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INSTITUTO PRESBITERIANO MACKENZIE<br />
Diretor-Presidente José Inácio Ramos<br />
CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO ANDREW JUMPER<br />
Diretor Mauro Fernando Meister<br />
<strong>Fides</strong> reformata – v. 1, n. 1 (1996) – São Paulo: Editora<br />
Mackenzie, 1996 –<br />
Semestral.<br />
ISSN 1517-5863<br />
1. Teologia 2. Centro Presbiteriano de Pós-Graduação<br />
Andrew Jumper.<br />
CDD 291.2<br />
This periodical is indexed in the ATLA Religion Database, published by the American<br />
Theological Library Association, 250 S. Wacker Dr., 16 th Flr., Chicago, IL 60606, USA,<br />
e-mail: atla@atla.com, www.atla.com.<br />
<strong>Fides</strong> Reformata também está incluída nas seguintes bases indexadoras:<br />
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Francis (www.inist.fr/bbd.php), Ulrich’s International Periodicals Directory<br />
(www.ulrichsweb.com/ulrichsweb/) e Fuente Academica da EBSCO<br />
(www.epnet.com/thisTopic.php?marketID=1&topicID=71).<br />
Editores Gerais<br />
Leandro Antonio de Lima<br />
Daniel Santos Júnior<br />
Editor de resenhas<br />
Filipe Costa Fontes<br />
Redator<br />
Alderi Souza de Matos<br />
Editoração<br />
Libro Comunicação<br />
Capa<br />
Rubens Lima
Igreja Presbiteriana do Brasil<br />
Junta de Educação Teológica<br />
Instituto Presbiteriano Mackenzie
CONSELHO EDITORIAL<br />
Augustus Nicodemus Lopes<br />
Davi Charles Gomes<br />
Heber Carlos de Campos<br />
Heber Carlos de Campos Júnior<br />
Jedeías de Almeida Duarte<br />
João Alves dos Santos<br />
João Paulo Thomaz de Aquino<br />
Mauro Fernando Meister<br />
Valdeci da Silva Santos<br />
A revista <strong>Fides</strong> Reformata é uma publicação semestral do<br />
Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.<br />
Os pontos de vista expressos nesta revista refletem os juízos pessoais dos autores, não<br />
representando necessariamente a posição do Conselho Editorial. Os direitos de publicação<br />
desta revista são do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.<br />
Permite-se reprodução desde que citada a fonte e o autor.<br />
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Editorial<br />
É com grande alegria que apresentamos ao nosso leitor o volume XXII,<br />
n o 1, da revista <strong>Fides</strong> Reformata, dando continuidade a duas décadas de contribuição<br />
ininterrupta à pesquisa teológica na América Latina. Nos últimos anos,<br />
após a decisão de publicar a cada edição um artigo em inglês, <strong>Fides</strong> também<br />
iniciou sua contribuição no cenário mundial. Conheça toda essa contribuição<br />
eletronicamente no site oficial do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew<br />
Jumper e em bancos de dados como ATLA Serials, Fuente Academica, etc.<br />
Nesta edição, o primeiro artigo, “O princípio ético de Provérbios”, de<br />
minha autoria, faz um levantamento do que pode ter sido parte do princípio<br />
ético fundamental por trás das admoestações do livro de Provérbios, tomando<br />
como exemplo as instruções e admoestações referentes aos perigos da sociedade<br />
israelita. Segundo o autor, os perigos são basicamente três: a) as más companhias,<br />
b) a indiferença e c) a promiscuidade. As instruções e admoestações visam<br />
estabelecer uma norma de conduta aceitável, que orienta e regula essa definição<br />
daquilo que é ou não aceitável. O segundo artigo, “O cristão e as idolatrias<br />
políticas”, de Francisco Cauê Cruz de Oliveira Paula, oferece uma proposta<br />
que pode auxiliar os cristãos na tarefa de dialogar com algumas das principais<br />
ideologias políticas da nossa época: liberalismo, marxismo, conservadorismo,<br />
democracia e nacionalismo. Para cumprir tal propósito, o autor correlaciona os<br />
conceitos de ideologia e idolatria, em seguida analisa as principais ideologias<br />
políticas, organizando-as de acordo com os ídolos que ocupam seus altares, e,<br />
finalmente, observa dois aspectos que unem as ideologias políticas, concluindo<br />
que o cristão deve se relacionar criticamente com elas.<br />
O terceiro artigo, “A morte de Jesus Cristo e a oferta do evangelho”,<br />
de Paul Wells, argumenta que a convicção de que a redenção é particular, ou<br />
seja, de que Jesus Cristo morreu para salvar apenas o seu povo e não todos,<br />
não contradiz a oferta universal do evangelho, antes é um poderoso estímulo<br />
para ela. Segundo o autor, a “redenção particular” é o fundamento do anúncio<br />
geral das boas novas. O quarto artigo, “Educação teológica para um ministério<br />
urbano multicultural”, de Valdeci S. Santos, demonstra que, enquanto a<br />
urbanização se mostra uma realidade em cada continente, levando as nações<br />
(panta ta ethne) a se mudarem para as cidades, a igreja ainda precisa fazer essa<br />
transição, intelectual, estratégica e teologicamente. Segundo o autor, a igreja<br />
está despreparada para o ministério na cidade. Sua herança e treinamento teológico<br />
não a equiparam para as exigências da urbanização. Visto que o desafio<br />
urbano não irá desaparecer, os cristãos não podem continuar ficando fora da<br />
cidade. A igreja deve se tornar parte da cidade, integrada na cidade, a fim de<br />
conquistar a cidade para o reino de Deus.
O quinto artigo, “Os hartlibianos e a reforma espiritual e cultural da<br />
Inglaterra seiscentista”, de Vitor Albiero, trata de um grupo reformista inglês,<br />
que, atraído pelos princípios da Reforma Protestante, anelava por uma reforma<br />
completa da Inglaterra do século 17. Os hartlibianos se destacaram entre os<br />
que nutriam a expectativa de que a Inglaterra deveria ocupar o centro mundial<br />
da divulgação do conhecimento, bem como reunir a liderança protestante da<br />
Europa. O sexto e último artigo, “The meaning of μυστήρια in 1 Corinthians<br />
14:2” (o significado de “mistérios” em 1 Coríntios 14.2), de João Paulo Thomaz<br />
de Aquino, contribui para uma melhor compreensão do significado desse<br />
conceito no referido texto. O autor apresenta quatro interpretações diferentes<br />
sobre o tema antes de definir mistério como uma parte do sábio e soberano<br />
plano de Deus referente ao eschaton, o qual esteve presente de forma parcial<br />
e oculta no Antigo Testamento, mas foi revelado segundo a vontade de Deus<br />
no Novo Testamento. A grande novidade, segundo o autor, é que o conceito<br />
de mistério foi revelado por meio do dom de línguas.<br />
A seção de resenhas traz avaliações de obras relevantes para o contexto<br />
atual da igreja. São elas: O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a<br />
origem da humanidade e a leitura de Gênesis, de John Walton, resenhado por<br />
André Leonardo Venâncio; Teologia puritana: doutrina para a vida, de Joel R.<br />
Beeke e Mark Jones, resenhado por Alan Rennê Alexandrino Lima; A verdade:<br />
como comunicar o evangelho a um mundo pós-moderno, de Donald A. Carson<br />
(org.), resenhado por Emilio Garofalo Neto; Presbiterianos x pentecostais: a<br />
reação da Igreja Presbiteriana do Brasil ao advento do pentecostalismo em<br />
Pernambuco (1920-1930), de José Roberto de Souza, resenhado por Alderi<br />
Souza de Matos, e Procurei Alá, encontrei Jesus: um muçulmano piedoso<br />
abraça o evangelho, de Nabeel Qureshi, resenhado por Robson Rosa Santana.<br />
Mantendo o compromisso da revista em proporcionar e incentivar uma<br />
reflexão teológica reformada, entrego aos leitores mais uma edição de <strong>Fides</strong><br />
Reformata, desejoso de que estes artigos e resenhas despertem mais uma vez<br />
o interesse por pesquisas que visam contribuir para a edificação do povo de<br />
Deus, servindo sua igreja ao redor do mundo.<br />
Boa leitura!<br />
Dr. Daniel Santos<br />
Editor Geral
Sumário<br />
Artigos<br />
O princípio ético de Provérbios<br />
Daniel Santos................................................................................................................................. 9<br />
O cristão e as idolatrias políticas<br />
Francisco Cauê Cruz de Oliveira Paula....................................................................................... 25<br />
A morte de Jesus Cristo e a oferta do evangelho<br />
Paul Wells...................................................................................................................................... 45<br />
Educação teológica para um ministério urbano multicultural<br />
