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Fides 22 N2

Um publicação do Centro Presbiteriano de Pós-graduação Andrew Jumper.

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INSTITUTO PRESBITERIANO MACKENZIE<br />

Diretor-Presidente José Inácio Ramos<br />

CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO ANDREW JUMPER<br />

Diretor Mauro Fernando Meister<br />

<strong>Fides</strong> reformata – v. 1, n. 1 (1996) – São Paulo: Editora<br />

Mackenzie, 1996 –<br />

Semestral.<br />

ISSN 1517-5863<br />

1. Teologia 2. Centro Presbiteriano de Pós-Graduação<br />

Andrew Jumper.<br />

CDD 291.2<br />

This periodical is indexed in the ATLA Religion Database, published by the American<br />

Theological Library Association, 250 S. Wacker Dr., 16 th Flr., Chicago, IL 60606, USA,<br />

e-mail: atla@atla.com, www.atla.com.<br />

<strong>Fides</strong> Reformata também está incluída nas seguintes bases indexadoras:<br />

CLASE (www.dgbiblio.unam.mx/clase.html), Latindex (www. latindex.unam.mx),<br />

Francis (www.inist.fr/bbd.php), Ulrich’s International Periodicals Directory<br />

(www.ulrichsweb.com/ulrichsweb/) e Fuente Academica da EBSCO<br />

(www.epnet.com/thisTopic.php?marketID=1&topicID=71).<br />

Editores Gerais<br />

Daniel Santos Júnior<br />

Dario de Araujo Cardoso<br />

Editor de resenhas<br />

Filipe Costa Fontes<br />

Redator<br />

Alderi Souza de Matos<br />

Editoração<br />

Libro Comunicação<br />

Capa<br />

Rubens Lima


Volume XXII · Número 2 · 2017<br />

Edição ESpEcial<br />

5º cEntEnário da rEforma protEStantE<br />

Igreja Presbiteriana do Brasil<br />

Junta de Educação Teológica<br />

Instituto Presbiteriano Mackenzie


CONSELHO EDITORIAL<br />

Augustus Nicodemus Lopes<br />

Davi Charles Gomes<br />

Heber Carlos de Campos<br />

Heber Carlos de Campos Júnior<br />

Jedeías de Almeida Duarte<br />

João Alves dos Santos<br />

João Paulo Thomaz de Aquino<br />

Mauro Fernando Meister<br />

Valdeci da Silva Santos<br />

A revista <strong>Fides</strong> Reformata é uma publicação semestral do<br />

Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.<br />

Os pontos de vista expressos nesta revista refletem os juízos pessoais dos autores, não<br />

representando necessariamente a posição do Conselho Editorial. Os direitos de publicação<br />

desta revista são do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.<br />

Permite-se reprodução desde que citada a fonte e o autor.<br />

Pede-se permuta.<br />

We request exchange. On demande l’échange. Wir erbitten Austausch.<br />

Se solicita canje. Si chiede lo scambio.<br />

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA<br />

Revista <strong>Fides</strong> Reformata<br />

Rua Maria Borba, 40/44 – Vila Buarque<br />

São Paulo – SP – 01<strong>22</strong>1-040<br />

Tel.: (11) 2114-8644<br />

E-mail: pos.teo@mackenzie.com.br<br />

ENDEREÇO PARA PERMUTA<br />

Instituto Presbiteriano Mackenzie<br />

Rua da Consolação, 896<br />

Prédio 2 – Biblioteca Central<br />

São Paulo – SP – 01302-907<br />

Tel.: (11) 2114-8302<br />

E-mail: biblio.per@mackenzie.com.br


Editorial<br />

Em 31 de outubro de 2017 completam-se 500 anos do marco histórico da<br />

Reforma Protestante. O monge agostiniano Martin Luther, professor de Bíblia<br />

da Universidade de Wittenberg, afixou nas portas da igreja da cidade 95 teses<br />

que criticavam a prática da venda de indulgências por ameaçar o verdadeiro<br />

tesouro da igreja: o evangelho. Essa publicação provocou uma discussão de<br />

proporções seculares e deu ocasião à maior cisão da Igreja do ocidente na<br />

história. As repercussões do movimento iniciado por Lutero transformaram<br />

completamente a sociedade e a cultura da Europa e, nestes 500 anos, alcançaram<br />

todo o mundo.<br />

São incalculáveis os tesouros teológicos acumulados nesse período.<br />

A Reforma Protestante teve papel fundamental em grandes transformações<br />

eclesiásticas, políticas, científicas, educacionais, culturais, sociais, etc. Por<br />

outro lado, meio milênio é tempo suficiente para o esquecimento de verdades<br />

preciosas e o (res)surgimento de velhos e novos enganos e distorções da fé e<br />

da prática cristãs. Nem tudo são flores nesses quinhentos anos.<br />

Nesta edição especial da revista <strong>Fides</strong> Reformata, os professores do Centro<br />

Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper reuniram-se para promover<br />

um mergulho na história e no pensamento da Reforma Protestante.<br />

No primeiro artigo – “A Reforma e os historiadores” – Alderi Souza de<br />

Matos apresenta as diferentes abordagens e avaliações de historiadores sobre<br />

a Reforma Protestante e traz à luz os desafios envolvidos no estudo e na<br />

compreensão de movimentos históricos. Em seguida, em “O papel da música<br />

na Reforma e a formação do Saltério de Genebra”, Dario de Araujo Cardoso<br />

descreve as contribuições que Lutero e Calvino trouxeram no que diz respeito<br />

ao uso da música no culto e ao canto congregacional. Destaca como os reformadores<br />

reconheceram e utilizaram o poder de mobilização e edificação da<br />

música para a promoção dos valores da Reforma.<br />

No terceiro artigo – “Lutero e os antinomistas: Qual é a visão evangélica<br />

da lei?” – Heber Carlos de Campos Jr. mostra que o movimento reformado<br />

não era monolítico e apresenta uma das discussões internas ao luteranismo<br />

acerca da relação do arrependimento com a lei e o evangelho. O texto mostra<br />

como Lutero, Melanchton e João Agrícola discutiram sobre a necessidade de<br />

pregar a lei para promover o arrependimento. Mostra também que a resposta<br />

antinomista à discussão da relação entre lei e evangelho, longe de ficar restrita<br />

ao contexto luterano, ressurgiu entre os ingleses e está presente no cenário<br />

evangélico contemporâneo. Vemos assim que o antinomismo é um desafio<br />

frequente a ser enfrentado pela teologia oriunda da Reforma.<br />

O artigo “O perigo a ser evitado numa reforma”, de Heber Carlos<br />

de Campos, apresenta-nos dois aspectos da teologia de Melanchton que se


afastaram do pensamento de Lutero. Eles dizem respeito à participação do<br />

homem na salvação e à presença de Cristo na Ceia. O artigo mostra como esse<br />

distanciamento posteriormente causou conflitos e divisões entre os luteranos<br />

e levou Melanchton a perder o lugar de destaque que possuía nessa tradição<br />

da Reforma.<br />

A escatologia tem sido apontada como o aspecto ausente do pensamento<br />

da Reforma. Entretanto, o artigo “O pensamento escatológico de Calvino”,<br />

de Leandro Antonio de Lima, faz-nos perceber que importantes tópicos desse<br />

campo da teologia estão presentes nos escritos de Calvino. O reformador genebrino<br />

escreveu sobre o Anticristo, a vida futura, a ressurreição, o milênio e o<br />

estado intermediário. O artigo trata, por fim, da percepção de Calvino sobre as<br />

limitações da linguagem humana para descrever como será o mundo vindouro,<br />

chamando nossa atenção para os cuidados necessários a essa discussão.<br />

Os estudos hermenêuticos fazem-se presentes no artigo “A hermenêutica<br />

cristotélica de João Calvino”, de João Paulo Thomaz de Aquino. Nele vemos<br />

que Calvino praticou uma interpretação que buscava demonstrar como os textos<br />

do Antigo Testamento apontavam para Cristo. Para ilustrá-la o autor apresenta<br />

afirmações de Calvino sobre a lei, os profetas e os salmos. O artigo também<br />

promove uma comparação com a abordagem de Erasmo de Roterdã, chamada<br />

de cristológica, e a de Lutero, denominada cristocêntrica.<br />

Os debates teológicos também são o tema do artigo “Calvino e o lapsarianismo”,<br />

de João Alves dos Santos. Os calvinistas dividiram-se em dois grandes<br />

grupos no que diz respeito à relação entre os decretos da eleição e da reprovação<br />

dos homens. Tanto supralapsarianos quanto infralapsarianos afirmam seguir<br />

o pensamento do Calvino sobre o tema. O artigo analisa a discussão e mostra<br />

que uma pesquisa nos escritos de Calvino, ainda que forneça algum apoio, não<br />

confirmará as alegações de nenhum dos grupos.<br />

O artigo em inglês dessa edição foi escrito por Elias Medeiros. “The reformers<br />

and missions: Warneck, Latourette, Neill, Kane, Winter, and Tucker’s<br />

arguments – part 2” é a continuação do artigo publicado por Medeiros na edição<br />

de 2013-1 de nossa revista. Seu objetivo é contestar, com base em obras<br />

primárias, a tese de alguns historiadores de que os reformadores não tinham<br />

preocupação com missões estrangeiras.<br />

A seção de resenhas continua o espírito celebrativo da edição e também<br />

se dedica a obras que fazem referência à Reforma. Nesta edição trazemos<br />

avaliações dos livros Calvino e a Vida Cristã, O Legado Missional de Calvino,<br />

O Pensamento da Reforma e Cuidado com o Alemão.<br />

Dario de Araujo Cardoso apresenta-nos Calvino e a Vida cristã, do norte-<br />

-americano Michael Horton. Através de uma rica exposição, a obra busca<br />

mostrar que a teologia de Calvino não provém de um intelectualismo árido,<br />

mas está calcada num sólido e frutífero conceito de piedade.


Filipe Costa Fontes escreveu a resenha de O Legado Missional de Calvino,<br />

do inglês Michael Haykin e do estadunidense C. Jeffrey Robinson. A obra<br />

busca mostrar a presença do conceito de missões no pensamento e nas ações<br />

de Calvino. Apresenta também como o tema foi abordado pelos herdeiros<br />

da tradição calvinista. Na resenha de O Pensamento da Reforma, do norte-<br />

-irlandês Alister McGrath, Filipe Fontes convida-nos a uma leitura abrangente,<br />

didática e instrutiva da história e do pensamento da Reforma em seu caráter<br />

eminentemente religioso.<br />

Na resenha de Cuidado com o Alemão, do português Tiago Cavaco, o<br />

convite de Tarcízio José de Freitas Carvalho é para conhecer mais profundamente<br />

o impacto do pensamento de Lutero sobre sua época e sobre a cultura<br />

ocidental posterior.<br />

Em face do atual contexto de imediatismo existencial que despreza o<br />

passado e reduz o futuro à projeção de interesses pessoais, esta edição de <strong>Fides</strong><br />

Reformata permitirá ao leitor um vislumbre da grandeza e da abrangência dos<br />

eventos e do pensamento da Reforma e o desafiará a refletir com mais profundidade<br />

sobre como as ações e movimentos do presente refletem o passado e<br />

qual o potencial de seus efeitos para o futuro.<br />

É um prazer apresentar a edição especial de <strong>Fides</strong> Reformata dedicada<br />

à celebração dos 500 anos da Reforma Protestante. Esperamos que ela seja<br />

de grande contribuição espiritual e acadêmica para todos os que a receberem.<br />

Sejam todos bem-vindos.<br />

Dr. Dario de Araujo Cardoso<br />

Editor


Sumário<br />

Artigos<br />

A reforma e os historiadores<br />

Alderi Souza de Matos................................................................................................................... 11<br />

O papel da música na Reforma e a formação do Saltério de Genebra<br />

Dario de Araujo Cardoso.............................................................................................................. 23<br />

Lutero e os antinomistas: Qual é a visão evangélica da lei?<br />

Heber Carlos de Campos Júnior................................................................................................... 43<br />

O perigo a ser evitado numa reforma<br />

Heber Carlos de Campos............................................................................................................... 67<br />

O pensamento escatológico de Calvino<br />

Leandro Lima................................................................................................................................. 85<br />

A hermenêutica cristotélica de João Calvino<br />

João Paulo Thomaz de Aquino...................................................................................................... 99<br />

Calvino e o lapsarianismo: uma avaliação de como Calvino pode ser lido<br />

à luz da discussão supra e infralapsariana<br />

João Alves dos Santos.................................................................................................................... 117<br />

The reformers and missions: Warneck, Latourette, Neill, Kane, Winter,<br />

and Tucker’s arguments – part 2<br />

Elias Medeiros............................................................................................................................... 139<br />

Resenhas<br />

Calvino e a vida cristã (Michael Horton)<br />

Dario de Araujo Cardoso.............................................................................................................. 163<br />

O legado missional de Calvino (M. A. G. Haykin e C. J. Robinson)<br />

Filipe Costa Fontes........................................................................................................................ 169<br />

O pensamento da Reforma (Alister Mcgrath)<br />

Filipe Costa Fontes........................................................................................................................ 175<br />

Cuidado com o alemão – Três dentadas que Martinho Lutero dá à nossa época<br />

(Tiago Cavaco)<br />

Tarcizio Carvalho........................................................................................................................... 179


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-<strong>22</strong><br />

A Reforma e os Historiadores<br />

Alderi Souza de Matos *<br />

RESUMO<br />

A Reforma Protestante, movimento que completa o seu 5º centenário,<br />

tem sido objeto de intenso escrutínio por parte dos estudiosos. Esse interesse<br />

se deve à relevância do fenômeno e suas vastas consequências para o mundo<br />

moderno. Ao mesmo tempo, trata-se de um tema altamente controvertido, no<br />

qual variam grandemente as perspectivas e interpretações. Inicialmente, este<br />

artigo faz algumas considerações historiográficas gerais, passando em seguida<br />

a abordar alguns tópicos que têm sido objeto de divergências e reconsiderações<br />

nas últimas décadas. São eles o caráter múltiplo da Reforma do século 16, suas<br />

fontes intelectuais, sua motivação prioritária e suas consequências. Por último,<br />

são feitas algumas considerações sobre o legado duradouro desse evento<br />

histórico iniciado há 500 anos.<br />

PALAVRAS-CHAVE<br />

Reforma Protestante; 500 anos da Reforma; Historiografia; Historiadores;<br />

Interpretações da Reforma.<br />

INTRODUÇÃO<br />

Como é natural, o transcurso do 5º centenário da Reforma Protestante<br />

tem suscitado um grande número de reflexões de natureza bíblica, teológica,<br />

litúrgica e pastoral. Embora essas perspectivas sejam altamente relevantes, as<br />

comemorações, por sua própria natureza, remetem em primeiro lugar ao aspecto<br />

histórico. É acima de tudo um evento ou conjunto de eventos – o início do<br />

movimento protestante – que está sendo lembrado. Ao mesmo tempo, o estudo<br />

* Doutor em Teologia (Th.D.) pela Escola de Teologia da Universidade de Boston, professor de<br />

teologia histórica no CPAJ, historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil.<br />

11


ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES<br />

do protestantismo emergente como fenômeno histórico levanta uma série de<br />

questões teóricas e metodológicas que precisam ser consideradas.<br />

Desde o seu início, a Reforma tem sido objeto de diferentes interpretações<br />

e avaliações, dependendo da perspectiva do estudioso. Por muito tempo,<br />

as abordagens foram fortemente condicionadas por preocupações polêmicas<br />

e apologéticas de protestantes e católicos, ou mesmo dos diferentes grupos<br />

evangélicos. A partir do século 18, com o desenvolvimento da história em<br />

bases científicas, surgiu um tratamento mais objetivo e menos partidário do<br />

tema. Porém, dada a imensa complexidade da Reforma em suas múltiplas dimensões<br />

– religiosa, teológica, política, social – multiplicaram-se grandemente<br />

as interpretações de suas origens, natureza e significado.<br />

Este artigo considera inicialmente alguns aspectos historiográficos gerais<br />

para então se concentrar nas maneiras pelas quais a Reforma tem sido avaliada<br />

por diferentes historiadores recentes, religiosos e seculares, progressistas e<br />

conservadores. Vale lembrar que, ao lado das inevitáveis diferenças de perspectiva,<br />

as extensas pesquisas das últimas décadas também têm resultado em<br />

alguns consensos importantes e valiosos no que diz respeito a muitos aspectos<br />

da Reforma. No final, são feitas algumas considerações sobre a relevância atual<br />

da obra dos reformadores.<br />

1. QUESTÕES HISTORIOGRÁFICAS<br />

James Bradley e Richard Muller observam que “antes de meados do<br />

século 18, o estudo da história da igreja era acrítico; ela era quase invariavelmente<br />

escrita desde uma perspectiva confessional, sendo qualquer coisa menos<br />

desinteressada”. 1 Dois exemplos clássicos são encontrados no próprio século 16.<br />

Um deles são as famosas Centúrias de Magdeburgo (1559-1574), escritas por<br />

um grupo de estudiosos liderados por Matias Flacius Illyricus. Essa história<br />

da igreja produzida sob o ponto de vista luterano procurou demonstrar que<br />

o luteranismo era uma afirmação do que havia de melhor na antiga tradição<br />

cristã. Em resposta, o erudito católico César Barônio publicou seus igualmente<br />

volumosos Anais Eclesiásticos (1588-1607), argumentando em favor da continuidade<br />

entre o catolicismo do século 16 e os primeiros séculos da era cristã. 2<br />

Em meados do século 18, na esteira do Iluminismo e em certa medida<br />

do Pietismo, duas mudanças básicas de perspectiva foram essenciais para o<br />

surgimento da historiografia crítica: maior preocupação científica com a análise<br />

de documentos originais e liberdade para interpretar as fontes de maneira<br />

mais isenta e objetiva. Surgiu assim uma importante linhagem de historiadores<br />

em moldes científicos, todos eles alemães, a começar de Johann Lorenz von<br />

1 BRADLEY, James E.; MULLER, Richard A. Church history: An introduction to research,<br />

reference works, and methods. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1995, p. 11. Minha tradução.<br />

2 GONZÁLEZ, Justo L. The changing shape of church history. Saint Louis, MO: Chalice Press,<br />

2002, p. 133-136.<br />

12


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-<strong>22</strong><br />

Mosheim (1694-1755), considerado “o pai da história da igreja”. Vieram a<br />

seguir, sob a influência do movimento romântico, Gottfried Herder (1744-1803),<br />

August Neander (1789-1850) e Friedrich Tholuck (1799-1877). Nos Estados<br />

Unidos, um personagem muito influente foi Philip Schaff (1819-1893), considerado<br />

o pai da história da igreja americana. Todos eles se preocuparam com a<br />

objetividade no estudo histórico, com dados factuais e com a dedução de leis<br />

gerais de desenvolvimento histórico. 3<br />

Ao longo da primeira metade do século 20 ocorreu uma oscilação nesse<br />

último tópico, alguns historiadores questionando e outros defendendo a<br />

importância da busca de significado na história da igreja e a possibilidade de<br />

uma visão objetiva do passado. As décadas mais recentes, posteriores a 1950,<br />

testemunharam vários desdobramentos historiográficos importantes, como o<br />

surgimento do interesse pela participação histórica das mulheres e de grupos<br />

minoritários; a chamada “nova história”, com seu apelo às ciências sociais;<br />

a ênfase na micro-história, com sua concentração em tópicos extremamente<br />

delimitados, e o enfoque mais colaborativo e interdisciplinar. Bradley e Muller<br />

defendem que o alvo do historiador deve ser a reintegração das partes analisadas<br />

separadamente em um todo maior, de âmbito mais geral. 4<br />

Uma questão permanentemente debatida tem a ver com a objetividade no<br />

estudo da história. Nos séculos 19 e 20 esse interesse se tornou o principal critério<br />

de avaliação nas ciências históricas, conforme exemplificado por estudiosos<br />

como Leopold von Ranke e Adolf von Harnack. Dizia-se que “a principal tarefa<br />

da história era apresentar os eventos como eles aconteceram e até mesmo lê-los<br />

com tamanha objetividade que o historiador os entendia melhor do que aqueles<br />

que os vivenciaram”. 5 Todavia, o que se constatou é que nenhum historiador é<br />

totalmente isento, mas transfere para o seu trabalho suas preferências, pressuposições<br />

e compromissos filosóficos. Para muitos estudiosos, essa ânsia pela<br />

objetividade é na verdade algo indesejável. O pesquisador mexicano Carlos<br />

Rojas considera o mito da objetividade e da neutralidade um “pecado capital”<br />

dos historiadores não críticos. 6 Um simpatizante do pensamento marxista, ele<br />

acredita que é impossível conceber-se uma história na qual o estudioso não se<br />

envolva de algum modo, mantendo total desinteresse e indiferença. 7<br />

Essas considerações têm evidente relevância para os estudos históricos<br />

sobre a Reforma Protestante. Essa história só poderá ser entendida adequadamente<br />

mediante o estudo criterioso das fontes documentais primárias e<br />

3 BRADLEY e MULLER, Church history, p. 13-20.<br />

4 Ibid., p. 25.<br />

5 GONZÁLEZ, The changing shape, p. 139. Minha tradução.<br />

6 ROJAS, Carlos Antonio Aguirre. Antimanual do mau historiador. Ou como se fazer uma boa<br />

história crítica? Londrina, PR: Eduel, 2007, p. 29.<br />

7 Ibid., p. 30.<br />

13


ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES<br />

secundárias. Essa história precisará deter-se nos aspectos pontuais, tais como<br />

personagens e eventos, e ao mesmo tempo relacioná-los com o quadro mais<br />

amplo, o contexto religioso-político-social da Europa quinhentista. Essa história<br />

deve buscar a objetividade e a serenidade na análise dos dados, sem deixar<br />

de lado a simpatia pelo assunto, o envolvimento pessoal com os temas sob<br />

estudo. Para os cristãos que creem na ação providencial de Deus, ela também<br />

inclui a busca de significados maiores, muitas vezes não inteiramente óbvios,<br />

que trazem lições para a contemporaneidade.<br />

2. ABORDAGENS DOS HISTORIADORES<br />

São muitos os estudiosos que se têm debruçado sobre o estudo histórico<br />

da Reforma, quer como pesquisadores da história da igreja em geral,<br />

quer como especialistas sobre os próprios fenômenos do século 16. Entre os<br />

primeiros, são mais conhecidos nos círculos protestantes indivíduos como<br />

Williston Walker, Kenneth S. Latourette, Owen Chadwick, Earle E. Cairns e<br />

Howard Clark Kee; entre os últimos, Thomas M. Lindsay, John T. McNeill,<br />

James Hastings Nichols, Roland Bainton, Harold J. Grimm e muitos outros. 8<br />

Todavia, o objetivo deste artigo é considerar as abordagens e interpretações<br />

sobre a Reforma fornecidas por uma geração mais recente de historiadores de<br />

diferentes persuasões. Trata-se de uma lista seletiva e exemplificativa, visto<br />

ser impossível considerar todos os autores que têm se dedicado ao tema. O<br />

objetivo é fornecer um panorama dos principais interesses e enfoques que os<br />

estudiosos da Reforma têm demonstrado na atualidade.<br />

2.1 Pluralidade de reformas<br />

Até algum tempo atrás, falava-se sempre em “Reforma do século 16”,<br />

no singular, como se ela fosse um movimento monolítico e uniforme. Além<br />

disso, o termo era aplicado quase que exclusivamente às igrejas protestantes,<br />

à exclusão da Igreja Católica Romana. Hoje é lugar comum na historiografia<br />

falar-se nas “reformas” ocorridas naquele período. Isso pode ser percebido, por<br />

exemplo, em textos do luterano Carter Lindberg, professor emérito de história<br />

da igreja na Escola de Teologia de Universidade de Boston, como o conjunto<br />

de ensaios “A Idade Média tardia e as reformas do século 16” 9 e o importante<br />

livro As Reformas na Europa. 10<br />

8 A mais antiga história da Reforma publicada continuamente no Brasil até o presente é História<br />

da Reforma do Décimo Sexto Século, do pastor protestante suíço Jean-Henri Merle D’Aubigné (1794-1872).<br />

O primeiro a traduzir essa obra para o português foi o escritor Júlio Ribeiro.<br />

9 Parte III de: KEE, Howard Clark et al. Christianity: A social and cultural history. Nova York:<br />

Macmillan; Toronto: Collier Macmillan, 1991.<br />

10 LINDBERG, Carter. As reformas na Europa. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2001. Outra ocorrência<br />

do conceito pode ser encontrada em: DOWLEY, Tim (Org.). História do cristianismo: Guia ilustrado.<br />

Venda Nova, Portugal: Bertrand, 1995, p. 410.<br />

14


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-<strong>22</strong><br />

Essa ênfase significou uma valorização de dois grupos em particular – os<br />

anabatistas e os católicos romanos. Por muito tempo, a chamada “reforma magisterial”,<br />

ou seja, o luteranismo, a reforma suíça e o anglicanismo, recebeu<br />

todas as atenções. Trata-se dos grupos protestantes originais que receberam<br />

forte apoio e envolvimento dos magistrados, as autoridades civis. A “reforma<br />

radical”, representada principalmente pelos anabatistas, era o “primo pobre”<br />

do século 16, ocupando um lugar periférico nos estudos sobre a Reforma Protestante.<br />

Hoje, esse movimento recebe grande atenção dos pesquisadores, que<br />

reconhecem sua importância, originalidade e contribuições.<br />

Quanto à Igreja Romana, tradicionalmente se falava apenas em “Contrarreforma”,<br />

algo que incluía a Inquisição, a ação dos jesuítas e as guerras<br />

religiosas. Sem deixar de reconhecer esse fenômeno de grandes consequências,<br />

a maior parte dos autores atuais argumenta que também houve uma verdadeira<br />

“Reforma Católica”, certamente diferente do que ocorreu no âmbito do protestantismo,<br />

porém ainda assim um conjunto de esforços que revelaram genuíno<br />

interesse em corrigir antigos males e aperfeiçoar o arcabouço doutrinário dessa<br />

igreja. A principal expressão dessa reforma católica foi o Concílio de Trento<br />

(1545-1563).<br />

2.2 As origens da Reforma<br />

Tradicionalmente, as fontes do movimento protestante e do pensamento<br />

dos reformadores sempre foram associadas com a Bíblia e com o período patrístico,<br />

notadamente o pensamento amadurecido do grande bispo e teólogo<br />

Agostinho de Hipona. Era como se os reformadores do século 16 tivessem<br />

se reportado somente ao cristianismo antigo, não tendo recebido nenhuma<br />

influência do seu próprio tempo ou dos séculos imediatamente anteriores.<br />

Hoje se reconhece que as origens da Reforma também devem ser buscadas no<br />

escolasticismo do final da Idade Média e no humanismo renascentista. Um dos<br />

autores que trabalham essa questão é o historiador e teólogo irlandês Alister<br />

McGrath, em seus livros Origens Intelectuais da Reforma e O Pensamento<br />

da Reforma. 11<br />

Apesar de sua imagem negativa, o escolasticismo foi um importante<br />

esforço no sentido de justificar racionalmente as crenças cristãs por meio da<br />

reflexão filosófica, e apresentá-las de modo sistemático, formando um sistema<br />

intelectual abrangente e integrado. Foi, assim, um modo particular de articular<br />

e estruturar a teologia. A chamada escolástica teve duas fases, a primeira<br />

dominada pelo “realismo” (c.1200-c.1350) e a segunda pelo “nominalismo”<br />

(c.1350-c.1500), posições opostas no que diz respeito à existência concreta dos<br />

conceitos universais. O escolasticismo do tipo realista teve duas manifestações,<br />

11 MCGRATH, Alister E. Origens intelectuais da Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2007; O<br />

pensamento da Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.<br />

15


ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES<br />

o tomismo (de Tomás de Aquino) e o scotismo (de Duns Scotus), os quais não<br />

exerceram maior influência sobre a Reforma. A vertente nominalista também<br />

se dividiu em duas alas, a via moderna e a schola augustiniana moderna, sendo<br />

a primeira de tendência pelagiana e a segunda alinhada com a teologia de<br />

Agostinho e sua ênfase na plena soberania de Deus na salvação. Esta última<br />

teve um impacto considerável no pensamento de Lutero.<br />

Quanto ao humanismo, McGrath observa: “Dos muitos afluentes intelectuais<br />

e culturais que contribuíram para o fluxo da Reforma, provavelmente<br />

o mais importante foi o humanismo renascentista”. 12 Os humanistas, ou seja,<br />

os intelectuais do Renascimento, eram indivíduos religiosos e se interessavam<br />

pela renovação da igreja. Seu famoso lema Ad fontes – “de volta às origens” –<br />

dirigiu suas atenções não somente para os textos da antiguidade clássica de<br />

um modo geral, mas para uma obra em particular, a Bíblia, vista como o<br />

instrumento para dinamizar e revitalizar o cristianismo da época. Quem mais<br />

insistiu nisso foi o holandês Erasmo de Roterdã, o “príncipe dos humanistas”,<br />

em seu livro Enchiridion militis christiani (“Manual do soldado cristão”), no<br />

qual exaltou o papel dos leigos e seu direito de amplo acesso à Escritura. Ele<br />

também foi responsável por uma edição do Novo Testamento em grego e latim<br />

(1516), que causou profundo impacto na época, em parte pelo fato de apontar<br />

alguns erros de tradução na Vulgata de Jerônimo. McGrath argumenta que a<br />

influência do humanismo foi muito maior na Reforma suíça do que na alemã. 13<br />

Alguns autores, como Pierre Chaunu e Steven Ozment, colocam as reformas<br />

do século 16 num contexto mais amplo de reformas que vinham ocorrendo<br />

desde o século 13. 14<br />

2.3 A motivação primária<br />

Uma questão constantemente discutida com relação à Reforma diz respeito<br />

à sua natureza primordial. Historiadores com viés marxista tendem a ignorar<br />

ou minimizar o aspecto religioso, não somente no que diz respeito à Reforma,<br />

mas a qualquer outro fenômeno histórico. Para eles, indo contra tantas evidências<br />

factuais, a religiosidade é uma questão subalterna, decorrente de outros<br />

fatores de maior relevância histórica. Carlos Rojas, ao defender a importância<br />

de uma história total, afirma que “é igualmente relevante estudar o cultural, o<br />

social, o econômico, ou o político, o psicológico, o geográfico, etc.”, 15 deixando,<br />

caracteristicamente, de mencionar o elemento religioso.<br />

12 MCGRATH, O pensamento da Reforma, p. 54.<br />

13 Ibid., p. 73-75.<br />

14 CHAUNU, Pierre. O tempo das reformas (1250-1550). 2 vols. Lisboa: Edições 70, 1993 (1975).<br />

OZMENT, Steven. The Age of Reform 1250-1550: An intellectual and religious history of late medieval<br />

and Reformation Europe. New Haven, CT: Yale University Press, 1980.<br />

15 ROJAS, Antimanual do mau historiador, p. 95.<br />

16


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-<strong>22</strong><br />

Todavia, existem aqueles que, mesmo reconhecendo a preponderância<br />

do fator religioso na Reforma, nutrem uma desconfiança em relação ao<br />

mesmo. Daí a advertência do ilustre historiador e teólogo holandês Heiko<br />

Oberman, que lecionou nas universidades de Harvard, Tübingen e Arizona.<br />

Ele argumentou que os estudiosos da Reforma devem resistir a algumas<br />

tendências modernas. Uma delas é a atitude daqueles que, movidos por intenções<br />

ecumênicas, atribuem a divisão da cristandade ocidental a disputas<br />

dogmáticas vistas como “equívocos”. Oberman observa que qualquer aproximação<br />

ecumênica feita dessa maneira só poderá ocorrer “se a doutrina<br />

da justificação, central para a Reforma, for truncada para se encaixar nos<br />

pronunciamentos do Concílio de Trento ou reformulada em termos de ser<br />

a precursora da ‘autorrealização’ psicológica”. Ele conclui: “Em qualquer<br />

caso, o preço é exorbitante: a própria doutrina da justificação”. 16 Esse é, por<br />

exemplo, um dos problemas com a chamada “nova perspectiva sobre Paulo”,<br />

que considera inadequado o entendimento luterano e calvinista clássico<br />

acerca da justificação pela fé somente.<br />

De modo menos otimista, o autor Euan Cameron avalia que a Reforma foi<br />

a primeira ideologia de massa dos tempos modernos. Todavia, ele reconhece<br />

o primado do elemento religioso e doutrinário ao afirmar:<br />

A qualidade singular da Reforma Protestante consiste no fato de que ela tomou<br />

uma única ideia essencial; apresentou essa ideia a todos e incentivou a discussão<br />

pública; então deduziu dessa ideia o restante das mudanças no ensino e no<br />

culto; finalmente, desmontou todo o tecido da igreja institucional e construiu<br />

novamente a partir da estaca zero, incluindo somente o que era consistente com<br />

a mensagem religiosa básica, e exigido por ela. 17<br />

Muitos historiadores contemporâneos negam que a Reforma tenha<br />

resultado de uma suposta corrupção católica. O historiador Patrick Collinson,<br />

professor emérito de história moderna na Universidade de Cambridge,<br />

observa: “Explicações da Reforma em termos de decadência, irreligião e<br />

corrupção são as mais tradicionais e ainda infestam manuais medíocres”. 18<br />

Diarmaid MacCulloch, professor de história da igreja na Universidade de<br />

Oxford, acrescenta:<br />

16 OBERMAN, Heiko A. The Reformation: roots and ramifications. Grand Rapids, MI: Eerdmans,<br />

1994, p. xii. Minha tradução.<br />

17 CAMERON, Euan. The European reformation. New York: Oxford University Press, 1991, p. 4<strong>22</strong>.<br />

Minha tradução.<br />

18 COLLINSON, Patrick. The late medieval church and its reformation: 1400-1600. In: MCMAN-<br />

NERS, John (Org.). The Oxford Illustrated History of Christianity. Oxford: Oxford University Press,<br />

1992, p. 246. Minha tradução.<br />

17


ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES<br />

Uma conclusão a ser tirada do acúmulo das pesquisas recentes sobre a Igreja<br />

Latina antes da convulsão é que ela não era tão corrupta e ineficaz como os<br />

protestantes tendem a retratá-la, e que ela em geral satisfazia as necessidades<br />

espirituais das pessoas do final do período medieval. 19<br />

Ao mesmo tempo, esses autores reconhecem o tremendo apelo popular<br />

que as ideias religiosas da Reforma exerceram no século 16. Falando sobre<br />

o extraordinário crescimento do protestantismo na França, Collinson observa<br />

que em 1560 mais da metade da nobreza era protestante e com ela grande<br />

parte da nação. Esse fenômeno resultou de milhares de decisões pessoais de<br />

abraçar o evangelho, tão pessoais como a constatação da esposa de um comerciante<br />

de Lião “de que ela encontrava mais satisfação espiritual ao ler a sua<br />

Bíblia e ao ouvir pregadores calvinistas do que nas ministrações do sacerdote<br />

a quem devia confessar”. 20 Collinson observa que na França, na Inglaterra e<br />

na Holanda, centenas de pessoas comuns, de ambos os sexos, se dispuseram<br />

a ser queimadas vivas por suas novas convicções protestantes, e conclui que a<br />

Reforma “foi feita na sociedade, e não imposta sobre ela”. 21<br />

2.4 As consequências da Reforma<br />

A questão dos efeitos da Reforma ou da sua influência sobre a sociedade<br />

e a cultura nos séculos posteriores, o chamado mundo moderno, é outro tema<br />

altamente debatido nos estudos históricos. As opiniões acerca do assunto abrangem<br />

um espectro de grande amplitude, desde aqueles que, de modo ufanista,<br />

atributem ao movimento protestante um conjunto estupendo de legados para<br />

o mundo ocidental, até os que questionam ou relativizam tais contribuições.<br />

Um exemplo dessa última atitude é o livro Reforma: o Cristianismo e o Mundo<br />

1500-2000, de Felipe Fernández-Armesto e Derek Wilson, autores que<br />

se identificam respectivamente como “um católico romano, com tentações<br />

tridentinas às quais resiste nostalgicamente” e um “evangélico protestante,<br />

com tendências carismáticas cultivadas parcimoniosamente”. <strong>22</strong> Esses autores<br />

opinam que as mudanças comumente atribuídas à Reforma parecem menos<br />

convincentes com o passar do tempo e que “é difícil resistir à impressão de<br />

que um preconceito favorável ao protestantismo influenciou a forma pela qual<br />

alguns efeitos de grande alcance foram atribuídos a ele”. 23<br />

19 MACCULLOCH, Diarmaid. The Reformation. Nova York: Penguin, 2004, p. xx. Minha tradução.<br />

20 COLLINSON, The late medieval church and its reformation, p. 245. Minha tradução.<br />

21 Ibid. Minha tradução.<br />

<strong>22</strong> FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe; WILSON, Derek. Reforma: o cristianismo e o mundo<br />

1500-2000. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 12.<br />

23 Ibid., p. 372, 376. Ao mesmo tempo, o livro procura transmitir uma visão quase benigna da<br />

Inquisição (p. 384).<br />

18


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-<strong>22</strong><br />

Poder-se-ia argumentar que a recíproca é inteiramente verdadeira: o preconceito<br />

contra o protestantismo também pode contribuir para minimizar ou<br />

relativizar as consequências muitas vezes atribuídas ao movimento. Entre os<br />

efeitos questionados por esses dois autores estão o individualismo, a ascensão<br />

do capitalismo, o declínio da magia, a revolução científica, o sonho americano<br />

e as liberdades civis. Tudo isso é intrigante diante do fato de que uma das<br />

propostas do livro é conclamar católicos e protestantes a se unirem na luta<br />

contra o secularismo. 24<br />

Outro autor que não tem simpatias pelas contribuições do protestantismo<br />

é o historiador galês Christopher Dawson (1889-1970), educado como anglicano<br />

e convertido ao catolicismo. O título de um de seus livros, A Divisão da<br />

Cristandade, expressa fielmente a sua posição. Para ele, a Reforma, acima de<br />

qualquer outra consideração, provocou a ruptura da unidade cristã e os efeitos<br />

foram catastróficos. Diz ele:<br />

Ao longo de três séculos, o abismo entre o mundo católico e o protestante persistiu<br />

e cresceu cada vez mais com o passar do tempo. E foi esse cisma cultural<br />

e político, bem como religioso e eclesiástico, que, em última análise, foi o<br />

responsável pela secularização da cultura ocidental. 25<br />

Uma atitude semelhante é demonstrada por Diarmaid MacCulloch, que,<br />

embora não seja um protestante praticante, diz reter uma cordial simpatia pelo<br />

anglicanismo no que ele tem de melhor. Para ele, no século 16 a “sociedade<br />

ocidental, previamente unificada pela liderança simbólica do papa e pela posse<br />

de uma cultura latina comum, foi dilacerada por profundos desentendimentos<br />

sobre como os seres humanos devem exercer o poder de Deus no mundo,<br />

discussões até mesmo sobre o que significava ser humano”. 26<br />

Uma das obras mais influentes sobre os primórdios da Reforma foi publicada<br />

em 1928 pelo historiador francês Lucien Febvre (1878-1956), um dos<br />

fundadores da Escola dos Annales e precursor da chamada Nova História. Sua<br />

magistral biografia de Lutero, calcada em vasta pesquisa documental, contempla<br />

em especial os anos de 1517 a 1525 da vida desse “profeta inspirado”. O autor<br />

chega a conclusões sombrias: para ele, o reformador alemão fracassou e seu<br />

destino foi trágico. Em sua avaliação, quando Lutero, no final da vida, “lançava<br />

24 Nos anos 60, no contexto do Concílio Vaticano II, autores católicos publicaram avaliações mais<br />

positivas da Reforma. Por exemplo: DANIEL-ROPS, Henri. A igreja da Renascença e da Reforma. São<br />

Paulo: Quadrante, 1996 (1961); DOLAN, John P. History of the Reformation: a conciliatory assessment<br />

of opposite views. Nova York: Desclee, 1965.<br />

25 DAWSON, Christopher. A divisão da cristandade: da Reforma Protestante à era do Iluminismo.<br />

São Paulo: É Realizações, 2014, p. 194.<br />

26 MACCULLOCH, Diarmaid. The Reformation. Nova York: Penguin, 2004, p. xix.<br />

19


ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES<br />

o olhar em volta de si, via no solo mais ruínas que construções”. 27 Ele sacudiu o<br />

jugo do papa, mas colocou em seu lugar o jugo ainda mais opressor do Estado.<br />

3. O LEGADO DA REFORMA<br />

Como se pode observar, o juízo dos historiadores seculares, católicos e até<br />

mesmo de muitos protestantes sobre a Reforma Protestante pode ser bastante<br />

severo. No entanto, alguns estudiosos procuram destacar diversos legados<br />

construtivos, como é o caso de Alister McGrath. Falando sobre o impacto da<br />

Reforma na história, ele arrola os seguintes fatores: uma atitude positiva em<br />

relação ao mundo, a ética protestante do trabalho, sua influência sobre o capitalismo,<br />

as mudanças políticas, sua conexão com o surgimento das ciências<br />

naturais. 28 No final do seu livro sobre as reformas na Europa, Carter Lindberg<br />

afirma que “os legados das Reformas afetaram cada aspecto da vida e do pensamento<br />

modernos”. 29 Ele menciona, entre outras, as seguintes áreas que foram<br />

atingidas: política, cultura, mulheres, tolerância, economia, educação, ciência,<br />

literatura e artes. O historiador Patrick Collinson observa: “É inevitável que<br />

uma coisa tão ampla como a Reforma tenha sido considerada causa de muitas<br />

coisas... é possível considerá-la causa de quase tudo o que quisermos”. 30<br />

É preciso lembrar que, sendo a Reforma acima de tudo um movimento<br />

de natureza religiosa e doutrinária, o seu maior legado se deu nessa área. O<br />

eminente historiador Owen Chadwick, falecido em 2015, observou: “Depois<br />

de Lutero, não era possível, seja aos protestantes ou aos católicos, imitar<br />

algumas das velhas maneiras de negligenciar a graça e a soberania de Deus.<br />

Na medida em que o Protesto consistiu no brado de Lutero de que a salvação<br />

não era por meio do ritual... o Protesto foi triunfante”. 31 Mais concretamente,<br />

Lutero insistiu no fato de que o ser humano só pode ser salvo pela graça de<br />

Deus, e não por qualquer mérito, virtude ou esforço pessoal. Somente pela fé,<br />

ela mesma também uma dádiva divina, podemos nos apropriar do que Cristo<br />

fez por nós. Collinson observa: “A doutrina de Lutero de que o homem é redimido<br />

exclusivamente por meio da fé libertava o homem da moralidade, mas<br />

também para a moralidade”. E conclui: “Aí se encontra a diferença essencial<br />

entre o que se tornaria o Protestantismo e o Catolicismo, tal como este foi<br />

reconstituído no Concílio de Trento”. 32<br />

27 FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. Porto Codex, Portugal: Edições Asa, 1994,<br />

p. 264.<br />

28 MCGRATH, O pensamento da Reforma, p. 286-300.<br />

29 LINDGERG, As reformas na Europa, p. 423.<br />

30 COLLINSON, Patrick. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p. <strong>22</strong>9-230.<br />

31 CHADWICK, Owen. The Reformation. The Pelican History of the Church. Londres: Penguin,<br />

1988, p. 444.<br />

32 COLLINSON, A Reforma, p. 75. Minha tradução.<br />

20


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-<strong>22</strong><br />

O historiador norte-americano Mark Noll, depois de reconhecer deficiências<br />

na Reforma e na personalidade de Lutero, argumenta que a concepção<br />

do reformador acerca de Deus deixou marcas profundas na história cristã.<br />

Ele se refere especificamente à chamada “teologia da cruz”, já presente nas<br />

teses 92-95 de 1517. 33 Para Lutero, encontrar a Deus era encontrar a cruz.<br />

“O cristianismo torna-se uma realidade nas vidas humanas quando homens e<br />

mulheres participam da morte de Cristo ao experimentarem a destruição de suas<br />

próprias pretensões quando estão coram Deo (na própria presença de Deus)”. 34<br />

O reformador contrastou essa atitude com a “teologia da glória”, que leva os<br />

seres humanos a confiarem em si mesmos, na sua própria percepção acerca<br />

de Deus e do mundo. Aquele que deseja encontrar a Deus tem de olhar para<br />

o Calvário, onde Deus se revelou plenamente. Nas palavras de Noll: “A cruz<br />

mostra o Criador, o Deus majestoso e todo-poderoso sofrendo – e sofrendo por<br />

nós. Lutero até mesmo podia dizer que a cruz nos mostra o terrível mistério<br />

de Deus experimentando a morte por nós”. 35<br />

CONCLUSÃO<br />

Os exemplos arrolados neste artigo mostram o quanto os compromissos<br />

prévios dos historiadores afetam a maneira como interpretam a história da<br />

Reforma. Assim como alguns deles, principalmente secularistas e católicos<br />

romanos, tendem a relativizar a importância desse movimento, os evangélicos<br />

(no sentido original da palavra) se sentem no dever de apontar os elementos<br />

apreciáveis e construtivos dessa história. Eles não se recusam a admitir que a<br />

Reforma teve suas falhas. O protestantismo gerou uma grande cisão no mundo<br />

cristão e muitas vezes atribuiu importância excessiva aos governantes civis,<br />

praticou ações intolerantes, envolveu-se em guerras, não soube manter a sua<br />

própria unidade interna. Assim, os 500 anos, longe de serem uma ocasião para<br />

celebrações ufanistas, devem ser um convite para a reflexão, para a reafirmação<br />

de princípios, para a gratidão a Deus pela longa caminhada desse movimento,<br />

que, apesar dos percalços, têm produzido frutos extraordinários na vida da<br />

igreja e do mundo.<br />

Fazendo uma avaliação final da Reforma e suas vicissitudes, MacCulloch<br />

fala pelos seus contemporâneos secularizados do início do século 21 ao declarar:<br />

“Nós não temos o direito de adotar uma atitude de superioridade intelectual<br />

ou emocional, especialmente à luz das atrocidades que a Europa do século 20<br />

33 NOLL, Mark A. Momentos decisivos na história do cristianismo. Trad. Alderi S. Matos. São<br />

Paulo: Cultura Cristã, 2000, p. 170-173.<br />

34 Ibid., p. 174.<br />

35 Ibid., p. 176. Ver também: MCGRATH, Alister E. Lutero e a teologia da cruz: a ruptura teológica<br />

de Martinho Lutero. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.<br />

21


ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES<br />

produziu por causa de sua fé em ideologias mais novas, seculares”. 36 A reforma<br />

do século 16 não deve ser julgada pelos excessos de alguns de seus personagens<br />

e movimentos, em grande medida próprios de sua época, mas pela relevância<br />

das ideias e perspectivas da vida que ela promoveu, principalmente acerca do<br />

relacionamento das pessoas com Deus, e também em muitas outras áreas da<br />

experiência humana sobre a terra. Nestes 500 anos, pode-se dizer que o seu<br />

legado é profundo, rico e duradouro.<br />

ABSTRACT<br />

The Protestant Reformation, a movement that commemorates its fifth<br />

centennial, has been the object of intense investigation by many scholars.<br />

This interest on the topic is due to the relevance of the Reformation and its<br />

vast consequences for the modern world. At the same time, it is a highly<br />

controversial subject, with a wide variety of perspectives and interpretations.<br />

Initially, this article makes some general historiographical considerations about<br />

the Reformation. Then it adresses several aspects that have given occasion<br />

to disagreements and reappraisals in the last decades. They are the multiple<br />

character of the Reformation, its intellectual sources, its primary motivations,<br />

and its consequences. Finally, the author makes some considerations about the<br />

lasting legacy of the Reformation.<br />

KEYWORDS<br />

Protestant Reformation; 500th anniversary of the Reformation; Historiography;<br />

Historians; Interpretations of the Reformation.<br />

36 MACCULLOCH, The Reformation, p. 683.<br />

<strong>22</strong>


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41<br />

O Papel da Música na Reforma<br />

e a Formação do Saltério de Genebra<br />

Dario de Araujo Cardoso *<br />

RESUMO<br />

Destacamos no presente artigo a importância que teve para os reformadores<br />

a discussão sobre o uso da música na liturgia. Mostramos que tanto<br />

para Lutero quanto para Calvino o poder de mobilização emocional da música<br />

deveria ser utilizado para conduzir os crentes à adoração de Deus. Calvino<br />

destacou-se por defender que esse poder deveria estar a serviço da edificação<br />

e do ensino e incentivou a produção de cânticos de fácil assimilação, cujas<br />

letras conduzissem à meditação em Deus e em suas obras. O cântico de salmos<br />

e outros textos bíblicos metrificados e adaptados ao contexto cristão mostrou-se<br />

o meio mais apropriado para isso e resultou na produção da obra que ficou<br />

conhecida como o Saltério de Genebra.<br />

PALAVRAS-CHAVE<br />

Reforma; Liturgia; Música; Lutero; Calvino; Cântico de Salmos.<br />

INTRODUÇÃO<br />

A liturgia é um dos aspectos primordiais de uma religião. Ela é o elemento<br />

que dá forma e expressão às crenças de determinado grupo. Antes mesmo do<br />

discurso é a liturgia o primeiro aspecto a observar quando da aproximação a<br />

determinada crença. Durkheim demonstrou que as crenças e os ritos são os<br />

* Doutor em Semiótica e Linguística Geral pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas<br />

da Universidade de São Paulo, Mestre em Teologia e Exegese pelo CPAJ, Mestre em Ciências da<br />

Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor assistente de Teologia Pastoral no CPAJ.<br />

Coordenador e professor do Departamento de Teologia Exegética do Seminário Presbiteriano Rev. José<br />

Manoel da Conceição. Membro da equipe pastoral da Igreja Presbiteriana do Centenário, em São Paulo.<br />

23


DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...<br />

aspectos fundamentais a serem abordados no estudo das religiões. 1 Assim, o<br />

estudo da Reforma deve tratar com atenção os aspectos litúrgicos envolvidos<br />

em sua concepção e desenvolvimento.<br />

Nas palavras de Witvliet,<br />

Alguns dos mais dramáticos e reveladores desenvolvimentos no período foram<br />

litúrgicos. Nós não podemos entender completamente as dimensões religiosas<br />

deste (ou de qualquer outro) período sem compreender as variações e mudanças<br />

nos modos pelos quais os fiéis prestavam culto a Deus. 2<br />

McKee observa que, além da teologia e da política eclesiástica, a Reforma<br />

trouxe grandes mudanças na liturgia. Nesse campo, continua ela, Calvino e<br />

Genebra devem receber especial atenção “porque aquele padrão é usualmente<br />

reconhecido como o mais significativo para a teologia e liturgia reformada<br />

posterior”. 3 Noll relata que a hinologia foi uma marca tão importante da Reforma<br />

que personagens importantes da Igreja Católica pensaram em proibir o<br />

uso da música na missa. Ele afirma:<br />

A enxurrada de hinos protestantes que inundou a Europa juntamente com as<br />

primeiras crises da Reforma criou dificuldades incomuns para a Igreja Católica<br />

Romana. O canto congregacional estava associado ao protestantismo de maneira<br />

tão profunda e os protestantes foram tão eficazes na utilização dos hinos que<br />

alguns personagens importantes da Igreja Católica por breve tempo consideraram<br />

a proibição da música nas missas. 4<br />

Dessa forma, a consideração dos aspectos litúrgicos não dever ser vista<br />

apenas como subsidiária, mas como elemento essencial para a compreensão e<br />

análise da Reforma. Em particular, o estudo das questões relacionadas ao papel<br />

da música na liturgia e dos instrumentos preparados para este fim servirá de<br />

grande proveito para o desenvolvimento desse campo de pesquisa.<br />

Neste artigo descrevemos o pensamento de Lutero e Calvino sobre o<br />

uso da música na liturgia. Em seguida focalizamos os desdobramentos dos<br />

princípios de Calvino na proposição e confecção do Saltério de Genebra. A<br />

exposição é feita sob o referencial teórico semiológico de Nattiez, que propõe<br />

que a música remete a seu ambiente filosófico, ideológico e religioso, entre<br />

1 DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996,<br />

p. 457.<br />

2 MAAG, K.; WITVLIET, J. D. Worship in Medieval and Early Modern Europe: Change and<br />

continuity in religious pratice. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2004, p. 1.<br />

3 MCKEE, E. A. Reformed Worship in Sixteenth Century. In: VISCHER, L. (Org.). Christian<br />

Worship in Reformed Churches Past and Present. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2003, p. 3.<br />

4 NOLL, Mark A. Momentos decisivos na história do Cristianismo. São Paulo: Cultura Cristã,<br />

2000, p. 206.<br />

24


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41<br />

outros, de modo que seu estudo procura distinguir três tipos de temporalidade:<br />

“o tempo da obra (seu desenrolar no tempo), o tempo dos processos que a originaram<br />

e das estratégias perceptivas que ela coloca em movimento, e o tempo<br />

da história”. 5 Lidaremos especialmente com a segunda forma de temporalidade.<br />

1. LUTERO E O USO DA MÚSICA NA REFORMA<br />

1.1 A importância da música como instrumento litúrgico<br />

Antes da Reforma, o povo podia ouvir a música sacra, mas não podia<br />

participar dos cânticos. Silva descreve assim esse contexto:<br />

O canto litúrgico medieval era marcado por sua origem monástica, um canto<br />

“clerical”, elaborado e estabelecido para ser entoado por “profissionais” da<br />

religião, que dispunham de tempo e conhecimentos musicais para um aprimoramento<br />

e uma exaustiva complexidade, chegando a ponto de surgir uma<br />

rivalidade entre os diferentes mosteiros na execução destes requisitos, uma forma<br />

deturpada dos levitas bíblicos. A celebração da missa era o lugar da apresentação<br />

do desenvolvimento de suas técnicas e aprimoramento de sua arte. O povo participava<br />

passivamente, assistindo a um espetáculo musical em que não entendia o<br />

porquê da música, nem o que se cantava, porque não compreendia a letra cujos<br />

arranjos altifônicos sufocavam a compreensão. 6<br />

Coube a Lutero o importante papel de quebrar esse paradigma e restaurar<br />

o cântico congregacional na língua do povo. 7 Raynor, buscando destacar a<br />

importância de Lutero para a história da música, escreve que “sua dedicação<br />

total à música teve influência em tudo o que fizesse, não apenas na sua liturgia<br />

alemã, mas também na sua educação alemã, e a sua vida foi quase tão importante<br />

para o futuro da música como o foi para o futuro da religião”. 8<br />

Lutero tinha a música em mais alta conta. Para ele, a música era o mais<br />

precioso dos tesouros celestes. Por meio dela são dominados os pensamentos<br />

e sentidos, o coração e o espírito. Ela consola o aflito e abranda o arrogante.<br />

Portanto, [escreveu Lutero] não foi sem razão que os padres da Igreja, e os<br />

profetas, sempre quiseram intimamente juntas a Música e a Igreja; e, por isso,<br />

5 NATTIEZ, J. J. Music and Discourse: Toward a Semiology of Music. Princeton, NJ: Princeton<br />

University Press, 1990, p. 31.<br />

6 SILVA, Jouberto Heringer da. A música na liturgia de Calvino em Genebra. <strong>Fides</strong> Reformata<br />

VII-2 (2002): 85-104, p. 93.<br />

7 SANTOS, G. Do Salmo 5 ao “Atos 2” – Uma panorâmica sobre salmos e hinos na música<br />

evangélica no Brasil. Ex Corde, 2006, p. 2. Disponível em: http://www.hinologia.org/do-salmo-5-ao-<br />

-atos-2-uma-panoramica-sobre-salmos-e-hinos-na-musica-evangelica-no-brasil-gilson-santos/. Acesso<br />

em: 28 ago. 2017.<br />

8 RAYNOR, H. História social da música: Da Idade Média a Beethoven. Rio de Janeiro: Zahar<br />

Editores, 1972, p. 129.<br />

25


DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...<br />

temos tantos hinos e salmos. É mediante esse precioso dom, atribuído apenas à<br />

humanidade, que todo homem lembra seu dever de sempre louvar e glorificar<br />

a Deus. 9<br />

O reformador alemão entendeu que era impossível substituir o enorme<br />

reservatório de devoção pessoal encontrado na celebração da missa, nos gestos<br />

rituais e na música. Não obstante, viu a necessidade de inserir todas essas<br />

coisas num novo contexto doutrinário e por isso “dava ênfase à doutrina com<br />

estrutura tradicional da missa, que mantinha quase toda a estrutura musical”. 10<br />

Reynor faz o seguinte registro sobre a liturgia de Lutero:<br />

“Muita música na missa”, escreveu Lutero no Vermahnung zum Sakrament, “é<br />

excelente, pois exprime agradecimento e é muito apreciada. Em partes como o<br />

Gloria in excelsis, o Credo, o Prefácio, o Sanctus e Benedictus e o Agnus Dei<br />

há tão só agradecimento e louvor, e por essa razão as mantemos na missa. De<br />

toda a música na missa, o Agnus Dei é o que mais autenticamente corresponde<br />

ao sacramento, porque louva a Cristo, que carregou nossos pecados; em simples<br />

palavras ele aumenta a nossa reverência pela Paixão de Cristo”. 11<br />

Assim, Lutero deu grande atenção à estrutura musical. Por isso, chamou<br />

Johann Walther, músico experimentado que chegou a ser Kappellmeister do<br />

eleitor da Saxônia, para realizar minuciosa organização musical da música<br />

luterana. 12<br />

Além do aproveitamento de vários elementos musicais na liturgia, Lutero<br />

mostrou-se um profícuo compositor de hinos e corais. Costa registra que ele<br />

compôs 36 hinos e várias melodias. 13 A mais conhecida de suas composições<br />

é uma paráfrase do Salmo 46, Ein feste Burg ist unser Gott (“Castelo Forte”),<br />

que se tornou o hino do protestantismo por toda parte. Esse modo de tratar os<br />

salmos para o cântico destacou-se na produção de Lutero, pois outro importante<br />

hino de sua autoria é uma paráfrase do Salmo 130, Aus tiefer Not (“Em<br />

profunda aflição”).<br />

Vemos que Lutero tinha na liturgia um instrumento de instrução e fortalecimento<br />

doutrinário e que foi pródigo no emprego da liturgia como elemento<br />

propagador da doutrina e da fé. Vemos também que ele tinha no canto um dos<br />

principais elementos da liturgia. O valor que Lutero dava à música era tão<br />

9 Ibid.<br />

10 Ibid., p. 130.<br />

11 Ibid., p. 132.<br />

12 Ibid., p. 130.<br />

13 COSTA, Hermisten M. P. da. Princípios bíblicos de adoração cristã. São Paulo: Cultura Cristã,<br />

2009, p. 185.<br />

26


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41<br />

grande que afirmou dogmaticamente que um professor deveria saber cantar<br />

e que alguém que não tivesse estudado e praticado música não deveria ser<br />

admitido ao ministério. Assim, “nas escolas religiosas a música era entusiasticamente<br />

ensinada não só como valiosa disciplina intelectual, mas também<br />

como dever religioso e prazer social”. 14<br />

Não obstante, é preciso observar que o modo pelo qual Lutero valorizava<br />

a música levou os luteranos, principalmente nos grandes centros, a preferir a<br />

qualidade musical à fidelidade doutrinária. Raynor observa que<br />

num centro musical como a Thomaskirche em Leipzig, ou a Michaeliskirche em<br />

Lüneburg e a Kreuzkirche em Dresden, a qualidade musical mais que a crença<br />

doutrinária ou fidelidade sectárias governavam a escolha de música, em razão<br />

do modo pelo qual Lutero, desde o início da revolta, considerara a qualidade<br />

musical um elemento importante na sua liturgia. 15<br />

É interessante que Lutero, diferentemente de Calvino, não nutria simpatia<br />

pelo canto congregacional uníssono, mas preferia o canto coral acompanhado<br />

pela congregação. No entanto, por causa de sua preocupação doutrinária, via o<br />

canto congregacional como um proveitoso exercício devocional. Assim permitia<br />

e até mesmo incitava o canto congregacional “apenas para que a congregação<br />

fizesse uma declaração de fé como uma compreensão completa do que estava<br />

cantando”. 16 Por isso, prefaciando o livro coral publicado por Rhau e Foster<br />

em 1538, Lutero escreveu:<br />

Quando a música natural é aperfeiçoada e polida pela arte, começa-se então a<br />

perceber a grande e perfeita sabedoria de Deus em sua maravilhosa obra musical,<br />

quando uma voz assume uma única parte, e em torno dela cantam três, quatro<br />

ou cinco outras vozes, saltando, rodando, enfeitando maravilhosamente a parte<br />

original, como uma dança celeste. 17<br />

Vê-se que em Lutero a música é um instrumento primordialmente de<br />

impressão, só então de expressão. A música, entendida como um dom divino,<br />

teria em si mesma a capacidade de enlevo e aperfeiçoamento espiritual. A<br />

preocupação com o que será cantado é limitada, embora não deixasse de zelar<br />

por aquilo que contribua para a propagação da mensagem da Reforma.<br />

14 RAYNOR, História social da música, p. 135.<br />

15 Ibid., p. 30.<br />

16 Ibid., p. 132-133.<br />

17 Ibid., p. 133.<br />

27


DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...<br />

1.2 Divergências entre os reformadores sobre a presença<br />

e o papel da música na liturgia<br />

No entanto, ainda que os protestantes concordassem que deveria haver<br />

uma absoluta conexão entre a fé e a liturgia da Reforma, havia reformadores que<br />

tinham postura bastante divergente da de Lutero. Segundo White, em 1529, o<br />

encontro de líderes protestantes em Marburg demonstrou que eles não podiam<br />

concordar em todos os assuntos de culto e que seu desejo de total acordo não<br />

era possível, ainda que fosse possível ter unanimidade em um ou outro item.<br />

Eles logo descobriram que, embora todos viessem de uma única tradição cristã,<br />

tinham dois espíritos diferentes – que Lutero apontou com cândida observação,<br />

provavelmente a Martin Bucer: “Você tem um espírito diferente do meu”. Lutero<br />

representava a velho ensino e piedade. Zuínglio, Bucer, Oecolampadius<br />

representavam o novo ensino e o novo tipo de piedade. 18<br />

Entre essas divergências estava o uso da música na liturgia. Zuínglio,<br />

por exemplo, demonstrou “profunda suspeita com o que chamava de ‘sedutivo’<br />

poder da música, banindo da Igreja todo tipo de música”. 19 Martin Bucer<br />

(1491-1551), em Estrasburgo, seguiu padrão comedido, mas não tão radical.<br />

Descrevendo o culto, ele relata: “Após a remissão de pecados para aqueles<br />

que creem, toda a congregação canta pequenos salmos ou hinos de louvor...”. 20<br />

Desde 1525, os salmos eram cantados pelos exilados alemães e franceses em<br />

Estrasburgo. 21 Esse padrão proposto por Bucer foi de grande importância para<br />

o ensino e a prática litúrgica proposta por Calvino.<br />

Guilherme Farel (1489-1565), pregador responsável pela permanência de<br />

Calvino em Genebra, também manifestou simpatia pelo canto congregacional,<br />

particularmente dos salmos. Na controvérsia no Convento de Rive (1535), ele<br />

declarou: “Não é mau que todos os fiéis, ao se reunirem, cantem juntos, com<br />

o coração e também com a boca, salmos, em sua língua, que todos entendem,<br />

louvores a Deus”. <strong>22</strong><br />

Discordando de Zuínglio, Calvino, além dos perigos e seduções, via na<br />

música um poderoso instrumento de auxílio à edificação e ao zelo espiritual.<br />

