribuíram<br />

para a melhora da educação. A ex-Presidenta Dilma<br />

Rousseff foi responsável por sancionar um dos<br />

grandes marcos de democratização da educação<br />

pública superior. A Lei N° 12.711, de 29 de agosto<br />

de 2012, decreta a reserva de 50% das vagas das<br />

Instituições Públicas de Ensino Superior para<br />

estudantes vindos de escola pública, renda familiar per<br />

capita inferior a 1,5 salário mínimo, autodeclarados<br />

pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência.<br />

Correções históricas da<br />

desigualdade<br />

O racismo existe e persiste no Brasil. O<br />

conservadorismo acentua os preconceitos. Mesmo<br />

que o contrário seja dito, a discriminação racial é uma<br />

das grandes bases de sustento da desigualdade social,<br />

que se mantém enraizada em nossa sociedade desde<br />

os tempos da colonização.<br />

A Universidade retrata a sociedade e também<br />

reproduz os problemas que afligem a população por<br />

trás dos muros da instituição. Em março de 2018, na<br />

Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, ABC<br />

Paulista, um banheiro feminino foi pichado com as frases<br />

“fora preta sapatão”, “odeio preto” e “fim das cotas”.<br />

Na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),<br />

um projeto denominado “Casa Grande”, do curso de<br />

Arquitetura e Urbanismo exigia que os estudantes<br />

realizassem o desenho de uma casa contendo área de<br />

serviço com quartos e banheiros para oito empregados.<br />

Na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), um<br />

professor de Economia foi denunciado após dizer em<br />

sala, segundo informações do Centro Acadêmico Livre<br />

de Ciências Sociais que “detestaria ser atendido por<br />

um médico ou advogado negro”. Em 2016, segundo<br />

o Diretório dos Estudantes Mário Prata, o estudante<br />

Diego Vieira Machado, negro, LGBTI+ e residente do<br />

alojamento da Universidade Federal do Rio de Janeiro<br />

(UFRJ), foi encontrado morto no Campus do Fundão,<br />

na Zona Norte da cidade.<br />

O acesso ao Ensino Superior por parte das classes<br />

menos favorecidas ainda é bastante controverso. O atual<br />

modelo universitário estruturado em padrões elitistas<br />

não foi criado para atender às demandas de maioria<br />

da população. Em 1920, foi instaurada a primeira<br />

universidade pública no país. O regimento e estrutura<br />

da Universidade Federal do Rio de Janeiro era voltado<br />

para atender somente uma minoria, a elite brasileira.<br />

A Mestra em Educação, Mariza Aparecida Pena,<br />

pesquisou sobre o caminho dos estudantes cotistas<br />

no processo de formação no ensino superior na<br />

Ufop. Os resultados do estudo mostraram que<br />

estudantes cotistas dos cursos analisados obtiveram<br />

menor pontuação no Enem e também encontraram<br />

dificuldades, principalmente financeira, no início do<br />

curso. Pena afirma que mesmo com os empecilhos,<br />

esses estudantes conseguem se adaptar: “logo<br />

se tornam estudantes universitários filiados,<br />

com desempenho e participação em atividades<br />

acadêmicas extracurriculares semelhantes aos<br />

demais estudantes da instituição.”<br />

Dayannie dos Santos, 21, futura professora<br />

de Matemática é natural da comunidade da Maré<br />

no Rio de Janeiro. Teve sua primeira experiência<br />

universitária em 2015, quando foi aprovada no<br />

vestibular de Matemática da Universidade Estadual<br />

do Rio de Janeiro (Uerj). A estudante relata que se<br />

identificou como mulher e negra muito cedo, nos<br />

primeiros períodos do seu curso, e por isso, vez<br />

ou outra se tornava porta voz da turma quando o<br />

tema era questões raciais e de gênero. Ela conta que<br />

entrou na Uerj por cota de escola pública, mas por<br />

ser preta, sempre foi rotulada como cotista racial,<br />

até mesmo pelos funcionários da Universidade:<br />

“o tempo todo na faculdade as pessoas achavam<br />

que eu era cotista e que a minha cota era racial”.<br />

Dayannie explica o motivo de ter escolhido não<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 19


Se para alguns é complicado o acesso,<br />

mais difícil é permanência na universidade<br />

O percurso universitário apresenta-se, principalmente<br />

para os estudantes de baixa renda, permeado<br />

de dificuldades e desafios.<br />

Mariza Aparecida Pena<br />

utilizar a cota racial para ingressar no ensino<br />

superior: “eu lembro que quando eu entrei na<br />

faculdade eu escolhi não usar a cota racial porque<br />

é um absurdo, são só duas vagas pro meu curso,<br />

sendo que mais da metade da população é negra”.<br />

Foi na Uerj que Dayannie sentiu na pele o peso do<br />

racismo institucional, ao tentar registrar uma queixa<br />

contra o uso indevido de cota na Universidade, ela se<br />

surpreendeu com o tratamento que recebeu de uma<br />

funcionária: “fui tentar denunciar uma menina. Ela<br />

passou por cota racial e a menina era assim: branquinha,<br />

olho clarinho”. Quando Dayannie se dirigiu ao setor<br />

responsável para denunciar, a funcionária que a<br />

recebeu, mostrou-se indiferente: “eu me senti acuada,<br />

ela começou a falar que o teste para ser cotista racial<br />

era diferente do socioeconômico. DissWeram que além<br />

de verificar se a menina era branca, iam pesquisar a<br />

minha história, fazer um teste de DNA em mim pra ver<br />

quem tinha mais melanina no sangue, que iam ver se<br />

eu também estava mentindo na Universidade”.<br />

Ao falar sobre a dificuldade, a estudante relata<br />

sua resistência e a de outros milhares que, diante das<br />

barreiras estruturais e sociais, lutam para adentrar<br />

e permanecer dentro das Universidades. “Eu fiz<br />

um esforço muito maior que meus outros colegas<br />

da escola. Fiz dois anos de cursinho pré-vestibular<br />

comunitário, lá na esquina de casa. E meus colegas<br />

de sala fizeram um ano daquele pré-vestibular super<br />

caro. Eu tive que ficar muita noite acordada no ensino<br />

médio, é uma pressão muito grande pra uma pessoa<br />

de dezesseis anos”. Ela acredita que passou por tudo<br />

isso se recordando da fala de sua mãe: “Se não for<br />

pública, não vai ter Universidade!”<br />

Os preconceitos reproduzidos na Universidade não se<br />

limitam a questão racial, há muitas vítimas de homofobia,<br />

machismo, gordofobia e demais estigmas dentro das instituições.<br />

Em 2016, o professor do curso de Administração da Ufop, André<br />

Felipe Colares, homossexual, foi violentamente assassinado em<br />

uma festa da turma de Medicina da Universidade Estadual de<br />

Montes Claros (Unimontes). No mesmo ano, na Universidade<br />

de Brasília (UnB), um grupo de pessoas de extrema direita<br />

caminhou pela universidade e agrediu verbalmente estudantes<br />

com dizeres homofóbicos e racistas.<br />

Gabriel Rodrigues de Lima, 22, estudante de<br />

jornalismo na Ufop, ao falar sobre as diversas<br />

opressões no meio estudantil, relata as dificuldades<br />

enfrentadas desde o financeiro às questões de<br />

gênero. Gabriel desabafa: “o meu modo de andar,<br />

performar e me vestir, às vezes faz com que as<br />

pessoas fiquem se perguntando se é homem ou<br />

mulher. Isso também é uma opressão”.<br />

Mesmo que seja difícil<br />

O impasse que impede o aprimoramento da<br />

educação no Brasil vai muito além do conhecido<br />

sucateamento das Universidades públicas e dos<br />

baixos investimentos na educação de base. Trata-se<br />

de um problema estrutural que acompanha os alunos<br />

de escola pública do ensino fundamental ao ensino<br />

médio. Aqueles poucos que conseguem aprovação no<br />

vestibular, ao chegarem na Universidade, enfrentam<br />

um atraso educacional em comparação aos demais<br />

estudantes vindos da rede privada.<br />

Nataly Vermeuler, 22, estudante de escola<br />

pública, sempre se dedicou aos estudos. Suas notas,<br />

geralmente as maiores da sala, não foram suficientes<br />

para garantir sua aprovação no curso de Medicina em<br />

uma Instituição Federal. No período de vestibular,<br />

ela desejava ser aprovada na UFMG. Nataly é uma<br />

das milhares de pessoas beneficiadas pelo Prouni.<br />

Ela ingressou no curso de Medicina da Faculdade<br />

de Ciências Médicas de Minas Gerais. A estudante<br />

conta que: “estruturalmente, me surpreendi e me<br />

encantei com a Faculdade, pois nunca tinha tocado<br />

em um microscópio e nem trabalhado com qualquer<br />

tipo de laboratório.”<br />

A falta de uma educação de base de qualidade<br />

acompanhou a estudante durante os primeiros semestre.<br />

Segundo ela, os mais difíceis de sua graduação: “por<br />

ter entrado um mês e meio após o início das aulas,<br />

não tenho boas lembranças. Foi um choque. Tinha que<br />

correr com as matérias. Infelizmente, só o cursinho<br />

não foi capaz de suprir. Tive que aprender a estudar<br />

para faculdade e me adaptar à nova rotina. Claro que<br />

estava extremamente alegre, mas pela primeira vez<br />

não adquiri uma nota acima da média em uma prova.<br />

Eu era uma aluna bem dedicada, foi frustrante e eu me<br />

sentia muito envergonhada.”<br />

Ao relembrar os três anos que se dedicou aos<br />

cursinhos de pré-vestibular, ela lembra que: “foi um<br />

período muito sofrido e desgastante emocionalmente.<br />

O primeiro ano que tentei, foi um choque de realidade.<br />

Percebi como possuía um conhecimento defasado,<br />

apesar de possuir boas notas na escola. Foi difícil,


pois havia muitas matérias que eu nunca tinha visto.<br />

Então, eu não revia a matéria e sim tinha que aprender.<br />

Estudei horas por dia, todos os dias, durante 3 anos. Foi<br />

difícil pois eu achei que seria impossível passar, visto<br />

que percebi como uma disputa entre escola pública e<br />

particular é desigual e injusta.”<br />

A Mestra Mariza Aparecida Pena, ao falar sobre<br />

as dificuldades dos cotistas e principalmente dos de<br />

baixa renda na sua tese, afirma que “se para alguns<br />

é complicado o acesso, mais difícil é a permanência<br />

na universidade. O percurso universitário apresentase,<br />

principalmente para os estudantes de baixa renda,<br />

permeado de dificuldades e desafios.”<br />

Maria Luz, estudante de Administração da Ufop,<br />

ingressou na Universidade utilizando a política de<br />

cotas. Ao ser questionada sobre a possibilidade de<br />

estudar em uma instituição particular, ela argumenta<br />

que “eu não me imagino numa faculdade particular.<br />

Acho que o público é muito diferente, não me<br />

adequaria a um público muito elitizado, todo mundo<br />

tem uma condição financeira completamente diferente<br />

da minha.” Em contrapartida, Maria se identifica com<br />

o ensino gratuito: “a universidade pública combina<br />

muito mais com minha carreira estudantil e com as<br />

minhas condições financeiras, para eu estar numa<br />

faculdade particular eu precisaria trabalhar o dobro do<br />

que eu já trabalho e eu não quero isso”.<br />

A ausência de uma educação de base de<br />

qualidade é um dos principais fatores que impedem<br />

o acesso dos menos favorecidos na universidade.<br />

A base escolar oferecida pela iniciativa privada,<br />

se comparada com a rede pública, sempre será a<br />

detentora dos índices mais altos de aprendizado e<br />

de aprovação em vestibulares. Em um país onde o<br />

dinheiro é mais importante até mesmo que o próprio<br />

homem, a qualidade dos cursos preparatórios tende<br />

a ser proporcional ao valor da mensalidade. Quanto<br />

mais alto o custo, maiores as chances de aprovação.<br />

Lutam por um futuro melhor<br />

A sociedade brasileira reflete em suas ações a falta<br />

de um sistema educacional de qualidade e democrático,<br />

que debata essas questões. Em meio a desigualdade<br />

social, surgem vozes que reivindicam por igualdade<br />

de direitos. Entre os relatos dos cotistas entrevistados,<br />

nota-se a luta que estes desenvolvem para construir<br />

uma sociedade mais igualitária e um futuro melhor.<br />

Hoje, cursando matemática na Ufop, Dayannie<br />

dos Santos relata que foi responsável por criar,<br />

com a ajuda de amigos, o curso de pré-vestibular<br />

comunitário Carolina Maria de Jesus, na comunidade<br />

Morro do Trem, Zona Norte do Rio de Janeiro, sua<br />

cidade natal. A estudante de Administração Maria<br />

Luz, é uma das idealizadoras do projeto Escrevendo o<br />

Futuro, o qual oferece aulas de arte educação a preços<br />

acessíveis nas comunidades que está inserida. Gabriel<br />

Rodrigues, consciente de sua realidade social, levanta<br />

debates dentro da Universidade a favor das lutas da<br />

comunidade LGBTI+ e também se solidariza com a<br />

causa das mulheres em combate ao machismo.<br />

Mariza Aparecida Pena, ao concluir seu estudo sobre<br />

o perfil dos estudantes cotistas na Ufop, indica que: “os<br />

resultados apontam para um futuro mais promissor<br />

para os alunos de baixa renda” e explica que “os efeitos<br />

positivos podem ser verificados a partir do aumento<br />

da presença de estudantes das camadas populares nos<br />

diversos cursos superiores, do desempenho acadêmico e<br />

da participação desses estudantes em diversas atividades<br />

universitárias”. Pena acredita que as políticas de ação<br />

afirmativa podem diminuir as desigualdades do sistema<br />

educacional: “as desigualdades educacionais somente<br />

serão sanadas mediante garantia da equidade e da<br />

qualidade do ensino público desde a educação básica”.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong><br />

21


Comum<br />

Texto:<br />

Foto:<br />

Arte:<br />

Luísa Campos<br />

Carolina Coelho<br />

Thalia Gonçalves


As lembranças da educação superior levantam o questionamento:<br />

até quando as instituições sofrerão com os golpes?<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 29


Há quem diga que fui um golpe na<br />

democracia. Prefiro me auto intitular como um governo<br />

rígido, o mais correto da história, já que medidas<br />

austeras precisavam ser tomadas. João Goulart dirigiu<br />

o país entre 1961 e 1964, com ideais populistas, projetos<br />

que não condiziam com a nossa nação. O patife<br />

queria fazer uma redistribuição de renda e de terras,<br />

uma tal de Reforma de Base... Isso tem lógica? Dar terra<br />

ao povo? Para nós, de classe e de inteligência mais<br />

elevada do que a massa, isso é coisa de comunista.<br />

Dizem que o povo foi às ruas para dar apoio a<br />

Jango. Um apoiozinho de nada. Porque o que importa<br />

é o dinheiro. Quem estava ao meu lado era o setor da<br />

sociedade com pensamento superior, que se posicionava<br />

contra o presidente comunista. Se os grandes grupos<br />

econômicos estavam ao meu lado, o que mais poderia<br />

querer? Luz, câmera e ação, claro! Faltava a mídia, que<br />

não pensou duas vezes em fazer uma propaganda digna<br />

da minha personalidade, quando comecei molhar a<br />

mão dos canais de tv e rádio. Os Estados Unidos, sempre<br />

muito participativos, não poderiam deixar de dar o ar da<br />

graça. Big Brother was watching Brazil! Esse apoio foi tudo<br />

que faltava para que eu pudesse tirar de cena o presidente,<br />

de qualquer jeito, a qualquer momento.<br />

Coloquei os tanques de guerra nas ruas na madrugada<br />

de 31 de março para 1º de abril de 1964. Meu nascimento<br />

foi irônico, bem no dia da mentira. Prefiro dizer que verdadeiro<br />

mesmo foi o fim que eu dei naquele papelito que o<br />

povo chamava de Constituição Federal. Tanques, militares<br />

e cavalaria cruzavam as ruas do centro do Rio de Janeiro<br />

no dia em que entrei em ação. Foram 21 anos dourados,<br />

regados à ordem e luta contra o comunismo. Sobrevivência<br />

da pátria a qualquer custo, custe a vida que custar. “Democratas<br />

do Brasil, não desconfiem das gloriosas Forças<br />

Armadas de nossa Pátria”, era o que dizia Auro de Moura<br />

Andrade, presidente do senado à época, na Marcha da Família<br />

com Deus pela Liberdade.<br />

Logo que os aliados me deram permissão para agir,<br />

não pensei duas vezes em acabar com aquela patifaria<br />

de União Nacional dos Estudantes (UNE). Metralhei e<br />

incendiei a sede da UNE. O que mais me incomodava<br />

com relação a esses estudantes, além deles se acharem<br />

os sabichões só porque leem um livrinho ou outro, é<br />

que quanto mais eles se organizavam, mais gente com o<br />

mesmo pensamento comunista se espalhava como peste<br />

em uma universidade da nação. Fiz o que foi necessário:<br />

persegui, controlei, prendi, torturei, dei sumiço a milhares<br />

de envolvidos com organização estudantil. Todos<br />

subversivos! Professores e funcionários também. A solução<br />

era simples: ame-o ou deixe-o. A UNE foi uma de<br />

nossas principais inimigas a ser combatida e destruída.<br />

A Lei Suplicy de Lacerda, de novembro de 1964, proibia<br />

organizações políticas dentro das universidades. Os<br />

militares acabaram com qualquer possibilidade da UNE atuar<br />

livremente nas universidades e nas ruas do país, discurso que<br />

legitimou estudantes como “foras da lei”. Com o país e as<br />

Universidades sob regime de vigilância e repressão, estudantes,<br />

professores e funcionários eram intensamente reprimidos.<br />

O Brasil mergulhava em uma densa escuridão. Lembrar para<br />

não esquecer. Lembrar para não repetir.<br />

Ano 2018, o cenário é duro: deslegitimação das instituições<br />

de ensino, cortes de verbas, atraso no salário de funcionários,<br />

demissões. A situação estremece o cotidiano de quem tem compromisso<br />

de educar sujeitos para que sejam pensantes e combativas.<br />

As Universidades resistem. Brava gente brasileira. Resistir para<br />

continuarmos distantes dos tempos que mergulharam o país em<br />

anos de chumbo. Agir hoje para que o direito ao acesso à educação<br />

não seja um privilégio. Enquanto a educação for pintada de<br />

gente, amanhã há de ser outro dia.