Valdeci S. Santos............................................................................................................................ 63<br />
Os hartlibianos e a reforma espiritual e cultural da Inglaterra seiscentista<br />
Vitor Albiero................................................................................................................................... 71<br />
The meaning of Mυστήρια in 1 Corinthians 14:2<br />
João Paulo Thomaz de Aquino...................................................................................................... 103<br />
Resenhas<br />
O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade<br />
e a leitura de Gênesis (John Walton)<br />
André Leonardo Venâncio.............................................................................................................. 119<br />
Teologia puritana: doutrina para a vida (Joel R. Beeke e Mark Jones)<br />
Alan Rennê Alexandrino Lima....................................................................................................... 129<br />
A verdade: como comunicar o evangelho a um mundo pós-moderno<br />
(D. A. Carson)<br />
Emilio Garofalo Neto..................................................................................................................... 137<br />
Presbiterianos x pentecostais: a reação da Igreja Presbiteriana do Brasil<br />
ao advento do pentecostalismo em Pernambuco (1920-1930)<br />
(José Roberto de Souza)<br />
Alderi Souza de Matos................................................................................................................... 145<br />
Procurei Alá, encontrei Jesus: um muçulmano piedoso abraça o evangelho<br />
(Nabeel Qureshi)<br />
Robson Rosa Santana.................................................................................................................... 149
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23<br />
O Princípio Ético de Provérbios<br />
Daniel Santos *<br />
RESUMO<br />
O livro de Provérbios está repleto de instruções e admoestações que visam<br />
estabelecer uma norma de conduta aceitável. A definição daquilo que é ou não<br />
aceitável no livro acaba sugerindo a presença de um princípio ético fundamental<br />
que orienta e regula essa decisão. O presente artigo faz um levantamento do que<br />
pode ter sido parte desse princípio ético fundamental, tomando como exemplo<br />
as instruções e admoestações referentes aos perigos da sociedade israelita.<br />
Segundo o autor, os perigos são basicamente três: a) as más companhias, b) a<br />
indiferença e c) a promiscuidade.<br />
PALAVRAS-CHAVE<br />
Livro de Provérbios; Ética em Provérbios; Más companhias; Indiferença;<br />
Promiscuidade.<br />
INTRODUÇÃO<br />
A literatura sapiencial encontrada no livro de Provérbios é construída<br />
sob um princípio ético fundamental que orienta e regula suas comparações,<br />
admoestações e instruções. Essa tese vale tanto para os provérbios e instruções<br />
que são atribuídos a Salomão, como aos demais sábios que cooperam no livro;<br />
todos parecem estar indubitavelmente conscientes de um princípio ético que<br />
atua como elemento controlador. Este artigo visa demonstrar como podemos<br />
perceber esse princípio no texto de Provérbios.<br />
* O autor é professor de Antigo Testamento no CPAJ desde 2007. É mestre em Teologia Exegética<br />
(Th.M., 2001) pelo Covenant Theological Seminary e doutor em Estudos Teológicos no Antigo Testamento<br />
(Ph.D., 2006) pela Trinity Evangelical Divinity School. Seus estudos pós-doutorais (Wycliffe<br />
Hall, Oxford, Inglaterra) trataram da literatura sapiencial do Antigo Testamento. É autor de diversos<br />
artigos e publicou recentemente seu comentário sobre o livro de Jó.<br />
9
DANIEL SANTOS, O PRINCÍPIO ÉTICO DE PROVÉRBIOS<br />
Para nossa tristeza, o livro de Provérbios não revela nem comenta detalhadamente<br />
esse princípio ético fundamental de forma explícita. A declaração<br />
consagrada de que o temor do Senhor é o princípio da sabedoria não explica<br />
tudo o que comumente é atribuído a esse texto. Para usarmos esse conceito,<br />
precisaríamos definir o que o temor do Senhor significava na literatura sapiencial<br />
e, mais especificamente, em Provérbios. Essa é uma tarefa dificultada pela<br />
afirmação no próprio livro de que o temor do Senhor consiste em “aborrecer<br />
o mal; a soberba, a arrogância, o mau caminho e a boca perversa” (8.13). A<br />
dificuldade com isso é a seguinte: como esses elementos podem juntos produzir<br />
o conhecimento sapiencial contido no livro? Isso não está claro e nem é fácil<br />
de ser demonstrado. Além disso, será que podemos usar a palavra princípio<br />
(1.7) como equivalente à noção de “elemento arquétipo, causa primeira” ou<br />
“a proposição lógica fundamental sobre a qual se apoia um raciocínio”? O<br />
livro de Provérbios não foi escrito para responder esse tipo de investigação;<br />
ele não apresenta uma seção especial que trata da metodologia aplicada na<br />
composição dos provérbios, nem do princípio epistemológico que governa e<br />
valida o conhecimento apresentado no livro.<br />
Entretanto, uma leitura do texto de Provérbios como hoje ele se encontra<br />
nas Escrituras produz rapidamente a percepção de que é possível delinear alguns<br />
pontos básicos presentes nesse princípio controlador. Por isso, a abordagem<br />
adotada neste estudo será dedutiva, mas uma dedução informada pela teologia<br />
bíblica de Provérbios e da literatura sapiencial do Antigo Testamento.<br />
1. PROPOSTAS DE PRINCÍPIO ÉTICO FUNDAMENTAL<br />
Uma das características distintivas do livro de Provérbios, quando comparado<br />
com a literatura sapiencial de outros povos, é a atenção que ele dedica<br />
à sabedoria em si. 1 É muito comum encontrar textos do mundo antigo que<br />
oferecem instruções de sabedoria, mas é raro encontrar textos que tratam a<br />
respeito da sabedoria, definindo-a e qualificando-a. 2 Tal constatação deve ser<br />
celebrada; isso é um bom sinal e vários estudiosos já fizeram uso dessa janela<br />
oferecida pelo estilo peculiar de Provérbios. Fox, por exemplo, enumera quatro<br />
tópicos que são recorrentes na literatura sapiencial do Antigo Testamento, mas<br />
quase nunca são encontrados nos textos de outras nações ao redor de Israel:<br />
“A identificação da sabedoria com a justiça, a identificação da sabedoria com<br />
a piedade, o louvor dirigido diretamente à sabedoria e a exigência de amar<br />
1 WEEKS, Stuart. Early Israelite Wisdom. Oxford; New York: Clarendon Press; Oxford University<br />
Press, 1994, p. 17.<br />
2 WEEKS, Stuart. An Introduction to the Study of Wisdom Literature. London; New York: T & T<br />
Clark, 2010, p. 46; WEEKS, Stuart. Instruction and Imagery in Proverbs 1-9. Oxford; New York: Oxford<br />
University Press, 2007, p. 13.<br />
10
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23<br />
e buscar a sabedoria”. 3 Garret, por outro lado, reconhece o modo característico<br />
da ética em Provérbios, mas não a considera sem precedente no mundo<br />
antigo. 4 Dentre os temas mais utilizados para avaliar a singularidade da ética<br />
fundamental de Provérbios estão: o papel da mulher adúltera, 5 as palavras dos<br />
sábios (<strong>22</strong>.17–24.<strong>22</strong>) 6 e as instruções dirigidas aos filhos (1.7–9.18). 7<br />
A proposta apresentada no presente estudo adota a sugestão de Fox<br />
como ponto de partida, crendo que tanto as semelhanças como as diferenças<br />
podem atestar a singularidade do princípio ético fundamental de Provérbios.<br />
Até mesmo Fox, quando analisando as grandes similaridades entre a ética de<br />
Provérbios e a dos escritos de Sócrates, afirma corretamente que ambos têm<br />
como objetivo ensinar ao jovem conhecimento e bom siso, porém os métodos<br />
para alcançar tal objetivo são radicalmente diferentes. 8 Desta forma, proponho<br />
que o princípio ético fundamental de Provérbios é melhor observado quando<br />
analisado a partir dos perigos com os quais tal ética pretende interagir.<br />
2. A ÉTICA DE PROVÉRBIOS E OS PERIGOS DA SOCIEDADE<br />
ISRAELITA<br />
A expressão “ética de Provérbios” não deve ser entendida nem como<br />
um produto da opinião dos pais que instruem o filho no livro, nem dos sábios<br />
que participaram da composição do mesmo, mas sim como a ética de Deus<br />
manifestada no livro. As advertências dirigidas aos filhos, especialmente nos<br />
primeiros nove capítulos do livro, mas também aos “simples” e aos “jovens”<br />
de modo geral, são advertências que refletem um princípio ético divino.<br />