No Prefácio ao Saltério de Genebra ele escreveu: “E na verdade nós sabe-<br />

18 WHITE, J. F. Protestant Worship: Traditions in Transition. Louisville: Westminster/John Knox,<br />

1989, p. 58.<br />

19 SILVA, Música na liturgia de Calvino, p. 86.<br />

20 Apud BARD, T. (Org.). Liturgies of the Western Church. Philadelphia: Fortress, 1980, p. 87.<br />

21 SILVA, Música na liturgia de Calvino, p. 91.<br />

<strong>22</strong> AUGUSTIN, C.; VAN STAM, F. P. (Orgs.). Ioannis Calvini. Epistolae, vol. 1 (1530–set. 1538).<br />

Genebra: Librairie Droz, 2005, p. 158; D’AUBIGNÉ, J. H. M. History of the reformation in Europe in<br />

the time of Calvin. Vol. 5, p. 310. Londres: Longmans, Green, and Co., 1869, p. 310ss.<br />

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41<br />

mos, por experiência, que cantar tem grande força, vigor de mover e inflamar<br />

os corações dos homens para envolvê-los em adoração a Deus com mais<br />

veemência e ardente zelo”. 23 Isso implica o esforço em insistir que a música<br />

fosse utilizada na liturgia com esse sublime fim: “É preciso haver canções não<br />

somente honestas, mas também santas, que como aguilhões nos incitem a orar<br />

e a louvar a Deus e a meditar nas suas obras para amar, honrar e glorificá-lo”. 24<br />

Por isso, a música deveria ter foco no que se cantava, ser simples e apropriada<br />

para ser cantada sem treinamento, e em uníssono. 25<br />

2. CALVINO E OS PRINCÍPIOS QUE LEVARAM À PRODUÇÃO<br />

DO SALTÉRIO DE GENEBRA<br />

2.1 Os princípios que devem orientar a música na liturgia<br />

segundo Calvino<br />

A tradição litúrgica de Calvino formou-se a partir daquela praticada por<br />

Bucer em Estrasburgo, mas seguiu seu próprio e marcante caminho, tendo<br />

na promoção do cântico de Salmos sua característica mais marcante. White<br />

descreve:<br />

Diferente da tradição luterana, onde o cântico de hinos era encorajado, ou da<br />

Reforma de Zurique, onde nenhum cântico era permitido, Calvino fez com que os<br />

salmos fossem colocados em métrica francesa por Clément Marot (1497-1544)<br />

e outros. Ele encorajou compositores como Claude Goudimel (c. 1510-1572) e<br />

Louis Bourgeois (1510-1561) a produzir músicas. 26<br />

A tradução e a metrificação de salmos para o cântico não eram algo inédito.<br />

Como foi dito, Farel tinha preferência por elas no cântico congregacional<br />

e Bucer já havia promovido essa prática em Estrasburgo. Em seu primeiro<br />

período em Genebra (1536-1538), Calvino havia proposto o uso do cântico<br />

de salmos, provavelmente em prosa, na liturgia. “Nós desejamos”, escreveu<br />

Calvino, “que os salmos sejam cantados na igreja de acordo com o antigo uso<br />

e testemunho de S. Paulo”. 27<br />

Foi em Estrasburgo que a prática do cântico de salmos conquistou o coração<br />

de Calvino e se tornou um elemento de seu projeto ministerial. Halsema<br />

observa que, ao chegar a Estrasburgo, muito agradou Calvino o fato de que<br />

23 CALVINO. J. Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, 1543, p. 3. Disponível em: http://<br />

www.monergismo.com/textos/jcalvino/prefacio_salterio_genebra_calvino.htm. Acesso em: 5 ago. 2008.<br />

24 Ibid., p. 5.<br />

25 SILVA, Música na liturgia de Calvino, p. 88.<br />

26 WHITE, Protestant Worship, p. 66.<br />

27 MCNEILL, John T. The History and Character of Calvinism. Oxford: Oxford University Press,<br />

1967, p. 139<br />

29


DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...<br />

os refugiados franceses já cantassem salmos em francês havia dez anos e que<br />

cantavam com entusiasmo, dando gosto de ouvi-los. 28<br />

Costa registra que<br />

Calvino foi influenciado de certa maneira pela adoração dirigida por Martin<br />

Bucer em Estrasburgo, durante o período em que lá permaneceu (1538-1541),<br />

pastoreando os franceses banidos que desejavam cultivar sua fé em liberdade.<br />

Algo que chamava a atenção de Calvino era o entusiasmo com que os franceses<br />

ali exilados cantavam salmos quando se dirigiam ao culto. 29<br />

Ainda assim, pode-se considerar Calvino como o grande incentivador<br />

dessa prática e o principal promotor do processo que culminou na publicação<br />

do Saltério de Genebra. Santos afirma que “ele desejava que os salmos voltassem<br />

a ser cantados nos cultos, como hinos, tal como o livro dos Salmos, os<br />

quais haviam sido compostos em poesia hebraica e eram cantados no segundo<br />

templo de Jerusalém”. 30<br />

Por isso, em 1539, publicou, em Estrasburgo, um saltério francês intitulado<br />

Aulcuns Psaulmes et Cantiques mys em chant. Esse saltério continha 18<br />

salmos metrificados, cinco da lavratura de Calvino e os demais retirados da<br />

edição de Clement Marot para a corte francesa. Esse saltério foi a gênese do<br />

Saltério de Genebra.<br />

A importância que Calvino deu a essa prática pode ser vista no prefácio à<br />

edição do Saltério publicada em 1543, agora com a participação direta de Marot.<br />

Calvino inicia o prefácio defendendo que o culto deve ser útil para todo<br />

o povo. Esse princípio da utilidade do culto para a edificação parece ser o<br />

princípio fundamental da proposta litúrgica de Calvino. Ele diz:<br />

Pois nosso Senhor não instituiu a ordem que devemos obedecer quando nos<br />

reunimos em Seu Nome, somente para entreter o mundo quando este olha e<br />

observa, antes, ele deseja que o culto seja útil para todo o seu povo; como São<br />

Paulo testemunhou, ordenando que tudo que for feito na Igreja seja direcionado<br />

à edificação comum de todos; isto ao servo não teria ordenado, não fosse esta a<br />

intenção do Mestre. Mas isto não pode ser feito, a menos que sejamos instruídos<br />

a usar a inteligência em tudo que foi ordenado para o nosso proveito. 31<br />

Costa afirma que para Calvino a preocupação teológica deveria “ater-se<br />

à edificação da igreja”. Mais à frente ressalta que “para Calvino, a doutrina<br />

estava relacionada à nossa vida; é para ser crida, vivida e ensinada. [...] não<br />

28 VAN HALSEMA, Thea B. João Calvino era assim. São Paulo: Vida Evangélica, 1968, p. 100.<br />

29 COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 161.<br />

30 SANTOS, Do Salmo 5 ao “Atos 2”, p. 2.<br />

31 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 1.<br />

30


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41<br />

estava teorizando ou simplesmente fazendo uma abstração” 32 . Nas palavras<br />

de Calvino,<br />

O evangelho não é uma doutrina de língua, senão de vida. Não pode assimilar-<br />

-se somente por meio da razão e da memória, senão que chega a compreender-se<br />

de forma total quando ele possui toda alma, e penetra no mais íntimo recesso<br />

do coração. [...] os cristãos deveriam detestar àqueles que têm o evangelho em<br />

seus lábios, porém não em seus corações. 33<br />

Portanto, a doutrina só pode ser sã quando ensinada com o intuito de<br />

beneficiar e que se mostre proveitosa a seus ouvintes. 34<br />

Por causa desse princípio de utilidade, Calvino considerava uma grande<br />

tolice praticar orações e cerimônias que as pessoas não pudessem entender.<br />

Sua defesa dessa questão é bem clara:<br />

Portanto, se realmente queremos honrar as santas ordenanças de nosso Senhor<br />

que usamos na Igreja, a primeira coisa que devemos é saber o que elas contêm e o<br />

que elas significam e querem dizer e para que fim foram instituídas, para que<br />

o uso delas seja útil e salutar e consequentemente corretamente administrados. 35<br />

No tratado que escreveu em 1544, onde expôs diante do imperador Carlos<br />

V as razões que justificavam a Reforma, Calvino descreveu o modo de oração<br />

que estava sendo implantado nas igrejas<br />

O método pelo qual, em nossas igrejas, todos oram em comum na língua popular,<br />

e homens e mulheres indiscriminadamente cantam os salmos, nossos adversários<br />

podem ridicularizar se quiserem, aprouve ao Espírito Santo trazer testemunho<br />

a nós do céu, enquanto ele repudia os sons confusos e sem significado que são<br />

pronunciadas em outro lugar. 36<br />

Seguindo esse princípio, ele defende que há três elementos ordenados<br />

para o culto: a pregação da Palavra, as orações públicas e solenes e a administração<br />

dos sacramentos. 37 A partir desses três elementos, Calvino considera o<br />

cântico como uma forma de oração. “Quanto às orações públicas, há dois tipos.<br />

Aquelas somente com palavras, e outras cantadas”. 38 Por isso, a música no<br />

32 COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. <strong>22</strong>6, <strong>22</strong>9.<br />

33 Apud Ibid., p. 230.<br />

34 CALVINO, J. Pastorais. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009, p. 163.<br />

35 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 1.<br />

36 CALVIN, John. The Necessity of Reforming the Church. Dallas, TX: The Protestant Heritage<br />

Press, 1995, p. 57.<br />

37 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 2.<br />

38 Ibid. p. 3.<br />

31


DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...<br />

culto deve ser objeto de especial cuidado e consideração. Calvino registra que<br />

“cantar tem grande força, vigor de mover e inflamar os corações dos homens<br />

para envolvê-los em adoração a Deus com mais veemência e ardente zelo”. 39<br />

Por isso, Calvino requer que as músicas tenham peso e majestade, rejeitando<br />

aquelas que sejam frívolas ou triviais, que haja diferença marcante entre<br />

a música de entretenimento e o que é cantado na igreja e que ela seja usada com<br />

moderação de modo que sirva a coisas honesta e não dê lugar à dissolução ou<br />

se torne instrumento de lascívia ou impureza. Isso não quer dizer que Calvino<br />

queria que a música ficasse restrita aos cultos. Ao contrário, seu intuito era<br />

que ela, como de fato aconteceu, fosse cantada nos campos e nos lares como<br />

o que ocorria na igreja cristã por volta do quarto século. 40 Sua preocupação<br />

era precaver-se de futilidades e alegrias tolas e viciosas e conduzir a igreja à<br />

alegria espiritual recomendada nas Escrituras. “É preciso haver canções não<br />

somente honestas, mas também santas, que como aguilhões nos incitem a orar<br />

e a louvar a Deus e a meditar nas suas obras para amar, honrar e glorificá-lo”. 41<br />

O cântico de salmos é, dessa forma, o corolário do princípio da utilidade<br />

do culto para a edificação. Ainda que haja outros cânticos apropriados, nenhum<br />

deles pode superar os salmos em virtude de que estes foram dados por<br />

inspiração do Espírito Santo. Calvino escreve: “Portanto, quando procuramos<br />

diligentemente, aqui e ali, não iremos encontrar cânticos melhores, por mais<br />

apropriados que sejam os seus propósitos, do que os Salmos de Davi, que o<br />

Espírito Santo falou e preparou através dele”. 42<br />

Em confirmação disso, cita Agostinho, que viu no cântico de salmos o<br />

modo de usufruir da música sem pecado, que dizia que “ninguém é capaz de<br />

cantar algo digno de Deus, exceto aquilo que recebemos dele”; e Crisóstomo,<br />

ardoroso defensor do cântico de salmos, que entendia que essa prática nos faz<br />

associados à companhia dos anjos. 43<br />

2.2 O impacto do Livro de Salmos em Calvino<br />

O impacto que o Livro de Salmos causou na vida de Calvino está bem<br />

documentado. Como foi dito acima, em Estrasburgo, Calvino ficou muito<br />

impressionado com “o entusiasmo com que os exilados franceses cantavam<br />

salmos quando se dirigiam ao culto”. 44 Não que cantar salmos fosse uma ideia<br />

nova para Calvino. Em sua primeira estada em Genebra, propusera o cântico de<br />

39 Ibid.<br />

40 CARDOSO, Dario A. O cântico de Salmos na Igreja Cristã até a Reforma. Ciências da Religião<br />

– História e Sociedade, v. 9, n. 2 (2011): 26-51, p. 35ss.<br />

41 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 3-5.<br />

42 Ibid., p. 5.<br />

43 Ibid.<br />

44 COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 161.<br />

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41<br />

salmos que seria ensinado por um coro de crianças à congregação. No entanto,<br />

essa ideia se tornou um propósito em Estrasburgo. “Quando Calvino retornou<br />

a Genebra, adaptou muitos elementos da liturgia de Bucer, tornando-se o rito de<br />

Genebra (1542) a base para a adoração das igrejas calvinistas em toda a Europa –<br />

Suíça, França, Alemanha, Holanda e Escócia”. 45 Esse padrão litúrgico tinha o<br />

cântico de salmos como um de seus principais elementos.<br />

Na dedicatória de Calvino ao Comentário de Salmos, ele faz impressionantes<br />

menções ao valor desse livro. Essa dedicatória foi endereçada aos leitores<br />

piedosos e sinceros. Ao explicar as razões de sua relutância em empreender<br />

uma série de pregações no livro de Salmos, Calvino reconheceu sua limitação<br />

em expor a riqueza de seu conteúdo.<br />

As riquezas variadas e esplêndidas que compõem este tesouro não são algo<br />

fácil de se expressar em palavras; tanto é verdade que estou bem consciente de<br />

que, seja como melhor me expresse, estarei longe de revelar todas a excelência<br />

do tema. 46<br />

Além da excelência, Calvino reconhecia a absoluta abrangência do livro<br />

acerca das emoções e necessidades humanas. É bem conhecida a alcunha<br />

atribuída por Calvino a esse livro:<br />

“Uma Anatomia de Todas as Partes da Alma”, pois não há sequer uma emoção<br />

da qual alguém porventura tenha participado que não esteja aí representada<br />

como num espelho. Ou, melhor, o Espírito Santo, aqui, extirpa da vida todas<br />

as tristezas, as dores, os temores, as dúvidas, as expectativas, as preocupações, as<br />

perplexidades, enfim, todas as emoções perturbadas com que a mente humana<br />

se agita 47 .<br />

Dessa forma também ficam expostas nossas debilidades e os vícios a<br />

que estamos sujeitos, e o nosso “coração é trazido à claridade e purgado da<br />

mais perniciosa das infecções – a hipocrisia!”. Mais adiante, ele diz que “tudo<br />

quanto nos serve de encorajamento, ao nos pormos a buscar a Deus em oração,<br />

nos é ensinado nesse livro”. 48<br />

O valor dos salmos para a promoção de uma genuína e fervorosa oração<br />

também é registrado nessa dedicatória. Diferentemente das outras partes das<br />

Escrituras em que são registrados os mandamentos de Deus aos homens, aqui<br />

os profetas “são descritos falando com Deus e pondo a descoberto todos os<br />

seus mais íntimos pensamentos e afeições”, e demonstram<br />

45 Ibid., p. 290.<br />

46 CALVINO, Pastorais, p. 26.<br />

47 CALVINO, J. O livro dos Salmos. vol. 1. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009, p. 27.<br />

48 Ibid., p. 27.<br />

33


DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...<br />

... como invocar a Deus é um dos principais meios de garantir nossa segurança,<br />

e como a melhor e mais inerrante regra para guiar-nos nesse exercício não pode<br />

ser encontrada em outra parte senão nos Salmos, segue-se que em proporção à<br />

proficiência que uma pessoa haja alcançado em compreendê-los, terá também<br />

alcançado o conhecimento da mais importante parte da doutrina celestial. 49<br />

Através dos salmos aprendemos a colocar diante de Deus aquelas fraquezas<br />

que tememos confessar diante dos homens e “não há outro livro em que<br />

somos mais perfeitamente instruídos na correta maneira de louvar a Deus, ou<br />

em que somos mais poderosamente estimulados à realização desse sacro exercício”.<br />

Neles também somos estimulados a uma vida cristã que seja plena “de<br />

santidade, de piedade e de justiça, todavia eles principalmente nos ensinarão<br />

e nos exercitarão para podermos levar a cruz”. 50<br />

A menção da cruz nesse trecho deixa bem claro que a piedade promovida<br />

pelos salmos não pode ser denominada veterotestamentária, no sentido de ser<br />

pré-cristã, mas bíblica e cristã no melhor sentido dos termos. Dessa forma,<br />

não há para Calvino a necessidade de cristianizar os salmos, como mais tarde<br />

propôs Charles Wesley. Portanto, não é por acaso que seja nessa dedicatória<br />

que encontramos as mais claras declarações de Calvino quanto à sua conversão.<br />

A partir dessa visão de Calvino, o jovem pastor norte-irlandês Angus Stewart<br />

faz a seguinte observação sobre a atualidade:<br />

Se isso é verdade, devemos confessar o quanto precisamos dos Salmos! Podemos<br />

tê-los em excesso, se a oração cristã (que o Catecismo de Heidelberg,<br />

Dia do Senhor 45, chama de “a parte principal da gratidão, que Deus requer<br />

de nós”) é tão forte ou fraca quanto a nossa compreensão sincera dos Salmos?<br />

O raciocínio de Calvino aqui deveria nos estimular a ler, cantar e meditar nos<br />

Salmos. Está o Reformador de Genebra aqui identificando o problema com a<br />

oração em nosso país? A ignorância dos Salmos e a popularidade dos hinos<br />

modernos não-inspirados? 51<br />

2.3 Elementos distintivos do cântico de salmos proposto por<br />

Calvino<br />

Ao unir-se à longa tradição da igreja de cantar de salmos, Calvino, seguindo<br />

a prática dos reformadores, traz inovações importantes. A mais evidente é o<br />

uso da língua vernácula. Esse princípio protestante não se limitou às traduções<br />

da Bíblia. Assim como Lutero, que introduziu o alemão na prática litúrgica,<br />

49 Ibid.<br />

50 Ibid., p. 29.<br />

51 STEWART, A. João Calvino sobre a Excelência dos Salmos, 2007, p. 4. Disponível em: Acesso em: 16 dez. 2010.<br />

34


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41<br />

Calvino queria que seus irmãos cantassem em francês. No prefácio do Saltério<br />

de Genebra ele diz: “Por isso, é um grande descaramento por parte daqueles<br />

que introduziram a língua latina na igreja, onde geralmente não é entendida. E<br />

não há nem sutileza nem casuísmo que possa desculpá-los, porque essa prática<br />

é perversa e desagrada a Deus”. 52 Por conta disso, não mais era apropriado<br />

que os salmos continuassem a ser cantados em latim como se fazia nas missas<br />

romanas.<br />

Outro elemento distintivo da tradução e cântico de salmos foi o uso da<br />

metrificação, e não do cântico dos salmos em prosa. Pode-se depreender que<br />

essa técnica foi adotada com vistas a facilitar a memorização. Segundo Calvino,<br />

o maior proveito do uso dos salmos não pode ocorrer se eles não estiverem<br />

impressos em nossa memória. “Após a inteligência, deve seguir o coração e a<br />

afeição, uma coisa impossível de acontecer exceto se tivermos o hino impresso<br />

em nossa memória, a fim de nunca cessarmos de cantar”. 53 De fato, os registros<br />

pessoais dos calvinistas demonstram que a memorização dos salmos foi um<br />

importante elemento de apoio nas mais diversas situações.<br />

2.4 O cântico de salmos não era propriamente exclusivo<br />

Deve-se observar que, conquanto Calvino manifeste preferência pelo cântico<br />

de salmos, não parece ter defendido que isso se fizesse exclusivamente. Na<br />

edição de 1545 das Formas de Oração na Igreja Francesa ele assim descreve<br />

a ordem litúrgica do culto: “Começamos com a confissão de pecados. (...)<br />

Continuamos com salmos, hinos e louvor, a leitura do evangelho, a confissão<br />

de nossa fé (ou seja, o Credo Apostólico), e as santas oblações e oferendas...”. 54<br />

É importante notar, então, que desde a primeira e em todas as suas edições<br />

o Saltério de Genebra não foi composto unicamente pelos salmos bíblicos. Havia<br />

versões metrificadas de “cânticos bíblicos, da Oração do Senhor, do Credo<br />

dos Apóstolos, dos Dez Mandamentos, e paráfrases de passagens familiares do<br />

Novo Testamento”. 55 Além de vários salmos, Calvino traduziu o Cântico de<br />

Simeão, conhecido com Nunc dimittis, e os Dez Mandamentos para o francês<br />

e compôs um hino. Segundo Cabaniss “essa tradição aponta para uma antiga<br />

percepção de que os salmos são quase, mas não totalmente, suficientes para<br />

a adoração cristã”. 56<br />

No decorrer da história da formação e da propagação do saltério, pode-<br />

-se registrar, além dos 150 salmos metrificados, onze metrificações de outros<br />

52 CALVINO, Prefácio, p. 3.<br />

53 Ibid., p. 5.<br />

54 Apud COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 295.<br />

55 CABANISS, A. The Background of Metrical Psalmody. Calvin Theological Journal, v. 20,<br />

n. 2 (1985): 191-206, p. 203.<br />

56 Ibid.<br />

35


DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...<br />

textos canônicos e cinco de hinos não canônicos. Os outros hinos canônicos<br />

eram o Decálogo, o Cântico de Ana, o Primeiro Cântico do Servo, o Cântico de<br />

Jonas, o Cântico de Maria, o Cântico de Zacarias, duas versões do Cântico<br />

de Simeão, Romanos 8, o Hino filipense e o Hino colossense. Os extrabíblicos<br />

são o Cântico dos Três Jovens (presente na LXX e na Vulgata), 57 o Credo, o Te<br />

Deum, a Pergunta e a Resposta nº 1 do Catecismo de Heidelberg e Um Hino<br />

para o Pentecoste. 58<br />

McNeill registra que Calvino também escreveu poemas. Não afirma se<br />

eles eram cantados, mas diz que, na edição de Genebra em 1545, foi incluído<br />

o melhor poema de Calvino, “Je Te salue, mon certain Redempteur”, uma<br />

declaração de fé fervorosa e pessoal. 59 Entretanto, essa prática foi abandonada<br />

por Calvino, preferindo a proposta de metrificação do texto bíblico. Sobre o<br />

uso do texto bíblico como fonte da liturgia protestante, Raynor faz uma interessante<br />

observação<br />

Para os luteranos, como para os reformadores mais radicais, a autoridade em<br />

religião estava na Bíblia, a Palavra de Deus, mais que na tradição viva da Igreja.<br />

Tudo o que se dissesse na Igreja era retirado de textos bíblicos, e quase em grau<br />

igual preces como o Kyrie e textos instrutivos como os do Credo tinham de ser<br />

ouvidos e compreendidos; as palavras não deviam ser apenas matérias-primas<br />

da música para dar uma estrutura e se destinarem a certa coisa autonomamente<br />

musical, como foi o caso da maioria das obras de mestres do Renascimento. Caso<br />

fossem musicadas, era dever do compositor cuidar para que fossem transmitidas<br />

com toda clareza. Essa atitude para com a música não era, evidentemente,<br />

especificamente protestante; era apenas uma revivescência numa nova situação<br />

das objeções católicas tradicionais à música religiosa por demais complicada e<br />

assinala um ponto no qual se encerrava um ciclo e os protestantes extremados<br />

viram-se utilizando os mesmos argumentos que os conservadores extremados<br />

na Igreja Católica. 60<br />

Por reformadores mais radicais e protestantes extremados deve-se entender<br />

os calvinistas. Percebe-se aqui a ligação com as discussões que envolveram<br />

a salmódia desde o 4º século. A observação mostra-se verdadeira uma vez<br />

que o próprio Calvino citou várias vezes Agostinho e uma vez Crisóstomo no<br />

Prefácio do Saltério de Genebra.<br />

57 Essa porção do livro de Daniel foi posteriormente considerada apócrifa, ou seja, não canônica,<br />

pelas igrejas protestantes.<br />

58 KOYZIS, D. T. The Genevan Psalter, 2010. Disponível em: http://genevanpsalter.redeemer.ca/.<br />

Acesso em: 14 dez. 2010.<br />

59 MCNEILL, The History and Character of Calvinism, p. 148.<br />

60 RAYNOR, História social da música, p. 137.<br />

36


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41<br />

2.5 Os salmos metrificados por Calvino<br />

Koysis informa que os salmos metrificados por Calvino não sobreviveram.<br />

61 Segundo ele, o reformador era melhor teólogo do que poeta. De fato,<br />

todas as metrificações de Calvino presentes na versão do saltério publicada<br />

em Estrasburgo foram substituídas pelas produzidas por Clement Marot e<br />

Teodoro Beza. Costa registra que Calvino fez metrificações dos salmos 25, 36,<br />

43, 46, 91, 113, 120, 138 e 142. 62 Das composições originais de Calvino foi<br />

possível localizar apenas uma. Trata-se da metrificação do Salmo 113 feita a<br />

partir da metrificação do mesmo salmo em alemão em 1525 em Estrasburgo.<br />

Esse salmo metrificado encontra-se sob o número 374 na revisão de 1964 do<br />

Psaumes Cantiques et Textes pour le culte à l’usage des Eglises réformées<br />

suisses de langue française.<br />

Figura 1: Salmo 113 metrificado por Calvino<br />

61 KOYZIS, The Genevan Psalter.<br />

62 COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 182.<br />

37


DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...<br />

O texto francês pode ser traduzido da seguinte forma:<br />

Vós, servidores do Deus do céu,<br />

Louvai o seu nome constantemente<br />

Que a cada dia, em todos os lugares,<br />

Seu povo a si mesmo dirige.<br />

Desde a manhã até a noite<br />

Louvai, louvai seu nome bendito<br />

Com canções de alegria.<br />

Único todo-poderoso, único Senhor<br />

A ele pertence o império.<br />

Ele tem o seu trono no mais alto céu<br />

Sobre tudo o que respira.<br />

Mas do mais humilde ele se lembra,<br />

Em seu amor ele o mantém,<br />

Seu cuidado está sobre nossas vidas.<br />

A quem ele vê pobre e sofredor<br />

Sua graça libera.<br />

Ele nos abençoa em nossos filhos,<br />

Ele é em si mesmo um pai.<br />

Ninguém além dele é glorioso,<br />

Louvai seu nome sobre a terra.<br />

A comparação com a versão Almeida Revista e Atualizada auxilia na<br />

percepção dos aspectos envolvidos no processo de metrificação utilizado por<br />

Calvino.<br />

1<br />

Aleluia!<br />

Louvai, servos do Senhor,<br />

louvai o nome do Senhor.<br />

2<br />

Bendito seja o nome do Senhor,<br />

agora e para sempre.<br />

3<br />

Do nascimento do sol até ao ocaso,<br />

louvado seja o nome do Senhor.<br />

4<br />

Excelso é o Senhor, acima de todas as nações,<br />

e a sua glória, acima dos céus.<br />

5<br />

Quem há semelhante ao Senhor, nosso Deus,<br />

cujo trono está nas alturas,<br />

6<br />

que se inclina para ver<br />

o que se passa no céu e sobre a terra?<br />

38


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41<br />

7<br />

Ele ergue do pó o desvalido<br />

e do monturo, o necessitado,<br />

8<br />

para o assentar ao lado dos príncipes,<br />

sim, com os príncipes do seu povo.<br />

9<br />

Faz que a mulher estéril viva em família<br />

e seja alegre mãe de filhos.<br />

Aleluia! 63<br />

É possível perceber que certos elementos como o dever de louvar a Deus<br />

e a descrição de seus atributos são transferidos quase que literalmente para a<br />

metrificação. No entanto, os elementos circunstanciais de seus atos são contextualizados<br />

e descritos em termos da experiência coletiva descrita na primeira<br />

pessoa do plural, enquanto no salmo são descritos em terceira pessoa. Com<br />

essa simples técnica, o salmo recebe um caráter atual e prático, tendo a graciosa<br />

providência de Deus como elemento teológico que exige que o Senhor seja<br />

louvado e que se dê testemunho do cuidado que ele tem dispensado.<br />

2.6 Clement Marot e o benefício de cantar salmos<br />

Um personagem chave na história do Saltério de Genebra é Clement Marot.<br />

Cabaniss descreve Marot como um filho da Idade Média, um poeta refinado<br />

e brilhante. 64 Marot e Calvino se conheceram na corte da Duquesa de Ferrara,<br />

na Itália, em 1536. Quando passou por Genebra, no final de 1542, Calvino o<br />

contratou para dar continuidade ao projeto de metrificação dos salmos. 65<br />

Marot dedicou a edição de 1542 ao rei Francisco I. Nela, ele descreve<br />

o livro de salmos como “real e cristão”, escrito e cantado por Davi sob a inspiração<br />

do Espírito Santo. Também afirma que os salmos não descrevem um<br />

amor terreno, como a Eneida ou a Ilíada, mas que na obra de Davi poderia<br />

ser encontrado o verdadeiro Amante, o Rei dos reis, e por isso Davi supera<br />

Homero e Horácio. Continua Marot que os corações gentis e as almas amáveis<br />

encontram neles consolação em todas as tribulações. 66 Os temas espirituais são<br />

proeminentes nesse primeiro prefácio. Além da inspiração dos salmos, Marot<br />

menciona o cuidado providencial de Deus, a importância da lei na distinção<br />

entre o bem e mal e a prefiguração dos sofrimentos de Cristo como temas<br />

importantes dos salmos.<br />

Curiosamente, no prefácio à segunda edição (1543), Marot acrescenta<br />

uma palavra às senhoras “encorajando-as a abandonar as canções mundanas<br />

63 Sociedade Bíblica do Brasil. Bíblia Sagrada – Almeida Revista e Atualizada, com números de<br />

Strong (Ps 113:1–9). Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil.<br />

64 CABANISS, The Background of Metrical Psalmody, p. 200.<br />

65 VAN HALSEMA, João Calvino era assim, p. 100, 143; COSTA, Ibid., p. 182.<br />

66 CABANISS, The Background of Metrical Psalmody, p. 201.<br />

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DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...<br />

em favor daquelas que ele lhes oferecia”. 67 Assim, ao presumir que elas teriam<br />

interesse em canções de amor, ressalta que os salmos falam somente de Amor e<br />

que, de fato, foram compostos por aquele que é o próprio Amor. Então, conclui<br />

o seu apelo dizendo:<br />

Comecem, minhas senhoras, a promover a idade áurea na qual Deus é adorado<br />

como ele próprio ordenou, cantando este livro sagrado de canções. Vocês têm<br />

sorte, minhas senhoras, de poderem ver a hora se aproximar quando um trabalhador<br />

em seu trabalho, um condutor em seu carro, um artesão em sua oficina,<br />

ilumina sua labuta com salmo ou cântico, quando pastores e pastoras fazem as<br />

rochas ecoarem com música louvando o santo nome de seu Criador. 68<br />

Cabaniss, observa que, propriamente falando, Marot não era protestante.<br />

Ele parece pertencer a um grupo evangélico, bíblico e humanístico chamado<br />

“círculo de Meaux”. 69 Entretanto, foi muito bem recebido em Genebra e tanto<br />

ele quanto sua poesia granjearam a mais alta consideração de Calvino, de modo<br />

que um de seus salmos é utilizado no início da versão francesa do Novo Testamento<br />

publicada em Genebra em 1543. Essa admiração perdurou por toda a<br />

vida do reformador, o que é demonstrado pelo fato de que na Páscoa de 1564,<br />

última ocasião em que Calvino, já muito adoecido, participou da Comunhão,<br />

foi cantada no encerramento do culto a versão do Nunc dimittis metrificada<br />

por Marot em 1543, 70 não obstante, Calvino ter feito anteriormente sua própria<br />

versão metrificada do cântico de Simeão.<br />

Em 1543, os teólogos da Sorbonne condenaram formalmente as traduções<br />

de Marot ao considerarem uma ameaça a prática protestante do uso do<br />

vernáculo nos cultos. Ainda assim, suas melodias eram cantadas tanto por<br />

católicos quanto por protestantes. Foi somente depois da edição de 1551, que<br />

foi expandida por Teodoro Beza, que “os salmos e suas melodias se tornaram<br />

muito mais fortemente identificados com a causa huguenote”. 71 Dessa forma,<br />

Henrique II, que em sua juventude havia cantado na corte as traduções de<br />

Marot, baniu oficialmente o cântico público de salmos em 1558. Tal proibição<br />

e o importante papel simbólico do Saltério de Genebra nas guerras da religião<br />

levaram a um baixo índice de sobrevivência das suas fontes musicais. Os<br />

67 Ibid.<br />

68 Apud Ibid.<br />

69 Ibid., p. 202.<br />

70 Ibid.<br />

71 BROOKS, J. Les cent cinquante pseaumes de David, mis en musique a quatre parties. 1998, p. 1.<br />

Disponível em: Acesso em: 18 dez. 2010.<br />

40


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41<br />

militantes católicos se comprometeram a destruir todas as cópias do Saltério<br />

que caíssem em suas mãos. 72<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Observamos neste artigo o importante espaço que a música ocupou nas<br />

discussões da Reforma. Notamos que de modos diferentes Lutero e Calvino<br />

reconheceram o valor litúrgico da música e empenharam seus melhores esforços<br />

para que seus benefícios fossem sentidos na vida da igreja. Um ponto<br />

relevante dessa discussão é a ênfase que Lutero deu ao poder de impressão<br />

que a música poderia exercer sobre os crentes, ao passo em que Calvino preferiu<br />

investir na música como um meio de expressão da fé e de ensino. Para<br />

Calvino, desde que fosse simples e focada no que se cantava, a música tinha<br />

o poder de envolver os homens na adoração a Deus e na meditação acerca de<br />

suas obras. O reformador encontrou nos salmos o ponto máximo do princípio<br />

da utilidade da música para a edificação. Com isso, um dos grandes projetos<br />

de seu ministério foi a produção de um livro de cânticos composto de salmos e<br />

outros textos bíblicos metrificados e adaptados ao contexto cristão. Essa obra<br />

ficou conhecida como o Saltério de Genebra.<br />

Com Lutero e Calvino aprendemos sobre a importância do investimento<br />

na produção musical para a edificação da igreja. Para isso, não podemos tratar<br />

a questão musical como uma discussão de estética clássica ou contemporânea.<br />

Precisamos nos certificar de que a música utilizada no culto reflita a<br />

majestade de Deus, incite os crentes à adoração e mova mentes e corações<br />

para o louvor de Deus e para o compromisso com sua Palavra.<br />

ABSTRACT<br />

This article highlights how important it was for the reformers to discuss<br />

the use of music in liturgy. It shows that for both Luther and Calvin the emotionally<br />

mobilizing power of music should be used in order to lead believers<br />

to worship God. Calvin was known for stressing that this power should be<br />

instrumental to upbuilding and teaching. He emphasized the production of songs<br />

that were easy to be learned and whose lyrics led to meditation upon God and<br />

God’s works. The singing of psalms and other biblical passages, metrified<br />

and adapted to the Christian context, proved to be the most adequate means to<br />

meet this goal and it resulted in the production of the work that became known<br />

as the Geneva Psalter.<br />

KEYWORDS<br />

Reformation; Liturgy; Music; Luther; Calvin; Singing of Psalms.<br />

72 Ibid.<br />

41


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65<br />

Lutero e os Antinomistas:<br />

Qual é a visão evangélica da lei?<br />

Heber Carlos de Campos Júnior *<br />

RESUMO<br />

Depois de apresentar os componentes essenciais da doutrina luterana<br />

de justificação em diálogo com os intérpretes de Martinho Lutero, este artigo<br />

introduz a controvérsia antinomista com João Agrícola na qual ele questiona<br />

se o arrependimento era resultado da exposição da lei ou da pregação do<br />

evangelho. É apresentada como cenário da discussão a estrutura hermenêutica<br />

de lei e evangelho e resumida a oposição de Agrícola aos ensinos de Filipe<br />

Melanchton, seguida da resposta de Lutero e da ratificação da Fórmula de<br />

Concórdia. O propósito em resumir a controvérsia antinomista em contextos<br />

luteranos é suscitar pontos de contato com antinomismos na Inglaterra do<br />

século 17, quando surgiram discussões semelhantes, e consequentes lições<br />

para os dias atuais. Este artigo defende que há uma necessidade de contar essa<br />

história novamente para atender a certas necessidades do cenário evangélico<br />

brasileiro e internacional.<br />

PALAVRAS-CHAVE<br />

Martinho Lutero; Antinomista; Antinomismo; João Agrícola; Justificação;<br />

Lei e evangelho; Arrependimento.<br />

INTRODUÇÃO<br />

É bem sabido que a doutrina da justificação ocupou lugar central na Reforma<br />

Protestante do século 16. Utilizando linguagem aristotélica, os historiadores<br />

tendem a denominar essa doutrina o “princípio material” da Reforma, isto é,<br />

* Doutor em Teologia Histórica pelo Calvin Theological Seminary, em Grand Rapids, Michigan;<br />

professor de teologia histórica e teologia sistemática no CPAJ; pastor da Igreja Presbiteriana Aliança,<br />

em Limeira (SP).<br />

43


HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS<br />

a matéria prima com a qual ela foi moldada. 1 Em contrapartida ao conceito<br />

católico romano de justiça infusa, derramada no interior do ser humano para<br />

torná-lo pessoalmente justo, a Reforma passou a falar de uma justiça atribuída<br />

ao ser humano. Sua diferença quanto à doutrina de Roma era mais do que mera<br />

semântica, ou apenas uma falta de distinção entre justificação e santificação,<br />

mas, de acordo com os reformadores, atingia a pureza do evangelho (boa nova).<br />

Essa diferença pode ser expressa com a seguinte pergunta: Como você quer ser<br />

avaliado por Deus e pelos homens, pela quantidade de justiça que há em você<br />

ou pela justiça atribuída a você? Em outras palavras, você quer ser recebido<br />

por Deus baseado em seu próprio desempenho ou baseado no desempenho de<br />

outro (Cristo) a seu favor? Você acha que os relacionamentos na igreja devem<br />

se iniciar e se perpetuar com base em uma pureza inerente às partes ou no<br />

perdão restaurador? Essas perguntas revelam qual é a base de nossas relações<br />

verticais e horizontais.<br />

Foi na doutrina da justificação que Martinho Lutero (1483-1546) trouxe<br />

algumas de suas maiores contribuições teológicas para a Reforma. Podemos<br />

resumir algumas de suas contribuições em três pontos que estão interligados.<br />

Primeiro, Lutero descobriu uma justiça salvadora, antes que punitiva. No<br />

renomado trecho autobiográfico contido no prefácio de suas obras em latim<br />

publicadas no final de sua vida (1545), 2 Lutero relembra que quando era um<br />

jovem monge a expressão “justiça de Deus” (Rm 1.17) aterrorizava a sua<br />

alma. Todas as suas tentativas de satisfazer a Deus – orações, jejuns, vigílias,<br />

boas obras – não lhe aquietavam a alma, pois ele sempre se julgava aquém<br />

do padrão de santidade em Deus. Continuamente confessava suas falhas mais<br />

insignificantes ao seu mentor, Johann von Staupitz, a ponto de cansá-lo. Além<br />

disso, Lutero diz que nutria certa fúria velada contra o Deus que pune pecadores.<br />

3 Sua descoberta, contudo, se deu quando a “justiça de Deus” passou de<br />

castigo para a provisão redentora de Deus. Sua alma encontrou alívio, nasceu<br />

de novo, quando ele mudou seu entendimento do que era a “justiça de Deus”<br />

1 MCGRATH, Alister E. O pensamento da Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 113.<br />

Aristóteles desenvolveu uma teoria quanto à causa das coisas no mundo natural, como forma de investigação<br />

do mundo ao nosso redor. Esta teoria é descrita de forma praticamente idêntica em Física II.3 e em<br />

Metafísica V.2. Sendo que Aristóteles está buscando uma resposta para a pergunta “por quê?” podemos<br />

pensar na causa como um certo tipo de explicação. Cada uma das quatro causas é a explicação de algo.<br />

Eis as quatro causas: 1) “causa material”, aquilo do qual sai algo, e.g. o bronze de uma estátua; 2) “causa<br />

formal”, o relato do que há de se tornar, o formato da estátua; 3) “causa eficiente”, a fonte primária de<br />

mudança, o artesão; 4) “causa final”, o propósito de algo, o embelezamento de um prédio e a glória<br />

de um imperador. FALCON, Andrea. “Aristotle on Causality”. Stanford Encyclopedia of Philosophy.<br />

Disponível em: http://plato.stanford.edu/entries/aristotle-causality/. Acesso em: 29 ago. 2017.<br />

2 Cf. LULL, Timothy F. Martin Luther’s Basic Theological Writings. 2ª ed. Minneapolis: Fortress,<br />

2005, p. 8-9.<br />

3 GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 64, 66.<br />

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65<br />

em Romanos. Heiko Oberman diz que as doutrinas medievais de justificação<br />

tratavam daquele que está no estado de graça como tendo recebido a iustitia<br />

Christi (justiça de Cristo) sacramentalmente, mas que restam as obras de<br />

obediência à lei divina para satisfazer as exigências da iustitia Dei (justiça<br />

de Deus). Lutero perturbava-se com o conceito de iustitia Dei, pois sempre se<br />

via distante de uma obediência satisfatória. A grande descoberta de Lutero foi<br />

esta: “O coração do evangelho é que a iustitia Christi e a iustitia Dei coincidem<br />

e são concedidas simultaneamente”. 4 Essa descoberta foi seu grande deleite, e<br />

um dos marcos na transição para uma teologia madura do reformador.<br />

Em segundo lugar, Lutero enfatizou uma justiça passiva (isto é, que eu<br />

recebo), não ativa. 5 Lutero rompeu com a tradição medieval ao asseverar que<br />

certos homens são intrinsecamente pecadores, mas extrinsecamente justos. Enquanto<br />

a tradição agostiniana de justificação progressiva entendia a expressão<br />

simul iustus et peccator (simultaneamente justo e pecador) significando “em<br />

parte” pecador e “em parte” justo – como num processo de santificação – a<br />

ênfase de Lutero recaía em sermos pecadores em nós mesmos e justos porque<br />

Cristo nos foi dado. 6 Ele compreendeu que é possível alguém ser internamente<br />

poluído ainda que seja tratado por Deus como puro. Enquanto na teologia medieval<br />

o veredito de justificação vinha por meio da infusão de uma qualidade<br />

sobrenatural (“graça habitual”) que habilitava o homem a fazer boas obras, 7<br />

Lutero destacou como o crente é visto por Deus como justo (mediante o perdão<br />

dos pecados) ainda que não tenha obras suficientes em si mesmo. Essa é<br />

outra forma de falar de “justificação pela fé somente”. Fé, aqui, não é uma das<br />

virtudes teológicas agostinianas como esperança e amor, mas constitui uma<br />

relação de confiança (fiducia) em Deus por causa da obra de Cristo. Lutero<br />

reconhece que a palavra “somente” não é derivada de um texto da Escritura,<br />

mas contra a tradição medieval solidifica a necessidade de a fé ser o único<br />

instrumento pelo qual somos justificados por Deus em Cristo. Tanto é que sua<br />

tradução de Romanos 3.28 ficou polemicamente famosa quando ele inseriu a<br />

palavra “somente” (allein em alemão) para captar a ênfase paulina, ainda que<br />

o original não explicitasse tal qualificação. 8<br />

4 OBERMAN, Heiko A. ‘Iustitia Christi’ and ‘Iustitia Dei’: Luther and the Scholastic Doctrines<br />

of Justification. Harvard Theological Review, vol. 59, no. 1 (Jan. 1966), p. 19.<br />

5 Lutero escreveu: “A justiça que provém de nós não é a justiça cristã, e por ela não nos tornamos<br />

justos. A justiça cristã é bem o contrário, a justiça passiva, que apenas recebemos, em que não agimos,<br />

mas deixamos um outro agir em nós, Deus”. Apud EBELING, Gerhard. O pensamento de Lutero: uma<br />

introdução. São Leopoldo: Sinodal, 1988, p. 96.<br />

6 GEORGE, Teologia dos reformadores, p. 72-73.<br />

7 Ibid., p. 66.<br />

8 CAMPOS JÚNIOR, Heber Carlos de. O lugar da fé e da obediência na justificação: Um histórico<br />

das discussões reformadas do século XVII. In: FERREIRA, Franklin (Org.). A glória da graça de<br />

Deus: Ensaios em honra a J. Richard Denham Jr. sobre história, teologia, igreja e sociedade. São José<br />

45


HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS<br />

Em terceiro lugar, Lutero ressaltou que se trata de uma justiça alheia, não<br />

minha. No sermão de 1519 intitulado “Duas espécies de justiça”, 9 Lutero fala<br />

de uma primeira justiça que vem de outro (iustitia aliena), que vem de fora.<br />

Essa justiça de Cristo é a fonte da segunda justiça, produzida dentro de nós.<br />

A ênfase primária numa justiça que vem de fora é um ataque à antropologia<br />

pelagiana antes do que um claro pronunciamento da justificação forense, isto é,<br />

legal. 10 É bom lembrar que a descoberta das verdades protestantes acontece de<br />

forma gradativa. Nesse sermão, ele ainda sustenta a ideia de justificação como<br />

um processo de santificação: “E assim Cristo expulsa Adão dia a dia, mais e<br />

mais, na medida em que crescem aquela fé e o conhecimento de Cristo; pois<br />

a justiça alheia não é infundida toda de uma vez, mas começa e progride e é<br />

levada finalmente à perfeição com a morte”. 11 Em A Liberdade de um Cristão,<br />

de 1520, Lutero expressa a justificação de tal forma que recebemos tudo de<br />

Cristo por estarmos unidos a ele e de que Cristo recebe os nossos vícios.<br />

Essa analogia de união com Cristo e a metáfora do casamento, que Lutero<br />

muito apreciava, tem sido interpretada de forma diversa. Por razões diferentes,<br />

tanto o renomado especialista Karl Holl quanto a escola finlandesa de interpretação<br />

de Lutero (Tuomo Mannermaa é um dos intérpretes finlandeses mais<br />

destacados) entendem que Lutero tinha um entendimento mais ontológico de<br />

justificação e, portanto, diferente do conceito mais forense de seu colega Filipe<br />

Melanchton (1497-1560). Holl pende para uma interpretação que ressalte a<br />

natureza ética da justificação em Lutero enquanto a escola finlandesa prefere<br />

associá-la à noção oriental de theosis (deificação ou divinização). 12 Alister<br />

dos Campos, SP: Editora Fiel, 2010, p. 355-356. Para uma visão mais detalhada da interpretação de<br />

Lutero de Romanos 3.28 com implicações para a doutrina da justificação pela fé somente, ver os dois<br />

debates sobre o tema em LUTERO, Martinho. Obras selecionadas. Vol. 1: Os primórdios, escritos de<br />

1517 a 1519. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1987, p. 201-239.<br />

9 Cf. LUTERO, Obras selecionadas, vol. 1, p. 241-248.<br />

10 “O ‘extra nos’ para Lutero é a conexão entre a doutrina da justificação e a antropologia teológica.<br />

Essa expressão, contudo, não deve ser mal-entendida no sentido forense da palavra. O conceito<br />

central de ‘extra nos’ não se coloca ao lado de uma justificação por imputação em oposição a uma<br />

justificação por união. Ela não prova que somos justificados ‘fora de nós mesmos’ perante o trono de<br />

Deus o juiz (in foro Dei), de tal forma que a graça não seria imposta [i.e. colocada dentro] mas ‘somente’<br />

imputada. A intenção do ‘extra nos’ é mostrar que a justificação não é baseada no homem se apropriar do<br />

que é devidamente seu, como numa debitum iustitiae”. OBERMAN, ‘Iustitia Christi’ and ‘Iustitia Dei’,<br />

p. 21. Para uma discussão aprofundada da antropologia de Lutero dentro da estrutura de “dois tipos de<br />

justiça”, ver KOLB, Robert; ARAND, Charles P. The Genius of Luther’s Theology: A Wittenberg Way<br />

of Thinking for the Contemporary Church. Grand Rapids: Baker, 2008, p. 21-128.<br />

11 LUTERO, Obras selecionadas, vol. 1, p. 243.<br />

12 TRUEMAN, Carl. Simul peccator et justus: Martin Luther and Justification. In: MCCORMACK,<br />

Bruce L. (Org.). Justification in Perspective: Historical Developments and Contemporary Challenges.<br />

Grand Rapids: Baker Academic, 2006, p. 88-89.<br />

46


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65<br />

McGrath aceita, ao menos em parte, a intepretação finlandesa da influência da<br />

ideia oriental de deificação sobre Lutero. 13<br />

Por outro lado, Carl Trueman, seguindo a linha de Lowell Green e Robert<br />

Kolb, apresenta vários problemas com a disjunção feita entre Lutero e Melanchton.<br />

Em primeiro lugar, essa disjunção desconsidera o desenvolvimento<br />

teológico de Lutero (de 1515 a 1520) saindo de um conceito transformativo e<br />

ontológico de justificação rumo a uma ideia mais relacional, de status. Enquanto<br />

os intérpretes da disjunção se fiam nas obras iniciais de Lutero, Trueman demonstra<br />

como a partir de A Liberdade de um Cristão, mas principalmente no<br />

Comentário de Gálatas (preleções de 1531 cujas anotações foram publicadas<br />

em 1535), vemos que Lutero abandona não só a antropologia pelagiana da<br />

teologia medieval, mas, impulsionado pelo voluntarismo da via moderna, ele<br />

intensifica a importância da decisão divina na justificação do homem. Isto é,<br />

a identidade do homem perante Deus é uma questão de status, dependente da<br />

decisão divina, não da transformação no homem. 14 Em segundo lugar, a disjunção<br />

entre Lutero e Melanchton desconsidera a grande admiração que Lutero<br />

tinha pelos escritos de seu colega mais novo. Ele não só louva o comentário<br />

de Romanos escrito por Melanchton (1532), mas se une ao seu colega numa<br />

carta (12 de maio de 1531) opondo-se à noção de justificação proposta por<br />

Johannes Brenz. 15 Em terceiro lugar, a disjunção proposta separa Lutero não só<br />

de Melanchton, mas de toda a tradição luterana confessional produzida tanto<br />

13 MCGRATH, Alister E. Iustitia Dei: A History of the Christian Doctrine of Justification. 3ª ed.<br />

Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. <strong>22</strong>5-<strong>22</strong>6. Se essa avaliação estiver correta, e Cristo<br />

se torna um pecador por união, então Lutero é passível da crítica que Richard Baxter levantou contra<br />

o antinomista Tobias Crisp cerca de 150 anos mais tarde na controvérsia antinomista na Inglaterra. Cf.<br />

CAMPOS JÚNIOR, O lugar da fé e da obediência na justificação, p. 363-364. Todavia, parece prudente<br />

concluir que nos escritos de Lutero não encontramos uma discussão tão clara sobre a natureza da transferência<br />

do nosso pecado a Cristo.<br />

14 TRUEMAN, Simul peccator et justus, p. 77-83.<br />

15 Ibid., p. 90-91. Johannes Brenz descrevia a justificação como dependente do cumprimento da<br />

lei operada pelo Espírito Santo ao invés da imputação de Deus por causa da obra de Cristo; a teologia<br />

de Brenz lhes parecia muito próxima do catolicismo romano. Trueman afirma que o posfácio da carta de<br />

Melanchton, escrito por Lutero, apresenta uma linguagem alternativa, mas não discordante do seu colega<br />

de trabalho em Wittenberg. As diferenças se resumem na ênfase e na escolha de linguagem (p. 91, nota 42).<br />

Martin Brecht, em contrapartida, acredita que o posfácio da carta traz uma ênfase diferente, ainda que<br />

sem criticar Melanchton. Brecht afirma que a visão de Lutero era menos precisa que a de Melanchton,<br />

mas evitava separar a declaração divina da justificação da justificação em si mesma. Algumas páginas à<br />

frente, Brecht afirma que no grande comentário de Gálatas de Lutero (1535), baseado em suas preleções,<br />

os editores, que eram discípulos de Melanchton, adaptaram a doutrina da justificação e as afirmações<br />

sobre a lei feitas por Lutero às ideias de Melanchton. BRECHT, Martin. Martin Luther: Shaping and<br />

Defining the Reformation, 1521-1532. Minneapolis: Fortress, 1994, p. 451, 455. Percebe-se que Brecht<br />

promove a disjunção entre Lutero e Melanchton. Ainda assim, não se pode negar que escrever um posfácio<br />

a uma carta de Melanchton não pode significar alguma diferença significativa com Melanchton,<br />

do contrário não faria sentido se unirem na confrontação de um colega.<br />

47


HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS<br />

durante a vida de Lutero (v.g., Confissão de Augsburgo, 1530) quanto depois<br />

de sua morte (Fórmula de Concórdia, 1577). 16<br />

Toda essa discussão sobre a correta leitura de Lutero confirma que não<br />

é fácil discernir com precisão o grau com o qual Lutero apreendeu o aspecto<br />

forense da justificação e quando ele o teria feito. Parte dessa dificuldade em<br />

interpretá-lo é refletida ainda em sua vida, como veremos mais adiante neste<br />

artigo. No entanto, ele foi fundamental em apontar para a obra de Cristo para<br />

alguém ser aceito diante de Deus.<br />

O elemento forense da justificação ficaria mais nítido na pena de Filipe<br />

Melanchton. Se Lutero lançou o fundamento de uma justiça extrínseca a nós,<br />

é principalmente com Melanchton que o conceito de justiça imputada é desenvolvido.<br />

17 Stephen Strehle historia que a partir da tradução de Erasmo de<br />

Roterdã de Romanos 4:3 (traduzindo o grego logizomai por imputo ao invés<br />

de reputo, como na Vulgata), Melanchton passou a enfatizar a obra de Cristo<br />

e o aspecto forense. Na Apologia da Confissão de Augusburgo, escrita por<br />

Melanchton em 1531, ele afirma que ser justificado “não significa que um<br />

homem ímpio é feito justo, mas que ele é pronunciado justo de uma forma<br />

forense” (artigo 4, parágrafo 252). Na controvérsia com Andreas Osiander,<br />

Melanchton o acusou de trocar a “causa”, que é a obra de Cristo, pelo “efeito”,<br />

por falar de justificação sobre as nossas obras resultantes da novitas criada<br />

em nós. 18<br />

Essa doutrina da justificação propagada por Lutero e lapidada por Melanchton<br />

se tornou o estandarte da reforma “evangélica” (termo usado para se<br />

referir aos luteranos no começo da Reforma), uma doutrina tão cardeal para<br />

Lutero que ele a chamou de “o artigo pela qual a igreja se sustenta ou cai”. Ele<br />

temia que após a sua morte essa doutrina viesse a ser distorcida. Ele escreveu<br />

que Satanás, no que lhe é possível, tenta impedir “que a salutar doutrina da<br />

justificação permaneça pura na Igreja”. 19 Esse temor se explica não só pelos<br />

séculos de teologia escolástica que obscurecera o fulcro da teologia paulina<br />

16 TRUEMAN, Simul peccator et justus, p. 90-91.<br />

17 MCGRATH, Iustitia Dei, p. <strong>22</strong>9; LOHSE, Bernhard. Martin Luther’s Theology: Its Historical<br />

and Systematic Development. Minneapolis: Fortress Press, 1999, p. 262; cf. GREEN, Lowell. How<br />

Melanchthon Helped Luther Discover the Gospel: The Doctrine of Justification in the Reformation.<br />

Fallbrook, CA: Verdict, 1980.<br />

18 STREHLE, Stephen. Imputatio iustitiae: Its Origin in Melanchthon, Its Opposition in Osiander.<br />

In: Theologische Zeitschrift, vol. 50, no. 3 (1994), p. 201-219. “Para Osiander, o conceito melanchtoniano<br />

de justificação como somente ‘declarar justo’ era totalmente inaceitável: a justiça salvadora era nenhuma<br />

outra senão a inerente justiça essencial de Cristo, provinda de sua divindade ao invés de sua humanidade.<br />

A justificação, portanto, deve ser entendida como consistindo da infusão da justiça essencial de Cristo”.<br />

MCGRATH, Iustitia Dei, p. 241-242.<br />

19 LUTERO, Martinho. Obras selecionadas. Vol. 4: Debates e controvérsias, II. São Leopoldo/<br />

Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1993, p. 394.<br />

48


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65<br />

de justificação, 20 mas porque mesmo em vida Lutero experimentou confusão<br />

nessa doutrina com a chamada “controvérsia antinomista”.<br />

A controvérsia antinomista girou em torno do papel da lei na justificação.<br />

Um dos seus discípulos, João Agrícola 21 (1594-1566), passou a defender<br />

interpretações do Lutero mais jovem sobre o arrependimento ser produzido<br />

pelo evangelho à parte da lei. Tais interpretações suscitaram a oposição do<br />

próprio Lutero e de Melanchton. Posteriormente à morte de Lutero, o assunto<br />

voltou a ser alvo de polêmica e a posição luterana oficial foi estabelecida na<br />

Fórmula de Concórdia (1577). Esse segundo momento esclareceu e ratificou<br />

pontos que já estavam presentes na primeira controvérsia.<br />

O propósito deste artigo é resumir a controvérsia antinomista em contextos<br />

luteranos do século 16 para suscitar pontos de contato com antinomismos<br />

na Inglaterra do século 17 e lições para os nossos dias. Tais conexões visam<br />

apontar “pontos cegos” de algumas tradições teológicas dentro do movimento<br />

evangélico e apontar a necessidade de cada geração compreender as implicações<br />

de um entendimento adequado de lei e evangelho. Por isso, começaremos nossa<br />

história apresentando o binômio lei/evangelho como estrutura da justificação<br />

para, então, compreendermos os detalhes da controvérsia antinomista como a<br />

busca por uma compreensão evangélica da lei.<br />

1. ESTRUTURA DA JUSTIFICAÇÃO: LEI E EVANGELHO<br />

A distinção entre lei e evangelho é estrutura fundamental de toda a teologia<br />

evangélica de Lutero. E ela ganhou contornos ainda mais claros na controvérsia<br />

antinomista, quando Lutero respondeu perguntas suscitadas quanto ao lugar<br />

da lei. Paul Althaus afirma que para Lutero, a lei não era encontrada apenas<br />

no Antigo Testamento, pois até Cristo pregou a lei, confirmando a lei mosaica<br />

e interpretando-a no “evangelho” (aqui a expressão era usada por Lutero no<br />

sentido amplo, envolvendo toda a proclamação de Jesus e dos apóstolos). <strong>22</strong><br />

Lei, portanto, é tudo que nos faz perceber o pecado e acusa nossa consciência,<br />

independentemente de estar em Cristo ou em Moisés. 23 O evangelho, num<br />

sentido mais restrito, é a boa nova de salvação. De acordo com Althaus, a fé<br />

sempre se move da lei para o evangelho, mas nunca faz o trajeto inverso. 24<br />

20 GEORGE, Teologia dos reformadores, p. 70.<br />

21 “Seu nome era Johann Schneider, que se transformou em ‘Schnitter’ (ceifeiro). Aplicado à<br />

agricultura, se tornou ‘Agrícola’ em latim, como era uso na época”. WARTH, Martim C. Introdução<br />

a “Lutero e os antinomistas”. In: LUTERO, Obras selecionadas, vol. 4, p. 376.<br />

<strong>22</strong> Quando Lutero afirma que Cristo “censura, acusa, ameaça, aterroriza por todo o Evangelho<br />

e exerce semelhantes ofícios da lei”, ele está usando o termo “evangelho” para se referir aos escritos<br />

apostólicos que também incluem a lei. LUTERO, Obras selecionadas, vol. 4, p. 386.<br />

23 ALTHAUS, Paul. The Theology of Martin Luther. Minneapolis: Fortress Press, 1966, p. 261.<br />

24 Ibid., p. 265.<br />

49


HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS<br />

Markus Wriedt resume a teologia de Lutero assim:<br />

Por lei, Lutero entendia todas as afirmações da Escritura que descobrissem os<br />

pecados dos seres humanos e os acusassem. Em contraste, o evangelho inclui<br />

todas as afirmações que prometem conforto, redenção e a graça de Deus. O<br />

evangelho não pode estar limitado ao corpo de texto contido no Novo Testamento,<br />

nem pode cada verso da Escritura ser exclusivamente designado como<br />

evangelho ou lei. Suas respectivas funções são reveladas num contexto de<br />

relacionamentos complexos, a situação pessoal do ouvinte ou leitor, e o plano<br />

de salvação de Deus como um todo. 25<br />

Além de reforçar que lei e evangelho estão presentes em toda a Escritura,<br />

inseparavelmente entremeados, Wriedt está dizendo que as mesmas porções<br />

da Escritura podem assumir funções diferentes dependendo da situação do<br />

ser humano.<br />

Bernhard Lohse faz um resumo semelhante dessa importante distinção<br />

entre lei e evangelho em Lutero, que se fundia com sua doutrina da justificação.<br />

A distinção é uma nova versão da distinção agostiniana entre “lei e graça” proposta<br />

pelo bispo de Hipona em De Spiritu et Littera. 26 Lohse diz que o sentido<br />

de Agostinho era histórico-redentivo, enquanto que em Lutero lei e evangelho<br />

se mantinham em relação dialética tanto na antiga como na nova aliança. 27 Lei<br />

e evangelho não podem ser associados com Antigo e Novo Testamentos, nem<br />

com passagens específicas, como se um texto fosse só lei e outro somente<br />

evangelho. A maioria das passagens bíblicas tem ambos misturados.<br />

Ainda que não devamos cultivar uma visão reducionista de Agostinho,<br />

como se ele restringisse a graça ao período neotestamentário, 28 a verdade é<br />

que essa distinção foi trabalhada pela tradição agostiniana. Heiko Oberman<br />

mostra como o teólogo medieval Gabriel Biel (†1495) expôs seminalmente<br />

alguns conceitos desenvolvidos por Lutero. 29 Como Lutero conhecia a teologia<br />

de Biel, talvez ele tenha se apoiado mais em pensadores medievais do que se<br />

admite. No entanto, é inegável que Lutero tenha sido inovador ao enxergar<br />

lei e evangelho como uma lente hermenêutica para a Bíblia, uma estrutura de<br />

categorias teológicas abrangentes.<br />

25 WRIEDT, Markus. Luther’s Theology. In: MCKIM, Donald K. (Org.). The Cambridge Companion<br />

to Martin Luther. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 106.<br />

26 “A lei é dada para que a graça seja buscada; a graça é dada para que a lei seja cumprida”. De<br />

Spiritu et Littera 19.34.<br />

27 LOHSE, Martin Luther’s Theology, p. 268.<br />

28 João Calvino, por exemplo, cita Agostinho inúmeras vezes no capítulo em que ele trabalha a<br />

graça presente na antiga aliança. CALVIN, John. Institutes of the Christian Religion. Ed. John T. McNeill,<br />

trad. Ford L. Battles. Philadelphia: The Westminster Press, 1960, II.vii (p. 348-366).<br />

29 OBERMAN, Heiko A. The Harvest of Medieval Theology: Gabriel Biel and Late Medieval<br />

Nominalism. Grand Rapids: Baker Academic, 2000, p. 112-119.<br />

50


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65<br />

A distinção sem separação deveria ser mantida com muito zelo. A lei só<br />

pode cumprir a função intentada por Deus quando vista em contraste com o<br />

evangelho, assim como o evangelho é propriamente pregado somente em contraste<br />

com a lei. A Escritura tem uma natureza dupla. Enquanto lei ela ensina<br />

o que são as boas obras, mas não nos fornece poder para realizá-las. Contudo,<br />

enquanto evangelho, a Escritura nos convida à fé a fim de que a promessa de<br />