Violência inaugural<br />

Mais de 50 anos nos separam de 1964, início da<br />

violência cometida pela Ditadura Militar. Parece um passado<br />

distante, mas que ainda vive na memória de quem<br />

lutou contra a repressão. A tirania que invadiu o Brasil,<br />

chegou às salas de aula, corredores, centros acadêmicos.<br />

Salas onde Maura Oliveira foi universitária entre 1968-<br />

1973; corredores em que Hila Rodrigues e Marta Maia<br />

sonharam com a redemocratização. Três vivências entre<br />

outras, de sujeitos que fazem a Universidade pulsar.<br />

“O prédio foi cercado pela polícia do exército e pelo Departamento<br />

de Ordem e Política Social (Dops). Subimos<br />

até o último andar. Era tudo muito perigoso, a gente tinha<br />

muito medo’’. Maura Oliveira cursava o primeiro ano<br />

de Jornalismo na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas<br />

(Fafich), na Universidade Federal de Minas Gerais<br />

(UFMG). O ano era 1968, quando o prédio em que a hoje<br />

professora do curso de Comunicação da Pontifícia Universidade<br />

Católica de Minas Gerais (PUC Minas) estudava,<br />

foi cercado. Alunos, docentes e funcionários foram alvo de<br />

bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo. Passaram o<br />

dia inteiro refugiados. No cerco montado pelos policiais,<br />

havia uma lista de estudantes e professores procurados,<br />

todos considerados “subversivos”. Os identificados, foram<br />

presos e levados ao Dops, para “prestar esclarecimentos”.<br />

Essa seria somente uma das várias intervenções que<br />

os militares fariam na Fafich e nos demais prédios da<br />

UFMG, enquanto a Ditadura vigorou no país. Ainda em<br />

1968, a Universidade de Brasília (UnB) sofreu a terceira<br />

invasão. 3 mil estudantes se reuniram na UnB contra a<br />

prisão de sete alunos, um deles o presidente do Diretório<br />

Central dos Estudantes (DCE), Honestino Guimarães.<br />

A Polícia Militar e o Dops invadiram a Universidade e<br />

renderam mais de 500 estudantes. Um manifestante foi<br />

baleado na cabeça, 60 pessoas foram presas e o presidente<br />

do DCE levado à prisão.<br />

Os Atos Institucionais (AIs), aplicados pelo Governo<br />

Militar, estabeleciam normas que serviam como<br />

instrumentos para as ações ostensivas. Assinado pelo<br />

ex-Presidente Costa e Silva em 1969, o AI-5 foi criado<br />

para proibir manifestações de cunho político e qualquer<br />

atividade considerada “subversiva”. De caráter repressivo,<br />

era conhecido como um decreto-lei voltado para os<br />

universitários. Previa expulsão de estudantes e demissões<br />

de professores e funcionários que se organizassem<br />

politicamente. Entre as infrações consideradas graves,<br />

estavam paralisações de atividades escolares, organização<br />

de eventos sem autorização prévia ou qualquer “ato<br />

contrário à moral e à ordem pública’’. Em 1970, o governo<br />

intensificou a vigilância, com a criação das Assessorias<br />

de Segurança e Informação (ASI) instaladas nas<br />

reitorias das instituições. Mais de 40 ASIs foram implantadas<br />

ao longo da década para controlar a contratação de<br />

funcionários, concessão de bolsas de pesquisa, autorizações<br />

para estágio, e vigiar o cotidiano das universidade.<br />

Mobilização enraizada<br />

A luta contra a repressão vivida nas ruas, se estendia<br />

para as salas de aula. O ano era 1979 e Marta Maia<br />

compunha o movimento de estudantes secundaristas,<br />

no interior de São Paulo. Fez parte do corpo de discentes<br />

que reconstruiu a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas<br />

(Ubes), fechada pela ditadura militar. Pós<br />

renascimento da Ubes, foi Diretora do Departamento<br />

Feminino, impulsionando a criação de entidades em escolas<br />

do país. “Foi um momento muito difícil, tivemos<br />

que enfrentar a Polícia Militar, diversas repressões, justamente<br />

pela vontade de reconstruir a Ubes”.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 31


CRÉDITO: FOTOGRÁFO NÃO IDENTIFICADO<br />

A existência da Universidade depende<br />

do debate livre, da autonomia de pesquisa,<br />

de sua insubmissão aos poderes.<br />

Não temos como existir plenamente<br />

sem a democracia.<br />

CRÉDITO: FOTOGRÁFO NÃO IDENTIFICADO<br />

Marta Maia em campanha pelo impeachment do então presidente<br />

Fernando Collor, em 1992.<br />

Marta Maia em campanha<br />

pelo impeachment do então<br />

presidente Fernando Collor,<br />

em 1992.<br />

CRÉDITO: FOTOGRÁFO NÃO IDENTIFICADO<br />

Hila Rodrigues em cobertura<br />

para a Rádio Alvorada FM,<br />

em 1989. Na ocasião, Lula,<br />

candidato à presidência da<br />

república, visita<br />

Pimenta da Veiga.


No início dos anos 1980, Marta iniciou o curso<br />

de Jornalismo na Pontifícia Universidade Católica<br />

de Campinas (Puc Campinas) e se juntou ao DCE.<br />

“O interessante é que a resistência partia de outro<br />

ponto: por se tratar de uma universidade privada,<br />

organizávamos movimentos de boicote às mensalidades.<br />

Passávamos nas salas recolhendo os carnês para<br />

pressionar a reitoria”. Em um dos movimentos, o DCE<br />

chegou a colocar fogo nos carnês no Pátio dos Leões.<br />

As formas de organização não estimulavam apenas o<br />

lado político dos alunos. Inflamados por movimentos<br />

artísticos que atuavam contra a ditadura, o DCE<br />

produziu eventos culturais, debates e palestras.<br />

Como jornalista, Marta participou do Diretas Já,<br />

movimento popular que reivindicava o voto direto para<br />

presidente da república, entre os anos de 1983-1984.<br />

“Saía em carro de som, participava de atos enormes.<br />

Brasília era a minha segunda casa, íamos nas caravanas<br />

de estudantes e professores. Chegávamos na cidade e íamos<br />

a passeatas, atos públicos. Depois, voltávamos para<br />

São Paulo com o sentimento de ação pulsando no peito”.<br />

Hila Rodrigues, professora de Jornalismo na Ufop,<br />

estava em uma das manifestações do Diretas Já. Caloura<br />

na Puc Minas, foi para a Praça da Rodoviária, no<br />

centro de Belo Horizonte, junto com colegas de sala.<br />

“Os ônibus não cobraram passagem para que as pessoas<br />

que quisessem ir para a manifestação, fossem de<br />

graça, o que colocou ainda mais gente na rua’’. Hila<br />

relembra que o Diretas não recebeu destaque na imprensa<br />

tradicional, um posicionamento interpretado<br />

como contrário à manifestação popular e à redemocratização.<br />

“Essas campanhas que colocam muita gente<br />

na rua dão uma esperança enorme. A gente consegue<br />

sentir o poder das mobilizações, tínhamos esperança<br />

de reconquistar o direito ao voto, ainda mais na época<br />

de estudante, na rua junto com meus colegas”.<br />

Marta Maia ressalta que o período de redemocratização<br />

foi muito marcado pelo espírito combativo de<br />

estudantes, professores, militantes, e sociedade civil<br />

em geral “Foi um período de muita ebulição, extremamente<br />

importante para conseguirmos as Diretas Já e a<br />

democracia que hoje estamos sofrendo esses revezes.<br />

Mas estamos na luta, não estamos parados”. Hoje,<br />

tentativas insistentes de enfraquecimento de direitos<br />

e conquistas batem novamente à porta das Universidades<br />

brasileiras. Em 2016, foi aprovado pela Câmara<br />

dos Deputados e pelo Senado Federal a Proposta de<br />

Emenda Constitucional (PEC 241), que estipula um<br />

teto para os gastos públicos, entre eles saúde e educação;<br />

por até 20 anos, Universidades Públicas terão as<br />

verbas congeladas pelo Governo Federal.<br />

Medidas como essa, aprovadas pelo Presidente<br />

Michel Temer, mostram um governo marcado por<br />

cortes nas políticas públicas. As ações são certeiras:<br />

em abril de 2017, o governo anunciou o corte de 4,3<br />

bilhões de reais no Ministério da Educação (MEC), o<br />

que afeta serviços essenciais como o custeio de obras<br />

para expansão e reformas das Universidades, a manutenção<br />

de serviços terceirizados, atraso no pagamentos<br />

de água, luz e manutenção. Na área do conhecimento,<br />

as atividades de pesquisa à nível graduação e pós<br />

também são afetadas: cortes nas verbas do Conselho<br />

Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico<br />

(CNPq) e na Coordenação de Aperfeiçoamento de<br />

Pessoal de Nível Superior (Capes), por exemplo, atingem<br />

o financiamento de investigações em todas as<br />

áreas do conhecimento - muitas delas, sofrem com<br />

paralisações e risco de não terem continuidade.<br />

“A nossa ação no mundo”<br />

Em fevereiro de 2018, uma disciplina sobre análise<br />

da conjuntura político-social, ofertada na graduação<br />

em Ciência Política na UnB, foi alvo de tentativas de<br />

censura. Intitulada “O golpe de 2016 e o futuro da democracia<br />

no Brasil”, sua proposta é refletir sobre o sistema<br />

político brasileiro atual. O ministro da educação à época,<br />

Mendonça Filho (DEM), declarou que acionaria instâncias<br />

máximas, como o Ministério Público Federal (MPF),<br />

para investigar “improbidade administrativa”, sob a justificativa<br />

“que uma instituição respeitada e importante<br />

adote prática de apropriação de bem público para promoção<br />

de pensamentos político-partidários”.<br />

Para o professor idealizador da disciplina, Luis Miguel,<br />

houve desconhecimento do ex-Ministro da Educação<br />

que não compreende o universo acadêmico e, por<br />

isso, acreditou que poderia “censurar” uma matéria<br />

universitária. “Há um tanto de ignorância e outro tanto<br />

de má fé. O que eles querem é um ensino que, por<br />

não questionar, torna-se cúmplice do mundo tal como<br />

é. Houve a ameaça do ex-ocupante do MEC, manifestações<br />

absurdas de juízes e procuradores reacionários,<br />

e também há a ação de grupos obscurantistas como o<br />

chamado ‘Escola Sem Partido’. Mas a perseguição tem<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 33


enfrentado forte resistência. E permanecemos protegidos<br />

pelo artigo 207 da Constituição Federal, que garante<br />

a autonomia universitária com clareza absoluta”.<br />

O professor Luis Miguel aponta que a autonomia<br />

universitária é a chave para que uma instituição de<br />

ensino se mantenha firme frente às tentativas de golpes<br />

na educação, sem ceder às pressões políticas, como<br />

em outros momentos da história. “A existência da<br />

Universidade depende do debate livre, da autonomia<br />

de pesquisa, de sua insubmissão aos poderes. Não<br />

temos como existir plenamente sem a democracia”.<br />

O que o ex-Ministro da Educação não esperava é<br />

que as tentativas de censura fossem o gatilho para um<br />

movimento de resposta. A primeira foi da UnB, que<br />

lançou nota reiterando compromisso “com a liberdade<br />

de expressão e opinião - valores fundamentais para as<br />

Universidades, que são espaços, por excelência, para o<br />

debate de ideias em um Estado democrático”. Depois,<br />

13 Universidades se posicionaram em defesa da autonomia<br />

universitária e, atualmente, são mais de 100 cursos<br />

sobre o golpe de 2016 nas modalidades de aulas e atividades<br />

de extensão. “Centenas de colegas se levantaram<br />

não apenas para verbalizar solidariedade, mas para<br />

dividir comigo o ônus das perseguições. Foi um lindo<br />

movimento em defesa da universidade e, na circunstância,<br />

em defesa de um colega”, comentou Luis Miguel.<br />

Hila e Marta ocupam hoje o espaço das salas<br />

de aula como professoras. Hila destaca o poder do<br />

lecionar em Universidades que enfrentam tentativas<br />

de desqualificação. “Entrei como docente pensando<br />

em formar indivíduos que questionassem. É um pouco<br />

isso que a gente faz enquanto professor, tentamos<br />

compartilhar com os alunos coisas que julgamos importantes.<br />

A Universidade é um lugar por excelência<br />

de resistência. O ex-Presidente Lula falava que o pobre<br />

tinha que entrar na universidade. Por quê? Porque ela<br />

é capaz de dar um clique, abrir a mente das pessoas”.<br />

Como professora da Universidade Metodista<br />

de São Paulo durante a década de 1980, Marta<br />

relembra um projeto de extensão desenvolvido com<br />

o Movimento dos Sem Terra (MST), que visava a<br />

democratização da comunicação. Viajava para as<br />

áreas rurais para trabalhar de perto com pessoas “que<br />

entendiam mais da lida da roça do que do comunicar”,<br />

e vivenciou o poder de transformação da Universidade<br />

“o que é importante, como [o educador] Paulo<br />

Freire fala, é a nossa ação no mundo. A educação só<br />

tem sentido quando transforma”.<br />

Pra não dizer que falei das flores<br />

O Flores é um grupo que resiste fazendo pesquisa<br />

e extensão, existindo na docência, na militância<br />

dentro e fora da universidade. Daniela Auad é professora<br />

do Programa de Pós-Graduação em Educação da<br />

Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Casada<br />

com Cláudia Lahni, também professora da UFJF,<br />

construíram o Flores Raras, grupo de pesquisa em<br />

Comunicação, Educação e Feminismos. O Flores também<br />

se estrutura como coletivo, promovendo ações<br />

que buscam fazer circular o pensamento sobre questões<br />

de gênero, sexualidades, identidades, e as várias<br />

formas de ser mulher. A ação de grupos como o Flores<br />

dentro de universidades é uma resposta às opressões<br />

sofridas na sociedade. Nos 21 anos em que a Ditadura<br />

prevaleceu no país, além dos grupos políticos, eram<br />

também alvos de perseguição pessoas LGBTQ+ que<br />

militavam pelo direito à vida. Em 2014, a Comissão<br />

Nacional da Verdade (CNV) apresentou, à então<br />

Presidenta Dilma Rousseff, relatório final que apontava<br />

perseguições contra gays, lésbicas, bissexuais, travestis<br />

e transexuais, alvos da intolerância do regime<br />

militar. O documento aponta que as violações eram<br />

muitas: torturas, espancamentos, ameaças, extorsões.<br />

Coletivos começaram a ser estruturados no final da<br />

década de 1970 em defesa à dignidade dos LGBTs.<br />

Em 2017, a UFJF realizou campanha para visibilidade<br />

lésbica, que incluiu docentes, técnicas administrativas,<br />

funcionárias e acadêmicas, com o intuito<br />

de levantar o debate acerca do machismo e da diversidade<br />

sexual. Daniela acredita que essa campanha,<br />

além de combater os discursos de ódio, possibilitou<br />

um conhecimento maior sobre o Flores Raras “Isso<br />

proporcionou que o grupo acolhesse estudantes do<br />

Brasil inteiro. Tenho cinco doutorandas: de Juiz de<br />

Fora, Paraná, Pernambuco, Belo Horizonte e do Rio<br />

de Janeiro. Todas elas pesquisam questões de gênero,<br />

educação, feminismos. Dessas mulheres, uma é branca,<br />

outra é indígena, duas são negras. Ou seja, temos<br />

uma variedade de raça importante na produção de pesquisa<br />

na pós”. A professora afirma que a variedade de<br />

sujeitos que constroem o Flores é um importante passo<br />

para a afirmação como cientistas. “Sabemos que essas<br />

são as mulheres que não são percebidas como cientistas<br />

e que não têm lugar na academia. Nós produzimos<br />

ciência, privilegiamos a acolhida dessas mulheres e lutamos<br />

por isso no interior da universidade”.


CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 35


Habitar<br />

Existências<br />

cruzadas<br />

Em cada canto da Universidade, uma mulher resiste por<br />

dia. São muitas. Entre conversas de corredor, trabalhos<br />

e salas de aula, suas histórias acontecem, são criadas<br />

e transformadas - para o bem e, muitas vezes, também<br />

para o mal. São vidas invisíveis, vidas atravessadas pelo<br />

machismo, vidas reduzidas a violências cotidianas. Em<br />

cada canto da Universidade, uma mulher resiste por dia.


Texto:<br />

Foto:<br />

Arte:<br />

Modelos:<br />

Lethícia Bueno<br />

Débora Madeira<br />

Maria Santos<br />

Laura Marostegan<br />

Luciana Gontijo<br />

Clara Lemos<br />

Carolina Sousa<br />

Ruan Sousa<br />

Pequenos<br />

GRANDES<br />

Universos<br />

Todos os dias, menos aos fins de semana, Rosimary de<br />

Oliveira Silva vai à universidade. Acorda às cinco e meia da<br />

manhã, prepara o café e arruma os filhos para saírem. Às<br />

sete horas, Rosimary assina a folha de papel que dá entrada<br />

ao seu turno no campus do Instituto de Ciências Sociais<br />

Aplicadas (Icsa), em Mariana, Minas Gerais. Às cinco da<br />

tarde, o horário encerra e ela faz o caminho inverso para<br />

casa. No dia seguinte, o vai-e-vem do dia anterior.<br />

Há quase sete anos, a rotina da auxiliar de serviços gerais<br />

passa pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), onde<br />

ela realiza as funções de limpeza e de organização. Um<br />

trabalho que faz toda a diferença no dia-a-dia da Academia.<br />

Sem Rosimary e todas as outras mulheres que integram<br />

o corpo de trabalhadoras terceirizadas da Ufop, não há<br />

conhecimento ou ciência que possa existir e ser produzido.<br />

Agora, ela quer ir além: pretende cursar Jornalismo, uma<br />

das quatro graduações ofertadas no Icsa. “É poder falar<br />

que eu estudei, que eu aprendi, que eu fiz alguma coisa por<br />

mim”, reflete. Mas Rosimary demorou para compreender<br />

que ela também pode ocupar a Universidade - não apenas<br />

pelo seu trabalho. “[Antes de conhecer o Icsa], a única<br />

coisa que eu via era uma escola particular que eu não tinha<br />

condições de pagar para estudar”, explica.<br />

Assim como Rosimary, a vida de muitas mulheres<br />

é marcada direta e diariamente pela Universidade.<br />

Sejam servidoras, técnicas-administrativas, alunas<br />

ou professoras, elas estão presentes. No entanto, suas<br />

histórias ainda parecem ser um mistério para quem não se<br />

arrisca a escutá-las.<br />

Na monografia Estudo sobre as trabalhadoras invisíveis da<br />

limpeza em uma Universidade Federal, defendida em 2016, a exaluna<br />

de Administração da Ufop Daiane de Lourdes Martins<br />

se propõe a ouvir os relatos dessas trabalhadoras. A autora<br />

conclui demonstrando que a maioria das terceirizadas da<br />

Ufop e entrevistadas por ela gostam do ambiente de trabalho,<br />

mas se sentem excluídas pela comunidade acadêmica. Frases<br />

como “nós somos tratadas diferente aqui, ao verem nosso<br />

uniforme mudam o jeito” e “tem gente que acha que somos<br />

sujeira também” são algumas das muitas encontradas ao<br />

longo da pesquisa.<br />

Nos seis anos em que está no Icsa, Sandra Helena da Silva<br />

Soares foi procurada apenas uma vez para dar entrevista.<br />

À auxiliar de cozinha, que trabalha 48 horas por semana<br />

para ajudar a filha que estuda em uma universidade federal<br />

em outra cidade, foi perguntado sobre o funcionamento<br />

do restaurante universitário. Na parede fina que separa<br />

a cozinha onde Sandra trabalha e as mesas em que os<br />

estudantes almoçam e jantam todos os dias no Icsa, uma<br />

lembrança dolorida que ela não teve a oportunidade de<br />

contar: “uma vez, um rapaz jogou a bandeja [e ela] passou<br />

para o lado de dentro e eu saí da reta para não pegar no meu<br />

nariz. Ele falou: ‘eu não sou obrigado a comer essa porcaria’.<br />

Não é a gente que faz a comida”, desabafa.<br />

Ivani Márcia do Carmo e Cláudia Aparecida da Silva<br />

também são auxiliares de cozinha do Icsa e revelam que a<br />

convivência no instituto é boa e tranquila. Mesmo assim,<br />

Ivani já vivenciou situações de negligência no trabalho, como<br />

na vez em que ela e outras mulheres engravidaram e foram<br />

demitidas de uma empresa terceirizada que atendia a Ufop.<br />

“A gente ficou a gravidez toda sem um centavo, porque a<br />

empresa que entrou disse que não poderia contratar grávida”,<br />

lembra. Tempos depois, Ivani conseguiu retornar ao cargo.<br />

Já Cláudia está nos primeiros meses de sua terceira gestação<br />

e entre os sorrisos e a gratidão de alguns alunos, a auxiliar<br />

encontra energia para seguir trabalhando. Para ela, a Universidade<br />

prepara e capacita as pessoas para a vida e, por isso,<br />

entre suas metas, está a de continuar os estudos. “Meus planos<br />

são esperar minhas filhas crescerem mais um pouco, voltar a<br />

estudar, abrir um restaurante e terminar minha casa”, conta.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 31


Para Rosimary, Sandra, Cláudia, Ivani e Caroline,<br />

a Universidade é um espaço de oportunidades,<br />

mas também de obstáculos.