Há varias maneiras de fundamentar essa afirmação, mas uma visão geral<br />
da estrutura do livro pode ser a mais adequada no momento. Provérbios é um<br />
livro composto basicamente de duas partes. A primeira parte (caps. 1-9) contém<br />
admoestações que se assemelham mais a sermões ou instruções. Nessa<br />
primeira parte, não encontraremos os provérbios de uma sentença apenas, por<br />
exemplo, “O coração do homem pode fazer planos, mas a resposta certa dos<br />
lábios vem do Senhor” (Pv 16.1). Este tipo de provérbio está praticamente<br />
restrito à segunda parte do livro (caps. 10-29). A primeira parte, então, aborda<br />
3 FOX, Michael V. “Ethics and Wisdom in the Book of Proverbs”, Hebrew Studies 48, no. 1<br />
(2007): 75.<br />
4 GARRETT, Duane A. Proverbs, Ecclesiastes, Song of Songs, vol. 14 (Nashville: Broadman &<br />
Holman Publishers, 1993), p. 21.<br />
5 ALETTI, Jean Noel. “Seduction Et Parole En Proverbes I-Ix”, Vetus testamentum 27, no. 2<br />
(1977).<br />
6 EMERTON, J. A. Emerton, “The Teaching of Amenemope and Proverbs Xxii 17 – Xxiv <strong>22</strong>:<br />
Further Reflections on a Long-Standing Problem”, Vetus testamentum 51, no. 4 (2001).<br />
7 WEEKS, Instruction and Imagery in Proverbs 1-9.<br />
8 FOX, “Ethics and Wisdom in the Book of Proverbs”, p. 77.<br />
11
DANIEL SANTOS, O PRINCÍPIO ÉTICO DE PROVÉRBIOS<br />
os perigos da sociedade de uma forma pedagogicamente diferente daquilo que<br />
encontraremos no restante do livro. Esta é uma observação importante de ser<br />
considerada porque, mesmo não encontrando em Provérbios uma advertência<br />
nos moldes dos Dez Mandamentos, as advertências aqui contidas não são de<br />
valor relativo.<br />
Uma boa maneira de entender a finalidade dessa seção inicial de nove<br />
capítulos é compará-la com um cenário construído para que os demais provérbios<br />
que são menores pudessem ser entendidos em contexto. Embora a<br />
impressão inicial de uma leitura dos provérbios da primeira seção do livro<br />
seja semelhante à de ler ou ouvir um slogan em um comercial de TV, com<br />
uma mensagem curta e atrativa, a impressão daqueles que leram estes provérbios<br />
na época em que foram escritos foi bem diferente. Os provérbios não<br />
são slogans e não devem ser lidos nem interpretados de maneira desconexa<br />
com a coleção na qual estão inseridos. Por exemplo, quando Pv 30.18 afirma<br />
“tal é o caminho da mulher adúltera: come, e limpa a boca, e diz ‘não cometi<br />
maldade’”, o leitor original do livro já sabia de antemão que essa atitude<br />
devia ser entendida em relação ao cenário da mulher adúltera descrito na primeira<br />
parte do livro (Pv 2.16-<strong>22</strong>; 5.1-23; 6.20-35; 7.1-27; 9.13-18). Quando<br />
uma citação abreviada é feita sobre o assunto (como é o caso de Pv 30.18), a<br />
sua compreensão requer uma conexão imediata com o contexto maior criado<br />
pelos cenários anteriores. Assim, proponho que o pano de fundo conceitual<br />
dos provérbios encontrados na segunda parte do livro (10-29) são os cenários<br />
temáticos encontrados na primeira parte (1-9). 9<br />
Destarte, prossigo ilustrando o modo como o princípio ético fundamental<br />
de Provérbios lida com três tipos de problemas. A escolha desses temas é<br />
aleatória, já que existe uma quantidade bem maior de temas tratados no livro.<br />
2.1 O princípio ético de Provérbios e o perigo das más<br />
companhias<br />
O livro de Provérbios visa despertar o interesse de uma geração jovem<br />
para o valor da sabedoria que procede de Deus e, para atingir este objetivo,<br />
seu princípio ético entra em ação. É possível perceber nas palavras dos pais<br />
e também da “mulher sabedoria” (os agentes responsáveis em promover o<br />
princípio ético) que a tarefa não é simples. Muitos jovens estão divididos entre<br />
os valores da sociedade em que vivem e os valores eternos embutidos nesta<br />
caminhada em busca da sabedoria proveniente dos céus. As más companhias<br />
desempenham um papel importante na decisão do jovem quanto àquilo que<br />
9 A esse respeito, ver também: WALTKE, Bruce. The Way of Wisdom: Essays in Honor of Bruce<br />
K. Waltke. Grand Rapids, MI: Zondervan, 2000, p. 23; WALTKE, Bruce. The Book of Proverbs: Chapters<br />
15-31. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2005, p. 198.<br />
12
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23<br />
irá valorizar como indispensável. Pensemos um pouco no perfil desse jovem<br />
e no papel que as más companhias têm nesse processo.<br />
2.1.1 Quem é o jovem em risco?<br />
Se tivermos que construir um perfil desse jovem a partir das preocupações<br />
que o seu pai e a sua mãe têm a seu respeito, algumas coisas sobressaem.<br />
Primeiro, havia a preocupação com a aparente aventura associada com o estilo<br />
de vida desses amigos (Pv 1.8-19). A julgar pela quantidade de argumentos<br />
dedicados a esse ponto, os jovens daqueles dias poderiam com muita facilidade<br />
estar se envolvendo com situações semelhantes àquelas descritas em Provérbios.<br />
Os jovens daqueles dias, a semelhança dos de hoje, andavam ávidos<br />
por um estilo de vida recheado de aventuras e desafios. Consequentemente,<br />
os pais estavam conscientes do poder sedutor do estilo de vida comum entre os<br />
jovens daquela sociedade: “Filho meu, se pecadores querem te seduzir, não o<br />
consintas” (Pv 1.10). Segundo, ainda como parte dessa mesma preocupação, os<br />
pais estão cientes de que esse processo de sedução começa com uma simples<br />
caminhada com eles: “Filho meu, não te ponhas a caminho com eles; guarda<br />
das suas veredas os pés” (Pv 1.15). Se esses pais estão preocupados com esse<br />
processo de acomodação cultural do seu filho nos caminhos da sociedade, é<br />
possível que a rotina dos jovens naqueles dias e desse jovem em particular<br />
fosse repleta de oportunidades para compartilhamento mútuo de valores. É<br />
exatamente por causa dessa possibilidade real que seus pais investem na preparação<br />
do seu filho para poder resistir à pressão dos companheiros nos dias<br />
da sua vida adulta.<br />
2.1.2 Qual o papel dessas más companhias?<br />
No cenário inicial descrito em Pv 2.8-19, o papel das más companhias<br />
é o de convencer o jovem a deixar o seu caminho e unir-se ao expediente de<br />
bandidagem e homicídio do grupo. 10 O desafio desses maus companheiros é<br />
fazer o jovem desviar-se do seu caminho por meio de propostas que consideram<br />
o caminho mau mais atraente. Na segunda seção do livro, podem-se ver alguns<br />
exemplos do modo como a ideia de caminho é fundamental para entendermos<br />
o que esses perversos estão buscando.<br />
Exemplo 1. “Quem anda em integridade anda seguro, mas o que perverte<br />
os seus caminhos será conhecido” (Pv 10.9). Nesse exemplo o provérbio confronta<br />
a proposta dos maus amigos mostrando que a segurança está disponível<br />
apenas para os que andam em integridade. Aquilo que os pecadores estavam<br />
10 Ver DELL, Katharine J. “Proverbs 1-9: Issues of Social and Theological Context”. Interpretation<br />
63, no. 3 (2009): 230-31; WHYBRAY, Roger N. “The Structure and Ethos of the Wisdom Admonitions<br />
in Proverbs”. Expository Times 94, no. 5 (1983): 148; FOX, Michael V. Proverbs 1-9: A New Translation<br />
with Introduction and Commentary. Anchor Bible. New York: Doubleday, 2000.<br />
13
DANIEL SANTOS, O PRINCÍPIO ÉTICO DE PROVÉRBIOS<br />
propondo ao jovem no capítulo 2.8-19 não apresenta o lado da insegurança<br />
inerente ao caminho que eles promovem. Exemplo 2. “O que anda na retidão<br />
teme ao Senhor, mas o que anda em caminhos tortuosos, esse o despreza”<br />
(Pv 14.2). Nesse exemplo o provérbio estabelece uma relação direta entre a<br />
caminhada de um jovem e o seu relacionamento com o Senhor. Desprezo é<br />
a palavra usada para definir essa relação. Não há como andar pelos caminhos<br />
dos pecadores e deixar de ignorar o Senhor. Nossa caminhada diária inevitavelmente<br />
se constitui numa ação de desprezo ou de louvor ao Senhor que nos<br />
criou; não há uma alternativa intermediária. Exemplo 3. “Há caminho que ao<br />
homem parece direito, mas ao cabo dá em caminhos de morte” (Pv 14.12).<br />
Nesse exemplo vemos que a definição daquilo que é chamado “caminho direito”<br />
depende de uma observação completa de tudo o que está envolvido nele.<br />
Não basta olhar apenas para as aventuras pontuais que acontecem em alguns<br />
momentos da jornada; é preciso olhar para o final dela. Isso também não foi<br />