Deus realize o que os mandamentos exigem. 30 O termo “lei” carrega um sentido<br />

mais negativo para Lutero, e seu gosto amargo cessará apenas no porvir,<br />

quando não mais revelará nosso pecado. 31<br />

Lutero fala de um “duplo uso da lei”, quando expõe o decálogo em 1523.<br />

O conceito de “usos” da lei em relação às suas várias funções e efeitos, conforme<br />

Lohse, é sem precedentes na tradição cristã. 32 Tal conceito está mais<br />

amadurecido nas palestras sobre Gálatas em 1531, mas Lutero não lhe dá<br />

nenhuma tratativa sistemática mais elaborada. O primeiro uso é o “político”<br />

ou “cívico” e o segundo é “teológico” ou “pedagógico”. O primeiro assegura<br />

ordem na terra e justiça entre os homens. A igreja não deve ensinar as autoridades<br />

a governar, mas deve lembrá-las da tarefa dada por Deus de assegurar<br />

paz exterior e ordem neste mundo transitório. 33 O segundo uso é o espiritual,<br />

para convencer as pessoas de seus pecados. A lei “acusa”, “causa horror”<br />

no pecador culpado. Ela revela a pecaminosidade e a aumenta, mas não pode<br />

assistir no alcance da justiça que vem por meio do evangelho. Este segundo<br />

uso, se não conduzir a Cristo, leva ao desespero ou à autojustiça.<br />

Em continuidade com a tradição cristã, Lutero fala da lei natural encravada<br />

no coração de todos os homens. Pessoas de diversas épocas e lugares<br />

reconhecem certos crimes. Todavia, como não se pode tirar conclusões de tal<br />

conhecimento nato, Deus renovou o conhecimento da lei através de Moisés. 34<br />

A corrupção da natureza humana também obscurece a cognição natural da lei.<br />

30 WENGERT, Timothy J. Law and Gospel: Philip Melanchthon’s Debate with John Agricola of<br />

Eisleben over Poenitentia. Texts & Studies in Reformation & Post-Reformation Thought. Grand Rapids:<br />

Baker, 1997, p. 17.<br />

31 James Nestingen traz uma citação de Lutero no qual o reformador fala que no futuro a lei não<br />

seria abolida, mas permaneceria ainda a ser cumprida pelos condenados ou já cumprida pelos fiéis. Essa<br />

linguagem histórica de “já” cumprida pelos fiéis e “ainda não” parece reforçar que a lei em Lutero é<br />

“essencialmente” reveladora de pecado. Enquanto Nestingen tenta utilizar essa e outras citações para<br />

distanciar Lutero tanto de Melanchton quanto da Fórmula de Concórdia, não se pode concluir a partir<br />

dessa argumentação que Lutero tinha uma visão consistentemente positiva da lei, nem que ele tenha<br />

proposto algo que foi abandonado pela tradição luterana. Cf. NESTINGEN, James A. Changing the<br />

Definitions: The Law in Formula VI. Concordia Theological Quarterly 69 (2005), p. 262-263.<br />

32 LOHSE, Martin Luther’s Theology, p. 270.<br />

33 Ibid., p. 272.<br />

34 Ibid., p. 274.<br />

51


HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS<br />

“Por isso foi e sempre é necessário transmitir às pessoas esse conhecimento<br />

da lei, para que conheçam a magnitude de seu pecado, da ira de Deus, etc.”. 35<br />

Filipe Melanchton foi quem organizou os três usos da lei, começando<br />

em 1528, e desenvolvendo o conceito na década de 1530. Porém, isto não<br />

significa que Lutero não visse utilidade para a lei na vida do justificado. Suas<br />

exposições do Decálogo atestam sua preocupação de ensinar a lei de Deus ao<br />

povo. Além de continuamente relembrá-lo de que não consegue satisfazer a<br />

exigência divina de justiça, a lei tem uma função educativa. Todavia, por causa<br />

do antagonismo paulino contra a lei absorvido pelo reformador alemão, Lutero<br />

prefere falar de ‘mandamento’ antes do que de ‘lei’. 36 O propósito duradouro<br />

da ‘lei’, para Lutero, era expor a pecaminosidade humana. 37<br />

2. A OPOSIÇÃO DE AGRÍCOLA<br />

A controvérsia antinomista, despertada em meios luteranos enquanto<br />

Lutero ainda vivia, lidou com duas questões importantes: primeiramente, se a<br />

pregação do arrependimento (poenitentia) pertence teologicamente à exposição<br />

da lei ou deve seguir à pregação do evangelho; em segundo lugar, em que<br />

medida é tarefa da igreja pregar a lei. 38 Em relação à segunda questão, Lutero<br />

vigorosamente protestou contra a tese antinomista (não encontrada em Agrícola,<br />

mas provavelmente proferida pelos seus adeptos) de que a igreja deveria<br />

pregar o evangelho e o decálogo pertencia ao âmbito político. Lutero cria que<br />

a lei também deveria ser pregada nas igrejas. 39<br />

Em relação à primeira, é importante destacar que a falta de sistematização<br />

teológica de Lutero permitiu interpretações diferentes. No começo de sua<br />

oposição a Roma, Lutero chegou a dizer tanto que o arrependimento pertencia<br />

à esfera legal quanto que “o verdadeiro arrependimento” começa “com o amor<br />

pela justiça e por Deus”. 40 Ele disse tanto que a “verdadeira contrição é fruto da<br />

percepção da bondade de Deus em Cristo”, quanto enfatizou a necessidade<br />

da pregação da lei para despertar o senso de pecado como algo preliminar à<br />

pregação do evangelho da graça. 41<br />

João Agrícola, de Eisleben, um pupilo de Lutero desde as palestras de<br />

Romanos em 1515-1516, apropriou-se apenas de parte desse ensino e enfatizou<br />

que o arrependimento é um fruto do evangelho já que a lei não conduz à fé.<br />

35 LUTERO, Obras Selecionadas, vol. 4, p. 395.<br />

36 LOHSE, Martin Luther’s Theology, p. 275.<br />

37 WRIEDT, Luther’s Theology, p. 107.<br />

38 LOHSE, Martin Luther’s Theology, p. 178; WRIEDT, Luther’s Theology, p. 106.<br />

39 LUTERO, Obras Selecionadas, vol. 4, p. 381, 416.<br />

40 LOHSE, Martin Luther’s Theology, p. 178-179.<br />

41 MACKINNON, James. Luther and the Reformation. Vol. 4. New York: Russell & Russell, 1962,<br />

p. 163.<br />

52


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65<br />

Agrícola consistentemente expressou uma baixa estima da lei e sua função,<br />

além de definir o arrependimento como uma nova forma de pensar baseada na<br />

promessa antes do que como afeições interiores do indivíduo. 42 Para Agrícola,<br />

à parte da fé somos incapazes de qualquer conhecimento do pecado. 43 Por<br />

isso, somos chamados a pregar o evangelho do arrependimento, não a lei do<br />

arrependimento. Cristo cumpriu a lei e, por conseguinte, a aboliu como forma<br />

de salvação; o evangelho não consiste em regras, pois a lei não foi dada para<br />

o justo (ver 1Tm 1.8-9). 44 Agrícola assume que lei deva ser identificada com o<br />

Antigo Testamento e o evangelho com o Novo. É no evangelho que Deus nos<br />

dita como devemos viver. Como Cristo emitiu novas leis, o evangelho também<br />

é, de certa forma, uma lei. 45<br />

Quem o enfrentou mais intensamente em disputa teológica na década<br />

de 1520 foi Melanchton. Este acreditava que o conhecimento da lei era absolutamente<br />

necessário para se experimentar o evangelho nos corações, um<br />

primeiro passo na vida de fé. Por vezes ele enfatizava o terror que devemos<br />

ter em relação à ira de Deus por causa de nossos pecados. Comentando os Dez<br />

Mandamentos, Melanchton escreveu: “Onde não há temor, não pode haver<br />

fé. Pois a fé deve confortar o coração aterrorizado, de tal forma que sustenta<br />

firmemente que Deus perdoou o pecado por causa de Cristo”. 46 Melanchton<br />

fez várias críticas veladas ao pensamento de Agrícola na primeira edição de<br />

seu Comentário de Colossenses (1527). 47<br />

A controvérsia eclodiu publicamente quando Agrícola escreveu a Lutero<br />

uma carta em agosto de 1527 reagindo ao ensino de Melanchton a outros pastores.<br />

O eleitor 48 da Saxônia autorizara uma visita às igrejas de seu principado<br />

e Melanchton foi designado para escrever um resumo da teologia que guiaria<br />

os pastores da Saxônia. Nessa obra de Melanchton de 1527 (“Instruções aos<br />

Visitadores das Igrejas da Saxônia”), ele encorajou os visitadores a pregarem a<br />

lei aos espiritualmente calejados a fim de produzir contrição e assim prepará-los<br />

para a fé salvadora no evangelho, e dividiu o arrependimento (poenitentia) em<br />

contrição, confissão e satisfação: a lei conduz o pecador à convicção de que<br />

pecou (a parte principal do arrependimento), depois ele é levado a reconhecer<br />

seu pecado diante de Deus, e então recebe perdão por intermédio da obra expiatória<br />

de Cristo. Ele estava seguindo a linguagem dos teólogos medievais,<br />

42 WENGERT, Law and Gospel, p. 45, 74.<br />

43 Ibid., p. 73.<br />

44 Ibid., p. 85-86.<br />

45 LOHSE, Martin Luther’s Theology, p. 181.<br />

46 Apud WENGERT, Law and Gospel, p. 78.<br />

47 Cf. Ibid., p. 79-94.<br />

48 O eleitor era o príncipe alemão que tinha o direito de participar da escolha do imperador do<br />

Sacro Império.<br />

53


HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS<br />

mas trocando o conceito de satisfação por meio das obras e substituindo-o<br />

pela propiciação de Cristo pelos nossos pecados. 49 No entanto, ele claramente<br />

destacou a importância da contrição e de como as pessoas devem ser constantemente<br />

exortadas a tal por intermédio da lei, para que não haja libertinagem<br />

ou falsa segurança. 50<br />

Agrícola rejeitou essa abordagem como sendo descaridosa e romanista<br />

(principalmente por causa da terminologia antiga). 51 Agrícola criticou Melanchton<br />

por enfatizar que a tristeza pelo pecado vinha não do evangelho<br />

e do amor de Deus, mas pelo temor da punição incitado pela lei. Agrícola se<br />

contrapunha dizendo que a lei não conduz ao arrependimento, mas somente<br />

ao orgulho (rei Saul) ou ao desespero (Judas). Só o crente no evangelho pode<br />

chegar ao arrependimento (Pedro). 52 A verdadeira pregação de arrependimento,<br />

no contexto eclesiástico, não deveria focar na violação da lei, mas na violação<br />

do Filho de Deus, com quem os crentes foram unidos no batismo. 53<br />

Mediante a preocupação do príncipe com tal controvérsia, Lutero precisou<br />

intermediar o desacordo entre dois dos seus alunos mais destacados. Lutero<br />

garantiu ao monarca que a terminologia era antiga, mas não havia retorno à<br />

doutrina papal. 54 Foi em uma confrontação pública no castelo do eleitor em<br />

Torgau, em 1527, que um posicionou-se a favor de fé pressupondo o arrependimento,<br />

e o outro colocou-se contra; no mesmo encontro Lutero fez distinções<br />

entre tipos de fé para apaziguar o desafeto. 55 Em meio a uma guerra de<br />

palavras, Lutero sugeriu que cada lado cedesse. Agrícola não foi convencido<br />

pela fórmula conciliatória de Lutero (nem Melanchton mudou sua teologia),<br />

e continuou ensinando sua teologia alegando estar calcado no que Lutero ensinou<br />

no começo do movimento da Reforma. A antítese entre lei e evangelho<br />

ensinada por Lutero e Melanchton era considerada por Agrícola como pura,<br />

mas essa pureza estava sendo abandonada com a mistura de Moisés e Cristo 56<br />

Enquanto Melanchton se fortalecia no entendimento da lei e desenvolvia a<br />

49 WENGERT, Law and Gospel, p. 98.<br />

50 Ibid., p. 100, 102.<br />

51 Lutero já rompera definitivamente com o sacramento medieval da penitência no seu tratado de<br />

1520, O Cativeiro Babilônico da Igreja. WENGERT, Law and Gospel, p. 16.<br />

52 WENGERT, Timothy J. Antinomianism. In: HILLERBRAND, Hans J. (Org.). The Oxford<br />

Encyclopedia of the Reformation, vol. 1, p. 51.<br />

53 Ibid., p. 52. Ironicamente, essa distinção entre violação da lei (não mais sendo o problema do<br />

cristão) e violação do Filho de Deus é semelhante à dicotomia entre pacto de obras e pacto da graça<br />

encontrada em arminianos e neonomistas, antes do que em antinomistas ingleses do século 17. Cf.<br />

CAMPOS JÚNIOR, O lugar da fé e da obediência na justificação, p. 360, 365.<br />

54 WENGERT, Antinomianism, p. 51.<br />

55 BENTE, F. Historical Introductions to the Book of Concord. St. Louis, MO: Concordia Publishing<br />

House, 1965, p. 163.<br />

56 MACKINNON, Luther and the Reformation, vol. 4, p. 164.<br />

54


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65<br />

noção do “terceiro uso da lei” (1534; terceira edição do Comentário de Colossenses),<br />

diminuía a função que Agrícola concedia aos Dez Mandamentos<br />

na vida do cristão. 57 A insistência de Agrícola acabou suscitando a oposição<br />

de Lutero na década seguinte.<br />

3. A RESPOSTA DE LUTERO<br />

A controvérsia antinomista, com a participação de Lutero, é costumeiramente<br />

datada de 1537 a 1540. 58 Depois de uma convivência menos bélica na<br />

década de 1520, Agrícola voltou a Wittenberg em 1536 e Lutero cordialmente<br />

o apontou como seu substituto tanto no púlpito quanto nas palestras da universidade<br />

quando Lutero precisou se ausentar para a Conferência de Esmalcalda<br />

no início de 1537. Meses depois Lutero ficou sabendo por seus amigos que o<br />

seu substituto suscitava inovações em seus sermões. Simultaneamente, algumas<br />

teses que atacavam Lutero e Melanchton por abandonar sua teologia em<br />

prol do legalismo circulavam anonimamente. 59 A situação se agravou quando<br />

Agrícola burlou a supervisão de Lutero ao submeter uma obra para publicação<br />

cuja introdução argumentava que o arrependimento e o perdão deveriam ser<br />

pregados somente com base no evangelho. 60<br />

Lutero não deixou de proferir seus ensinamentos nessa polêmica, primeiramente<br />

através de debates (disputationes) em 1537 e 1538, e depois através do<br />

tratado Contra os Antinomistas, escrito em 1539. Os debates promovidos por<br />

Lutero foram três e Agrícola esteve presente apenas no segundo deles, quando<br />

admitiu seus erros publicamente. Como Lutero ouviu que Agrícola havia sido<br />

insincero, promoveu um terceiro debate, mas sem a presença de Agrícola. Em<br />

dezembro de 1538, ele aproximou-se de Lutero pedindo que este escrevesse<br />

uma revogação oficial que ele assinaria. A obra de Lutero de 1539 contém uma<br />

frase que funciona como uma revogação, mas em meio a severas críticas contra<br />

Agrícola e seus seguidores, colocando-os lado a lado com seus maiores<br />

adversários. Agrícola se sentiu humilhado e, por isso, apelou ao reitor da universidade,<br />

depois ao eleitor da Saxônia, para uma investigação mais imparcial.<br />

Tal atitude qualificou Agrícola como desonesto diante de seus ex-amigos e ele<br />

acabou fugindo para Berlin em 1540 para uma função de pregador na corte<br />

do eleitor Joaquim II. Posteriormente, a pedido de Melanchton, ele removeu<br />

sua reclamação formal contra Lutero, apresentou uma revogação teológica e<br />

57 WENGERT, Antinomianism, p. 52.<br />

58 Para uma cronologia detalhada desses anos de embate entre Lutero e Agrícola, focando mais<br />

nos eventos do que na teologia, ver: EDWARDS, Mark U., Jr. Luther and the False Brethren. Stanford,<br />

Califórnia: Stanford University Press, 1975, p. 156-179.<br />

59 WENGERT, Antinomianism, p. 52.<br />

60 EDWARDS, Luther and the False Brethren, p. 158-162.<br />

55


HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS<br />

conseguiu reaver formalmente sua relação com as autoridades da Saxônia. 61<br />

No entanto, isso não evitou que essa tivesse sido uma das controvérsias mais<br />

amargas para Lutero, por ter acontecido dentro de seu próprio círculo de amigos.<br />

Lutero procurou “limpar o seu nome” de associações dos antinomistas<br />

com o seu ensino. Por isso, em seus escritos antinomistas ele é firme em suas<br />

afirmações. Ele entendia que quem abolisse a lei acabava abolindo o evangelho.<br />

Afinal, sem lei não há pecado, e se não há pecado Cristo não é nada; portanto,<br />

qualquer propósito diabólico de remover a lei, na verdade, tenta remover a<br />

Cristo, o cumpridor da lei. 62 Além disso, eliminar a lei é transformar o evangelho<br />

em uma nova lei, o que suscitaria a ira divina. 63 Quando os antinomistas ligavam<br />

a ira de Deus com o evangelho (interpretação de Romanos 1) e a penitência<br />

como resultante de profanar o Filho, Lutero responde que a revelação da ira é<br />

a mesma coisa que a revelação de pecado pela lei; não se pode confundir lei<br />

e evangelho. 64 Para Lutero, deve haver pregação tanto da lei quanto do evangelho<br />

para o arrependimento. 65 E isso é necessário tanto aos piedosos quanto<br />

aos ímpios. Estes precisam da lei para reconhecer seu pecado e os piedosos<br />

precisam crucificar sua carne constantemente. 66<br />

A lei não é necessária para a justificação no que tange à causalidade – ela<br />

mata e, por isso, não conduz à justificação –, mas é um pressuposto necessário<br />

conhecer e experimentar a lei a fim de entender a Cristo. 67 Na Bíblia, a sequência<br />

sempre é a de que a palavra de conforto do evangelho é precedida pela lei de<br />

juízo. 68 Em Romanos, Paulo primeiro chamou a atenção de seus leitores para a<br />

ira de Deus diante de pecadores culpados para depois ensinar-lhes como obter<br />

misericórdia e ser justificados. 69 Quanto ao arrependimento, Lutero entendia que<br />

incluía tanto a lei como o evangelho. Ele é primeiro evocado com a pregação<br />

da lei, mas para conduzir à conversão e não ao desespero, ele é efetuado pela<br />

pregação do evangelho. Enquanto a lei despertava a consciência do pecado e<br />

o desespero da perdição, só o evangelho era capaz de acalmar a consciência<br />

61 BRECHT, Martin. Martin Luther: The Preservation of the Church, 1532-1546. Minneapolis:<br />

Fortress, 1994, p. 169.<br />

62 LUTERO, Obras selecionadas, vol. 4, p. 383-384, 392; LUTERO, M. Against the Antinomians.<br />

In: LEHMAN, Helmut T. (Org.). Luther’s Works. Vol. 47: The Christian in Society IV. Philadelphia:<br />

Fortress Press, 1971, p. 110.<br />

63 WENGERT, Antinomianism, p. 52.<br />

64 LUTERO, Obras Selecionadas, vol. 4, p. 407-409.<br />

65 LUTERO, Against the Antinomians, p. 111-112.<br />

66 LUTERO, Obras selecionadas, vol. 4, p. 391, 402, 414-415.<br />

67 Ibid., p. 382-383, 406. A distinção escolástica é que a lei não é necessária “causaliter”, mas é<br />

necessária “materialiter”. LOHSE, Martin Luther’s Theology, p. 182.<br />

68 BRECHT, Martin Luther: The Preservation of the Church, p. 161.<br />

69 LUTERO, Obras selecionadas, vol. 4, p. 395-396; LUTERO, Against the Antinomians, p. 114.<br />

56


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65<br />

perturbada. Tanto a condenação da lei quanto a salvação do evangelho verbalizam<br />

o ensino do Espírito. A lei permanecerá válida para toda a eternidade,<br />

descumprida nos condenados e cumprida nos remidos; 70 por isso, Lutero<br />

considerava um erro satânico afirmar que a validade da lei era meramente<br />

temporária. A lei foi cumprida em Cristo, começa a ser cumprida na vida do<br />

fiel e é aperfeiçoada na vida do porvir. “A lei não faz nada na justificação, mas<br />

a justificação é necessária para cumprir a lei”. 71 Era assim que Lutero visava<br />

harmonizar seus ensinamentos anteriores sobre lei e evangelho. 72<br />

James MacKinnon faz uma longa citação de Lutero para mostrar que essa<br />

harmonização veio a partir do entendimento de que certos momentos exigem<br />

ênfases distintas. No começo de seu ensino, Lutero enfatizara o evangelho,<br />

pois para a consciência de homens oprimidos e aterrorizados pelo papa não<br />

havia a necessidade de inculcar a lei. Naquele tempo, os homens estavam tão<br />

moídos pelo papado e tão conduzidos ao desespero, que era necessário tirá-los<br />

de sua miséria o mais rápido possível. No final da década de 1530, contudo,<br />

os tempos eram outros. Porém, sem discernir tal diferença os antinomistas de<br />

palavras mansas acabavam assegurando aqueles que já estavam tão seguros<br />

que poderiam até cair da graça. Para o aflito e contrito prega-se a graça o<br />

máximo possível, mas não para os seguros, desleixados, adúlteros e blasfemos. 73<br />

Essa história demonstra que ênfases são necessárias, mas elas também trazem<br />

perigos de distorção e desequilíbrio.<br />

J. Wayne Baker faz uma conexão entre o aspecto teológico e o aspecto<br />

social do pensamento de Lutero. Ele alega que Agrícola não compreendeu o<br />

ensino de Lutero de simul iustus et peccator no contexto da doutrina dos dois<br />

reinos. Pois, se por um lado o cristão está livre da lei por ter sido justificado,<br />

como ele ainda é pecador no reino temporal, ele fica sujeito à lei enquanto<br />

permanecer na carne. 74 O próprio Lutero, no primeiro debate contra os antinomistas,<br />

afirmou que pecado e justiça existem em nós em graus diferentes. 75<br />

Era assim que ele se referia à tensão da vida cristã. Por outro lado, o desen-<br />

70 LUTERO, Obras selecionadas, vol. 4, p. 396, 397, 405; BRECHT, Martin Luther: The Preservation<br />

of the Church, p. 159.<br />

71 BRECHT, Martin Luther: The Preservation of the Church, p. 163.<br />

72 MACKINNON, Luther and the Reformation, vol. 4, p. 167-168.<br />

73 MACKINNON, Luther and the Reformation, vol. 4, p. 171-172. Paul Althaus diz que essa citação<br />

vem do Terceiro Debate contra os Antinomistas (até o momento apenas em alemão na coleção crítica<br />

de Weimar) e comprova que o espírito da época exige diferentes tipos de pregação. ALTHAUS, The<br />

Theology of Martin Luther, p. 262, nota 74.<br />

74 BAKER, J. Wayne. Sola Fide, Sola Gratia: The Battle for Luther in Seventeenth-Century<br />

England. The Sixteenth Century Journal, vol. 16, no. 1 (Spring 1985), p. 118.<br />

75 LUTERO, Obras selecionadas, vol. 4, p. 403.<br />

57


HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS<br />

tendimento de Agrícola não foi único. Outros debates em torno desse assunto<br />

surgiriam no mundo luterano e exigiriam uma resposta mais clara e definitiva.<br />

4. RATIFICAÇÃO NA FÓRMULA DE CONCÓRDIA<br />

A discussão não cessou durante a vida de Lutero e Melanchton. A Fórmula<br />

de Concórdia (1577), que define a ortodoxia luterana em meio às controvérsias<br />

internas, gasta os capítulos 5 (“Lei e Evangelho”) e 6 (“A Terceira Função da<br />

Lei”) para tratar da questão antinomista.<br />

No capítulo 5, a pergunta levantada é a seguinte: “É a pregação do Santo<br />

Evangelho estritamente falando somente uma pregação da graça que proclama<br />

o perdão dos pecados, ou é também uma pregação de arrependimento e reprovação<br />

que condena a descrença, já que a incredulidade é condenada não só<br />

na lei mas por todo o evangelho?” 76 Seguindo o sentido amplo de evangelho<br />

como “toda a doutrina de Cristo”, destacado por Melanchton, a tendência dos<br />

“filipistas” (Viktorin Strigel, Paul Crell) – como eram chamados os seguidores<br />

de Filipe Melanchton – era defender que o evangelho também era doctrina poenitentiae,<br />

reprovando o maior dos pecados, a incredulidade. O partido oposto<br />

(os principais representantes eram Matthias Flacius, Matthias Judex e Johann<br />

Wigand) entendia que o evangelho não é uma proclamação de arrependimento<br />

– uma função restrita à lei – mas apenas de graça e misericórdia. 77 Estes<br />

julgavam que tal conceito amplificado de evangelho confunde lei e evangelho.<br />

A resposta da Fórmula constitui em fazer uma distinção entre as duas<br />

formas em que a palavra ‘evangelho’ é utilizada. Ora “evangelho” significa<br />

toda a doutrina de Cristo conforme o Novo Testamento, e nesse caso engloba a<br />

chamada ao arrependimento e ao perdão de pecados (Mc 1.1, 4), ora é contrastado<br />

com a lei (Moisés), onde já não representa uma proclamação de contrição,<br />

mas, estritamente falando, apresenta uma mensagem confortadora para os de<br />

consciência ferida, vivificando-os pelos méritos de Cristo (Mc 1.15). 78 Esse<br />

segundo sentido recebe maior tratativa com direito a várias citações de Lutero<br />

respaldando a distinção entre lei e evangelho. A pregação da lei sem Cristo<br />

conduz à presunção ou ao desespero. Por isso o Novo Testamento contém a lei,<br />

mas logo acrescenta as promessas da graça pelo evangelho (Gl 3.24; Rm 10.4).<br />

No capítulo 6, a Fórmula de Concórdia ratifica a tríplice divisão quanto<br />

aos usos da lei: manter disciplina externa contra homens desregrados; conduzir<br />

homens ao conhecimento de seu pecado; depois de renascidos, prover uma<br />

regra definida com a qual devem padronizar suas vidas. 79 Embora libertos da<br />

76 TAPPERT, Theodore G. (trad. e org.). The Book of Concord: The Confessions of the Evangelical<br />

Lutheran Church. Philadelphia: Fortress Press, 1959, epitome, V.1 (p. 477-478).<br />

77 Ibid., V.2 (p. 558).<br />

78 Ibid., epitome, V.5-6 (p. 478); V.3-6 (p. 558-559).<br />

79 Ibid., epitome, VI.1 (p. 479-480).<br />

58


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65<br />

maldição e da coerção da lei, não permanecem sem lei, pois foram redimidos<br />

para exercitarem-se a si mesmos na lei. “Da mesma forma nossos primeiros<br />

pais mesmo antes da Queda não viveram sem lei, pois a lei de Deus estava<br />

escrita em seus corações quando foram criados à imagem de Deus”. 80<br />

Um dos partidos ensinava que os regenerados não aprendem a nova<br />

obediência a partir da lei, mas somente pelo impulso do Espírito Santo operam<br />

espontaneamente para fazerem o que Deus exige. O outro partido não descartava<br />

a motivação do Espírito e a voluntariedade na obediência, mas compreendia<br />

que o Espírito utiliza a lei escrita para conduzir a uma vida piedosa. 81 O segundo<br />

grupo está claramente mais próximo da verdade. Por isso, a Fórmula<br />

de Concórdia ainda afirma que a pregação da lei serve não só para descrentes<br />

e impenitentes, mas também para crentes genuínos. Esse documento distingue<br />

as obras da lei e os frutos do Espírito não quanto à matéria (pois ambos obedecem<br />

a mesma lei), mas quanto à fonte motivadora (o primeiro sob coerção<br />

e ameaça, o segundo espontaneamente).<br />

Com a Fórmula de Concórdia, a ortodoxia luterana foi estabelecida quanto<br />

aos debates relacionados a lei e evangelho, justificação e santificação. No<br />

entanto, tais debates seriam revisitados na Inglaterra a partir de referenciais<br />

um pouco diferentes, ainda que com resultados semelhantes.<br />

5. DEBATE REVISITADO EM SOLO INGLÊS<br />

Se as controvérsias antinomistas em campo luterano suscitaram importantes<br />

formulações teológicas, os debates antinomistas ingleses do século 17<br />

foram ainda mais longe em levantar perguntas e promover disputas. O espectro<br />

de tópicos em solo inglês cobriu desde o papel da lei na vida do crente, o<br />

escopo do evangelho (só promessas ou inclui mandamentos?) e a natureza da<br />

fé e das boas obras, até questões como segurança da salvação, ser de Deus,<br />

história da salvação, condições pactuais, imputação do pecado e justificação<br />

desde a eternidade. Algumas dessas discussões teológicas extrapolaram a Grã-<br />

-Bretanha, invadindo o continente europeu. A literatura secundária é vastíssima<br />

sobre tais discussões e é melhor compreendida quando associada às diferentes<br />

ocasiões de tal controvérsia.<br />

Houve três ondas de antinomismo no domínio inglês no século 17, as quais<br />

levantaram discussões semelhantes. A primeira começou em Londres na década<br />

de 1620 e atingiu o seu clímax nos anos de 1640 com algumas publicações; 82<br />

80 Ibid., epitome, VI.2 (p. 480).<br />

81 Ibid., VI.2-3 (p. 564).<br />

82 KEVAN, Ernest F. The Grace of Law: A Study in Puritan Theology. Ligonier: Soli Deo Gloria<br />

Publications, 1993; CAMPBELL, K. M. The Antinomian Controversies of the 17 th Century. In: Living<br />

the Christian Life. Huntington: Westminster Conference, 1974, p. 61-81; WALLACE, Dewey D., Jr.<br />

Puritans and Predestination: Grace in English Protestant Theology, 1525-1695. Eugene, Oregon: Wipf<br />

59


HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS<br />

a segunda surgiu na colônia de Massachusetts entre 1636 e 1638 83 e a terceira<br />

brotou nos anos de 1690 na Inglaterra com a republicação de um tratado do<br />

antinomista Tobias Crisp. 84 Esta seção irá focar apenas a primeira onda e será<br />

seletiva em procurar assuntos que se conectam com as controvérsias antinomistas<br />

no contexto luterano.<br />

O alvo principal dos antinomistas ingleses foi uma suposta corrupção<br />

moralista da graça presente no puritanismo. Bozeman fala sobre os “olhos de<br />

Deus fixos sobre os fiéis” como um tema comum entre os puritanos, um patrulhamento<br />

divino que estimulava “precisão de santidade”. 85 Esse tipo de crítica<br />

ao puritanismo é claramente evidenciada nos escritos do controverso John Eaton<br />

(1575-1630?). Sua obra póstuma, The Honey-Combe of Free Justification in<br />

Christ Alone (O favo de mel da livre justificação em Cristo somente, 1642),<br />

é reputada por Bozeman como uma expressão ímpar da opinião antinomista<br />

do século 17. 86 Essa obra tem como principais adversários os protestantes que<br />

alegam defender a livre justificação, mas que não entendem a doutrina nem<br />

sentem sua “doçura”, e no afã de estabelecer sua própria justiça “não somente<br />

anulam a Livre Justificação... [mas também] enfraquecem a fé de outros... e<br />

apertam as mãos com [os papistas] nos principais pontos da salvação”. 87 Eaton<br />

& Stock, 1982; BAKER, Sola Fide, Sola Gratia, p. 115-133; BOZEMAN, Theodore Dwight. The Glory<br />

of the “Third Time”: John Eaton as Contra-Puritan. Journal of Ecclesiastical History, vol. 47, no. 4<br />

(Oct. 1996), p. 638-654; The Precisianist Strain: Disciplinary Religion & Antinomian Backlash in Puritanism<br />

to 1638. Chapel Hill: University of North Carolina, 2004, p. 183-210; COMO, David R. Blown<br />

by the Spirit: Puritanism and the Emergence of an Antinomian Underground in Pre-Civil-War England.<br />

Stanford, California: Stanford University, 2004; PARNHAM, David. The Covenantal Quietism of Tobias<br />

Crisp. Church History, vol. 75, no. 3 (Sept. 2006), p. 511-543; John Saltmarsh and the Mystery of<br />

Redemption. Harvard Theological Review, vol. 104, issue 3 (July 2011), p. 265-298; BEEKE, Joel R.<br />

e JONES, Mark. A Puritan Theology: Doctrine for Life. Grand Rapids: Reformation Heritage Books,<br />

2012, p. 135-150, 325-337.<br />

83 HALL, David D. The Antinomian Controversy, 1636-1638: A Documentary History. Middletown,<br />

Conn.: Wesleyan University, 1968; PETTIT, Norman. The Heart Prepared: Grace and Conversion in<br />

Puritan Spiritual Life. New Haven e Londres: Yale University, 1966, p. 125-157; STOEVER, William K.<br />

B. “A Faire and Easie Way to Heaven”: Covenant Theology and Antinomianism in Early Massachusetts.<br />

Middletown, Conn.: Wesleyan University, 1978; BOZEMAN, The Precisianist Strain, p. 211-332.<br />

84 TOON, Peter. Puritans and Calvinism. Swengel, PA: Reiner Publications, 1973, p. 85-106; The<br />

Emergence of Hyper-Calvinism in English Nonconformity. Eugene, OR: Wipf & Stock, 2011, p. 49-69;<br />

DANIEL, Curt. John Gill and Calvinistic Antinomianism. In: The Life and Thought of John Gill<br />

(1697-1771): A Tercentennial Appreciation, ed. Michael A. G. Haykin. Leiden: Brill, 1997, p. 171-190;<br />

RAMSEY, D. Patrick. Meet Me in the Middle: Herman Witsius and the English Dissenters. Mid-America<br />

Journal of Theology 19 (2008), p. 143-164; BRINK, Gert van den. Calvin, Witsius (1636-1708), and the<br />

English Antinomians. Church History and Religious Culture 91, ns. 1-2 (2011), p. <strong>22</strong>9-240.<br />

85 BOZEMAN, The Glory of the “Third Time”, p. 639. Como segue Bozeman nessa leitura da<br />

crítica antinomista. COMO, Blown by the Spirit, p. 188.<br />

86 BOZEMAN, The Glory of the “Third time”, p. 642.<br />

87 EATON, John, The Honey-Combe of Free Justification in Christ Alone. Londres: Robert Lancaster,<br />

1642, p. 44.<br />

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65<br />

lamentava que os puritanos falavam mais de santo proceder e menos de livre<br />

graça. Para Eaton, qualquer ênfase em santidade externa, na necessidade dos<br />

meios de graça para nutrir a verdadeira fé, na guerra virulenta contra nossos<br />

pecados e nos efeitos psicológicos sobre os fiéis para que se arrependessem<br />

eram sinais de um retorno à doutrina romana. 88<br />

Os antinomistas costumavam defender que o crente é livre da lei moral,<br />

negavam a condicionalidade do pacto da graça e outros até excluíam os imperativos<br />

do evangelho por não caberem dentro da notícia. 89 Os antinomistas<br />

tinham dificuldade com os imperativos do evangelho. John Saltmarsh, outro<br />

antinomista muito contestado, dizia que o evangelho “persuade antes que ordena...<br />

o Evangelho nos ordena por padrão antes que preceito e por imitação<br />

antes que por ordem”. 90 Este ponto vai de encontro à linguagem da Confissão<br />

de Fé de Westminster que fala em “obedecer ao evangelho” (CFW 3.8; 33.2).<br />

Mesmo no sentido restrito o evangelho contém imperativos, condições, que<br />

não são a mesma coisa que a lei. Nisto a ortodoxia diferiu dos antinomistas<br />

(dizendo que tem imperativos e condições) e dos neonomistas (dizendo que<br />

não é lei). 91<br />

Joel Beeke e Mark Jones traçam um panorama de como Samuel Rutherford<br />

e Anthony Burgess responderam às visões antinomistas sobre lei e evangelho.<br />

Esses dois grandes teólogos foram apenas dois entre os vários puritanos com<br />

grande respaldo teológico que escreveram contra os antinomistas. Em resposta<br />

à objeção antinomista de que erra quem afirma que o pacto da graça é condicional,<br />

Rutherford faz coro com a tradição protestante quando fala que as obras<br />

são necessárias para a salvação. Isto é, Deus exige obediência evangélica, a fé<br />

é colocada como condição (Catecismo Maior de Westminster, pergunta 32).<br />

Para Rutherford, o evangelho apresentava tanto indicativos como imperativos,<br />

e nessa ordem.<br />

Anthony Burgess escreveu um importante livro sobre as alegações da<br />

lei (Vindiciae Legis) em 1646. Burgess, em continuidade com a tradição reformada,<br />

distinguiu entre a lei vista de forma mais ampla (toda a dispensação<br />

mosaica contendo promessas) e de forma mais restrita (como regra de justiça,<br />

apresentando a vida sob perfeita obediência). No primeiro sentido, a lei é uma<br />

dispensação ou administração no pacto da graça e no segundo sentido a lei<br />

funciona como o pacto das obras. Quando trata do sentido mais amplo, não há<br />

88 COMO, Blown by the Spirit, p. 192, 197-199.<br />

89 BEEKE e JONES, A Puritan Theology, p. 328.<br />

90 Apud Ibid., p. 332.<br />

91 Para uma explicação de como os neonomistas se opõem aos antinomistas, ver CAMPOS JÚNIOR,<br />

O lugar da fé e da obediência na justificação, p. 362-368.<br />

61


HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS<br />

diferença essencial, mas apenas de grau. Assim como Calvino (ver comentário<br />

de 2Co 3.6-7), Burgess falava que tanto a lei quanto o evangelho condenam. 92<br />

Ernest Kevan é outro estudioso que explorou a riqueza de material puritano<br />

sobre o papel da lei nos embates contra os antinomistas. Os puritanos não<br />

só entendiam que todo pecado (original ou atual) era inconformidade com a lei,<br />

mas que a habilidade da lei de aparentemente “provocar” o pecado ao invés de<br />

restringi-lo apenas, é um “efeito acidental da Lei” – e não essencial a ela – a<br />

saber, por causa de nossa pecaminosidade. 93 Por que a lei funciona como um<br />

espelho que revela nosso pecado, os puritanos enfatizavam a necessidade de se<br />

pregar a lei, já que alguém pode ser convencido do pecado sem o evangelho,<br />

mas nunca sem a lei. 94 Inclusive, as promessas do evangelho só poderiam ser<br />

válidas para aqueles que primeiramente haviam sido “sensibilizados” quanto<br />

ao seu pecado. Argumentar que o arrependimento não é produzido pela lei, mas<br />

pelo Espírito é confundir as categorias, pois o evangelho enquanto conteúdo<br />

também é ineficiente para salvar à parte do Espírito. 95 Os antinomistas não<br />

deveriam amar o evangelho à parte da lei, pois não há oposição absoluta entre<br />

ambos. O contraste feito por Paulo é entre o uso pervertido da lei efetuado pelos<br />

judeus e o evangelho. 96 Afinal, a lei é perene e permanece como parâmetro de<br />

nossa obrigação moral. 97<br />

J. Wayne Baker diz que toda a controvérsia envolveu um debate para ver<br />

quem era genuíno seguidor de Lutero. Os pregadores ingleses considerados<br />

antinomistas eram frequentemente comparados com Agrícola por seus oponentes.<br />

Em quase 100 páginas que Samuel Rutherford gasta para descrever o<br />

debate entre Lutero e Agrícola, 98 o argumento é que os antinomistas não tinham<br />

o direito de apelar a Lutero. 99 Por outro lado, John Eaton chegou a citar Lutero<br />

mais de 100 vezes (principalmente seu Comentário de Gálatas) no seu livro<br />

sobre justificação. 100 Quando Eaton citava Lutero para rejeitar as “preparações<br />

para a graça” e enfatizar a justiça “passiva” da fé, Lutero parecia tão antino-<br />

92 BEEKE e JONES, A Puritan Theology, p. 333-334.<br />

93 KEVAN, The Grace of Law, p. 80-81.<br />

94 Ibid., p. 83-86. Para surpresa de muitos comentaristas modernos, os puritanos interpretavam o<br />

“espírito de escravidão” de Romanos 7 como uma referência à obra do Espírito de convencer os homens<br />

do pecado (p. 86-89).<br />

95 KEVAN, The Grace of Law, p. 90.<br />

96 Ibid., p. 131-134.<br />

97 Ibid., p. 167-193.<br />

98 RUTHERFORD, Samuel. A Survey of the Spiritual Antichrist. London: J. D. & R. I., 1648,<br />

p. 68-163.<br />

99 BAKER, Sola Fide, Sola Gratia, p. 118.<br />

100 Ibid., p. 121.<br />

62


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65<br />

mista como ele. 101 Todavia, David Como demonstrou de modo preciso como<br />

Eaton utilizou Lutero seletivamente, citando principalmente os seus escritos<br />

antilegalistas (v.g, o Comentário de Gálatas) enquanto ignorou as denúncias<br />

de Lutero contra Agrícola e seus seguidores; “Eaton estava em essência despertando<br />

o Lutero antinomista”. 102 Até o próprio Anthony Burgess, em meio<br />

à controvérsia, perspicazmente observou como no início Lutero destacou os<br />

abusos da lei conforme encontrados na Epístola aos Gálatas, mas que depois<br />

de observar como sua doutrina fora abusada pelos antinomistas, ele se opôs a<br />

eles no seu Comentário de Gênesis (uma de suas últimas obras). 103<br />

Em seu artigo, Baker faz críticas muito leves aos antinomistas para<br />

depois considerar Eaton como muito mais preciso do que Rutherford. Além<br />

de demonstrar imprecisão ao colocar Rutherford na mesma categoria de<br />

Baxter, 104 Baker ainda desconsidera a linguagem teológica precisa do século<br />

17 ao dizer que foram “menos precisos do que Lutero”, 105 quando na verdade<br />

vimos neste artigo que parte da primeira controvérsia antinomista com Lutero<br />

foi decorrente de sua comunicação confusa no início de seu ministério. Nos<br />

debates ingleses houve muita imprudência de termos ou ênfases exageradas<br />

de ambas as partes. 106 Eaton chegou a dizer que a expressão “Deus justifica<br />

o ímpio” significa uma justificação não só “judicial” (imputando a justiça de<br />

Cristo), mas também de significado “natural e próprio” (renovando-nos com<br />

o seu Espírito), e conclui dizendo: “Portanto, Deus não justifica nenhum ímpio,<br />

mas primeiro o torna justo e reto em e por Cristo, e depois ele é contado<br />

como justo”. 107 Sua linguagem descuidada se parece muito com o conceito<br />

de transformação do romanismo. Tal deslize ilustra como no afã de destacar<br />

algum aspecto doutrinário ou prático, alguns desses teólogos falhavam em<br />

outras áreas. Não se pode negar que o esforço por corrigir certa tendência pode<br />

trazer o perigo de exageros.<br />

101 Ibid., p. 121-1<strong>22</strong>.<br />

102 COMO, Blown by the Spirit, p. 185-186.<br />

103 BURGESS, Anthony. Vindiciæ legis: or, a vindication of the morall law and the covenants,<br />

from the errours of papists, Arminians, Socinians, and more especially, Antinomians. In XXX. lectures,<br />

preached at Laurence-Jury, London. The second edition corrected and augmented. London: printed by<br />

James Young, for Thomas Underhill, at the signe of the Bible in Wood-street, 1647, p. 21.<br />

104 BAKER, Sola Fide, Sola Gratia, p. 123-126. “Os antinomistas operaram mais claramente dentro<br />

da estrutura original de sola fide e sola gratia do que seus oponentes ortodoxos, dos quais a maioria<br />

tendia a misturar a lei moral com o evangelho... Exceto pelos antinomistas e os calvinistas mais rígidos<br />

[“high Calvinists”], a teologia da justificação em Lutero foi fortemente rejeitada ou mal-entendida no<br />

bicentenário de seu nascimento” (p. 127, 130).<br />

105 BAKER, Sola Fide, Sola Gratia, p. 133.<br />

106 Cf. JONES, Mark. Antinomianism. Phillipsburg: P&R, 2013, p. 111-121.<br />

107 EATON, The honey-combe of free justification, p. <strong>22</strong>-23.<br />

63


HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS<br />

CONCLUSÃO<br />

Essa breve história dos debates luteranos e ingleses quanto ao antinomismo<br />

comprova que assuntos como a doutrina da justificação e o entendimento da<br />

graça em relação à lei divina sempre são alvos de questionamentos e confusão.<br />

Os debates se devem não só a diferentes entendimentos de uma doutrina, mas<br />

também a ênfases e omissões quanto ao que é dito. Isso não significa minimizar<br />

a importância do debate. Afinal, ênfases podem e devem ser suscitadas por uma<br />

necessidade específica (como Lutero fez no início de seu ministério), mas as<br />

ênfases precisam ser salvaguardadas pela doutrina. Ênfases são necessárias,<br />

mas não podem ser conceitualmente confusas.<br />

Há uma necessidade de contar essa história novamente para atender a<br />

certas necessidades do cenário evangélico brasileiro e internacional. Por um<br />

lado, há os que fazem uma ligação muito estreita entre aspectos da lei mosaica<br />

e os nossos dias (adventistas, teonomistas), sem considerar as descontinuidades<br />

pertinentes ao que era sombra por conta do papel que a lei operou na história<br />

bíblica. Por outro lado, há quem promova uma rígida separação entre o Antigo<br />

Testamento e os nossos dias (alguns dispensacionalistas, teólogos da nova<br />

aliança), criando descontinuidade entre a lei de Deus no Antigo Testamento e<br />

a “lei de Cristo” no Novo Testamento. Ambos expressam um desconhecimento<br />

da distinção entre lei e evangelho enfatizada por Martinho Lutero. Enquanto a<br />

primeira tendência é um legalismo teológico, a segunda expressa uma espécie<br />

de antinomismo.<br />

Se algumas das imprecisões acima quanto ao entendimento de lei e<br />

evangelho parecem raras em certas igrejas históricas, outras têm sido muito<br />

comuns. Vemos moralismo em sermões sobre passagens do Antigo Testamento,<br />

nos quais se dá mais ênfase ao que fazemos para Deus do que ao que Deus<br />

fez e ainda faz por nós. Eles perdem de vista a grande história da salvação e<br />

como o evangelho é a grande mensagem de esperança das Escrituras (seriam<br />

fortemente criticados pelos antinomistas e ortodoxos do passado). Por outro<br />

lado, existem aqueles que restringem o “evangelho” à doutrina da justificação,<br />

e falam da “graça” que perdoa sem equilibrá-la com a graça que restaura (um<br />

tipo de antinomismo atual). Estes se esquecem de que o evangelho não só<br />

trata do que Deus fez por nós, mas também do que está fazendo em nós. 108 E<br />

tal obra de transformação envolve tanto os indicativos da obra divina em nós<br />

quanto os imperativos do que somos ordenados a fazer.<br />

Portanto, há várias lições que o contingente evangélico precisa aprender<br />

à medida que procura entender o lugar da lei divina na história da redenção.<br />

Há certas lições que são aprendidas com uma visão mais holística da história.<br />

Por exemplo, Lutero não destacou a dinâmica da graça que conduz à lei – uma<br />

108 JONES, Antinomianism, p. 45-47, 50-53.<br />

64


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65<br />

ênfase presente na tradição reformada a partir de João Calvino e seu apreço pelo<br />

terceiro uso da lei como o “principal” –, mas ele trouxe à tona a importância<br />

da lei e de termos a lei sempre em vista para entendermos o evangelho. Não<br />

é que Lutero não enxergasse a lei como tendo de ser cumprida. Ele cria que<br />

ela seria cumprida pelos crentes no porvir. No entanto, nesta vida a palavra<br />

“lei” significava mais uma ferroada (por causa do segundo uso da lei) do que<br />

um deleite. Foi a tradição reformada que enfatizou a importância de encontrar<br />

deleite na lei do Senhor. Ainda assim, o fato de Lutero não descartar a lei como<br />

parte do processo redentor foi o pontapé inicial para uma visão “evangélica”<br />

da lei. Contudo, tal visão passaria por grande desenvolvimento pelo menos<br />

até o século 17 na Inglaterra e início do século 18 na Escócia, com a Marrow<br />

Controversy (Controvérsia da Medula).<br />

ABSTRACT<br />

After presenting the essential tenets of the Lutheran doctrine of justification<br />

in dialogue with interpreters of Martin Luther, this article introduces<br />

the Antinomian Controversy with Johann Agricola in which he questions if<br />

repentance was the result of the exposition of the law or the preaching of the<br />

gospel. The law/gospel hermeneutical structure is presented as the scenario<br />

for the debate, Agricola’s opposition to the teachings of Philip Melanchthon<br />

is summarized, followed by Luther’s response and the ratification of the Formula<br />

of Concord. The purpose in summarizing the Antinomian Controversy<br />

in Lutheran settings is to raise points of connection with Antinomianisms in<br />

seventeenth century England, when similar debates arose, and consequent<br />

lessons for today. This article argues that there is a need to tell this story again<br />

in order to meet certain needs in the evangelical scenario both in Brazil and<br />

abroad.<br />

KEYWORDS<br />

Martin Luther; Antinomian; Antinomianism; Johann Agricola; Justification;<br />

Law and gospel; Repentance.<br />

65


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83<br />

O Perigo a Ser Evitado Numa Reforma<br />

Heber Carlos de Campos *<br />

RESUMO<br />

Existe uma curiosa tensão entre os dois principais fundadores da tradição<br />

luterana: Martinho Lutero e seu colega e sucessor Filipe Melanchton. Embora<br />

tenha nutrido grande amizade e admiração pelo seu mestre ao longo da vida,<br />

Melanchton veio a afastar-se do pensamento do pioneiro em duas questões<br />

importantes: as ações divina e humana na salvação e o entendimento da presença<br />

de Cristo na Ceia. Deixando o seu monergismo inicial, a afirmação da<br />

incapacidade da vontade humana, o Mestre da Alemanha veio a abraçar uma<br />

postura sinergista, insistindo no “consentimento da vontade à palavra de Deus”<br />

como um dos requisitos para a salvação. No que diz respeito ao sacramento<br />

da Ceia, Melanchton afastou-se sutilmente da consubstanciação para uma posição<br />

mais próxima de Calvino, com o seu entendimento da presença real no<br />

sentido espiritual. Essas posturas deram origem a um forte e duradouro debate<br />

entre os partidários dos dois reformadores – gnesio-luteranos e filipistas – que<br />

perdura até hoje.<br />

PALAVRAS-CHAVE<br />

Martinho Lutero; Filipe Melanchton; Livre arbítrio; Monergismo; Sinergismo;<br />

Ceia do Senhor; João Calvino; Consubstanciação; Presença real.<br />

INTRODUÇÃO<br />

“Tempos de Reforma são sempre bem-vindos”. Esta frase agradava aos<br />

que viviam no século 16 e estavam cansados da mesmice e de erros de séculos<br />

que eram vigentes na igreja medieval. Todavia, esses tempos não eram<br />

* Doutor em Teologia (Th.D.) pelo Concordia Seminary, Saint Louis, Missouri; professor de<br />

teologia sistemática no CPAJ; pastor auxiliar na Igreja Presbiteriana Paulistana.<br />

67


HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA<br />

bem-vindos para aqueles que apreciavam o status quo eclesiástico – o grupo<br />

do lado de Roma.<br />

“Tempos de Reforma podem ser muito amargos”. Via de regra, os campos<br />

opostos entram em choque profundo e sempre uma parte, quando não as duas,<br />

sai ferida. Esses tempos amargos produzem alguns resultados bons dum lado<br />

e ruins do outro.<br />

“Tempos de Reforma podem favorecer o radicalismo”. Um dos resultados<br />

amargos de uma reforma é o surgimento de radicalismo de ambos os lados.<br />

Dificilmente um grupo é concessivo em suas posições. Como cada grupo quer<br />

manter a sua posição, eles vão a extremos, nem sempre convenientes.<br />

“Tempos de Reforma podem ocasionar alijamentos”. A consequência do<br />

radicalismo se mostra muito evidente nos alijamentos teológicos e mesmo no<br />

alijamento de vidas ocorridos na história. Todo radicalismo leva a comportamentos<br />

extremos nos quais uma parte fica ferida e se sente alijada. Essas<br />

reações são quase inevitáveis, mas algumas delas podem ser pecaminosas. Via<br />

de regra, os que vencem no movimento são os que alijam aqueles que pensam<br />

diferentemente. O alijamento pode ser de natureza teológica ou mesmo física.<br />

Neste artigo, analisamos, sob a ótica do luteranismo mais ortodoxo<br />

evidente na opinião recente de elementos ligados aos luteranos do Sínodo de<br />

Missouri, os desvios teológicos de Philip Schwartzerd que veio a ser conhecido<br />

historicamente como Filipe Melanchton (1497-1560).<br />

1. O QUE ACONTECEU COM A TEOLOGIA DE MELANCHTON?<br />

Melanchton nasceu numa família proeminente em Bretten, na Alemanha.<br />

Era 14 anos mais jovem do que Martinho Lutero (1483) e 12 anos mais velho<br />

que João Calvino (1509). Por causa de sua inteligência e de seu preparo humanista,<br />

foi conhecido e altamente respeitado como o “Professor da Alemanha”<br />

(Praeceptor Germaniae). 1<br />

Como é comum em grandes líderes, sempre há mudanças de pensamento<br />

teológico na carreira de um grande expoente de teologia. Não foi diferente com<br />

Melanchton. O problema é que para alguns as mudanças foram para melhor e,<br />

para outros, elas foram para pior. Aos olhos dos luteranos conservadores, as<br />

mudanças de Melanchton foram para pior.<br />

Vistos pela perspectiva luterana, ele teve duas falhas teológicas, que lhe<br />

custaram muito caro, não especialmente em sua época, mas posteriormente.<br />

Uma de suas “falhas” teve uma conotação ligeiramente libertária e outra uma<br />

conotação calvinista sobre a ceia. Como um reformado, penso que a primeira<br />

mudança em Melanchton foi para pior e a segunda para melhor, mas essa é apenas<br />

uma questão de opinião. Vejamos a primeira falha teológica de Melanchton.<br />

1 Ver o artigo “The Synergistic Controversy”, The Concordia Lutheran, set.-out. 1995. Disponível<br />

em: http://www.concordialutheranconf.com/clc/cl_articles/CLO_articlePRB_sept1995.cfm. Acesso em:<br />

jul. 2005.<br />

68


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83<br />

1.1 A falha sinergista de Melanchton<br />

O sinergismo que começou a existir dentro dos círculos luteranos na<br />

época da Reforma e que foi defendido por Melanchton tinha como raciocínio<br />

o seguinte:<br />

Visto que todos os homens que estão perdidos são eternamente condenados<br />

por suas próprias faltas, de modo que Deus não deve ser culpado, mas somente<br />

eles, por rejeitarem a graça de Deus em Cristo Jesus, aqueles que são convertidos<br />

devem ao menos receber um pequeno crédito em relação à sua salvação<br />

eterna – talvez uma melhor atitude para com o Evangelho do que aqueles que<br />

são perdidos. Nesse assunto, o sinergismo é evidentemente muito sutil e perigoso...<br />

visto que ele reduz a cooperação do homem a um mínimo aparentemente<br />

inofensivo que um cristão que não desconfia poderia facilmente aceitar para a<br />

sua eterna destruição. 2<br />

A fim de compreender o desenvolvimento do pensamento teológico de<br />

Melanchton, de maneira muito rápida, vejamo-lo em três décadas sequenciais<br />

de sua vida.<br />

1.1.1 O Melanchton da década de 1520 era monergista<br />

Em 1520, nas notas preliminares de sua primeira edição dos Loci Communes<br />

(Lugares Comuns), Melanchton negou à vontade humana qualquer tipo<br />

de liberdade. Na edição dos Loci de 1521, ele escreveu: “Visto que todas as<br />

coisas que ocorrem, ocorrem necessariamente, de acordo com a predestinação<br />

divina, a liberdade da vontade humana não é nada”. 3 As ideias de Melanchton<br />

no começo da Reforma podem ser entendidas como chegando às raias do<br />

determinismo, que era um pensamento não muito comum naquela época. No<br />

começo da Reforma, portanto, certamente Melanchton não tinha nenhuma<br />

tendência sinergista. Nas primeiras edições de seus Loci Communes ele parecia<br />

mais um partidário da dupla predestinação.<br />

No tempo em que escreveu a Confissão de Augsburgo e sua Apologia,<br />

Melanchton tinha evitado qualquer erro sinergista. Os homens caídos não<br />

possuíam qualquer liberdade espiritual para o bem. Ele incluiu um artigo sobre<br />

o livre arbítrio na Confissão de Augusburgo (1530), no qual admitiu uma<br />

liberdade qualificada, tal como usar ou não usar um casaco. Mesmo nesta<br />

matéria, ele a chamava de “uma espécie de liberdade” (quaedam libertas).<br />

O homem poderia escolher fazer alguma coisa na esfera da justiça civil, mas<br />

não da justiça espiritual. Melanchton ficou com essa posição por vários anos,<br />

2 Ibid.<br />

3 Corpus Reformatorum, 14, apud DRICKAMER, John M. “Did Melanchton Become a Synergist?”<br />

Springfielder, Vol. 40, Nº 2 (abril 1976). Disponível em: http://www.ctsfw.net/media/pdfs/drickamermelanchtonsynergist.pdf.<br />

Acesso em: jul. 2017. Grifos meus.<br />

69


HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA<br />

tendo-a ensinado também em seus comentários sobre o Evangelho de João<br />

(1523) e Provérbios (1524), e nos sumários doutrinários que escreveu para<br />

Filipe de Hesse, em 1524. 4<br />

Tem sido sugerido que Melanchton começou a alterar o seu conceito de<br />

conversão durante a controvérsia entre Lutero e Erasmo de Roterdã sobre a<br />

liberdade da vontade. Ele ficou alegre quando Erasmo asseverou a liberdade<br />

da vontade em sua obra Diatribe (1524), por causa do apreço de Erasmo pelo<br />

humanismo, que ficou claro em sua controvérsia com Lutero, o qual, por sua<br />

vez, acabou escrevendo a famosa obra De Servo Arbitrio (1525), na qual foi<br />

negado qualquer tipo de liberdade em assunto espiritual.<br />

Entretanto, na edição de 1525 dos Loci Communes ele fortaleceu algumas<br />

das afirmações sobre a predestinação. Dois anos mais tarde, em 1527,<br />

num comentário sobre Colossenses, ele novamente negou que a vontade<br />

humana pudesse contribuir em qualquer coisa para a conversão. A conversão<br />

era inteiramente um feito de Deus. 5 Nessa década, assim como Lutero, ele era<br />

realmente um monergista!<br />

1.1.2 O Melanchton da década de 1530 começou a pender para o<br />

sinergismo<br />

Os pressupostos libertários de Erasmo influenciaram a mente mais brilhante<br />

da Reforma Luterana, Filipe Melanchton. À medida em que o tempo<br />

passava, mais a teologia dele<br />

inclinou-se para o pensamento libertário de Erasmo, e isto já pode ser deduzido<br />

de uma carta datada de <strong>22</strong> de junho de 1527, escrita a Veit Dietrich, em que<br />

ele disse que desejava uma exposição mais completa também das doutrinas da<br />

predestinação e da do consentimento da vontade. 6<br />

Entretanto, ainda que tivesse mantido em segredo a sua posição ligeiramente<br />

sinergista, ao seu grande companheiro de luta essa nova inclinação não<br />

passou despercebida.<br />

1.1.2.1 Lutero sabia do sinergismo de Melanchton<br />

Um pouco depois de 1530, Melanchton já não parece concordar de coração<br />

com Lutero nas doutrinas da graça e do livre arbítrio. Lutero não ignorava essa<br />

tendência libertária secreta de Melanchton, que vinha de Erasmo. Em 1536,<br />

quando os desvios de Melanchton chegaram de forma escrita aos olhos de<br />

Lutero, este exclamou: “‘Haec est ipsissima theologia Erasmi’ (Esta é uma<br />

4 DRICKAMER, “Did Melanchton Become a Synergist?”.<br />

5 Ibid., p. 13.<br />

6 BENTE, F. Historical Introductions to the Book of Concord. St. Louis, MO: Concordia Publishing<br />

House, 1965, p. 128. Grifos meus.<br />

70


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83<br />

teologia idêntica à de Erasmo), e não pode haver qualquer coisa mais oposta<br />

à nossa doutrina”. 7<br />

Melanchton começou a sua primeira grande revisão dos Loci em 1533 e a<br />

publicou em 1535. Nessa época, ele já estava falando de uma real contribuição<br />

da vontade humana no processo da conversão. Ele alterou a apresentação sobre<br />

a necessidade e a liberdade para incluir a ideia de que os homens e demônios<br />

eram livres para se opor a Deus e ao evangelho. Comentando sobre os Loci de<br />

Melanchton de 1535, Paul Tschackert (1848-1911) diz:<br />

Melanchton quer tornar o homem responsável por seu estado de graça. Nem a<br />

vontade humana em razão do pecado original perde a capacidade de decidir-se<br />

quando incitada; a vontade não produz nada novo por seu próprio poder, mas<br />

assume uma atitude para com aquilo que a aborda. Quando o homem ouve a<br />

Palavra de Deus, e o Espírito Santo produz afeições espirituais em seu coração,<br />

a vontade pode tanto assentir como voltar-se contra ela. 8<br />

Enquanto Melanchton (em seus Loci de 1543) havia falado de três causas<br />

de uma boa ação (bonae actionis), ele agora publicamente advogava a doutrina<br />

das três causas concorrentes da conversão. Repudiando o monergismo de Lutero,<br />

ele esposou e defendeu os poderes da vontade livre em assuntos espirituais. 9<br />

1.1.2.2 Melanchton admitiu o seu sinergismo<br />

Depois de ficar do lado de Lutero a respeito da incapacidade humana em<br />

questões espirituais, no começo de sua carreira em Wittenberg, Melanchton<br />

deu uma guinada teológica afirmando que há três causas concorrentes da conversão<br />

(o Espírito Santo, a Palavra e o consentimento da vontade do homem),<br />

discordando do monergismo de Lutero.<br />

Durante o restante do tempo de vida de Lutero, Melanchton não fez mais<br />

nenhum progresso em direção ao seu sinergismo. Ele próprio admitiu que<br />

dissimulava, mantinha suas opiniões consigo mesmo e as escondia de seus<br />

amigos. Entretanto, após a morte de Lutero, ele saiu publicamente em favor<br />

do sinergismo, endossando até mesmo a definição de Erasmo de livre arbítrio<br />

como sendo “o poder no homem para aplicar-se à graça”.<br />

1.1.3 O Melanchton da década de 1540 em diante tornou-se mais<br />

claramente sinergista<br />

A terceira geração dos Loci de Melanchton pode ser datada de 1544,<br />

embora não apresente muitas mudanças como aconteceu com as edições da<br />

7 Ver ibid.<br />

8 Ibid.<br />

9 Ibid., p. 129.<br />

71


HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA<br />

segunda geração, na década de 1530. Lutero havia examinado as primeiras<br />

edições e não falou nada contra elas. Mais tarde, em 1544, ele escreveu:<br />

Não tenho absolutamente nenhuma suspeita em relação a Filipe, Flacius e<br />

Hesshusius, que se tornaram amargos oponentes do sinergismo no passado,<br />

quando a controvérsia surgiu. 10<br />

No entanto, Lutero elogiou fortemente a edição de 1545 dos Loci. Provavelmente,<br />