Como Rosimary e Cláudia, a vontade de ingressar em<br />

um curso superior é também o de Sandra, que facilmente<br />

escolheria entre Serviço Social e Agronomia. Mas o<br />

grande objetivo é o de, um dia, cursar Gastronomia e<br />

abrir um negócio próprio. E Ivani queria mesmo era trabalhar<br />

com o que gosta: abrir um salão para penteados<br />

e tranças africanas. Entre os desejos de cada uma delas,<br />

um ponto em comum: a Universidade como um lugar<br />

de sonhos pessoais. Resta perguntar se esses sonhos são<br />

possibilidades ou barreiras.<br />

Ciências da desigualdade<br />

Hoje, na educação superior presencial e à<br />

distância, as mulheres são maioria. Uma<br />

conquista histórica, já que demorou mais de<br />

meio século para a participação feminina<br />

nas Universidades brasileiras ser<br />

uma realidade. De acordo com a<br />

pesquisa Censo da Educação Superior, de<br />

2016, do Instituto Nacional de Estudos e<br />

Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep),<br />

foram 2.481.702 matrículas de mulheres nas<br />

Universidades contra 1.840.390 de homens.<br />

Elas também saem na frente com o diploma: 32%<br />

das mulheres se graduaram a mais que homens em cursos<br />

presenciais no país à época. Número que impressiona<br />

se levada em consideração a carga horária semanal<br />

das mulheres. No estudo Estatísticas de gênero: indicadores<br />

sociais das mulheres no Brasil, de 2018, realizado pelo<br />

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),<br />

constatou-se que elas se ocupam três vezes mais do que<br />

os homens, somando trabalho, estudos, afazeres domésticos<br />

e cuidados de pessoas.<br />

Mesmo com o crescimento da produção acadêmica<br />

realizada por mulheres, que chegou aos 49% nos últimos<br />

20 anos, de acordo com o relatório Gender in the Global Research<br />

Landscape, da editora holandesa Elsevier, de 2017, a<br />

distribuição de bolsas de pesquisa científica ainda é desproporcional<br />

entre os gêneros, em especial para aquelas<br />

que seguem nas carreiras de Ciências Exatas.<br />

Bárbarah Marques Silva é aluna do nono período de<br />

Engenharia Civil nas Faculdades Unificadas Doctum, em<br />

Teófilo Otoni, Minas Gerais, e conta que é comum receber<br />

comentários negativos sobre ser mulher em um curso de<br />

exatas. “O que eu mais ouço é se estou preparada para ir<br />

à obra carregar concreto”, comenta. Apesar do apoio que<br />

ela e suas colegas de turma recebem de outros estudantes,<br />

que intervêm em situações de desrespeito, Bárbarah se indigna<br />

com o tratamento que recebe de alguns familiares e<br />

de pessoas que não conhecem o curso. “Tem que criar, desenhar,<br />

calcular, desenvolver, executar, administrar e, por<br />

fim, vender o produto. E todas essas ações podem muito<br />

bem ser executadas por mulheres”, afirma.<br />

Em outra pesquisa recente, de 2017, publicada pela<br />

revista científica Peerj, intitulada Underrepresentation<br />

of women in the senior levels of Brazilian science, foram<br />

analisadas as distribuições das Bolsas de Produtividade<br />

e Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento<br />

Científico e Tecnológico (CNPq), que oferecem subsídios<br />

para a realização de projetos. O resultado é alarmante:<br />

entre 2013 e 2014, menos de 21% das bolsas dos cursos<br />

de Ciências Exatas no Brasil foram destinadas às<br />

mulheres. Na Engenharia Elétrica, apenas 13 mulheres<br />

foram contempladas com bolsas, enquanto os homens<br />

receberam 269 delas. Na Engenharia Civil, 56 contra 210<br />

bolsas. E na Física, 101 contra 806.<br />

A desigualdade de gênero nas áreas científicas tem<br />

origem na ideia de que a mulher é associada à natureza e<br />

o homem, à razão. No artigo Sobre gênero e ciência: tensões,<br />

avanços e desafios, a autora Ângela Maria Freire de Lima e<br />

Souza critica essa relação e dispara: “o grande desafio [das<br />

mulheres] é a própria estrutura do campo da pesquisa<br />

científica, concebido e construído para os homens.”<br />

Diferentemente dos meninos, as meninas não são<br />

incentivadas na educação básica a se tornarem cientistas<br />

e a gostarem de matemática, por exemplo. Nessa “lógica”,<br />

elas crescem acreditando que aquela não é uma área que<br />

elas possam estudar e trabalhar.<br />

Por outro lado, é grande o acesso de mulheres às carreiras<br />

de ciências humanas e às chamadas “carreiras de<br />

cuidado”. Ainda sobre a pesquisa da revista Peerj, o efeito<br />

da distribuição de bolsas se inverte nessas áreas. Em<br />

Enfermagem, por exemplo, foram destinadas 165 bolsas<br />

para mulheres e oito para homens. Em Serviço Social, 62<br />

bolsas contra nove. E em Linguística, 152 contra 59.<br />

Segundo as pesquisadoras Amélia Artes e Arlene<br />

Martinez Ricoldi, isso acontece porque “as mulheres<br />

estão presentes de forma mais intensa nos espaços de<br />

menor prestígio acadêmico”, o que não significa que al-<br />

O grande desafio [das<br />

mulheres é a própria estrutura do campo<br />

da pesquisa científica, concebido<br />

e construído para os homens.<br />

Ângela Maria Freire de Lima e Souza<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 33


gumas profissões são melhores ou piores do que outras.<br />

Para elas, o que ocorre é a distribuição desigual<br />

de valor, onde certos cursos são considerados mais<br />

“femininos” e, por isso, tornam-se a única escolha<br />

possível para algumas mulheres. Em geral, são áreas<br />

que envolvem questões de ensino, cuidado, família e<br />

saúde, funções que sempre estiveram vinculadas ao<br />

ideal de mulher “bela, recatada e do lar”.<br />

Mitos da igualdade<br />

Afinal, o que há por trás de tantos números que<br />

envolvem as mulheres na Universidade? A pergunta<br />

parece óbvia, mas Áurea Carolina, cientista social pela<br />

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), feminista<br />

e vereadora mais votada em Belo Horizonte, Minas<br />

Gerais em 2016, dá a resposta. “A Universidade é<br />

um dos espaços que, por mais que tenha passado por<br />

mudanças recentemente, continua sendo muito desigual,<br />

de reprodução de muitas violências”, critica.<br />

Em 2015, o Instituto Avon divulgou a pesquisa<br />

Violência contra a mulher no ambiente universitário, que<br />

identificou uma das realidades mais doloridas para<br />

as mulheres: a de sentir medo e impotência dentro da<br />

Academia. Em parceria com o Instituto Patrícia Galvão,<br />

a ONU Mulheres e demais órgãos, a pesquisa ouviu<br />

mais de mil e oitocentos universitários de todo o<br />

país, entre homens e mulheres, e tinha como objetivo<br />

garantir que o assunto fosse mais debatido dentro do<br />

ambiente acadêmico.<br />

Na pesquisa, constatou-se que as mulheres sofrem<br />

pelo menos seis tipos de violência na Universidade: assédio<br />

sexual, coerção, violência sexual, violência física,<br />

desqualificação intelectual e agressão moral ou psicológica.<br />

Das entrevistadas, 63% admitiram não ter reagido<br />

em nenhuma situação. Em relação aos entrevistados,<br />

88% deles concordam que a faculdade deveria instituir<br />

punições aos responsáveis por essas violências. Segundo<br />

a antropóloga Debora Diniz, no artigo Mulheres na<br />

universidade: vítimas de violência impositiva, a violência no<br />

ambiente acadêmico ocorre porque a Universidade é<br />

um espelho da sociedade e, por isso, os estudantes, e<br />

até mesmo os professores, reproduzem falas, ações e<br />

comportamentos machistas e opressores aprendidos<br />

antes de ingressarem na Academia.<br />

A violência de gênero existe, mas não ocorre da<br />

mesma forma entre as mulheres. Grande parte das<br />

pesquisas de gênero, incluindo o estudo do Instituto<br />

Avon, não compreendem as diversas maneiras de ser<br />

mulher. São estudos que nem sempre fazem distinções<br />

étnico-raciais, de classe ou de identidade, fatores que<br />

influenciam diretamente na maneira como certas violências<br />

são praticadas.<br />

Apesar de representarem mais de <strong>25</strong>% da população<br />

brasileira, as mulheres negras ainda são duplamente<br />

minoria na Universidade. Mesmo com a<br />

política de cotas, o percentual de mulheres brancas<br />

que se formam é 2,3 vezes maior que o de mulheres<br />

pretas ou pardas, de acordo com o IBGE. Isso significa<br />

que apenas 10,4% das mulheres negras che-


A Universidade é um dos<br />

espaços que, por mais que tenha passado<br />

por mudanças recentemente,<br />

continua sendo muito desigual, de<br />

reprodução de muitas violências.<br />

Áurea Carolina<br />

gam a concluir a faculdade. Essa realidade é consequência de<br />

hierarquias no sistema educacional, ou seja, de um racismo que<br />

até hoje está na estrutura da vida acadêmica.<br />

A estudante de Engenharia Elétrica Sarah Silva é membra<br />

do Coletivo Negro Resistência Viva, da Universidade Federal de<br />

Juiz de Fora (UFJF), e expõe os obstáculos e a discriminação<br />

que presenciou ao longos dos quatro anos em que estuda na<br />

instituição. “Ser mulher e preta já é difícil no geral. Ser uma<br />

mulher preta em uma Universidade já complica um pouco mais.<br />

Agora, ser uma mulher preta em um curso elitista de homens<br />

brancos é uma luta colossal”, desabafa. Ela conta que, em muitas<br />

aulas, era a única mulher negra e que já ouviu “piadas” racistas<br />

e machistas, como “você só foi bem em uma prova porque<br />

‘deu em cima do professor’”. De acordo com Sarah, as mulheres<br />

negras são invisibilizadas na academia porque ainda são poucas.<br />

“Não somos aceitas em nenhum curso porque não somos<br />

aceitas na Universidade”, pontua.<br />

Para as mulheres da comunidade brasileira LGBTI+ (Lésbicas,<br />

gays, bissexuais, transexuais e transgêneros, intersexuais), o<br />

quadro não é diferente. Em um país que mata uma pessoa LGB-<br />

TI+ a cada 19 horas, número recorde apontado pelo relatório do<br />

Grupo Gay da Bahia (GGB), de 2017, a discriminação e o ódio<br />

ao “diferente” ainda são comuns na Universidade. Apesar de<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 35


Por ser mulher, temos que<br />

nos desdobrar para fazer uma gestão que<br />

gere confiança e respeito ao<br />

trabalho feminino.<br />

Cláudia Marliére<br />

conquistas como a de Luma Andrade, primeira travesti a<br />

ingressar e concluir o doutorado no Brasil, o ambiente ainda<br />

é cruel para a comunidade.<br />

Cecília Falconiere é estudante de Medicina na Universidade<br />

Federal Fluminense (UFF) e a única mulher transgênero<br />

assumida do curso. Ela conta que ser trans e chegar<br />

ao nível superior em uma Universidade pública é quebrar<br />

uma grande barreira, mas também estar em conflito com<br />

os valores de outras pessoas. “O que mais me marca é a<br />

minha identidade ser invalidada e as minhas falas serem<br />

ignoradas por docentes que se intitulam ‘especialistas’ na<br />

minha realidade - que, obviamente, não é a realidade deles”,<br />

lamenta. A UFF possui políticas de inclusão do nome<br />

social para transgêneros, mas a estudante relata que acabou<br />

se acostumando em ter sua identidade desrespeitada.<br />

“Alguns professores já me trataram no masculino, mesmo<br />

constando a identidade feminina nos registros da Universidade”,<br />

explica. Ainda assim, Cecília reconhece que a Universidade<br />

é um espaço de privilégio. Fora desse ambiente,<br />

essas mulheres são mais expostas a violências e a desafios.<br />

Áurea Carolina é Cientista Social pela<br />

UFMG e a vereadora mais votada em<br />

Belo Horizonte.<br />

Áurea Carolina é Cientista Social pela UFMG e a vereadora mais<br />

votada em Belo Horizonte em 2016.<br />

Mecanismos ocultos<br />

“A maternidade é o período mais solitário da vida<br />

da mulher. Você é julgada o tempo inteiro.” A frase é de<br />

Caroline Pessoa Sena, estudante de Jornalismo da Ufop,<br />

que viveu duas gestações durante a faculdade. Mãe de três<br />

filhos, Caroline tentou adequar a rotina para seguir indo<br />

às aulas na gravidez do segundo filho, mas conta que ficou<br />

traumatizada com os comentários que ouvia pelo campus<br />

e suspendeu o semestre. “Quando uma menina grávida<br />

passou, um grupo que estava perto falou ‘não sei como<br />

esse povo tem coragem de sair barrigudo assim para vir<br />

para a faculdade’”, relembra.<br />

Para Caroline, na Academia não há nenhum preparo<br />

para acolher as mães estudantes, seja através de creches<br />

universitárias ou auxílios-creche. Muitas ainda precisam<br />

levar os filhos para as salas de aula e são barradas ou ridicularizadas<br />

pelos professores. “É muito difícil acompanhar<br />

o ritmo da Universidade sendo mãe. Nem todo mundo<br />

conversa com você”, lamenta.


Segundo Áurea Carolina, existem mecanismos presentes<br />

na Universidade que tornam a vida de algumas<br />

mulheres mais difíceis do que de outras. São práticas<br />

e comportamentos de negação das experiências diversas,<br />

que rotulam, condenam e, principalmente, excluem<br />

aquelas que não se encaixam numa suposta “normalidade”.<br />

Esses mecanismos, na maioria das vezes invisíveis<br />

e “inofensivos”, fazem parecer que a mulher já<br />

conquistou igualdade porque ocupa a Universidade.<br />

Quando, na verdade, “a estrutura da Universidade ainda<br />

é muito distante do cotidiano da maioria de nós”,<br />

aponta a cientista social.<br />

Tamires Coêlho é professora de Jornalismo na Universidade<br />

Federal de Mato Grosso (UFMT) e sente na<br />

pele esses mecanismos. Ela explica que as barreiras para<br />

começar uma carreira docente começam na convocação<br />

para se tornar servidora pública. No exame admissional<br />

obrigatório, as mulheres passam por um exame a mais,<br />

o preventivo, que é invasivo ao corpo e pode gerar complicações<br />

na posse, caso não fique pronto em 30 dias.<br />

“Um homem que só precisa fazer exames básicos vai<br />

tomar posse muito mais rápido”, destaca.<br />

Em relação à sala de aula, Tamires ressalta uma<br />

exigência implícita de se “masculinizar” e falar mais<br />

grosso para ser escutada e respeitada pelos alunos. A<br />

professora também observa como certas ações apontam<br />

para o silenciamento da docente mulher. “É muito<br />

comum que a gente seja interrompida por homens em<br />

reuniões e que a nossa palavra tenha um peso diferente.<br />

É como se o homem, por si só, estivesse no lugar dele<br />

e a gente estivesse deslocada”, constata. Além disso,<br />

por ser uma mulher nordestina, ela percebe os estigmas<br />

na profissão, sendo muitas vezes caracterizada pelo<br />

lugar de onde vem.<br />

Já nas estruturas da própria Universidade, existem<br />

outros mecanismos que dificultam o acesso das mulheres<br />

aos cargos de administração. Na pesquisa A representação<br />

das mulheres como reitoras e vice-reitoras das universidades<br />

federais do Brasil: um estudo quantitativo, de 2017,<br />

Anelise Bueno Ambrosini avalia a presença feminina<br />

nesses cargos e conclui que, das 63 Universidades federais<br />

do país, somente 30,2% das mulheres eram reitoras<br />

à época da pesquisa e 34,4%, vice-reitoras.<br />

Pela primeira vez em 49 anos desde sua criação, a<br />

comunidade acadêmica da Ufop elegeu, em 2017, uma<br />

mulher como reitora, a docente de Nutrição, Cláudia<br />

Marliére. Ela conta que ouviu diversos comentários<br />

machistas na campanha eleitoral. “Alguns professores<br />

e técnicos falavam para não votar em mim porque<br />

dois professores amigos meus é que iriam administrar<br />

[a Universidade]”, relata. Como reitora, Cláudia se<br />

sente desafiada e com uma grande responsabilidade<br />

em mãos sendo a primeira reitora de uma Universidade<br />

governada por muito tempo apenas por homens.<br />

“Por ser mulher, temos que nos desdobrar para fazer<br />

uma gestão que gere confiança e respeito ao trabalho<br />

feminino”, pondera.<br />

Não se nasce luta; torna-se luta<br />

Kassandra da Silva Muniz, docente de Letras na<br />

Ufop, argumenta que nem todas as mulheres na Academia<br />

têm consciência de que lugares sociais ocupam, o<br />

que dificulta que elas percebam mecanismos machistas<br />

e desiguais. É somente apresentando esse debate que<br />

ele pode se estender e sair do ambiente acadêmico.<br />

Para a professora, balançar as estruturas é um processo<br />

que requer tempo e que pode ser feito de muitas<br />

formas: através de coletivos feministas, negros e de<br />

educação; criando disciplinas obrigatórias para discutir<br />

as questões de gênero, raça e classe e oferecendo aos<br />

professores palestras e cursos relacionados ao assunto.<br />

Mesmo com todas as dificuldades, Kassandra vê uma<br />

oportunidade: “pela vitalidade que a juventude nos<br />

traz, talvez seja um bom caminho para gente pensar na<br />

possibilidade de iniciar uma superação.”<br />

Para Áurea Carolina, o segredo para uma possível<br />

mudança está em compreender a Universidade como<br />

um espaço de poder e de privilégio. Isso significa que<br />

estar dentro desse lugar é ter a chance de reorganizálo.<br />

“Se a gente consegue mover essas estruturas, pode<br />

representar a oportunidade para que mais mulheres<br />

acessem, para que outras continuem pressionando.<br />

É necessário propor rodas de conversa e criar<br />

espaços de confiança para que essas mulheres se<br />

conheçam, independente da posição que ocupem na<br />

Universidade”, provoca.<br />

Segundo Áurea, trabalhar a interseccionalidade<br />

na Universidade é uma maneira de resistir. “É uma<br />

palavra grande, mas traduz uma constatação simples:<br />

de que nós somos muito diferentes entre si. Ignorar<br />

essas individualidades é nunca alcançar o potencial<br />

de sermos mulheres de infinitas formas na<br />

coletividade”, finaliza.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 37


Texto:<br />

Foto:<br />

Diagramação:<br />

André Ferrari<br />

Thiago Dias<br />

Lucas Santos<br />

BIBLIOTECA DA ESCOLA DE MINAS


Unidade em<br />

construção<br />

Quando falamos de Ensino Superior, é muito difícil para os<br />

próprios historiadores demarcarem uma origem pontual.<br />

Entretanto, a Universidade de Bolonha (1088) e a Universidade<br />

de Paris (1214) são os modelos estruturais universitários<br />

consolidados na Europa Ocidental. Sua influência se espalhou<br />

ao longo do tempo, desencadeando a maioria dos formatos<br />

que vieram adiante. Os modelos que surgiram no Brasil<br />

beberam nessa fonte, mas os obstáculos da história fazem<br />

das nossas Universidades um projeto ainda inacabado.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 41


1088<br />

Nasce a Universidade de Bolonha (Itália), considerada a primeira da Europa.<br />

1808<br />

1909<br />

Primeiro Ensino Superior no Brasil - Escola de Cirúrgia na Bahia.<br />

Primeira Universidade Particular brasileira - Universidade de Manaus.<br />

1931<br />

Criação do Estatuto das Universidades Brasileiras - Decreto n 19.851.<br />

1937<br />

Fundação da UNE - União Nacional dos Estudantes.<br />

1968<br />

1998<br />

2004<br />

Criação da Lei da Reforma Universitária no Brasil - Maior impulso nas<br />

Universidades brasileiras.<br />

Criação do Enem para avaliar as notas dos alunos do Ensino Médio.<br />

O Enem passa a ser um portal de acesso para a entrada de alunos na<br />

Universidade com a criação do Prouni - Programa Universidade para todos.<br />

2009<br />

Criação do Sisu - Sistema de seleção unificada para direcionar a entrada<br />

dos estudantes às universidades públicas do país.<br />

2012<br />

Criação da Lei de Cotas - Lei que destina 50% das vagas das Universidades<br />

Públicas para alunos que se enquadram em Ações Afirmativas.