mostrado na proposta dos maus amigos no capítulo 2. Exemplo 4. “O infiel de<br />
coração dos seus próprios caminhos se farta, como do seu próprio proceder,<br />
o homem de bem” (Pv 14.14). Neste exemplo vemos um princípio definidor<br />
daquilo que escolheremos: o que satisfaz a minha alma? A escolha em ouvir<br />
ou recusar a proposta dos maus amigos vai depender muito daquilo em que a<br />
alma encontra prazer e deleite. Exemplo 5. “Todos os caminhos do homem são<br />
puros aos seus olhos, mas o Senhor pesa o espírito” (Pv 16.2). Esse exemplo<br />
complementa a ideia do exemplo 3. A avaliação que fazemos do caminho em<br />
que outros andam ou em que nós pretendemos andar precisa ser feita pelo<br />
Senhor, pois só ele pesa os corações. Esse tipo de auditoria só pode ser executada<br />
por aquele que nos criou. Exemplo 6. “Há caminho que parece direito ao<br />
homem, mas afinal são caminhos de morte” (Pv 16.25). Esse exemplo reforça<br />
ainda mais a tese defendida pelos exemplos 3 e 5, enfatizando o preço oculto<br />
que deve ser pago pelos que optam por trilhar a jornada dos ímpios. Esse provérbio<br />
reflete bem o cenário descrito no capítulo 2 de Provérbios, pois o plano<br />
dos pecadores era tirar a vida de pessoas inocentes, mas tal proeza acabava<br />
custando a própria vida deles.<br />
Em resumo, o perigo apresentado pelas más companhias está relacionado<br />
com a capacidade que elas têm de interferir na maneira como o jovem<br />
valoriza ou não a busca da sabedoria. O perigo maior de andar com eles não é<br />
por causa dos crimes que eles cometem, mas principalmente porque eles poderão<br />
tirar do jovem a oportunidade de experimentar a caminhada com Deus.<br />
Diante disso, a proposta de Provérbios é de que um jovem justo, ao invés dos<br />
pecadores, seja quem guie o seu companheiro (cf. Pv 12.26: “O justo serve<br />
de guia para o seu companheiro, mas o caminho dos perversos os faz errar”).<br />
Em outra ocasião, Provérbios demonstra que aquele que anda com sábios será<br />
sábio (cf. Pv 13.20: “Quem anda com os sábios será sábio, mas o companheiro<br />
dos insensatos se tornará mau”). Observe que neste caso o oposto de sábio<br />
14
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23<br />
não é tolo, mas “mau”, ou seja, os que não andam com os sábios se tornarão<br />
mais do que tolos ou insensatos, mas homens “maus”. Por fim, o maior perigo<br />
que Provérbios apresenta nesse assunto é o aliciamento do jovem que deseja<br />
andar nos caminhos do Senhor (cf. Pv 16.29: “O homem violento alicia o seu<br />
companheiro e guia-o por um caminho que não é bom”).<br />
Como Provérbios pretende minimizar ou impedir esse aliciamento? Será<br />
que os pais desse jovem de Provérbios acreditam na possibilidade de criar<br />
um filho ou filha num contexto em que eles não serão aliciados pelo “homem<br />
violento”? A linguagem de provérbios para tratar desse assunto é preventiva,<br />
ou seja, ela parte do pressuposto de que o filho ou a filha ainda estão sob a<br />
tutela dos pais e não foram corrompidos pela proposta do “homem violento”.<br />
Provérbios não adota a postura de proibição em termos semelhantes aos dos<br />
Dez Mandamentos. Em vez de determinar como mandamento inquestionável<br />
que o filho não andará na companhia dos ímpios, a linguagem do autor de<br />
Provérbios apresenta as admoestações dos pais na forma de um convite motivacional,<br />
carregado com o profundo desejo de que o jovem ouça o que é dito.<br />
2.2 O princípio ético de provérbios e o perigo da indiferença<br />
O princípio ético fundamental considera a indiferença, que se manifesta<br />
na forma de escárnio ou desprezo, como um perigo mais sério do que a incredulidade.<br />
Desde o início do livro, Provérbios contrapôs o temor do Senhor 11 com<br />
o “desprezo” e não com a incredulidade: “O temor do Senhor é o princípio do<br />
conhecimento, mas os ímpios desprezam a sabedoria e a disciplina” (Pv 1.7). 12<br />
No primeiro discurso da sabedoria (Pv 1.20-33), o desprezo é apresentado e<br />
confrontado como um subproduto do escárnio; eles preferem escarnecer a dar<br />
ouvidos aos conselhos da sabedoria: “Até quando, ó néscios, amareis a necedade?<br />
E vós, escarnecedores, desejareis o escárnio? E vós, loucos, aborrecereis<br />
o conhecimento?” (Pv 1.<strong>22</strong>). 13<br />
Em Provérbios, o zombador é aquele contra quem a sabedoria se coloca<br />
no dia da calamidade: “Mas, porque clamei, e vós recusastes; porque estendi<br />
a mão, e não houve quem atendesse; antes, rejeitastes todo o meu conselho e<br />
não quisestes a minha repreensão; também eu me rirei na vossa desventura,<br />
e, em vindo o vosso terror, eu zombarei” (Pv 1.24-26). O zombador é alguém<br />
que não merece sequer ser corrigido: “Quem corrige o zombador traz sobre si<br />
11 SCHWÁB, Zóltan. “Is Fear of the Lord the Source of Wisdom or Vice Versa?”. Vetus Testamentum<br />
63, no. 4 (2013): 652-62.<br />
12 WALTKE, Bruce K. “Righteousness in Proverbs”. The Westminster Theological Journal 70,<br />
no. 2 (2008): <strong>22</strong>5-37; JOHNSON, John E. “An Analysis of Proverbs 1:1-7”. Bibliotheca Sacra 144, no. 576<br />
(1987): 429-30.<br />
13 Há muito que ainda precisamos descobrir sobre a estratégia de educação no mundo antigo. Ver<br />
a discussão em CRENSHAW, James L. “Education in Ancient Israel”. Journal of Biblical Literature 104,<br />
no. 4 (1985): 610.<br />
15
DANIEL SANTOS, O PRINCÍPIO ÉTICO DE PROVÉRBIOS<br />
insulto” (Pv 9.7), ou “não repreenda o zombador, caso contrário ele o odiará”<br />
(Pv 9.8). O zombador é alguém que não vê nenhum sentido em reparar o<br />
pecado cometido, pois a sua atitude de zombaria é intencional e não acidental<br />
(Pv 14.9). O zombador é alguém comumente alterado pelos efeitos do vinho<br />
ou da bebida forte (Pv 20.1). O zombador tem um estilo de vida característico:<br />
“O vaidoso e arrogante chama-se zombador; ele age com extremo<br />
orgulho” (Pv 21.24). O zombador é visto em Provérbios como a fonte das<br />
brigas e contendas: “Quando se manda embora o zombador, a briga acaba;<br />
cessam as contendas e os insultos” (Pv <strong>22</strong>.10). O zombador interfere na vida<br />
de uma cidade: “Os zombadores agitam a cidade, mas os sábios apaziguam”<br />
(Pv 29.8). Os zombadores serão severamente punidos, especialmente quando<br />
a sua zombaria é dirigida aos pais: “Os olhos de quem zomba do pai, e, zombando,<br />
nega obediência à mãe, serão arrancados pelos corvos do vale, e serão<br />
devorados pelos filhotes do abutre” (Pv 28.17).<br />
Veja, então, que a atitude de desprezo em Provérbios é alimentada por um<br />
espírito de zombaria e não apenas por um gesto passivo de indiferença. É contra<br />
esse tipo de atitude que o princípio ético fundamental de Provérbios dedica uma<br />
parte considerável de sua atenção, pois a zombaria se propaga e contamina as<br />
pessoas rapidamente. Para os pais deste jovem em Provérbios, a zombaria não<br />
deve ser encarada como uma brincadeira ou uma atitude descontraída com a vida,<br />
mas sim como um estilo de vida que alimenta e promove a indiferença para<br />
com as virtudes da sabedoria proveniente de Deus. É precisamente por causa<br />
dessa indiferença que a zombaria é encarada com seriedade, como sendo um<br />
dentre os fatores mais cotados que desviam os filhos dos caminhos do Senhor.<br />
2.3 O princípio ético de Provérbios e o perigo da promiscuidade<br />
Uma quantidade considerável das instruções contidas na primeira parte do<br />
livro de Provérbios (capítulos 1–9) trata do perigo real e iminente da promiscuidade.<br />
Dos 248 versículos contidos nessa primeira parte de Provérbios, 72<br />
tratam do tema da promiscuidade, ou seja, 29% das instruções e admoestações<br />
são dedicados a esse tema.<br />
A primeira seção que discute a promiscuidade apresenta aquela que tenta<br />
dissuadir o jovem de seu interesse nos conselhos e convites da sabedoria – a<br />
mulher adúltera (2.16-<strong>22</strong>). 14 Ela aparece como parte da instrução dos pais, os<br />
14 Há vários estudos sobre esse tema: MURPHY, Roland E. “Wisdom and Eros in Proverbs 1-9”.<br />
The Catholic Biblical Quarterly 50, no. 4 (1988): 600-03; ESTES, Daniel J. “What Makes the Strange<br />
Woman of Proverbs 1-9 Strange?”. In: Ethical and Unethical in the Old Testament: God and Humans<br />
in Dialogue. New York: T & T Clark, 2010, p. 151-69; SHUPAK, Nili. “Female Imagery in Proverbs<br />