Lutero não teve coragem de criticar seu antigo e amado companheiro<br />

de teologia. É importante reconhecermos que as nossas afeições podem frear os<br />

nossos desejos de destruir aqueles que pensam diferentemente de nós! Talvez<br />

por essa razão Lutero silenciou diante do sinergismo de Melanchton, mesmo<br />

sabendo do que acontecia dentro da alma do seu companheiro e de suas ligeiras<br />

menções ao seu próprio sinergismo.<br />

1.2 As três causas de Melanchton<br />

Na edição de seus Loci em 1559, Melanchton mencionou novamente<br />

“as três causas”, que são conectadas, de alguma forma, ao libertarismo: “A<br />

Palavra de Deus, o Espírito Santo e a vontade humana assentindo à Palavra<br />

de Deus e não se opondo a ela”. 11 Ele escreveu que “Deus começa e atrai por<br />

sua Palavra e seu Espírito Santo, mas nós deveríamos ouvir e aprender, isto é,<br />

apreender a promessa e assentir a ela, não nos opor a ela, não dar lugar para<br />

desconfiar ou duvidar dela”. 12<br />

Melanchton não vê isto como o homem começando a conversão, mas<br />

reagindo à Palavra de Deus. Entretanto, ele vê algumas coisas que a vontade<br />

humana faz, consentindo no que o Espírito faz.<br />

A obra do Espírito é eficaz somente se a mente abraça a promessa e luta contra a<br />

falta de fé. Ele até admitiu a ideia de o homem possuir uma faculdade de aplicar<br />

a si mesmo a graça, em termos de ouvir a promessa, tentar assentir e rejeitar os<br />

pecados contra a consciência. 13<br />

Quando perguntado sobre “Por que alguns aceitam e outros não?”, ele<br />

respondeu que a diferença está no homem. Ele cita o exemplo de Saul ter<br />

rejeitado e Davi ter aceito. Há alguma ação dissimilar nos dois. 14 Na verdade,<br />

esse pensamento chamado sinergista é do luteranismo conservador, não simplesmente<br />

de Melanchton.<br />

10 Apud DRICKAMER, “Did Melanchton Become a Synergist?”, p. 98. Grifos meus.<br />

11 Ibid.<br />

12 Ibid.<br />

13 Ibid.<br />

14 Ibid.<br />

72


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83<br />

1.2.1 Os anos de sinergismo secreto de Melanchton<br />

Nos seus primeiros anos, Melanchton ensinou forte monergismo, ombreando<br />

com Lutero contra Erasmo, mas em meados da década de 1530,<br />

iniciou uma inclinação para o sinergismo. No final de seus dias, ele ensinou o<br />

sinergismo que manteve ligeiramente secreto durante anos. Não podemos nos<br />

esquecer de que Melanchton “não foi acusado de sinergismo em sua época ou<br />

por mais de uma década, ainda que afirmações similares a estas tivessem sido<br />

publicadas em vários lugares”. 15<br />

1.2.2 A reação de Lutero ao sinergismo de Melanchton<br />

Lutero, que o acompanhou em sua trajetória, e que expressava muito<br />

fortemente um monergismo, “nunca objetou à doutrina da conversão de<br />

Melanchton”. 16 Se Lutero tivesse alguma coisa séria contra Melanchton, ele<br />

teria dito do seu descontentamento a algum amigo próximo. 17 Talvez Lutero<br />

não tenha dito nada a respeito do pensamento de Melanchton pela grande<br />

apreciação e respeito de que este gozava.<br />

1.2.3 A reação dos luteranos radicais ao sinergismo de Melanchton<br />

Foi somente após o Interim de Leipzig, no final de 1548, mais de dois anos<br />

após a morte de Lutero, que alguns luteranos começaram a criticar o libertarismo<br />

de Melanchton. Na verdade, os gnesio-luteranos criticam em Melanchton<br />

o que eles mesmos creem sobre a relação entre a obra do Espírito e a Palavra.<br />

2. A FALHA CALVINISTA DE MELANCHTON<br />

Este segundo erro foi ainda mais dolorido para os luteranos radicais<br />

porque Melanchton começou a pender para o pensamento dos zuinglinianos<br />

e calvinistas, a quem ele tanto combateu no início de sua carreira teológica à<br />

frente do luteranismo.<br />

2.1 Melanchton ombreia com Lutero na Eucaristia<br />

Nos seus primeiros anos, Melanchton ombreou com Lutero na doutrina<br />

da eucaristia. Schaff diz que, nos seus primeiros anos, Melanchton esforçou-<br />

-se por encontrar nos pais da igreja pessoas que ficassem do lado de Lutero<br />

na doutrina da Eucaristia. Ele citou Cirilo, Crisóstomo, Hilário, Cipriano, etc.<br />

Ele até tentou trazer Agostinho para o lado de Lutero, mas não foi muito feliz<br />

em seu intento. Admitiu que havia escritos de outros pais, como Jerônimo,<br />

15 Ibid., p. 98.<br />

16 Ibid.<br />

17 Ibid.<br />

73


HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA<br />

Gregório de Nazianzo e Basílio que poderiam ser contra a doutrina da eucaristia<br />

de Lutero. 18<br />

Melanchton havia sido fiel aos ensinos de Lutero sobre a Ceia até 1529,<br />

no Colóquio de Marburg, quando ele se insurgira contra o radicalismo teológico<br />

de Zuínglio. Em 15 de maio de 1529, em sua Opinion, ele escreveu: “Eu<br />

estou satisfer ito de que não concordarei durante toda a minha vida com os<br />

de Estrasburgo, e sei que Zuínglio e seus companheiros escrevem falsamente<br />

com respeito ao Sacramento”. 19 Em 20 de junho do mesmo ano, numa carta<br />

a Jerome Baumgaertner, ele também escreveu: “Eu preferiria antes morrer<br />

do que ver nosso povo tornar-se contaminado por associação com a causa<br />

zuingliniana”. 20 Melanchton veio a fazer exatamente o que ele condenou nos<br />

seus adversários envolvidos na questão sacramentária. Vejamos, de forma bem<br />

resumida, o desenvolvimento do seu pensamento eucarístico.<br />

2.2 Melanchton se aparta de Lutero na Eucaristia<br />

Melanchton deu um salto teológico, ainda que imperceptível aos que<br />

não estão familiarizados com a grande controvérsia havida entre luteranos,<br />

zuinglinianos e posteriormente, calvinistas.<br />

2.2.1 Na Confissão de Augsburgo de 1530 ele ombreou com Lutero<br />

na questão da Eucaristia<br />

Melanchton havia sido o autor da Confissão de Augsburgo em 1530,<br />

expressando a confissão luterana sobre a eucaristia.<br />

Art. 10 – “A respeito da Ceia do Senhor, eles ensinam que o corpo e o sangue<br />

de Cristo estão verdadeiramente presentes, e são distribuídos (comunicados)<br />

àqueles que comem na Ceia do Senhor. E eles desaprovam aquele que ensinam<br />

de outra maneira”.<br />

A princípio, portanto, Melanchton discordou do radicalismo teológico de<br />

Zuínglio, mas pouco a pouco foi estabelecendo correspondência com Martin<br />

Bucer e João Calvino, ficando totalmente convencido de que Agostinho dava<br />

suporte ao pensamento reformado na interpretação simbólica das palavras da<br />

instituição. 21<br />

18 SCHAFF, Philip. The Creeds of Christendom. 3 vols. Grand Rapids, MI: Baker, 1984, vol. 1,<br />

p. 263.<br />

19 Citado por BENTE, Historical Introductions, p. 175.<br />

20 Ibid.<br />

21 Neste particular Schaff diz que Melanchton foi fortemente influenciado pelo Dialogus de Ecolampádio<br />

(1530), dirigido contra as suas Sententiae. SCHAFF, Creeds of Christendom, vol. 1, p. 264,<br />

nota 1.<br />

74


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83<br />

2.2.2 Na Confissão de Augusburgo de 1540 ele começou a divergir<br />

de Lutero na questão da Eucaristia<br />

Embora nunca tenha formulado um documento bem desenvolvido sobre<br />

a presença real, Melanchton veio a concordar substancialmente com Bucer e<br />

Calvino. Logo depois de seus contatos mais constantes com os reformadores<br />

de Estrasburgo e Genebra, ele começou a desistir da interpretação literal das<br />

palavras da instituição, como ensinada por Lutero. Desistiu também da manducatio<br />

oralis do corpo de Cristo.<br />

Depois dos seus contatos com Bucer e com Calvino, ele introduziu no artigo<br />

sobre a Ceia uma nova convicção, aproximando-se da visão reformada de<br />

Eucaristia, que passou a ser parte da nova versão da Confissão de Augsburgo,<br />

dez anos depois, em 1540. Essa nova edição da Confissão passou a ser conhecida<br />

como Variata.<br />

Art. 10 – “Com respeito à Ceia do Senhor, eles ensinam que ‘com’ o pão e o<br />

vinho são verdadeiramente exibidos o corpo e o sangue de Cristo àqueles que<br />

comem na Ceia do Senhor”.<br />

Segundo os luteranos rígidos, as mudanças de opinião sacramentária<br />

de Melanchton culminaram na sua alteração do Artigo 10 da Confissão de<br />

Augsburgo, na edição de 1540, que ficou sendo conhecida como Variata, para<br />

favorecer os calvinistas.<br />

Sendo um pouco ácido em sua crítica, e torcendo ligeiramente uma citação<br />

de Schaff, Bente diz: “A ideia de Calvino da ceia do Senhor foi, de vários<br />

modos, oficialmente reconhecida na Confissão de Augsburgo de 1540”. <strong>22</strong> O<br />

que Bente não coloca é o que o próprio Schaff diz:<br />

A ideia posterior de Melanchton sobre a ceia do Senhor, que essencialmente<br />

concordava com a de Calvino, foi por vários anos acolhida pela maioria dos<br />

teólogos luteranos, mesmo em Wittenberg e Leipzig, e na corte do Eleitor da<br />

Saxônia. Ela foi também de vários modos oficialmente reconhecida com a<br />

Confissão de Augsburgo de 1540, que foi por muito tempo considerada como<br />

uma melhora antes do que uma edição alterada. 23<br />

Toda a região do sul da Alemanha estava altamente influenciada pelo<br />

pensamento de Calvino quanto à ceia. E os teólogos da fonte do luteranismo, de<br />

Wittenberg, também estavam do lado dos calvinistas. Isto causava dor profunda<br />

nos gnesio-luteranos, que passaram a odiar o conteúdo alterado da Variata. De<br />

<strong>22</strong> BENTE, Historical Introductions, p. 178.<br />

23 SCHAFF, Creeds of Christendom, vol. 1, p. 280. Grifos meus.<br />

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HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA<br />

fato, ela era uma melhora antes do que uma simples alteração. Assim sempre<br />

sentiram os reformados, que vieram a subscrevê-la, sobretudo Calvino.<br />

Em 1540 e 1542, Melanchton reescreveu algumas partes da Confissão<br />

a fim de reconciliá-las com a visão calvinista. O próprio João Calvino assinaria<br />

a Confissão de 1540. Melanchton apresentou uma visão modificada da<br />

presença real ensinada por ele próprio na edição de 1530. Todavia, nunca<br />

gostou da ideia de uma presença simbólica proposta por Zuinglio, nem adotou<br />

abertamente a visão calvinista de uma presença real espiritual, mas ficou<br />

bem perto dela, ao ponto de Calvino publicamente ter declarado que ele e<br />

Melanchton eram inseparavelmente unidos nesse ponto. 24<br />

Portanto, as diferenças entre Lutero e Melanchton afetaram as futuras<br />

relações entre luteranos e calvinistas, por causa das posições tomadas no<br />

último estágio da vida teológica de Melanchton, especialmente nas matérias<br />

relativas à eucaristia.<br />

2.3 Influência de Ecolampádio e Bucer sobre Melanchton<br />

Contudo, antes dos dez anos de reflexão terminarem, Melanchton já<br />

mostrava sinais de dúvida com respeito à unio sacramentalis. Seeberg descreve<br />

que “em 1531 Melanchton secretamente já expressava sua opinião de modo<br />

claro o suficiente para se reconhecer a presença da divindade de Cristo na Ceia<br />

do Senhor, mas não a união do corpo e o pão”. 25<br />

A semente de dúvida nascera nos contatos com pensadores reformados,<br />

como Bucer e Ecolampádio. Numa carta a Johannes Brenz, Melanchton reconhece<br />

que levou o pensamento de Bucer para Wittenberg. Nessa carta, datada<br />

de 12 de janeiro de 1535, está afirmado:<br />

Meu caro Brenz, se houvesse qualquer diferença de nós com respeito à Trindade<br />

e outros artigos, eu não teria nenhuma aliança com eles... A respeito da<br />

Concórdia, contudo, nenhuma ação foi ainda tomada. Eu somente trouxe as<br />

opiniões de Bucer para cá [Wittenberg]. Mas eu gostaria de falar pessoalmente<br />

com você a respeito da controvérsia. Eu não constituo a mim mesmo um juiz,<br />

e prontamente concedo a você, que governa a igreja, e eu afirmo a presença de<br />

Cristo na ceia. 26<br />

Estes reformados criam que o corpo e o sangue de Cristo eram verdadeira<br />

e substancialmente recebidos no sacramento, mas eles não estavam realmente<br />

conectados com o pão e o vinho. Negavam a união sacramental. No seu ardor<br />

extremamente luterano, F. Bente diz que Melanchton<br />

24 A frase latina de Calvino é esta: “Confirmo, non magis a me Philippum quam a propriis visceribus<br />

in hac causa posse divelli”. Citado por SCHAFF, Creeds of Christendom, vol. 1, p. 264, nota 2.<br />

25 Apud BENTE, Historical Introductions, p. 176-177.<br />

26 Apud ibid., p. 178. Grifos meus.<br />

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83<br />

permitiu-se ser guiado pelas autoridades humanas antes do que pela clara Palavra<br />

de Deus somente, isto porque Melanchton havia mencionado numa carta a<br />

Lutero que o pensamento de Ecolampádio sobre a ceia era exposto “com maior<br />

exatidão do que ele próprio escreveria”. 27<br />

Na avaliação ardorosa de Bente, a visão calvinista da presença real de<br />

Cristo na ceia era produto das “autoridades humanas” e a visão de Lutero era<br />

“a clara Palavra de Deus somente”. Conheci pessoalmente essa visão luterana<br />

quando estudei entre membros do Sínodo de Missouri, em Saint Louis. A visão<br />

de ceia que eles tinham estava acima de qualquer suspeita.<br />

Em dezembro de 1534, Melanchton foi a uma conferência com Bucer em<br />

Cassel, e nessa ocasião Lutero instou-o a defender a unio sacramentalis e o<br />

comer e o beber no sentido oral. 28 Ao retornar da conferência, Melanchton já<br />

estava convencido de que o pensamento de Bucer e Ecolampádio estava mais<br />

próximo da verdade do que o da interpretação literal de Lutero. O convencimento<br />

de Melanchton começou com uma aprovação disfarçada do pensamento<br />

reformado. Sem tomar abertamente a posição dos reformados, Melanchton foi<br />

tolerante com eles e aprovou-os na sua teologia quando deixou de reprová-los, o<br />

que era o intento de Lutero quando o enviou ao encontro de Bucer em Cassels.<br />

Em fevereiro de 1534, Melanchton escreveu a Brenz: “Eu claramente julgo que<br />

eles (Bucer e os outros) não estão longe da opinião dos nossos homens; aliás,<br />

na matéria em si, eles concordam conosco; nem eu os condeno”. 29<br />

Contudo, escrevendo a um amigo, Erhard Schnepf, quando as suas concessões<br />

começam a se mostrar claras, Melanchton diz: “Ele [Bucer] confessa<br />

que, quando essas coisas, pão e vinho, são dadas, Cristo está verdadeira e<br />

substancialmente presente. Quanto a mim, eu não exigiria nada mais”. 30 A<br />

união sacramental não fazia muito mais diferença para Melanchton. Essa era<br />

a razão do descontentamento entre os luteranos radicais.<br />

2.4 A confissão de sua tendência calvinista a dois amigos<br />

Em 10 de janeiro de 1535, escrevendo ao seu amigo Camerarius a respeito<br />

de sua ida a Cassel como mensageiro de Lutero para lutar pela unio sacramentalis,<br />

Melanchton mostra com mais clareza o seu posicionamento em relação<br />

a Lutero e a sua própria crença antiga sobre a ceia:<br />

Não peça a minha opinião agora, porque eu era um mensageiro de uma opinião<br />

estranha à minha, embora eu não esconderei o que penso quando tiver ouvido<br />

27 Apud ibid., p. 177.<br />

28 BENTE, Historical Introductions, p. 177.<br />

29 Corpus Reformatorum 2.843, apud BENTE, Historical Introductions, p. 177.<br />

30 Corpus Reformatorum 2.787, apud BENTE, Historical Introductions, p. 177.<br />

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HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA<br />

o que os nossos homens responderem. Mas a respeito dessa matéria toda lhe<br />

direi pessoalmente ou quando tiver mensageiros confiáveis. 31<br />

Em carta enviada a Brenz em 12 de janeiro de 1535, comentando sobre a<br />

opinião de Bucer e dos reformados sobre a ceia, Melanchton diz claramente:<br />

Eu não desejo ser o autor ou defensor de um novo dogma na igreja, mas vejo<br />

que há muitos testemunhos de escritores antigos que, sem qualquer ambiguidade,<br />

explicam o mistério com tipos e tropos, enquanto os testemunhos opostos<br />

são ambos, mais modernos e espúrios. Você também terá de investigar se você<br />

defende a opinião antiga. 32<br />

Desse período em diante, Melanchton nunca mais haveria de interpretar<br />

literalmente as palavras da instituição, que foram básicas e fundamentais para<br />

toda a teologia luterana da eucaristia. Certamente, o contato com Bucer e outros<br />

reformados foi importante para a decisão de Melanchton, mas ele já foi para<br />

aquela reunião de Cassel com ideias discordantes das de Lutero. Ele já não se<br />

sentia confortável com a unio sacramentalis, e a sua dúvida cresceu no contato<br />

de Cassel. A influência de Bucer e Ecolampádio foi a gota d’água, mas<br />

os pensamentos de Melanchton já titubeavam antes mesmo desse confronto<br />

pessoal de suas ideias com as deles.<br />

2.5 Mudanças refletidas de Melanchton<br />

As mudanças teológicas sobre a eucaristia na mente de Melanchton não<br />

vieram arbitrariamente, repentinamente, sem qualquer reflexão. Ao contrário,<br />

Melanchton era profundamente estudioso e altamente reflexivo. Suas mudanças<br />

de posição teológica nasceram na consciência de um verdadeiro erudito,<br />

que refletiu muito sobre suas ideias. Em carta ele confidenciou a um amigo:<br />

“Não há um dia ou noite nestes últimos dez anos que eu não tenha meditado<br />

sobre a doutrina da ceia do Senhor”. 33 Suas mudanças foram nascidas numa<br />

reflexão madura, sem o ímpeto de seus primeiros anos. O seu “calvinismo na<br />

eucaristia” foi produto de muita maturidade teológica. Obviamente, este não<br />

é o pensamento luterano que, apaixonadamente, na época, o considerou como<br />

virulento traidor.<br />

3. DOIS TIPOS DE LUTERANISMO<br />

Lutero, o Reformador da Alemanha, e Melanchton, o Mestre da Alemanha,<br />

depois do ano de 1533, embora continuassem se respeitando mutuamente,<br />

31 Corpus Reformatorum 2.8<strong>22</strong>, apud BENTE, Historical Introductions, p. 177.<br />

32 Corpus Reformatorum 2.823s, apud BENTE, Historical Introductions, p. 178.<br />

33 SCHAFF, Creeds of Christendom, vol. 1, p. 261.<br />

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83<br />

vieram a dar origem a dois tipos de luteranismo. Lutero gerou um luteranismo<br />

conclusivo e exclusivo; Melanchton gerou um luteranismo expansivo e do tipo<br />

unionista. Lutero era mais conservador e adversário ferrenho dos opositores;<br />

Melanchton era mais aberto e disposto ao diálogo com os que criam de modo<br />

diferente. Os dois tipos de luteranismo, os gnesio-luteranos e os filipistas, vão<br />

se chocar posteriormente, em especial depois de Calvino entrar em cena.<br />

3.1 Os filipistas e a controvérsia<br />

A doutrina da eucaristia, que refletia o ponto de refrega dentro do próprio<br />

luteranismo, era o teste da verdadeira ortodoxia. A doutrina da eucaristia<br />

era dependente da doutrina cristológica assumida. Referindo-se a essas duas<br />

doutrinas, Bente nos diz que<br />

as doutrinas de Lutero sobre a Ceia do Senhor e sobre a pessoa de Cristo como<br />

sendo em cada particular o ensino claro e inconfundível da Palavra Divina – duas<br />

doutrinas, que talvez mais do que qualquer outra, servem como o teste para se<br />

saber se a atitude fundamental da igreja ou de um teólogo é verdadeiramente<br />

bíblica e plenamente livre de qualquer infecção racionalista e entusiástica. 34<br />

Mas não era esse o pensamento dos filipistas. Como sacramentários que<br />

eram, começavam a divergir do radicalismo e do literalismo dos gnesio-luteranos.<br />

As acusações dos luteranos radicais contra os filipistas eram que eles<br />

estavam sendo calvinistas nas suas ideias sobre a ceia. A acusação tornava-se<br />

mais ácida porque os calvinistas, segundo os luteranos, não eram nada mais<br />

nada menos do que o zuinglianismo revivido, embora ligeiramente modificado.<br />

Os calvinistas são considerados pelos luteranos radicais como aqueles<br />

que usam palavras parecidas com a teologia luterana, para se aproximar dos<br />

luteranos, mas o conteúdo do que creem é totalmente diferente. Na Fórmula<br />

de Concórdia pode ser lido:<br />

Embora alguns sacramentarianos se esforcem por empregar palavras que<br />

cheguem tão perto quanto possível da Confissão de Augsburgo e a forma e o<br />

modo de falar nas suas igrejas, e confessem que na Santa Ceia o corpo de Cristo<br />

é verdadeiramente recebido pelos crentes, ainda, quando insistimos que eles<br />

afirmem o significado própria, sincera e claramente, eles todos declaram unanimemente<br />

dessa forma: que o verdadeiro essencial corpo e sangue de Cristo<br />

estão ausentes do pão e do vinho consagrados na Santa Ceia, da mesma forma<br />

que os mais altos céus estão distantes da terra. 35<br />

34 BENTE, Historical Introductions, p. 172.<br />

35 Ibid., p. 174.<br />

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Os calvinistas fizeram algumas concessões para poderem se aproximar<br />

dos luteranos. Calvino elaborou o Consenso Tigurino e ali, num esforço para<br />

unir todos os reformados, evidenciou a sua crença que era uma forma modificada<br />

de zuinglianismo. Os reformados não poderiam crer de outra forma. Os<br />

pressupostos luteranos e calvinistas eram muito diferentes para que entre eles<br />

houvesse pleno acordo. Houve uma tentativa da parte de Calvino de concordar<br />

com Melanchton e de assinar a Confissão de Augusburgo. Isso de fato aconteceu.<br />

Calvino assinou essa confissão luterana de 1540 e, em alguns círculos,<br />

foi geralmente considerado um luterano. 36 Mas o que Calvino na verdade<br />

havia assinado era a Variata, já com as mudanças na doutrina da eucaristia.<br />

Sobre isso, ele escreveu: “Eu não repudio a Confissão de Augsburgo, a qual<br />

previamente subscrevi no sentido em que o próprio autor [Melanchton] a tem<br />

interpretado”. 37<br />

3.2 Os criptocalvinistas<br />

A doutrina calvinista da Santa Ceia atraiu muitos territórios luteranos,<br />

especialmente no sul da Alemanha e na Saxônia. Durante as controvérsias<br />

sacramentárias no Palatinado, e na Westfália com Calvino, Melanchton permaneceu<br />

silencioso, e esta sua atitude valeu-lhe e aos seus seguidores o apelido<br />

de criptocalvinistas. Estes haviam adotado secretamente a doutrina calvinista<br />

e, por isso, foram chamados criptocalvinistas, ou seja, calvinistas mascarados<br />

ou escondidos. Muitos teólogos e leigos que tinham assinado a Confissão de<br />

Augsburgo e haviam expressado lealdade à teologia luterana, ocupando posições<br />

importantes na igreja luterana, faziam propaganda calvinista, esforçando-se por<br />

retirar os livros e doutrinas de Lutero, substituindo-os pelos de Calvino. 38 Essa<br />

atitude dos filipistas trouxe muita amargura aos chamados gnesio-luteranos.<br />

Assim, os dois luteranismos, o remanescente de Lutero e o de Melanchton, se<br />

chocavam, embora estivessem rodando na mesma direção, mesmo que sobre<br />

trilhos diferentes que frequentemente se cruzavam. Todos eram luteranos. Isto<br />

ninguém podia negar, mas os desencontros da controvérsia sobre a eucaristia<br />

produziram muitos trens descarrilhados.<br />

3.3 Os luteranos radicais e a controvérsia<br />

Provavelmente pelo respeito que Lutero tinha pelo grande mestre da<br />

Alemanha, ele nunca fez uma oposição virulenta contra o seu companheiro<br />

de muitos anos. Contudo, somente após a morte de Lutero, em 1546, é que a<br />

36 Ibid.<br />

37 Apud ibid., p. 174. A frase latina original de Calvino é: “Nec vero Augustanam Confessionem<br />

repudio, cui pridem volens ac libens subscripsi, sicut eam auctor ipse interpretatus est” (Corpus Reformatorum<br />

37, p. 148).<br />

38 Ibid., p. 175.<br />

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controvérsia ficou cheia de azedume. Melanchton morreu em 1560, catorze<br />

anos depois de Lutero, mas nesse meio tempo ele sofreu violentas críticas<br />

e perseguição da parte dos luteranos genuínos, também chamados gnesio-<br />

-luteranos. Depois da morte de Lutero, os dois luteranismos ficaram ainda<br />

mais evidentes. Como se fossem dois exércitos inimigos, eles se digladiaram<br />

em várias controvérsias, 39 incluindo a da eucaristia.<br />

3.4 Lutero é “deificado”<br />

Como uma espécie de desprezo às posições melanchtonianas e uma agressão<br />

a ele, alguns importantes partidários de Lutero, conhecidos como gnesio-<br />

-luteranos, 40 começaram a tratar Lutero como antipapal e antizuingliano, como<br />

se fosse o teólogo mais correto e sua ortodoxia a mais sadia de todas. Eles não<br />

conseguiam enxergar em Lutero alguma coisa de errado. Schaff diz que eles<br />

fizeram de sua fraqueza uma virtude, tornaram suas extravagâncias polêmicas<br />

em dogmas, e converteram a expansão católica da Reforma num exclusivismo<br />

sectário. Eles denunciaram cada compromisso com Roma, e cada abordagem<br />

da comunhão reformada, como uma deslealdade extremamente covarde para a<br />

causa da verdade evangélica. 41<br />

Os gnesio-luteranos possuíam a “convicção de que cada ponto do ensino<br />

de Lutero era, de fato, nada senão a própria pura Palavra de Deus”. 42 Lutero<br />

era visto por eles “como um profeta quase inspirado, e criam na sua interpretação<br />

(da Bíblia) como final”. No prefácio da Confissão de Magdeburgo, de<br />

1550, Lutero é chamado de “terceiro Elias”, “o Profeta de Deus”, e a doutrina<br />

de Lutero, sem qualquer qualificação, é chamada de “doutrina de Cristo”. 43<br />

39 Há pelo menos seis outras controvérsias teológicas que apareceram entre a morte de Lutero em<br />

1546 até 1578: 1) Controvérsia Adiaforística (1548-1555), que versou sobre a reintrodução de ritos e<br />

cerimônias romanos na igreja luterana; 2) Controvérsia Majorística (1551-1562), na qual George Major<br />

e Justus Menius defenderam a frase de Melanchton de as boas obras são necessárias para a salvação;<br />

3) Controvérsia Sinergística (1555-1560) onde vários teólogos luteranos defenderam com Melanchton<br />

que o homem por seus próprios poderes naturais coopera em sua conversão; 4) Controvérsia de Flácio<br />

(1560-1575) na qual Flacius, com apoio de outros, sustentou que o pecado original não é um acidente,<br />

mas a verdadeira substância do homem caído. Os Luteranos, inclusive os Philipistas se opuseram a esse<br />

erro; 5) Controvérsia com Stancarus e Osiander (1549-1566). Osiander negou o caráter forense da justificação,<br />

e ensinou que Cristo é a nossa justiça somente de acordo com a sua divina natureza; Stancarus,<br />

de modo oposto, ensinou que a nossa justiça é somente de acordo com a natureza humana de Cristo; 6)<br />

Controvérsia Antinomística (1527-1556) onde várias idéias sobre a Lei e o Evangelho foram expostas<br />

por João Agrícola, que dizia que o arrependimento não era trazido pela lei, mas pelo evangelho (ver em<br />

BENTE, Historical Introductions, p. 103).<br />

40 Entre outros podemos mencionar Amsdorf, Flacius, Jonas, Westphal.<br />

41 SCHAFF, Creeds of Christendom, vol. 1, p. 267.<br />

42 BENTE, Historical Introductions, p. 172.<br />

43 SCHAFF, Creeds of Christendom, vol. 1., p. 268.<br />

81


HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA<br />

3.5 Melanchton é reverenciado pelos filipistas<br />

Diferentemente, os filipistas reverenciavam Melanchton simplesmente<br />

como um grande mestre, um homem aberto e desejoso de uma comunhão<br />

mais fraterna entre os líderes do movimento da Reforma. Schaff afirmou que<br />

ambos os partidos sustentavam a suprema autoridade da Bíblia, mas os luteranos<br />

ficaram do lado da Bíblia como entendida por Lutero, e os filipistas do<br />

lado da Bíblia como entendida por Melanchton, com a adicional diferença de<br />

que o primeiro grupo olhava para Lutero como um apóstolo quase inspirado,<br />

e cria em sua interpretação como final, enquanto que o segundo reverenciava<br />

Melanchton simplesmente como um grande mestre, e reservava uma margem<br />

maior para a razão e para a liberdade. 44<br />

Agora, Melanchton estava no lado oposto, justamente do lado daqueles<br />

que ele outrora atacara. Depois daquela data, ele havia refletido durante cerca<br />

de 10 anos, muito seriamente, sobre o peso dessa doutrina, e isso intrigava e<br />

irritava os luteranos radicais.<br />

3.6 O que os luteranos radicais mais recentes fizeram com<br />

Melanchton?<br />

Quando estudei entre os luteranos, em Saint Louis, Missouri, eu frequentava<br />

diariamente a bela e rica biblioteca do Seminário Concordia. Todavia, eu<br />

me incomodava com um fato: no hall de entrada da biblioteca havia painéis<br />

que homenageavam Lutero e vários outros “heróis” da Reforma Luterana,<br />

menos Melanchton. Certa feita, perguntei ao bibliotecário chefe sobre a razão<br />

da ausência da figura de Melanchton, e ele me respondeu que era por causa<br />

dos dois erros mencionados neste pequeno artigo. Então, perguntei: “Como<br />

vocês podem ignorar, deixando de homenagear, o grande homem que escreveu<br />

a Confissão de Fé de Augsburgo e sua Apologia?” Ele ficou meio sem graça<br />

diante da pergunta, e não respondeu nada. Entretanto, algum tempo depois,<br />

confessou-me que estava havendo um movimento de pessoas dentro do luteranismo<br />

que estavam tentando recuperar a memória de Melanchton, restaurando<br />

o seu prestígio dentro da denominação. Eles puniram Melanchton depois da<br />

sua morte!<br />

CONCLUSÕES<br />

O que fazer diante de um movimento de reforma?<br />

Os reformadores primavam pela verdade e sentiam fortes dores quando<br />

a verdade era torcida. Os reformadores não hesitavam em punir os que não<br />

44 Ibid., vol. 1, p. 267-268.<br />

82


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83<br />

tinham a verdade da Escritura em alta conta. Hoje as igrejas não mais punem<br />

pastores por questões teológicas, apenas por questões morais. Hoje as igrejas<br />

não exercem disciplina sobre presbíteros que discordam dos nossos padrões<br />

de fé.<br />

O que devemos abandonar da Reforma?<br />

Devemos abandonar o espírito de perseguição a pessoas e o espírito<br />

separatista. Devemos abandonar o espírito de não ouvir o que os outros têm<br />

a dizer teologicamente. O grande problema é distinguir entre o que é e o que<br />

não é fundamental na fé para estabelecer padrões de condenação. Outro grande<br />

problema é de natureza hermenêutica ou de oposição ou adição às Escrituras.<br />

O que devemos manter da Reforma?<br />

Devemos continuar com o espírito de luta contra pensamentos teológicos<br />

perniciosos. Mas, ao mesmo tempo, devemos cultivar um espírito irênico até<br />

onde possível. Devemos nos concentrar nas coisas em que concordamos com<br />

outros irmãos e não nas coisas nas quais discordamos deles.<br />

ABSTRACT<br />

There is a singular tension between the two founders of the Lutheran<br />

tradition – Martin Luther and his colleague and successor Philip Melanchthon.<br />

Despite his lifelong friendship with and admiration for the older reformer,<br />

Melanchthon distanced himself from the thought of the pioneer around two<br />

important issues: the role of divine and human actions in salvation and the<br />

understanding of Christ’s presence in the Supper. Leaving behind his initial<br />

monergism, the assertion of the inability of the human will, the Master of Germany<br />

came to embrace a synergistic stance by affirming the “consent of human<br />

will to God’s word” as a requirement for salvation. Regarding the sacrament<br />

of the Supper, Melanchthon distanced himself subtly from consubstantiation<br />

to a position closer to Calvin, with his understanding of a real presence in the<br />

spiritual sense. These new views gave rise to a strong and lasting debate between<br />

the followers of the two reformers – Gnesio-Lutherans and Philipists – which<br />

reverberates until today.<br />

KEYWORDS<br />

Martin Luther; Philip Melanchthon; Free will; Monergism; Synergism;<br />

Lord’s Supper; John Calvin; Consubstantiation; Real presence.<br />

83


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 85-98<br />

O Pensamento Escatológico de Calvino<br />

Leandro Lima *<br />

RESUMO<br />

Uma vez que Calvino não escreveu um comentário bíblico sobre o Apocalipse,<br />

existe a tendência de acreditar que ele não se importava muito com<br />

escatologia ou que se considerava incapaz de tratar do assunto. Este artigo<br />

mostra que essa posição pode estar equivocada por vários motivos, entre eles o<br />

que Calvino de fato considerava como escatologia, sua preocupação em evitar<br />

especulações e a consciência da limitação da linguagem humana para descrever<br />

o mundo vindouro. A partir de uma análise contextual da obra do reformador<br />

de Genebra, o artigo busca esclarecer que há uma ligação indissociável entre<br />

Escatologia e Soteriologia na obra dos reformadores, especialmente em<br />

Calvino, e que embora sempre preocupado em evitar especulações, Calvino<br />

não fugiu do debate em vários pontos que considerava essenciais para manter<br />

a doutrina reformada, especialmente no que diz respeito à ressurreição e ao<br />

estado intermediário.<br />

PALAVRAS-CHAVE<br />

Calvino; Escatologia; Apocalipse, Teoria da acomodação; Ressurreição.<br />

INTRODUÇÃO<br />

Parece evidente para qualquer leitor dos textos da Reforma que a escatologia<br />

não foi um dos assuntos mais importantes para os reformadores. O simples<br />

* Doutorando em Novo Testamento pela Universidade de Kampen, na Holanda; Doutor em Literatura<br />

e Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Mestre em Teologia<br />

Histórica pelo CPAJ; professor de Novo Testamento no CPAJ; pastor auxiliar na Igreja Presbiteriana<br />

de Santo Amaro, São Paulo. Autor de diversos livros sobre temas teológicos e da ficção “Crônicas de<br />

Olam”, trilogia baseada em uma cosmovisão bíblica que está sendo produzida pela Tolk Publicações<br />

(selo da Editora Fiel).<br />

85


LEANDRO LIMA, O PENSAMENTO ESCATOLÓGICO DE CALVINO<br />

fato de Calvino não ter escrito um comentário sobre Apocalipse, 1 ou sequer<br />

dedicado tempo para pregar sistematicamente o livro, parece uma evidência<br />

irrefutável que confirma essa impressão. 2<br />

No entanto, essa percepção pode estar errada, ao menos parcialmente. É<br />

verdade que aquilo que hoje em dia se costuma chamar de escatologia, e que<br />

diz respeito principalmente às discussões envolvendo o milênio, o arrebatamento,<br />

a batalha do Armagedom e temas semelhantes, passou bem distante da<br />

pena do reformador de Genebra e dos outros reformadores. Porém, o primeiro<br />

questionamento a ser feito é se esses temas resumem de fato o que significa<br />

escatologia à luz das Escrituras, ou seja, se escatologia deve ser entendida<br />

apenas como eventos pontuais que antecipam ou sucedem a segunda vinda de<br />

Jesus, ou se, como aponta Moltmann “o cristianismo é total e visceralmente<br />

escatologia, e não só a modo de apêndice; ele é perspectiva e tendência para<br />

frente, e por isto mesmo, renovação e transformação do presente”. 3 Mesmo<br />

não partilhando da agenda escatológica de Moltmann, é preciso reconhecer<br />

que a sua definição é preferível à anterior, isso porque, como já afirmei em<br />

outro lugar, “não apenas o cristianismo que brota do Novo Testamento é escatológico,<br />

como toda a mensagem da Bíblia do Antigo e do Novo Testamento<br />

é escatológica. Desde que a primeira palavra da Bíblia, o ‘no princípio’ foi<br />

declarada, o fim já foi evocado, porque na própria ideia de ‘princípio’ há a<br />

ideia de ‘fim’”, 4 uma vez que “existe uma profunda e inseparável conexão<br />

entre criação e consumação, o começo e o fim”. 5<br />

As principais doutrinas que estiveram no centro das discussões no tempo<br />

da Reforma evidentemente foram aquelas de caráter soteriológico, ou seja, que<br />

tratavam de definir com precisão como funciona o sistema bíblico de salvação,<br />

em contrapartida a todas as invenções romanas. Mas isso não significa que os<br />

reformadores, e especialmente Calvino, não pensaram ou escreveram sobre<br />

escatologia, até porque soteriologia e escatologia são loci bastante interligados<br />

na enciclopédia teológica. Basta lembrar que salvação é “de” alguma coisa<br />

“para” alguma coisa. No caso, é salvação dos nossos pecados e da condenação<br />

deles, para desfrutar das benesses divinas no futuro. A respeito disso, Barnes<br />

1 No Novo Testamento, apenas 2 e 3 João, além de Apocalipse, não foram contemplados por<br />

Calvino.<br />

2 Embora ninguém possa dizer com certeza qual foi o motivo que levou Calvino a não comentar<br />

o Apocalipse, o fato de que igualmente as cartas de 2 e 3 João não foram comentadas sugere que foi<br />

simplesmente por falta de tempo, tendo morrido um tanto cedo o grande reformador de Genebra, perto<br />

de completar 55 anos.<br />

3 MOLTMANN, Jürgen. Teologia da esperança. São Paulo: Editora Teológica, 2003, p. <strong>22</strong>.<br />

4 LIMA, Leandro A. de. Razão da esperança. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 545.<br />

5 VAN GRONINGEN, Gerard. Criação e consumação. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002,<br />

p. 29.<br />

86


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 85-98<br />

diz: “Os ensinos escatológicos dos reformadores protestantes foram para eles<br />

não menos teologicamente centrais que suas respostas ao problema da justificação;<br />

de fato essas duas dimensões de seus pensamentos são inseparáveis”. 6<br />

No caso de Calvino, mais do que em qualquer outro, isso é evidente.<br />

1. O PAPA E O ANTICRISTO<br />

Um aspecto bastante estudado sobre a escatologia ou o apocaliptismo da<br />

Reforma 7 foi a tendência de interpretar o Apocalipse na ânsia de identificar<br />

suas cenas e personagens com o próprio momento histórico vivido. 8 Exceção<br />

deve ser feita a João Calvino (1509-1564), pois, como já foi dito, o Apocalipse<br />

foi um dos poucos livros que ele não comentou, nem se encontra nos<br />

seus escritos qualquer uso exagerado ou pictórico desse texto bíblico. Lutero<br />

(1483-1546) interpretou o livro no sentido linear-histórico, entendendo que a<br />

história o capacitava a decifrar o Apocalipse. 9 É curiosa a interpretação dos<br />

três “ais” anunciados pela águia em Ap 8.13 por parte do grande reformador<br />

alemão. O primeiro “ai” era o herético Ário, o segundo, o ataque maometano<br />

à Igreja, o terceiro, o império papal. 10<br />

6 BARNES, Robin B. “Eschatology, Apocalypticism, and the Antichirst”. In: WHITFORD,<br />

David M. (Org.). T&T Clark Companion to Reformation Theology. Londres; Nova York: T&T Clark,<br />

2012, p. 234.<br />

7 Paul D. Hanson defende que há uma tríplice divisão dentro do campo apocalíptico que a terminologia<br />

precisa distinguir. Apocalipse seria o gênero literário, escatologia apocalíptica uma espécie de<br />

cosmovisão ou mentalidade e o apocaliptismo um movimento social. “Apocalypse, genre; Apocalypticism”.<br />

In: CRIM, Keith (Org.). The interpreter’s dictionary of the Bible. Nashville: Abingdon Press,<br />

2000, p. 27-34.<br />

8 O grande precursor desse tipo de interpretação foi, provavelmente, o abade franciscano calabrês<br />

Joaquim de Fiore (c. 1135-1202). Segundo Bernard McGinn, ele disse ter recebido a chave da interpretação<br />

através de uma inspiração divina. “Apocalipse”. In: ALTER, Robert; KERMODE, Frank (Orgs.).<br />

Guia literário da Bíblia. São Paulo: Unesp, 1997, p. 573. Joaquim escreveu seu comentário em 1195.<br />

Para Joaquim, o Apocalipse engloba os dois últimos status da história: a Era do Filho e a Era do Espírito.<br />

As primeiras seis partes de seu comentário referem-se à Era do Filho (quarenta e duas gerações com<br />

cerca de trinta anos) e a parte sete aborda a Era do Espírito. A parte oito, extremamente curta, trata dos<br />

eventos meta-históricos na Jerusalém celestial. BACKUS, Irena. Reformations Readings of the Apocalypse:<br />

Geneva, Zurich and Wittemberg. Nova York: Oxford University Press, 2000, p. xvii. A parte 1<br />

(Ap 1-3) contém sete gerações e trata da luta dos apóstolos contra a sinagoga. A parte 2 (4.1-8.1) enfoca<br />

a luta dos mártires contra as perseguições pagãs. A parte 3 (8.2-11.18) abrange a luta dos doutores da<br />

Igreja contra os hereges até o estabelecimento de Constantino. A parte 4 (11.19-14.20) refere-se à luta<br />

das ordens monásticas contra o Islã. A parte 5 (15.1-16.17) representa o conflito entre a Igreja de Roma<br />

e o Sacro Império. A parte 6 (16.18-19.21) expõe a luta dos homens espirituais (representados por duas<br />

novas ordens religiosas), contra o dragão e contra as duas bestas, que representam, respectivamente,<br />

Saladino (contemporâneo de Joaquim) e o maximus Antichristus, uma pessoa que combina a heresia do<br />

Islã e todas as heresias ocidentais. BACKUS, Reformations Readings of the Apocalypse, p. xvii-xviii.<br />

9 MCGINN, “Apocalipse”, Guia literário da Bíblia, p. 576.<br />

10 Ibid.<br />

87


LEANDRO LIMA, O PENSAMENTO ESCATOLÓGICO DE CALVINO<br />

Inicialmente Lutero teve dificuldade em aceitar a própria canonicidade<br />

do livro, pois fazia pouca referência a Cristo, segundo o reformador alemão.<br />

Entretanto, como diz Backus, parafraseando Lutero: “O Apocalipse era certamente<br />

obscuro e não ensinava Cristo. Poderia, entretanto, ensinar sobre o<br />

Anticristo, que poderia ser e certamente tinha sido identificado com o papa<br />

em muitos dos comentários radicais dos séculos 14 e 15”. 11 Posteriormente, segundo<br />

McGinn, os luteranos encontraram um local para o próprio Lutero no<br />

Apocalipse, identificando-o com o anjo que transporta o evangelho eterno em<br />

14.6-7. 12 Os católicos, por sua vez, apresentaram outra interpretação. Roberto<br />

Belarmino (1542-1621) identificou o anjo do abismo, a figura demoníaca de<br />

Apocalipse 9.11, com Lutero e o luteranismo. 13<br />

Como já foi dito, Calvino não se manifestou sobre o Apocalipse, mas seus<br />

discípulos se pronunciaram. A Bíblia de Genebra, uma Bíblia comentada por<br />

calvinistas do século 16, atribuiu sem pudor a identidade de criaturas hostis do<br />

livro do Apocalipse a cargos e personagens católicos romanos. No comentário<br />

de Apocalipse 9.3, que descreve os gafanhotos demoníacos que saem do abismo,<br />

a nota diz: “Gafanhotos são falsos mestres e hereges mundanos, prelados,<br />

monges, frades, cardeais, patriarcas, arcebispos, bispos, doutores, bacharéis e<br />

mestres que abandonaram Cristo para manter a falsa doutrina. 14<br />

E mais à frente, quando aparece o chefe das criaturas, o anjo do abismo,<br />

o mesmo que os católicos disseram ser Lutero, a nota explicativa da Bíblia diz:<br />

“Esse Anticristo é o papa, rei dos hipócritas e embaixador de Satanás” 15 . De<br />

fato, o que havia em comum em praticamente todos os intérpretes da Reforma<br />

era a concepção de que o papa era o Anticristo.<br />

Os puritanos calvinistas da Inglaterra cristalizaram na Confissão de Fé<br />

de Westminster (1648) essa interpretação clássica do papa como o Anticristo:<br />

Não há outro Cabeça da Igreja senão o Senhor Jesus Cristo; em sentido algum<br />

pode ser o papa de Roma o cabeça dela, mas ele é aquele Anticristo, aquele<br />

homem do pecado e filho da perdição que se exalta na Igreja contra Cristo e<br />

contra tudo o que se chama Deus (XXV.6).<br />

Apesar desse último texto parecer apontar para a figura de um papa específico<br />

como Anticristo, essa não parece ter sido a intenção dos autores da<br />

11 BACKUS, Reformations Readings of the Apocalypse, p. 7.<br />

12 MCGINN, “Apocalipse”, Guia literário da Bíblia, p. 577.<br />

13 KOVACS, Judith; ROWLAND, Christopher. Revelation: the Apocalypse of Jesus Christ. Malden:<br />

Blackwell, 2004, p. 20.<br />

14 “Locusts are false teachers, heretics, and worldly subtle Prelates, with Monks, Friars, Cardinals,<br />

Patriarchs, Archbishops, Bishops, Doctors, Bachelors and masters which forsake Christ to maintain false<br />

doctrine” (1602, 1989, Ap 9:3).<br />

15 “Which is Antichrist the Pope, king of hypocrites and Satan’s ambassador” (1602, 1989, Ap 9:11).<br />

88


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 85-98<br />

CFW. É um fato que eles estavam seguindo a interpretação de Calvino nesse<br />

ponto, e o próprio Calvino, embora defendesse abertamente que o papa era o<br />

Anticristo, no entanto via na figura do Anticristo não um rei, mas um reino.<br />

Comentando 2Tessalonicenses 2, e explicando aos seus leitores sobre a figura do<br />

Anticristo, Calvino relembra a crença antiga, que ele considera uma fábula<br />

de velhas, sobre Nero retornar dos mortos como o anticristo. Contra isso, ele<br />

declara: “Paulo, entretanto, não fala de um indivíduo, mas de um reino, que<br />

era para ser tomado como possessão de Satanás, para que ele possa se assentar<br />

como abominação no meio do templo de Deus – que nós vemos se cumprir no<br />

papado”. 16 Não se trata, portanto, de um único indivíduo, mas “ele descreve<br />

aquele reino de abominação sob o nome de uma única pessoa, porque é um<br />

único reino, onde um sucede o outro”. 17 Assim, o papa que naqueles dias se<br />

assentava em Roma podia ser considerado o Anticristo “ainda que ele fosse<br />

um menino de dez anos de idade”, como lembra Calvino. Porém, uma vez que<br />

ele roubava para si atributos exclusivos de Deus, não haveria, segundo o reformador,<br />

“grande dificuldade em reconhecer o Anticristo”. 18<br />

Portanto, nesse ponto Calvino não destoou inteiramente da interpretação<br />

medieval que via o cumprimento das promessas escatológicas em seus dias,<br />

mas, por outro lado, ele não viu isso como algo definitivo para seus dias, mas<br />

como algo que já vinha se cumprindo ao longo da história, e que ainda poderia<br />

se alongar muito. O papa em si podia ser considerado como Anticristo somente<br />

no sentido em que o papado era o reino anticristão. Calvino conclui com as<br />

seguintes palavras: “Não é um indivíduo que é representado sob o termo Anticristo,<br />

mas um reino, que se estende através de muitas eras”. 19<br />

2. MEDITANDO NA VIDA FUTURA<br />

Embora não tenha escrito um comentário sobre o Apocalipse, ou mesmo<br />

um tratado escatológico específico, Calvino entendia ser fundamental “meditar<br />

na vida futura”. Porém, não como um modo de alimentar a curiosidade ou a<br />

especulação das pessoas, e sim como um modo de reconhecer a bondade de<br />

Deus e a grandiosidade do evangelho.<br />

A meditação da vida futura para Calvino é algo que se ancora na situação<br />

presente de tribulação. Nesse ponto, há um complexo pensamento desenvolvido<br />

pelo reformador que explica a própria existência da tribulação e dos sofrimentos<br />

da vida presente. Segundo Calvino, Deus permite a tribulação na vida<br />

presente para que aprendamos a desprezá-la, a fim de que sejamos despertados<br />

16 CALVIN, John. Commentaries on the Epistles of Paul the Apostle to the Philippians, Colossians,<br />

and Thessalonians. Bellingham, WA: Logos Bible Software, 2010, p. 327.<br />

17 Ibid.<br />

18 Ibid., p. 329.<br />

19 Ibid., p. 333.<br />

89


LEANDRO LIMA, O PENSAMENTO ESCATOLÓGICO DE CALVINO<br />

a considerar e valorizar a vida futura: “Com qualquer gênero de tribulação,<br />

porém, que sejamos premidos, é preciso levar sempre em conta este fim: que<br />

nos acostumemos ao menosprezo da presente vida e daí sejamos despertados<br />

à meditação da vida futura”. 20 Essa é a primeira e mais importante declaração<br />

de Calvino sobre escatologia. Ou seja, nós só seremos despertados a meditar<br />

na vida futura se aprendermos a desprezar a vida presente. É a certeza da<br />

existência da vida futura que nos torna diferentes dos animais:<br />

Pois nos envergonhamos de não superar em nada aos animais irracionais cuja<br />

condição em nada seria inferior à nossa, a não ser que nos restasse a esperança<br />

da eternidade após a morte. Com efeito, se examinares os planos, os esforços,<br />

os feitos de cada um, outra coisa aí não verás senão terra. 21<br />

A razão das tribulações é descrita em linguagem impressionante:<br />

Portanto, para que não se prometam profunda e segura paz nesta vida, ele permite<br />

que sejam frequentemente inquietados e molestados ou por guerras, ou por<br />

tumultos, ou por assaltos, ou por outros malefícios. Para que não anelem com<br />

demasiada avidez às riquezas aleatórias e instáveis, ou se arrimem naquelas que<br />

possuem, ora pelo exílio, ora pela infertilidade do solo, ora pelo fogo, ora por<br />

outros modos, os reduzem à pobreza, ou pelo menos os mantém em condição<br />

modesta. Para que não se deliciem em demasiados afagos nos deleites conjugais,<br />

ou faz com que sejam atribulados pela perversidade das esposas, ou os humilha<br />

com uma prole má, ou os aflige com a perda desses membros da família. Pois<br />

se é mais indulgente com eles, em todas essas coisas, contudo, para que não se<br />

entumeçam de vanglória, nem borbulhem de confiança pessoal, lhes põe diante<br />

dos olhos, através de enfermidades e perigos, quão instáveis são e aleatórios<br />

todos e quaisquer bens que estão expostos à mortalidade. <strong>22</strong><br />

Ao estilo que soa o mais pessimista possível com relação a esta vida e<br />

suas alegrias, Calvino assevera:<br />

Portanto, afinal, fruímos adequadamente proveito da disciplina da cruz quando<br />

aprendemos que esta vida, quando é estimada em si mesma, é inquieta, turbulenta,<br />

de inúmeras maneiras miserável, em nenhum aspecto absolutamente feliz;<br />

que todas as coisas que são contadas por bênçãos são incertas, inconstantes,<br />

fúteis e viciadas de muitos e mesclados males; e disso, ao mesmo tempo, concluímos<br />

que aqui nada se deve buscar ou esperar senão luta; que nossos olhos<br />

devem estar voltados para o céu, quando pensamos acerca da coroa que nos está<br />

reservada. Assim, pois, importa que nunca nosso ânimo se eleve seriamente à<br />

20 CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã. Edição Clássica. 4 vols. São Paulo: Cultura<br />

Cristã, 2006, 3.9.1.<br />

21 Ibid.<br />

<strong>22</strong> Ibid.<br />

90


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 85-98<br />

aspiração e à meditação da vida futura, a não ser que esteja antes imbuído de<br />

menosprezo da presente vida. 23<br />

Ao mesmo tempo, paradoxalmente, o desprezo da vida presente para<br />

Calvino não é, nem pode ser, uma ingratidão contra Deus. Aqui entendemos<br />

que para o reformador é a grandiosidade da vida futura que torna a presente<br />

desprezível:<br />

Mas de fato os fiéis se acostumam ao desprezo da presente vida, de modo que<br />

nem lhe gera ódio nem ingratidão para com Deus. Com efeito, esta vida, por<br />

mais que seja saturada de infinitas misérias, contudo, é merecidamente contada<br />

entre as bênçãos de Deus que não se deve desprezar. 24<br />

O ponto específico que Calvino está expondo fica claro quando ele declara:<br />

“Quando se chega a esta comparação, então de fato aquela pode não<br />

apenas ser tranquilamente negligenciada, mas diante desta pode ser totalmente<br />

desprezada e desdenhada”. 25<br />

A fim de que não reste dúvida de que ele não está falando de um desprezo<br />

ingrato da vida presente, mas em razão da necessidade da comparação que há<br />

com a vida futura, na qual a presente se torna desprezível, Calvino conclui:<br />

Portanto, se a vida celestial for comparada à terrena, não há dúvida de que seja<br />

incontestavelmente não apenas desprezível, mas até mesmo digna de ser calcada<br />

aos pés. Por certo que nunca deve ser tida em ódio, senão até onde ela nos mantém<br />

sujeitos ao pecado; aliás, esse ódio nem deve voltar-se propriamente contra<br />

ela. Seja como for, convêm, entretanto, de tal modo devemos deixar-nos afetar<br />

por ela, seja de enfado, seja de insatisfação, que, desejando-lhe o fim, também<br />

estejamos predispostos a permanecer nela ao arbítrio de Deus, em termos tais<br />

que de fato nosso enfado esteja longe de toda murmuração e impaciência. 26<br />

As implicações desse tipo de pensamento são efetivamente práticas. É<br />

nesse sentido que escatologia para o reformador passa longe do caminho da<br />

especulação e situa-se no contexto do viver a presente vida responsavelmente:<br />

Mas, nenhum caminho é mais seguro e mais expedito do que aquele que nos<br />

resulta do menosprezo da presente vida e da meditação da imortalidade celeste.<br />

Ora, daqui seguem-se duas regras: primeira, que os que usam deste mundo sejam<br />

dispostos exatamente como se dele não usassem; os que contraem matrimônio,<br />

como se o não contraíssem; os que compram, como se não comprassem, como<br />

23 Ibid.<br />

24 Institutas 3.9.3.<br />

25 Institutas 3.9.4.<br />

26 Ibid.<br />

91


LEANDRO LIMA, O PENSAMENTO ESCATOLÓGICO DE CALVINO<br />

preceitua Paulo [1Co 7.29-31]. Segunda, que saibam suportar a penúria não<br />

menos serena e pacientemente, quando se desfruta de abundância moderada.<br />

Aquele que prescreve que deves usar deste mundo como se dele não usasses,<br />

aniquila não apenas a intemperança da gula na comida e na bebida, a moderada<br />

indulgência na mesa, na moradia, na indumentária, a ambição, a soberba, a<br />

arrogância, o enfado, como também todo cuidado e predisposição que te afaste<br />

ou impeça do pensamento da vida celeste e do zelo de nutrir a alma. 27<br />

3. A RESSURREIÇÃO, O MILÊNIO E O ESTADO INTERMEDIÁRIO<br />

Embora não tenha reservado muito espaço em seus escritos para descrever<br />

sobre assuntos relativos ao futuro, Calvino não os deixou sem atenção. Porém,<br />

nesse ponto, do mesmo modo que em todos os outros da sua teologia, Calvino<br />

não está interessado em discussões inúteis.<br />

O aspecto central da escatologia para Calvino é a ressurreição. Ela é a<br />

grande expectativa do crente. Calvino diz: “Por isso, eu disse que dos benefícios<br />

de Cristo nenhum fruto perceberam, senão aqueles que alçam a ânimo à<br />

ressurreição”. 28 Essa é uma declaração poderosa. Na opinião do reformador,<br />

se a ressurreição não é o grande anseio de uma pessoa, isso significa que ela<br />

não “percebeu” nenhum fruto dos benefícios de Cristo. Portanto, a escatologia<br />

para o reformador concentra-se em estudar e compreender a ressurreição.<br />

Calvino, de fato, parece ter certo anseio de brevidade em escrever sobre<br />

os eventos futuros, talvez porque não veja vantagens práticas em simplesmente<br />

satisfazer a curiosidade das pessoas, ou talvez por entender que o conhecimento<br />

e a certeza da ressurreição futura é a baliza para uma vida operante no presente,<br />

tendo em vista os terríveis distúrbios do tempo presente:<br />

E para que nesta corrida seu ânimo não desfaleça, o mesmo Paulo evoca por<br />

companheiros a todas as criaturas [Rm 8.19]. Pois uma vez que se contemplam<br />

por toda parte ruínas disformes, ele declara que tudo quanto há no céu e na terra<br />

luta por sua renovação. 29<br />

A ressurreição do crente, entretanto, não pode ser vista dissociada da<br />

ressurreição de Cristo. Por esse motivo, o reformador gasta tanto tempo, logo<br />

após falar sobre a expectativa da ressurreição futura, reafirmando a certeza<br />

da ressurreição passada de Jesus, pois ela é a garantia e o penhor da nossa<br />

própria ressurreição. 30 Portanto, o que parece preocupar mais a mente do reformador<br />

é que, sem a ressurreição, toda a estrutura do evangelho é demolida,<br />

uma vez que “cairia por terra sua autoridade, não apenas em uma parte, mas<br />

27 Institutas 3.10.4.<br />

28 Institutas 3.25.2.<br />

29 Institutas 3.25.2.<br />

30 Institutas 3.25.3.<br />

92


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 85-98<br />

em seu todo, a que abarca não só a adoção, mas também a efetuação de nossa<br />

salvação”. 31 Por isso, como já foi dito, não é possível dissociar escatologia de<br />

soteriologia na obra do reformador de Genebra.<br />

O próprio Calvino reconhece a brevidade de sua descrição:<br />

Estou a restringir, com parcimônia, coisas que não só poderiam ser tratadas mais<br />

extensamente, mas até merecem ser mais esplendidamente adornadas. E, no<br />

entanto, confio que em minhas poucas palavras os leitores piedosos encontrem<br />

bastante material que seja suficiente para que sua fé seja edificada. Portanto,<br />

Cristo ressuscitou para que nos tivesse como companheiros da vida futura. 32<br />

Mesmo assim, Calvino não foge a uma série de discussões a respeito da<br />

segunda vinda de Cristo, ou mesmo do estado intermediário. Quanto ao milênio,<br />

ele claramente se posiciona contra a interpretação literal:<br />

Deixo de considerar o fato de que já no tempo de Paulo Satanás começou a<br />

pervertê-la; mas, pouco depois, seguiram-se os quiliastas, que limitaram o reinado<br />

de Cristo a mil anos. E, em verdade, a ficção desses é por demais pueril para<br />

que tenha necessidade de refutação ou seja ela digna. Tampouco Apocalipse lhes<br />

empresta suporte, do qual certamente tiraram pretexto para seu erro, quando no<br />

número milenário [Ap 20.4] não se trata da eterna bem-aventurança da Igreja,<br />

mas apenas de agitações várias que aguardavam a Igreja a militar na terra. Além<br />

disso, toda a Escritura proclama que jamais haverá fim para a bem-aventurança<br />

dos eleitos, nem para suplício dos réprobos [Mt 25.41, 46]. 33<br />

A declaração, é verdade, não nos permite entender exatamente qual era<br />

a interpretação de Calvino sobre Apocalipse 20.4, mas é bem evidente que<br />

ele não aceitava a ideia de um reino literal de mil anos, pelo simples fato de<br />

que entendia que o reino de Cristo não podia ter fim. Calvino não esperava<br />

uma melhora gradual deste mundo, como alguns acreditam, antes entendia<br />

que perseguição e apostasia estão na rota deste mundo até o fim. Comentando<br />

2Tessaloniscenses 2, que menciona a apostasia como condição sine qua non<br />

para a vinda de Cristo, Calvino diz: “Este discurso inteiramente corresponde<br />

com o que Cristo sustentou na presença de seus discípulos, quando eles<br />

perguntaram a respeito do fim do mundo. Pois ele exorta-os a se prepararem<br />

para enfrentar duros conflitos (Mt 24.6)”. Assim, Calvino conclui que Paulo<br />

“igualmente declara que os crentes precisam enfrentar combate por um longo<br />

período, antes de triunfar”. 34 Calvino rejeita a interpretação de que a queda<br />