Universidade a la brasileira<br />

O professor da Universidade Federal de Ouro<br />

Preto (Ufop) e Doutor em Educação, José Jardilino,<br />

destaca uma diferença significativa entre a Universidade<br />

brasileira e a que se instalou no restante<br />

da América Latina: o processo de colonização foi<br />

diferente, pois as colônias ibero-americanas tiveram<br />

perspectivas amplamente distintas. Os espanhóis<br />

trouxeram vice-reinados, uma extensão da estrutura<br />

da metrópole na Colônia. Sendo assim, a Universidade<br />

veio junto. Os descendentes que vieram a ser<br />

libertadores, tinham a educação como ferramenta,<br />

utilizando os Centros Universitários na propagação de<br />

ideias e movimentos de independência das colônias.<br />

Os portugueses, ao contrário, trouxeram basicamente<br />

a Igreja, como uma educação religiosa para o Brasil.<br />

A Companhia de Jesus era uma grande ordem formada<br />

por padres que tinham uma rígida disciplina associada<br />

a uma forte cultura cristã. Eles estavam dispostos, sob<br />

qualquer custo, a cumprir a missão de disseminar o pensamento<br />

católico, difundir a cultura européia nas terras<br />

indígenas, exercendo assim um domínio religioso.<br />

Essa diferença histórica fez com que o nascimento<br />

das primeiras estruturas não religiosas de Ensino<br />

Superior no país somente ocorresse com as Escolas<br />

Superiores criadas no século XIX, com inspiração<br />

nos modelos europeus. Do curso de Cirurgias na<br />

Bahia, de 1808, até a criação Universidade do Rio<br />

de Janeiro, em 1920, movimentos particulares e<br />

depois Decretos Federais iniciaram timidamente um<br />

modelo institucional de educação superior no país.<br />

Segundo a Doutora em Educação e Pró-Reitora de<br />

Graduação da Universidade Estadual do Sudoeste<br />

da Bahia (UESB), Talamira Taita Rodrigues Brito,<br />

há um evidente dualismo no contexto de surgimento<br />

da educação formal no Brasil: distingue-se em<br />

saberes para a massa e saberes para a elite. Para ela,<br />

com a Educação Superior não foi diferente. A colonização<br />

em si e o modelo agrário exportador que<br />

durou vários séculos (inclusive no pós-Colônia) são<br />

“agravantes no comportamento de consolidação de<br />

políticas públicas que articulassem a educação como<br />

algo necessário para o nosso processo civilizatório”.<br />

Para Talamira, a consolidação da Universidade do<br />

Rio de Janeiro é fundamental para compreender esse<br />

processo. Sendo de iniciativa pública, foi resultado<br />

da união entre as Faculdades de Medicina, Direito e<br />

Engenharia, e serviu de modelo para as que vieram a<br />

seguir, como a Universidade de Minas Gerais, em 1927.<br />

Posteriormente, houve um decreto, em 1931, durante o<br />

governo de Getúlio Vargas, conhecido como o Estatuto<br />

das Universidades, que estabeleceu um padrão de organização<br />

para as instituições de ensino superior no país,<br />

mas que ainda não se propunha a se aprofundar nas<br />

ferramentas de pesquisa e extensão com a comunidade.<br />

Outro ponto marcante, foi a Reforma Universitária<br />

no período da Ditadura Militar, que “dentre todas as<br />

críticas [recebidas], a maior delas é o isolamento dos<br />

integrantes diários da universidade no pensar sobre o<br />

futuro da universidade; [foi] uma lei verticalizada, sem<br />

a participação social”, completa a Pró-Reitora.<br />

Segundo o professor da Ufop, Fábio Faversani,<br />

Doutor em História, o período da Ditadura Militar trouxe<br />

uma disseminação ampliada das Universidades, tanto<br />

privadas, quanto federais. Havia um consenso entre os<br />

militares de que a produção de conhecimento de um<br />

país estava ligada a soberania nacional, ainda mais em<br />

disciplinas aplicadas, como as Engenharias tradicionais<br />

e a Medicina. Outro ponto relevante nesse momento,<br />

foram os incentivos às pesquisas e os Programas de<br />

Pós-Graduação que se consolidaram nesse contexto.<br />

Porém, Faversani ressalta que apesar desse impulso<br />

na educação superior, havia muita censura e autocensura<br />

durante esse período: “Os militares criaram certa tolerância<br />

ao pensamento dentro da Universidade, havia<br />

combates subversivos, é claro, mas a Universidade estava<br />

cheia de marxistas, o que era bem curioso”, conclui.<br />

Com o fim da Ditadura Militar em 1985 e a Constituição<br />

de 1988, foi elaborada a Lei de Diretrizes e Bases da<br />

Educação Nacional (LDB). Lançada em 1996, a fim de<br />

restaurar um modo de funcionamento do ensino brasileiro,<br />

recuperar e estabelecer um elo com a população, a<br />

Lei se consolidou como espaço de saber, de ciência. Para<br />

a Pró-Reitora da UESB, Talamira Brito, esse foi e ainda<br />

é seu grande legado no reconhecimento, produção e<br />

evolução do sentido do saber científico, inclusive resgatando<br />

“um aceno mais popular para o Ensino Superior”.<br />

Uma Universidade, diz Talamira, “por mais elitizada<br />

que tenha se tornado ou se sentido, como foi o nosso<br />

caso brasileiro, não passa de forma neutra nos cenários<br />

de nossa história.” Por isso, para a professora, aspectos<br />

políticos e sociais não podem ser deixados de lado no<br />

panorama histórico da educação formal brasileira.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 43


Contexto atual e perspectivas<br />

A expansão da educação superior brasileira na última década, a<br />

partir do Reuni (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e<br />

Expansão das Universidades Federais) em 2007, fomentou a Universidade<br />

pública e paralelamente a privada, a partir do Fies e Prouni<br />

que resgataram vagas ociosas dessas instituições. “A expansão feita<br />

pelo governo Lula foi muito importante, mas por outro lado ela teve<br />

um limite grave, que foi não melhorar radicalmente a qualidade da<br />

educação básica que de maneira geral é pública. Temos um ensino<br />

superior amplo, mas não temos uma base sólida. É preciso que se<br />

crie uma política de estado para a educação, para não ficar a mercê<br />

de políticas de governo na educação, em que uns investem e que<br />

outros cortam recursos no mandato seguinte”, explica Faversani.<br />

Para entender um pouco do atual momento que a Universidade<br />

brasileira atravessa, a Diretora da Escola de Farmácia da Ufop,<br />

Maria Elisabete da Silva Barros e sua Vice-Diretora, Neila Márcia<br />

Silva Barcelos, citam que houve um aumento significativo de alunos<br />

que ingressaram na instituição. Hoje são 16 mil alunos, mais que o<br />

dobro de décadas atrás. É inegável, segundo elas, que a difusão do<br />

conhecimento foi extenso e que as políticas de acesso a Universidade<br />

e a modificações no currículo pedagógico trouxeram melhorias na<br />

formação do aluno de maneira geral e de acesso indireto à Universidade.<br />

“O curso de Farmácia tem vários projetos de extensão com a<br />

comunidade, são atividades que atendem o público de Ouro Preto,<br />

realizando exames laboratoriais da população, além de outras iniciativas<br />

que trabalham com idosos, diabéticos e hipertensos”, relatam.<br />

Entretanto, para as diretoras, essa melhoria poderá ser comprometida<br />

com os recentes cortes de verba que ocorrem frequentemente<br />

pelo Governo Federal. Em 2017, por exemplo, o Ministério do<br />

Planejamento anunciou bloqueio de R$ 4,3 bilhões na Educação.<br />

Aproximadamente 70% de todas as Universidades Federais tiveram<br />

cortes entre janeiro e junho do mesmo ano, o que representou 15%<br />

a menos nos recursos de manutenção e 50% a menos de investimentos<br />

universitários em relação a 2014, de acordo com Associação<br />

Nacional do Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior<br />

(Andifes). Essa mesma realidade também se reflete na rede privada,<br />

pois o Prouni e Fies foram afetados.<br />

Dentro dessa mesma ótica, o diretor da Escola de Minas da Ufop,<br />

Issamu Endo, reitera que os cortes de verba prejudicam as atividades<br />

acadêmicas, pois “o campus está mal cuidado, falta segurança,<br />

existem animais dentro da Universidade, os prédios estão desgastados,<br />

há problemas de infiltração, equipamentos que não<br />

funcionam entre tantas questões que causam uma desmotivação<br />

geral no ambiente, que prejudica a formação do aluno. “A atividade<br />

FOTOS LUIZ FONTANA


acadêmica deve ser muita mais que uma tarefa, deve<br />

ser algo prazeroso para os envolvidos”, ressalta.<br />

Outro ponto crucial para Endo, é que o crescimento<br />

vertiginoso da Universidade não foi<br />

acompanhado por uma institucionalização que<br />

fosse capaz de amparar as questões administrativas.<br />

“É necessário, criar novas instâncias que<br />

ajudem a reorganizar o sistema educacional além<br />

de estabelecer uma aproximação com o ex-aluno,<br />

em conselhos consultivos e eventos, assim<br />

como é feito nos Estados Unidos, por exemplo”.<br />

Além disso, o Diretor ressalta a falta de atitude<br />

individual: “os alunos não se organizam para<br />

cobrar e tomar uma iniciativa capaz de transformar<br />

o ambiente”. Endo afirma que a unidade estudantil<br />

teve uma percepção social equivocada<br />

desde a redemocratização. “Houve certa acomodação<br />

depois da redemocratização, como se o Presidente<br />

eleito fosse resolver tudo. É necessário<br />

criar outra visão de mundo sobre unidade, para<br />

que assim os estudantes continuem transformando<br />

a realidade em que estão inseridos”, afirma.<br />

Luiz Fernando Loureiro ingressou no curso de Engenharia<br />

Civil em 1973, e atualmente estuda Jornalismo.<br />

Dos 50 anos anos da Ufop, atravessou mais<br />

de 45 deles, seja como discente, docente, produzindo<br />

artigos, orientando alunos, participando de<br />

eventos e novamente, desde 2014, como graduando<br />

no Instituto de Ciências Sociais, em Mariana. A<br />

principal mudança ocorrida ao longo do tempo,<br />

Apesar dos pesares,<br />

a Universidade brasileira tem condições de<br />

formar cidadãos [...], buscando a<br />

excelência do ensino, da pesquisa<br />

e da extensão.<br />

Luiz Fernando Loureiro<br />

para ele, foram as melhorias decorrentes da maior<br />

pluralidade de vozes. “Com o Reuni e o Sisu, a<br />

instituição abriu-se completamente, de modo a<br />

agregar discentes, docentes e técnico-administrativos<br />

de diferentes origens geográficas e culturais,<br />

quebrando de forma definitiva o ranço interiorano<br />

e conservador até então persistente”, destaca.<br />

Com sua bagagem no espaço universitário, Luiz<br />

acredita que o papel da Universidade seja vital, tendo<br />

em vista os acontecimentos dos últimos anos: “A capacidade<br />

crítica deve ser cada vez mais incrementada,<br />

mas não de forma intra-muros, como acontecia<br />

até um passado relativamente recente. Apesar dos<br />

pesares, a Universidade brasileira tem condições de<br />

formar cidadãos, mais que simples repetidores de<br />

conceitos e pré-conceitos, buscando a excelência<br />

do ensino, da pesquisa e da extensão”, finaliza.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 45


Revolucionar<br />

para<br />

Ampliar<br />

Texto:<br />

Foto:<br />

Arte:<br />

Laura Viana<br />

Caroline Coelho<br />

Viviane Novy<br />

Por meio da criação do Reuni, o<br />

Ensino Superior Público Federal alcançou novos<br />

públicos e conquistou novos territórios, possibilitando<br />

a democratização do acesso à Universidade. Entretanto,<br />

algumas metas do Programa não se concretizaram e<br />

seu legado sobrevive com dificuldades.


Não é tarefa fácil escolher, dentre tantas<br />

opções profissionais, uma área a se dedicar. São anos de<br />

estudo e sacrifícios para atuar em determinada função.<br />

Portanto, é preciso cautela na hora da escolha. De acordo<br />

com pesquisa feita no ano de 2016 pela Associação Brasileira<br />

de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), que<br />

conversou com mil jovens entre 18 e 30 anos, mais de 81%<br />

dos entrevistados desejam cursar o Ensino Superior. Apesar<br />

da maioria se interessar pelo ensino público, 78,6% diz que<br />

não rejeitaria a oportunidade de cursar uma graduação em<br />

uma Universidade privada. Na pesquisa, 50,5% afirmam não<br />

terem condições para pagar a faculdade, e que para alcançar o<br />

objetivo, necessitariam de políticas que garantem o acesso em<br />

Universidades públicas, ou de auxílios como financiamentos;<br />

ambos já existentes, como o Programa Universidade Para<br />

todos (Prouni), no horizonte de 57,9% dos entrevistados, e o<br />

Financiamento Estudantil (Fies), que está nos planos de 50,3%.<br />

Com a implantação do Programa de Apoio a Planos<br />

de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais<br />

(Reuni), em 2008, o acesso ao ensino superior público<br />

brasileiro dobrou, chegou à cidades do interior, atingiu<br />

camadas mais pobres da sociedade e impulsionou economias<br />

locais. Ainda com dificuldades relacionadas aos gastos<br />

com os estudos, a realidade quanto ao ingresso é diferente<br />

da de dez anos antes. O cenário na educação tem<br />

se tornado estimulante, ao contrário do contexto vivido<br />

pelas gerações antecessoras, conta a professora de ensino<br />

fundamental, Rosimere Moreira, 52. Durante sua juventude,<br />

era mais complicado ser admitido em uma Universidade<br />

pública. “Só quem podia pagar cursinho e ficar<br />

por conta de estudar que passava em uma Universidade<br />

Federal. Pessoas com menor poder aquisitivo tinham que<br />

trabalhar. Eu comecei com 17 anos para custear meu Magistério,<br />

que na época também era caro”, relata.<br />

Além da escolha de curso, os estudantes também precisam<br />

se preparar para a jornada de vestibulares e para o<br />

Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Se bem colocados,<br />

a vaga no Ensino Superior, seja ele público ou particular,<br />

está garantida. Renata Campos, de 16 anos, está<br />

cursando o segundo ano do Ensino Médio e já decidiu:<br />

quer ser psicóloga. O sonho da adolescente já tem os caminhos<br />

traçados. “Estou estudando para passar no Enem.<br />

Quero passar em alguma Universidade Federal. Apesar<br />

de estar no segundo ano do Ensino Médio, vou me arriscar<br />

e fazer o Exame. Será um teste para eu ir me preparando.<br />

Da próxima vez que eu tentar, vai ser de ‘verdade’”,<br />

comenta a adolescente. A futura vestibulanda faz<br />

parte dos 7,5 milhões de candidatos que se inscreveram<br />

O Enem de 2018 estima mais<br />

de 7 milhões de inscritos. A maioria tem o<br />

intuito de se matricular em uma<br />

instituição de ensino pública. Dentre ele<br />

está a jovem de 16 anos, Renata Campos.<br />

para o Enem 2018, como estima o Ministério da Educação<br />

(MEC). Mesmo residindo próximo a Universidade<br />

Federal de Minas Gerais (UFMG), a mineira se anima<br />

com a possibilidade de morar em outro estado, benefício<br />

do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), implementado<br />

em 2009, no segundo mandato do ex-presidente Lula,<br />

que permite a circulação dos classificados pelo país.<br />

Rayza Gama David, 20, saiu de Itapetinga, interior da<br />

Bahia, aos 17 anos para cursar Economia na Universidade<br />

Federal de Ouro Preto (Ufop). Ela representa os estudantes<br />

que se aventuram pelo país para conseguir, além do<br />

diploma, um bom currículo. “Eu sempre tive vontade de<br />

vir para Minas Gerais por ser referência. Na Bahia tem<br />

a Universidade Federal da Bahia (Ufba), em Salvador,<br />

mas o custo de vida da cidade é muito alto”, afirmou.<br />

De acordo com Rayza, os Programas de Ação Afirmativa<br />

das Universidades públicas facilitam sua permanência<br />

na instituição. O custo de vida de Rayza em Salvador incluindo<br />

apenas moradia ficariam em torno de R$ 800,00<br />

reais mensais; em Mariana, o mesmo investimento sai<br />

por aproximadamente R$ 600,00, segundo informações<br />

fornecidas pela estudante.<br />

O Enem, método avaliativo usado pelo Sistema, foi<br />

aderido por 95% da Universidades Federais, contornando<br />

muitas das dificuldades com relação ao ingresso no Ensino<br />

Superior. O exame, válido em todo território nacional,<br />

é mais abrangente do que vestibulares tradicionais, por<br />

razões compreensíveis como locomoção e financeira. Em<br />

2017, o Enem foi aplicado em 1.7<strong>25</strong> mil municípios, de<br />

acordo com relatório do Instituto Nacional de Estudos e<br />

Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), diferente<br />

do vestibular que obriga os candidatos a comparecer na<br />

Universidade escolhida. A isenção de pagamento é outra<br />

característica da prova. Segundo o Inep, 48,2% dos inscritos<br />

foram isentos de pagar a taxa de inscrição para realizar<br />

a prova; e 22,1% obtiveram a gratuidade automática<br />

por estarem concluindo o Ensino Médio na rede pública<br />

em 2017. As instituições públicas de Ensino Superior<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 47


que aderem ao Sisu reservam um número de vagas<br />

para os participantes do Enem. Só em 2018,<br />

o Sisu abriu 239 mil vagas na graduação, em 130<br />

instituições federais e estaduais, um aumento de<br />

cerca de 60% em relação ao primeiro ano.<br />

Transformação silenciosa<br />

Outro aspecto crucial do Programa está na reserva<br />

de vagas para Ações Afirmativas, que são as<br />

conhecidas cotas para alunos de escolas públicas,<br />

pessoas de baixa renda, estudantes autodeclarados<br />

pretos, pardos ou indígenas e pessoas com deficiência,<br />

que virou lei sancionada no ano de 2012,<br />

pela ex-presidenta Dilma Rousseff. Essa política<br />

resultou numa transformação dos ingressos, de<br />

acordo com a Associação Nacional dos Dirigentes<br />

das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes),<br />

que analisou o perfil de 22 mil alunos de<br />

cursos presenciais de 57 instituições federais de<br />

ensino: 43,7% dos estudantes são das classes C, D<br />

e E, e 44,8% dos estudantes cursaram todo o Ensino<br />

Médio em escola pública, um aumento em relação<br />

a última análise, em 2003, quando eram 37,5%.<br />

De Rosimere para Rayza, são nítidas as diferenças<br />

tanto de expectativas, quanto das dificuldades<br />

que cada uma enfrentou para ingressar no<br />

Ensino Superior, tendo ambas o mesmo perfil socioeconômico.<br />

Pesquisas realizadas pelo Instituto<br />

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em<br />

2014, atestam essa melhoria: estudantes pertencentes<br />

às classes socioeconômicas mais favorecidas<br />

deixaram de ser maioria nas Universidades,<br />

sejam elas públicas ou privadas. Em 2004, a parte<br />

dos 20% dos alunos mais ricos representava<br />

55% dos estudantes da rede pública e 68,9% da<br />

rede privada. Em 2013, esses valores caem para<br />

38,8% e 43%, respectivamente.<br />

Com isso, os estudantes vindos da parcela com<br />

maior poder aquisitivo na sociedade deixaram de<br />

ser maioria nas duas redes do Ensino Superior.<br />

Isso resultou no aumento do acesso à educação de<br />

pessoas dos demais estratos de rendimento, contribuindo<br />

para que o ingresso dos mais pobres no<br />

Ensino Superior crescesse. Ainda de acordo com<br />

o IBGE, a proporção de pessoas com faixa etária<br />

entre <strong>25</strong> e 34 anos com Ensino Superior completo<br />

quase dobrou, passando de 8,1% para 15,2%, entre<br />

os anos de 2004 e 2013.<br />

Um projeto de nação<br />

As reformas no acesso ao Ensino Superior são<br />

resultado do Plano de Desenvolvimento da Educação<br />

(PDE), lançado no ano de 2007 pelo MEC.<br />

O Plano prevê várias modificações na educação no<br />

prazo de quinze anos. Para alcançar os objetivos<br />

previstos no projeto, se criou o Programa de Apoio


FOTÓGRAFO NÃO IDENTIFICADO<br />

Turma de Rosimere em Faculdade particular do curso de Magistério na década de 1980.<br />