1-9 in the Light of Egyptian Sources”. Vetus Testamentum 61, no. 2 (2011); WALTKE, Bruce K. “Lady<br />
Wisdom as Mediatrix: An Exposition of Proverbs 1:20-33”. Presbyterion 14, no. 1 (1988): 1-15;<br />
GARRETT, Duane A. “Votive Prostitution Again: A Comparison of Proverbs 7:13-14 and 21:28-29”.<br />
Journal of Biblical Literature 109, no. 4 (1990): 681-82.<br />
16
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23<br />
quais incentivam o jovem a buscar a sabedoria. Essa personagem chamada<br />
mulher adúltera é cuidadosamente descrita com os seguintes qualificativos:<br />
a) sua origem: ela é estrangeira (2:16), b) sua maior habilidade: ela é conhecida<br />
pela sua capacidade de lisonjear (2.16), c) seu histórico: ela abandona os<br />
amigos de sua mocidade (2.17) e d) seu compromisso religioso: ela se esquece<br />
da aliança feita com seu Deus (2.17). Segundo a instrução dos pais, o envolvimento<br />
com esse tipo de mulher é uma caminhada sem volta (“todos os que se<br />
dirigem a essa mulher não voltarão” [v. 19]), além de ser um envolvimento que<br />
compromete o pleno exercício do discernimento (“todos os que se dirigem a<br />
essa mulher não atinarão com as veredas da vida” [v. 19]). Ora, é evidente que<br />
a posição dos pais reflete um princípio ético fundamental, pois a justificativa<br />
apresentada por eles vai além de uma mera observação das consequências imediatas:<br />
“porque sua casa [ou seja, da mulher adúltera] se inclina para a morte,<br />
e suas veredas, para o reino das sombras da morte” (2.18). Na cultura israelita<br />
do Antigo Testamento, que era regulada pelas leis mosaicas, o adultério era<br />
considerado um crime hediondo e punido com a morte. Esses pais, todavia,<br />
falam do “reino das sombras da morte”, apontando para um conceito moral<br />
que subjaz às penas previstas na lei mosaica. Ao fazer isso, os contornos do<br />
princípio ético começam a aparecer.<br />
A segunda seção que trata do tema da promiscuidade dedica um capítulo<br />
inteiro para descrever o perigo da mulher adúltera (5.1-23). A diferença entre<br />
essa seção e a anterior é o contexto em que a instrução apresenta o caso. Anteriormente<br />
o tema apareceu como parte de um assunto distinto; nesse capítulo<br />
ele aparece como o principal assunto, além de descrever a mulher adúltera<br />
em seu contexto mais amplo. Os perigos apresentados nesse novo cenário em<br />
relação à mulher adúltera são dois: a) seus lábios (5.3-4) e b) seus pés (5.5-6).<br />
À semelhança do que ocorreu no caso anterior, a justificativa apresentada<br />
pelos pais pressupõe um princípio ético fundamental que subjaz uma mera<br />
avaliação de consequências imediatas: “Os seus pés descem à morte; os seus<br />
passos conduzem-na ao inferno” (5.5). O envolvimento com essa mulher trará<br />
graves prejuízos: a) à honra: “para que não dês a outrem a tua honra” (5.9),<br />
b) aos bens: “para que dos teus bens não se fartem os estranhos” (5.10), c) ao<br />
corpo: “e gemas no fim de tua vida, quando se consumirem a tua carne e<br />
o teu corpo” (5.11). No âmbito espiritual, os prejuízos são: a) desprezo pela<br />
disciplina (5.12), b) desprezo pelos mestres (5.13) e c) desprezo pela congregação<br />
do povo de Deus (5.14).<br />
A terceira seção que trata do tema da promiscuidade avalia o perigo do<br />
ponto de vista daquele que se envolve com a mulher adúltera, que aqui também<br />
é chamada de “mulher vil” e “mulher alheia” (6.20-35). Se, por um lado,<br />
essa mulher pode ludibriar o jovem por meio de suas palavras suaves, por<br />
outro lado o próprio jovem pode também agir ativamente na construção desse<br />
envolvimento de duas maneiras: a) cobiçando a beleza da mulher adúltera e<br />
17
DANIEL SANTOS, O PRINCÍPIO ÉTICO DE PROVÉRBIOS<br />
b) flertando com ela (6.25). Nesse caso específico, a admoestação dos pais<br />
revela que o princípio ético fundamental era alimentado pela lei de Deus,<br />
pois os castigos apresentados são fundamentados nela. A linguagem utilizada<br />
em Provérbios de “se chegar à mulher do próximo” (6.29) é um reflexo das<br />
regulamentações encontradas em Levítico 20.10.<br />
A quarta seção que trata do tema da promiscuidade descreve a mulher<br />
adúltera em ação (7:1-27). Ela é uma mulher casada, seu marido viajou e não<br />
retornará em breve. Ela aproveita o período de ausência para iniciar suas aventuras<br />
de adultério com os que passam pela rua. É crucial entendermos que o<br />
perigo apresentado no livro é o de uma pessoa mais velha que tenta explorar a<br />
inocência de um jovem que ainda não experimentou um relacionamento conjugal<br />
em toda a sua plenitude. Isso significa que o jovem está em desvantagem<br />
nessa comparação. Ele é aquele que é visto como a presa no experimento amoroso<br />
da mulher que tem planos adúlteros. A descrição das artimanhas da mulher<br />
adúltera aqui resume muito do que já havia sido mencionado anteriormente,<br />
especialmente o poder persuasivo de suas palavras. Mais do que em qualquer<br />
outra parte do livro, nessa instrução do capítulo 7 temos uma amostra detalhada<br />
do tipo de argumento que torna suas palavras persuasivas. A admoestação<br />
dos pais para se distanciar dela está fundamentada, como nos outros casos,<br />
num princípio ético fundamental, o qual pode ser deduzido da justificativa<br />
apresentada: “porque a muitos feriu e derribou; e não são poucos os que por<br />
ela foram mortos. A sua casa é caminho para a sepultura (lit. sheol ) e desce<br />
para as câmaras da morte” (7.26-27). Essa justificativa já foi apresentada em<br />
2.18, mostrando que o princípio ético em Provérbios não é alimentado apenas<br />
pelo senso comum, mas por conceitos teológicos que consideram a existência<br />
humana diante dos olhos de Deus.<br />
A última seção que trata do tema da promiscuidade nos capítulos 1-9<br />
de Provérbios consiste de um breve relato da mulher apaixonada (9.13-18).<br />
Em primeiro lugar, é preciso entender corretamente o significado do termo<br />
hebraico traduzido como “apaixonada”. A versão corrigida opta pela palavra<br />
“alvoroçada”. O mesmo acontece com versões em outras línguas: “loud”<br />
(ESV), “alborotadora” (Reina-Valera 1969), “unruly” (NIV). É provável que<br />
a melhor tradução seja mesmo aquela que explora a questão da inquietação<br />
e do barulho, e não o termo “apaixonada”. Tanto em Provérbios 9.13 como<br />
em 7.11, o conceito está associado a um contexto que não permite optar pela<br />
tradução “apaixonada”. No contexto dessa última seção, a ideia de ser barulhenta<br />
e alvoroçada combina melhor com o alvo da narrativa, pois essa mulher<br />
está assentada à porta da cidade para falar aos que passam. Mais uma vez,<br />
o conteúdo da proclamação dessa mulher assentada no alto da cidade revela o<br />
mesmo princípio ético fundamental, pois as justificativas envolvem a morte<br />
e o inferno: “Eles [os que ouvem a mulher], porém, não sabem que ali estão<br />
os mortos, que os seus convidados estão nas profundezas do inferno” (9.18).<br />
18
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23<br />
Como os pais planejam implementar o princípio ético nesse cenário<br />
permeado pelos perigos da promiscuidade? A abordagem adotada pelos pais é<br />
dupla: eles prometem ensinar ao jovem o caminho e a oportunidade para entender<br />
o temor do Senhor e, além disso, a oportunidade de achar o conhecimento<br />
de Deus (Pv 2.5). O maior desafio dessa oferta é basicamente o interesse que<br />
o jovem manifesta por aquilo que está sendo oferecido, ou seja, a oferta dos pais<br />
parece inicialmente sem qualquer atrativo para o jovem. Por que os pais acham<br />
que o jovem aceitaria ou sequer se interessaria pela oferta? Vejamos mais de<br />
perto os detalhes da oferta.<br />
2.3.1 Se aceitares as minhas palavras<br />
Primeiramente, a proposta dos pais é de que o jovem aceite as palavras<br />
deles. Essa perece ser a parte mais difícil do trabalho de instrução e discipulado<br />
dos nossos filhos – aceitar as palavras dos pais. O modo como o discurso dos<br />
pais apresenta o assunto demonstra que eles entendem a seriedade do desafio<br />
que está diante deles. Eles sabem que esse primeiro passo é fundamental para<br />
o sucesso de tudo o mais que eles intentem fazer. Se o jovem decidir aceitar<br />
as palavras dos pais, acontece uma reação em cadeia. Este, a meu ver, é o centro<br />
da estratégia desses pais em Provérbios: eles não impõem o assunto nem<br />