31 Ibid.<br />

32 Ibid.<br />

33 Institutas 3.25.5.<br />

34 CALVIN, Commentaries on the Epistles of Paul the Apostle to the Philippians, Colossians, and<br />

Thessalonians, p. 325.<br />

93


LEANDRO LIMA, O PENSAMENTO ESCATOLÓGICO DE CALVINO<br />

do Império Romano seria a causa dessa apostasia, 35 e igualmente se recusa a<br />

aceitar que seja algo localizado: “Paulo, entretanto, emprega o termo apostasia<br />

para significar um terrível abandono de Deus, e que não parte de um ou poucos<br />

indivíduos, mas como algo que se espalha amplamente através de um grande<br />

número de pessoas”. 36 Por outro lado, Calvino é extremamente otimista no que<br />

diz respeito ao avanço do evangelho em todo o mundo. Podemos dizer que ele<br />

via o progresso do evangelho, mas não o progresso do mundo.<br />

Quanto ao estado intermediário e à situação das almas após a morte,<br />

Calvino relutantemente entra na discussão com um pouco mais de vigor, pois<br />

reage fortemente à ideia de que a alma não sobrevive independente do corpo<br />

após a morte:<br />

De modo bem diferente, a Escritura compara o corpo a uma habitação da qual<br />

diz migrarmos quando morremos, porquanto nos avalia em função desse elemento,<br />

o qual nos distingue dos animais brutos. Assim Pedro, próximo à morte,<br />

diz haver chegado o tempo em que entrega seu tabernáculo [2Pe 1.14]. Paulo,<br />

ademais, falando acerca dos fiéis, depois de dizer que “temos nos céus um edifício,<br />

quando nos for demolida a morada terrestre” [2Co 5.1], acrescenta que<br />

“peregrinamos longe do Senhor enquanto permanecermos no corpo” [2Co 5.6];<br />

mas, “desejamos antes deixar este corpo, para habitar com o Senhor” [2Co 5.8].<br />

A não ser que as almas fossem sobreviventes aos corpos, o que estaria presente<br />

com Deus depois de haver separado do corpo? O Apóstolo, porém, remove<br />

toda dúvida quando ensina que fomos reunidos “aos espíritos dos justos” [Hb<br />

12.23], palavras estas que nos fazem entender que somos associados aos santos<br />

patriarcas, os quais, ainda que mortos, cultivam conosco a mesma piedade, de<br />

modo que não podemos ser membros de Cristo, a não ser que nos unamos com<br />

eles. Também, a menos que, despojadas dos corpos, retivessem as almas sua<br />

essência e fossem capazes da bem-aventurada glória, Cristo não teria dito ao<br />

ladrão: “Hoje estarás comigo no Paraíso” [Lc 23.43]. Estribados em testemunhos<br />

tão claros, não duvidemos que, segundo o exemplo de Cristo [Lc 23.46],<br />

em morrendo, recomendamos nossas almas a Deus; ou, segundo o exemplo de<br />

Estêvão, as confia à guarda de Cristo [At 7.59] que, não sem motivo, é chamado<br />

o fiel Pastor e Bispo delas [1Pe 2.25]. 37<br />

Calvino defende que as almas dos salvos estão com Deus após a morte,<br />

desfrutando das benesses preparadas para elas. No entanto, isso não significa<br />

que Calvino tenha uma posição inegociável a respeito do lugar onde as almas<br />

dos crentes descansam, nem acredita que seja possível definir isso com total<br />

precisão:<br />

35 Ibid., p. 325-326.<br />

36 Ibid., p. 326.<br />

37 Institutas 3.25.6.<br />

94


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 85-98<br />

Entretanto, inquirir de seu estado intermediário, com demasia curiosidade, não<br />

é lícito, nem convém. Muitos se atormentam em demasia, disputando que lugar<br />

ocupam as almas nesse estado e se porventura já desfrutam ou não da glória<br />

celestial. Com efeito, é estulto e temerário indagar de causas desconhecidas<br />

mais profundamente do que Deus nos permita saber. A Escritura não avança<br />

além de dizer que Cristo está presente com elas e as recebe no Paraíso, para<br />

que desfrutem de consolação, e que as almas dos réprobos, porém, sofrem tormentos<br />

segundo seu merecimento. Que doutor ou mestre, agora, nos revelará<br />

o que Deus ocultou? Quanto ao lugar, a questão não é menos imprópria e fútil,<br />

quando sabemos que a alma não tem essa dimensão que tem o corpo. Que o<br />

bem-aventurado congresso dos santos espíritos é chamado o seio de Abraão<br />

[Lc 16.<strong>22</strong>], abundante penhor nos é de sermos, nesta peregrinação, acolhidos<br />

pelo pai comum dos fiéis, para que partilhe conosco o fruto de sua fé. 38<br />

Em outro lugar das Institutas ele voltaria a afirmar que definir o lugar<br />

exato das almas, ou seja, se estão no céu com Deus, ou em algum outro<br />

lugar também com Deus, não era um assunto central da fé cristã, nem devia<br />

ser causa de divisões:<br />

Há outros pontos em que não concordam todas as igrejas e, contudo, não rompem<br />

a união da igreja. Assim, por exemplo, se uma igreja sustém que as almas são<br />

transportadas ao céu no momento de separar-se de seus corpos, e outra, sem se<br />

atrever a determinar o lugar, diz simplesmente que vivem em Deus, quebrariam<br />

estas igrejas entre si o amor e o vínculo da união, se esta diversidade de opinião<br />

não fosse por polêmica ou por obstinação? 39<br />

A melhor explicação que ele oferece do estado intermediário é a seguinte:<br />

Enquanto isso, uma vez que a Escritura por toda parte nos ordena que dependamos<br />

da expectativa da vinda de Cristo e que prorroga a coroa de glória até<br />

esse momento, estejamos contentes com estes limites divinamente prescritos:<br />

uma vez desincumbidas de sua militância, as almas dos piedosos passam para<br />

o bem-aventurado descanso, onde, com feliz alegria, aguardam desfrutar da<br />

glória prometida, e assim todas as coisas sejam tidas em suspenso todas até que<br />

Cristo apareça como Redentor. Os réprobos, porém, não há dúvida de que têm a<br />

mesma sorte que é prescrita a Judas e aos diabos, a saber, são mantidos atados<br />

por cadeias, até que sejam arrastados ao suplício a que foram destinados [Jd 6]. 40<br />

4. AS LIMITAÇÕES DA LINGUAGEM<br />

O mais próximo que Calvino chega de algum tipo de especulação é no<br />

que tange a definir a natureza do corpo ressuscitado, porém, ainda assim, con-<br />

38 Ibid.<br />

39 Institutas 4.1.12.<br />

40 Institutas 3.25.6.<br />

95


LEANDRO LIMA, O PENSAMENTO ESCATOLÓGICO DE CALVINO<br />

tidamente ele evita excessos, prendendo-se firmemente ao que Paulo ensinou<br />

em 1Coríntios 15:<br />

Resta agora tratar brevemente do modo da ressurreição. Assim falo porque,<br />

chamando-o um mistério, Paulo nos exorta à sobriedade, para que freemos o<br />

excesso de mais livre e mais sutilmente especular. Em primeiro lugar, cumpre-<br />

-nos sustentar o que já dissemos: que, no que tange à substância, haveremos de<br />

ressuscitar na mesma carne que possuímos, mas a qualidade haverá de ser outra;<br />

assim como, quando a mesma carne de Cristo que foi oferecida como sacrifício<br />

ressurgiu, no entanto excedeu em outros dotes, como se fosse completamente<br />

outra, o que Paulo mostra com exemplos familiares [1Co 15.39]. Ora, assim<br />

como a substância da carne humana e da animal é a mesma [1Co 15.39], porém<br />

não a qualidade; e como a matéria de todas as estrelas é a mesma, porém diversa<br />

a luminosidade [1Co 15.41], assim, embora haveremos de ter a substância do<br />

corpo, ele ensina que haverá de sofrer mudança [1Co 15.51, 52], de modo que a<br />

condição lhe seja muito mais eminente. Portanto, para que sejamos ressuscitados,<br />

o corpo corruptível não perecerá, nem se desvanecerá, mas, deposta a corrupção,<br />

se revestirá da incorrupção [1Co 15.53, 54]. E como Deus tem a sua disposição<br />

todos os elementos, nenhuma dificuldade poderá impedir que ordene à terra, às<br />

águas e ao fogo que devolvam o que parecia haver consumido. Assim também<br />

testifica Isaías, ainda que em linguagem figurativa: “Eis que o Senhor sairá de<br />

seu lugar para que visite a iniqüidade da terra, e a terra porá a descoberto seu<br />

sangue, nem mais ocultará seus mortos” [Is 26.21]. 41<br />

Portanto, continuidade e descontinuidade estarão presentes no mundo<br />

por vir em relação a este mundo.<br />

Explicar como será a felicidade no mundo vindouro é algo que Calvino<br />

reconhece ser impossível. Nesse ponto, porém, provavelmente Calvino fez<br />

a mais importante e relevante contribuição para a compreensão do gênero<br />

apocalíptico e, por sua vez, para a própria escatologia, tanto do Antigo quanto<br />

do Novo Testamento. Na citação acima, ele já mencionou que Isaías usou<br />

“linguagem figurada”. É um princípio bem conhecido de Calvino a questão<br />

da ideia da “acomodação” divina à linguagem e percepção humanas em todo<br />

o processo da revelação. 42 E isso é ainda mais destacável ao tratar dos assuntos<br />

relativos ao mundo vindouro:<br />

41 Institutas, 3.25.8.<br />

42 Segundo Alister McGrath, Calvino desenvolveu, no século 16, uma teoria incrivelmente sofisticada<br />

sobre a natureza e a função da linguagem humana. A vida de João Calvino. São Paulo: Cultura Cristã,<br />

2004, p. 154. Para Calvino, quando Deus fala, “ele se acomoda à nossa capacidade”. 1Coríntios. Trad.<br />

Valter Graciano Martins. São Bernardo do Campo, SP: Edições Parákletos, 1996, p. 82 (1Co 2.7). Nas<br />

Escrituras, segundo Calvino, Deus se revela por meio de palavras. Essas palavras humanas conseguem<br />

falar algo sobre Deus, mas são limitadas. Aqui está uma das grandes contribuições de Calvino para o<br />

pensamento cristão: o princípio da acomodação. Ou seja, a palavra divina adapta-se ou acomoda-se à<br />

capacidade humana, para suprir as necessidades da situação. Em outras palavras, Deus se retrata de uma<br />

forma que o homem tinha condições de compreender. LIMA, Leandro de. O futuro do calvinismo. São<br />

Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 183.<br />

96


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 85-98<br />

Mas então, uma vez, finalmente, cumprida a profecia quanto à morte ser tragada<br />

pela vitória [Is 25.8; Os 13.14; 1Co 15.54, 55], tenhamos sempre em mente<br />

a felicidade eterna que é propósito de nossa ressurreição, de cuja excelência,<br />

quanto as línguas humanas pudessem proclamar, seria apenas uma parte insignificante<br />

do que se merece. Ora, por mais que seja verdadeiramente o que<br />

ouvimos, de que o reino de Deus haverá de ser cheio de esplendor, de alegria, de<br />

felicidade, de glória, no entanto, aquelas coisas que se enumeram, permanecem<br />

mui remotas de nosso senso e como que envoltas em obscuridade, até que tiver<br />

chegado aquele dia em que ele mesmo haverá de exibir-nos sua glória para ser<br />

contemplada face a face [1Co 13.12]. Sabemos que somos filhos de Deus”, diz<br />

João, “mas, isso ainda não se fez manifesto. Quando, porém, formos semelhantes<br />

a ele, então o veremos tal qual ele é” [1Jo 3.2]. Por isso é que os profetas, não<br />

podendo exprimir em suas próprias palavras aquela bem-aventurança espiritual,<br />

como que simplesmente a delinearam sob a forma das coisas corpóreas. 43<br />

O reformador de Genebra, portanto, não busca interpretação literal nos<br />

textos que falam do mundo vindouro; antes, entende que a limitação da linguagem<br />

presente nos impede de descrever e de compreender o mundo vindouro,<br />

e isso serve de alerta contra qualquer tipo de especulação nociva:<br />

E, quando tivermos avançado bastante nesta meditação, no entanto reconheceremos<br />

que, se a concepção de nossa mente for comparada com a sublimidade<br />

deste mistério, ainda nós ficaremos nas raízes mais inferiores. Portanto, devemos,<br />

neste aspecto, curvar-nos com mais sobriedade, para que, esquecidos<br />

de nossa própria limitação, pelo que com mais audácia subamos ao alto, o<br />

fulgor da glória celestial não nos trague. Sentimos também quão desmesurado<br />

é nosso desejo de saber mais do que é lícito, do quê jorram incessantemente<br />

questões não apenas frívolas, mas até mesmo nocivas. Chamo frívolas aquelas<br />

das quais não se pode tirar nenhum proveito. Mas, este segundo tipo é pior,<br />

porque os que se entregam a elas se enredilham em especulações perniciosas,<br />

razão por que as chamo nocivas. 44<br />

Ele descreve sua própria postura particular quanto a esse assunto com as<br />

seguintes palavras:<br />

Quanto a mim respeita, não só pessoalmente me contenho de investigação supérflua<br />

de coisas inúteis, mas ainda sou de parecer que me devo acautelar para<br />

que não fomente a leviandade de outros, respondendo a questões como essas.<br />

Homens famintos de vão conhecimento indagam quão grande distância existe<br />

entre profetas e apóstolos; por outro lado, quão grande a distância entre apóstolos<br />

e mártires; de quantos graus diferirão as virgens das mulheres casadas,<br />

enfim, nenhum canto do céu deixam sem revolver em seu perscrutar. 45<br />

43 Institutas, 3.25.10 (destaque nosso).<br />

44 Ibid.<br />

45 Institutas, 3.25.11.<br />

97


LEANDRO LIMA, O PENSAMENTO ESCATOLÓGICO DE CALVINO<br />

A conclusão, portanto, é límpida: “que este nos seja o caminho mais<br />

curto: nos contentemos com o espelho e o enigma, até que contemplemos face<br />

a face [1Co 13.12]”. 46<br />

CONCLUSÃO<br />

Vemos, portanto, em Calvino uma escatologia sóbria, inteiramente a<br />

serviço da vida presente, distanciada de especulações, despreocupada em responder<br />

a todas as curiosidades dos homens, focada na ressurreição de Cristo<br />

e intimamente conectada com os conceitos soteriológicos desenvolvidos no<br />

período da Reforma. A linguagem e a concepção da mente humana nos impedem<br />

de entender plenamente o futuro e suas implicações, mas isso não significa<br />

que meditar sobre a vida futura seja algo inútil e infrutífero. Ao contrário, é<br />

uma tarefa sublime e necessária, desde que nos contentemos com o espelho<br />

e aprendamos a desprezar coerentemente a presente vida.<br />

ABSTRACT<br />

Since Calvin did not write a commentary on the book of Revelation, there<br />

is a tendency to believe that he did not care much about eschatology or that he<br />

felt unable to discuss the subject. This article demonstrates that such view can be<br />

wrong for several reasons, such as how Calvin in fact understood eschatology,<br />

his concern to avoid speculations, and his consciousness of the limitations of<br />

human language to describe the world to come. Departing from a contextual<br />

analysis of the Genevan reformer’s works, the article tries to highlight that<br />

there is an unbreakable connection between eschatology and soteriology in<br />

the work of the reformers, especially in Calvin. Despite his constant concern<br />

to avoid speculations, he did not evade the debate around several topics that<br />

he considered essential in order to maintain Reformed doctrine, particularly<br />

concerning resurrection and the intermediate state.<br />

KEYWORDS<br />

Calvin; Eschatology; Revelation; Theory of accommodation; Resurrection.<br />

46 Ibid.<br />

98


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115<br />

A Hermenêutica Cristotélica de João Calvino<br />

João Paulo Thomaz de Aquino *<br />

RESUMO<br />

Visando convencer intérpretes e pregadores de um modo específico de<br />

encontrar Cristo na leitura do Antigo Testamento, o presente artigo defende<br />

que a maneira como Calvino interpreta o Antigo Testamento é adequadamente<br />

descrita pelo termo “cristotélica”, no sentido de que ele, em contraste com<br />

Erasmo e Lutero, encontrava Cristo no Antigo Testamento com base em uma<br />

teologia bíblica saudável que pressupunha a unidade dos testamentos.<br />

PALAVRAS-CHAVE<br />

Hermenêutica; Cristocêntrica; Cristológica; Cristotélica; Calvino; Lutero;<br />

Erasmo.<br />

INTRODUÇÃO<br />

Nos últimos tempos tem-se falado bastante sobre pregação cristocêntrica. 1<br />

Livros, artigos e palestras corretamente procuram convencer os pregadores<br />

de que Jesus Cristo tem que ser o assunto central e o alvo de toda pregação<br />

* Mestre em Antigo Testamento (CPAJ, 2007) e Novo Testamento (Calvin Seminary, 2009),<br />

doutor em Ministério (CPAJ, 2014) e doutorando em Novo Testamento pela Trinity International University.<br />

Professor de Novo Testamento no CPAJ. Editor dos websites issoegrego.com.br e yvaga.com.<br />

br. Agradeço a graciosa leitura e revisão feitas pelo amigo Dr. Christian Medeiros, o que evidentemente<br />

não o torna responsável pelos meus equívocos.<br />

1 LAWSON, Steven J. “The Kind of Preaching God Blesses”. Eugene, OR: Harvest House<br />

Publishers, 2013; CARDOSO, Dario de Araújo. Uma abordagem cristocêntrica para os sermões biográficos.<br />

<strong>Fides</strong> Reformata 15-1 (2010): 57–79; GREIDANUS, Sidney. Pregando Cristo a partir do<br />

Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2006; CLOWNEY, Edmund P. Preaching Christ in All of<br />

Scripture. Wheaton, IL: Crossway Books, 2003; CHAPELL, Bryan. Pregação cristocêntrica: restaurando<br />

o sermão expositivo – um guia prático e teológico para a pregação bíblica. Saõ Paulo: Cultura Cristã,<br />

2002; GOLDSWORTHY, Graeme. Preaching the Whole Bible as Christian Scripture: The Application<br />

of Biblical Theology to Expository Preaching. Grand Rapids: Eerdmans, 2000.<br />

99


JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO<br />

bíblica, não somente do Novo, mas também do Antigo Testamento. É evidente,<br />

no entanto, que uma pregação cristocêntrica somente é possível com uma<br />

hermenêutica cristocêntrica. Embora esses assuntos estejam sempre em pauta,<br />

o advento do movimento denominado Interpretação Teológica da Escritura<br />

(Theological Interpretation of Scripture, TIS) com sua ênfase na recuperação da<br />

exegese pré-crítica, tem contribuído ainda mais para a promoção de discussões<br />

relacionadas ao papel de Cristo na hermenêutica. 2<br />

O presente artigo pretende contribuir com essas discussões, defendendo<br />

de forma introdutória que a hermenêutica de João Calvino era “cristotélica”,<br />

diferindo das hermenêuticas cristológica e cristocêntrica que caracterizavam<br />

respectivamente Desidério Erasmo e Martinho Lutero. 3 Visando defender<br />

essa tese, serão apresentadas introduções brevíssimas ao papel de Cristo na<br />

interpretação de Erasmo e Lutero, e a interpretação cristotélica de Calvino será<br />

defendida como a mais teologicamente saudável.<br />

1. A HERMENÊUTICA CRISTOLÓGICA DE ERASMO<br />

A hermenêutica de Desidério Erasmo (1466-1536) foi influenciada pelos<br />

pais da igreja, especialmente Orígenes de Alexandria (185-254), bem como pelo<br />

seu amigo John Colet (1467-1519). 4 Erasmo considera Jesus como o centro de<br />

2 BARTHOLOMEW, Craig G.; EMERSON, Matthew Y. A Manifesto for Theological Interpretation.<br />

Grand Rapids: Baker Academic, 2016; KURUVILLA, Abraham. Privilege the Text! A Theological<br />

Hermeneutic for Preaching. Chicago: Moody, 2013; GOLDSWORTHY, Graeme. Christ-Centred Biblical<br />

Theology: Hermeneutical Foundations and Principles. Nottingham: Apollos, 2012; VANHOOZER,<br />

Kevin J. The Drama of Doctrine: A Canonical-Linguistic Approach to Christian Theology. Louisville:<br />

Westminster John Knox Press, 2005, p. 346s; CHAN, Mark L. Y. Christology from Within and Ahead:<br />

Hermeneutics, Contingency and the Quest for Transcontextual Criteria in Christology. Leiden: Brill,<br />

2001, p. 275s.<br />

3 É evidente que os termos cristocêntrico, cristológico e cristotélico podem ser usados com<br />

diferentes conotações e, de fato, têm sido. Deixaremos claro na sequência do artigo as diferenças que<br />

atribuímos a cada um desses termos. Embora eu não tenha extraído a ideia dele, um dos primeiros<br />

autores a utilizar o termo “cristotélico” foi Peter Enns em “Apostolic Hermeneutics and an Evangelical<br />

Doctrine of Scripture : Moving beyond a Modernist”. Westminster Theological Journal 65 (2003). De sua<br />

autoria, ver também: Inspiration and Incarnation: Evangelicals and the Problem of the Old Testament.<br />

Grand Rapids: Baker Academic, 2015. Vanhoozer usa o termo cristotópico e Jeff Fisher, cristoscópico.<br />

Ver VANHOOZER, The Drama of Doctrine: A Canonical-Linguistic Approach to Christian Theology,<br />

p. 346; FISHER, Jeff. A Christoscopic Reading of Scripture: Johannes Oecolampadius on Hebrews.<br />

Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2016.<br />

4 Os pontos principais da hermenêutica erasmiana podem ser assim listados: (1) deve-se ter um<br />

coração puro; (2) deve-se aprender hebraico, grego, latim e formar-se nas disciplinas liberais, especialmente<br />

gramática e retórica; (3) o estudante deve perceber as complexidades dogmáticas dos vários<br />

textos da Escritura e trazer esse todo multifacetado a Cristo como o centro; (4) deve-se praticar uma<br />

exegese espiritual; (5) deve-se praticar esse trabalho com metodologia sã e não abusar da dialética.<br />

Cf. CHANTRAINE, Georges G. “The Ration Veare Theologiae (1518)”. In: DEMOLEN, Richard L.<br />

(Org.). Essays on the Works of Erasmus. New Haven: Yale University Press, 1978, 179-80. Ver outra<br />

lista em DOCKERY, David S. “The Foundation of Reformation Hermeneutics: A Fresh Look at Erasmus”.<br />

In: BAUMAN, Michael; HALL, David (Orgs.). Evangelical Hermeneutics. Camp Hill, PA:<br />

100


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115<br />

todas as coisas. “O conteúdo essencial da Sagrada Escritura é o próprio Cristo.<br />

Parte da encarnação de Cristo é a sua incorporação na Escritura”. 5 Esse último<br />

aspecto levantado por Kohls é muito importante, pois faz com que Erasmo<br />

não abandone a interpretação alegórica medieval, visto que, para ele, ao ler a<br />

Escritura o intérprete está se encontrando com o próprio Cristo. 6<br />

Para Erasmo, encontramos nas Escrituras, especialmente nos evangelhos<br />

e nas cartas, a verdadeira filosofia que ele denomina philosophia Christi. 7 Essa<br />

filosofia de Cristo, “um novo e maravilhoso tipo de filosofia”, é uma construção<br />

de Erasmo que engloba a compreensão dele acerca da história de Cristo narrada<br />

nos evangelhos, bem como o seu significado apresentado nas cartas (sua<br />

obra). 8 Hall não faz jus à riqueza do conceito quanto diz que a philosophia<br />

Christi “não diz respeito a uma estrutura intelectual, mas a um relacionamento<br />

vivo com Cristo”. 9 Aldridge é mais fiel à complexidade do tema em Erasmo:<br />

A philosophia Christi que Erasmo extrai como a mensagem do Novo Testamento<br />

é uma filosofia daquilo que Erasmo sentia que deveria ser a religião. Ela tem<br />

Cristo como o seu centro, mas os caminhos que levam ao centro são muitos.<br />

Há a piedade, que Erasmo via como amor, simplicidade e pureza. Há o aspecto<br />

racional que dá ao homem um lugar importante em alcançar esse objetivo. E,<br />

então, há a concepção idealista de que a estrada para a filosofia de Cristo deve<br />

passar pelas grandes ideias do classicismo. Em um sentido, todas essas estradas<br />

levam para trás; para trás em direção ao Cristo simples dos evangelhos, para trás<br />

em direção ao classicismo, e a estrada do conhecimento tem o seu movimento<br />

para trás porque é nas fontes que adquirimos o nosso conhecimento. 10<br />

Christian Publications, 1995, p. 9-10. “A hermenêutica erasmiana é notoriamente difícil de se descrever<br />

claramente, pois Erasmo está sempre olhando em duas direções ao mesmo tempo – tanto para a Palavra<br />

ideal e perfeitamente expressiva, quanto para a multidão de palavras humanas imperfeitas apanhadas<br />

no tumulto da história e da transmissão”. BARNETT, Mary Jane. “Erasmus and the Hermeneutics of<br />

Linguistic Praxis”. Renaissance Quarterly 49 (1996), p. 542.<br />

5 KOHLS, Ernst W. “The Principal Theological Thoughts in the Enchiridion Militis Christiani”.<br />

In: DEMOLEN, Richard L. (Org.). Essays on the Works of Erasmus. New Haven: Yale University Press,<br />

1978, p. 65.<br />

6 “O coração do conceito de Escritura de Erasmo está exatamente onde ele diz que a presença<br />

viva, real e salvífica de Cristo está – na preocupação centrada em Cristo pelo sensus spiritualis. Nessa<br />

presença pessoal de Cristo na Escritura está a razão pela qual, para Erasmo, a preocupação última não<br />

é uma questão de conhecimento, mas de encontrar salvação – o que qualquer cristão pode experimentar<br />

diretamente por contato pessoal com a Escritura”. Ibid., p. 70.<br />

7 ERASMUS, Desiderius. Enchiridion Militis Christiani. London: Methuen & Co., 1905, 10.<br />

Disponível em: https://books.google.com/books?id=XfVMAAAAMAAJ&printsec=frontcover#v=one<br />

page&q&f=false.erasmus.<br />

8 Paraclesis 10/95.<br />

9 HALL, B. “Erasmus: Biblical Scholar and Reformer”. In: DOREY, T. A. (Org.). Erasmus.<br />

Albuquerque: University of New Mexico Press, 1970, p. 106.<br />

10 ALDRIDGE, John William. The Hermeneutic of Erasmus. Richmond: John Knox Press, 1966,<br />

p. 40.<br />

101


JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO<br />

A philosophia Christi, portanto, engloba aspectos práticos e existenciais,<br />

bem como aspectos ligados à história, exemplo e doutrina de Cristo e, a partir<br />

desses, ao uso proveitoso de diversas fontes de conhecimento clássico. Tal<br />

filosofia é, no entanto, um construto humano; é a filosofia que o humanista<br />

Erasmo extraiu de suas leituras do Novo Testamento. Aldridge nos auxilia<br />

novamente a compreender o problema quando afirma que Erasmo caminhou<br />

para a criação de uma filosofia de Cristo em vez de uma teologia de Cristo. 11<br />

Chantraine mostra de maneira mais clara como esse método resulta em uma<br />

leitura alegórica:<br />

A fim de discernir a doutrina de Cristo na Escritura, deve-se descobrir mais do<br />

que o sentido literal encontrado na narrativa, é necessário associar as palavras<br />

com a pessoa que está falando e a história com o ato de expiação de Cristo. É<br />

necessário, na verdade, considerar como essas palavras procedem da pessoa de<br />

Cristo e como este está dentro de suas Palavras. 12<br />

Por causa de tal concepção da Escritura, Erasmo classificava os livros<br />

bíblicos por ordem de importância, considerando sua centralidade em Cristo.<br />

Assim, os evangelhos e as epístolas paulinas detinham o centro e o Antigo<br />

Testamento estava à margem. Compier nos fornece um resumo proveitoso<br />

dessa característica:<br />

Um princípio hermenêutico fundamental emerge da doutrina cristocêntrica de<br />

Erasmo sobre as Escrituras: para qualquer lugar que se olha em qualquer um<br />

dos testamentos deve-se “fazer cuidadosa consideração do maravilhoso e harmonioso<br />

ciclo [orbem] da história [fabulae] inteira de Cristo” (Ratio, 216/45).<br />

Tudo na Bíblia visa apontar para Jesus, que é o centro e a chave hermenêutica da<br />

Escritura. Assim, o que Erasmo chamou de scopus Christi, torna-se o princípio<br />

organizador do todo, dando ao santo escrito a sua unidade. 13<br />

Pode-se, portanto, classificar a hermenêutica de Erasmo como uma<br />

hermenêutica cristológica. Esse termo cabe bem para uma hermenêutica que<br />

começa baseada em uma filosofia cuja origem e conteúdo tem Cristo como seu<br />

centro, mas também lança mão de outras fontes de conhecimento. 14 Embora a<br />

denomine como cristocêntrica, a explicação de Wedel deixa ainda mais claro<br />

11 Ibid., p. 41.<br />

12 CHANTRAINE, “The ration veare theologiae (1518)”, p. 182.<br />

13 COMPIER, Don H. “The Independent Pupil: Calvin’s Transformation of Erasmus’ Theological<br />

Hermeneutics”. Westminster Theological Journal 54 (1992), p. <strong>22</strong>2.<br />

14 “Para Erasmo, Cristo era o centro da Escritura, não, no entanto, como redentor que, hoje, nos<br />

une a Deus, mas, em vez disso, como o grande exemplo do passado que nos instrui nas virtudes que<br />

agradam a Deus”. RUNIA, Klaas. “The Hermeneutics of the Reformers”. Calvin Theological Journal<br />

19 (1984), p. 128-129.<br />

102


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115<br />

o motivo pelo qual escolhemos o termo cristológica para identificar a interpretação<br />

do humanista de Roterdã: “A teologia de Erasmo é marcadamente<br />

cristocêntrica; ela inclui a doutrina de satisfação, mas enfatiza ainda mais<br />

Cristo como mestre e exemplo”. 15<br />

2. A HERMENÊUTICA CRISTOCÊNTRICA DE MARTINHO<br />

LUTERO<br />

A hermenêutica de Lutero pode ser chamada com justiça de cristocêntrica,<br />

pois, para o reformador alemão, Cristo era realmente o centro de ambos os<br />

testamentos. 16 Jesus Cristo é o sensus literalis da Escritura. 17<br />

Comentando acerca do primeiro livro de Lutero sobre os salmos, que<br />

reflete sua hermenêutica ainda não madura, Ebeling afirma: “Primeiro, Lutero<br />

embasa a exegese cristológica do Saltério sobre seu caráter profético”. 18<br />

Lutero, no entanto, defende que esse significado profético surge do significado<br />

histórico e também é parte do sentido literal do salmo, pois está de acordo com<br />

a intenção profética do autor. 19 Nessa fase, Lutero ainda usa a quadriga, mas<br />

submete-a à importante distinção hermenêutica entre letra e espírito e faz com<br />

que, ao mesmo tempo, Cristo seja a origem e o alvo do processo hermenêutico. 20<br />

A hermenêutica de Lutero é cristocêntrica, pois a sua teologia e concepção<br />

acerca da Bíblia são cristocêntricas:<br />

Para Lutero, a escritura tem autoridade última porque ela contém a palavra de<br />

Deus, e, em particular o dom mais importante de Deus, o evangelho da justificação<br />

pela fé em Cristo. Ele é muito claro com relação ao conteúdo e propósito<br />

do evangelho: ele comunica a obra salvífica da morte e ressurreição de Cristo<br />

para a humanidade. Sua avaliação da escritura é assim altamente cristocêntrica<br />

15 CHRIST-VON WEDEL, Christine. Erasmus of Rotterdam: Advocate of a New Christianity.<br />

Toronto: University of Toronto Press, 2013, p. 1463.<br />

16 “A questão principal é que o fundamento para a abordagem claramente cristocêntrica de Lutero<br />

à Escritura é principalmente uma conclusão textual gerada por seu relato principalmente messiânico<br />

da referente cristológica de ambos os testamentos, que, juntos, formam o ‘caráter da Escritura cristã’<br />

como um todo”. MARSH, William M. Martin Luther on Reading the Bible as Christian Scripture:<br />

The Messiah in Luther’s Biblical Hermeneutic and Theology. Eugene, OR: Pickwick Publications, 2017,<br />

p. 123.<br />

17 “O propósito desse estudo foi penetrar no coração do que é responsável em última instância<br />

pela assim chamada visão “cristocêntrica” da Bíblia por Lutero. A tese defendida foi que Lutero afirma<br />

que Cristo é o sensus literalis da Escritura primariamente devido à preocupação bíblica com a esperança<br />

messiânica”. Ibid., p. 193.<br />

18 EBELING, Gerhard. “The Beginnings of Luther’s Hermeneutics”. LQ 7 (1993), p. 454.<br />

19 Ibid., p. 455.<br />

20 Sobre letra x espírito em Lutero, ver: GLEASON, Randall C. “‘Letter’ and ‘Spirit’ in Luther’s<br />

Hermeneutics”. Bibliotheca Sacra 157 (2000): 468-485. Ver também a distinção correlata de Lutero<br />

entre lei e evangelho: FORDE, Gerhard O. “Law and Gospel in Luther’s Hermeneutic”. Interpretation<br />

37 (1983): 240-252.<br />

103


JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO<br />

e evangelho-cêntrica: ele prioriza aquelas partes da Bíblia onde acredita que<br />

Cristo é pregado mais claramente (como a epístola de Paulo aos Romanos) e<br />

está disposto a omitir ou diminuir a importância de certas partes se elas não “te<br />

apresentam Cristo”. 21<br />

Lei e Evangelho exercem um papel muito importante na hermenêutica<br />

de Lutero e demonstram claramente a centralidade de Cristo. Comentando<br />

Romanos 7.5-6, Lutero diz:<br />

A real diferença entre a velha e a nova lei [leia-se: evangelho] é esta: a velha<br />

lei diz àqueles que são orgulhosos por sua própria justiça: você deve ter Cristo<br />

e seu Espírito; a nova lei diz àqueles que, humilhados, reconhecem sua total<br />

carência de justiça e procuram a Cristo: Vejam, aqui está Cristo e seu Espírito.<br />

Aqueles, portanto, que interpretam o evangelho como outra coisa em vez “boas<br />

novas”, ainda não entenderam o evangelho. Precisamente isto deve ser dito<br />

àqueles que transformaram o evangelho em lei, em vez de interpretá-lo como<br />

graça e que colocam Cristo diante de nós como um Moisés. <strong>22</strong><br />

Vê-se na abordagem do reformador alemão que, para ele, tanto a lei<br />

quanto o evangelho têm seu centro em Cristo: aquela apontando aos homens a<br />

sua necessidade de Cristo, este apresentando-lhes o Senhor. Assim, o princípio<br />

fundamental da hermenêutica de Lutero é o próprio Cristo. Lutero usa expressões<br />

como “o todo da Escritura”, “o sol e a verdade da Escritura”, “o escopo<br />

da Escritura” para se referir ao relacionamento entre Cristo e a Bíblia. Esse<br />

aspecto da hermenêutica de Lutero foi o que lhe deu consciência da unidade<br />

dos Testamentos: “Essa unidade [do Antigo e do Novo Testamentos] tem seu<br />

fundamento no fato de que Jesus é o centro de toda a Escritura. Nessa conexão,<br />

Lutero fez uso da figura do punctus mathematicus: Cristo, o centro do círculo,<br />

ao redor do qual são colocados círculos concêntricos”. 23<br />

Portanto, há um grande avanço quando se comparara a hermenêutica de<br />

Lutero à hermenêutica reinante na Idade Média: Lutero, em sua fase mais madura,<br />

lutou por um sentido único (literal) e batalhou contra as alegorias, ainda<br />

que não tenha, na prática, conseguido desvencilhar-se completamente delas.<br />

Há também uma importante mudança quando se compara Erasmo e Lutero em<br />

suas hermenêuticas: enquanto a de Erasmo é cristológica, no sentido de que<br />

começava com a filosofia de Cristo e relegava a segundo plano certas partes<br />

da Bíblia, Lutero apresenta uma interpretação cristocêntrica das Escrituras, que<br />

21 COX, Jillian E. “Martin Luther on the Living Word: Rethinking the Principle of Sola Scriptura”.<br />

Pacifica (2017), p. 13.<br />

<strong>22</strong> LUTHER, Martin. Luther: Lectures in Romans. Ed. Wilhelm Pauck. Louisville, KY: Westminster/<br />

John Knox Press, 1961, p. 199.<br />

23 RUNIA, “The hermeneutics of the reformers”, p. 128-29.<br />

104


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115<br />

tem a justificação e a redenção em Cristo como o tema e o centro de ambos<br />

testamentos. 24 No entanto, por vezes há um descuido exegético em Lutero;<br />

no afã de encontrar Cristo, algumas passagens do Antigo Testamento não são<br />

interpretadas de acordo com o seu contexto. 25<br />

3. A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO<br />

João Calvino foi o principal exegeta da Reforma. Aqui, em vez de uma<br />

exposição da interpretação de João Calvino, focaremos em mostrar como o reformador<br />

de Genebra encontrava Cristo em sua leitura do Antigo Testamento. 26<br />

Este artigo deu o nome de hermenêutica cristológica (Cristo + logos,<br />

estudo de) à interpretação de Erasmo tendo em vista que o ponto inicial de sua<br />

interpretação bíblica é um construto filosófico humano baseado na pessoa e<br />

obra de Cristo. Para a interpretação de Lutero foi dado o nome de hermenêutica<br />

cristocêntrica visto que ele pressupõe a presença de Cristo em qualquer texto<br />

da Escritura e começa o processo hermenêutico visando encontrá-lo. 27 Nas<br />

próximas páginas será defendido que a interpretação bíblica de João Calvino<br />

pode ser denominada cristotélica (Cristo + telos, fim, objetivo), visto que o<br />

reformador francês faz uma exegese que respeita mais o contexto histórico do<br />

Antigo Testamento, mas ao mesmo tempo mostra como cada texto específico<br />

se relaciona com Jesus Cristo de acordo com a história da redenção. 28 No<br />

comentário de João 5.39, Calvino afirma:<br />

24 Dockery contrasta as hermenêuticas de Lutero e Erasmo da seguinte forma: “A ênfase de Lutero<br />

no aspecto cristológico da interpretação, que inclui o tema da justificação e redenção em Cristo, diferiu<br />

do princípio cristológico de Erasmo, que focou nos ensinos de Jesus”. DOCKERY, “The Foundation of<br />

Reformation Hermeneutics: A Fresh Look at Erasmus”, p. 70.<br />

25 A visão aqui apresentada da interpretação de Lutero se coaduna com a de BORNKAMM,<br />

Heinrich. Luther and the Old Testament. Minneapolis: Fortress Press, 1969. Marsh, por sua vez, afirma<br />

que a hermenêutica de Lutero era mais próxima à de Calvino nesse quesito. Ver MARSH, Martin Luther<br />

on Reading the Bible as Christian Scripture: The Messiah in Luthers Biblical Hermeneutic and Theology.<br />

26 Para estudos sobre a hermenêutica de Calvino em geral ver: SILVA, Moisés. O argumento em<br />

favor da hermenêutica calvinista. <strong>Fides</strong> Reformata 5-1 (2000): 1-17; MEISTER, Mauro. A exegese bíblica<br />

em Calvino: princípios, método e legado. <strong>Fides</strong> Reformata 14-2 (2009): 115-27; COSTA, Hermisten.<br />

Calvino de A a Z. São Paulo: Vida, 2006, p. 13-44; 147.<br />

27 A seguinte citação de Alderi Matos apresenta a diferença entre as hermenêuticas de Calvino e<br />

Lutero de forma bastante clara: “A interpretação cristológica da Escritura deve ser histórica bem como<br />

teológica. Nesse aspecto, Calvino rompeu com a interpretação espiritual do passado e até mesmo com a<br />

ideia de Lutero de ver ‘Cristo em toda a Escritura’. Para ele, Cristo era o cumprimento do Velho Testamento<br />

e o tema do Novo Testamento, mas isso não significava que todo versículo necessariamente continha<br />

alguma referência oculta a ele. A abordagem de Calvino é mais sutil: o intérprete deve relacionar cada<br />

passagem da Escritura com Cristo, qualquer que seja o sentido primário da mesma”. MATOS, Alderi<br />

Souza de. Calvino, o exegeta da Reforma. História da Igreja, n.d. Disponível em: http://cpaj.mackenzie.<br />

br/historiadaigreja/pagina.php?id=302.<br />

28 Para maiores detalhes da influência de Erasmo e Lutero na Hermenêutica de Calvino, ver:<br />

TORRANCE, Thomas F. The Hermeneutics of John Calvin. Edinburgh: Scottish Academic Press, 1988.<br />

105


JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO<br />

Repetindo, somos instruídos por esta passagem que, se quisermos obter o conhecimento<br />

de Cristo, devemos buscá-lo nas Escrituras, pois os que imaginam<br />

qualquer coisa que acaso decidam acerca de Cristo, por fim nada terão dele senão<br />

uma sombra fantasmagórica. Antes de tudo, devemos crer que Cristo não pode<br />

ser propriamente conhecido de qualquer outra forma senão nas Escrituras; e se<br />

esse é o caso, segue-se que devemos ler as Escrituras com o expresso propósito<br />

de encontrar Cristo nelas. 29<br />

Hans-Joachim Kraus chama essa característica da interpretação de João<br />

Calvino de “escopo de Cristo”:<br />

A interpretação cristológica nos comentários de Calvino do Antigo Testamento<br />

olham para o futuro para o cumprimento das promessas e profecias, e seus comentários<br />

do Novo Testamento tem como fator determinante para a exegese um<br />

movimento de volta a Cristo, movimento este sempre baseado na convicção de<br />

que a claridade das Sagradas Escrituras está fundamentada somente em Cristo. 30<br />

Para esclarecer e exemplificar essa característica da hermenêutica de<br />

Calvino, segue-se uma análise introdutória da mesma aplicada à lei, aos salmos<br />

e aos profetas.<br />

3.1 O princípio cristotélico aplicado à lei<br />

A concepção calvinista da lei é bastante diferente daquela que encontramos<br />

em Lutero. Para Lutero, a lei visa mostrar ao homem a sua condição<br />

desesperadora e sua necessidade de salvação, e o evangelho é a resposta ao<br />

anseio gerado pela lei. O conceito de Calvino é mais elaborado e profundo,<br />

incluindo e extrapolando o de Lutero. 31<br />

29 CALVINO, João. O Evangelho Segundo João. São José dos Campos, SP: Fiel, 1998, p. 235-36.<br />

Disponível em: http://www.ministeriofiel.com.br/bibliotecajoaocalvino. Embora grande demais para<br />

aparecer no corpo do artigo, vale a pena ler o que Calvino diz mais à frente: “Mas a razão porque a<br />

maioria dos homens é impedida de se beneficiar é que não tem do assunto nada mais que um vislumbre<br />

superficial e displicente. Contudo, ele requer a máxima atenção, e por isso Cristo nos ordena a sondar<br />

diligentemente este tesouro oculto”.<br />

30 KRAUS, Hans-Joachim. “Calvin’s Exegetical Principles”. Interpretation 31 (1977): 17-18.<br />

31 “Oposto à perspectiva radical de Lutero, que claramente separava a lei e o evangelho, Calvino<br />

tentou explicar a dialética entre lei e evangelho apontando para a natureza normativa da própria lei,<br />

que não é diferente do evangelho circa essentiam. Como um cristão que experimentou uma conversão<br />

repentina pela qual o seu coração se tornou ensinável para a verdade de Deus, Calvino concluiu que o<br />

que mudou desde a queda não foi a verdade ou ensino da lei em si, mas a condição e qualidade da humanidade...<br />

Portanto, com a vinda de Cristo como mediador, a revelação da lei se tornou perfeita como<br />

uma regra de vida (regula vivendi) e, ainda mais, como uma regra de vivificação (regula vivificandi).<br />

Calvino afirma claramente que Cristo, como a substância da Lei, cumpriu a lei. MOON, Byung-Ho.<br />

Christ the Mediator of the Law: Calvin’s Christological Understanding of the Law as the Rule of Living<br />

and Life-Giving. Milton Keynes, UK: Paternoster, 2006, p. 82.<br />

106


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115<br />

Para Calvino, o Pentateuco se divide em narrativa e doutrina. A narrativa<br />

tem por objetivo demonstrar o poder e a bondade de Deus e também, através<br />

dos exemplos de punição, inspirar reverência nos corações. 32 A doutrina é<br />

dividida por Calvino em: 1) Prefácio; 2) Os Dez Mandamentos (o cerne), que<br />

são a vontade de Deus para todos os crentes, vontade esta que só pode ser levada<br />

a cabo pela graça; 3) Os suplementos: sendo os dos quatro primeiros mandamentos<br />

(a primeira tábua) as leis cerimoniais e os dos últimos mandamentos<br />

o que chamamos de leis civis; e finalmente 4) O fim e uso da lei:<br />

Mas quando Deus nos atrai de forma tão gentil e graciosa pelas suas promessas,<br />

e além disso nos persegue com os trovões de sua maldição, é parcialmente para<br />

tornar-nos inescusáveis, e, parcialmente para nos deixar despojados de toda<br />

confiança em nossa própria justiça, de modo que podemos aprender a abraçar<br />

seu pacto da Graça, e procurar refúgio em Cristo, que é o fim da lei. Esta é a<br />

intenção das Promessas nas quais ele se declara misericordioso, desde que há<br />

pronto perdão para o pecador, e quando ele oferece o Espírito de Regeneração.<br />

Disto depende aquela sentença de São Paulo de que Cristo é o fim da Lei. 33<br />

Isso se coaduna com o que o reformador diz nas Institutas:<br />

Deus jamais se mostrou propício aos patriarcas do Antigo Testamento, nem<br />

jamais lhes deu esperança alguma de graça e de favor sem propor-lhes um<br />

Mediador. Não falo dos sacrifícios da Lei, com os quais clara e evidentemente<br />

foi ensinado aos fiéis que não deviam buscar salvação mais que na expiação<br />

que só Jesus tem realizado. Somente quero dizer que a felicidade e o próspero<br />

estado que Deus tem prometido à sua Igreja está fundado sempre na pessoa de<br />

Jesus Cristo. Porque ainda que Deus tenha compreendido em seu pacto a todos<br />

os descendentes de Abraão, sem dúvida com toda razão conclui são Paulo que,<br />

propriamente falando, é Jesus Cristo aquela semente na qual haviam de ser<br />

benditas todas as gentes (Gl 3.16); pois sabemos que nem todos os descendentes<br />

de Abraão segundo a carne são considerados linhagem sua (2.6.2).<br />

Ainda nas Institutas, Livro II, capítulo 6, Calvino demonstra que a salvação,<br />

o consolo e a esperança nunca deixaram de estar em Cristo, mesmo no<br />

Antigo Testamento. O sétimo capítulo, dedicado à lei, começa assim:<br />

A religião mosaica, fundada sobre o pacto da graça, apontava para Jesus Cristo.<br />

De tudo o que temos exposto se deduz muito facilmente que a Lei não foi dada<br />

32 CALVIN, John. Commentaries on the Four Last Books of Moses Arranged in the Form of a<br />

Harmony. Edinburgh: Calvin Translation Society, 1852, XV. Disponível em: https://books.google.com/<br />

books?id= uYk9AAAAYAAJ.<br />

33 Ibid., XVIII. Mais à frente, no comentário, Calvino afirma: “Além disso, devemos notar que<br />

as gerações do povo antigo foram trazidas a um fim pela vinda de Cristo, porque as sombras da Lei<br />

terminaram quando o estado da Igreja foi renovado e os gentios foram unidos no mesmo corpo” (p. 231).<br />

107


JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO<br />

quase quatrocentos anos depois da morte de Abraão para afastar de Cristo o<br />

povo eleito, mas sim precisamente para [1] ter os ânimos em suspense até que<br />

viesse, [2] e para incitá-los a um maior desejo de sua vinda, e [3] para animá-<br />

-los nesta esperança para que não desmaiem com o longo tempo de sua espera<br />

(Institutas 2.7.1).<br />

Cristo é a razão de ser de cada um dos três motivos elencados por Calvino.<br />

O princípio cristotélico também fica claro naquilo que Calvino chama os três usos<br />

da lei moral: 1) fazer conhecer a cada um a sua própria injustiça; 2) fazer temer<br />

pela pena aqueles que ficam impassíveis sem uso de força; 3) ensinar a vontade<br />

de Deus aos que anelam conhecê-la (cf. Institutas 2.7.6-12). Para Calvino, tanto<br />

a lei cerimonial quanto a lei moral têm Cristo como sua razão de ser e objetivo.<br />

No comentário de Romanos 10.4, Calvino confirma essa concepção<br />

dizendo que<br />

a lei fora promulgada para guiar-nos pela mão a outra justiça. Aliás, cada doutrina<br />

da lei, cada mandamento, cada promessa, sempre aponta para Cristo [...]<br />

Esta notável passagem declara que a lei, em todas as suas partes, aponta para<br />

Cristo, e, portanto, ninguém será capaz de entendê-la corretamente, a não ser<br />

que se esforce constantemente por atingir este alvo. 34<br />

É comum em sua harmonia da lei ver Calvino explicando textos e situações<br />

com base naquilo que o Novo Testamento explica sobre tais situações<br />

ou personagens. Por exemplo, Calvino usa Hebreus 11.24-26 para explicar<br />

porque Moisés deixou a corte egípcia, tendo preferido o opróbrio de Cristo. 35<br />

O reformador francês também cita 1 Coríntios 10.4 em sua explicação de que<br />

há uma íntima relação entre o anjo do Senhor que guiava o povo no deserto e<br />

o próprio Senhor Jesus e interpreta o maná como sendo um tipo de Cristo. 36<br />

Ao mesmo tempo, por vezes Calvino critica uma interpretação que “salta” para<br />

Cristo sem o devido respeito exegético. Esse é o caso do seu comentário sobre<br />

Êxodo 4.13 (“Ah! Senhor! Envia aquele que hás de enviar, menos a mim”):<br />

Aqueles que interpretam essa passagem como aludindo a Cristo, como se<br />

Moisés estivesse dizendo que o poder dele era necessário para realizar tal tarefa<br />

tão difícil, introduzem um sentido forçado e implausível que é contradito pelo<br />

contexto, pois Deus não teria ficado tão irado por tal oração. 37<br />

34 CALVINO, João. Romanos. São José dos Campos, SP: Fiel, 2014, p. 358. Disponível em: www.<br />

ministeriofiel. com.br/bibliotecajoaocalvino.<br />

35 CALVIN, Commentaries on the Four Last Books of Moses Arranged in the Form of a Harmony,<br />

p. 46.<br />

36 Ibid., p. 61, 270.<br />

37 Ibid., p. 93.<br />

108


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115<br />

A lei aponta para Cristo e Cristo, em certo sentido, nos aponta para a lei<br />

como maneira de viver. Veja o comentário de Moon:<br />

Como uma regra de vida justa e piedosa, a lei nos torna conscientes de nossa<br />

capacidade limitada e nos faz entender a necessidade de um mediador. Além<br />

disso, a lei revela a promessa da vinda de Cristo como o Mediador. Da mesma<br />

forma, Cristo media a lei como o Reconciliador para satisfazer suas exigências,<br />

como Intercessor para restabelecer a comunhão entre Deus e nós e eliminando<br />

a sua maldição, e como Mestre ele revela a sua verdadeira natureza. 38<br />

Muito mais poderia ser dito e a exegese calvinista da lei é um campo<br />

riquíssimo que merece estudos posteriores, mas fica claro pelo apresentado<br />

acima que Calvino não lia a lei com o objetivo primário de encontrar Cristo,<br />

mas interpretava os textos em seus termos e depois os relacionava com Cristo<br />

da maneira adequada àquele texto específico. Há uma estrutura de pensamento<br />

que permeia a reflexão de Calvino em sua leitura do Antigo Testamento, que<br />

inclui conceitos como a salvação dos pecadores sob a velha e a nova aliança<br />

acontece por meio da fé no Mediador, a lei veio como uma adição para guiar<br />

o povo, a revelação é progressiva, o Antigo Testamento apresenta a sombra<br />

e o Novo apresenta o desenho, a lei é a tutora que conduz a Cristo e o povo de<br />

Israel é a igreja em diferente forma. 39 Há, portanto, uma teologia centrada em<br />

Cristo por meio da qual Calvino lê o Antigo Testamento.<br />

Quando olhamos a profecia, não há muita distinção daquilo que vimos<br />

até aqui, pois para Calvino os profetas são principalmente expositores da lei:<br />

É costumeiramente feito um grande número de declarações e dissertações sobre<br />

o ofício dos Profetas. Mas, na minha opinião, o caminho mais curto para tratar<br />

deste assunto é relacionar os Profetas à Lei, de onde eles derivam sua doutrina<br />

como um rio de uma fonte. 40<br />

Vejamos, então, como o princípio cristotélico de interpretação se apresenta<br />

nos profetas.<br />

38 MOON, Christ the Mediator of the Law: Calvin’s Christological Understanding of the Law as<br />

the Rule of Living and Life-Giving, p. 119.<br />

39 PARKER, Thomas H. L. Calvin’s Old Testament Commentaries. Edinburgh: T. and T. Clark,<br />

1986, p. 45s; 85s.<br />

40 CALVIN, John. Commentary on Isaiah. Edinburgh: Calvin Translation Society, n.d., XXVI.<br />

Disponível em: https://books.google.com/books?id=Qzi4AxJbzysC. Ainda sobre a lei, nessa mesma<br />

página, Calvino afirma: “Agora, a Lei consiste principalmente de três partes: primeira, a doutrina da<br />

vida; segunda, tratados e promessas; terceira, o pacto da graça, que, sendo fundado em Cristo, contém<br />

em si todas as promessas especiais”.<br />

109


JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO<br />

3.2 O princípio cristotélico aplicado aos profetas<br />

Os profetas são principalmente expositores da lei de Deus. Calvino afirma<br />

que “quando os profetas inculcam deveres morais, eles não trazem à tona nada<br />

novo, mas somente esclarecem aquelas partes da Lei que têm sido esquecidas<br />

[por seus contemporâneos]”. 41 Já no que concerne às promessas de Deus relacionadas<br />

à salvação, Calvino afirma que os profetas são mais completos por<br />

conta de suas visões. Em suma, existe uma diferença de maior revelação nos<br />

profetas quando comparados com a lei:<br />

A respeito da livre aliança que Deus estabeleceu com os patriarcas em épocas<br />

antigas, os profetas são muito mais específicos, e contribuem mais para fortalecer<br />

o afeto do povo neste sentido; para quando desejam confortar o pio,<br />

lembram-nos sempre dessa aliança, e representam-lhes a vinda de Cristo, que<br />

era tanto o fundamento da aliança quanto o vínculo da mútua relação entre Deus<br />

e o Povo, e a quem, deve ser compreendido, toda a extensão das promessas se<br />

refere. Quem entende isto compreenderá facilmente o que deve procurar nos<br />

Profetas e qual é o propósito dos seus escritos; e isto é tudo que deve ser dito<br />

sobre este assunto. 42<br />

Por causa de sua firme convicção de que toda a Escritura testemunha<br />

de Cristo, Calvino despreza com palavras duras e jocosas grande parte da<br />

interpretação judaica. 43 Por outro lado, ele também “condena os intérpretes<br />

cristãos por desrespeitarem a linguagem e contexto do Antigo Testamento e<br />

por encontrarem somente aquilo que querem encontrar no texto”. 44 É por esse<br />

motivo que Pucket afirma que Calvino tomou uma Via Media em sua maneira<br />

de lidar com o Antigo Testamento. 45<br />

A interpretação calvinista de Isaías 2 fala sobre o reino de Cristo. 46 O rei<br />

Ezequias é um tipo de Cristo; 47 a restauração prometida em Oséias aborda a<br />

restauração de Israel como nação, mas “estende suas predições ao reinado de<br />

Cristo”. 48 Muitas profecias são interpretadas como claramente apontando para<br />

a vinda do Messias e de seu reino. A maneira como Calvino aborda a profecia<br />

de Isaías 5 também chama a atenção. Em vez de saltar para os usos neotesta-<br />

41 Ibid., xxviii.<br />

42 Ibid., xxix.<br />

43 PUCKETT, David Lee. John Calvin’s Exegesis of the Old Testament. Louisville, KY: Westminster<br />

John Knox, 1995), p. 82-88.<br />

44 Ibid., p. 54.<br />

45 Ibid., p. 105s.<br />

46 CALVIN, Commentary on Isaiah, p. 91s.<br />

47 Ibid., p. 485s.<br />

48 CALVINO, João. Comentário Sobre Oséias. Brasília: Monergismo, 2008, p. 70. Disponível<br />

em: http://monergismo.com/joao-calvino/joao-calvino-comentario-sobre-oseias/.<br />

110


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115<br />

mentários dessa figura, ele explica a profecia em seus termos e somente no<br />

final fala de Jesus Cristo como a vinha dos cristãos. 49<br />

Por outro lado, Calvino discorda de muitos intérpretes de sua época ao<br />

dizer, por exemplo, que a pessoa que aparece em Isaías 6 não é diretamente<br />

Cristo, 50 a mulher referida em Jeremias 33.12 não é Maria, 51 o profeta Ezequiel<br />

em Ez 4.4 não aponta para Cristo. 52 Cada uma dessas era uma interpretação<br />

cristocêntrica comum em seus dias.<br />

Assim, Calvino é muito claro em mostrar a conexão direta entre algumas<br />

profecias e a pessoa e obra de Cristo, mas também é muito cuidadoso em analisar<br />

o contexto histórico de cada profeta e não fazer saltos improváveis para<br />

aplicar um texto a Cristo.<br />

Muller explica a qualidade da interpretação de Calvino com base no uso do<br />

esquema de promessa e cumprimento. O reformador evita equacionar a expressão<br />

“dia do Senhor” com eventos neotestamentários ou escatológicos e apresenta uma<br />

consciência do esquema “já e ainda não” nos seus comentários, por exemplo, de<br />

Amós 9.11, de Daniel, de Joel 2.30-32 e de Isaías 65.17, entre outros. 53<br />

O estrito modelo promessa-cumprimento, em que o Antigo Testamento é cumprido<br />

no Novo Testamento, junto com a ideia de um significado amplo que<br />

abranja todo o reino de Deus, deram a Calvino uma estrutura de interpretação<br />

dentro da qual tanto uma leitura histórico-gramatical do texto quanto uma forte<br />

tendência para aplicação contemporânea podem funcionar. 54<br />

Em termos da teologia bíblica, Muller argumenta de modo convincente<br />

que conceitos como escatologia inaugurada, múltiplos cumprimentos e perspectiva<br />

profética já podem, em certa medida, ser encontrados na interpretação<br />

do reformador francês. 55 Wilcox concorda com Muller quanto a esse aspecto<br />

e o coloca de forma ainda mais clara:<br />

49 CALVIN, Commentary on Isaiah, p. 170.<br />

50 Ibid., p. 201.<br />

51 CALVIN, John. Commentaries on the Book of the Prophet Jeremiah and the Lamentations.<br />

Vol 4. Edinburgh: Calvin Translation Society, 1850, p. 113s. Disponível em: https://books.google.com.<br />

uy/books?id= fag9AAAAYAAJ. Citado também em: PUCKETT, John Calvin’s Exegesis of the Old<br />

Testament, p. 53.<br />

52 CALVIN, John. Coomentaries on the First Twenty Chapters of the Book of the Prophet<br />

Ezekiel. Edinburgh: Calvin Translation Society, 1849, p. 179. Disponível em: https://books.google.com/<br />

books?id=VmAzAQAA MAAJ.<br />

53 MULLER, Richard A. “The Hermeneutic of Promise and Fulfillment in Calvin’s Exegesis of<br />

the Old Testament Prophecies of the Kingdom”. In: The Bible in the Sixteenth Century, ed. David C.<br />

Steinmetz. Durham, NC: Duke University Press, 1990, p. 68-82.<br />

54 Ibid., p. 71.<br />

55 Muller conclui seu artigo da seguinte forma: “A exegese de Calvino representa uma hermenêutica<br />

mais textual, gramática e historicamente orientada, mas ela permanece dentro dos limites de uma<br />

111


JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO<br />

A marca característica da exposição que Calvino faz dos profetas é a sua visão<br />

de que a profecia tem uma referência tripla. Ele afirma primeiro que ela se<br />

refere a um evento histórico iminente (como o retorno do povo do exílio), em<br />

segundo lugar a Cristo (pelo qual ele pode querer dizer “a encarnação” ou “a<br />

ascensão” ou até mesmo “a era apostólica e a pregação do evangelho”) e o terceiro<br />

ao curso inteiro da história até o Último Dia (base sobre a qual ele aplica<br />

as profecias à igreja do século dezesseis). Assim, ele constrói a história do povo<br />

de Deus pelo menos desde o tempo da volta do povo de Israel do exílio, como<br />

a história do reino de Cristo. 56<br />

3.3 O princípio cristotélico aplicado ao saltério<br />

Os salmos para Calvino apresentam uma anatomia de todas as partes da<br />

alma, são o melhor manual de oração e a melhor regra de louvor. 57 Encontramos<br />

o princípio cristotélico já no Salmo 1. Depois de mostrar uma impressionante<br />

consciência canônica, afirmando que este salmo é um prefácio ao livro todo,<br />

Calvino comenta os versos 5-6 dizendo: “...no presente estado, devemos esperar<br />

o dia da revelação final, quando Cristo separará as ovelhas dos cabritos”. 58<br />

Comentando o Salmo 2, que na época de Calvino era interpretado como<br />

apontando diretamente para Cristo, Calvino mostra claramente sua forma<br />

cristotélica de interpretar as referências a Davi fazendo-as chegar a Cristo:<br />

Mas agora é tempo oportuno de buscarmos a substância do tipo. Que Davi<br />

profetizava a respeito de Cristo é claramente manifesto à luz do fato de que ele<br />

sabia que seu próprio reino não passava de mera sombra. E para que aprendamos<br />

aplicar a Cristo tudo quanto Davi, em tempos passados, cantou acerca de<br />

si mesmo, devemos considerar este princípio, o qual encontramos por toda a<br />

parte em todos os profetas, a saber, que ele, com sua posteridade, foi feito rei,<br />

não por sua própria causa, mas para ser um tipo do Redentor. 59<br />

Portanto, Calvino interpreta o Salmo 2 como fazendo referência ao próprio<br />

Davi, mas este como um tipo de Cristo. No comentário do Salmo 5, vemos<br />

Davi afirmar que a interpretação do Salmo por Paulo 5 já fora pretendida pelo<br />

Espírito Santo.<br />

Quando Paulo [Rm 3.13], ao citar esta passagem, a estende a todo o gênero<br />

humano, tanto judeus quanto gentios, ele não lhe imprime maior amplitude do<br />

abordagem hermenêutica na qual a implicação final de qualquer texto é determinada pelo contexto maior<br />

de promessa, cumprimento e a história contínua do povo de Deus”. Ibid., p. 82.<br />

56 WILCOX, Pete. “Calvin as Commentator in the Prophets”. In: Calvin and the Bible2. Ed. Donald<br />

McKim. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 121.<br />

57 CALVINO, João. O Livro Dos Salmos. São Paulo: Parácletos, 1999, p. 33-35.<br />

58 Ibid., p. 57.<br />

59 Ibid., p. 61.<br />

112


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115<br />

que aquela que o Espírito Santo pretendia imprimir. Visto que ele lhe aplica uma<br />

substância inegável, ou seja, que sob a pessoa de Davi, se encontra descrita a<br />

igreja, tanto na pessoa de Cristo, que é a cabeça, quanto em seus membros... 60<br />