a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades<br />

Federais (Reuni). Dentre as suas principais<br />

metas, descritas no portal do Programa na internet,<br />

estava a expansão do número de vagas nos cursos<br />

de graduação, ampliação de oferta de cursos noturnos,<br />

promoção de inclusão social pela educação,<br />

inovação pedagógica e o combate à evasão.<br />

Além disso, o Programa também visava o alcance<br />

do ensino em regiões interioranas dos Estados<br />

brasileiros. Isso implica na redução do agrupamento<br />

dos pólos de conhecimento nas grandes cidades e<br />

redistribuir centros científicos. Diminuir as desigualdades<br />

sociais no país e fortalecer o desenvolvimento econômico<br />

eram também objetivos do plano.<br />

Para conceber novos Institutos e desenvolver a<br />

expansão, foi necessário um orçamento compatível.<br />

Entre 2008 e 2012, o desembolso para custeio e<br />

investimento foi de R$ 9,1 bilhões, segundo dados<br />

do MEC. Só em 2013, por exemplo, houve o investimento<br />

de R$ 440 milhões para a manutenção da<br />

estrutura, além de R$ 509 milhões na implantação<br />

de novos campi em instituições existentes e R$ 300<br />

milhões na implantação de novas Universidades, totalizando<br />

R$ 1,2 bilhão.<br />

A partir desse incentivo o número de Institutos<br />

Federais de Ensino Superior (Ifes) ampliou em 31%.<br />

Simultaneamente, quase duplicou o número de cursos<br />

presenciais e o número de matrículas (86%), e a pós-<br />

-graduação apresentou um crescimento de 316%.<br />

De acordo com análise sobre o processo de expansão<br />

da Educação Superior das Universidades Federais<br />

a partir do Reuni, realizada pelo Doutor em educação<br />

pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), Penildon<br />

Silva Filho, há cerca de dez anos, a percentagem e<br />

perfil social e racial de pessoas que frequentavam as<br />

Universidades Federais no país era outro. No ano de<br />

2003, início do primeiro mandato do ex-presidente<br />

Luiz Inácio Lula da Silva (Lula), os Institutos Federais<br />

que aderiram ao Reuni passaram por uma<br />

reconstituição no financiamento.<br />

De acordo com a pesquisa, a primeira consequência<br />

a se considerar foi a ampliação de vagas,<br />

junto ao Programa. A pesquisa constatou uma evolução:<br />

no ano de 2003 havia 596.219 mil alunos<br />

matriculados em Institutos Federais. Em 2013, a<br />

quantidade quase duplicou: eram 1.029.141 mil<br />

estudantes. De acordo com Penildon, o crescimento<br />

é significativo em razão de anos e anos de recessão,<br />

como nas décadas de 1980 e 1990, período marcado<br />

pela Ditadura Militar, endividamento público, estagnação<br />

das políticas públicas dentre outros questões<br />

econômicas. A pesquisa também detectou uma<br />

expansão maior em regiões menos desenvolvidas<br />

do país como, Norte, Nordeste e Centro-Oeste.<br />

De acordo com o MEC, também ocorreu o crescimento<br />

regional, que está diretamente ligado aos<br />

incentivos realizados na educação. A nova demanda<br />

de docentes, técnicos e discentes, obrigou as<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 49


cidades receptoras a se adequar,<br />

resultando num desenvolvimento<br />

econômico.<br />

A interiorização proporcionou<br />

uma expansão de vagas<br />

públicas que se diferenciou do<br />

tradicional modelo de oferta de<br />

possibilidades nas capitais, elevando<br />

o número de municípios<br />

atendidos por instituições de<br />

Ensino Superior de 114 para 289<br />

municípios, o que representou<br />

um crescimento de 153%. Houve<br />

o expressivo crescimento de<br />

campi em distritos do país. De<br />

2003 a 2014, houve um salto de<br />

45 para 63 Universidades Públicas<br />

Federais, o que representa a<br />

ampliação de 40%. De 148 campi/unidades,<br />

houve um aumento<br />

para 321, representando um<br />

crescimento de 117%.<br />

As regiões Norte e Nordeste<br />

obtiveram um crescimento<br />

maior do que as demais, justamente por uma necessidade<br />

histórica em receber mais incentivos. A grandeza<br />

territorial brasileira, que facilita a distância entre os<br />

polos econômicos e populacionais, ocasiona a dificuldade<br />

dos estudantes em acessar a formação superior.<br />

De acordo com dados institucionais encontrados na<br />

página do Reuni, o número de campi de Universidades<br />

Federais na região Norte do país cresceu de 24 para 40<br />

entre 2002 e 2010; o de unidades dos Institutos Federais<br />

de Educação, Ciência e Tecnologia, passou de 13<br />

para 42 no mesmo período. O Pará, que contava com<br />

apenas duas Universidades em 2002, criou em 2009<br />

a Universidade do Oeste do Pará (Ufopa), com sede<br />

em Santarém, e com mais cinco polos distribuídos por<br />

cidades da região. Em 2013, o Estado também passou<br />

a contar com a Universidade Federal do Sul e Sudeste<br />

do Pará (Unifesspa), que em 2018 ofertará 1240 vagas<br />

em 37 cursos de graduação.<br />

Números relevantes<br />

O Programa aconteceu em três fases:<br />

pré-expansão ou pré-Reuni, Expansão<br />

l e o Reuni. A primeira fase, compreendeu<br />

o período de 2003 a 2007 e<br />

teve como principal meta interiorizar o<br />

Ensino Superior Público Federal, que se<br />

concentrava em metrópoles com maior<br />

poder aquisitivo. Nesse, sentido, só entre<br />

2003 e 2007 foram criadas dez Universidades<br />

Federais em regiões prioritariamente<br />

não metropolitanas, dentre as<br />

quais 40% no Sudeste, 30% no Sul, 20%<br />

no Nordeste e 10% no Centro-Oeste.<br />

Como resultado, foram disponibilizadas<br />

110.729 novas matrículas, 26.612 vagas<br />

e 613 cursos na graduação.<br />

A segunda fase ocorreu entre<br />

2008 e 2012, marcada pela execução<br />

efetiva do Reuni. Para além da pré-<br />

-expansão, houve uma avaliação do<br />

que já fora feito, ressaltando o número<br />

de municípios atendidos pelas Universidades: de<br />

114 para 237 entre os anos de 2011 e 2013. Foram criadas<br />

14 novas Universidades e mais de 100 novos campi.<br />

No período de 2003 a 2014, houve um salto de 49 para<br />

59 Universidades Federais, cumprindo a proposta de<br />

ampliação em 31%; e de 148 campi para 274 campi,<br />

crescimento de 85%. A interiorização também proporcionou<br />

uma expansão estrutural no país quando se elevou o<br />

número de municípios atendidos por Intituições Federais de Ensino<br />

Superior de 114 para 272, com um crescimento de 138%.<br />

Por fim, a terceira fase, de 2014 a 2018, diz respeito ao<br />

desenvolvimento regional. Esta fase se caracterizou pela<br />

continuidade das propostas anteriores e sua complementação<br />

com iniciativas específicas.<br />

No período de execução do Reuni, foi possível, além da<br />

expansão, a reestruturação física e acadêmica, aprimorando<br />

a qualidade da formação oferecida. Houve uma ampliação<br />

do número de projetos de pesquisa, resultado da contratação<br />

Eu acho que o Programa<br />

Reuni, foi sem a menor sombra de dúvida o<br />

projeto de Governo mais bem sucedido e<br />

importante dos últimos 50 anos<br />

na educaçao brasileira.<br />

Luiz Fernando Loureiro


de quase 22 mil docentes com Doutorado ou Mestrado.<br />

Para o ex-Pró-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento<br />

da Ufop, Luiz Fenando Loureiro, no ano em que o Reuni foi<br />

implantado, a educação brasileira progrediu e se tornou<br />

realidade para uma parcela maior dos brasileiros. “Eu<br />

acho que o Programa Reuni foi, sem a menor sombra de<br />

dúvida, o projeto de Governo mais bem sucedido e importante<br />

dos últimos 50 anos na educação brasileira”,<br />

afirma. “Hoje a gente conta com mais de 50 Universidades,<br />

bastante espalhadas, não apenas concentradas nas<br />

capitais. Mesmo as Universidades que já tinham sua sede em<br />

cidades do interior acabaram extrapolando os limites geográficos<br />

daquele município. Estabeleceram-se em outras regiões,<br />

ofertando mais oportunidades, chegando próximo de<br />

onde o aluno estava e fazendo com que ele não se deslocasse<br />

[para estudar]”, conclui.<br />

Além de inovador, o Programa foi uma alternativa perigosa<br />

na perspectiva dos críticos. Estes acreditavam que a medida<br />

ocasionaria na intensificação e precarização do ensino.<br />

Entre os anos de 2003 e<br />

2014 foram criadas 18 novas<br />

Universidades Federais.<br />

1 - Universidade do ABC (UFABC)<br />

2 - Universidade Federal do Cariri (UFCA)<br />

3 - Universidade Federal de Alfenas (Unifal)<br />

4 - Universidade Federal do Tocantins (UFT)<br />

5 - Universidade Federal do Pampa (Unipampa)<br />

6 - Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB)<br />

7 - Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB)<br />

8 - Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM)<br />

9 - Universidade Federal de Grande Dourados (UFGD)<br />

10 - Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA)<br />

11 - Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)<br />

12 - Universidade Federal Tecnológica do Paraná (UTFPR)<br />

13 - Universidade Federal Vale do São Francisco (UNIVASF)<br />

14 - Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA)<br />

15 - Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA)<br />

16 - Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afrobrasileira (UNILAB)<br />

17 - Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM)<br />

18 - Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA)<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 51


Frutos do Programa<br />

A participação dos discentes e dos docentes foi<br />

primordial para que se estabelecessem demandas<br />

únicas por cada Universidade, indicando suas<br />

prioridades nos campos da educação, da ciência,<br />

da tecnologia e social. Assim, o Reuni também<br />

proporcionou condições para que o Ensino Superior<br />

obtivesse uma reestruturação acadêmica e pedagógica.<br />

Em entrevista para o Portal do Governo,<br />

em abril de 2015, o ex-reitor da Universidade Federal<br />

de Goiás (UFG), Orlando Afonso Valle do Amaral,<br />

constatou a influência do Programa no planejamento<br />

acadêmico. Segundo ele, além de duplicar a área<br />

construída e ampliar o número de cursos de graduação<br />

e de pós-graduação, a instituição passou no período<br />

de 2008 a 2015, de 13 mil estudantes para mais<br />

de <strong>25</strong> mil. O impacto do Reuni foi fundamental, por<br />

fazer uma expansão desse porte e renovar a atmosfera<br />

no ambiente universitário”, disse. “Hoje, a<br />

universidade tem muito mais a cara da população<br />

brasileira do que tinha anos atrás”, reflete.<br />

Dentre as muitas fases e processos, é importante<br />

ressaltar que a expansão das Universidades<br />

Federais é um enfrentamento contínuo e cumulativo<br />

para que se cumpra com excelência não só as<br />

metas estipuladas pelos governos empossados. A<br />

educação é um direito assegurado pela Constituição<br />

brasileira, presente no Artigo 205, que garante<br />

a educação a todos os cidadãos e como um dever<br />

do Estado e da família, que deve ser promovido e<br />

incentivado com a colaboração da sociedade.<br />

Se pensarmos em termos de país, a educação<br />

superior brasileira passou por uma repaginação<br />

tanto dos perfis dos alunos - efeito da mobilidade<br />

proporcionada pelo Sisu - quanto à qualidade.<br />

Entretanto, muito ainda precisa ser alcançado,<br />

como por exemplo a manutenção das<br />

instalações. Apesar do orçamento para investimentos<br />

feito pelo MEC ter aumentado entre os<br />

anos de 2016 e 2017, como informado pelo Portal<br />

da Transparência (de R$ 43.766.141,38 para<br />

R$ 806.862.166,14), no setor de manutenção o<br />

repasse diminuiu. Entre janeiro e dezembro de<br />

2016, foram repassados R$ 21.099.183,93, mas<br />

no ano de 2017, o valor foi de R$ 6.718.<strong>25</strong>5,76.<br />

Como consequência, muitas Universidades brasileiras<br />

enfrentam dificuldades. Cortes de energia,<br />

infiltrações, banheiros quebrados, falta de materiais,<br />

dentre outros, como é o caso da Universidade<br />

Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), e<br />

da Universidade Federal do Pará (UFPA). Em 04<br />

de junho de 2018, alunos do curso de Odontologia<br />

da UFPA protestaram pelas péssimas condições de<br />

estrutura nos laboratórios do curso, em entrevista<br />

para o portal de notícias G1. Segundo os relatos<br />

dos estudantes, os pacientes estavam sem atendimento<br />

há 15 dias por causa da falta de água.<br />

O compressor, equipamento que faz as cadeiras<br />

e canetas odontológicas funcionem estava parado,<br />

impossibilitando o atendimento da comunidade.<br />

Ainda que demonstrando falhas, ex-Pró-Reitor<br />

de Planejamento e Desenvolvimento da Ufop,<br />

enxerga melhorias futuras. “A situação hoje realmente<br />

não é uma das melhores, todas as Universidades<br />

brasileiras passam por um período de<br />

poucos recursos, de redução, de corte de recursos,<br />

mas eu acho que em breve, eu sou otimista,<br />

a gente vai conseguir voltar aos níveis de financiamento”,<br />

diz Luiz Fernando Loureiro. Ainda<br />

segundo ele, por meio da insistência e união de<br />

todos os comprometidos com a educação, o resultado<br />

se tornará positivo. “Espero que esse tempo,<br />

onde nossas atividades serão prejudicadas, nunca<br />

chegue, que antes disso a gente consiga reverter.<br />

Com muita luta, com muita dedicação, dos funcionários,<br />

dos professores, até mesmo dos alunos, eu<br />

acho que a gente está no caminho certo”, avalia.<br />

A passos curtos, a educação segue resistindo. A<br />

democratização do Ensino Superior brasileiro encontrou<br />

uma rota. A atitude, no entanto, não é mais<br />

a de engatinhar por melhorias, mas de correr até o<br />

progresso. A sequência que garantia que os filhos do<br />

pedreiro e da dona de casa exerceriam a mesma profissão<br />

foi rompida, com a implantação do Reuni, famílias<br />

de classes sociais mais baixas passaram a ter<br />

diplomados em suas casas, como a jornalista que<br />

escreve esse texto! A luta para que o Ensino Superior<br />

seja acessado por todos é contínua. É sobrevivendo<br />

a golpes, e ocupando espaços que são de todos<br />

por direito, que não apenas os planos de ensino<br />

estipulados pelo MEC serão alcançados, mas o objetivo<br />

de uma nação, igual para todos.


O Reuni possibilitou uma reestruturação das<br />

funções do Estado: uma retomada de<br />

responsabilidade em difundir e ampliar o acesso<br />

ao Ensino Superior público de qualidade.<br />

No ano de 2016, quase 3 milhões de<br />

alunos ingressaram em cursos superiores<br />

de graduação no Brasil.<br />

A Controladoria Geral da União (CGU)<br />

afirmou em relatório: entre 2012 e 2014,<br />

90% das obras de ampliação de Universidades<br />

brasileiras foram concluídas.<br />

Em 2002, 45 Universidades Federais e 148 campi<br />

estavam registradas. Apenas em 2014, já havia<br />

63 Universidades e 321 campi.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 53


Lentes sobre a<br />

PESQUISA<br />

O olhar sobre a ciência na<br />

pós-graduação brasileira<br />

precisa de foco.<br />

Texto:<br />

Foto:<br />

Arte:<br />

Matheus Bragansa<br />

Lettícia Lages<br />

Taysa Bocard


A palavra “ciência” vem do latim scientia,<br />

que exprime o sentido de “conhecimento”. Mas tal<br />

conhecimento científico possui eficácia diferente de<br />

determinados saberes comuns reconhecidos em nossa<br />

vivência cotidiana. A ciência tem o papel de verificar<br />

pensamentos através de métodos, técnicas, análises e<br />

investigações. Assim, o pesquisador busca argumentos<br />

para validar os resultados de sua pesquisa, configurando<br />

uma espécie de autoridade concedida aos apontamentos<br />

científicos. É dessa forma que a ciência se estabelece<br />

como um caminho mais seguro para o entendimento<br />

da realidade e mudança nas estruturas sociais do país.<br />

O propósito da pesquisa científica está tanto na<br />

aplicação prática de suas descobertas quanto na configuração<br />

de um olhar mais completo e rico do ser humano,<br />

suas estruturas e tudo o que o cerca. Em 2015,<br />

um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do<br />

Rio Grande do Sul (UFRGS) descobriu aglomerados estelares<br />

num lugar remoto da Via Láctea, um local não<br />

habitual na formação de estrelas.<br />

Em entrevista concedida ao site UOL, Denilso Camargo<br />

(Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em<br />

Física pela UFRGS), coordenador da pesquisa, explica a<br />

importância dessa descoberta para o contexto astronômico<br />

atual. “Se antes considerávamos que na Via Láctea<br />

estrelas se formavam exclusivamente no disco ou próximo<br />

dele, temos agora um novo ingrediente para enriquecer<br />

os modelos de formação e evolução das galáxias<br />

parecidas com a nossa”.<br />

No âmbito da pós-graduação, a ciência encontra<br />

seu lugar próprio. A pesquisa é comum ao percurso<br />

acadêmico e seus objetivos estão voltados à criação<br />

de uma busca científica que enriqueça os estudos em<br />

determinada área de conhecimento.<br />

Ao contrário da pós-graduação lato sensu (cursos<br />

de Especialização), que visa o repasse de conhecimento<br />

para o âmbito de produção, a pós-graduação stricto<br />

sensu (cursos de Mestrado e Doutorado) tem como<br />

principal diretriz criar novos conhecimentos, ou seja,<br />

fazer ciência e não apenas estudá-la ou aplicá-la no<br />

mundo mercadológico. É através dessa investigação<br />

que nascem os pesquisadores, os quais destinam-se<br />

a produzir novas pesquisas.<br />

“A pós-graduação é o principal meio de produção e<br />

de avanço da ciência no país”. Para Geraldo Lavigne, advogado<br />

e mestre em Ciências Ambientais, o pensamento<br />

científico, melhor trabalhado na pós-graduação, o ajudou<br />

a ter uma noção crítica a respeito de tudo que o<br />

cerca: “das pequenas coisas às grandes coisas”.<br />

O Brasil possui um órgão público específico para<br />

o acompanhamento e financiamento das pesquisas<br />

na pós-graduação do país. A Coordenação de<br />

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes),<br />

fundação criada em 1951 pelo Ministério da Educação<br />

(MEC), avalia o desenvolvimento da pós stricto sensu,<br />

contribui para o acesso e divulgação das produções<br />

científicas, promove parcerias científicas internacionais,<br />

entre outras atividades que propiciam um parâmetro<br />

de qualidade acadêmica no mestrado e doutorado.<br />

Modelo de excelência reconhecido mundialmente, as<br />

avaliações da Capes (divididas por área, de quatro em<br />

quatro anos, com notas de 1 a 7) não apontam somente<br />

para um crescimento quantitativo da pós-graduação,<br />

mas também qualitativo.<br />

De acordo com avaliação da Capes publicada em setembro<br />

de 2017, 465 dos Programas de Pós-Graduação<br />

(PPG) brasileiros têm notas seis e sete, as maiores possíveis.<br />

Em 2010, apenas 321 Programas possuíam tais<br />

notas de excelência, que evidenciam um desempenho<br />

equivalente aos modelos de qualidade internacional.<br />

Os dados refletem uma história contemporânea das<br />

Universidades no Brasil no começo do século XXI.<br />

A criação do Programa Universidade para Todos<br />

(ProUni) em 2004, a Lei de Inovação Tecnológica no<br />

mesmo ano, a educação à distância (EaD) em 2005, o<br />

Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior<br />

(Sinaes) em 2004, são alguns dos mecanismos criados<br />

pelo Governo Federal para uma maior democratização<br />

do conhecimento. Segundo os dados de 2010 do Instituto<br />

Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio<br />

Teixeira (Inep), a quantidade de Universidades Federais<br />

aumentou de 45 em 2003, para 63 em 2014. Outros dados<br />

do Inep apontam que o número de 1,6 milhões de<br />

matrículas por período letivo, em 1994, cresceu para 5,1<br />

milhões em 2009.<br />

Os reflexos disso no âmbito da pós-graduação são<br />

evidentes. A base de dados da Capes de 2013 indica um<br />

aumento do número de Doutorados de 100,8% em 12 anos.<br />

Em relação ao Mestrado, cresceu de 1.589 cursos para 2.7<strong>25</strong>,<br />