exigem obediência, mas oferecem e desafiam o jovem a aceitar tais palavras.<br />
Esse simples procedimento nos ensina uma grande lição. Aquilo que um jovem<br />
aceita tem um impacto muito maior em seu interesse em se apegar àquilo que<br />
foi dito e perseverar naquela instrução. 15<br />
Com certeza há algumas coisas que podemos fazer para colaborar nesse<br />
processo de aceitação. O elemento atrativo na proposta dos pais, “se aceitares<br />
as minhas palavras”, vem logo em seguida: “para fazeres atento à sabedoria o<br />
teu ouvido e para inclinares o teu coração ao entendimento” (Pv 2.2). Observe<br />
que as palavras dos pais não são um fim em si mesmas, mas consistem de<br />
orientações e palpites sobre como treinar o ouvido e o coração para a sabedoria<br />
e a inteligência. As palavras dos pais são instruções não de como os filhos<br />
devem ouvir os conselhos dos pais ou viver segundo os seus costumes, mas<br />
sim de como os filhos devem treinar seus ouvidos e corações para a sabedoria<br />
e o entendimento provenientes de Deus. Reconheço que isso é mais fácil de<br />
dizer do que de fazer. Todavia, a atitude desses pais em Provérbios nos ensina<br />
que o nosso alvo como pais que amam os filhos não é torná-los como nós,<br />
ouvindo somente aquilo que temos a dizer. Nosso alvo é preparar seus ouvidos<br />
e corações para ouvirem todos aqueles que Deus colocar em seus caminhos<br />
como instrumentos de ensino e correção. Muitos desastres morais acontecem<br />
15 Ver uma discussão a esse respeito em: NEL, Philip J. “Authority in the Wisdom Admonitions”,<br />
Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft 93, no. 3 (1981): 418-26; FOX, Michael V. “The<br />
Pedagogy of Proverbs 2”. Journal of Biblical Literature 113, no. 2 (1994): 233-43.<br />
19
DANIEL SANTOS, O PRINCÍPIO ÉTICO DE PROVÉRBIOS<br />
por causa de filhos jovens que não aprenderam a dar ouvidos à sabedoria ou<br />
inclinar seus corações ao entendimento.<br />
Ora, se as palavras e ensinamentos dos pais nesse capítulo têm a finalidade<br />
de treinar o coração e o ouvido do jovem, não seria o caso de pensarmos que<br />
as palavras da Sabedoria são as que realmente conduzem ao conhecimento<br />
e temor do Senhor? Não seria o caso de pensarmos em nossos ensinamentos<br />
(nós os pais) como apenas instrumentos facilitadores para o verdadeiro conhecimento<br />
e aprendizado? Eu creio ser esse o caso. Muitos pais parecem<br />
ter perdido um pouco de vista essa perspectiva no trato com seus filhos. Não<br />
é fácil ver nossos filhos colocarem a perder suas vidas por darem ouvidos e<br />
inclinarem seus corações a opiniões e valores que são subproduto da decadência<br />
humana. Mesmo assim, não podemos perder de vista essa luz no fim do<br />
túnel avisando-nos que o objeto da obediência que estamos proclamando não<br />
são as nossas palavras. Meu objetivo não é fazer meu filho me obedecer, mas<br />
sobretudo obedecer ao Senhor.<br />
2.3.2 Se clamares por inteligência<br />
O que exatamente seria contado como um ato legítimo e verdadeiro de<br />
aceitação dos ensinamentos dos pais? Como saber se o jovem realmente conseguir<br />
treinar o ouvido e o coração para as palavras da verdadeira Sabedoria?<br />
Há dois elementos concretos que podem servir para medir o grau de aceitação:<br />
“se clamares” e “se buscares como a prata” (Pv 2.3-4). Neste segundo estágio<br />
entendemos que a tarefa dos pais tinha realmente um escopo limitado e<br />
preparatório apenas. A tarefa mais gloriosa é ver nossos filhos clamando por<br />
inteligência por motivação própria. Estes dois versos nos ensinam que o modo<br />
como os nossos jovens buscam a sabedoria de Deus dignifica o trabalho inicial<br />
dos pais exatamente porque buscam algo maior.<br />
Com respeito ao modo como eles buscarão a sabedoria e o entendimento,<br />
dois exemplos são dados: eles “clamam” e “alçam as vozes”. Ou seja, o modo<br />
é característico da juventude – muito volume e entusiasmo. Na visão do livro<br />
de Provérbios, essa atitude não deve ser vista como negativa, pois melhor é<br />
ver nossos filhos clamando por sabedoria do que alçando suas vozes para a<br />
promiscuidade e perversão. O propósito final e maior dos ensinamentos dos<br />
pais é exatamente este de levar os filhos e alçarem a voz em busca da sabedoria,<br />
mas quando algo neste processo não funciona como deveria o resultado<br />
acaba produzindo filhos que alçam suas vozes contra seus pais e todo tipo de<br />
instrução que os conduziria ao Senhor. O método desses pais em Provérbios<br />
certamente não envolvia admoestações com gritos, mas o resultado do trabalho<br />
culminava numa busca eufórica pela sabedoria. Quando virmos nossos filhos<br />
no pico mais alto do telhado da casa gritando a plenos pulmões sobre seu interesse<br />
na Sabedoria, deveríamos dar graças a Deus pelo dever cumprido (e orar<br />
para que eles consigam descer de lá sem quebrar as pernas).<br />
20
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23<br />
2.3.3 Se buscares a sabedoria como a prata e tesouros escondidos<br />
O terceiro elemento a ser considerado na proposta dos pais é a motivação<br />
com a qual seus filhos buscarão a sabedoria. Quando Provérbios compara<br />
esta motivação com a procura pela prata ou tesouros escondidos, a ideia não<br />
equivale a dizer que estão apenas correndo atrás de dinheiro. A figura aqui é<br />
aplicada ao reconhecimento da recompensa em investir tempo e esforço nessa<br />
direção. Além disso, estes pais estão deixando bem claro que o jovem não deve<br />
encarar essa jornada como tendo um único objetivo – agradar os pais. Essa não<br />
é a recompensa que motiva o jovem em Provérbios. Essa não é a recompensa<br />
que deveria motivar os jovens hoje.<br />
As palavras e instruções desses pais em Provérbios tinham a finalidade<br />
de inspirar uma motivação genuína, que estivesse associada à Sabedoria em<br />
si e não aos pais. A razão parece muito simples. Se treinarmos nossos filhos a<br />
nos obedecerem com a finalidade única de agradar e satisfazer o nosso desejo<br />
como pais, nós podemos até conseguir isso por um tempo, mas o que acontecerá<br />
quando este jovem adentrar a vida adulta e se tornar independente? Será<br />
que essa inspiração ainda o motivaria na busca da sabedoria? Alguns filhos<br />
chegam ao ponto de dizer: “Eu só não faço isso porque meus pais ainda estão<br />
vivos, mas assim que eles morrerem...”. Deus livre nossos filhos e filhas de<br />
trilhar nessa direção.<br />
Veja bem, a motivação verdadeira não é aquela que despreza ou desonra<br />
os pais a fim de honrar e valorizar a sabedoria como tesouros escondidos. A<br />
verdadeira motivação é aquela que honra os pais ao entender que seus ensinamentos<br />
os conduziram a algo com valor inestimável. Não existe nada mais<br />
honroso e gratificante para os pais do que verem seus filhos buscando a sabedoria<br />
pelo valor que ela tem, e não apenas para agradá-los enquanto vivos.<br />
2.3.4 As recompensas de buscar a sabedoria<br />
Tudo isto que os pais têm proposto precisa ser feito de modo correto e<br />
com a motivação legítima, a fim de que o princípio ético seja implementado.<br />
Nos versos que se seguem, os pais descrevem detalhadamente algumas recompensas<br />
dessa jornada. Há quatro coisas que são apresentadas: a) o jovem<br />
entenderá o temor do Senhor (2.5), b) o jovem achará o conhecimento de Deus<br />
(2.5), o jovem entenderá justiça, juízo e equidade (2.9), c) a sabedoria entrará<br />
em seu coração (2.10), d) será liberto do caminho do mal (2.12) e será liberto<br />
da mulher adúltera (2.16).<br />
Entender o temor do Senhor (2.5). Já sabemos desde o início do livro de<br />
Provérbios que o temor do Senhor é princípio de todo esse projeto de busca<br />
de sabedoria. É o temor do Senhor que torna esse empreendimento possível<br />
e justificável. Achar o conhecimento de Deus (2.5). O conhecimento de Deus<br />
não é igualado à sabedoria. Obter a sabedoria não é o mesmo que obter o<br />
21
DANIEL SANTOS, O PRINCÍPIO ÉTICO DE PROVÉRBIOS<br />
conhecimento de Deus. Conforme a instrução dos pais, é o Senhor quem dá<br />
sabedoria e de seus lábios procede todo entendimento. O alvo de todo esse<br />
projeto de treinamento em busca da sabedoria é nada menos que conhecer a<br />
Deus. Nesse nível a sabedoria em si perde sua primazia, tornando-se também<br />
uma ferramenta para alcançar um fim maior que é o conhecimento de Deus.<br />
A sabedoria entrará no teu coração (2.10). Esse conceito parece completar<br />