Já o Salmo 21, que fala sobre o reino de Davi, tem como objetivo “dirigir<br />

a mente dos fiéis para Cristo, que era o fim e a perfeição desse reino, e<br />

ensinar-lhes que só poderiam ser salvos sob o Cabeça que Deus mesmo lhes<br />

havia designado”. 61 São raros os salmos que Calvino não interpreta como tendo<br />

uma relação com Cristo, seja como uma profecia, seja como uma tipologia de<br />

Cristo, de seu reino ou de sua igreja. 62 Uma expressão comum no comentário<br />

de Calvino, após falar do significado histórico de um salmo, é “ao mesmo tempo”,<br />

e então Calvino mostra o cumprimento tipológico do salmo em Cristo. 63<br />

Para de Greef, as maneiras como Calvino relaciona os salmos com Cristo<br />

são quando o Novo Testamento faz referência ao salmo; os salmos como profecia<br />

seja dos sofrimentos, seja do reino de Jesus, e Davi como representante<br />

de Cristo e modelo para os cristãos. 64<br />

Em seu afã por uma interpretação literal, algumas vezes Calvino vai<br />

contra a interpretação cristocêntrica de alguns salmos. Isso acontece em sua<br />

interpretação dos salmos 72 e 16, por exemplo. 65 Comentando sobre a interpretação<br />

calvinista do Salmo 72, Muller afirma:<br />

A reclamação de Calvino contra a interpretação cristológica excessiva provavelmente<br />

deve ser vista no contexto do famoso comentário dos salmos de Faber<br />

Stapulensis, no qual, em nome de um único sentido literal, Cristo é interpretado<br />

como sendo a única referência do texto e Davi desaparece completamente<br />

como um foco do significado. A advertência de Calvino não é uma objeção à<br />

hermenêutica cristológica de promessa e cumprimento, mas é um apelo para que<br />

a figura histórica de Davi tenha o seu lugar de direito no esquema de promessa<br />

e cumprimento e que o significado literal do texto seja alojado na promessa<br />

primeiramente dada ao Davi histórico. 66<br />

60 Ibid., p. 117.<br />

61 Ibid., p. 454 (grifo meu).<br />

62 Um pouco diferente em sua avaliação, De Greef comenta assim: “É notável na interpretação dos<br />

salmos de Calvino que ele não tenta relacionar todos e cada salmo com Jesus Cristo. Em sua exposição<br />

de diversos salmos, ele nunca menciona o nome de Cristo. Ainda assim, há salmos que ele conecta com<br />

Jesus Cristo e seu reino; mas somente quando há justificativa real para fazê-lo”. DE GREEF, Wulfert.<br />

“Calvin as Commentator on the Psams”. In: Calvin and the Bible. Ed. Donald K. McKim. Cambridge:<br />

Cambridge University Press, 2006, p. 99.<br />

63 Cf. Comentário de Calvino dos Salmos, p. <strong>22</strong>, 45, 47.<br />

64 Ibid., p. 99-103.<br />

65 PUCKETT, John Calvin’s Exegesis of the Old Testament, p. 54.<br />

66 MULLER, “The Hermeneutic of Promise and Fulfillment in Calvin’s Exegesis of the Old Testament<br />

Prophecies of the Kingdom”, p. 77.<br />

113


JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO<br />

Assim como acontece na lei e nos profetas, a interpretação de Calvino dos<br />

salmos não tem como primeiro objetivo encontrar Cristo em cada salmo, mas<br />

entende cada salmo em seu contexto histórico e depois apresenta uma conexão<br />

com Jesus Cristo que respeite o significado histórico e seja derivada deste.<br />

CONCLUSÃO<br />

Como certamente ficou evidente ao leitor, as análises aqui oferecidas da<br />

hermenêutica de Erasmo, Lutero e Calvino são apenas introdutórias e visam<br />

a fomentar mais pesquisa e discussão sobre esse assunto tão importante, que<br />

certamente tem potencial para gerar diversos livros e teses. O nosso foco presente,<br />

no entanto, além de introdutório quanto a estudos acadêmicos, visa a<br />

prática dos pregadores de nosso país.<br />

Muitos pregadores querem pregar o Antigo Testamento de maneira<br />

cristocêntrica. O problema é que, quando são sérios com relação à exegese e<br />

ao sentido do texto, por vezes é difícil saber onde “encaixar” Jesus Cristo no<br />

sermão. O presente artigo mostrou que esse não é um problema novo, mas já<br />

no século 16 existiam diferentes maneiras de ver Cristo nas páginas do Antigo<br />

Testamento. Erasmo, Lutero e Calvino consideravam a pessoa de Cristo como<br />

central para a interpretação das Escrituras, mas cada um tinha a sua própria<br />

maneira de relacionar os textos específicos à pessoa de Cristo.<br />

Erasmo construiu uma filosofia de Cristo, um amálgama entre a vida e<br />

obra de Cristo e a filosofia clássica e, a partir dessa filosofia, expunha os textos<br />

das Escrituras, lançando mão de uma interpretação alegórica. Lutero lutou por<br />

encontrar um sentido literal, mas ao começar, o objetivo de encontrar Jesus<br />

Cristo por vezes não fazia justiça ao sentido histórico do texto.<br />

João Calvino parte de uma compreensão da unidade das Escrituras em<br />

torno de Jesus Cristo: Cristo é o Mediador tanto no Novo quanto no Antigo<br />

Testamento; a igreja se faz presente no Antigo Testamento; a salvação em ambos<br />

os testamentos acontece mediante a fé; a lei aponta para Jesus Cristo e este é o<br />

mestre e o objetivo da mesma; as profecias apontam para Cristo, sua vinda e<br />

seu reino futuro, tendo, contudo, um significado e cumprimento para a época<br />

da escrita; os salmos e profecias contêm pessoas, ofícios e situações que são<br />

tipos e/ou sombras de Cristo, seu reino e seu povo. Existe, portanto, uma forma<br />

de compreender a Escritura que guia Calvino em sua interpretação cristotélica<br />

do Antigo Testamento. Na interpretação de Calvino, Cristo é o alvo (telos) da<br />

lei, dos profetas e dos salmos e não será encontrado de forma correta, a não ser<br />

que o texto seja interpretado fazendo jus à gramática e ao contexto histórico.<br />

Portanto, com uma compreensão bíblico-teológica influenciada pela<br />

teologia calvinista os intérpretes e pregadores podem ter mais sucesso em sua<br />

busca por Jesus nas páginas do Antigo Testamento, não como quem o traz à<br />

força, mas como quem o encontra naturalmente depois de estudar o texto em<br />

114


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115<br />

seus próprios termos. Isso é praticar, junto com Calvino, uma interpretação<br />

cristotélica da Escritura. 67<br />

ABSTRACT<br />

Having in view to convince interpreters and preachers about a specific<br />

way to find Christ in the Old Testament, this article contends that Calvin’s<br />

interpretation of the Old Testament is well defined by the word “Christotelic”,<br />

in the sense that he, unlike Erasmus and Luther, found Christ in the Old Testament<br />

on the basis of a healthy biblical theology that presupposed the unity of<br />

the testaments.<br />

KEYWORDS<br />

Hermeneutics; Christocentric; Christological; Christotelic; Calvin; Luther;<br />

Erasmus.<br />

67 As seguintes notas podem ser úteis para tornar ainda mais clara a utilidade desse conceito para<br />

a pregação: “O termo que eu prefiro usar para descrever essa hermenêutica escatológica é ‘cristotélica’.<br />

Eu prefiro este em vez de ‘cristológica’ ou ‘cristocêntrica’, visto que estes são suscetíveis a um ponto<br />

de vista que eu não estou advogando aqui, qual seja, a necessidade de ‘ver Cristo’ em todas ou quase<br />

todas as passagens do Antigo Testamento. Telos é a palavra grega para ‘fim’ ou ‘conclusão’. Ler o Antigo<br />

Testamento ‘cristotelicamente’ é lê-lo já sabendo que Cristo é de alguma forma o fim para o qual<br />

a história do Antigo Testamento está se dirigindo”. ENNS, Inspiration and Incarnation Evangelicals<br />

and the Problem of the Old Testament, p. 154. “A abordagem cristotélica habilita o expositor bíblico a<br />

determinar como um texto particular aponta para Cristo de forma a não ter que forçá-lo em cada texto.<br />

Adicionalmente, ele torna o expositor responsável por ser fiel ao significado histórico do texto para a<br />

audiência original”. VINES, Jim S. J. Progress in the Pulpit: How to Grow in Your Preaching. Chicago:<br />

Moody Publishers, 2017.<br />

115


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138<br />

Calvino e o Lapsarianismo:<br />

Uma Avaliação de como Calvino pode ser lido<br />

à Luz da Discussão Supra e Infralapsariana<br />

João Alves dos Santos *<br />

RESUMO<br />

O presente artigo tem como objetivo analisar alguns dos escritos de<br />

Calvino sobre a soberania de Deus e a responsabilidade do homem, à luz<br />

da discussão atual sobre a ordem que se deve dar aos decretos da eleição e da<br />

reprovação de homens em relação à queda, no cumprimento que Deus faz de<br />

seus propósitos, procurando saber se é possível classificar o reformador em<br />

qualquer das duas principais linhas de pensamento, geralmente conhecidas<br />

como supralapsarianismo e infralapsarianismo. O autor opta pela resposta<br />

negativa, à luz da abordagem que Calvino faz dos textos bíblicos estudados e<br />

do seu pressuposto de que não é dada ao homem a capacidade de entender os<br />

decretos divinos, e o modo como são executados pelo seu criador, por meio do<br />

seu raciocínio finito e limitado de criatura.<br />

PALAVRAS-CHAVE<br />

Calvino; Supralapsarianismo; Infralapsarianismo; Predestinação; Reprovação;<br />

Queda.<br />

INTRODUÇÃO<br />

Dá-se o nome de “lapsarianismo” à discussão sobre a ordem ou sequência<br />

dos decretos de Deus no que diz respeito especificamente aos decretos da<br />

* O autor é mestre em Divindade e em Teologia do Antigo Testamento pelo Faith Theological<br />

Seminary (EUA) e em Teologia do Novo Testamento pelo Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da<br />

Conceição. É professor de Novo Testamento e coordenador de Educação a Distância (EaD) do Centro<br />

Presbiteriano de Pós-graduação Andrew Jumper (CPAJ) e de língua grega no Seminário Presbiteriano<br />

Rev. José Manoel da Conceição. É ministro jubilado da Igreja Presbiteriana Conservadora do Brasil.<br />

117


JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO<br />

eleição e da reprovação dos homens. O nome deriva-se da palavra latina<br />

lapsus, que quer dizer “queda”. Assim, a queda do homem é o fator decisivo<br />

nessa discussão. Dentre outras menos comuns, duas posições são as que dominam<br />

o campo da discussão entre os calvinistas, as quais levam o nome de<br />

supralapsarianimo e infralapsarianismo (ou sublapsarianismo) Esses prefixos<br />

também são latinos e significam “acima” ou “anterior” (supra) e “abaixo” ou<br />

“posterior” (sub ou infra). O supralapsarismo coloca tanto o decreto da eleição<br />

para a vida como o da reprovação ou predestinação para a morte como<br />

ocupando lugar antes do decreto da queda (daí o nome supralapsarianismo),<br />

ao passo que o infralapsarianismo coloca o lugar de ambas depois do decreto<br />

da queda, em ordem ou sequência histórica, por isso é chamado de infra ou<br />

sublapsarianismo. Assim, de acordo com a ordem supralapsariana, também<br />

conhecida como ordem lógica, Deus determinou, dentre todos os homens a<br />

ser criados, eleger alguns para a vida e outros para a morte eterna, para a sua<br />

própria glória. Para cumprir esse decreto ele propôs criar os homens, eleitos<br />

ou reprovados, permitir ou mesmo ordenar a queda de todos e depois enviar<br />

Cristo para redimir os eleitos, deixando os não eleitos sujeitos à merecida<br />

punição pelos seus pecados.<br />

Para a ordem infralapsariana, também conhecida como ordem histórica,<br />

Deus determinou primeiro criar os homens, depois permitir ou ordenar a queda<br />

de todos eles e, só então, eleger, dentre todos os caídos, alguns para a vida<br />

eterna, preterindo os demais e preordenando-os a sofrer a justa punição pelos<br />

seus pecados, e, depois, enviar Cristo para redimir os eleitos.<br />

Qual seria a posição de Calvino, é a pergunta proposta, se ele pudesse ser<br />

classificado à luz desses dois conceitos? É verdade que esta é uma pergunta<br />

descabida, por não ter sido uma discussão em vigência na sua época e muito<br />

menos de interesse para o seu contexto histórico-doutrinário. Mas é possível,<br />

estudando seus escritos, chegar-se a alguma conclusão sobre qual poderia ter<br />

sido a sua posição. É o que se pretende fazer de modo ligeiro e compreensivelmente<br />

superficial, pois analisar todas as referências de Calvino ao assunto no<br />

presente trabalho seria tarefa impossível, dado o volume de seus escritos e os<br />

diversos contextos em que ele se refere à matéria. O que se pretende fazer é<br />

apresentar algumas amostras a partir das quais se pode deduzir o pensamento<br />

do reformador a respeito desses dois decretos: o da predestinação para a<br />

vida, dos eleitos, e o que ele chamou de “decreto espantoso”, 1 o da reprovação<br />

para a morte.<br />

1 Institutas III. 23.7. O termo latino é horribilis, que significa “horrível”, “terrível”, “assombroso”,<br />

“surpreendente”. A tradução que lhe é dada geralmente é abrandada, como neste caso, mas o uso<br />

do termo por Calvino mostra como ele via com temor e assombro a natureza desse decreto.<br />

118


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138<br />

1. A JUSTIFICATIVA PARA A DISCUSSÃO<br />

Ambas as correntes têm em mente a tentativa de justificar a natureza de<br />

Deus com respeito à origem do pecado e, por conseguinte, a origem do mal<br />

na raça humana. Ambas negam que Deus seja o autor do mal ou que seja o<br />

responsável pelo pecado do homem. 2 Mas como conciliar o decreto da queda<br />

com essa premissa de que Deus não é o responsável por ela?<br />

A corrente supralapsariana parte do princípio de que Deus é soberano e,<br />

como tal, tem o direito de determinar aquilo que está de acordo com o conselho<br />

de sua vontade (cf. Efésios 1.11), sem violar a sua própria natureza e sem dever<br />

explicações a quem quer seja sobre o seu modo de agir. É como diz Paulo em<br />

Romanos 9.11-18, referindo-se a Jacó e Esaú:<br />

E ainda não eram os gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal<br />

(para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras,<br />

mas por aquele que chama), já fora dito a ela: O mais velho será servo do mais<br />

moço. Como está escrito: Amei Jacó, porém me aborreci de Esaú. Que diremos,<br />

pois? Há injustiça da parte de Deus? De modo nenhum! Pois ele diz a Moisés:<br />

Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia e compadecer-me-ei<br />

de quem me aprouver ter compaixão. Assim, pois, não depende de quem quer<br />

ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia. Porque a Escritura diz<br />

a Faraó: Para isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu poder e para<br />

que o meu nome seja anunciado por toda a terra. Logo, tem ele misericórdia<br />

de quem quer e também endurece a quem lhe apraz.<br />

E quando ele levanta a possibilidade retórica de alguém questionar a<br />

justiça de Deus por assim agir, Paulo responde:<br />

Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?! Porventura, pode o objeto<br />

perguntar a quem o fez: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro direito<br />

sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro, para desonra?<br />

Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer<br />

o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados<br />

para a perdição, a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória<br />

em vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão? (Rm 9.20-23).<br />

2 É verdade que há alguns supralapsarianos que chegam a afirmar que Deus é, de fato, o autor<br />

do mal ou do pecado, ainda que no sentido metafísico, pois esta lhes parece ser a única alternativa<br />

admissível em face da doutrina dos decretos e, em particular, a respeito da origem do mal. Recusam-se<br />

a admitir que a natureza de Deus e os seus decretos não possam ser entendidos em todos os seus aspectos<br />

pela razão humana e, por isso, procuram formular respostas que sejam “compatíveis” e “coerentes” com<br />

o nosso raciocínio lógico. Uma amostra dessa posição pode ser vista em escritos de Vincent Cheung,<br />

publicados no site monergismo.com, tais como “O Autor do Pecado” (http://www.monergismo.com/<br />

textos/problema_do_mal/cheung_autor_pecado.htm) e “Deus, o Autor” (http://monergismo.com/vincent-<br />

-cheung/deus-o-autor/). Acesso em: 28 set. 2017.<br />

119


JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO<br />

Com esta argumentação Paulo nega o direito a quem quer que seja de questionar<br />

a justiça do Deus criador por agir de modo aparentemente incompatível<br />

com o senso de justiça da criatura. O argumento é o de que a soberania de Deus,<br />

como criador, esvazia qualquer pretensão ou questionamento da criatura, dadas<br />

as diferenças entre os dois seres. Assim, não seria arbitrário para Deus eleger<br />

desde o princípio, dentre os homens a serem criados e conforme o conselho<br />

da sua vontade, alguns para a vida eterna e preordenar os demais para a morte<br />

eterna. É o que Paulo diz no texto acima citado: “Terei misericórdia de quem<br />

me aprouver ter misericórdia e compadecer-me-ei de quem me aprouver ter<br />

compaixão. Assim, pois, não depende de quem quer ou de quem corre, mas<br />

de usar Deus a sua misericórdia”. Em outras palavras, Paulo está dizendo que<br />

não temos o direito de medir o padrão de justiça do Deus soberano e criador<br />

infinito pelo nosso padrão de meras criaturas finitas.<br />

A corrente infralapsariana também parte de textos das Escrituras, mas<br />

daqueles que se referem à causa da condenação do homem como ligada não<br />

diretamente ao decreto da criação, mas ao da queda, ou seja, ao pecado como<br />

sua consequência.<br />

O próprio texto de Romanos 9.<strong>22</strong>-23, acima citado, também pode ser<br />

usado para defender esse ponto de vista. Se, por um lado Paulo apresenta a soberania<br />

de Deus como a causa justificadora da feitura de vasos de ira e vasos de<br />

misericórdia, a própria qualificação desses “vasos de ira” pressupõe o pecado:<br />

Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu<br />

poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a<br />

perdição, a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em<br />

vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão?<br />

Só há ira divina, assim como misericórdia, onde há pecado. Então, o<br />

pecado, e não a soberania de Deus, é que está apresentado neste texto como<br />

causa (pelo menos causa próxima) da condenação dos não eleitos, assim como<br />

ele é também o motivo da manifestação da graça de Deus exercida na sua misericórdia<br />

em perdoar o pecador eleito. Só há misericórdia onde há necessidade<br />

dela, devido à transgressão e queda.<br />

Outra demonstração de que esta passagem está se referindo também e<br />

principalmente ao pecado está nos verbos que Paulo usa quando se reporta aos<br />

“vasos de ira” e “vasos de misericórdia”. Os vasos de ira são “suportados”<br />

com muita longanimidade por Deus, para que através deles ele mostrasse a<br />

sua ira e o seu poder, o que pressupõe o seu trato com o pecado. Já os vasos de<br />

misericórdia servem ao propósito divino de dar a conhecer as riquezas da sua<br />

glória, através da manifestação da sua graça ao perdoar os pecados dos eleitos.<br />

Outro detalhe importante nesta passagem é que Paulo usa diferentes<br />

verbos gregos conjugados em diferentes vozes para se referir à “preparação”<br />

120


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138<br />

dos vasos. Para os vasos de ira, nos quais Deus tem como propósito “mostrar<br />

a sua ira e dar a conhecer o seu poder”, ele usa o verbo katarti,zw (“preparar”,<br />

“adequar para um determinado fim”) na voz passiva, sem identificar quem é<br />

o agente da ação. Já para os vasos de misericórdia, cuja finalidade é “dar a<br />

conhecer as riquezas da sua glória”, ele usa o verbo proetoima,zw (“preparar<br />

de antemão”, “preparar para seu próprio uso ou propósito”, conforme traduz<br />

o léxico de Liddell e Scott) 3 Paulo usa a voz ativa para indicar claramente<br />

que o agente nesse preparo dos vasos de misericórdia é Deus.<br />

Claro que se ambos os “preparos” fazem parte do eterno decreto de Deus,<br />

como todas as demais coisas que acontecem, é inescapável reconhecer que<br />

Deus é o autor de ambas as predeterminações. Essa é a conclusão natural de<br />

nosso raciocínio lógico. Daí a ênfase do supralapsarianismo na predestinação<br />

tanto para a vida como para a morte eternas, por ser inescapavelmente lógica.<br />

Mas Paulo tem o cuidado de não atribuir diretamente a Deus a responsabilidade<br />

pela perdição dos não eleitos, como parece ficar claro deste texto das<br />

Escrituras. Como conciliar, então, a lógica do raciocínio com este ensino<br />

das Escrituras? Como conciliar a soberania de Deus com a responsabilidade<br />

humana? É o que se pretende considerar a seguir.<br />

2. O PROBLEMA COM ESSA DISCUSSÃO<br />

A primeira dificuldade a ser encarada nessa discussão é se podemos dividir<br />

os decretos de Deus em partes e, a partir daí, colocá-los em alguma ordem.<br />

Em outras palavras, podemos atribuir ao pensamento de Deus algo que para<br />

nós é indispensável e até natural ao raciocínio, ou seja, uma ordem que, ainda<br />

que não cronológica precisa ser pelo menos lógica? Temos nós, como seres<br />

finitos e limitados, a capacidade de atribuir a Deus categorias de cognição e de<br />

raciocínio que são apenas nossas, até onde podemos saber? Podemos conhecer<br />

a mente do Deus que não está preso ao tempo e para quem todas as coisas estão<br />

sempre nuas e patentes (cf. Hb 4.13), assim como julgar o exercício de sua<br />

vontade, usando as categorias e normas que nos são próprias, como criaturas<br />

finitas e extremamente limitadas? Podemos nós esquadrinhar os pensamentos<br />

de Deus para, a partir deles, estabelecer ordens ou critérios adequados para<br />

os seus decretos?<br />

A própria Bíblia nos dá a resposta quando, através do profeta Isaías,<br />

Deus diz:<br />

3 Liddell e Scott apresentam esse verbo como sendo usado, neste segundo sentido, na medicina, por<br />

Heródoto. Friberg acrescenta em seu dicionário que ele é usado neste sentido de “preparar de antemão”,<br />

no Novo Testamento, apenas para obras de Deus. O outro uso que encontramos no NT é feito também<br />

por Paulo, em Ef 2.10, referindo-se às “obras que Deus preparou de antemão” para que andássemos<br />

nelas.<br />

121


JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO<br />

Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos<br />

caminhos, os meus caminhos, diz o senhor, porque, assim como os céus são mais<br />

altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos<br />

caminhos, e os meus pensamentos, mais altos do que os vossos pensamentos<br />

(Is 55.8-9).<br />

O salmista Davi, por sua vez, exclama em um de seus cânticos: “São<br />

muitas, senhor, Deus meu, as maravilhas que tens operado e também os teus<br />

desígnios para conosco; ninguém há que se possa igualar contigo. Eu quisera<br />

anunciá-los e deles falar, mas são mais do que se pode contar” (Sl 40.5). E,<br />

em outro lugar, outro salmista considera: “Quão grandes, senhor, são as tuas<br />

obras! Os teus pensamentos, que profundos!” (Sl 92.5).<br />

Também Paulo, depois de revelar doutrinas as mais profundas para a<br />

nossa capacidade de compreensão, conclui:<br />

Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus!<br />

Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos.<br />

Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Ou<br />

quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? Porque dele, e<br />

por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente.<br />

Amém! (Rm 11.33-36).<br />

A Bíblia preponderantemente se refere aos decretos de Deus como sendo<br />

um só. Tratando da predestinação para a vida, Paulo diz que “fomos... predestinados<br />

segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o<br />

conselho da sua vontade” (Ef 1.11). Ele usa duas expressões que são referentes<br />

ao que chamamos de decreto ou até mesmo sinônimo dele: “propósito”, que<br />

também tem o sentido de “plano”, “desígnio” (pro,qesin) e “conselho da sua<br />

vontade” (boulh.n tou/ qelh,matoj auvtou/). Outra expressão para “conselho da sua<br />

vontade” usada por Paulo (em Ef. 1.9) é “seu beneplácito” (euvdoki,an auvtou).<br />

Todas essas expressões se referem ao decreto de Deus no singular. Em Atos<br />

2.23 Pedro, em seu discurso no dia de Pentecostes, se refere a Cristo como<br />

tendo sido “entregue pelo determinado desígnio (ou conselho, cf. a ARC) e<br />

presciência de Deus” (th/| w`risme,nh| boulh/| kai. prognw,sei tou/ qeou/). Aqui<br />

Pedro acrescenta a palavra “presciência” (prognw,sei) que, usada para Deus,<br />

é sinônimo de predeterminação. Deus conhece de antemão todas as coisas<br />

porque foi ele mesmo quem as predeterminou. A presciência não é a causa<br />

do decreto, mas o decreto é a causa da presciência. Assim, Pedro acrescenta<br />

ao “desígnio determinado de Deus”, mencionado pouco antes, a qualidade de<br />

“predeterminado”.<br />

Deste modo, tudo o que está predeterminado e que comumente chamamos<br />

de “decretos” faz parte do conjunto daquilo que a Bíblia chama de “propósito”,<br />

“desígnio” ou “conselho de sua vontade”.<br />

1<strong>22</strong>


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138<br />

Há sabedoria na posição do teólogo Robert L. Dabney que preferiu não<br />

tomar partido nessa discussão (sobre a ordem dos decretos) por entender que<br />

ela é descabida e vai além dos limites da revelação bíblica. Falando sobre a<br />

singularidade ou unicidade dos decretos divinos, ele diz:<br />

É um só ato da mente divina e não muitos. Este ponto de vista é, pelo menos,<br />

sugerido pela Escritura, que fala dele usualmente como uma pro,qesij, “um<br />

propósito”, “um conselho”. Ele decorre da natureza de Deus. Como o conhecimento<br />

natural de Deus é totalmente imediato e contemporâneo, não sucessivo<br />

como o nosso, e sua compreensão de todo o seu propósito sempre infinitamente<br />

completa, fundada sobre ele próprio, esse propósito tem que ser um só ato, todo<br />

abrangente e simultâneo. Além disso, o decreto inteiro é eterno e imutável. Tudo,<br />

portanto, deve coexistir sempre junto na mente de Deus. Por fim, o plano de<br />

Deus é mostrado, em sua realização, como sendo um só. A causa é ligada ao<br />

efeito e o que era efeito torna-se causa; influências de eventos sobre eventos se<br />

entrelaçam entre si, descendo em fluxos estendidos para eventos subsequentes, de<br />

modo que todo o seu complexo resultado é interligado por todas as suas partes.<br />

Como os astrônomos supõem que a remoção de um planeta de nosso sitema<br />

modificaria de alguma forma o equilíbro e as orbitas de todo o resto, também a<br />

falha de um evento neste plano desarranjaria o todo, direta ou indiretamente. O<br />

plano de Deus nunca é produzir um resultado à parte de sua causa, mas sempre<br />

por meio de sua própria causa. Como o plano de Deus é, desta forma, uno em sua<br />

realização, também o deve ser em sua concepção. A maioria dos erros que têm<br />

surgido na doutrina tem vindo do equívoco de imputar a Deus a compreensão<br />

de seu propósito em partes sucessivas, à qual a limitação de nossa mente nos<br />

conduz, em sua concepção. 4<br />

3. COMO O ASSUNTO É TRATADO EM CONFISSÕES OU<br />

DOCUMENTOS CALVINISTAS<br />

Antes de conhecermos o modo como Calvino trata o assunto é interessante<br />

conhecer também como alguns dos principais símbolos de fé calvinistas<br />

o fazem. Percebe-se claramente em suas formulações que eles tiveram o<br />

cuidado de não ir além do que as Escrituras dizem a respeito do decreto da<br />

reprovação dos não eleitos, de modo a não atribuir a Deus a responsabilidade<br />

dessa reprovação como sendo a sua causa efetiva e geradora. Em geral, nesses<br />

documenos, os termos usados para ambos os decretos não são os mesmos,<br />

ainda que, em última instância, pudessem ser tidos como sinônimos. Faz-se<br />

uma diferenciação entre eles, certamente para não se atribuir diretamente a<br />

ambos a mesma volição da parte de Deus. E é por isso mesmo que eles são<br />

considerados como preponderantemente infralapsarianos. Vejamos:<br />

A Confissão de Fé de Westminster afirma que:<br />

4 DABNEY, Robert L. Lectures in Systematic Theology. Grand Rapids, MI: Zondervan, 1972,<br />

p. 214. Minha tradução.<br />

123


JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO<br />

Desde toda a eternidade, Deus, pelo muito sábio e santo conselho da sua própria<br />

vontade, ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece, porém de modo<br />

que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a vontade da criatura, nem é<br />

tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias, antes estabelecidas”<br />

e que “pelo decreto de Deus e para manifestação da sua glória, alguns homens e<br />

alguns anjos são predestinados para a vida eterna e outros preordenados para<br />

a morte eterna. 5<br />

Observa-se que ela usa a expressão “predestinar para a vida eterna” como<br />

aplicada para alguns homens e alguns anjos e “preordenar para a morte eterna”<br />

para os outros.<br />

Embora tragam a mesma ideia de predeterminação desde toda a eternidade,<br />

o uso de verbos diferentes revela o cuidado para não atribuir a Deus a mesma<br />

volição com respeito a ambas as classes referidas. Continuando a formulação, ela<br />

volta a fazer a diferenciação entre esses dois aspectos do decreto, ao dizer que<br />

“esses homens e esses anjos, assim predestinados e preordenados, são particular<br />

e imutavelmente designados; o seu número é tão certo e definido, que não pode<br />

ser nem aumentado nem diminuído” 6 . Aqui ambos os verbos (predestinados e<br />

preordenados) são usados para os eleitos para a vida. Mais adiante a Confissão<br />

usa o verbo “preordenar” para se referir aos meios que Deus usa para conduzir<br />

à fé os que são “eleitos” ao dizer: “assim como Deus destinou os eleitos<br />

para a glória, assim também, pelo eterno e mui livre propósito da sua vontade,<br />

preordenou todos os meios conducentes a esse fim” 7 e, mais adiante ainda,<br />

ela faz referência ao texto de Romanos 9, já visto acima, no que diz respeito à<br />

soberania de Deus em conceder ou recusar misericórdia, contemplando assim<br />

a situação pecaminosa de todos, em que a alguns ele revela sua misericórdia<br />

e aos demais a sua justiça. Aqui são usados dois verbos com repeito aos não<br />

eleitos para a vida eterna. O primeiro, em forma negativa, “não contemplar” ou<br />

“preterir”, e o segundo, em forma positiva, “ordenar” ou “destinar”. O primeiro<br />

refere-se àquilo que é chamado pelo sistema infralapsariano de “preterição” ou<br />

“não escolha” e o segundo é sinônimo de “destinar” e, dentro do contexto da<br />

afirmação anterior, “preordenar para a morte eterna”. Ela diz:<br />

Segundo o inescrutável conselho da sua própria vontade, pela qual ele concede<br />

ou recusa misericórdia, como lhe apraz, para a glória do seu soberano poder<br />

sobre as suas criaturas, o resto dos homens, para louvor da sua gloriosa justiça,<br />

foi Deus servido não contemplar e ordená-los para a desonra e ira por causa<br />

dos seus pecados. 8<br />

5 A Confissão de Fé. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1991, III.1,3. Destaques meus.<br />

6 Ibid. III, 4. Destaques meus.<br />

7 Ibid. III.6. Destaque meu.<br />

8 A Confissão de Fé, III.6. Destaques meus.<br />

124


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138<br />

É como a Confissão de Fé de Westminster vê e trata o assunto. Igualmente<br />

clara fica essa diferenciação de termos na resposta que o Catecismo Maior dos<br />

Símbolos de Fé de Westminster dá à pergunta 13, quando diz que Deus<br />

... em Cristo, escolheu alguns homens para a vida eterna... e também, segundo o<br />

seu soberano poder e o conselho inescrutável da sua própria vontade (pela qual<br />

ele concede, ou não, os seus favores conforme lhe apraz) deixou e preordenou<br />

os mais à desonra e à ira, que lhe serão infligidas por causa dos seus pecados,<br />

para a exaltação da glória da justiça divina. 9<br />

Os Cânones de Dort são mais explícitos ainda nesta questão de não atribuir<br />

a Deus a responsabilidade pela condenação dos ímpios, mesmo conferindo<br />

ao seu decreto eterno o conceder a fé a alguns e a outros não. Eles dizem nos<br />

seus artigos 4-6 do 1º capítulo da doutrina: A Divina Eleição e Reprovação:<br />

A ira de Deus permanece sobre aqueles que não creem no Evangelho. Mas<br />

aqueles que o aceitam e abraçam a Jesus, o Salvador, com uma fé verdadeira e<br />

viva, são redimidos por ele da ira de Deus e da perdição, e presenteados com<br />

a vida eterna (Jo 3.36; Mc 16.16). Em Deus não está, de forma alguma, a causa<br />

ou culpa dessa incredulidade. O homem tem essa culpa, assim como a de todos<br />

os demais pecados. Mas a fé em Jesus Cristo e também a salvação por meio dele<br />

são dons gratuitos de Deus, como está escrito: Porque pela graça sois salvos,<br />

mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus... (Ef 2.8). Semelhantemente,<br />

Porque vos foi concedida a graça de ... crer em Cristo (Fp 1.29).<br />

Deus nesta vida concede a fé a alguns enquanto não concede a outros. Isto<br />

procede do eterno decreto de Deus. Porque as Escrituras dizem que ele “faz<br />

estas coisas conhecidas desde séculos” e que ele “faz todas as coisas conforme<br />

o conselho da sua vontade” (At 15.18; Ef 1. 11). De acordo com este decreto,<br />

ele graciosamente quebranta os corações dos eleitos, por duros que sejam, e<br />

os inclina a crer. Pelo mesmo decreto, entretanto, segundo seu justo juízo, ele<br />

deixa os não‐eleitos em sua própria maldade e dureza de coração. E aqui especialmente<br />

nos é manifesta a profunda, misericordiosa e ao mesmo tempo justa<br />

distinção entre homens que estão sob a mesma condição de perdição. Este é<br />

o decreto da eleição e reprovação revelado na Palavra de Deus. Ainda que os<br />

homens perversos, impuros e instáveis o deturpem, para sua própria perdição,<br />

ele dá um inexprimível conforto para as pessoas santas e tementes a Deus. 10<br />

E continuam a dizer no artigo 15 desse mesmo capítulo:<br />

9 O Catecismo Maior. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1991, pergunta 13, p. 173. Destaques<br />

meus.<br />

10 Os Canones de Dort. Org. Cláudio Antônio Batista Marra. São Paulo: Editora Cultura Cristã,<br />

sem data, p. 18-19. Itálicos no original.<br />

125


JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO<br />

A Escritura Sagrada mostra e recomenda a nós esta graça eterna e imerecida<br />

sobre nossa eleição, especialmente quando, além disso, testifica que nem todos<br />

os homens são eleitos; alguns, pois, são preteridos na eleição eterna de Deus.<br />

De acordo com seu soberano, justo, irrepreensível e imutável bom propósito,<br />

Deus decidiu deixá‐los na miséria comum em que se lançaram por sua própria<br />

culpa, não lhes concedendo a fé salvadora e a graça da conversão. Para mostrar<br />

sua justiça, decidiu deixá‐los em seus próprios caminhos e debaixo do seu justo<br />

julgamento e, finalmente, condená‐los e puni‐los eternamente, não apenas por<br />

causa de sua incredulidade, mas também por todos os seus pecados, para mostrar<br />

sua justiça. Este é o decreto da reprovação, o qual não torna Deus o autor do<br />

pecado (tal pensamento é blasfêmia!), mas o declara o temível, irrepreensível<br />

e justo Juiz e Vingador do pecado. 11<br />

Citamos apenas três desses documentos, mas é sabido que a maioria dos<br />

demais segue a mesma linha de pensamento, qual seja, a de usar uma linguagem<br />

que, ao mesmo tempo em que contempla o beneplácito da vontade de<br />

Deus como a causa última de todas as coisas, não atribui a ele a origem ou a<br />

agência do mal.<br />

4. COMO CALVINO PODE SER LIDO À LUZ DESSA DISCUSSÃO:<br />

PODERIA ELE SER ROTULADO COMO DEFENSOR DE<br />

QUALQUER DESSAS CORRENTES, CASO ESSE ASSUNTO<br />

ESTIVESSE EM DISCUSSÃO NO SEU TEMPO E CONTEXTO?<br />

Antes de qualquer outra consideração, é preciso salientar que Calvino<br />

não estava comprometido com qualquer outra fonte de conhecimento de Deus<br />

a não ser aquele revelado nas Escrituras Sagradas, ainda que essa revelação<br />

pudesse contrariar o raciocínio lógico do homem. Seu compromisso era com<br />

a Bíblia e não com a lógica humana. Sobre isso lemos afirmações suas como:<br />

... para que tenhamos aqui bom equilíbrio, devemos examinar a Palavra de Deus,<br />

na qual temos excelente regra para o entendimento firme e correto. Porquanto,<br />

a Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual, assim como nada que seja útil<br />

e salutar conhecer é omitido, assim também não há nada que nela seja ensinado<br />

que não seja válido e proveitoso saber. 12<br />

A mente piedosa [...] contempla somente o Deus único e verdadeiro, nem lhe<br />

atribui o que quer que à imaginação haja acudido, mas se contenta com tê-Lo tal<br />

qual Ele próprio Se manifesta...”. Deus, acomoda-se ao nosso modo ordinário<br />

de falar por causa de nossa ignorância, às vezes também, se me é permitida a<br />

expressão, gagueja. 13<br />

11 Ibid., p. <strong>22</strong>.<br />

12 CALVINO, João. As Institutas. Edição especial. Trad. Odayr Olivetti. Vol. 3, Cap. 7. São Paulo:<br />

Editora Cultura Cristã, 2004, p. 42.<br />

13 CALVIN, John. Commentary on the Gospel According to John (Calvin’s Commentaries,<br />

vol. XVIII), p. <strong>22</strong>9. Calvino, As Institutas, I.2.2.<br />

126


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138<br />

A Palavra de Deus é uma espécie de sabedoria oculta, a cuja profundidade a<br />

frágil mente humana não pode alcançar. Assim, a luz brilha nas trevas, até que<br />

o Espírito abra os olhos ao cego. 14<br />

Quando trata da doutrina da Predestinação, de modo particular, ele adverte<br />

àqueles que querem enveredar-se nos segredos de Deus que estão acima do<br />

entendimento humano, dizendo:<br />

Portanto, primeiro que se lembrem de que, enquanto investigam a predestinação,<br />

tentam penetrar nos íntimos recessos da divina sabedoria, na qual, se<br />

alguém segura e confiantemente irrompe, tampouco conseguirá saciar-se com<br />

sua curiosidade, e estará a adentrar um labirinto do qual não achará nenhuma<br />

saída. Pois não é justo que impunemente procure o homem devassar as coisas<br />

que o Senhor quis que fossem escondidas em si próprio e esquadrinhe desde a<br />

própria eternidade a sublimidade da sabedoria que ele quis que seja adorada e<br />

não que seja apreendida, para que também por meio dela ele viesse a ser admirado.<br />

Os desígnios secretos de sua vontade que determinou devessem ser-nos<br />

desvendados, esses no-los revelou em sua Palavra. 15<br />

E continua pouco depois:<br />

Se reina em nós o pensamento de que a Palavra do Senhor é o único caminho<br />

que nos conduz a investigar tudo quanto é justo dele sustentar-se, é a única<br />

luz que à frente nos resplandece para bem perceber tudo quanto a respeito dele<br />

convém considerar-se, de toda temeridade facilmente nos conterá e coibirá.<br />

Porque sabemos que no momento em que transpusermos os limites assinalados<br />

pela Escritura, seremos perdidos fora do caminho e entre trevas espessas, no<br />

qual teremos necessariamente que vagar, muitas vezes, sem rumo, resvalar e a<br />

tropeçar. Portanto, que antes de tudo isto esteja diante dos olhos: que procurar<br />

outro conhecimento da predestinação além daquele que se expõe na Palavra de<br />

Deus, é como se um homem quisesse andar fora do caminho por rochas e penhascos,<br />

ou quisesse ver em densa escuridão. Aliás, tampouco nos cause vergonha<br />

ignorar algo nessa matéria na qual há certa douta ignorância. Antes, de bom<br />

grado nos abstenhamos da perquirição desse conhecimento cuja afetação é tão<br />

estulta quão perigosa, e até mesmo fatal. Porque, se a intemperança da mente<br />

nos acossa, é oportuno que sempre se lhe oponha este provérbio com que seja<br />

repelida: “Comer mel demais não é bom; assim, a busca da própria glória não é<br />

glória” [Pv 25.27]. Ora, há razão para recuarmos atemorizados dessa ousadia,<br />

a qual nos pode precipitar à ruína. 16<br />

E sobre os que negam a necessidade de se investigar e expor esse assunto,<br />

dada a sua complexidade, ele responde:<br />

14 João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, p. 89.<br />

15 Institutas III.21.1.<br />

16 Ibid. III.21.2.<br />

127


JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO<br />

Portanto, para que também neste aspecto mantenhamos o legítimo limite, é<br />

preciso retornar à Palavra do Senhor, na qual temos segura regra à compreensão.<br />

Pois a Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual não se deixa de pôr coisa<br />

alguma necessária e útil de se conhecer, nem tampouco se ensina nada mais além<br />

do que se precisa saber... Portanto, tudo quanto na Escritura se dá a conhecer<br />

acerca da predestinação, é preciso cuidar para que disso não privemos os fiéis,<br />

a fim de que não pareçamos ou maldosamente defraudá-los da benevolência de<br />

seu Deus, ou acusar e escarnecer o Espírito por haver divulgado essas coisas que<br />

seria proveitoso fossem suprimidas e mantidas em segredo. Insisto que devemos<br />

permitir ao homem cristão abrir a mente e os ouvidos a todas as palavras de Deus<br />

que lhe são dirigidas, desde que se faça com esta moderação: que assim que o<br />

Senhor haja fechado sua santa boca, também fecha ele atrás de si o caminho<br />

à especulação. Aqui está o melhor limite da sobriedade: que ao aprendermos<br />

sigamos a Deus, deixando que ele fale primeiro; e se o Senhor deixa de falar,<br />

tampouco nós queiramos saber mais, nem avançar mais um passo. 17<br />

Com esta visão em mente, Calvino não se atrevia a dar explicações sobre<br />

os fatos decretados por Deus e revelados nas Escrituras que estivessem acima<br />

de sua capacidade de compreensão e nem se envergonhava de reconhecer que<br />

não tinha essas explicações. Sua abordagem foi sempre a de expor o ensino<br />

das Escrituras em seus diferentes aspectos e em toda a sua extensão, ainda que<br />

parecessem contraditórios à nossa razão. É como ele trata a questão da soberania<br />

de Deus e da responsabilidade humana relacionadas com a sua providência.<br />

Falando sobre o modo como Deus decreta e dirige todas as coisas, não<br />

titubeia e nem usa meias palavras para atribuir a Deus, no seu trato com o<br />

homem, ações que, ao nosso raciocínio parecem ser contrárias ao conceito da<br />

livre agência humana, mas que são ensinadas nas Escrituras. Ele diz:<br />

No que tange a estas injunções secretas, o que Salomão declara do coração<br />

do rei [Pv 21.1], de inclinar-se para cá ou para lá conforme apraz a Deus, na<br />

verdade deve estender-se a todo o gênero humano e equivale a tanto como se<br />

dissesse que tudo quanto concebemos na mente é dirigido para seu fim pela<br />

inspiração secreta de Deus... Nada, porém, mais claro se pode desejar que isto:<br />

tantas vezes declara que ele cega o entendimento dos homens e os fere de vertigem<br />

[Dt 28.21], embriaga-os de um espírito de torpor, lhes infunde loucura<br />

[Rm 1.28], endurece o coração [Ex 14.17, passim]. Muitos, porém, lançam estes<br />

fatos à conta da permissão, como se, ao rejeitar aos réprobos, Deus os deixasse<br />

entregues a Satanás para que os cegasse. Todavia, uma vez que o Espírito Santo<br />

declara expressamente que cegueira e insânia são infligidas pelo justo juízo de<br />

Deus [Rm 1.20-24], essa solução se torna muitíssimo frívola. 18<br />

17 Ibid. III.21.3.<br />

18 Ibid. I.18.2.<br />

128


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138<br />

Calvino usa o caso de Faraó para mostrar como ambos os aspectos, tanto<br />

o da soberania de Deus como o da responsabilidade do homem, estão presentes<br />

na sua obra da Providência, usando os seguintes argumentos:<br />

Está escrito que ele endureceu o coração de Faraó [Ex 9.12]; de igual modo,<br />

que o fez pesado [Ex 10.1] e o enrijeceu [Ex 10.20, 27; 11.10; 14.8]. Alguns<br />

contornam essas formas de expressão através de sutileza insípida, porquanto<br />

nessas referências a vontade de Deus é posta como a causa do endurecimento,<br />

enquanto em outro lugar [Ex 8.15, 32; 9.34] se diz que o próprio Faraó havia<br />

endurecido o coração. Como se, na verdade, se bem que de modos diversos, não<br />

se harmonizem perfeitamente bem entre si estes dois fatos: que o homem, quando<br />

é acionado por Deus, contudo ele, ao mesmo tempo, está também agindo. Eu,<br />

porém, lanço contra eles o que objetam, porque, se endurecer denota permissão<br />

absoluta, o próprio impulso da contumácia não estará propriamente em Faraó.<br />

Com efeito, quão diluído e insípido seria interpretar assim, como se Faraó<br />

apenas se deixasse endurecer! Acresce que de antemão a Escritura corta a asa a<br />

tais subterfúgios: “Mas eu”, diz Deus, “lhe endurecerei o coração” [Ex 4.21]. 19<br />

Mesmo quando ações são atribuídas a Satanás, Calvino não foge às Escrituras<br />

para mostrar que também tais ações são o modo de Deus cumprir os<br />

seus decretos e de administrar aquilo que está de acordo com o seu desígnio.<br />

É como diz:<br />

Sem dúvida, confesso que frequentemente Deus age nos réprobos pela interposição<br />

da ação de Satanás, contudo de modo que, por seu impulso, o próprio<br />

Satanás execute seu papel e avance até onde lhe foi concedido. Um espírito maligno<br />

atormenta a Saul; diz-se, porém, que é da parte de Deus [1Sm 16.14], para<br />

que saibamos que a insânia de Saul procedia da justa vingança de Deus. Diz-se<br />

ainda que o mesmo Satanás ‘cega o entendimento dos incrédulos’ [2Co 4.4]; mas<br />

donde vem isso senão que do próprio Deus promana a operação do erro, para<br />

que creiam em mentiras os que se recusam a obedecer à verdade? [2Ts 2.11].<br />

Conforme a primeira noção, assim se diz: “Se qualquer profeta houver falado<br />

enganosamente, eu, Deus, o enganei” [Ez 14.9]; conforme a segunda, porém,<br />

diz-se que ele próprio entrega os homens a uma disposição réproba e os lança a<br />

vis apetites [Rm 1.28], porquanto de sua justa vingança ele é o principal autor;<br />

Satanás, na verdade, é apenas seu ministro... Seja esta a síntese: uma vez se diz<br />

que a vontade de Deus é a causa de todas as coisas, a providência é estatuída<br />

como moderatriz em todos os planos e ações dos homens, de sorte que não apenas<br />

comprove sua eficiência nos eleitos, que são regidos pelo Espírito Santo, mas<br />

ainda obrigue os réprobos à obediência. 20<br />

19 Ibid.<br />

20 Ibid.<br />

129


JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO<br />

Também ao comentar o ensino de Paulo em Romanos 9, mesmo aquelas<br />

passagens que parecem favorecer a ordem infralapsariana dos decretos, como as<br />

que falam em “vasos de ira e de misericórdia” e que pressupõem, numa ordem<br />

histórica e até lógica, a presença do pecado, como já vimos acima, Calvino as<br />

liga ao decreto único do beneplácito de Deus no exercício da sua soberania,<br />

sem distinção de categorias. Sem dúvida, para ele essa é a base para justificar<br />

as ações divinas no cumprimento do seu beneplácito.<br />

No seu comentário de Romanos 9.17-23, ele enfatiza o aspecto da soberania<br />

de Deus mais do que qualquer outro e chega a colocar tanto a manifestação<br />

da ira quanto a da misericórdia de Deus como o propósito divino naquilo que<br />

alguns supralapsarianos chamam de dupla predestinação. No comentário do<br />

v. 17 ele diz:<br />

Paulo, então, chega à segunda parte, ou seja: a rejeição do ímpio. Visto haver<br />

aqui, aparentemente, certo fator menos racional, ele se empenha muito mais para<br />

esclarecer como Deus, ao rejeitar a quem ele quer, não só permanece irrepreensível,<br />

mas também permanece excelsamente maravilhoso em sua sabedoria e<br />

retidão. O apóstolo, pois, extrai seu texto-prova de Êxodo 9.16, onde o Senhor<br />

declara que foi ele mesmo quem levantou Faraó precisamente para aquela finalidade,<br />

com o propósito de provar por meio de sua imperfeição e subjugação,<br />

ao empenhar-se obstinadamente por destruir o poder divino, quão invencível<br />

é o braço de Deus. Nenhuma força humana é capaz de detê-lo, muito menos<br />

quebrá-lo. Note-se o exemplo que o Senhor quis oferecer no caso de Faraó.<br />

Portanto, consideremos dois pontos aqui: primeiro, a predestinação de Faraó<br />

para a destruição, a qual se relaciona com o justo e secreto conselho de Deus;<br />

segundo, o proposito desta predestinação, que era o de proclamar o nome de<br />

Deus. É sobre este que Paulo particularmente insiste. Se o endurecimento do<br />

coração de Faraó foi de tal vulto que trouxe notoriedade para o nome de Deus,<br />

então é blasfemo acusá-lo de injustiça. 21<br />

Infelizmente, Calvino não comenta nesta passagem de Romanos 9. <strong>22</strong>-23 o<br />

uso que Paulo faz de diferentes verbos em diferentes vozes, a que nos referimos<br />

em tópico anterior deste trabalho, e que pode mostrar uma ênfase diferente ao<br />

propósito de Paulo neste texto. <strong>22</strong><br />

Mas, ao mesmo tempo em que ressalta o propósito de Deus de “predestinar<br />

Faraó para a destruição”, qual seja, o de proclamar o nome de Deus, também<br />

coloca a rejeição do pacto por parte de Ismael e Esaú como a razão ou causa<br />

21 CALVINO, João. Comentário à Sagrada Escritura, Exposição de Romanos. Trad. Valter Graciano<br />

Martins. São Paulo: Editora Paracletos, 1997, p. 335-336. Destaques meus.<br />

<strong>22</strong> Nem todos concordam que esta seja a ênfase principal de Paulo nesta passagem, por razões que<br />

não cabe discutir aqui, algumas das quais estão apresentadas em nota de rodapé pelo editor e tradutor do<br />

seu comentário para o inglês, John Owen. Ver: Commentary on The Epistle of Paul the Apostle to the<br />

Romans by John Calvin, traduzido e editado por John Owen. Grand Rapids: Baker Book House, 1981<br />

(volume XIX da série Calvin̕s Commentary – Acts 14-28 – Romans 1-16), p. 360-361).<br />

130


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138<br />

do exercício do justo juízo divino. Comentando o fato de Deus repudiar alguns<br />

do mesmo tronco de Abraão, como Ismael e Esaú e, depois, quase todo<br />

o Israel, ele diz:<br />

A história sacra repete isso algumas vezes, para que o admirável segredo da<br />

graça de Deus se patenteie melhor nesta mudança. Reconheço que Ismael, Esaú<br />

e outros foram alijados da adoção por sua própria falha e culpa, porquanto<br />

se opuseram à condição de que cumprissem fielmente o pacto de Deus, o qual<br />

violaram perfidamente. No entanto, este foi um benefício singular de Deus, ou,<br />

seja, que se dignara preferi-los aos demais povos, como se diz no Salmo: “Ele<br />

não agiu assim com nenhuma outra nação, nem lhes manifestou seus juízos”<br />

[Sl 147.20]. 23<br />

Mesmo usando estes e outros textos bíblicos, Calvino não se vê obrigado<br />

a supor que Deus tenha dupla vontade, pois atribui à incapacidade de nossa<br />

mente a falta de compreensão desse seu agir, sem que lhe seja imposta a responsabilidade<br />

por atos de suas criaturas. Ele ressalta:<br />

Contudo, nem por isso Deus se põe em conflito consigo mesmo, nem se muda<br />

sua vontade, nem o que quer finge não querer; todavia, embora nele sua vontade<br />

seja uma só e indivisa, a nós parece múltipla, já que, em razão da obtusidade de<br />

nossa mente, não aprendemos como, de maneira diversa, o mesmo não queira<br />

e queira que aconteça. Paulo, onde disse que a vocação dos gentios era “um<br />

mistério escondido [Ef 3.9], acrescenta, pouco depois [Ef 3.10], que nela manifestara<br />

a polupoi,kilon [multiforme] sabedoria de Deus. Porventura porque, em<br />

decorrência da lerdeza de nosso entendimento, a sabedoria de Deus se afigura<br />

múltipla, ou, como a verteu o tradutor antigo, multiforme, deveríamos nós, por<br />

isso, sonhar no próprio Deus qualquer variação como se mudasse de plano ou<br />

divergisse de si mesmo? Antes, quando não apreendemos como Deus queira<br />

que se faça o que proíbe fazer, venha-nos à lembrança nossa obtusidade, e ao<br />

mesmo tempo consideremos que a luz em que ele habita não em vão se chama<br />

inacessível [1Tm 6.16], já que de trevas é rodeada. 24<br />

Ainda considerando esse assunto, Calvino vê nessa aparente dupla vontade<br />

de Deus a resposta para outra objeção, a saber:<br />

... Se Deus não só se serve da operação dos ímpios, mas inclusive lhes governa<br />

os desígnios e intenções, é ele o autor de todas as impiedades e, consequentemente,<br />

os homens são imerecidamente condenados, se estão a executar o que<br />

Deus decretou, uma vez que estão a obedecer-lhe à vontade? 25<br />

23 Institutas III.21.6. Destaques meus.<br />

24 Ibid. I.18.3.<br />

25 Ibid. I.18.4.<br />

131


JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO<br />

diz:<br />

E nesse ponto ele faz uma diferenciação entre vontade e preceito, quando<br />

Ora, erroneamente, eles confundem sua vontade com seu preceito, a qual de<br />

inúmeros exemplos transparece diferir dele desmedidamente. Pois, visto que,<br />

enquanto Absalão violou as concubinas do pai [2Sm 16.<strong>22</strong>], Deus quis com esse<br />

ato infamante punir o adultério de Davi, entretanto nem por isso preceituou ao<br />

filho celerado cometer o incesto, senão que o preceituou talvez com respeito a<br />

Davi, como este mesmo fala acerca das insultuosas acusações de Simei. Pois,<br />

enquanto confessa [2Sm 16.10] que aquele amaldiçoava por injunção de Deus,<br />

de modo algum lhe recomenda a obediência, como se aquele cão insolente estivesse<br />

obedecendo ao imperativo de Deus, mas, reconhecendo que a língua era<br />

o azorrague de Deus, se deixa pacientemente castigar. Isto nos cabe realmente<br />

sustentar: enquanto por instrumentalidade dos ímpios Deus leva a bom termo o<br />

que decretou em seu juízo secreto, não são eles escusáveis, como se estivessem<br />

obedecendo a seu preceito, o qual deliberadamente violam em sua desregrada<br />

cupidez. 26<br />

E mais adiante conclui: “A não ser que esteja enganado, já antes expliquei<br />

claramente como, em um mesmo ato, tanto se manifesta o delito do homem,<br />

quanto refulge a justiça de Deus” 27<br />

5. COMO OS DOIS PONTOS DE VISTA PODEM SER VISTOS<br />

EM CALVINO<br />

Fiel ao seu método de interpretar e expor as Escrituras, é possível fazer<br />

uma leitura de seus escritos tanto sob o ponto de vista supralapsariano quanto<br />

sob o infralapsariano, embora não com a mesma ênfase e intensidade. Conforme<br />

vimos acima, Calvino não faz uma dicotomia entre esses dois sistemas que,<br />

depois dos seus dias, tornou-se foco de debates e até de divisão de denominações,<br />

entre grupos calvinistas.<br />

Sua ênfase maior é sobre a eleição ou predestinação para a vida, assunto<br />

que ele trata não no capítulo sobre a doutrina de Deus, mas no da doutrina da<br />

salvação e depois que os pontos principais dessa já tinham sido tratados, e o faz<br />

em resposta a uma pergunta que poderia surgir do fato de o evangelho (que ele<br />

chama de pacto de vida) não ser pregado igualmente entre todos os homens e<br />

de não ter igual aceitação mesmo entre aqueles a quem ele é pregado. Ele diz:<br />

Mas, já que o pacto de vida não é pregado entre todos os homens igualmente,<br />

e entre aqueles a quem é pregado não acha a mesma receptividade, quer qualitativa,<br />

quer continuativamente, nessa diversidade se manifesta a admirável<br />

profundeza do juízo divino. Pois não há dúvida de que esta variedade serve<br />

também ao arbítrio da eterna eleição de Deus. Porque, se é notório que pelo<br />

26 Ibid. Destaques meus.<br />

27 Ibid.<br />

132


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138<br />

arbítrio de Deus suceder [sic] que a salvação é oferecida gratuitamente a uns,<br />

enquanto que outros são impedidos de seu acesso, aqui prontamente emergem<br />

grandes e árduas questões, as quais não podem ser explicadas de outra forma,<br />

se as mentes pias têm por definido o que se impõe manter a respeito de eleição<br />

e predestinação. Questão assaz intrincada, como parece a muitos, porquanto<br />

pensam não ser de modo algum coerente que da multidão comum dos homens<br />

uns sejam predestinados à salvação, outros à perdição. Claramente se verá,<br />

pela argumentação que empregaremos nesta matéria, que são eles que, por falta<br />

de discernimento, se enredam. Acresce ainda que na própria escuridão que<br />

aterra se põe à mostra não só o lado útil desta doutrina, como também seu fruto<br />

dulcíssimo. Jamais haveremos de ser claramente persuadidos, como convém,<br />

de que nossa salvação flui da fonte da graciosa misericórdia de Deus, até que<br />

sua eterna eleição se nos faça conhecida, a qual, mercê deste contraste, ilumina<br />

a graça de Deus, a saber, que ele não adota à esperança da salvação a todos<br />

indiscriminadamente; ao contrário, ele dá a uns o que nega a outros. 28<br />

Ao discorrer sobre a predestinação e a presciência como elementos correlatos,<br />

sem que esta seja a causa daquela, ele diz:<br />

Ninguém que queira ser tido por homem de bem e temente a Deus se atreverá a<br />

negar simplesmente a predestinação, pela qual Deus adota a uns para a esperança<br />

da vida, a outros destina à morte eterna, porém, a envolvem em muitas<br />

cavilações, sobretudo os que fazem da presciência sua causa. E nós, com efeito,<br />

admitimos que ambas estão em Deus, porém o que agora afirmamos é que é totalmente<br />

infundado fazer uma depender da outra. Quando atribuímos presciência<br />

a Deus, queremos dizer que ele tem sempre e perpetuamente permanente sob<br />

as vistas, de sorte que, ao seu conhecimento, nada é futuro ou pretérito; ao<br />

contrário, todas as coisas estão presentes, e de fato tão presentes que não as<br />

imagina como meras ideias – da maneira como imaginamos aquelas coisas das<br />

quais nossa mente retém a lembrança –, mas as visualiza e discerne como se<br />

estivessem verdadeiramente diante dele. E esta presciência se estende a todo o<br />

âmbito do mundo e a todas as criaturas”. 29<br />

E depois de fazer essa correlação, ele define a predestinação como faz<br />

hoje qualquer supralapsariano:<br />

Chamamos predestinação o eterno decreto de Deus pelo qual houve por bem<br />

determinar o que acerca de cada homem quis que acontecesse. Pois ele não quis<br />

criar a todos em igual condição; ao contrário, preordenou a uns a vida eterna;<br />

a outros, a condenação eterna. Portanto, como cada um foi criado para um ou<br />

outro desses dois destinos, assim dizemos que um foi predestinado ou para a<br />

vida, ou para a morte. 30<br />

28 Institutas III.21.1. Destaques meus.<br />

29 Ibid. III.21.5. Destaques meus.<br />

30 Ibid. Destaques meus.<br />

133


JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO<br />

Ao afirmar que a causa da eleição e da reprovação têm a mesma fonte, o<br />

beneplácito divino, ele não deixa de reconhecer que esta não é uma doutrina<br />

acessível ao entendimento humano, quando continua a dizer:<br />

Tampouco se pode tolerar a obstinação dos que não permitem que se lhes ponha<br />

um freio com a Palavra de Deus, tratando-se de um juízo incompreensível<br />

dele, o qual até mesmo os próprios anjos adoram. Com efeito, já ouvimos que<br />

o endurecimento está não menos na mão e no arbítrio de Deus quanto depende<br />

de sua misericórdia. Aliás, como o exemplo a que me referi previamente, tampouco<br />

Paulo se esforça ansiosamente por isentar a Deus de falsidade e mentira;<br />

apenas adverte que não é lícito à coisa modelada contender com seu modelador<br />

[Rm 9.20]. Ora, aqueles que não admitem que alguém seja reprovado por Deus,<br />

como se desvencilharão dessa sentença de Cristo: “Toda árvore que meu Pai não<br />

plantou será arrancada?” [Mt 15.13]. Ouvem expressamente que aqueles que o<br />

Pai celestial não teve por bem plantar em seu campo, como árvores sacrossantas,<br />

estão evidentemente destinados à perdição. Se negam ser este um sinal de<br />

reprovação, não há nada tão claro que lhes possa ser provado. 31<br />

Mas embora Calvino atribua ao beneplácito da vontade de Deus a escolha<br />

em criar e predestinar a uns para a vida e outros para a morte, como<br />

lemos acima, ele de igual modo atribui a rejeição de Ismael e Esaú, como a de<br />

todos os outros não eleitos para a vida, aos seus próprios pecados. São estas<br />

suas palavras:<br />

A história sacra repete isso algumas vezes, para que o admirável segredo da<br />

graça de Deus se patenteie melhor nesta mudança. Reconheço que Ismael, Esaú<br />

e outros foram alijados da adoção por sua própria falha e culpa, porquanto<br />

se opuseram à condição de que cumprissem fielmente o pacto de Deus, o qual<br />

violaram perfidamente. 32<br />

Certamente Calvino pode ser chamado de contraditório, se ele for<br />

julgado à luz de nossa lógica de raciocínio. E quando ele sumaria o seu ensino<br />

sobre a doutrina da predestinação, é ainda mais claro sobre como ele<br />

vê ambos os aspectos, tanto o da soberania de Deus em exercer sua livre<br />

graça e misericórdia a quem quer, como o da responsabilidade humana, por<br />

considerar a condenação dos não eleitos como o exercício da justiça de Deus<br />

como retribuição pelos seus pecados. São essas suas palavras comentando a<br />

passagem de Romanos 9. 19-23.<br />

Portanto, estamos afirmando o que a Escritura mostra claramente: que designou<br />

de uma vez para sempre, em seu eterno e imutável desígnio, àqueles que ele quer<br />