nos respectivos anos. Um aumento de 71,5%. Sobre os<br />

Programas de Pós-Graduação, o salto se deu de 1.439 em<br />

2000 para 3905 em 2015. Na Universidade Federal de Ouro<br />

Preto, por exemplo, a partir da implantação do Programa<br />

de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 55


BRASIL


Universidades Federais (Reuni), em 2008, o número de cursos<br />

dobrou. Em dez anos, a oferta subiu de 21 para 43 cursos no<br />

nível stricto sensu.<br />

Abre-se a possibilidade intelectual para um número maior<br />

de pessoas. Porém, segundo a Organização para a Cooperação<br />

e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil possui<br />

menos de 10 doutores a cada 100 mil habitantes. Nos Estados<br />

Unidos, por exemplo, os estudos indicam o dobro. Além disso,<br />

o apoio ao desenvolvimento tecnológico ainda é escasso.<br />

Crescimento em xeque<br />

De acordo com o relatório da Clarivate Analytics (empresa<br />

estadunidense independente, que produz percepções analíticas<br />

para a Capes) de 2016, o impacto do Brasil na pesquisa<br />

científica mundial aumentou 18% em relação ao ano de 2011.<br />

Dentre as produções no país, 80.291 trabalhos tiveram co-<br />

-autores estrangeiros.<br />

O número de produções da pós-graduação na Web of<br />

Science (base de dados que disponibiliza produções científicas)<br />

também cresceu de 12.442 no ano de 2000 para 42.756<br />

em 2014. De acordo com os dados da Plataforma GeoCapes,<br />

de 2016, o Brasil saltou de 94.456 discentes matriculados<br />

em PPGs para um total de 266.818 alunos matriculados<br />

em 2016, um salto de quase 300% de crescimento, apesar<br />

da assimetria regional ainda existente. Ainda hoje mais da<br />

metade dos cursos em oferta estão concentrados na região<br />

Sudeste do país.<br />

Para o Mestre em Ciências Ambientais Geraldo Lavigne,<br />

o contexto brasileiro atual é um ambiente propício ao avanço<br />

da pesquisa científica, mesmo que, “talvez esse ambiente<br />

não esteja desenvolvido”. Diretora do Instituto de Ciências<br />

Humanas e Sociais (ICHS) da Universidade Federal de Ouro<br />

Preto (Ufop), a Dra. Margareth Diniz vê o cenário de avanço<br />

científico condicionado por questões de acessibilidade e<br />

ascensão de um governo que privilegie tais ideais. “Nos<br />

governos Lula e Dilma houve especial atenção à educação,<br />

ao avanço e investimento na pesquisa, na pós-graduação,<br />

na internacionalização da universidade e na entrada de<br />

pessoas negras e pobres no ensino superior”, explica. A<br />

professora ressalta ainda que o desenvolvimento da ciência na<br />

pós-graduação está também diretamente vinculado a Políticas de<br />

Ações Afirmativas. Sem elas, o desenvolvimento é segregacionista.<br />

“É por meio da pesquisa que podemos avançar na<br />

construção e consolidação do saber. O contexto e conjuntura<br />

atuais têm tentado esvaziar os investimentos em educação,<br />

ciência e tecnologia, as bases para o progresso da ciência e<br />

da pesquisa em nosso país.” Margareth refere-se à potência<br />

da pesquisa científica como transformação social, mas não<br />

deixa de criticar as políticas de redução de custos com a<br />

educação superior adotadas pelo atual Governo Federal,<br />

em curso desde 2016. “Perdemos muito financiamento<br />

principalmente nas áreas de Ciências Humanas”, comenta.<br />

No primeiro semestre de 2017, por exemplo, o Conselho<br />

Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico<br />

(CNPq) pagou apenas 55% das bolsas de Mestrado e<br />

Doutorado se comparado a 2015. A produção científica<br />

brasileira caminha junto a cortes financeiros e ajustes fiscais.<br />

Segundo o portal virtual da Academia Brasileira de Ciências<br />

(ABC), a China, em 2012, diante de uma crise na economia do<br />

país, aumentou os recursos da pesquisa em 26%. Entretanto,<br />

de acordo com a ABC, o financiamento à pesquisa no Brasil<br />

está engessado, configurando apenas 1% do PIB do país.<br />

O coordenador atual da Capes, Dr. Augusto Schrank, em<br />

entrevista concedida em 2017 para o portal “Olá Ciência”,<br />

defende que a pesquisa científica no país segue em situação<br />

de progresso. Para ele, “a ciência brasileira não está em crise,<br />

nunca esteve [...] Os níveis de qualidade da ciência brasileira<br />

são reconhecidos internacionalmente”. No entanto, em<br />

maio de 2016, o Governo Federal anunciou a extinção do<br />

Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, fundindo-o<br />

com o Ministério das Comunicações. A fusão, além de indicar<br />

um enfraquecimento das antigas pastas, causou revolta nas<br />

principais Associações Científicas do país.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 57


Cortes e gastos<br />

Em março de 2016, o Governo Federal fez um corte<br />

de 44% na verba concedida ao Conselho Nacional de<br />

Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),<br />

responsável pelo incentivo às pesquisas científicas<br />

brasileiras, investindo financeiramente através de<br />

bolsas, equipamentos e demais auxílios. Isso significa<br />

que dos R$ 1,3 bilhões previstos para 2017, apenas<br />

R$ 570 milhões foram repassados. Conforme o<br />

“Tesourômetro”, contador digital da “Conhecimentos<br />

Sem Cortes” (iniciativa de pesquisadores de<br />

Universidades Federais e Institutos de Pesquisa contra<br />

os cortes na educação) que indica a quantia de dinheiro<br />

que o governo deixa de investir na pesquisa científica,<br />

já foram cortados quase R$ 15 milhões desde 2015. Tais<br />

dados dizem respeito aos cortes feitos no orçamento<br />

do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e<br />

Comunicações (MCTI), da Capes e das Universidades<br />

Federais de todo o país.<br />

De acordo com os dados do MEC de 2017, a verba<br />

repassada para as Universidades foi R$ 294 milhões<br />

menor do que no ano anterior. Em abril de 2017, o<br />

Governo Federal informou um contingenciamento de<br />

R$ 42,1 bilhões nas despesas previstas para as contas<br />

públicas. O orçamento definido para o Ministério da<br />

Educação no ano de 2017 era R$ 35,4 bilhões. Entretanto,<br />

sofreu um corte de R$ 3,4 bilhões. Assim, a verba<br />

estabelecida para o Ministério da Educação (MEC)<br />

foi de R$ 31,43 bilhões.<br />

Os cortes de apoio à Universidade se tornam sintoma<br />

dos tempos atuais. À medida que se enxerga a<br />

Universidade num contexto global, a situação se torna<br />

alarmante. O relatório do Banco Mundial “Um Ajuste<br />

Justo: Análise da eficiência e equidade do gasto público no<br />

Brasil”, publicado em dezembro de 2017, propõe a “introdução<br />

de tarifas escolares” nas Universidades Públicas.<br />

Segundo o relatório, essa medida seria “uma opção<br />

para aumentar os recursos das Universidades Federais<br />

sem sobrecarregar o orçamento”.<br />

Outra situação discutida é a parceria públicoprivado.<br />

A Universidade de Brasília (UnB), segundo<br />

depoimento do ex-Reitor Ivan Camargo (2012-2016),<br />

considera necessária a parceria com a iniciativa privada<br />

como fonte financiadora da pesquisa científica. Porém,<br />

quando cursos fazem parcerias com empresas a fim de<br />

conseguirem financiamento para pesquisas, projetos<br />

de extensão etc, “é comum se deixar de lado todo o<br />

conhecimento que é produzido de forma livre para se<br />

subordinar aos interesses do capital”, aponta Andreza<br />

Caroline, estudante de serviço social da Universidade<br />

Federal de Ouro Preto (Ufop).<br />

Em um país onde apenas 15% dos estudantes da pósgraduação<br />

estão em instituições particulares, vislumbrar<br />

um aumento do capital privado na pesquisa pode ser um<br />

risco de longo prazo para a pesquisa científica. Enquanto<br />

40.840 alunos estudam em Universidades Particulares,<br />

68.962 estão em Instituições Estaduais e a grande<br />

maioria encontra-se nas Universidades Federais, com<br />

155.791 pesquisadores.<br />

Um espaço ainda injusto<br />

Considerados os cortes feitos ao CNPq desde 2016,<br />

o reflexo da escassez de bolsas para estudantes de<br />

graduação e pós-graduação é cada vez mais real. A<br />

mestranda em Relações Internacionais na Pontifícia<br />

Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio),<br />

Fernanda Alvarenga, sente as dificuldades da falta de<br />

investimento. Como não recebe bolsa, os pais precisam<br />

arcar com as despesas de sustentar a estudante no Rio<br />

de Janeiro, onde mora.<br />

Segundo a estudante, “pela dedicação exigida da<br />

pós-graduação”, se torna complicado conciliar trabalho<br />

e estudo, sendo necessário o auxílio da bolsa para os<br />

pós-graduandos. “Torna-se um espaço extremamente<br />

elitizado. Até porque, mesmo quem tem bolsa, numa<br />

cidade como o Rio de Janeiro, o valor pago não propicia<br />

uma vida tranquila”.<br />

O relato de Fernanda ecoa na situação de Thalita<br />

Lima, também mestranda em Relações Internacionais<br />

no Rio de Janeiro. Bolsista do CNPq, Thalita esclarece<br />

que o auxílio cobre partes das despesas. “O auxílio<br />

não é suficiente para tudo. A gente ainda fica<br />

preocupado com questões financeiras. Com certeza sem a<br />

bolsa eu precisaria trabalhar”.<br />

As dificuldades dizem também de um cenário sempre<br />

presente: a qualificação intelectual da população está<br />

sempre voltada para uma elite econômica. Sem apoio<br />

financeiro, cidadãos de baixa renda teriam menos<br />

chances de possuir uma pós-graduação bem feita, e assim<br />

a ciência do país continua sendo concebida nas mãos de<br />

uma determinada parcela da população que detém os<br />

poderes de conhecimento, de embasamento científico,


Programas de Pós-Graduação no Brasil<br />

2903 programas<br />

3069 programas 3217 programas 3402 programas<br />

Ensino Privado<br />

634 programas 679 programas 714 programas<br />

775 programas<br />

Fonte: Geocapes - Capes 2018<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 59


de autoridade de voz. De acordo com o Censo de 2010, dos<br />

190.732.694 brasileiros, apenas 566.027 possuíam Mestrado e<br />

218.721 possuíram Doutorado.<br />

Sinais dessa exclusão acontecem não só no âmbito de<br />

auxílio financeiro, mas também na falta de democratização<br />

de conteúdo. “Tenho aulas em outros idiomas com<br />

professores estrangeiros. Fora que 95% dos textos são em<br />

inglês”, explica Fernanda Alvarenga. A disponibilidade para<br />

a produção de um projeto bem construído, de dispor dos<br />

livros indicados para as provas, o deslocamento para se<br />

fazer o exame de seleção e a entrevista na própria instituição,<br />

o conhecimento de uma língua estrangeira etc,<br />

são fatores que fazem um recorte socioeconômico dos<br />

estudantes de pós-graduação.<br />

Para o mestrando em Comunicação na Ufop Aleone<br />

Higidio, o desnivelamento é explícito. “Mesmo aquelas<br />

pessoas que, com toda essa dificuldade, seja financeira,<br />

seja não poder estudar em outra língua, conseguem<br />

romper com isso, quando elas ingressam nesses<br />

Programas [de pós-graduação] quem são aqueles mais<br />

bem classificados?” Aleone, bolsista pela Fundação<br />

de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais<br />

(Fapemig) através do critério socioeconômico,<br />

confessa que, apesar do valor recebido, essencial para<br />

possibilitar seus estudos, não é sempre que recebe o<br />

dinheiro no prazo correto. “Já fiquei em torno de dois<br />

meses em atraso”. Por mais que, segundo Aleone, essa<br />

situação tenha sido atípica, o estudante nunca recebeu<br />

a bolsa até o quinto dia útil. Tal contribuição financeira<br />

parece ser vista pelo governo como um bônus mas, na<br />

verdade, é um financiador da pesquisa, da participação de<br />

eventos científicos, das demais exigências acadêmicas.<br />

Vale lembrar que as bolsas concedidas aos estudantes de<br />

pós-graduação exigem, em geral, a dedicação exclusiva por<br />

parte do estudante, excluindo, por exemplo, a possibilidade<br />

de se ter outro benefício da Universidade, como auxílio<br />

moradia. Por mais que o valor seja maior que os demais<br />

auxílios concedidos pela Universidade, os gastos também<br />

são. No Brasil, os mestrandos bolsistas recebem o valor de R$<br />

1.500, doutorandos de R$ 2.200 e pós-doutorandos R$ 4.100.<br />

Tais valores não passam por reajuste desde 2013.<br />

Diante da falta de investimento, o desenvolvimento<br />

científico acaba limitado em sua produção e seus benefícios<br />

não chegam à sociedade. “Eu entendo a ciência como um<br />

mecanismo para a diminuição da desigualdade, aumento<br />

de progresso, desenvolvimento do país.” Para Caio César,<br />

mestrando em Economia na Ufop, a ciência e a pós-graduação<br />

são vistas, equivocadamente, como algo isolado e restrito.<br />

A separação entre pesquisa e sociedade é também uma das<br />

causas para um contexto social desigual. Se a ciência não<br />

for feita na Universidade, através de investimento público,<br />

articulando desenvolvimento científico e transformação<br />

social, onde mais será?<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 61


TEXTO:<br />

FOTO:<br />

ARTE:<br />

MODELO:<br />

ÉRICA RANGEL<br />

RAÍSSA LESSA<br />

SANDRA ROZA<br />

RODRIGO LESSA<br />

Identidade


Todos os anos, aumenta o número de pessoas que<br />

fazem o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem),<br />

buscando entrar no Ensino Superior. Muitas delas<br />

apostam no diploma como o ingresso para a sonhada<br />

conquista da independência fi nanceira.<br />

Além disso, esse é um dispositivo que pode<br />

assegurar uma melhor colocação profi ssional ou, até<br />

mesmo, ser uma questão de sobrevivência. É uma<br />

conquista que vai além das relações cotidianas, pois<br />

ocupa também um lugar no imaginário brasileiro.<br />

Afi nal, o que signifi ca ter um diploma?<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong><br />

65


Desde a sua criação, na Europa, no século<br />

XI, o Ensino Superior é símbolo de privilégios e prestígio.<br />

No Brasil, a valorização dessa graduação não foi diferente.<br />

Apesar da implantação tardia, somente no século XIX,<br />

esse sentido adentrou lentamente na sociedade. Apesar<br />

de todas as mudanças socioculturais, até os dias atuais,<br />

dos avanços tecnológicos, e das ressignificações do<br />

diploma, ele ainda é detentor de um grande peso social.<br />

Para Luciana de Oliveira, pesquisadora e professora na<br />

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a obtenção<br />

do diploma faz parte do imaginário do povo brasileiro como<br />

uma oportunidade de ascensão social, no caso das classes<br />

populares, ou de manutenção do status, no caso das elites.<br />

Além disso, Oliveira destaca que ser formado em um curso<br />

superior dá direitos ao exercício de determinadas profissões,<br />

como também direitos especiais na experiência cotidiana da<br />

cidadania e no campo criminal. Por exemplo, o dispositivo de<br />

prisão especial para quem tem diploma superior foi criado<br />

em 1937, no período da Ditadura do Estado Novo de Getúlio<br />

Vargas, um governo elitista, que acreditava no poder da técnica<br />

e da ciência para reverter os atrasos de um país no qual o povo<br />

era considerado despreparado e racialmente atrasado.<br />

As graduações das áreas<br />

de Ciências Humanas e Sociais são muito<br />

menos valorizadas do que as<br />

de Exatas ou Biológicas.<br />

Luciana de Oliveira<br />

E se ter uma graduação superior é sinônimo de<br />

reconhecimento e diferenciação, existem termos criados e<br />

convencionados popularmente que destacam ainda mais<br />

determinadas profissões em relação a outras. Esse é o<br />

caso do uso do tratamento “doutor” dado, por exemplo, à<br />

formação nas áreas da Saúde e do Direito, e que nada têm a<br />

ver com uma real especialização. O termo surgiu no período<br />

da proclamação da República e promoveu o nivelamento<br />

do ensino das Faculdades e Ginásios estaduais e privados<br />

às Instituições Federais. Além disso, fez com que todos os<br />

diplomas tivessem o mesmo valor econômico e simbólico<br />

em todo o território brasileiro. Sendo assim, a sociedade<br />

da época baseava-se no reconhecimento através de<br />

títulos, o que perdura até os dias de hoje.<br />

Oliveira também ressalta que há diferenciações na<br />

valorização de cursos. “As graduações das áreas de Ciências<br />

Humanas e Sociais são muito menos valorizadas do que as<br />

de Exatas ou Biológicas. Tudo isso tem uma correlação<br />

direta com um pensamento sobre o que é a ciência e a<br />

tecnologia, sendo os cursos dessas duas últimas áreas<br />

considerados mais científicos do que os da primeira” .<br />

Carregando uma herança do período colonial, o Brasil<br />

é um país que ainda apresenta características dessa época,<br />

quando a metrópole limitava os investimentos, alegando falta<br />

de recursos. Apesar disso, o número de cidadãos buscando a<br />

formação superior vem aumentando gradativamente, fazendo<br />

com que a população caminhe, mesmo que lentamente,<br />

para o lugar de uma população socialmente mais preparada.<br />

Pessoas com maior grau de instrução têm a possibilidade de<br />

uma maior politização e consequentemente de interferir na<br />

melhora das condições de vida de uma sociedade.<br />

Meus tios têm criação de<br />

animais, e cada um deu uma vaquinha<br />

para nos ajudar a comprar<br />

o nosso consultório.<br />

Letícia Gomes Gonçalves<br />

De acordo com o reitor da Universidade de Campinas<br />

(Unicamp), Marcelo Knobel, dados do Instituto Nacional<br />

de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep)<br />

mostram que entre 2006 e 2016, o número de alunos<br />

matriculados em cursos superiores subiu de quase 5 milhões<br />

para 8 milhões. Em 2016, segundo dados do Inep, havia<br />

mais de 1 milhão de Instituições de Ensino Superior no país,<br />

entre Universidades, Faculdades, Centros Universitários e<br />

Institutos Técnicos, contra 6 milhões de instituições privadas.<br />

Knobel alega que um dos fatores que ajudaram a levar mais<br />

pessoas para o Ensino Superior foi o aumento do número de<br />

instituições privadas e o aumento da oferta de cursos online.<br />

Em 2006, os cursos online respondiam por apenas 4,2%<br />

do total de matrículas; em 2016, o percentual já havia subido<br />

para 18,6%. Apesar do aumento de pessoas em busca de uma<br />

maior especialização e da criação de políticas públicas para<br />

aumentar o acesso das pessoas às Universidades, Marcelo<br />

Knobel e Luciana de Oliveira apontam que ainda há muito<br />

o que ampliar. Segundo eles, essas ações são insuficientes<br />

em relação à desigualdade de ensino no país e ao número de<br />

pessoas que buscam ingressar no Ensino Superior.<br />

Filha de um pedreiro e uma dona de casa, Letícia Gomes<br />

Gonçalves, 23 anos, conta que seu ingresso no curso de<br />

Odontologia, da Faculdade Newton Paiva, em Belo Horizonte,<br />

foi através do Programa Universidade Para Todos (ProUni).<br />

A jovem, que estudou no Instituto Federal de Minas Gerais<br />

(IFMG), em Ouro Preto, declara que após sua passagem pela<br />

Instituição, sabia que não tinha aptidão para a área de Exatas.<br />

Então, no momento da escolha do curso, ela não teve dúvidas<br />

de que gostava da área da Saúde. Aprovada em Nutrição<br />

pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e tendo sua<br />

bolsa aprovada em cem por cento pelo sistema ProUni, ela<br />

declara que decidiu pela Odontologia e se realizou. Quando


CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong><br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong><br />