a preparação inicial que os pais tiveram de treinar o coração do jovem a<br />
inclinar-se para a sabedoria. Quando isso acontece de maneira satisfatória,<br />
a sabedoria se compraz em habitar no coração do jovem.<br />
Ser salvo do caminho do mal (2.12). Conforme vimos no primeiro capítulo,<br />
o jovem está sempre rodeado de propostas de amigos que querem envolvê-lo<br />
em toda sorte de crimes e situações que irão comprometê-lo pelo restante de<br />
sua vida. Uma recompensa prática da busca da sabedoria é que ela irá salvar<br />
o jovem dessas ciladas. Nas próximas lições veremos com mais detalhes o<br />
que esse caminho do mal significa. Finalmente, ser salvo da mulher adúltera<br />
(2.16). Dentro do contexto do livro essa é a maior ameaça que se antepõe no<br />
caminho do jovem em busca da sabedoria – a promiscuidade. Nas lições a seguir<br />
trataremos dos detalhes da proposta da mulher adúltera e do modo como<br />
ela envolve o jovem em sua caminhada.<br />
CONCLUSÃO<br />
Conforme anunciado na introdução, o princípio ético que regula as decisões<br />
apresentadas no livro de Provérbios é deduzido a partir de uma leitura<br />
do próprio texto bíblico, especialmente do modo como o autor bíblico apresenta<br />
os discursos. Entretanto, não há como argumentar que Agur ou a mãe<br />
de Lemuel tinham consciência de tal princípio ético quando compuseram seus<br />
provérbios e instruções. O princípio ético de Provérbios deve ser entendido<br />
como um fator imputado ao livro em seu formato final por obra do Espírito<br />
Santo, por meio daquele (não sabemos quem) que Deus usou para concluir<br />
esse livro. Por causa da informação contida na abertura do capítulo 25, é impossível<br />
afirmar que Salomão foi o responsável pela forma final do livro, pois<br />
os homens de Ezequias ainda estavam transcrevendo provérbios para montar a<br />
terceira seção do livro séculos após a sua morte. Assim sendo, proponho que<br />
o princípio ético ilustrado nesse estudo seja entendido como um fator oriundo<br />
do cânon bíblico e não da cosmovisão israelita dos dias de Salomão. Quando<br />
lemos Provérbios como uma amostragem de usos e costumes de uma sociedade<br />
primitiva, compilados em formato proverbial, perdemos o seu principal<br />
elemento de autoridade: a revelação divina construindo das partes um todo<br />
teologicamente coerente. Mesmo trabalhando com diversos autores (Salomão,<br />
Agur, Lemuel, os sábios, os homens de Ezequias, etc.), o produto final forjado<br />
pela ação do Espírito Santo consegue aquilo que Clemente de Alexandria disse<br />
com propriedade: “Com todo seu poder, o instrutor da humanidade, a palavra<br />
<strong>22</strong>
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23<br />
divina, usando todos os recursos da sabedoria consegue, por muitas rédeas,<br />
refrear os impulsos irracionais da humanidade”. 16<br />
ABSTRACT<br />
The book of Proverbs is loaded with instructions and admonitions that<br />
seek to establish an acceptable norm of conduct. The definition of what is<br />
considered acceptable will inevitably suggest the existence of a core ethical<br />
principle guiding and controlling the definition of what is acceptable. This<br />
article presents a sample of the effect of such core ethical principle when it is<br />
applied to three different settings dealing with issues in the Israelite society.<br />
The issues are: a) the danger of bad companions, b) the danger of indifference,<br />
and c) the danger of promiscuity.<br />
KEYWORDS<br />
Book of Proverbs; Ethics in Proverbs; Promiscuity; Indifference.<br />
16 ROBERTS, Alexander; DONALDSON, James; COXE, A. Cleveland (Orgs.). Fathers of the<br />
Second Century: Hermas, Tatian, Athenagoras, Theophilus, and Clement of Alexandria. The Ante-Nicene<br />
Fathers. Buffalo, NY: Christian Literature Company, 1885, vol. 2, p. <strong>22</strong>28.<br />
23
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44<br />
O cristão e as Idolatrias Políticas<br />
Francisco Cauê Cruz de Oliveira Paula *<br />
RESUMO<br />
A atuação cristã no âmbito público, especialmente no campo da política,<br />
é objeto constante de discussão. Inúmeras questões surgem nessa seara, principalmente<br />
direcionadas pelo propósito último do homem de glorificar a Deus<br />
em todos os âmbitos de sua vida. Este artigo visa auxiliar os cristãos na tarefa<br />
de, a partir de uma cosmovisão cristã, dialogar com algumas das principais<br />
ideologias políticas da nossa época: liberalismo, marxismo, conservadorismo,<br />
democracia e nacionalismo. Para cumprir tal propósito, primeiramente correlaciona<br />
os conceitos de ideologia e idolatria. Em seguida, analisa, a partir do<br />
conceito de idolatria, as principais ideologias políticas, organizadas de acordo<br />
com os ídolos que ocupam seus altares: indivíduo, comunidade, tradição, igualdade<br />
e Estado. Finalmente, observam-se dois aspectos que unem as ideologias<br />
políticas, o fundamento autônomo e a busca por satisfação como fim, concluindo<br />
que o cristão deve se relacionar criticamente com as ideologias políticas.<br />
PALAVRAS-CHAVE<br />
Cosmovisão cristã; Idolatria; Política; Ideologias políticas.<br />
INTRODUÇÃO<br />
O cristão deve se envolver significativamente com a política a partir de<br />
uma visão de mundo biblicamente orientada, 1 buscando glorificar a Deus em<br />
todo o processo (1Co 10.31 e Rm 11.36). Ao criar o homem, Deus deu a ele<br />
* O autor é bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão, especialista em Estudos<br />
Teológicos pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper e aluno no programa de<br />
certificado em Filosofia da North-West University, África do Sul.<br />
1 Em torno desse tema gira grande parte da discussão do livro: GRUDEM, Wayne. Política<br />
segundo a Bíblia: princípios que todo cristão deve conhecer. São Paulo: Vida Nova, 2014.<br />
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FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS<br />
um mandato de produzir cultura, cultivando e conservando toda a realidade<br />
criada (Gn 1.26, 28; 2.5, 15, 19). Tal mandato inclui a possibilidade de o cristão<br />
atuar no âmbito político. Apesar do grau de corrupção existente, a política é<br />
preservada pela graça comum de Deus, o qual age na “restrição dos efeitos do<br />
pecado depois da Queda, preservação e manutenção da ordem criada, e distribuição<br />
dos talentos entre os seres humanos” 2 . Assim, afirmamos 3 com João<br />
Calvino: “Não se deve, pois, ter a menor dúvida de que o poder civil é uma<br />
vocação não somente santa e legítima diante de Deus, mas também deveras<br />
sacrossanta e honrosa entre todas as demais”. 4<br />
Uma questão, entretanto, se apresenta ao cristão que almeja atuar no<br />
âmbito político: qual caminho ele deve seguir? Pela direita ou pela esquerda?<br />
Ele deve ser, em termos do romance Esaú e Jacó, de Machado de Assis, como<br />
o progressista Paulo ou como seu irmão gêmeo “oposto”, Pedro? Liberal ou<br />
conservador? Deve buscar conservar a ordem existente ou revolucionar?<br />
Não há dúvidas de que essas perguntas, por menos complicadas que pareçam<br />
à primeira vista, são extremamente complexas em suas variadas respostas.<br />
Não é assunto simples discutir ideologias políticas. Portanto destaque-se, desde<br />
já, que este artigo é uma provocação ao refletir político, feita a partir de uma<br />
cosmovisão cristã, sem quaisquer pretensões de esgotar o assunto. Especificamente,<br />
a reflexão a seguir toma por base, em grande parte, a análise do livro<br />
Visões e Ilusões Políticas, do professor David T. Koyzis. 5<br />
1. IDEOLOGIA E IDOLATRIA<br />
No livro Visões e Ilusões Políticas, Koyzis analisa as principais ideologias<br />
políticas contemporâneas. Sua tese central gira em torno da percepção de<br />
que as ideologias políticas possuem raízes idólatras – na realidade, ele chama<br />
as ideologias de idolatrias. Koyzis afirma: “Como as idolatrias bíblicas, cada<br />
ideologia se fundamenta no ato de isolar um elemento da totalidade criada,<br />
elevando-o acima do resto da criação e fazendo com que esta orbite em torno<br />
desse elemento e o sirva”. 6<br />
2 Tradução livre das expressões: “… restraint of the full effects of sin after the Fall, preservation<br />
and maintenance of the created order, and distribution of talents to human beings”, de Vincent Bacote,<br />
na introdução ao livro: KUYPER, Abraham. Wisdom & Wonder: Common Grace in Science & Art.<br />