31 Ibid. III.23.1.<br />

32 Ibid. III.21.6. Destaques meus.<br />

134


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138<br />

que se salvem, e também àqueles que quer que se percam. Este desígnio, no que<br />

respeita aos eleitos, afirmamos haver-se fundado em sua graciosa misericórdia,<br />

sem qualquer consideração da dignidade humana; aqueles, porém, aos quais<br />

destina à condenação, a estes de fato por seu justo e irrepreensível juízo, ainda<br />

que incompreensível, lhes embarga o acesso à vida. Da mesma forma ensinamos<br />

que a vocação dos eleitos é um testemunho de sua eleição; em seguida, a justificação<br />

é outro sinal de seu modo de manifestar-se, até que se chega à glória, na<br />

qual está posta sua consumação. Mas, da mesma forma que pela vocação e pela<br />

justificação o Senhor assinala seus eleitos, assim também ao excluir os réprobos,<br />

seja do conhecimento de seu nome, seja da santificação de seu Espírito, mostra<br />

com esses sinais qual será seu fim e que juízo lhes está preparado. 33<br />

Uma importante evidência de que Calvino jamais atribui a Deus a origem<br />

do mal está na sua exposição do texto de Isaías 45.7, que tem sido usado por<br />

muitos como se estivesse afirmando tal impropriedade. O texto diz: “Eu formo<br />

a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o senhor, faço todas estas<br />

coisas”. Comentando essa passagem, ele diz:<br />

Os fanáticos torcem esta palavra “mal” como se Deus fosse o autor do mal, isto<br />

é, do pecado; mas é bem óbvio quão ridiculamente eles abusam dessa passagem<br />

do profeta. Isto é suficientemente explicado pelo contraste, cujas partes<br />

devem concordar entre si; pois ele contrasta a “paz” com o “mal”, ou seja, com<br />

aflições, guerras e outras ocorrências adversas. Se ele comparasse a “justiça”<br />

com o “mal”, haveria alguma plausibilidade em seus raciocínios, mas este é<br />

um claro contraste de coisas opostas entre si. Por conseguinte, não devemos<br />

rejeitar a distinção natural de que Deus é o autor do “mal” da punição, mas não<br />

do “mal” da culpa. 34<br />

Para Calvino, tanto a reprovação quanto a eleição são atos da vontade de<br />

Deus, pois ela é a causa de tudo e, para ele, é grande improbidade meramente<br />

indagar as causas da vontade divina (Institutas III.23.1-3). Ele diz:<br />

A vontade de Deus é a tal ponto a suprema regra de justiça, que tudo quanto queira,<br />

uma vez que o queira, tem de ser justo. Quando, pois, se pergunta por que o<br />

Senhor agiu assim, há de responder-se: Porque o quis. Porque, se prossigas além,<br />

indagando por que ele o quis, buscas algo maior e mais elevado que a vontade<br />

de Deus, o que não se pode achar. Portanto, contenha-se a temeridade humana<br />

e não busque o que não existe, para que não venha, quem sabe, a acontecer que<br />

aquilo que existe não ache. Afirmo que, com este freio, bem se conterá quem<br />

quer que queira com reverência filosofar acerca dos mistérios de seu Deus. 35<br />

33 Ibid. III.21.7. Destaques meus.<br />

34 Commentary on the Prophet Isaiah. Vol. III, p. 403 (Calvin̕s Commentaries, vol. VIII). Grand<br />

Rapids: Baker, 1981.<br />

35 Institutas III.23.1.<br />

135


JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO<br />

Mas ao mesmo tempo ele usa a natureza pecaminosa do homem como<br />

resposta à pergunta “por que Deus no início predestinou alguns à morte, os<br />

quais, como ainda não existissem, não podiam ainda ser merecedores de juízo<br />

de morte”. Desta forma, pressupõe a queda como a razão para a predestinação<br />

para morte. Ele diz:<br />

... à guisa de resposta lhes indaguemos, por nossa vez, se pensam que Deus<br />

deve algo ao homem, caso o queira estimar por sua própria natureza? Como<br />

estamos todos infeccionados pelo pecado, não podemos deixar de ser odiosos a<br />

Deus, e isso não por crueldade tirânica, mas por razão de justiça mui equitativa.<br />

Porque, se todos são passíveis de juízo de morte, por condição natural, os que<br />

o Senhor predestina à morte, pergunto de que iniquidade sua para consigo, se<br />

hajam de queixar-se? 36<br />

E continua com o argumento que bem atende à visão infralapsariana sobre<br />

a causa da reprovação dos não eleitos, ao dizer:<br />

Venham todos os filhos de Adão; contendam e alterquem com seu Criador<br />

por que antes mesmo de serem gerados foram predestinados à perpétua miséria por<br />

sua eterna providência. Que poderão vociferar contra esta vindicação quando,<br />

em contrário, Deus os haverá de convocar ao exame de si próprios? Se de massa<br />

corrupta foram todos tomados, não é de admirar se estão sujeitos à condenação.<br />

Logo, não acusem falsamente a Deus de iniquidade, se de seu eterno juízo<br />

foram destinados à morte, à qual são por sua própria natureza conduzidos por<br />

vontade própria, queiram ou não queiram, eles mesmos sentem. Do quê (sic)<br />

se faz evidente quão perversa é a afetação de vociferar contra Deus, porque<br />

suprimem, deliberadamente, a causa da condenação que em si são compelidos<br />

a reconhecer, para que o pretexto de Deus os livre. Com efeito, ainda que eu<br />

confesse cem vezes ser Deus o autor de sua condenação – o que é mui verdadeiro<br />

–, entretanto, não se purificarão do pecado que está esculpido em suas<br />

consciências, e que a cada passo se apresenta ante seus olhos. 37<br />

Reconhecendo essa aparente incoerência, Calvino responde que a justiça<br />

de Deus não está sujeita ao nosso questionamento e que a causa dessa condenação<br />

está escondida nele mesmo. Ele diz nas Institutas III.23.4-7:<br />

Objetam ainda se foram predestinados por disposição de Deus a esta corrupção,<br />

que ora afirmamos ser causa de sua condenação. Porque, se é assim, quando<br />

perecem em sua corrupção, outra coisa não estão pagando senão as penas de<br />

sua miséria, na qual, por sua predestinação, Adão caiu e arrastou com ele<br />

toda sua progênie. Deus, pois, não será injusto, que tão cruelmente escarnece<br />

de suas criaturas? Sem dúvida confesso que foi pela vontade de Deus que todos<br />

36 Ibid. III.23.1.<br />

37 Institutas III.23.1, 2 ou 3.<br />

136


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138<br />

os filhos de Adão nesta miserável condição em que ora se acham enredilhados.<br />

E isto é o que eu dizia inicialmente: por fim, tem-se sempre de volver ao<br />

mero arbítrio da vontade divina, cuja causa está escondida nele mesmo. Mas,<br />

não se segue diretamente que Deus esteja sujeito a esta injúria. Pois em Paulo<br />

encontramos isto: “Quem és tu, ó homem, que discuta com Deus? Porventura<br />

o objeto moldado dirá àquele que o moldou: Por que me moldaste assim? Por<br />

acaso não tem o oleiro poder para fazer de uma só massa um vaso para honra,<br />

e outro para desonra?” [Rm 9.20, 21]. 38<br />

Portanto, o Apóstolo não volveu os olhos com evasivas, como se estivesse embaraçado;<br />

simplesmente mostrou que a justiça de Deus é demasiado profunda e<br />

sublime para poder ser determinada com medidas humanas e ser compreendida<br />

por algo tão tacanho como é o entendimento humano.De fato, o Apóstolo confessa<br />

que os juízos divinos são tão secretos [Rm 11.33], por cuja profundeza<br />

seriam tragadas todas as mentes humanas, se aí tentassem penetrar. 39<br />

CONCLUSÃO<br />

Calvino pode ser lido e interpretado de diferentes maneiras. Normalmente<br />

ele é tido como um supralapsariano quando seus escritos são comparados com<br />

as proposições e ênfases que são apresentadas pelos defensores dessa linha de<br />

pensamento. Poucos veem traços do infralapsarianismo em suas obras, provavelmente<br />

porque, de fato, a ênfase na soberania de Deus e na incapacidade<br />

do homem para conhecê-lo através do seu próprio raciocínio lógico é a que se<br />

ressalta na sua volumosa obra. Também essa ênfase é a que encontramos na<br />

própria Bíblia, pois seu propósito principal é apresentar quem Deus é e revelá-lo<br />

através dos seus atributos e obra.<br />

A coerência com essa ênfase é que leva Calvino a afirmar que “a Palavra<br />

de Deus é uma espécie de sabedoria oculta, a cuja profundidade a frágil mente<br />

humana não pode alcançar. Assim, a luz brilha nas trevas, até que o Espírito<br />

abra os olhos ao cego”. 40<br />

Para que o leitor pudesse ter uma visão mais clara dessa ênfase e da<br />

abordagem que Calvino faz sobre temas que hoje são discutidos na questão<br />

lapsariana, optamos por fazer citações mais longas do que seria recomendável<br />

para um trabalho meramente acadêmico. Assim, o leitor pode ter um quadro<br />

maior do contexto em que Calvino faz suas observações e análises das Escrituras,<br />

sem ficar dependendo apenas da interpretação do autor desse ensaio.<br />

À luz do que foi visto neste trabalho, não é possível classificar Calvino<br />

em qualquer dessas duas linhas de pensamento (infra ou supralapsarianismo),<br />

pois ele tanto defende que a causa da reprovação está na secreta vontade de<br />

Deus (seu beneplácito) como no pecado do homem. Em razão dessa dupla<br />

38 Ibid. III.23.4.<br />

39 Ibid.<br />

40 Exposição de 1 Coríntios, p. 89.<br />

137


JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO<br />

abordagem é que Fred H. Klooster, analisando o seu ensino, conclui que para<br />

Calvino Deus é a “causa última que opera soberanamente, segundo seu bom<br />

prazer”, e a mancha e a culpa do pecado que residem no homem são a “causa<br />

próxima”, “pois o homem peca voluntariamente e é responsável por rejeitar<br />

a bondade de Deus”. 41<br />

Como já foi dito anteriormente, no desenvolver dessa discussão, o compromisso<br />

de Calvino é com as Escrituras, independentemente de ser tido<br />

como contraditório ou não. É a autoridade das Escrituras que tem valor e deve<br />

ser aceita, e não a sabedoria humana, conforme deixa bem claro aquele que é<br />

conhecido como o “príncipe dos exegetas bíblicos”.<br />

ABSTRACT<br />

The purpose of this article is to analyze some of Calvin’s writings on<br />

the sovereignty of God and the responsibility of man in light of the present<br />

discussion of the order to be given to the decrees of election and reprobation<br />

of men in relation to the fall in God’s fulfillment of his purposes. It tries to<br />

ascertain whether it is possible to classify the reformer in any of the two main<br />

lines of thought, generally known as supralapsarianism and infralapsarianism.<br />

The author chooses the negative answer in light of Calvin’s approach to the<br />

biblical texts studied and his assumption that is not given to man the ability<br />

to understand the divine decrees, and how they are performed by his Creator,<br />

through the creature’s finite and limited reasoning.<br />

KEYWORDS<br />

Calvin; Supralapsarianism; Infralapsarianism; Predestination; Reprobation;<br />

Fall.<br />

41 KLOOSTER, Fred H. A doutrina da predestinação em Calvino. Trad. Sabatini Lalli. Santa<br />

Bárbara D̕Oeste, SP: SOCEP, 1992, p. 85.<br />

138


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162<br />

The Reformers and Missions:<br />

Warneck, Latourette, Neill, Kane, Winter,<br />

and Tucker’s Arguments – Part 2<br />

Elias Medeiros *<br />

ABSTRACT<br />

Since the nineteenth and the early twentieth century, mission historians<br />

such as Gustav Warneck and Kenneth Scott Latourette have tended to portray<br />

the Protestant reformers as indifferent to foreign missions or world missions. The<br />

author describes the reasoning of such historians and argues that they and several<br />

of their more recent disciples do not deal adequately with the primary sources.<br />

All too often, many of them simply rely on secondary sources and do not make<br />

the effort to evaluate the original documentation that might provide a different<br />

perspective on the subject. In so doing, they help to perpetuate an unjustified bias<br />

against the reformers and missions. It is imperative to assert the importance the<br />

reformers attributed to the universal spread of the gospel and the reasons they were<br />

not so emphatic about missions as compared to later generations of Protestants.<br />

KEYWORDS<br />

Protestant reformers; Foreign missions; Martin Luther; John Calvin;<br />

Gustav Warneck; Kenneth S. Latourette.<br />

INTRODUCTION<br />

The purpose of the previous article and this article is to investigate the<br />

statements and the reasoning of Warneck, Latourette, Neill, Kane, Winter, and<br />

* Elias dos Santos Medeiros earned his master (M.A., Th.M.) and doctoral (D.Min., D.Miss.,<br />

Ph.D.) degrees from Reformed Theological Seminary, in Jackson, Mississippi. He is a lecturer of<br />

Missions at this seminary and a visiting professor at Andrew Jumper Graduate Center. He authored the<br />

book Evangelization and Pastoral Ministry. The first part of the article was published in <strong>Fides</strong> Reformata<br />

XVIII-1 (2013).<br />

139


ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS<br />

Tucker regarding the reformers and “missions.” This present article continues<br />

the study of the subject in the previous article (Part 1), highlighting Warneck’s<br />

arguments against the apparent “silence” of the reformers, and adding final<br />

comments on the main arguments of the other mission historians and on their<br />

own silence regarding the necessary documentation to support their claims<br />

against the reformers.<br />

1. WARNECK’S ARGUMENTS AGAINST THE SILENCE OF<br />

THE REFORMERS<br />

Most of Warneck’s critiques are directed toward the sixteenth-century<br />

Lutheran theologians, especially Martin Luther. 1 Ten out of sixteen and a half<br />

small print pages on the subject are critiques of Martin Luther (1483-1546) and<br />

Philip Melanchthon (1497-1560). Warneck dedicates one page to Martin Bucer<br />

(1491-1551) and Ulrich Zwingli (1484-1531), one and a half pages to John<br />

Calvin (1509-1564), one and a half pages to Adrianus Saravia (ca. 1532-1613),<br />

and a half page to Theodore Beza (1519-1605).<br />

Throughout his chapter dealing with the Reformation, Warneck supports<br />

several verdicts. He clearly states that the reformers in general, with the exception<br />

of Adrianus Saravia, were devoid of any “missionary action,” lacked<br />

“missionary zeal,” were strangely silent on “the recognition of the missionary<br />

obligation,” darkened “the permanent missionary task of the church,” did not<br />

speak of “foreign mission work,” had “no proper missionary ideas” due to their<br />

eschatological position and their concept of history, understood “the missionary<br />

commandment [of Matthew 28:20]” as being “valid only for the Apostles,”<br />

knew nothing about “the duty of instituting missions,” did not recognize “such<br />

a duty,” and assumed that “a special institution for the extension of Christianity<br />

among non-Christian nations, i.e. for missions, is needless.” 2<br />

Warneck’s arguments can be classified under biblical, theological, and historical<br />

categories. In the biblical category is the interpretation and the implications<br />

of the so-called missionary texts, Matthew 28:18-20; Mark 16:15; Luke 24:46-48;<br />

John 20:21; Acts 1:8; 12:21; 26:16-18 (including the views on the apostolate).<br />

The theological category includes the doctrines of predestination, eschatology,<br />

and the sovereignty of God: “The kingdom of Christ is neither to be advanced<br />

1 Numerous Lutheran scholars have already addressed the issue of Martin Luther and missions.<br />

See, for instance, Klaus Detlve Schulz, “Lutheran Missiology of the 16 th and 17 th Centuries,” in Lutheran<br />

Synod Quarterly 43:1 (March 2003), 4-53; Ingemar Öberg, Luther and World Mission: A Historical and<br />

Systematic Study with Special Reference to Luther’s Bible Exposition, translated by Dean Apel (Saint<br />

Louis: Concordia Publishing House, 2007); James A. Scherer, “Luther and Mission: A Rich but Untested<br />

Potential,” in Missio Apostolica: Journal of the Lutheran Society of Missiology 2 (May 1997): 17-24,<br />

reprinted in Luther Digest: An Annual Abridgement of Luther Studies 5 (1997): 62-68; Rhonda J. Hoehn,<br />

“Martin Luther and Mission....”<br />

2 Gustav Warneck, Outline of a History of Protestant Missions from the Reformation to the Present<br />

Time. 3 rd ed. New York: Fleming H. Revell, 1906, 8-23.<br />

140


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162<br />

nor maintained by the industry of men, but this is the work of God alone.” 3 Under<br />

the historical instances Warneck includes the attempt of “the planting of a French<br />

colony in Brazil” in 1555. He does not, however, consider this undertaking to<br />

be a church initiative, explaining it instead as part of “the ecclesiastical duty of<br />

the civil authority; in particular, of the colonial civil authority.” 4<br />

Warneck concluded that the reformers were silent concerning the work of<br />

missions (the sending of “missionaries” to non-Christians) and that the primary<br />

causes were their theological beliefs and their interpretation of the “missionary”<br />

texts. Under the biblical arguments, Warneck asserts that the reformers, with<br />

the exception of Adrianus Saravia, 5 held the following views regarding the<br />

“Great Commission” texts: they always thought of “ in the sense of<br />

the Christian nations who have sprung from the heathen;” 6 even when they<br />

(especially Luther) maintained the emphasis on “the universality of Christianity”,<br />

it is “never set in connection with a summons to send messengers of the<br />

Gospel where its message has not yet come;” 7 such “world-wide preaching of<br />

the Gospel... is regarded by him [Luther] as accomplished;” 8 and “the missionary<br />

commandment [was] valid only for the Apostles.” 9<br />

3 Ibid., 20. The doctrines of predestination and the sovereignty of God were one of the key<br />

doctrinal issues behind Warneck’s arguments against the reformers and their “silent” regarding “the<br />

Christianization of the world,” as Warneck defines it.<br />

4 Ibid., 23. Unfortunately Warneck does not use a primary source that reports the “missionary”<br />

journey of Reformed ministers sent from Geneva. He instead uses William Brown’s The History of the<br />

Christian Missions of the Sixteenth, Seventeenth, Eighteenth, and Nineteenth Centuries, 3 Volumes (London:<br />

Ober Against Charterhouse, 1864). His quotation from page 7 of Brown’s first volume appears to<br />

be a mistake, since that page does not deal with the mission enterprise in Brazil. The first chapter, pages<br />

1-6, of Brown’s work discourses on the “Propagation of Christianity by the Swiss: Brazil.” Warneck’s<br />

statement that “four clergymen ... actually made the journey” (Warneck, Outline of a History, 23) is<br />

also a mistake based on an apparent superficial reading of Brown on Jean de Léry’s document. This<br />

shows that Warneck’s critique of the “French colony in Brazil,” besides being very superficial, does not<br />

represent the reality of that “missionary” endeavor.<br />

5 Warneck comments on Adrianus Saravia’s treatise of 1590, De diversis ministrorum evangelii<br />

gradibus, sic ut a Domino fuerunt instituti [Concerning the different orders of the ministry of the Gospel,<br />

as they were instituted by the Lord], by saying that “it is not indeed a directly missionary treatise, but it<br />

deals with missions in a special chapter, in which he adduces proof that the Apostles themselves could<br />

only have carried out the missionary command in a very limited measure, and therefore this command<br />

applied not merely to them personally, but to the whole Church in all subsequent times” (Warneck,<br />

Outline of a History, 20). Warneck recognizes that Saravia was defending “the episcopal constitution<br />

over against the Calvinistic” and that Saravia speaks of “missions” when he argues for the planting of<br />

new churches beyond “the maintenance and strengthening of existing” ones (Warneck, Outline of a<br />

History, 21).<br />

6 Warneck, Outline of a History, 12.<br />

7 Ibid., 12.<br />

8 Ibid., 14.<br />

9 Ibid., 17.<br />

141


ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS<br />

It seems that no comment of Luther would convince Warneck of the<br />

reformer’s vision for preaching the gospel to all nations. Warneck always finds<br />

a way to dismiss his “mission” ideas. An example is his quoting the following<br />

from one of Luther’s Ascension sermons:<br />

“Go into all the world” raises a question ... as to how it is to be understood and<br />

held fast, since verily the Apostles have not come into all the world, for no<br />

Apostle has come to us, and also many islands have been discovered in our day<br />

where the people are heathen and no one has preached to them: yet the scripture<br />

saith their voice has sounded forth into all lands. Answer; their preaching has<br />

gone out into all the world, though it has not yet come into all the world. That<br />

outgoing has been begun and gone on, though it has not yet been fulfilled and<br />

accomplished; but there will be further and wider preaching until the last day.<br />

When the Gospel has been preached, heard, published through the whole world,<br />

then the commission shall have been fulfilled, and then the last day shall come. 10<br />

Warneck even declares that “these and similar sayings... are repeatedly<br />

found” throughout Luther’s writings. After quoting Luther, however, and<br />

making such statements regarding his writings, Warneck immediately dismisses<br />

the Reformer’s commitment to the preaching of the gospel to the nations<br />

by claiming “here again there is no reference to any systematic enterprise.” 11<br />

Another clear example of his preconceived attitude toward the reformers<br />

is observed in Warneck’s comments on Zwingli’s position. Warneck quotes<br />

the reformer: “[There are apostles still, and] their office is ever to go among the<br />

unbelieving, and to turn them to the faith, while the bishop remains stationary<br />

by those committed to his care.” 12 He also highlights Zwingli’s express assertion<br />

that the New Testament apostles “did not go everywhere; and he [Zwingli]<br />

infers from this that the work of world-missions which was begun by them<br />

must be continued.” 13 Saying that Zwingli “does not draw the conclusions”<br />

(perhaps, to send missionaries?), the German missiologist then offers the<br />

following theoretical conclusion:<br />

At best his view can be thus explained: if in the present time messengers are<br />

willing to go at their own risk beyond the bounds of Christendom, they ought to<br />

be certain that they have the call of God to their mission, but in what he says there<br />

is not a word as to the duty on the part of the church to send out missionaries. 14<br />

Warneck falls prey to one of his own criticisms toward scholars who<br />

defend the missionary ideas of the reformers. He earlier dismisses scholars<br />

10 Ibid., 14<br />

11 Ibid., 14.<br />

12 Ibid., 19.<br />

13 Ibid., 19.<br />

14 Ibid., 19.<br />

142


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162<br />

who try “by isolated quotations, principally from the writings of Luther ... to<br />

disprove” the theory that the reformers were not interested in missions. Warneck<br />

continues his reasoning by saying,<br />

On closer examination these quotations do not bear out what they are meant<br />

to prove; and less and less has the fact come to be called in question that the<br />

insight into the permanent missionary task of the church was really darkened<br />

in the case of the Reformers. 15<br />

Does not Warneck do that as well? Does not he use some isolated quotations<br />

without serious exegetical consideration of the contexts and doctrinal presuppositions,<br />

to make startling claims against the reformers? The same occurs when<br />

he considers the case of the Huguenots in Brazil, failing to explore the original<br />

work of Jean de Léry and others, but merely assuming the report and conclusions<br />

of the nineteenth century mission historian and pastor William Brown.<br />

One of Warneck’s main criticisms of Calvin is for the reformer’s view<br />

that the apostolate is a munus extraordinarium (extraordinary office) “which<br />

as such has not been perpetuated in the Christian church” 16 and that “the Kingdom<br />

of Christ is neither to be advanced nor maintained by the industry of men,<br />

but this is the work of God alone.” 17 Warneck then turns back to the argument<br />

of silence, contending that such silence is one factor that led the reformers<br />

to view any “special institution for the extension of Christianity among non-<br />

-Christians” as “needless.” 18<br />

Warneck, however, does not take into account the controversies of Calvin’s<br />

time. Part of George Robson’s editorial comments on Warneck’s criticism of<br />

Calvin reveals some nuances within the context of the reformer. Robson writes:<br />

The sound exegesis, historic insight, largeness of view, and fine regard to the<br />

general scope of the passage, which distinguished Calvin as a commentator,<br />

have not failed him in his exposition of these words of the Risen Lord; but they<br />

are polarised by the controversies of his time. And so the words of our Lord are<br />

shown to be in clear and broad antagonism to certain Romish and Anabaptist<br />

teachings. 19<br />

A careful reading of Calvin’s comments on Matthew 28:16-20; Mark<br />

16:15-20; and Luke 24:50-53 would have given the German missiologist a<br />

more precise picture of the biblically grounded “missionary” enthusiasm of the<br />

reformer of Geneva. Calvin’s statements on Matthew 28:20 offer an example.<br />

15 Ibid., 9.<br />

16 Warneck, Outline of a History, 19.<br />

17 Ibid., 20.<br />

18 Ibid., 20.<br />

19 Robson’s editorial comment in a footnote. Warneck, Outline of a History, 20.<br />

143


ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS<br />

“Teach all nations.” Here Christ, by removing the distinction, makes the Gentiles<br />

equal to the Jews, and admits both, indiscriminately to a participation in the<br />

covenant. Such is also the import of the term: go “out;” for the prophets under<br />

the law had limits assigned to them, but now, “the wall of partition having been<br />

broken down” (Ephesians 2:14), the Lord commands the ministers of the gospel<br />

to go to a distance, in order to spread the doctrine of salvation in every part of<br />

the world. For though, as we have lately suggested, the right of the first-born<br />

at the very commencement of the gospel, remained among the Jews, still the<br />

inheritance of life was common to the Gentiles. Thus was fulfilled that prediction<br />

of Isaiah (49:6) and others of a similar nature, that Christ. was “given for a light of<br />

the Gentiles, that he might be the salvation of God to the end of the earth.” 20<br />

Consider also Calvin’s application based on the same passage:<br />

“Even to the end of the world.” It ought likewise to be remarked, that this was<br />

not spoken to the apostles alone; for the Lord promises his assistance not for a<br />

single age only, but “even to the end of the world.” It is as if he had said, that<br />

though the ministers of the gospel be weak and suffer the want of all things: he<br />

will be their guardian, so that they will rise victorious over all the opposition<br />

of the world. In like manner, experience clearly shows in the present day, that<br />

the operations of Christ are carried on wonderfully in a secret manner, so that the<br />

gospel surmounts innumerable obstacles. 21<br />

Even though the reformers were not explicit in the application of Matthew<br />

28:18-20 due to their anti-Catholic and anti-Anabaptist postures, it would not<br />

necessarily and logically follow that they were silent or anti-mission at all. A<br />

person’s opposition to the creation or establishment of missionary organizations<br />

or mission agencies for the recruiting, supporting, and sending of “missionaries,”<br />

does not imply that he or she opposes the preaching of the gospel to all<br />

nations nor the planting of churches among all peoples. It may simply mean<br />

that the person believes the church is the only means instituted by God for that<br />

endeavor and that ordained ministers of the gospel are the ones to preach the<br />

gospel everywhere according to God’s sovereign choosing and leading. After<br />

all, that was the case in the church of Antioch of Syria:<br />

Now in the church that was at Antioch there were certain prophets and teachers:<br />

Barnabas, Simeon who was called Niger, Lucius of Cyrene, Manaen who had<br />

been brought up with Herod the tetrarch, and Saul. As they ministered to the<br />

Lord and fasted, the Holy Spirit said, “Now separate to Me Barnabas and Saul<br />

for the work to which I have called them.” <strong>22</strong><br />

20 Calvin on Matthew 28:20. Italics added.<br />

21 Ibid. Italics added.<br />

<strong>22</strong> Acts 13:1-2. Italics added.<br />

144


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162<br />

Very closely related to the “apostolate” subject is the case of Adrianus<br />

Saravia, which has been used out of proportion as an argument against the<br />

reformers in general. George Robson, the editor of Warneck’s history, made a<br />

relevant observation regarding this matter.<br />

What ought to be noticed is that neither Erasmus nor Saravia, to whom Dr. Warneck<br />

afterwards refers, saw the missionary duty of the church in such a light as<br />

to make it matter of a special treatise or of a distinct call to action. Their views<br />

on missions were expressed incidentally, by the one in a treatise dealing with<br />

homiletics, by the other in a treatise dealing with Church polity. 23<br />

Most of those critiques referred not to the reformers’ interpretation of the<br />

biblical passages, but the application of such passages to “missions.” But to<br />

conclude that someone does not apply a passage in a particular way does not<br />

mean that the scholar is purposely opposing other applications of the passage.<br />

When Calvin, for instance, deals with the so-called Great Commission texts,<br />

his concerns have to do with the controversies of his time and “so the words of<br />

our Lord are shown to be in clear and broad antagonism to certain Romish and<br />

Anabaptist teachings.” 24 This does not mean that Calvin was purposely silent<br />

and opposed to the evangelization of the world. Without exegeting Calvin more<br />

carefully in his context, Warneck simply concluded that his apparent silence<br />

meant opposition to the spread of the gospel to the whole world. Unfortunately,<br />

Warneck did not explore all of Calvin’s theology of the sovereignty of God, nor<br />

any other numerous texts in which he explicitly teaches about the preaching<br />

of the gospel to the whole world.<br />

A superficial look at John Knox and his ministry in Scotland during the<br />

sixteenth century may suggest that Knox did not care for the spreading of<br />

the gospel in other lands. Besides his declaration to Queen Mary against the<br />

Roman Catholic Church, the other most quoted and publicized words of John<br />

Knox are “Give me Scotland or I die.” What is overlooked is that Knox and his<br />

colleagues were very concerned with the evangelization of the world, in spite<br />

23 See footnote 1, page 9, of Warneck’s Outline of a History. Adrianus Saravia was not criticizing<br />

the reformers. The title of Chapter XVII of Saravia’s book is this: “The command to preach the gospel<br />

to all nations is still binding on the church, although the apostles are removed to heaven: and apostolic<br />

authority is necessary thereto” (1840, 161). When carefully read, we immediately realize that he follows<br />

the same exegetical principle of John Calvin when dealing with Matthew 28:20. Saravia writes: “The<br />

command to preach the Gospel and the mission to all nations were so given to the Apostles, that they<br />

must be understood to be binding on the Church also. The injunction to preach the Gospel to all nations<br />

of unbelievers had respect not only to the age of the Apostles, but to all ages to come till the end of<br />

the world” (161). Saravia’s 276-page tract appeared in 1590 and was first printed in England in 1591.<br />

On July 9, 1590, Saravia was “incorporated at Oxford being before D.D. of the University of Leyden”<br />

(Preface of the translator, v). This treatise was about ecclesiastical polity or church government. Saravia<br />

was not criticizing the reformers regarding the subject of missions.<br />

24 See George Robson, footnote 1, page 20, in Warneck’s Outline of a History.<br />

145


ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS<br />

of the conditions of the Reformation in Scotland and the “practically excluded<br />

opportunity or room for the consideration of the duty of the church to the<br />

heathen world.” 25 The Scottish Confession of 1560 ends with this prayer: “Arise<br />

(O Lord) and let thy enemies be confounded; let them flee from thy presence<br />

that hate thy godlie Name. Give thy servands strenth to speake thy word in<br />

bauldnesse, and let all Natiouns cleave to thy trew knawlege. Amen.” 26<br />

Under the theological arguments, Warneck asserts that the reformers’<br />

doctrines of predestination (sovereign grace) and eschatology “paralyze every<br />

thought of missionary work among them [the heathen and the Jews].” 27 Warneck<br />

goes on to quote the reformers and make inferences without considering the<br />

context in which they were addressing such affirmations. He claims that<br />

the doctrine of election led the reformers to the following conclusions: “God<br />

Himself cares for the extension of the Gospel through the world;” 28 “a human<br />

missionary agency does not lie in the plan of His decree;” 29 “a regular missionary<br />

institution lay entirely outwith the circle of [their] ideas;” 30 “special<br />

missionary institutions on the part of the church after the times of the Apostles<br />

are therefore not necessary;” 31 and, “Christians are required to do nothing else<br />

than what they have done hitherto; let every one occupy his station for the<br />

Gospel, and the Kingdom of Christ will grow.” 32<br />

Warneck was simply assuming and implying that the reformers were not<br />

active in the preaching of the Gospel. On the contrary, the reformers understood<br />

that they were servants of a sovereign God and that this sovereign God<br />

would be using them for the spreading of the gospel in their place and in due<br />

time throughout the world. Such attitude, however, did not stop Calvin, for<br />

instance, from training preachers and sending them throughout Europe and<br />

even South America. 33<br />

25 See George Robson, footnote 1, page 20, in Warneck’s Outline of a History.<br />

26 In Philip Schaff, The Creeds of Christendom, Volume 3 (Grand Rapids: Baker Books, 1996),<br />

479. The English words are quoted according to the Old Scottish English format.<br />

27 Warneck, Outline of a History, 15.<br />

28 Ibid., 18. Warneck implies that the reformers assumed that since, it is God responsibility, we<br />

should stay out of His way and let Him do His Work without our participation.<br />

29 Ibid., 16.<br />

30 Ibid.<br />

31 Ibid., 18.<br />

32 Ibid., 19. Warneck does not offer any explanation on the context of Martin Bucer’s statement.<br />

Bucer is not teaching that Christians should be passive, but that they should be found faithful in the place<br />

where the Lord had put them. Of course the reformers, due to their biblical ecclesiology, understood that<br />

the work of the preaching the gospel to all nations was given to the church “through special Apostles<br />

[preachers]” not to an institution such as the Roman Catholic orders. Unfortunately, Warneck does not<br />

explain the theological and biblical background on which the reformers grounded the preaching of the<br />

gospel. And once again he appeals to the “argument of silence” by criticizing Bucer for knowing nothing<br />

“of the duty of instituting missions” (Warneck, Outline of a History, 18).<br />

33 See chapter 5 of my Ph.D. dissertation.<br />

146


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162<br />

The reformers’ understanding of eschatology and its implications for the<br />

preaching of the gospel worldwide was correct. Since the time of the apostles<br />

the work of expansion of the true Christian faith had been related to the work<br />

of the Holy Spirit. The reformers did not idly wait for a might work of the Spirit<br />

but actively engaged in preaching and spreading the true gospel throughout<br />

Europe and, when the doors were opened, beyond Europe.<br />

Warneck and Latourette clearly believe that the work ought first to be<br />

doctrinally established before attempting work among the heathen. Their definition<br />

of heathen, however, does not correspond to the biblical definition and<br />

description of such groups. Besides, Warneck (and Latourette) later report in<br />

their works that the rapid spread of the gospel among all the nations did not<br />

take place until the first Evangelical Awakening, which took place among those<br />

of Calvinist tradition. Unfortunately neither historian went back to correct his<br />

critique of the sixteenth-century reformers. At the end, the reformers were<br />

correct in their interpretation of the Scriptures, and in their perseverant waiting<br />

for the day when doors would be opened wide for the preaching of the gospel.<br />

Consider the following findings issued by both Warneck and Latourette.<br />

Warneck wrote that “there must first come a religious revival to make<br />

the dead bones live, and this revival came – one of the greatest and most<br />

permanent known in Christian church history.” 34 This awakening took place<br />

during the eighteenth century, and especially through Calvinist preachers like<br />

George Whitefield and Jonathan Edwards. When writing on “the present age<br />

of missions,” Warneck understood that “the new spiritual revival quickened<br />

evangelical Christendom to the understanding of the missionary signal, which<br />

God gave in a series of historic events by which He opened the doors of the<br />

world.” 35 Warneck missed the reformers’ eschatological prediction. The reformers<br />

understood that such revival would come and that until then they would<br />

continue to preach the gospel wherever they were and whenever doors were<br />

opened. Revival would not quicken the “understanding of the missionary<br />

signal,” but would boost the evangelization of the world – a desire already<br />

expressed and taught by the reformers.<br />

The reformers rightly taught that God is the One who works through<br />

his servants, but in His time. He rules over every event. Warneck says, “Independently<br />

of the religious revival, events happened which drew attention<br />

to the non-Christian world,” but he overlooks the fact that at the time of the<br />

Reformation the reformers were already alerted toward such events as well.<br />

Warneck continues his thesis by declaring that “Through the conjunction<br />

of these events with the spiritual awakening, which was a clear evidence of<br />

the Divine leading, the Holy Ghost recalled the almost forgotten missionary<br />

34 Warneck, Outline of a History, 70.<br />

35 Ibid., 74.<br />

147


ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS<br />

commandment, and, by thus giving to the newly awakened life of faith a missionary<br />

direction, brought about the present age of missions.” 36 That was precisely<br />

what the reformers were praying and waiting for. Such commandments had<br />

never been forgotten by the reformers, especially John Calvin and the Puritans<br />

in general. This subject has been extensively dealt with by scholars such as De<br />

Jong, Rooy, and Murray. 37<br />

Latourette comes to the same conclusion, but there is a nuance in his report<br />

that distinguishes it from the underlined critiques of Warneck. Latourette understands<br />

that the Great Century of Mission was preceded by a constant attempt<br />

of the Protestants to evangelize the world. He does not say, as Warneck does,<br />

that only now the “missionary commandment” was taken seriously by the Protestants.<br />

He instead uses terms like “more vigorous” or “increased” to describe<br />

the development of the expansion of the Protestants. He, therefore, assumes that<br />

such initiatives had been present since the beginning, even at the time of the Reformation.<br />

Latourette had always been very condescending toward the reformers<br />

and their involvement and commitment to the spread of the gospel worldwide<br />

during the Reformation. 3389 Latourette believes that, with the eighteenth century<br />

Protestant revival (awakening), “interest of Protestants in extending their faith to<br />

non-Christian peoples increased with each century and did not, like that of the<br />

Roman Catholics, have a brilliant rise followed by a discouraging and prolonged<br />

decline.” 39 Latourette seems to assume that the desire and attempts to evangelize<br />

the world were already present during the Reformation.<br />

Latourette also states that “as the eighteenth century wore on religious<br />

awakenings brought new life to British Protestantism, both in the British Isles<br />

and in North America.” 40 He becomes more explicit, however, regarding the<br />

role and the place of the awakenings in world evangelization when he concludes<br />

in his fourth volume that “the new Protestant missionary movement was<br />

largely the outgrowth of the awakenings of the seventeenth and especially of<br />

the eighteenth century and was to be reinforced by the many revivals of the<br />

nineteenth century.” Also significant is his statement that “it was chiefly an<br />

36 Ibid.<br />

37 See James A. De Jong’s doctoral dissertation, As the Waters Cover the Sea: Millennial Expectations<br />

in the Rise of Anglo-American Missions 1640-1810 (Laurel: Audubon Press, 2006), original<br />

publication by J. H. Kok N. V. Kampen, Netherlands, 1970; Sidney H. Rooy’s doctoral dissertation,<br />

The Theology of Missions in the Puritan Tradition: A Study of Representative Puritans: Richard Sibbes,<br />

Richard Baxter, John Eliot, Cotton Mather & Jonathan Edwards (Laurel: Audubon Press, 2006), original<br />

publication by Eerdmans, 1965; and Ian H. Murray, The Puritan Hope: Revival and the Interpretation<br />

of Prophecy (Edinburgh: The Banner of Truth, 1991), first published in 1971.<br />

38 See chapter 5 of my Ph.D. dissertation.<br />

39 Kenneth Latourette, A History of the Expansion of Christianity: Three Centuries of Advance<br />

A.D. 1500-1800, Vol. 3 (New York and London: Harper & Brothers Publishers, 1939), 50. Bold added.<br />

40 Ibid., Vol. 3, 49.<br />

148


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162<br />

expression of the strain within Protestantism which is sometimes known as<br />

Evangelicalism.” 41 Personal and communal revivals are the work of God. As<br />

the Psalmist prayed: Will You not revive us again, that Your people may rejoice<br />

in You?” 42 Or as Habakkuk the prophet prayed: “O Lord, I have heard your<br />

speech and was afraid; O Lord, revive Your work in the midst of the years!<br />

In the midst of the years make it known; In wrath remember mercy (3:2).”<br />

In the category of historical arguments, Warneck uses only one case study:<br />

the French attempt to establish a colony in South Brazil in 1555. A priori,<br />

Warneck cautions his readers “against magnifying [this undertaking] into a<br />

great missionary effort on the part of the Reformed church” 43 and he stresses<br />

Durand de Villegagnon’s initiative, personal interest, and treason, rather than the<br />

work of the Reformed group from Geneva sent by Calvin and by the Genevan<br />

“Venerable Company of Pastors.” It appears that Warneck did not carefully<br />

consult any primary historical information regarding this South American case.<br />

Warneck comments more on Villegagnon than on the Calvinist group from<br />

Geneva and their work while on the Brazilian coast. Villegagnon turned against<br />

the Reformed group from Geneva and went back to the teachings and practices<br />

of the Catholic Church. He persecuted and even murdered some of those Genevan<br />

believers, and was finally forced to leave Brazil by the Portuguese who had<br />

occupied the region since 1500. Without looking into the primary sources, 44 and<br />

without reading and exegeting them carefully, Warneck simply concludes that<br />

despite the hope raised by one of the Genevan pastors “that ‘these Edomites<br />

[referring to the natives in Brazil] might still become Christ’s possession’[ 45 ]<br />

if new settlers [more Huguenots] should come, the enterprise [of 1556-1558]<br />

certainly never got the length of an earnest missionary endeavour.” 46 This<br />

41 Kenneth Latourette, A History of the Expansion of Christianity: The Great Century A.D. 1800-A.D.<br />

1914: Europe and the United States of America, Volume 4 (New York and London: Harper & Brothers<br />

Publishers, 1941), 65.<br />

42 Psalm 85:6. See also Psalm 71:20; 80:18; 119:25, 37, 40, 88, 107, 149, 154, 156, 159; 138:7;<br />

143:11.<br />

43 Warneck, Outline of a History, 23.<br />

44 Primary sources include Calvin’s correspondence, Calvin’s commentaries, Jean de Léry’s ethnographic<br />

report to the Genevan’s Reformed group to Brazil, Jean de Léry’s account of the deaths of three<br />

of his Huguenot’s friends under Villegaignon, the register of the Company of Pastors of Geneva in the<br />

time of Calvin, just to mention some. Warneck could not access the sources which are now available and<br />

relatively easy to obtain through inter-library loans, online resources, and microfilms. Numerous other<br />

research in English, German, French, Portuguese, Dutch, and Spanish has been done and published on<br />

this topic in the past hundred years (since Warneck’s death). Most are available in libraries and bookstores<br />

throughout the world.<br />

45 Statement attributed to Richier according to William Brown and quoted by Warneck (Outline<br />

of a History, 23).<br />

46 Warneck, Outline of a History, 23.<br />

149


ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS<br />

was the final evaluation and judgement of Warneck regarding the Calvinist<br />

undertaking to reach the non-Christians in South America.<br />

Warneck then comes to his final comments and explanation for the lack<br />

of any “real missionary activity” after the Reformation, especially in Germany.<br />

47 “The reason of this,” states Warneck, “did not lie only in the fact that<br />

the world beyond the sea had never as yet come within the purview of German<br />

Protestantism,” nor in the fact “that the political conditions, chiefly the<br />

unhappy Thirty Years’ War, did not allow missionary enterprise to be thought<br />

of.” 48 The main reason for such silence towards any “real missionary activity”<br />

among the reformers and especially after the Reformation, according to Warneck<br />

was this: “The reason still lay in the theology which either did not permit<br />

missionary ideas to arise at all, or, if these began to find desultory expression,<br />

most keenly combated them.” 49 In other words, after everything is said and<br />

done, Warneck’s main bias toward the reformers comes to one single point:<br />

he disliked and misrepresented their theology, especially the doctrine of the<br />

sovereignty of God and election.<br />

I discussed Warneck’s doctrinal argument in Chapter 5 of my Ph.D. dissertation.<br />

It is sufficient to keep in mind that the doctrines of the sovereignty of<br />

God and predestination are the ultimate theological card sustained by Warneck.<br />

The other has to do with his historical reasoning in order to dismiss the Genevan<br />

and Dutch missions to South America where Reformed pastors and other members<br />

of the Reformed community were sent to plant churches and to establish<br />

Protestant colonies in the New World. Let us now turn to how Latourette, Neill,<br />

Kane, Winter, and Tucker have ostensibly assumed and appropriated Warneck’s<br />

arguments and propagated them through their works.<br />

2. LATOURETTE, NEILL, KANE, WINTER, AND TUCKER:<br />

WARNECK’S FOLLOWERS<br />

The purpose of this section is to highlight two things. The first is the fact<br />

that Warneck was, as Bosch and others have already stated, “one of the first<br />

Protestant scholars who promoted” the view that the reformers were silent regarding<br />

even the “idea of missions.” 50 The second is to evaluate how directly<br />

or indirectly Latourette, Neill, Kane, Winter, and Tucker follow the theses of<br />

the contemporary “father of missiology,” which have been discussed.<br />

47 Ibid. Warneck had already generalized this final thesis in Chapter I of his book when he dealt<br />

with selective writings of both Lutheran and Calvinist theologians.<br />

48 Ibid., 25.<br />

49 Warneck does not see any other explanation but that “it was still essentially the views of the<br />

Reformers which determined the attitude of orthodoxy to missions, only these views assumed a much<br />

more systematic and polemical cast” (Ibid., 25).<br />

50 David J. Bosch, Transforming Mission, 244. For more information regarding the literature on<br />

this thesis, see Chapter 2.<br />

150


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162<br />

2.1 Kenneth Latourette, the contemporary broadcaster –<br />

the main arguments<br />

Warneck never ministered outside Germany, although his influence went<br />

beyond his geographical borders. Latourette, on the other hand, had a very limited<br />

cross-cultural experience, spending less than two years (July 1910-March<br />

1, 1912) in China, teaching American History through the Yale-China program.<br />

He returned to the United States on March 1, 1912 due to ill health and the<br />

oncoming Chinese revolution. 51 Latourette’s identifiable causes can be traced<br />

back to Warneck’s main arguments. Let us consider such arguments in light<br />

of the reformers’ perspectives, logical reasoning, and historical evidence. Latourette<br />

summarizes his arguments under six main subheadings. 52<br />

First, due to “the initial stages of the movement [theology, controversies,<br />

organization] its members had little leisure for concern for non-Christians outside<br />

of Western Europe.” Latourette’s apparent caustic remark – “little leisure” – implies<br />

that “missions” (the preaching of the gospel beyond the borders of Western<br />

Europe) was not in the reformers’ radar. Second, “several of the early leaders<br />

disavowed any obligation to carry the Christian message to non-Christians.”<br />

Who were those “early leaders” to whom Latourette refers? What did they<br />

really say and write that explicitly “disavowed any obligation” to reach out to<br />

the non-Christian world? What does Latourette mean by “non-Christians” and<br />

what historical data (evidence) does he use to support his claim that the early<br />

leaders of the Reformation “disavowed any obligation?” These are questions<br />

that Warneck tries to answer, but on which Latourette is simply silent.<br />

Third, “preoccupation with the wars which arose out of the separation of<br />

the Protestants from the Roman Catholic Church,” and who were so preoccupied<br />

with those wars that they dismissed any initiatives to preach the gospel<br />

beyond Western Europe. Was Western Europe really Christian? What kind of<br />

people groups were present in that part of the world at that time? Fourth, “the<br />

comparative indifference of Protestant governments to spreading the Christian<br />

message among non-Christians.” The argument here favors the Roman Catholic<br />

governments and assumes that Catholic monarchs were “mission-minded”<br />

Christian leaders. Were the Roman Catholic governments really concerned with<br />

spreading the true gospel of the Lord Jesus Christ among the non-Christians?<br />

Fifth, “Protestants lacked the monks who for more than a thousand<br />

years had been the chief agents for propagating the faith.” This seems to be a<br />

51 Latourette was commissioned at the annual meeting of Yale-in-China at the “Yale Commencement”<br />

in 1910. He calls those years in China, “The Missionary Years” in his autobiographical work<br />

Beyond the Ranges: An Autobiography (Grand Rapids: Eerdmans, 1967), pages 37-46. He hoped to<br />

return to China “In March, I left for the United States, hoping that a long summer in my old home in<br />

Oregon would bring complete restoration. So confident was I of resuming my work in Changsha that I<br />

purchased a round-trip ticket on a Yangtze steamer” (page 45). He was never able to return to Changsha.<br />

52 Ibid., 25-27.<br />

151


ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS<br />

fallacious theory intended to please Roman Catholics. First, it is mentioned<br />

by Warneck. Now, it is broadcast by Latourette. It assumes that the monks<br />

were really spreading the biblical faith and that the Protestants should have<br />

established Protestant orders. Calvin was not opposed to the Roman Catholic<br />

orders just because he was anti-everything that was Catholic. It was due to his<br />

ecclesiology. 53 The reformers believed that it was the role and the responsibility<br />

of the church through its leadership, especially its ordained ministers, to train,<br />

support, and send those preachers with the ecclesiastical authority to preach<br />

the gospel. Calvin was ecclesiocentric, not para-church oriented. 54 Para-church<br />

organizations have become the clutches of the local body of believers. Most<br />

local churches and denominations are not willing or are limited in their ability<br />

to take over the responsibility of reaching out to the world with the gospel.<br />

Every mission agency and mission organization should be accountable theologically,<br />

strategically, and financially to the local body of believers. After all<br />

they recruit their workers and support from the local churches.<br />

Sixth, “the chief reason why in general Protestants were not active in<br />

propagating the faith among non-Christians was that until the seventeenth<br />

and eighteenth centuries they had relatively little touch with non-Christian<br />

peoples.” The question is: was such “little touch” due to their indifference<br />

and unwillingness to reach out to the Moslems and to pagans? Was not John<br />

Calvin interested in reaching out to the pagan Roman Catholics as well as the<br />

natives in the Americas?<br />

2.2 Stephen Neill: main arguments<br />

The late Stephen Neill (1900-1984) is the historian who does not borrow<br />

his position from Gustav Warneck (1834-1910), as most of the other Protestant<br />

historians do. His arguments are deduced from oversimplified and generalized<br />

observations: “In the Protestant world, during the period of the Reformation<br />

there was little time for thought of missions. Protestants everywhere wasted<br />

their strength, with honourable but blind and reckless zeal in endless divisions<br />

and controversies.” 55 It is understandable that Neill would look at doctrinal<br />

controversies in such light terms. His inclusivist ecumenical concerns as an<br />

active historian of the World Council of Churches would lead him to foster such<br />

53 Calvin’s “ecclesiocentric” concerns will be considered in chapter 5. At least two dissertations<br />

on this subject are already available. See Carl David Stevens, Calvin’s Corporate Idea of Mission. Ph.D.<br />

diss., Westminster Theological Seminary, 1992; and Peter Jonathan Wilcox, “Restoration, Reformation<br />

and the Progress of the Kingdom of Christ: Evangelisation in the Thought and Practice of John Calvin,<br />

1555-1564” Ph.D. diss., University of Oxford, 1993.<br />

54 See Peter Jonathan Wilcox, “Restoration, Reformation and the Progress of the Kingdom of<br />

Christ....”<br />

55 Stephen Neill, A History of Christian Missions. Revised for the Second Edition by Owen<br />

Chadwick (London: Penguin Books, 1990), 187-188.<br />

152


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162<br />

reactions against doctrinal matters. As the ecumenical slogan goes, “doctrine<br />

divides but work unites.” 56<br />

But Neill went beyond those comments. Believing that there were other<br />

reasons for such indifference to “missions” during the Reformation, he said,<br />

“In the sixteen century the Protestant powers were not in touch with the wider<br />

world outside Europe.” 57 Also, “the geographical limitations were strongly<br />

reinforced by the psychological limitations of the concept of the regional<br />

Church, the Landeskirche [ 58 ]. Cuius regio, eius religio[ 59 ] – in each area the<br />

ruler is responsible for the spiritual welfare of his people. He has no responsibility<br />

for anything outside.” 60 In other words, the reformers enclosed themselves<br />

in their own limited cities, states, or countries and understood their mission to<br />

be inside their assigned areas.<br />

Neill uses a critic of the sixteenth century, “Roman Catholic controversialist<br />

Robert Bellarmine,” as a source against the Protestants. Paraphrasing<br />

Bellarmine, Neill states that the reformers “had no comparable missionary<br />

activity.” “In Poland and Hungary [the Lutherans] have the Turks as their near<br />

neighbours, [but] they have hardly converted even so much as a handful.” 61 Neill<br />

interprets such a comment as “a damaging charge, and it cannot be said that the<br />

Protestants were happy in their attempts to answer it.” 62 Neill continues: “The<br />

Protestants tended to say ‘Missions are neither obligatory nor desirable, and<br />

our lack of them cannot be held against us as blindness or unfaithfulness.’” 63<br />

56 John H. Leith, “Reformed Theology,” in Donald K. McKim, ed. Encyclopedia of the Reformed<br />

Faith (Louisville: Westminster/John Knox Press; Edinburgh: Saint Andrew Press, 1992), 367. Other<br />

statements have appeared with similar connotation: “theology divides but love unites,” “Jesus unites,<br />

theology divides,” or “theology divides but love unites.”<br />

57 Neill admits that “the whole situation underwent radical alteration in the seventeenth century,<br />

when Holland and England became great maritime powers” (Neill, History of Christian Missions, 188).<br />

But he insists that such geographical alteration did not affect the theological climate.<br />

58 The church of an independent state (land or region); a “national church.” According to John Miller,<br />

“During the Reformation era the churches were organized on the territorial principle (Landeskirche),<br />

whereby the prince or ruler of a state in the then-existing Holy Roman Empire determined the confession<br />

of his subjects” in Missionary Zeal and Institutional Control: Organizational Contradictions in the<br />

Basel Mission on the Gold Coast, 1828-1917. Foreword by Richard V. Pierard. Grand Rapids: Eerdmans,<br />

2003, xii.<br />

59 “Whose the region, his the religion” was a principle adopted by the Religious Peace of Augsburg<br />

(1555) by which the rulers decided the religion of their realms See Thomas M. Lindsay, A History of<br />

the Reformation: The Reformation in Germany from Its Beginning to the Religious Peace of Augsburg<br />

(New York: Charles Scribner’s Sons, 1906), 397.<br />

60 Neill, History of Christian Missions, 188.<br />

61 Ibid., 189. The source used by Neill is a quote from Robert Bellarmine’s book Controversiae,<br />

Book IV. This quote was mentioned by Carl Mirbt in his book: Quellen zur Geschichte des Papsttums<br />

und des Römischen Katholizismus (3 rd ed., 1911).<br />

62 Ibid., 189.<br />

63 Ibid.<br />

153


ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS<br />

He concludes: “Yet, when everything favourable has been said that can be said,<br />

and when all possible evidences from the writings of the Reformers have been<br />

collected, it all amounts to exceedingly little.” 64 Some phrases in this previous<br />

quote would surprise any researcher. Consider, for instance: “when everything<br />

favourable has been said,” or “when all possible evidences have been collected,”<br />

and “all amounts to exceedingly little.” 65 These statements ignore or at least<br />

diminish the relevance of the historical data (facts and texts).<br />

1. “During the period of the Reformation, there was little time for thought<br />

of missions [because] until 1648 the Protestants were fighting for their lives.”<br />

2. “Protestants everywhere wasted their strength, with honourable but<br />

blind and reckless zeal, in endless divisions and controversies.” Neill called<br />

it an “inner weakness.”<br />

3. “The Protestant powers [Holland, England, Germany] were not in touch<br />

with the wider world outside Europe.”<br />

4. “The Germans mostly stayed at home. And the geographical limitations<br />

were strongly reinforced by the psychological limitations of the concept of the<br />

regional church.”<br />

5. “The Protestants tended to say: “Missions are neither obligatory nor<br />

desirable, and our lack of them cannot be held against us as blindness or unfaithfulness.”<br />

The interesting words are simply the fruit of Neill’s interpretation<br />

of Lutheran theology, most of which is based on some of Johan Gerhard’s<br />

writings and a few passages of Luther’s commentaries. 66<br />

2.3 Kane, Winter, and Tucker: main arguments<br />

This section considers aspects of the life and work of historians Kane,<br />

Winter, and Tucker that are relevant to the subject. It includes analysis of<br />

their statements and reasoning about the reformers and mission, the sources<br />

they have used, how they use them, how they access and assess them, why<br />

they use those sources, and how their presupposed definition of terms affects<br />

their choice of sources and their interpretation of them in their writings on the<br />

reformers and missions.<br />

This section concludes by organizing what these historians have in common,<br />

how they relate to each other, and the strengths and weaknesses of their<br />

work. Consideration is given to who started the anti-Reformed movement<br />

concerning the reformers and missions and their immediate successors and to<br />

whether the historians reviewed in this research are correct in their interpretation<br />

(hermeneutics and exegesis) of even their selective sources and facts.<br />

64 Ibid.<br />

65 Neill comments, “Everything that can be said is carefully set out by H. W. Gensichen in his<br />

Missionsgeschichte der neueren Zeit (1961), pages 5-7.” (Neill, footnote 4, 189).<br />

66 Cf. Neill op. cit., 189; Warneck, op. cit., 28-32; and Verkuyl op. cit., 20.<br />

154


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162<br />

2.3.1 Herbert Kane’s Arguments<br />

The late J. Herbert Kane wrote: “One would naturally expect that the<br />

spiritual forces released by the Reformation would have prompted the Protestant<br />

churches of Europe to take the gospel to the ends of the earth. But such<br />

was not the case.” 67 Other theses stated or supported by Kane throughout his<br />

writings, including his revised and enlarged edition of Glover’s The Progress<br />

of World-Wide Missions, confirm his criticisms of the reformers. Glover’s<br />

work states, “Mighty as were the changes wrought, and far-reaching as were<br />

the influences exerted by the Reformation, it is to be borne in mind that that<br />

movement was not missionary in its character,” 68 and “Indeed, there is all too<br />

abundant evidence that most of the leaders of the Reformation, including Luther,<br />

Melanchthon, Calvin, Zwingli, and Knox, seem to have had no serious sense of<br />

responsibility for direct missionary efforts in behalf of heathen or Muslim.” 69<br />

Glover summarizes his position at the end of a short, five-page 70 chapter, “Period<br />

of the Reformation from Luther to the Halle Missionaries (1517-1650)”<br />

with these words: “Of missionary efforts on the part of the Reformation Church<br />

there is sadly little to record.” 71<br />

These are serious accusations that deserve some documentation by the<br />

mission historian who boldly and categorically comes to such conclusions.<br />

Although he does not mention Warneck’s name in his book, Glover seems to<br />

be parroting Warneck when he refers to the leaders of the Reformation. By<br />

mentioning the names of those leaders of the Reformation. Glover does not<br />

quote any of the reformers nor documents such bold statements. All five pages<br />

of his chapter on the Reformation period from 1517-1650 are supported only<br />

by four secondary sources: two works published in 1880 and 1894 and two<br />

published in 1901 and 1912.<br />

Kane seems to be in total agreement with Glover. The main arguments<br />

used by Kane to support such “findings” are the following. First, Kane attests<br />

that the reformers did not prompt “the Protestant churches in Europe to take<br />

the gospel to the ends of the earth” 72 because of their theology. He presents<br />

67 J. Herbert Kane, A Global View of Christian Missions: From Pentecost to the Present (Grand<br />

Rapids: Baker Book House, 1971 [1972]), 73. And A Concise History of the Christian Mission: A<br />

Panoramic View of Missions from Pentecost to the Present. Rev. ed. (Grand Rapids: Baker Book House,<br />

1978 [1982]), 73.<br />

68 Robert Hall Glover, The Progress of World-Wide Missions, revised and enlarged by J. Herbert<br />

Kane (New York: Harper & Row, Publishers, 1960) 40.<br />

69 Ibid., 40.<br />

70 Glover dedicates two pages of the five to “missionary” work of the Roman Catholic church<br />

through Francis Xavier (1506-1552), one page of which is a four-paragraph quote from Arthur T. Pierson’s<br />

appreciation for Xavier’s career as the “Romish Apostle to the Indies.”<br />

71 Ibid., 44.<br />

72 Kane, A Concise History, 73.<br />

155


ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS<br />

three theological factors: their interpretation of Matthew 28:20, the doctrine of<br />

predestination, and the apocalypticism, 73 especially of Martin Luther. For each<br />

of these theological arguments, Kane offers no substantial documentation. Nor<br />

does he consider different positions, interpretations, and applications among<br />

Luther and Calvin and other reformers. He also takes two quotes he uses – one<br />

from Calvin and the other from Luther – out of context without giving necessary<br />

explanations about the sense in which both Calvin and Luther use them.<br />

Kane quotes Calvin without documenting the source and without exegeting<br />

Calvin’s sentence. 74 Without making any distinction between Luther’s<br />

and Calvin’s eschatology, Kane tries to justify such apocalypticism during<br />

the Reformation by writing, “In his Table Talks he [Luther] wrote: ‘Another<br />

hundred years and all will be over. God’s Word will disappear for want of any<br />

to preach it.” 75 With no reference to Luther’s specific document and no explanation<br />

of what Luther meant by “another hundred years and all will be over,”<br />

Kane assumes that Luther’s statement represented the view of all the reformers<br />

and the Protestant churches during the Reformation period.<br />

The second factor presented by Kane has to do with the context in which<br />

the Protestant churches found themselves between 1517 and 1650. A minority<br />

in Europe, they were confronting the Counter Reformation launched by the<br />

Roman Catholic Church, suffering the consequences of the Thirty Years’ War,<br />

and fighting among themselves – Lutherans versus Calvinists – over doctrines.<br />

According to Kane, their survival mood may excuse them “for having neither<br />

the vision nor the vigor necessary for world evangelization” 76 and the “internecine<br />

warfare” among themselves impeded them from doing “a better job with<br />

evangelism at home and missions overseas.” 77 Kane’s critique seems to assume<br />

that fighting for purity of doctrine is not important. Kane also assumes that their<br />

concern for the evangelization of Roman Catholics throughout Europe was not<br />

part of world evangelization, and that “evangelism” and “missions” are two<br />

different categories of work. The assumed distinction between “evangelism”<br />

and mission is not biblical, but is imposed based on “mission strategy.”<br />

Kane’s third reason why the reformers had “neither the vision nor the vigor<br />

necessary for world evangelization” has to do with Protestant Europe being<br />

isolated “from the mission lands of Asia, Africa, and the New World.” 78 Asia,<br />

73 Kane takes apocalypticism in its basic meaning as the belief that the end of the world is eminent.<br />

For a more detailed historical explanation on the origin and meaning of the term, see David E. Aune,<br />

The New Testament in Its Literary Environment (Cambridge: James Clarke and Co, 1988), <strong>22</strong>6-252.<br />

74 As already stated, most of these mission historians exegetical precision regarding the texts and<br />

the contexts in which the quotes were issued by the Reformers.<br />

75 Kane, A Concise History, 74.<br />

76 Ibid.<br />

77 Ibid.<br />

78 Ibid.<br />

156


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162<br />

Africa, and the New World were under the power of Spain and Portugal – both<br />

Roman Catholic countries. Pointing to the Dutch East India Company, founded<br />

in 1602, which “stated that one of its objectives was to plant the Reformed<br />

Faith in its territories overseas,” Kane asserts, “seldom did they work at it.” 79 This<br />

again is a bold conclusion for which Kane offers no documentation, nor gives<br />

any indication of having researched even the secondary literature dealing with<br />

the primary sources about the work of the Dutch companies (East and West). 80<br />

Kane’s fourth factor is “the absence in the Protestant churches of the religious<br />

orders which played such prominent role in the spread of the Catholic<br />

faith throughout the world.” 81 Just as Neill accepted Bellarmine’s critique, so<br />