73<br />

67


Instituições de<br />

educação de Ensino<br />

Superior:<br />

Privadas: 87,70%;<br />

Públicas: 12,30%.*<br />

Cursos com maior número de<br />

matrículas desde 2009:<br />

Direito: 862.324;<br />

Administração: 710.984;<br />

Pedagogia: 679.286.<br />

2016:<br />

Matrículas em:<br />

Privadas: 75,3%;<br />

Públicas: 24,7%.<br />

Quase 1 milhão e cem<br />

mil alunos concluíram<br />

o Ensino Superior.<br />

Sendo que: 78,9% em<br />

instituições Privadas; e<br />

21,1% em Públicas.<br />

Coréia<br />

do Sul<br />

70%<br />

Canadá<br />

61%<br />

Japão<br />

60%<br />

Chile<br />

29%<br />

Brasil<br />

17%<br />

Ganho de<br />

56% mais do<br />

que quem só<br />

possui o Ensino<br />

Médio.<br />

10% a mais<br />

de<br />

chances<br />

de ser<br />

contratado.<br />

No Chile e<br />

no Brasil,<br />

os ganhos<br />

podem ser<br />

mais que<br />

duas vezes<br />

a média da<br />

renda.


perguntada sobre o significado de ter um diploma, a<br />

jovem afirma que é uma realização e que hoje é<br />

uma exigência do mercado, além de ser o começo<br />

para futuras especializações.<br />

Letícia está no último período do curso e já tem seu<br />

próprio consultório em parceria com o namorado, que<br />

também é dentista. “A compra do nosso consultório foi<br />

um verdadeiro milagre. Meu avô e meu pai ajudaram<br />

com o que tinham e, cada um dos meus tios ajudou<br />

com uma vaquinha. E quando digo vaquinha, é porque<br />

meus tios têm criação de animais e, cada um deu uma<br />

vaquinha pra nos ajudar a comprar nosso consultório”.<br />

A jovem é inspiração para o pai, que voltou a<br />

estudar e está cursando Edificações no IFMG.<br />

“Futuramente, por causa do exemplo dela, eu penso<br />

em fazer uma Faculdade”, declara José.<br />

Para o reitor Marcelo Knobel, o acesso ao Ensino<br />

Superior é fundamental para o progresso de qualquer<br />

país. Não porque faz com que a população seja mais<br />

culta, mas sim porque ele garante uma formação mais<br />

completa, para ampliar o conhecimento, e para que tenhamos<br />

um número considerável de pessoas com formação<br />

sólida para avançar a sociedade. “Para que um<br />

país se desenvolva, é preciso que parte considerável de<br />

sua população tenha acesso ao Ensino Superior.” Dados<br />

da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento<br />

Econômico (OCDE) mostram que, em 2017, apenas<br />

17% da população brasileira de <strong>25</strong> a 34 anos possuía<br />

diploma de nível superior. Esse percentual é menor do<br />

que o da média dos países membros da OCDE, de 43%,<br />

e do que o de muitos países da América Latina. No Chile,<br />

Colômbia e Costa Rica é próximo a 30%. Dados de<br />

2014 apontam que o México, por exemplo, tinha 17% da<br />

população de <strong>25</strong> a 64 anos com o diploma de nível superior.<br />

Existem também aqueles que buscam, além<br />

dos recursos econômicos, uma maior especialização<br />

para as funções que já desempenham e a realização<br />

pessoal, como é o caso de Rita de Cássia Amorim, 48,<br />

gerente de uma loja de Equipamentos de Proteção<br />

Individual (EPI’s). Segundo ela, que fez o Ensino<br />

Médio em uma instituição pública e optou por uma<br />

Faculdade particular, ter um diploma superior significa<br />

mais auto-estima e estar habilitada a desempenhar<br />

suas atividades. Questionada sobre a diferenciação<br />

de tratamento pelo mercado entre profissionais de<br />

instituições públicas e privadas, Rita é categórica.<br />

Ela acredita que o bom profissional é aquele que se<br />

esforça para desempenhar da melhor forma o seu<br />

papel, praticando os conhecimentos que adquiriu.<br />

Knobel explica que essa diferenciação entre<br />

instituições privadas e públicas existe porque, de<br />

modo geral, a qualidade do Ensino Médio no Brasil<br />

é bem maior nas escolas privadas do que nas escolas<br />

públicas. Nestas últimas, predominam alunos de<br />

nível socioeconômico mais baixo. No Ensino Superior,<br />

ocorre o inverso: em geral, a qualidade é maior nas<br />

instituições públicas do que nas privadas.<br />

E se o Ensino Médio, geralmente, é melhor em escolas<br />

particulares, existem alunos vindos da rede pública<br />

que tentam há anos ingressar no Ensino Superior<br />

público e que se julgam pouco preparados, como é o<br />

caso da Cremilda Aparecida Moutinho, 35, que sonha<br />

em cursar Jornalismo na Ufop e já tentou o Enem dez<br />

vezes. Para ela, ter um diploma significa ampliar seus<br />

conhecimentos e trocar experiências. Atualmente, Cremilda<br />

está fazendo o curso pré-vestibular da Ufop.<br />

Há os que se graduam em um curso superior e que,<br />

devido a uma série de fatores, optam por desempenhar<br />

outra atividade sem qualquer vínculo com a sua formação.<br />

Segundo Marcelo Knobel, isso ocorre por vários<br />

motivos. Um deles tem a ver com a inflexibilidade dos<br />

currículos. Os jovens são obrigados a escolher uma carreira<br />

muito cedo, aos 17, 18 anos, muitas vezes sem o<br />

conhecimento necessário para tomar tal decisão. “Não<br />

raro, eles se decepcionam com o curso escolhido, mas<br />

resolvem levá-lo até o fim, mesmo sabendo que não<br />

trabalharão posteriormente na área, por não quererem<br />

se submeter a outro exame vestibular. Se os currículos<br />

fossem mais flexíveis no que se refere à mudança de<br />

um curso para outro, o número de graduados trabalhando<br />

em sua área de formação certamente seria maior”.<br />

Influenciado pelo mercado de trabalho da época e<br />

pelos pais, Giulio Rizzo, 38, escolheu cursar Engenharia<br />

Florestal. Ele conta que não gostava da parte de<br />

Exatas e dentro do curso foi encontrando formas de se<br />

especializar na parte mais humana da Engenharia, trabalhando<br />

com recuperação de parques e com Educação<br />

Ambiental. Após se formar em 2003, viajou para o Mé-<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong><br />

69


É preciso tornar os currículos<br />

mais flexíveis, que as Universidades<br />

ofereçam uma formação mais<br />

ampla, que dê mais ênfase às aptidões.<br />

Marcelo Knobel<br />

xico, onde trabalhou por um ano, como modelo profissional.<br />

“O México foi uma experiência incrível para mim, mas eu me<br />

sentia culpado por não levar à frente a carreira de Engenheiro<br />

Florestal, que era a herança que os meus pais me deram.”<br />

Giulio conta que depois de trabalhar em várias empresas, em<br />

pequenas cidades, não estava feliz. Após realizar vários testes<br />

vocacionais, prestou novamente o vestibular e foi aprovado<br />

em Relações Públicas na Universidade Estadual do Rio<br />

de Janeiro (UERJ), no ano de 2009.<br />

Em paralelo, Giulio começou a produzir shows e a atuar<br />

em peças de teatro. “Foi aí que conheci como a vida do artista<br />

no Brasil é difícil”. Hoje, após o convite de um amigo, Giulio<br />

mora nos Estados Unidos onde é pintor e D.J. Ele conta<br />

que para o diploma de outro país ser reconhecido nos Estados<br />

Unidos necessita de algumas indicações de professores e<br />

pessoas influentes. Apesar de não atuar na área de Relações<br />

Públicas, Giulio afirma que está conseguindo se expressar e<br />

fazer a sua arte. “Se for preciso recomeçar, eu tô pronto pra<br />

correr atrás de tudo aquilo que eu acredito”.<br />

Outro fator determinante na escolha e conclusão de um<br />

curso é a influência da formação dos pais aliada à pouca idade<br />

de muitos dos candidatos às vagas universitárias. Graduada<br />

em Direito, Adélia Miranda, 38, conta que escolheu o curso<br />

por influência do pai, que é advogado e por não ter habilidades<br />

na área de Exatas. “Eu acho que a gente escolhe a faculdade<br />

muito cedo, sem maturidade para saber qual é a nossa<br />

real vocação.” Atualmente, a advogada é proprietária de uma<br />

franquia de cosméticos e atua como coaching de vendas em<br />

todo o país. Apesar de não trabalhar em sua área de formação,<br />

ela destaca que o nível de instrução que se recebe em<br />

uma Faculdade, torna as pessoas mais preparadas, abre portas<br />

e promove o crescimento delas: “Quanto mais uma pessoa<br />

se especializa, mais a sua mente e visão crítica de mundo se<br />

expandem”. A empresária ressalta também que os conhecimentos<br />

adquiridos na Faculdade a auxiliam no<br />

exercício de suas atividades.<br />

Muito além de um papel que comprova a conclusão<br />

de um curso, o diploma é porta de entrada para uma<br />

sociedade mais humana e pensante em todos os aspectos.<br />

Independente de formalidades, o conhecimento<br />

não é algo que se subtrai, mas que se soma. As Universidades<br />

deveriam estar preparadas para formar não<br />

somente profissionais técnicos, mas cidadãos experienciados.<br />

Dentro deste contexto, o reitor Marcelo Knobel afirma que<br />

“os currículos são engessados e dão muita ênfase à questão<br />

dos conteúdos”. Para ele, “tudo isso dificulta a formação de<br />

pessoas com espírito crítico. É preciso que os currículos sejam<br />

mais flexíveis, que as Universidades ofereçam uma formação<br />

mais ampla, que dêem mais ênfase às aptidões, reduzam o<br />

número de horas em sala de aula e privilegiem o trabalho em<br />

equipe”. Já a professora Luciana de Oliveira, afirma que “devíamos<br />

pensar a graduação, na tradição de formação científica<br />

ocidental, apenas como uma das etapas e não como o fim<br />

da formação. Todas as formas de conhecimento colaboram e<br />

muito para a formação de um país” .


Conflito<br />

Alternativa<br />

pedagógico<br />

Somos um país que demorou a entrar no mapa do<br />

Ensino Superior. E seguimos atrasados quando o<br />

assunto é didática...<br />

Texto:<br />

Foto:<br />

Arte:<br />

João De Belli<br />

Gabriel Abreu<br />

Giuliana Terranova<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 71


Na América Espanhola, durante a colonização,<br />

as primeiras Universidades datam de 1551. No Brasil, somente<br />

no início do século XIX, em 1827, foram criados<br />

os dois primeiros cursos de graduação. As mulheres eram<br />

educadas de acordo com as tradições europeias: para serem<br />

mães e esposas. A partir de 1875, cursos de Magistério foram<br />

abertos para que elas pudessem se formar professoras. Mas<br />

nas Escolas Superiores, os exames de admissão continuavam<br />

restritos aos homens.<br />

Quando estas primeiras escolas começaram a ser criadas,<br />

alguns métodos europeus também foram aplicados. As<br />

Escolas Superiores centravam sua forma de ensinar apenas<br />

na formação de profissionais. Um exemplo são os primeiros<br />

cursos no Brasil: Medicina, Direito e Politécnica. Todos baseados<br />

no modelo das “Grandes Escolas Francesas”, da época<br />

do Rei Sol, Luís XIV. O resultado era um ensino voltado para<br />

criar líderes políticos e funcionários do Estado, com ideais<br />

de obediência e respeito à nação, como indicam as pesquisas<br />

de Arabela Campos, professora da Universidade Federal do<br />

Rio Grande do Sul (UFRGS).<br />

No ano de 1932, outra pedagogia foi proposta para a<br />

educação. Anísio Teixeira, intelectual e escritor brasileiro,<br />

foi um dos difusores da chamada Escola Nova, e influenciou<br />

bastante na forma como o Ensino Superior se desenvolveu<br />

nas décadas posteriores, em todo o Brasil.<br />

Essa metodologia de ensino floresceu rapidamente pelo<br />

país, e parecia se opor à ideia de educação que o modelo<br />

tradicional sugeria. Na prática, a Escola Nova pensada por<br />

Anísio tinha como propósito fortalecer a pesquisa. Além<br />

disso, os princípios dessa pedagogia também prezavam pelo<br />

respeito às diferenças entre as pessoas. Para os “escolanovistas”,<br />

o Ensino e a Pesquisa não se separavam. Em vez<br />

de acreditarem na transmissão do conhecimento, onde um<br />

professor passa os conceitos e ensinamentos ao aluno, defendiam<br />

a busca em conjunto por respostas.<br />

Mas os reflexos da Escola Nova para a Universidade não<br />

foram os melhores. Em 1935, Anísio Teixeira criou a Universidade<br />

do Distrito Federal (UDF), no Rio de Janeiro. Com o<br />

objetivo de uma pedagogia voltada ao incentivo da pesquisa<br />

e obtenção do conhecimento, a UDF era composta por cinco<br />

Escolas: Ciências, Educação, Economia e Direito, Filosofia, e<br />

Instituto de Artes. A proposta era distanciar-se do costume<br />

utilitário que prevalecia até então, limitado à formação de<br />

profissionais e alguns líderes políticos. Quando inaugurou a<br />

Universidade do Distrito Federal, prometia uma pedagogia<br />

que mais incluísse do que excluísse.<br />

A Universidade de Anísio Teixeira foi fechada em 1939,<br />

após a implementação do Plano Nacional de Educação<br />

(PNE), de Getúlio Vargas. Na ocasião, Vargas havia instituído<br />

o Estado Novo, governo que durou de 1937 à 1946. Autoritário,<br />

nomeou Francisco Campos como responsável por<br />

pensar um novo modelo de educação para o Brasil, a partir<br />

de um Estado centralizador e ufanista. Esse modelo tinha<br />

como objetivo a unificação da educação e a formação de um<br />

estudante obediente e apaixonado pelo Brasil.<br />

Para muita gente, a influência das ideias de Anísio não<br />

foi tão positiva assim. A forma como pensou a Pesquisa, por<br />

exemplo, muito se parece com os dias de hoje. As Escolas de<br />

pós-graduação deveriam ser a “cúpula do conhecimento”,<br />

e seguir, mais uma vez, os exemplos das “Grandes Escolas<br />

No início, o foco da formação era<br />

preparar os alunos para desenvolverem<br />

atividades profissionais.


Francesas”. Ou seja: mesmo tendo um apelo humanista, a<br />

pedagogia da Escola Nova e da Universidade de Anísio também<br />

era voltada para uma minoria privilegiada, e com uma<br />

hierarquia rígida e inflexível.<br />

Na opinião de Glícia Gripp, socióloga e professora do Departamento<br />

de Ciências Sociais da Universidade Federal de<br />

Ouro Preto (Ufop), esse método de ensino tem reflexos e consequências<br />

ainda nos dias de hoje: “No Brasil é difícil falar<br />

de inovações pedagógicas no Ensino Superior, porque nosso<br />

sistema de ensino é quase o mesmo desde os anos 1930.<br />

E com a obrigatoriedade de a Universidade abarcar ensino,<br />

pesquisa e extensão (Artigo 207 da Constituição Federal), o<br />

ensino acaba saindo prejudicado, porque é o que traz menos<br />

recurso financeiro para a Universidade e prestígio social para<br />

o professor”. Para a professora, um reflexo desse sistema é o<br />

abandono do ensino e da sala de aula em detrimento de uma<br />

carreira voltada para a pesquisa.<br />

Glícia questiona o cuidado com as práticas pedagógicas:<br />

“Além do conteúdo, existem outros três níveis de conhecimento<br />

de ordem superior, que são importantes de serem desenvolvidos<br />

em sala. No Brasil o ensino é muito conteudesco,<br />

bacharelesco. Aprender só o conteúdo deixa o conhecimento<br />

muito vago, e é esquecido”. Esse déficit, na opinião da pes-<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 73


quisadora, tem uma raiz mais profunda: a formação<br />

dos professores. O docente universitário muitas vezes<br />

não é preparado para dar aula, e aprende assistindo<br />

aos próprios professores. “E assim vamos repetindo<br />

por cem anos ou mais as mesmas práticas, que são<br />

prejudiciais”, completa.<br />

Alternativa à esquerda<br />

A pedagogia das Universidades seguiu pautada em<br />

grande parte pelas ideias da Escola Nova. Hoje, Anísio<br />

Teixeira dá nome à uma faculdade em Feira de Santana,<br />

na Bahia, a Faculdade Anísio Teixeira (FAT). Também<br />

batiza outro instituto, o Instituto Superior Anísio<br />

Teixeira (Isat), no Rio de Janeiro. E ainda nomeia o<br />

Pavilhão Anísio Teixeira, bloco de salas da UnB, a Universidade<br />

de Brasília.<br />

Apesar das homenagens, apareceram também<br />

propostas pedagógicas que se opunham e criticavam<br />

a Escola Nova. A Igreja Católica enxergava nas novas<br />

Universidades o perigo do Liberalismo norte-americano.<br />

Anísio Teixeira, por exemplo, defendia que o ensino<br />

fosse laico e obrigatório. Para a Igreja, essa forma<br />

de ensinar afastava os jovens dos princípios religiosos.<br />

Então, em 1946, foi criada a primeira Universidade<br />

Católica do Brasil, que mais tarde receberia o título<br />

de Pontifícia. A pedagogia foi desenvolvida e aplicada<br />

para atender aos princípios da moral e cultura católica.<br />

No ritmo das críticas à Escola Nova, a década de<br />

1980 apareceu com importantes propostas para a sala<br />

de aula. Demerval Saviani, filósofo, pedagogo e professor<br />

emérito da Unicamp, Universidade de Campinas,<br />

elaborou, em 1982, a Teoria Histórico-Crítica, que buscava<br />

compreender o percurso da educação no Brasil e<br />

propor um novo modelo de Ensino, oposto ao vigente.<br />

Em seu livro “Escola e democracia: polêmicas do<br />

nosso tempo”, Saviani apresenta a pedagogia da Escola<br />

Nova como uma mentira. Para ele, a promessa<br />

pela inovação era falsa, porque acabava reproduzindo<br />

nas salas de aula as estruturas de poder do Brasil.<br />

Na opinião do professor, a ideia de Anísio Teixeira de<br />

respeito às diferenças nada mais era do que uma forma<br />

de justificar e aceitar as desigualdades. “A escola<br />

tradicional foi construída como instrumento de redimir<br />

a humanidade, era o grande projeto da educação<br />

burguesa quando ela era revolucionária. Quando se<br />

tornou conservadora, abandonou a busca pela igual-<br />

dade essencial entre os homens e começou a admitir<br />

as diferenças. Aí vem a Escola Nova dizendo que as<br />

crianças são diferentes entre si e tem que respeitar as<br />

diferenças. Na verdade está justificando a desigualdade,<br />

então é reacionário”, explica ele em entrevista ao<br />

canal online Leituras Brasileiras.<br />

Movido pelas ideias do socialista Karl Marx, Saviani<br />

rejeitava o método da Escola Nova. Para ele, a educação<br />

deveria se concentrar no ato de ensinar. Identificando,<br />

dentro da sala de aula, o conceito marxista<br />

de luta de classes, ele dizia que o conhecimento tinha<br />

que ser compartilhado para que “os dominados possam<br />

dominar o que os dominantes dominam”. José<br />

Jardilino, professor de História da Educação da Ufop,<br />

aponta essa diferença como uma das principais entre<br />

os modelos de ensino: “[Na Escola Nova] Os professores<br />

viviam o período da cátedra. Tinham conhecimento e repassavam<br />

ao alunos. Não tinha a ideia do professor que<br />

constrói conhecimento. Era mais uma transmissão de<br />

conteúdo. É Paulo Freire que rompe com isso.”<br />

Paulo Freire, Patrono da educação no Brasil, é uma<br />

das inspirações de Saviani. Para Freire, a educação, em<br />

todas as instâncias, deveria significar uma “apropriação<br />

crítica da realidade”. É justamente sob esse ponto<br />

de vista que o professor da Unicamp faz seus questionamentos<br />

à Escola Nova. “Para Saviani o grande vilão<br />

era o tecnicismo na educação. Formar o professor era<br />

treiná-lo para ele fazer o ensino desde a alfabetização<br />

das crianças até os primeiros conhecimentos da escrita.<br />

Ensinar é diferente de educar. O ensino é o treinamento,<br />

e muito bom para o capital. Só ensinar a fazer é<br />

muito fácil, o difícil é educar”, explica Jardilino.<br />

Ao contrário do que se pode pensar, a influência<br />

marxista de Saviani não foi um dos motivos da rejeição<br />

às suas ideias. Jardilino lembra que na década<br />

de 1980, quando publicou suas teorias, o Socialismo<br />

ainda estava em alta. “Os grandes temas de Marx<br />

estavam todos dentro da Educação. O que é muito<br />

comum, pois estávamos passando por um momento<br />

de abertura. Então, a pós-graduação vai dar esse<br />

enfoque progressista para a educação. Mas se tivesse<br />

publicado hoje, certamente seria execrado”, explica.<br />

Apesar de as propostas de Saviani não terem sido<br />

implementadas no Ensino Superior em todo o Brasil,<br />

elas influenciaram várias inovações pontuais dentro<br />

das salas de aula das Universidades. Na Universidade<br />

de Brasília (UnB), o professor de Cálculo I, Ricardo


Método 300<br />

1º Uma prova é aplicada aos alunos.<br />

2º O resultado divide a turma em grupos de<br />

seis, que mistura as notas. As maiores notas<br />

são os líderes de cada grupo.<br />

3º A prova pode ser refeita por quem tirou<br />

menos de 4.5 desde que o aluno compareça.<br />

a, pelo menos, dois encontros em grupo de<br />

duas hora cada, resolva uma lista de exercícios,<br />

encaminhada pelo professor, e resolva<br />

uma prova desenvolvida pelo líder do grupo.<br />

Novas pedagogias<br />

José Jardilino, professor de<br />

História da Educação na Ufop.<br />

Fragelli, propôs uma nova metodologia de avaliação aos alunos.<br />

O “Método 300”, como foi chamado por ele, elevou a<br />

média de aprovação da turma de 50% para 85%. Segundo o<br />

professor, grande parte do sucesso está na maneira com que<br />

se estabelece a relação com o aluno: “Esse método quebra a<br />

relação vertical de professor e estudante, e incentiva a turma<br />

a aprender em grupo, porque também coloca os alunos para<br />

ensinarem uns aos outros. Sem perder o foco no professor,<br />

que coordena tudo.”<br />

A disciplina de Cálculo é conhecida no curso de Engenharia<br />

pelos altos índices de reprovação e evasão. Segundo<br />

o professor, o percentual de reprovados da UnB chega a 60%<br />

da turma, e até metade da sala chega abandona a matéria<br />

durante o curso. Um dos motivos é a rigidez das avaliações, e<br />

sua flexibilização é a solução apontada por Fragelli: “Depois<br />

de realizar uma pesquisa com os alunos, o que eu percebi é<br />

que eles sentiam uma ansiedade muito grande com o jeito<br />

que as provas eram aplicadas. Alguns relataram que tinham<br />

dificuldade de dormir e até comer em semana de provas. Então,<br />

esse método deveria estar errado, porque essa não é a<br />

função da Universidade.” O Método 300, criado por Ricardo,<br />

leva esse nome em referência ao filme “300”. Para o professor,<br />

os alunos são como os poucos guerreiros espartanos, que juntos<br />

conseguem alcançar seus objetivos.<br />

A Extensão, defendida desde os anos 1960 por Paulo Freire,<br />

apenas em 1988 se tornou obrigação nas Universidades.<br />

Quando publicou, em 1969, seu livro “Extensão ou Comunicação”,<br />

Freire chamava atenção para a importância da relação<br />

entre a Universidade e a comunidade, proporcionada pelas<br />

práticas extensionistas e seus respectivos projetos.<br />

Na Ufop, Flávio Andrade, 64, trabalha na Pró-Reitoria de<br />

Extensão, a Proex, órgão responsável por coordenar as atividades<br />

extensionistas da Universidade, criado em 1989. O servidor<br />

parece concordar com o que dizia Paulo Freire há mais<br />

de quarenta anos: “A comunidade é um mundo e a Universidade<br />

é outro, isso que a Extensão quer juntar. Nós somos uma<br />

Universidade pública, quem paga pra funcionar é a sociedade.<br />

Pra você estudar hoje, quatro jovens ficaram pelo caminho,<br />

pagando pelo seu bandejão, pagando o professor. Você tem<br />

toda uma sociedade que paga com seu imposto por uma ferramenta<br />

que noventa por cento nunca vai chegar dentro dela.”<br />

Porém, a ideia do extensionista não é (e nem pode ser) a<br />

da simples transmissão de conhecimento. Como dizia Paulo<br />

Freire, “educar, na prática da liberdade, é tarefa daqueles<br />

que sabem que pouco sabem, em diálogo com aqueles que,<br />

quase sempre, pensam que nada sabem”. Para isso, deve-se<br />

ter cuidado, como esclarece Flávio: “O desafio maior é você<br />

conhecer aquele mundo, que não faz parte do acadêmico,<br />

A comunidada é um mundo<br />

e a Universidade é outro, é isso que<br />

a extensão quer juntar<br />

Flávio Andrade<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 75


espeitá-lo e ver que [ele] também tem coisa pra te ensinar.<br />

Com certeza o aluno de Engenharia que atravessou a rua e foi<br />

trabalhar com o desabrigado, aquilo ajudou alguma coisa no<br />

processo de ensino e aprendizagem. Os desabrigados devem<br />

ter ensinado alguma coisa ao aluno”.<br />

Além da Extensão, as Empresas Juniores (EJ’s) também<br />

apareceram como parte importante no processo de inovação<br />

do Ensino Superior. A ideia, criada em 1967 por alunos da<br />

Escola Superior de Ciências Econômicas e Comerciais (ES-<br />

SEC – L’École Supérieure des Sciences Economiques et Commerciales),<br />

vinha da perspectiva de que o ensino não estava<br />

atualizado à realidade do mercado. Fundado por estudantes,<br />

esse novo método buscava “desenvolver habilidades práticas<br />

de mercado nos seus membros, exclusivamente graduandos,<br />

e oferecer soluções de qualidade e a um preço acessível.”<br />

João Tupinambá é estudante de Ciência da Computação<br />

na Ufop. Além disso, também é presidente do Núcleo de Empresas<br />

Juniores da Ufop, o Core, e conselheiro da Linking,<br />

empresa do seu curso. Responsável por auxiliar na administração<br />

das outras empresas da Universidade, ele conta como<br />

funciona o gerenciamento de uma: “A empresa júnior trabalha<br />

através de dinâmicas, de departamentos. Tem um setor de<br />

marketing, de administrativo-financeiro, projetos. E quando<br />

executamos um projeto, trabalha a empresa inteira. Os professores<br />

têm uma função mais distante, de orientar. A gestão<br />

em si é feita inteiramente pelos alunos.”<br />

João Tupinambá, presidente do<br />

Núcleo de Empresas Juniores<br />

da UFOP (Core).<br />

Segundo João, é justamente o desejo pela inovação que<br />

diferencia a metodologia de uma Empresa Júnior da sala de<br />

aula. Sala de aula que, na sua opinião, também está ultrapassada.<br />

“O modelo de conteúdo expositivo é um pouco antiquado.<br />

E a aprendizagem na prática é dada como das melhores.<br />

A teoria não pode ser descartada, mas as abordagens que a<br />

gente faz no movimento são muito fora da caixa. Os eventos<br />

não são só ir e assistir palestra, acontece muita interação.”<br />

Porém, ainda que representem uma inovação, as Empresas<br />

Juniores também recebem críticas e são tratadas com alguma<br />

ressalva dentro da Universidade. Um exemplo é o episódio<br />

ocorrido em 2013, na Universidade Federal de Santa Catarina<br />

(UFSC). Na ocasião, uma assembleia foi realizada no Centro de<br />

Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), para decidir se aquele<br />

campus aceitaria a implantação de uma EJ, no curso de Psicologia.<br />

O resultado? De 553 presentes, 329 alunos foram contra<br />

a abertura da empresa, e apenas 160 se posicionaram a favor.


As críticas de quem foi contra as Empresas Juniores se<br />

parecem com as que Saviani fazia (e faz) à Escola Nova. O psicólogo<br />

Allan Kenji, à época estudante de Mestrado da UFSC,<br />

pensa que a estrutura da EJ está de ponta cabeça: “Temos uma<br />

via lógico-discursiva que torna aceitável e desejável a submissão<br />

das Universidades às demandas do mercado de trabalho,<br />

como se fossem necessariamente os sujeitos e a própria instituição<br />

pública que devam se adequar a ele, e não o contrário”,<br />

afirma em artigo escrito para explicar a negativa dos alunos.<br />

Ou seja, mais uma vez alguém diz que estamos reproduzindo<br />

as desigualdades e estruturas sociais na educação.<br />

A pedagogia das Universidades brasileiras não inovou<br />

muito nos últimos 90 anos. Da Escola Nova de Anísio Teixeira<br />

em 1930, à educação libertadora de Paulo Freire e Saviani,<br />

a Universidade passou pelo governo rígido e autoritário de<br />

Vargas, e por uma violenta Ditadura Civil-Militar. No entanto,<br />

as salas de aula continuam no mesmo formato. A hierarquia<br />

acadêmica segue rígida e inflexível. Somente em 2017,<br />

foram aprovados os primeiros Programas de cotas para pós-<br />

-graduação em Universidades Públicas. Mas não há motivo<br />

para desespero, ainda dá para olhar para algum lugar. A saída<br />

parece ser um ensino humanizado e voltado para o diálogo,<br />

Aos poucos, a Universidade parece se adequar às realidades<br />

do estudante brasileiro.<br />

Uma nova iniciativa<br />

No final de 2017, foi aprovada pelo Ministério da Educação<br />

(MEC) a criação da Faculdade Rudolf Steiner, a primeira no<br />

Brasil pautada pela pedagogia Waldorf. Apesar de recente no<br />

país, o método de ensino é antigo. Foi criado pelo austríaco<br />

Rudolf Steiner em 1919, após a Primeira Guerra Mundial. O<br />

dono de uma fábrica de cigarros em Sttutgart, na Alemanha,<br />

pediu ao intelectual que criasse uma escola para os filhos de<br />

seus empregados. Steiner criou, com dinheiro da iniciativa<br />

privada, a primeira escola Waldorf, com uma metodologia humanizada<br />

e diferenciada. Fez o mercado se adequar à educação.<br />

Seu método procurava distanciar os alunos da tecnologia<br />

e aproximá-los de outras experiências, como o meio ambiente,<br />

as artes, a música e a agricultura.<br />

Segundo a Federação de Escolas Waldorf, no Brasil existem<br />

74 escolas credenciadas, totalizando 9702 estudantes.<br />

Em Belo Horizonte, o Colégio Rudolf Steiner de Minas Gerais<br />

aplica a metodologia há mais de 10 anos. O contato com<br />

computadores, por exemplo, só acontece no Ensino Médio,<br />

e a alfabetização começa aos sete anos. Para a direção da<br />

escola, ainda que muitas crianças pareçam precoces intelectualmente,<br />

não quer dizer que tenham maturidade para<br />

passar por esses processos.<br />

Quase 100 anos depois da primeira escola, a Diretora da<br />

primeira Faculdade brasileira, explica: “Temos o desejo de<br />

que a maioria dos professores aqui formados vá trabalhar em<br />

escolas que não são Waldorf, especialmente nas públicas”,<br />

afirma Melenie Mengels, em entrevista ao jornal Folha de<br />

S.Paulo. Na matriz curricular da Faculdade Waldorf, que, em<br />

nível graduação, oferece apenas o curso de Pedagogia, nota-<br />

-se o distanciamento com os computadores e a proximidade<br />

com as artes, dança e música. Aulas de pintura e teatro também<br />

estão presentes na graduação.<br />

A Faculdade oferece um programa de bolsas com apenas<br />

dez vagas, limitadas às estabelecidas por lei, e Programas de<br />

inclusão do Governo Federal, como o Fies e o Prouni, ainda<br />

não são aceitos como forma de ingresso. As mensalidades<br />

também possuem valor elevado: R$ 1500,00.<br />

A pedagogia Waldorf e o modelo proposto pela Faculdade<br />

Rudolf Steiner podem ser observados por outras instituições<br />

públicas e privadas como amostra de que é possível pensar e<br />

tentar executar novas possibilidades de ensino. Nos mostram<br />

que outras didáticas podem se adequar à Educação Superior, e<br />

estas também podem formar profissionais de maneira humanizada<br />

e preparada. Em meio a discussões históricas e ideológicas,<br />

a convergência entre os debates parece ser a saída para<br />

uma pedagogia horizontal, que procura dialogar com o aluno e<br />

flexibilizar as certezas da Academia.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 77


Habitar<br />

Texto:<br />

Foto:<br />

Arte:<br />

Daniel Borges<br />

Miriã Bonifácio<br />

Mariani Barbosa


Tempo<br />

e<br />

espaço<br />

de<br />

mudar<br />

A transformação é como a terceira margem do<br />

rio, é o próprio caminho, como diria Guimarães Rosa. É o que<br />

nos guia, nos aponta para uma (ou várias) direções. Não está<br />

em uma margem ou em outra, mas rio adentro de nós. Não<br />

necessariamente é aquilo que alguém vê. E sim o que vai nos<br />

conduzindo. Para onde?<br />

As cidades, os objetos, o tempo e o espaço sofrem e promovem<br />

modificações. Assim, as chegadas e partidas, os começos<br />

e os finais; tudo é rito e tudo é transformação. O líquido vira<br />

gelo. O tijolo quando se junta ao cimento se transforma em<br />

parede. E até as lagartas se tornam borboletas.<br />

Alice, ao seguir um coelho, caiu em um buraco e descobriu<br />

o mundo. Pois é, essa transformação, que muitas vezes<br />

se dá ao acaso, leva a gente a lugares inimagináveis. A descoberta<br />

da sexualidade, as experiências na bagagem ou o desejo<br />

de se encontrar são partes dessa vontade de querer estar<br />

sempre em movimento no mundo.<br />

Como diria o saudoso Raul, é preferível ser essa metamorfose<br />

ambulante. E um ambiente que potencializa essa<br />

transformação é ela: a universidade. Pulsante de ideias, atitudes,<br />

sonhos e debates. Aqui, o “novo” se faz, se refaz, se<br />

encontra e se perde.<br />

Pensando nisso, fomos até pessoas, ou segundo Galeano,<br />

fogueirinhas, que querem dizer o oposto do que elas disseram<br />

antes. Nas próximas páginas você vai encontrar fotos-<br />

-histórias de sujeitos que, assim como a gente, se arriscaram<br />

para viver as suas grandes e mais fundamentais mudanças.<br />

Pois, há algumas delas que “incendeiam a vida com tamanha<br />

vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e<br />

quem chegar perto, pega fogo”.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 79


“Eu mudei muito. Físico, emocional, psicológico, gostos.<br />

Pude a cada dia encontrar um pedaço de mim. Conheci pessoas,<br />

amigos e eles também me conheceram. Descobri novas<br />

formas de me relacionar com os outros, com o amor, com a<br />

solidão. Mas, morar em outra cidade traz muitas dúvidas.<br />

Tive encontros e desencontros. ‘Homens de corpo e mente<br />

sã, mulheres que não sentem medo. Homens de amar tão de<br />

repente, mulheres de amar pra sempre’. Porque no final somos<br />

nuvens, sozinhas, que se encontram para chover. E quando a<br />

chuva é boa, seja de lar ou de colo, traz aconchego para descansar<br />

em meio a tantas descobertas”.<br />

Lilian Colombari


CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 81


“Minha filha brinca comigo, ela fala ‘mãe, você está muito<br />

polêmica, você não vai salvar o mundo’. (A universidade)<br />

deveria ser mesmo para todos, porque você vai ter essa oportunidade<br />

do diferente, tanta gente. Com 1001 questiona...<br />

Não! Vontades!<br />

Se eu não tivesse passado pela universidade, eu teria depressão,<br />

eu teria síndrome do vazio... Porque todos os meus<br />

filhos cresceram e foram embora. Uma até mora comigo<br />

mas, assim, eu sou muito dinâmica. Na verdade, tentei Artes<br />

Cênicas e nunca consegui… Eu saio toda noite pra universidade,<br />

sento lá e estudo. Olha que delícia! Eu não fico vendo<br />

novela, em bar, desesperada, eu não fico sozinha… Eu [fico]<br />

sempre acompanhada de aprendizado, de coisas novas!<br />

Olha como é lindo! Voando, voando e conhecendo coisas!”<br />

Zenith Amaral


CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 83


“A gente aprende muito desde o dia em que chega aqui.<br />

Estamos em nove pessoas batalhando e isso facilita demais a<br />

nossa convivência neste novo lugar, porque um vai ajudando<br />

o outro. Cada um de nós é de um canto diferente do Brasil<br />

e, todos dividindo o mesmo espaço, não é fácil, mas isso nos<br />

ensina bastante sobre ter tolerância. Raspar a cabeça nesse<br />

sentido é realizar um rito simbólico que marca o nosso começo.<br />

Eu quero me formar, ser bem sucedido… Voltar aqui<br />

como ex-aluno”.<br />

Lucas Borges


CURINGA | EDIÇÃO <strong>25</strong> 85


Pensamos que depois de tantas fotos, sessões e entrevistas,<br />

também saímos diferentes de antes. Talvez não esteja visível,<br />

mas ouvir e conhecer histórias encantadoras faz com<br />

que repensemos nosso pequeno mundo. A terceira margem<br />

está aí, do teu lado, a tua espera. “Bora” se arriscar nessa<br />

imensidão?


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