Kane simply quotes a critique from Joseph Schmidlin, a Roman Catholic mission<br />

historian. 82 To put Kane’s argument in contemporary terms, a key reason<br />

for the supposed indifference of the reformers towards the evangelization of<br />

the world was the lack of para-church organizations. Do the Scriptures ever<br />

teach or encourage any other group outside or parallel to the church to carry<br />

out the evangelization of the world. Kane, along with some other mission<br />

historians, downplays the fundamental place of “pure doctrine” and especially<br />

ecclesiology – the doctrine of the church – presented, defended, and lived by<br />

reformers like John Calvin.<br />

2.3.2 Ralph Winter’s Arguments<br />

Ralph Winter, in his “Perspectives” course states:<br />

Here we go again – despite the fact that the Protestants [during the Reformation<br />

period] won on the political front, and to a great extent gained the power to<br />

formulate anew their own Christian tradition and certainly thought they took<br />

the Bible seriously, they did not even talk of mission outreach. 83<br />

He goes even further, making a non-historical statement, when he asks<br />

and answers a question.<br />

79 Ibid., 75.<br />

80 Part of the work of the Dutch West India Company has been well researched by Frans L.<br />

Schalkwijk. The work of the Dutch India companies will be considered in the reply to the mission historians<br />

presented in chapter 5.<br />

81 Kane, A Concise History, 75.<br />

82 Schmidlin’s critique of the leaders of the Reformation has already been addressed by Samuel<br />

Zwemer when he commented on the literature already available in the German language in Theology Today<br />

7 (July 1950) 2:206. For an extended commentary on Zwemer, see the chapter of my Ph.D. dissertation<br />

dealing with the “Contemporary Mission Historians and the Reformation Period: A Literature Review.”<br />

83 Ralph D. Winter, ed., “The Kingdom Strikes Back: Ten Epochs of Redemptive History” in<br />

Perspectives of the World Christian Movement: A Reader (Pasadena: William Carey Library, 1999),<br />

chapter 33; 211. This document is available online at: http://www.uscwm.org/mobilization_division/<br />

resources/perspectives_reader_pdf’s/B01_Winter_ TheKingdom.pdf.<br />

157


ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS<br />

But why did the Protestants not even try to reach out? Some scholars point to<br />

the fact that the Protestants did not have a global network of colonial outreach.<br />

Well, the Dutch Protestants did. And, their ships, unlike those from Catholic<br />

countries, carried no missionaries. 84<br />

These bold declarations, represented as historical fact, lack any supporting<br />

documentation. Winter, like Kane, is accepting at face value secondary sources<br />

that have not been well exegeted or considered in the light of original sources.<br />

Winter also assumes that the reformers’ lack of “religious orders,” and<br />

even their opposition to them, contributed to their mission inactivity. In his<br />

overused article, “The Two Structures of Redemptive Mission,” 85 Winter<br />

laments the fact that the “Lutheran movement did not in a comparable sense<br />

readopt the sodalities, the Catholic orders, that had been so prominent in the<br />

Roman tradition.” 86 Such “omission,” according to Winter’s evaluation, “represents<br />

the greatest error of the Reformation and the greatest weakness of<br />

the resulting Protestant tradition.” 87 Winter goes further in his evaluation<br />

by concluding that “Once this method of operation was clearly understood by<br />

the Protestants, 300 years of latent energies burst forth in what became, in<br />

Latourette’s phrase, ‘The Great Century.’” 88 Winter, therefore, sees the lack<br />

of Protestant “orders” as the main cause of the reformers’ indifference toward<br />

even the “talk of mission outreach.”<br />

Winter’s theory of modality/sodality is too simplistic and lacks any<br />

consideration of the reformers’ biblical exegesis and theology of the church.<br />

Winter, like Kane, assumes too much regarding the Roman Catholic orders.<br />

He does not deal with the doctrinal and theological merits of such orders and<br />

assumes that any opposition to the so called missionary religious orders implies<br />

opposition and indifference to the preaching of the gospel to the whole world.<br />

Winter imposes his “two structures” model (modality and sodality) upon the<br />

biblical text and uses this model borrowed from the Roman Catholic Church<br />

to criticize the reformers’ opposition to the use of any “missionary society”<br />

(Jesuits, Dominicans, Franciscans, etc.) apart from the church. The debate<br />

84 Ibid.<br />

85 Winter’s article is easily accessed and can be downloaded from several webpages. Check,<br />

for instance, the following webpages: http://www.undertheiceberg.com/wpcontent/uploads/2006/04/<br />

SodalityWinter%20on%20Two %20Structures1.pdf; http://resources.campusforchrist.org/images/4/48/<br />

The_Parachruch.pdf; http://pcmsusa.org/ articles/The%20Two%20Structures%20of%20God%27s%20<br />

Redemptive%20Mission.pdf.<br />

86 Ralph D. Winter, “The Two Structures of Redemptive Mission” in Perspectives of the World<br />

Christian Movement: A Reader, Ralph Winter ed. (Pasadena: William Carey Library, 1999), chapter<br />

35; <strong>22</strong>6.<br />

87 Winter, “The Two Structures,” <strong>22</strong>6. Italics added.<br />

88 Ibid., <strong>22</strong>7.<br />

158


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162<br />

regarding the use of para-church organizations as a substitute for the work of<br />

the local churches is an old one.<br />

Faith and ecclesiology are doctrinal issues that have to be considered in<br />

the light of biblical teaching and exegesis. Warneck, Latourette, Neill, Kane,<br />

Winter, and other mission historians seem to care more for the expansion of<br />

any kind of “Christianity” than for doctrinal truth. The Old Testament prophets,<br />

the Lord Jesus Christ, and his apostles were concerned with the content of the<br />

gospel being spread. Doctrine divides and unites, but the work per se does<br />

not unite. The work must be done according to the teaching of the Scriptures.<br />

Theology matters. Bad theology results in bad strategy and in heretical Christianity.<br />

Strategy is not an independent endeavor that can be designed without<br />

any scriptural and theological judgment.<br />

Winter’s desire and passion to reach out to every “unreached people groups”<br />

and finish the “great commission” by the year 2000 A.D. 89 has never left him.<br />

Winter truly believes that if the contemporary evangelical church lives as it has<br />

been in the United States of America, we will never be able to finish the “great<br />

commission.” There is nothing wrong with such passion in working toward such<br />

goals. The problem is when we began to downplay the work of other brothers in<br />

the past in order to promote a strategic agenda that we have embraced.<br />

2.3.3 Ruth Tucker’s Arguments<br />

In her most read text, From Jerusalem to Irian Jaya: A Biographical<br />

History of Christian Missions, Ruth A. Tucker introduces the Reformation<br />

period and missions with these words: “World-wide missions was not a major<br />

concern of most of the Reformers.” 90 Following this thesis she presents four<br />

main arguments, all of which had already been made, but not documented, by<br />

Herbert Kane. 91 Mission historians’ use of the arguments of previous historians<br />

without even mentioning their names indicates that such arguments are assumed<br />

to be exegeted, documented truths.<br />

The four main arguments used by Tucker are these: Catholic Counter-<br />

-Reformation, lack of overseas opportunities, lack of religious orders, and<br />

the reformers’ theological beliefs – “the imminent return of Christ” (Luther’s<br />

Apocalypticism), the claim that “the Great Commission was binding only on<br />

89 See Ralph Winter’s articles, books, and essays published since Lausanne I, 1974. Winter is a<br />

prolific writer and a hard working brother. He has started, inspired, and supported numerous projects and<br />

movements. See for example the “Perspectives on the World Christian Movement” course; the magazine,<br />

Mission Frontiers (the magazine can be directly accessed through its webpage: http://www.missionfrontiers.<br />

org/); Caleb Project webpage: http://www.calebproject.org/main.php/about_us (Caleb Project produces<br />

the Perspectives courses as well); and the US Center for World Missions--http://www.uscwm.org/.<br />

90 Ruth A. Tucker, From Jerusalem to Irian Jaya: A Biographical History of Christian Missions<br />

(Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1983), 67.<br />

91 See the subheading on Kane in this chapter.<br />

159


ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS<br />

the New Testament apostles,” and “the doctrine of election that made missions<br />

appear extraneous if God had already chosen those he would save.” 92 All of<br />

these arguments take less than one page of Tucker’s work.<br />

The Roman Catholic Counter-Reformation forced the Reformed churches<br />

to just hold “their own in the face of Roman Catholic opposition and breaking<br />

new ground in Europe.” 93 Therefore, the Reformers had “little time or personnel<br />

for overseas ventures.” 94 The Protestants lacked opportunities because<br />

the Roman Catholics had “dominated the religious scene in most of the seafaring<br />

nations.” 95 As for the para-church groups, “the Protestants did not have<br />

a ready-made missionary force like the Roman Catholic monastic orders.” 96<br />

According to Tucker, the reformers’ theological beliefs by practical<br />

implication cut any meaningful initiative of the Protestants toward missions.<br />

Without further explanation or comment regarding the available literature that<br />

has dealt with these theological arguments, Tucker reasons as follows:<br />

Martin Luther was so certain of the imminent return of Christ that he overlooked<br />

the necessity of foreign missions. He further justified his position by claiming<br />

that the apostles...had fulfilled their obligation [the Great Commission] by<br />

spreading the gospel throughout the known world, thus exempting succeeding<br />

generations from responsibility. [And] Calvinists generally used the same line of<br />

reasoning, adding the doctrine of election that made missions appear extraneous<br />

if God had already chosen those he would save. 97<br />

She makes all these statements without a single comment or reference to<br />

any primary, secondary, or even tertiary literature on the subject. At the end of<br />

chapter 3, “The Moravian Advance: Dawn of Protestant Missions”, in which<br />

less than one page is dedicated to the Reformation period, Tucker has a selected<br />

bibliography of six sources related to that chapter. Five of them are about the<br />

history of the Moravian church and mission and one is about the missionary<br />

work of Hans Egede in Greenland.<br />

Tucker does recognize that “Calvin himself was at least outwardly the<br />

most missionary–minded of all the Reformers.” She takes into consideration<br />

that Calvin “not only sent dozens of evangelists back into his homeland of<br />

France, but also commissioned four missionaries to establish a colony and<br />

evangelize the Indians in Brazil.” 98 It seems that Tucker had not read Jean<br />

92 Tucker, From Jerusalem to Irian Jaya, 67.<br />

93 Ibid.<br />

94 Ibid.<br />

95 Ibid.<br />

96 Ibid.<br />

97 Ibid.<br />

98 Ibid.<br />

160


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162<br />

de Léry’s report about the voyage to South America in 1556. The church in<br />

Geneva sent two ministers of the gospel, not four, and they were never called<br />

“missionaries” but “ministers of the Word of God.” By using the biblical<br />

term “minister of the Word,” when referring to those sent with the responsibility<br />

of preaching the gospel, Calvin preserved the Scriptural terms and did not fall<br />

into the temptation to reason from alien terminologies.<br />

Tucker concludes with this sad note: “None of these ventures had real<br />

staying power.” 99 Does that mean then that martyrdom does not count as<br />

“missionary” success? Does it mean then that we only call it “missions” if it<br />

succeeds in terms of church planting and church growth?<br />

SUMMARY OF THE TWO ARTICLES<br />

The previous article (Part 1) and the present one (Part 2) have considered<br />

some aspects of the life and research of mission historians Warneck, Neill,<br />

Kane, Winter, and Tucker, with particular attention given to their writings related<br />

the reformers and missions. An examination of the sources they used calls<br />

into question whether their use and interpretation of the sources corresponds<br />

to the historical reality of the sixteenth-century mission enterprise. Their use<br />

of contemporary missiological terminology has undoubtedly affected their<br />

assessment of the reformers. The prevailing thesis that the reformers were<br />

silent and even indifferent to the idea of missions began long ago based upon<br />

inadequate research.<br />

Warneck and Latourette were doubtless the main proponents of the theory<br />

that dismisses the reformers’ concern for or even thought of “missions,” as<br />

the two historians define, categorize, and applied it. The overall spread and<br />

popularization of such beliefs, however, should be credited to Warneck and<br />

Latourette’s followers and friends, including Neill, Kane, Winter, and Tucker.<br />

Their writings and arguments have been translated into several languages and<br />

their influence throughout the world cannot be denied. 100 Unfortunately numerous<br />

mission professors, most theological students, missionary candidates,<br />

and mission-minded members of the church in general never question such<br />

statements, nor research the documented literature that deals more seriously<br />

with the subject commented on here. Even less take the time to find and read<br />

the sixteenth-century documents and the writings of the reformers.<br />

Why have reputable mission historians made such declarations so lightly?<br />

Are they consciously manipulating the data to demise the theological beliefs and<br />

99 Ibid., 68.<br />

100 The prolific missiological writings of Warneck and Latourette have a limited audience, but the<br />

mission histories of Neill, Kane, Winter, and Tucker have reached a broader and more popular audience,<br />

even Sunday School classes.<br />

161


ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS<br />

practices of a group of Protestant leaders during a period of Protestant history<br />

in order to foster a more ecumenical and universal approach to world evangelization?<br />

Are they simply trying to motivate the evangelical and Reformed<br />

Protestant groups to continue the enthusiasm which began in the eighteenth<br />

century for spreading the gospel and planting churches among all people groups<br />

of this world and finishing the Great Commission of the Lord Jesus Christ? Of<br />

these two options, the latter is more likely. Some of their arguments do, however,<br />

foster a kind of Christian ecumenical endeavor that compromises the<br />

doctrines of the Reformed faith and of evangelicalism in general.<br />

Unfortunately, one thing these mission historians have in common is their<br />

uncritical approach to the historical data. With the exception of Warneck, they<br />

merely paraphrase one another, or even worse, simply make bold statements<br />

without any supporting documentation. Although the general missiological<br />

contributions of Neill, Kane, Winter, and Tucker are to be acknowledged,<br />

their statements concerning the reformers and “missions” must be regarded as<br />

not authoritative. We should pursue those studies whose authors explored the<br />

original sources and writings of those who lived throughout the sixteenth and<br />

seventeenth centuries.<br />

RESUMO<br />

Desde o século 19, historiadores de missões como Gustav Warneck e<br />

Kenneth Scott Latourette, têm revelado a tendência de retratar os reformadores<br />

protestantes como indiferentes às missões estrangeiras ou missões mundiais.<br />

O autor descreve o raciocínio desses historiadores e argumenta que eles e<br />

diversos de seus discípulos mais recentes não tratam as fontes primárias de<br />

modo adequado. Com frequência, muitos deles simplesmente se apoiam em<br />

fontes secundárias e não se esforçam por avaliar a documentação original que<br />

poderia fornecer uma perspectiva diferente sobre o assunto. Ao fazê-lo, eles<br />

ajudam a perpetuar um preconceito injustificado contra os reformadores e missões.<br />

É imperativo afirmar a importância atribuída pelos reformadores à difusão<br />

universal do evangelho e as razões pelas quais eles não foram tão enfáticos<br />

acerca de missões em comparação com gerações posteriors de protestantes.<br />

PALAVRAS-CHAVE<br />

Reformadores protestantes; Missões estrangeiras; Martinho Lutero; João<br />

Calvino; Gustav Warneck; Kenneth S. Latourette.<br />

162


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 163-168<br />

Resenha<br />

Dario de Araujo Cardoso *<br />

HORTON, Michael. Calvino e a vida cristã. Trad. Jader Santos. São<br />

Paulo: Cultura Cristã, 2017. 304p.<br />

Calvino e a Vida Cristã é uma preciosa exposição do conceito de piedade<br />

reformada descrita a partir do pensamento de João Calvino. A obra permite ver<br />

a riqueza espiritual que dá sustentação a essa tão influente tradição teológica.<br />

Sua tese principal é a afirmação de que havia uma íntima relação entre a teologia<br />

e a prática na piedade de Calvino. Não obstante, em vários momentos<br />

não há uma demonstração de como o pensamento teológico exposto produziu<br />

reflexos concretos na prática cristã reformada. Na maior parte das vezes essa<br />

relação ficou apenas em tese. Caberá ao leitor depreender ou, até mesmo, desenvolver<br />

as muitíssimas aplicações insinuadas pelo texto. A exposição é rica<br />

e de leitura agradável e busca percorrer de modo abrangente o pensamento<br />

teológico do reformador.<br />

O autor, Michael Horton, reside na Califórnia, onde é professor de Teologia<br />

Sistemática e Apologética no Westminster Theological Seminary e pastor<br />

auxiliar da Christ United Reformed Church. Tem o seu PhD pela Universidade<br />

de Coventry e pelo Wycliffe Hall, em Oxford. É autor de mais de vinte livros,<br />

grande parte deles publicados no Brasil pela Editora Cultura Cristã.<br />

Horton divide sua exposição em 14 capítulos divididos em uma introdução<br />

e quatro partes intituladas Vivendo para Deus, Vivendo em Deus, Vivendo<br />

no corpo e Vivendo no mundo. Apresentamos a seguir um breve resumo dessas<br />

seções e de seus capítulos. A Introdução tem dois capítulos e descreve o<br />

* Doutor em Semiótica e Linguística Geral pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas<br />

da Universidade de São Paulo, Mestre em Teologia e Exegese pelo CPAJ, Mestre em Ciências<br />

da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor assistente de Teologia Pastoral no<br />

CPAJ.<br />

163


CALVINO E A VIDA CRISTÃ<br />

contexto da piedade de João Calvino expondo o seu histórico ministerial e as<br />

fontes do seu pensamento.<br />

No capítulo 1 – Calvino sobre a vida cristã: uma introdução – Horton<br />

mostra que o mundo em que Calvino vivia era moldado por uma cristandade<br />

abrangente, mas em ruínas. A despeito disso, os reformadores não buscaram<br />

criar uma nova igreja, mas renovar e aprofundar a piedade cristã. Isso foi feito<br />

por meio da ampliação do sentido da piedade e pelo ensino do evangelho a<br />

todos. Segundo Horton, Calvino compreendia a piedade como um termo que<br />

abrangeria tanto a fé como a prática cristãs, pois toda a sua vida era vivida<br />

na presença de Deus. Passa-se então a mostrar como foi o temor de Deus, e<br />

não um projeto pessoal, que transformou Calvino no reformador de Genebra.<br />

Também é interessante a descrição do desenvolvimento dos valores pastorais<br />

de Calvino, o reconhecimento de suas próprias falhas e sua disposição para<br />

auxiliar aqueles que precisavam de orientação e para buscar o consenso e a<br />

unidade da igreja. Por fim, o capítulo discorre sobre as lendas e caricaturas<br />

acerca da vida e das práticas de Calvino.<br />

O capítulo 2 – Calvino sobre a vida cristã: em contexto – dedica-se a<br />

expor as referências teológicas de Calvino. Em “O Calvino católico”, Horton<br />

descreve o compromisso de Calvino com a tradição cristã, sua formação e seu<br />

empenho em demonstrar a vinculação de sua teologia com os pais da Igreja<br />

e os teólogos medievais. Em seguida, mostra que, a despeito das diferenças<br />

de contexto e de temperamento em relação a Lutero, Calvino demonstrava o<br />

mesmo anseio e compromisso com a pregação evangélica da justificação pela fé<br />

em Cristo. Por fim, são apresentados três elementos determinantes da piedade<br />

de Calvino: a exclusividade das Escrituras para o estabelecimento da fé e da<br />

prática cristãs; o modelo de distinção sem separação do Credo de Calcedônia<br />

(451 d.C.) e a teologia pactual.<br />

Os três capítulos seguintes formam a parte 1 do livro, intitulada “Vivendo<br />

diante de Deus”. Eles tratam do conhecimento de Deus, da mensagem das<br />

Escrituras e da obra de Cristo, sempre mostrando a correspondência entre o<br />

divino e o humano.<br />

O capítulo 3 – Conhecendo a Deus e a nós mesmos – mostra a profunda<br />

relação entre o pensamento teocêntrico de Calvino e sua antropologia. O que<br />

pensamos de Deus afeta diretamente o que pensamos de nós mesmos, de forma<br />

que conhecer a Deus e experimentar a Deus são coisas inseparáveis. Verificamos<br />

que, para Calvino, “conhecer a Deus [...] requer conteúdo intelectual,<br />

certamente, mas é, acima de tudo, um relacionamento de amor e confiança<br />

com base em uma comunicação confiável” (p. 50). Nesse aspecto, Calvino<br />

mostra que o conhecimento de Deus como criador é universal e universalmente<br />

suprimido pelos homens. Daí a necessidade de uma revelação especial, que<br />

nos conduza no correto e redentor conhecimento de Deus em Jesus Cristo.<br />

164


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 163-168<br />

As Escrituras e o seu conteúdo são o tema do capítulo 4 – Atores e enredo.<br />

Nas Escrituras o Senhor revela e aplica o plano da salvação. Nelas conhecemos<br />

a Deus em sua plenitude trinitária, a condição humana como imagem e semelhança<br />

de Deus e o significado da história humana na tríade criação, queda e<br />

redenção. Dessa forma, Calvino fundamenta uma visão realista, mas altamente<br />

valorizadora, acerca da natureza e do potencial humanos restaurados pela obra<br />

de Cristo. Temas como pecado original, graça comum, graça especial e providência<br />

são apresentados para mostrar o modo como Deus atua restaurando<br />

a ordem no mundo criado e a piedade no coração dos homens, mesmo nos<br />

momentos de aflição e de dor.<br />

A parte 2 é denominada “Vivendo em Deus” e trata da mediação de Cristo<br />

e de nossa união com ele. O capítulo 5 – Cristo, o mediador – propõe-se a demonstrar<br />

como Calvino apontava Jesus Cristo como o único modo de superar<br />

a diferença existente entre o Deus santo e as criaturas pecaminosas. Quando<br />

estamos em Cristo não apenas vivemos perante Deus, mas vivemos em Deus.<br />

Horton mostra como Calvino descreveu a pessoa e o triplo ofício de Cristo,<br />

bem como os resultados de sua obra. Neste capítulo, vemos como a cristologia<br />

que propunha distinção sem separação, tomada do Credo de Calcedônia, foi<br />

decisiva para a visão de Calvino acerca da vida cristã e para o enfrentamento<br />

dos problemas de sua época. Calvino também enfatizou a suficiência de Cristo<br />

para a nossa salvação. Uma vez que Cristo uniu-se a nós em sua encarnação,<br />

nós fomos unidos a ele em sua morte, ressurreição e ascensão, e experimentamos<br />

todos os seus efeitos e benefícios.<br />

Os efeitos e os benefícios de nossa união com Cristo são o tema do capítulo<br />

6 – Dádivas da união com Cristo. Para Calvino, a vida cristã consiste<br />

em alimentar-se das ricas verdades do evangelho e em crescer nesse solo que<br />

produz o fruto do amor e das boas obras. Horton descreve o pensamento de<br />

Calvino sobre o chamado eficaz, a justificação, a santificação e a adoção,<br />

privilégios que podem ser descritos como um banquete preparado por um pai<br />

generoso. É muito interessante o ponto em que Horton afirma que, em Calvino,<br />

a doutrina da predestinação, conhecida desde Agostinho, deixou de ser uma<br />

questão especulativa e passou a ser tratada como “um artigo da alegria do<br />

evangelho” (p. 118), um benefício que recebemos em decorrência de nossa<br />

união com Cristo.<br />

A parte 3 recebe o nome “Vivendo no corpo” e busca superar a visão<br />

medieval na qual a vida cristã era vista como dependente do compromisso e do<br />

esforço do crente, como se a piedade fosse um atributo humano. Na piedade<br />

reformada o esforço e as boas obras não são o conteúdo, mas o resultado da<br />

piedade que a obra de Cristo gera em nós.<br />

No capítulo 7 – Como Deus entrega sua graça –, a piedade é apresentada<br />

como o fruto da pregação da palavra e da participação nos sacramentos.<br />

Horton afirma que Calvino considerava a pregação como palavra sacramental<br />

165


CALVINO E A VIDA CRISTÃ<br />

de Deus. Por meio dela, Deus não apenas anuncia, mas realmente produz a<br />

vida da igreja. Destaca, no entanto, que a pregação da palavra não se resumia<br />

ao sermão, mas estava presente em todo o culto por meio das leituras, orações<br />

e cânticos. No pensamento de Calvino, as bênçãos comunicadas pela palavra<br />

eram distribuídas pelos sacramentos. Eles são, portanto, um ato primariamente<br />

de Deus e não dos homens. Através do batismo, Deus confirma que nos fez<br />

participantes da morte e da ressurreição de Cristo. Na Ceia do Senhor, Cristo<br />

se faz presente dando-se a si mesmo com todos os seus benefícios. Por fim,<br />

Horton demonstra que os benefícios espirituais da piedade cristã são experimentados<br />

na vida comunitária.<br />

Diante disso, o culto público é o tema do capítulo 8 – O culto público como<br />

um “teatro celestial” da graça. Para Calvino, no culto público a igreja militante<br />

e a igreja triunfante se reúnem para apreciar as obras de Deus e compartilhar<br />

as dádivas que recebemos dele. Em seguida, Horton faz uma descrição do<br />

pensamento do Calvino acerca do uso das artes visuais e da música no culto.<br />

Em ambos, a principal preocupação de Calvino era que o foco do crente não<br />

fosse desviado da verdadeira adoração a Deus.<br />

O capítulo 9 – Aceso com ousadia: oração como “o exercício principal<br />

da fé” – tem a oração como foco. Aqui é mostrado que a oração é tanto um<br />

exercício público quanto particular e que essas esferas não devem ser separadas.<br />

A oração é descrita como o primeira e principal parta de piedade. Todas<br />

as demais ações piedosas derivam de invocar o nome do Senhor. Para Calvino,<br />

a oração precisa ser cheia de emoção e de confiança no Senhor e deve ser<br />

reconhecida como o meio pelo qual Deus realiza os seus propósitos e mostra<br />

sua generosidade para conosco.<br />

Lei e liberdade na vida cristã é o título do capítulo 10. Aqui o problema<br />

da relação entre lei e evangelho é tratado sob a perspectiva dos três usos da lei<br />

propostos por Melanchton e adotados por Calvino. Dessa forma, a salvação<br />

somente pela graça e por meio da fé não entra em conflito com uma vida de<br />

santidade movida pela gratidão e orientada pelos mandamentos da Palavra<br />

de Deus.<br />

No capítulo 11 – A nova sociedade de Deus – o tema é a igreja. Para os<br />

reformadores, o que caracteriza a igreja não é o seu vínculo institucional, nem<br />

a santidade dos seus membros (afirmação que à primeira vista nos surpreende),<br />

mas o evangelho que, como foi visto no capítulo 7, é a manifestação visível<br />

de Deus na palavra pregada e nos sacramentos. Horton mostra que na visão de<br />

Calvino a verdadeira igreja é aquela que está transformando e não afastando<br />

pecadores. Para Calvino, a disciplina não era uma marca da igreja, mas uma<br />

aplicação da palavra e dos sacramentos promovida por pastores e presbíteros.<br />

Discussão polêmica que vale a pena ler. Nela encontra-se também uma palavra<br />

aos contemporâneos desigrejados. O capítulo traz uma boa apresentação do<br />

pensamento do Calvino sobre generosidade e hospitalidade dos crentes, unidade<br />

166


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 163-168<br />

e catolicidade da igreja, aspectos essenciais da propagação da mensagem do<br />

evangelho do Reino no mundo.<br />

A vida no mundo é o tema da quarta e última seção. No capítulo 12 – Cristo<br />

e Cesar –, Horton trata da visão de Calvino sobre a relação entre a igreja e o<br />

estado. Para Calvino, o reino de Cristo e os reinos deste mundo são distintos,<br />

mas não antagônicos. Para ele a igreja não deve buscar o poder temporal para<br />

si, mas deve cooperar para o bem da sociedade. Tão pouco o estado deve governar<br />

sobre a igreja, antes deve contribuir para que ela livremente cumpra a sua<br />

missão. De acordo com Horton, Calvino também rejeitou a ideia de uma cultura<br />

redentora ou de um estado fundado sobre as leis mosaicas, mas apoiou-se na<br />

graça comum como o modo como Deus conduz a sociedade humana, fazendo<br />

com que esta reflita sua sabedoria, bondade, verdade, justiça, beleza e amor.<br />

O capítulo 13 – Vocação: onde se encaixam as boas obras – mostra que<br />

as boas devem ser entendidas no contexto da vocação e não da justificação.<br />

Elas não são dirigidas a Deus para alcançar mérito, mas ao próximo como um<br />

serviço de Deus em nós. “A piedade bíblica, de acordo com Calvino, orienta<br />

nossa fé em direção a Deus e nosso amor em direção ao próximo” (p. 251).<br />

Dessa forma, Horton mostra como Calvino, de modo particular, incentivou o<br />

trabalho como uma resposta ao chamado de Deus. Outra importante observação<br />

é que a preocupação do reformador era com o serviço ao próximo e não com<br />

uma transformação na sociedade. Ainda assim, sua visão teve um impacto<br />

inegável sobre a cultura, tanto na ciência, quanto nas artes.<br />

O último capítulo – Vivendo o hoje a partir do futuro: a esperança da<br />

glória – apresenta o olhar de Calvino sobre a vida futura e o seu impacto sobre<br />

a vida cristã. A perspectiva da restauração deste mundo faz com que a autonegação<br />

assuma posição de destaque não como um meio de salvação, mas como<br />

o anseio de algo maior que Cristo conquistou para nós. A piedade de Calvino<br />

faz ver que a nossa salvação não está desvinculada da restauração de toda a<br />

realidade. Este capítulo termina com um tocante registro das ações e palavras<br />

de Calvino nos meses que antecederam sua morte.<br />

Recomendamos fortemente a leitura do livro. Ele será muito útil para<br />

aqueles que estão iniciando seus passos na teologia reformada e os ajudará a ter<br />

uma visão mais abrangente da teologia e do sistema de pensamento propostos<br />

por Calvino. Será de grande valor também para aqueles que possuem maior<br />

experiência com a tradição reformada e lhes dará a oportunidade de vislumbrar<br />

a teologia de Calvino numa abordagem mais direta, revisando conceitos<br />

e reforçando posicionamentos.<br />

A publicação feita pela Editora Cultura Cristã é apresentada sob o selo<br />

“Série Teólogos e a Vida Cristã”, dando início ao que parece ser uma promissora<br />

linha editorial. A tradução de Jader Santos é muito competente e apenas uma ou<br />

duas vezes suscitou dúvida sobre o sentido das frases ou o desejo de verificação<br />

do texto original. A diagramação é muito bem feita e propicia uma leitura<br />

167


CALVINO E A VIDA CRISTÃ<br />

confortável. A nota negativa fica para a capa escura que dá um tom soturno<br />

(fruto de um estereótipo) que destoa da perspectiva ampla e luminosa que a<br />

obra apresenta sobre a piedade de Calvino. Expressamos nossos cumprimentos<br />

à Editora Cultura Cristã pela iniciativa e nossa expectativa pela publicação de<br />

outras obras na série Teólogos e a Vida Cristã.<br />

168


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 169-173<br />

resenha<br />

Filipe Costa Fontes *<br />

HAYKIN, M. A. G.; ROBINSON, C. J. O legado missional de Calvino.<br />

São Paulo: Cultura Cristã, 2017. 141p.<br />

Uma das maiores críticas sofridas pelo calvinismo é a de que ele seria<br />

uma postura teológica que desestimula a evangelização e as missões. O argumento<br />

é que a doutrina da soberania de Deus, com suas implicações soteriológicas<br />

– as doutrinas da eleição incondicional e da expiação limitada –, seria<br />

um impedimento ao engajamento da igreja com sua tarefa missionária. O<br />

Legado Missional de Calvino lida com essa crítica. Seu objetivo é “enterrar<br />

finalmente a acusação de que ser calvinista significa deixar de ser missional”<br />

(p. 15), mostrando que Calvino foi um defensor das missões, tanto em seus<br />

escritos quanto em sua prática ministerial.<br />

A introdução apresenta a crítica que mencionamos no parágrafo anterior,<br />

mostrando alguns exemplos da mesma na literatura teológica. Embora a divisão<br />

não esteja marcada, o livro pode ser dividido em duas partes, ambas compostas<br />

por três capítulos. A primeira trabalha com Calvino e seu pensamento, e a<br />

segunda, com o pensamento de calvinistas posteriores.<br />

Na primeira parte, o capítulo 1 (Deus amou ao mundo) examina o trabalho<br />

de Calvino como exegeta, teólogo e pregador. Ele traz citações das Institutas e,<br />

principalmente, de alguns de seus comentários e sermões. É dada certa ênfase<br />

à interpretação que Calvino faz dos “textos universais” da Escritura – aqueles<br />

que falam da salvação em referência a “todos” – e à maneira como o reformador<br />

genebrino trata o chamado universal do evangelho à luz da doutrina<br />

da predestinação.<br />

* Mestre em Teologia Filosófica pelo CPAJ e em Educação, Arte e História da Cultura pela<br />

Universidade Presbiteriana Mackenzie; licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Assunção;<br />

graduado em Teologia pelo Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição; professor assistente<br />

de Teologia Filosófica no CPAJ.<br />

169


O LEGADO MISSIONAL DE CALVINO<br />

Dentre os “textos universais” escolhidos e trabalhados está João 3.6,<br />

talvez “o versículo predominantemente usado contra Calvino e o calvinismo”<br />

(p. 37), além de Ezequiel 18.23; Mateus 11.28-30; 1 Timóteo 2.4; 2 Pedro 3.9<br />

e outros mais. Ao tratar da relação entre o chamado universal do evangelho e<br />

a doutrina da predestinação, os autores apresentam uma longa apreciação da<br />

natureza bidimensional da vontade de Deus, que, segundo eles, “nos ajuda a<br />

compreender a interdependência bíblica entre a chamada geral do evangelho e<br />

a predestinação, como Calvino expôs” (p. 45). Implicitamente, somos expostos,<br />

nesta apreciação, à epistemologia de Calvino, que insistia na insuficiência<br />

da razão humana como critério definitivo de verdade e assumia com alguma<br />

naturalidade a dimensão do mistério.<br />

O segundo capítulo trata de um tema recorrente nos sermões e escritos de<br />

Calvino: o do progresso vitorioso do reino de Cristo. Argumenta que, embora<br />

Calvino defendesse que a expansão do reino de Cristo é uma obra de Deus,<br />

ele ensinou que os crentes não devem ser indiferentes em seus esforços para<br />

alcançar os perdidos. Em uma das citações utilizadas por Haykin e Robinson<br />

para comprovar esse ponto, afirma o reformador de Genebra em seu comentário<br />

de Isaías:<br />

[Isaias] demonstra que é nosso dever proclamar a bondade de Deus a todas as<br />

nações. Enquanto exortamos e encorajamos a outros, não podemos, nós mesmos,<br />

acomodar-nos na indolência; antes, cabe-nos ser exemplares perante os homens,<br />

pois nada pode ser mais absurdo do que ver homens preguiçosos e indolentes<br />

instigando outros homens a glorificar a Deus (p. 59).<br />

Depois de estabelecer esse ponto, o capítulo expõe o pensamento<br />

de Calvino a respeito dos meios através dos quais a igreja deve alcançar os<br />

perdidos. Eles são, basicamente dois: a oração e a pregação. Essa ordem de<br />

apresentação – a oração primeiro e a pregação depois – mostra a natureza teocêntrica<br />

da teologia calvinista. Até mesmo quando descreve a ação humana<br />

na tarefa missionária, é aquela que mais revela a dependência de Deus que<br />

recebe primazia.<br />

Por fim, o segundo capítulo apresenta o pensamento de Calvino sobre<br />

as motivações da igreja na tarefa de expansão do reino de Cristo. Também<br />

são duas as motivações e sua apresentação também evidencia como Calvino<br />

procurou ser teocêntrico em sua elaboração teológica. Elas são: o anseio pela<br />

glória de Deus, que deve preceder a compaixão pela condição dos perdidos.<br />

Uma bela oração litúrgica preparada por Calvino encerra o capítulo, evidenciando<br />

que o reformador nutria a compaixão que ele exigia da igreja como<br />

motivação missionária.<br />

Rogamos-te agora, ó gracioso Deus e Pai misericordioso, por todas as pessoas,<br />

em todo lugar. Como é tua vontade ser reconhecido como Salvador de todo o<br />

170


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 169-173<br />

mundo, mediante a redenção lavrada por teu Filho Jesus Cristo, permita que<br />

aqueles que ainda se encontram alheios ao conhecimento de Cristo, na escuridão,<br />

e cativos ao erro e à ignorância, possam ser conduzidos, pela iluminação de teu<br />

Santo Espírito e da pregação do evangelho, para o justo caminho da salvação,<br />

que é conhecer a ti, o único Deus verdadeiro, e Jesus Cristo, a quem enviaste. 1<br />

O terceiro capítulo é mais histórico. Ele procura mostrar que o engajamento<br />

missionário não foi apenas adereço discursivo do reformador de<br />

Genebra, mas uma de suas atividades ministeriais. Apresenta duas iniciativas<br />

missionárias da Genebra calvinista. A primeira delas foi dirigida à terra natal<br />

de Calvino – a França –, para onde missionários foram enviados por Genebra<br />

a partir de 1555. Dados levantados pelos autores mostram o sucesso dessa<br />

iniciativa missionária. Segundo eles, “entre 1555 e 1562, estima-se que uma<br />

centena de pastores, aproximadamente, deixou seu porto seguro, Genebra, para<br />

viajar clandestinamente para toda sorte de destinos dentro do reino francês”<br />

(p. 73). Quando os missionários começaram a ser enviados, havia não mais<br />

do que 5 igrejas reformadas na França. Por volta de 1559, quatro anos depois<br />

desse envio, havia 59 igrejas. A segunda iniciativa missionária foi à nossa terra<br />

natal – o Brasil –, para onde Genebra enviou dois pastores, na companhia de<br />

outros calvinistas, no ano de 1557. Segundo Haykin e Robinson, a missão<br />

ao Brasil deve “deitar por terra a crítica de que os reformadores, em geral, e<br />

Calvino, em particular, não possuíam interesse em ver o evangelho semeado<br />

por todo o globo” (p. 76-77).<br />

Como dissemos de início, a segunda parte discute a relação de calvinistas<br />

posteriores com a atividade missionária. No capítulo quarto, os personagens<br />

principais são os puritanos. O capítulo começa mostrando que, assim como<br />

Calvino, frequentemente os puritanos também são vistos como antimissionários.<br />

Haykin e Robinson localizam a origem dessa visão nas pesquisas e textos<br />

de David Bebbington, um historiador da religião que sugeriu a ausência de<br />

missões transculturais entre os puritanos, relacionando-a a um “entendimento<br />

particular da doutrina da segurança do crente” (p. 83). Para ele “a piedade<br />

introspectiva nutrida por essa visão de segurança e a energia que despendiam<br />

buscando saber se um ou outro pertencia ao conjunto de eleitos dificultaram<br />

seriamente as campanhas missionarias dos puritanos” (p. 83). Em seguida, o<br />

capítulo procura contrariar essa visão, embora o faça com menor ênfase do<br />

que faz nos capítulos anteriores quando trata de Calvino. Por parte dos autores<br />

parece haver certo reconhecimento de que, embora o puritanismo não tenha sido<br />

contrário às missões, ele foi, de fato, menos missionário do que o evangelicalismo.<br />

Nas palavras do próprio livro: “Na era puritana, certamente, não houve<br />

1 MCKEE, Elsie. Calvin and Praying for “All People Who Dwell on Earth”. Apud HAYKIN e<br />

ROBINSON, O legado missional de Calvino, p. 69.<br />

171


O LEGADO MISSIONAL DE CALVINO<br />

ninguém com um ministério itinerante comparado ao de George Whitefield,<br />

mas isso não significa que aos puritanos faltasse um senso de missão” (p. 87).<br />

O personagem do capítulo 5 é Jonathan Edwards (1703-1758). Em resumo,<br />

o esforço desse capítulo é mostrar como o fervor missionário de Edwards<br />

pode ser percebido em sua concepção do progresso do reino de Cristo. Os<br />

escritos de Edwards trabalhados neste capítulo são as cartas enviadas a George<br />

Whitefield; a biografia de David Brainerd, um missionário que trabalhou entre<br />

os índios nativos em Nova York e morreu ainda jovem na casa de Edwards, e<br />

um tratado de 1748, escrito para estimular a busca pelo avivamento, cujo título<br />

é: Uma humilde tentativa de promover a explícita e visível união do povo de<br />

Deus em oração extraordinária pelo reavivamento da religião, e o avanço<br />

do reino de Cristo na terra, segundo as promessas e profecias das Escrituras<br />

referentes aos últimos tempos. Haykin e Robinson afirmam que esse tratado<br />

teria contribuído “enormemente para acender a chama do profundo reavivamento<br />

entre os batistas calvinistas da Grã-Bretanha, e dar início ao movimento<br />

missionário atual, bem como ao segundo grande avivamento” (p. 107). Dentre<br />

os homens impactados por esse tratado estão William Carey e Samuel Pearce,<br />

este último, personagem do capítulo seguinte.<br />

A nota de lamento desse capítulo fica por conta do fato de que ele faz<br />

apenas uma breve menção ao pós-milenismo de Jonathan Edwards (p. 103,<br />

104), mas não oferece uma avaliação mais aprofundada sobre como essa visão<br />

escatológica pode ter influenciado a sua visão missionária.<br />

O último capítulo tem Samuel Pearce (1766-1799) como personagem principal.<br />

O destaque a esse personagem é justificado por seu ímpeto missionário<br />

e sua relação com William Carey (1761-1834), geralmente considerado o pai<br />

das missões modernas. O capítulo se inicia mostrando que Pearce demonstrou<br />

desde o começo de seu ministério o amor pelos perdidos e o desejo de<br />

comunicar-lhes o evangelho. Um curioso acontecimento mencionado no livro<br />

como evidência teve lugar em Northampton, quando ele foi pregar na inauguração<br />

de um templo batista. Depois do culto, quando Pearce já estava à mesa<br />

para comer com um grupo de amigos, um deles – Andrew Fuller – elogiou o<br />

sermão pregado por ele, mas o criticou por ter promovido, ao final, uma espécie<br />

de repetição do sermão. A isso, Pearce teria respondido da seguinte maneira:<br />

Bem, meu irmão, revelarei o meu segredo, se assim devo fazê-lo. No preciso<br />

momento em que eu estava prestes a voltar ao meu assento, pensando ter finalizado<br />

o sermão, abriu-se a porta, e vi entrar um pobre homem, um operário. A<br />

julgar pelo suor na sua testa e pela aparência de cansaço, presumi que ele havia<br />

andado algumas milhas para comparecer a esse sermão matinal, mas fora incapaz<br />

de chegar a tempo. Um pensamento momentâneo cruzou minha mente – esse<br />

pode ser um homem que nunca ouviu o evangelho, ou pode até ser alguém que,<br />

no evangelho, se deleite enormemente. Em todo caso, o esforço de sua parte me<br />

172


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 169-173<br />

constrange a um esforço de minha parte. Portanto, na esperança de fazer-lhe o<br />

bem, resolvi esquecer-me de tudo e, a despeito de críticas ou do receio de ser<br />

visto como tedioso, decidi dar ao pobre homem um quarto de hora. 2<br />

Em seguida, o capítulo mostra que Pearce seria impulsionado ainda mais<br />

em seu ímpeto missionário pelo trabalho de William Carey. Em 1794 ele teria<br />

chegado a colocar à disposição o seu posto junto à Igreja da Inglaterra para<br />

dirigir-se à Índia. Começou a estudar o idioma por conta própria e reservou<br />

dias semanais específicos de oração e jejum para rogar a direção de Deus a<br />

respeito dessa questão. No entanto, a Associação Missionária decidiu não o<br />

enviar, sob o argumento de que ele serviria melhor às missões a partir da Inglaterra.<br />

A resposta de Pearce foi a melhor possível. Ele se dedicou ao serviço<br />

missionário em sua nação e tornou-se um dos maiores levantadores de recursos<br />

para a causa das missões estrangeiras.<br />

Sentimos falta de uma conclusão ao livro, separada desse último capítulo.<br />

Com a apresentação de Pearce, o livro termina de modo um tanto abrupto, com<br />

a afirmação de ter cumprido o seu objetivo:<br />

...demonstrar que existe uma tradição calvinista de fervor missionário que<br />

remonta aos pioneiros do movimento atual de missões, como Carey e Pearce,<br />

passando pelos puritanos, chegando até a nascente reformada dos escritos e das<br />

obras de João Calvino, deitando por terra o mito de que alguém não pode ser<br />

calvinista e missional ao mesmo tempo (p. 132).<br />

Nossa percepção é que isso acontece em parte. Os três capítulos iniciais<br />

são, de fato, bastante consistentes e mostram que Calvino não pode ser acusado<br />

de antimissionário. Os três capítulos finais contêm boas apresentações<br />

do fervor missionário de seus personagens principais, contudo não realizam<br />

claramente o apontamento da relação entre esses personagens, seu pensamento<br />

e o pensamento de João Calvino. Possivelmente, os autores tenham pressuposto<br />

que o leitor tenha conhecimento prévio da natureza calvinista da teologia dos<br />

personagens tratados. Isso, no entanto, parece-nos um problema estratégico se<br />

o livro visa atingir o grande público, principalmente porque, embora alguns<br />

personagens sejam bastante conhecidos, como Jonathan Edward por exemplo,<br />

outros, como Samuel Pearce, são quase desconhecidos. Mesmo assim, recomendamos<br />

a obra, sobretudo por causa da primeira parte, que demonstra de<br />

forma consistente o fervor missionário do reformador de Genebra.<br />

2 COX, F. A. History of the Baptist Missionary Society, from 1792 to 1842. Apud HAYKIN e<br />

ROBINSON, O legado missional de Calvino, p. 119.<br />

173


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 175-177<br />

resenha<br />

Filipe Costa Fontes *<br />

MCGRATH, Alister. O Pensamento da Reforma. São Paulo: Cultura<br />

Cristã, 2014, 352p.<br />

O Dr. Alister E. McGrath já é bastante conhecido no cenário teológico<br />

brasileiro. Historiador, teólogo e professor na Universidade de Oxford, possui<br />

vários livros já traduzidos para o português. Ele se destaca, dentre outras coisas,<br />

pela abrangência de suas pesquisas, que além de versarem sobre história<br />

e teologia, tratam da relação entre a fé cristã e o campo científico, no qual ele<br />

também tem formação do período anterior à sua conversão.<br />

Como o próprio título revela, O Pensamento da Reforma é um livro que<br />

se propõe a um grande desafio: resumir as principais ideias desse movimento<br />

cujo principal marco histórico completa agora 500 anos e que transformou não<br />

apenas o modo de se fazer teologia e ser igreja, mas a vida do mundo ocidental<br />

de uma forma geral. A obra cumpre esse desafio com excelência, embora<br />

ressalvas sempre possam ser feitas em tentativas desta magnitude.<br />

O pressuposto central com o qual McGrath trabalha é o de que a Reforma<br />

foi, fundamentalmente, um movimento impulsionado por ideias religiosas, e<br />

não por interesses de natureza econômica, política ou social, como as análises<br />

feitas a partir de categorias contemporâneas parecem querer mostrar.<br />

Sua estrutura é bastante fluida. Alguns capítulos são mais históricos. É o<br />

caso do segundo, cujo título é “O cristianismo no final da Idade Média” e tem<br />

como objetivo central contextualizar a origem da Reforma, ou do capítulo 5,<br />

intitulado “Os reformadores: uma introdução biográfica”, que apresenta uma<br />

breve biografia de alguns dos principais personagens da Reforma Protestante:<br />

* Mestre em Teologia Filosófica pelo CPAJ e em Educação, Arte e História da Cultura pela<br />

Universidade Presbiteriana Mackenzie; licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Assunção;<br />

graduado em Teologia pelo Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição; professor assistente<br />

de Teologia Filosófica no CPAJ.<br />

175


O PENSAMENTO DA REFORMA<br />

Martinho Lutero (1483-1546), Ulrico Zuínglio (1484-1531), Filipe Melanchton<br />

(1497-1560), Martin Bucer (1491-1551) e João Calvino (1509-1564). Outros<br />

são mais descritivos. Eles procuram descrever o pensamento da Reforma a<br />

respeito de vários assuntos. É o caso dos capítulos 7, 8, 9, 10 e 11, que tratam,<br />

respectivamente, sobre o pensamento da reforma a respeito da doutrina da<br />

justificação pela fé, da igreja, dos sacramentos, da predestinação e da política.<br />

E outros capítulos são mais analíticos. Eles procuram perceber as relações que<br />

a Reforma guarda com outros movimentos do período, como o humanismo<br />

(capítulo 3) e o escolasticismo (capítulo 4). Essa fluidez estrutural do livro,<br />

ao oferecer ao leitor a possibilidade do contato com diferentes tipos textuais,<br />

pode tornar a sua leitura mais leve e mais agradável.<br />

O Pensamento da Reforma se destaca por duas qualidades. A primeira é<br />

a sua natureza didática. McGrath possui uma preocupação com a definição de<br />

termos e a distinção entre eles, bem como com a relação entre os conhecimentos,<br />

o que torna o livro um mapa bastante seguro para o leitor que começa a<br />

andar pelas trilhas do pensamento da Reforma. Um exemplo do que afirmamos<br />

nesse parágrafo é o capítulo 1, cujo título é “A Reforma: uma introdução”,<br />

no qual, ao encontrarmos explicações sobre as razões pelas quais o termo<br />

“reforma” pode ser usado para designar o movimento a que se refere, somos<br />

apresentados aos diferentes movimentos aos quais o termo pode se referir e a<br />

distinções entre termos como “reformados”, “protestantes” e “calvinistas”, por<br />

exemplo. Outros exemplos dessa natureza didática da obra são a inclusão de<br />

um glossário ao final, incluindo até mesmo a definição de termos teológicos<br />

como “cristologia”, e a de um índice onomástico, que é fundamental numa<br />

obra dessa dimensão.<br />

Além de se destacar pela natureza didática, O Pensamento da Reforma se<br />

destaca pelo seu rigor histórico e conceitual. A natureza didática do livro não<br />

o torna simplista, como poderia acontecer. Embora seja um texto introdutório,<br />

ele também contribui para o aprofundamento de nossa visão sobre a Reforma<br />

e suas ideias. Um exemplo desse rigor pode ser verificado no fato de que, ao<br />

mesmo tempo em que busca encontrar uma espécie de unidade que perpassa<br />

o pensamento reformado a respeito de um determinado assunto, McGrath faz<br />

questão de apontar as divergências que os diversos reformadores ou correntes<br />

da Reforma tinham entre si. É ilustrativo desse ponto o capítulo sobre política<br />

(capítulo 11), no qual a distinção entre os reformadores magistrais (aqueles<br />

que se valeram dos magistrados para efetivar a Reforma em uma cidade ou<br />

região) e os reformadores radicais (aqueles que se afastaram completamente<br />

do poder político) é trabalhada com profundidade.<br />

Por essas razões, o livro pode ser útil a dois grupos de pessoas. Primeiro,<br />

a todos aqueles que desejam conhecer a Reforma e seu pensamento. Em virtude<br />

de sua natureza didática, o livro pode funcionar como uma boa introdução e<br />

os professores de seminários, inclusive, poderiam valer-se dele com muito<br />

176


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 175-177<br />

benefício para os primeiros passos de seus alunos pelas estradas do conhecimento<br />

sobre a Reforma. Depois, a teólogos, pastores ou cristãos em geral,<br />

interessados em teologia, e que já foram introduzidos ao assunto, mas buscam<br />

aprofundamento. Esses também podem valer-se dele.<br />

Os pesquisadores poderão lamentar a ausência de demonstração de um<br />

uso maior de fontes primárias, visto que o livro, de fato, não é um livro repleto<br />

de citações bibliográficas. Porém, eles poderão ser enriquecidos por uma extensa<br />

lista para leituras adicionais por capítulo, apresentada ao final do livro,<br />

ressalvado o fato de que boa parte dessa bibliografia não está traduzida para<br />

a língua portuguesa. Recomendamos a leitura de O Pensamento da Reforma a<br />

todos os que desejam conhecer e se aprofundar no conhecimento dessas ideias<br />

que influenciaram o mundo e moldaram a sociedade.<br />

177


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 179-181<br />

Resenha<br />

Tarcizio Carvalho *<br />

CAVACO, Tiago. Cuidado com o alemão – Três dentadas que Martinho<br />

Lutero dá à nossa época. São Paulo: Vida Nova, 2017.<br />

Qualquer pessoa que tenha tentado aprender a língua alemã concordaria<br />

com o título, embora, de fato, ele não se refira à aprendizagem do idioma! Ao<br />

ler o subtítulo associado ao desenho da capa, porém, talvez ocorra um choque.<br />

Como assim?? Nosso reformador querido não é um vampiro descontrolado!<br />

Por que deveríamos ter cuidado com o alemão Martinho Lutero?<br />

Bem, essa é exatamente a ideia do autor. Do seu ponto de vista, se o leitor<br />

de Lutero não se sentir incomodado em seus afetos, desafiado em sua tarefa educativa<br />

e movido em seus sentidos, então não terá lido Lutero apropriadamente.<br />

Em um ano pródigo de obras sobre a Reforma Protestante, Tiago Cavaco<br />

se insere no cenário. A obra de Cavaco é duplamente prefaciada. Primeiramente<br />

por Franklin Ferreira, cujo prefácio funciona mais como uma resenha. Já o<br />

prefácio de João Miguel Tavares é ambíguo. Inicialmente parece ser um antagonista<br />

do autor, mas na continuidade da leitura percebe-se nele um contraponto<br />

a Tiago Cavaco. Ao final ficará claro que ele é as duas coisas. Ambos, o autor<br />

e João Miguel escrevem muito bem, e a ideia de um amigo pessoal inimigo da<br />

forma como se entende a fé é algo para ser degustado com reflexão apropriada.<br />

Seria bom termos mais disso.<br />

Cavaco apropriadamente prepara o leitor para que não se decepcione com<br />

o que vai encontrar. Ele cedo declara que seu livro é uma apologia de Lutero,<br />

que as duas obras principais de Lutero nas quais se baseia são Do cativeiro<br />

babilônico da igreja e Do servo arbítrio, e que não é um especialista, mas<br />

* Graduado em Teologia pelo Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição e em<br />

Filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Teologia Exegética (Antigo Testamento)<br />

pelo CPAJ. Professor assistente de Antigo Testamento no CPAJ.<br />

179


CUIDADO COM O ALEMÃO – TRÊS DENTADAS QUE MARTINHO LUTERO DÁ À NOSSA ÉPOCA<br />

um apaixonado (p. 24). Se o leitor estiver em busca de uma leitura descritiva,<br />

com muitas citações primárias e com poucas intervenções na história, Cavaco<br />

adverte, não percam tempo com este livro (p. 25).<br />

O livro de Cavaco é dividido em quatro partes. A primeira e mais extensa,<br />

com 57 páginas, é a parte histórica, uma visão biográfica resumida que segue<br />

o formato da obra Brand Luther, de Andrew Pettegree.<br />

A segunda parte é a primeira dentada, com 10 páginas. O título é Maldade.<br />

A questão central é uma percepção antropológica aprendida nas Escrituras, a<br />

qual ensina que o ser humano é pior do que pensa ser. Uma vida exuberante<br />

depende exatamente da compreensão da justificação pela fé: o que inclui<br />

perceber o seu pecado e o que Cristo fez em nosso favor. Sem percepção de<br />

nosso pecado há somente escravidão, mas uma percepção de que “estamos<br />

totalmente marcados pelo pecado oferece uma história com sentido para a<br />

nossa existência” (p. 103).<br />

A terceira parte é a segunda dentada, com 36 páginas. O título é Meninada.<br />

O ponto crucial é a questão pedagógica. Os cristãos deveriam acreditar na<br />

educação não porque auferirão algo como prestígio ou conhecimento, ainda que<br />

sejam coisas boas. Os cristãos deveriam acreditar na educação porque o mais<br />

importante é aquele que se dá para que os outros possam ser educados nele.<br />

Aprendemos de Deus e de seu mundo. Por Deus ser a pessoa mais importante<br />

de quem aprendemos, vale a pena ensinar (p. 133-134).<br />

A quarta parte é a terceira dentada, com 27 páginas. O título é Música. O<br />

aspecto fundamental aqui é a questão estética. A musica tornou-se fundamental<br />

para o cristianismo, mas de uma forma diferente. A música nos anos iniciais<br />

da Reforma estava mais preocupada com a mensagem, com a compreensão<br />

do texto bíblico. Assim, a música naquele momento histórico estava menos<br />

preocupada com o contemplar e mais com o cantar (p. 159). O protestantismo<br />

libertou os sentidos a fim de que pudessem ser criativos em todas as esferas.<br />

Ao final de cada dentada o autor propõe uma metralhada de perguntas.<br />

Nem tente achar que é um tipo de estudo dirigido confortável para que você<br />

relembre o que leu. Longe disso. O objetivo de Cavaco é propiciar reflexão para<br />

o caso de você não ter se sentido desconfortável ainda com Lutero!<br />

Pessoalmente, já sabia que a obra de Lutero era vasta. Escritos teológicos,<br />

doutrinários, polêmicos e políticos, além de muitos sermões. Dentre tantas<br />

realizações, creio – mesmo também não sendo um especialista –, que a de maior<br />

importância foi a tradução da Bíblia para o alemão. Esta tarefa foi realizada<br />

durante o seu confinamento pelo eleitor da Saxônia, o príncipe Frederick, no<br />

castelo de Wartburg. Ali Lutero traduziu o Novo Testamento para o alemão.<br />

Ilustrado por Lucas Cranach, foi publicado em 15<strong>22</strong>. A tradução do restante da<br />

Bíblia foi terminada em 1534. A difusão foi rápida e ampla, graças à imprensa,<br />

e contribuiu para o estabelecimento da língua alemã. Muitos eruditos destacam<br />

esse aspecto linguístico, mas lembremos sempre que a Palavra de Deus<br />

180


FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 179-181<br />

não volta vazia, o que torna a Escritura no idioma do povo uma ferramenta de<br />

transformação sem precedentes.<br />

Creio que a segunda obra mais importante foi o seu Breve Catecismo.<br />

Lutero percebeu que o povo da Alemanha vivia uma religião baseada em mérito,<br />

e com muitos ensinos extrabíblicos que obscureciam o ensinamento geral da<br />

Palavra de Deus. Havia fervor religioso, mas pouco ou nenhum conhecimento<br />

da Bíblia. Em resposta a essa necessidade, Lutero escreveu o catecismo, apresentado<br />

em formato de perguntas e respostas. Era um resumo da verdade cristã<br />

que até mesmo as crianças poderiam absorver. Concluído em 1529, cobria os<br />

Dez Mandamentos, o Credo dos Apóstolos, a Oração do Senhor, o batismo,<br />

a confissão, a Ceia do Senhor e as maneiras pelas quais um chefe de família<br />

cristã deveria liderar sua casa.<br />

E a terceira obra que considero mais importante, e que me impactou no<br />

tempo de Seminário, foi o Servo Arbitrio. Lutero continuamente confrontava o<br />

uso que a Igreja fazia da abordagem aristotélica à teologia. Para ele, isso fazia<br />

com que a razão humana fosse exaltada acima das Escrituras. Para combater<br />

esse erro Lutero escreveu o De servo arbitrio, concentrando-se especialmente na<br />

Diatribe, um livro de um sacerdote católico holandês chamado Erasmo. Erasmo<br />

acreditava que a hierarquia da Igreja tinha autoridade sobre a verdade, enquanto<br />

Lutero afirmava que a verdade tem autoridade sobre a Igreja. Erasmo argumentava<br />

que se deveria buscar a paz na Igreja mais do que a verdade, enquanto<br />

Lutero ensinou que a verdade está acima da paz, e que muitas vezes a verdade<br />

pode trazer divisão. Erasmo ensinava que a tradição tinha autoridade sobre as<br />

Escrituras, enquanto Lutero ensinava que a tradição deve se submeter à Escritura.<br />

Foram muitas disputas de Lutero com a Igreja, e as questões de poder<br />

político sempre fizeram parte do processo, mas a verdadeira batalha era sempre<br />

sobre a suficiência e autoridade da Palavra de Deus.<br />

O que eu não sabia ainda era que Tiago Cavaco existia. Por razão diferente<br />

da de João Miguel Tavares, diria: “Cuidado com o Tiago”. João corretamente<br />

olha para o efeito de alguma coisa sobre a vida de Tiago e de sua família, mas<br />

deixa de ver para onde Tiago está apontando: para a suficiência e autoridade<br />

da Palavra de Deus manifesta em Jesus Cristo.<br />

A editora Vida Nova acertou “na mosca” ao entregar esse título ao povo<br />

de Deus. Creio que todo tipo de leitor se beneficiará da obra. Entretanto, alguns<br />

se beneficiarão mais. Por quê? Porque Cavaco consegue “ler” o mundo depois<br />

de ter sido lido pela Escritura. Ele certamente sabe de cor que cada centímetro<br />

quadrado da existência pertence a Cristo, mas para ele não é somente um shibolete<br />

teológico. Ele estabelece relações com as produções culturais antigas,<br />

com as de sua época, além daquelas com o seu cotidiano.<br />

Tiago Cavaco sempre fala de si mesmo como um pregador, e acho que<br />

também testemunhei isso em sua obra. Por isso, diria que ela é de grande valor<br />

para duas áreas específicas: homilética e educação. Salvo melhor juízo, foram<br />

suas melhores reflexões junto com o tal alemão.<br />

181


Excelência e Piedade a Serviço do Reino de Deus<br />

CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO<br />

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Cursos modulares, corpo docente pós-graduado, convênio com instituições internacionais,<br />

biblioteca teológica com mais de 40.000 volumes, acervo bibliográfico<br />

atualizado e informatizado.<br />

Especialização à Distância (EAD)<br />

São três cursos totalmente online: Especialização em Estudos Teológicos (EET), Especialização<br />

em Teologia Bíblica (ETB) e Especialização em Teologia Prática (ETP).<br />

Revitalização e Multiplicação de Igrejas (RMI)<br />

O RMI objetiva capacitar pastores e líderes na condução do processo de restauração<br />

do ministério pastoral, da oração e da expansão da igreja por meio de missões, usando<br />

ferramentas bíblico-teológicas e de outras áreas das ciências.<br />

Mestrado em Divindade (Magister Divinitatis – MDiv)<br />

Trata-se do mestrado eclesiástico do CPAJ. É análogo aos já tradicionais mestrados<br />

profissionalizantes, diferindo, entretanto, do Master of Divinity norte-americano<br />

apenas no fato de que não constitui e nem pretende oferecer a formação básica para<br />

o ministério pastoral. O MDiv do CPAJ não é submetido à avaliação e não possui<br />

credenciamento da CAPES.<br />

Mestrado em Teologia (Sacrae Theologiae Magister – STM)<br />

Esse mestrado acadêmico difere do Magister Divinitatis por sua ênfase na pesquisa<br />

e sua harmonização com os mestrados acadêmicos em teologia oferecidos em universidades<br />

e escolas de teologia internacionais. O STM do CPAJ não é submetido à<br />

avaliação e não possui credenciamento da CAPES.<br />

Doutorado em Ministério (DMin)<br />

O Doutorado em Ministério (DMin) é um curso oferecido em parceria com o Reformed<br />

Theological Seminary (RTS), de Jackson, Mississippi. O programa possui o reconhecimento<br />

da JET/IPB e da Association of Theological Schools (ATS), nos Estados Unidos.<br />

O corpo docente inclui acadêmicos brasileiros, americanos e de outras nacionalidades,<br />

com sólida formação em suas respectivas áreas.<br />

Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper<br />

Rua Maria Borba, 40/44 - Vila Buarque - São Paulo - SP - Brasil - CEP: 01<strong>22</strong>1-040<br />

Telefone: +55 (11) 2114-8644/8759 - Fax +55 (11) 3256-6611<br />

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Nywgraf Editora Gráfica Ltda.

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