Ottawa: Christian Library Press, 2011, p. 25 e 26.<br />
3 Para uma exposição mais abrangente sobre esse tema, ver: PAULA, Francisco. Apontamentos<br />
introdutórios acerca da relação entre o cristão e a política. São Luís, MA: Seminário Cristão Evangélico<br />
do Norte (SCEN), 2016. Artigo aceito para publicação em dezembro de 2016 pela revista eletrônica do<br />
SCEN.<br />
4 CALVINO, João. As Institutas. Vol. IV. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 150.<br />
5 KOYZIS, David T. Visões e ilusões políticas: uma análise & crítica cristã das ideologias<br />
contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 2014.<br />
6 Ibid., p. 18.<br />
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FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44<br />
É normal, em nossa cultura evangélica, associarmos a concepção de idolatria<br />
com aquilo que presenciamos no Antigo Testamento (a adoração explícita<br />
a deuses distintos de Deus, feitos de madeira e de pedra) ou no romanismo,<br />
com seu culto às imagens de santos. Entretanto, a perspectiva bíblica acerca<br />
de idolatria é mais ampla que isso. O primeiro mandamento, em Êxodo 20,<br />
ao nos instar a não ter outros deuses, não está falando somente sobre ídolos<br />
visíveis, mas sobre quaisquer tipos de ídolos que tomem o lugar de Deus como<br />
aquele a quem devemos nosso amor último. Quando o Senhor nos conclama a<br />
amá-lo acima de todas as coisas, todo amor supremo que desperdiçamos com<br />
qualquer outro ser ou objeto que não seja o Criador é uma demonstração de<br />
nossa idolatria. Herman Dooyeweerd apresenta isso com clareza:<br />
A essência de um espírito idólatra é que ele separa o coração do homem do<br />
Deus verdadeiro e, em lugar de Deus, coloca uma criatura. Toda absolutização<br />
do que é relativo aponta para a deificação do que foi criado. Considera-se<br />
autossuficiente o que não é autossuficiente. 7<br />
Chamar de absoluto aquilo que é relativo, chamar de criador o que é<br />
criatura, chamar de suficiente o que é insuficiente, confiar em algo perecível<br />
como fonte eterna: isso é idolatria. O homem erige ídolos em seu coração (ver<br />
Ez 14.3), aos quais edifica altares em seu íntimo, nos quais sacrifica diariamente<br />
sua vida, em busca de satisfação e salvação, mas sem jamais encontrá-las<br />
verdadeiramente. Por toda a vida, busca saciar a sede, mas em fontes sujas e<br />
limitadas, ignorando aquele de quem fluem rios de água viva, o Senhor Jesus<br />
Cristo (Jo 4.13-14). Afinal, assim como “ídolos imitam aspectos da identidade<br />
e do caráter de Deus”, 8 eles também só conseguem imitar os resultados obtidos<br />
por aquele que, verdadeiramente, é soberano. 9 Nesse sentido, a análise de<br />
Koyzis sobre as ideologias representa uma aplicação desse conceito às correntes<br />
políticas de nossa época:<br />
No ato de não estabelecer diferença entre a estrutura da criação e seu sentido<br />
espiritual, os seguidores das diversas ideologias tendem a pressupor que a salvação<br />
vem da libertação da humanidade em relação a alguma faceta da criação<br />
de Deus; concomitantemente, eles depositam sua confiança em alguma outra<br />
7 DOOYEWEERD, Herman. Raízes da cultura ocidental: as opções pagã, secular e cristã. São<br />
Paulo: Cultura Cristã, 2015, p. 29.<br />
8 POWLISON, David. Ídolos do coração e feira das vaidades. São Paulo: Refúgio, 1996, p. 31.<br />
9 Conforme Beale, em análise dos textos de Isaías 6 e 44.18-19, “a percepção do adorador não<br />
pode ser maior do que a do ídolo a que ele serve”. BEALE, G. K. Você se torna aquilo que adora: uma<br />
teologia bíblica da idolatria. São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 41. O texto do Salmo 135.15-18 aponta<br />
nessa mesma direção. A partir disso, como poderíamos esperar que as ideologias, por si, fornecessem<br />
uma percepção adequada da realidade, formando, com isso, um correto plano de ação para corrigir as<br />
falhas observadas?<br />
27
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS<br />
faceta da própria criação. [...] Nelas [as ideologias], um elemento extraído da<br />
criação divina é transformado em uma espécie de deus capaz de nos salvar. Em<br />
seu apogeu, a ideologia parece invencível e oferece certa ilusão de veracidade<br />
abrangente baseada em pontos que de fato são verdadeiros, sendo aceita por<br />
milhões de pessoas. Com o tempo, no entanto, a ideologia perde sua vitalidade e<br />
passa a ter menos adeptos, em certa medida por não ter conseguido cumprir suas<br />
promessas, mas também porque suas contradições se manifestaram, tornando-a<br />
inviável. 10<br />
A partir dessa perspectiva, David T. Koyzis analisa de forma detalhada<br />
as seguintes ideologias políticas: liberalismo, conservadorismo, nacionalismo,<br />
democracia e socialismo. Para os fins do presente texto, haja vista a impossibilidade<br />
de abordarmos tão vasto conteúdo, organizaremos a análise da seguinte<br />
maneira: idolatria do indivíduo, idolatria da comunidade, idolatria da tradição,<br />
idolatria da igualdade e idolatria do Estado. 11<br />
2. IDOLATRIAS POLÍTICAS<br />
2.1 Idolatria do indivíduo<br />
A idolatria do indivíduo, em regra, está associada ao liberalismo:<br />
10 KOYZIS, Visões e ilusões políticas, p. 12, 50 e 51. Nesse quesito, o crítico do cristianismo, ou<br />
mesmo o cristão que acaba adotando uma visão compartimentalizada da vida, talvez nos confronte com<br />
uma objeção comum de que estamos espiritualizando o assunto da política, ao tratá-la em termos de<br />
idolatria. Em complemento aos pontos iniciais do presente texto, precisamos reforçar a realidade de que,<br />
por ser Deus o criador e sustentador do universo, a cosmovisão cristã parte do princípio de que toda a<br />
realidade é teorreferente. Esse conceito foi sintetizado de forma bem clara nos seguintes dizeres: “Teo-<br />
-referência é um conceito empregado por Davi C. Gomes para indicar que Deus é o ponto de referência<br />
último de toda a existência tanto do homem regenerado, pelo poder do Espírito Santo e da Palavra de<br />
Deus, quanto do homem não-regenerado. [...] A teo-referência negativa, como é qualificada a existência<br />
do homem em constante apostasia, se dá sempre em forma de emancipação em relação a Deus e rebelião<br />
contra sua Palavra. A teo-referência positiva indica a existência e a apreensão da realidade no interior de<br />
um contexto de significado redentivo ou biblicamente orientado. A teo-referência (negativa ou positiva)<br />
é a condição originária de todo horizonte de compreensão e interpretação humanas. Isso quer dizer que<br />
a vida-no-mundo será sempre encarada no interior de um campo de significado de amor ou de rebelião<br />
contra Deus”. OLIVEIRA, Fabiano de Almeida. Reflexões Críticas sobre Weltanschauung: uma análise<br />
do processo de formação e compartilhamento de cosmovisões numa perspectiva teo-referente. <strong>Fides</strong><br />
Reformata, vol. XIII, nº 1, 2008, p. 31.<br />
11 Nesse sentido, peço ao leitor que seja caridoso em considerar que a tratativa do presente texto<br />
é limitada pelo espaço e escopo. Além disso, irei também, em várias ocasiões, fazer generalizações que<br />
podem não ser aplicáveis a adeptos das ideologias apresentadas em sua totalidade. Digo isso, inclusive,<br />
por mim, que aceito inúmeras alegações delas como verdadeiras e as adoto em meu dia a dia. Para uma<br />
análise mais abrangente, recomendo a leitura dos materiais citados. Ao apresentar a realidade idolátrica<br />
em cada uma das ideologias mencionadas, não se ignora a realidade de que elas possuem muitos pontos<br />
positivos e momentos de verdade, afinal: “As ideologias são incapazes de distorcer completamente o<br />
mundo real, o qual, apesar da presença inegável do pecado, continua sendo a excelente criação de Deus”<br />
KOYZIS, Visões e ilusões políticas, p. 155.<br />
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FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44<br />
O primeiro e mais básico princípio do liberalismo é: cada um é proprietário<br />
ou dono de si mesmo e, portanto, deve ser livre para governar a si mesmo de<br />
acordo com suas próprias escolhas, desde que essas escolhas não infrinjam o<br />
igual direito dos outros de fazer o mesmo. 12<br />
A idolatria do indivíduo é fundamentada, portanto, na autonomia do ser<br />
humano, na consideração do indivíduo como um ser soberano sobre si mesmo.<br />
Em regra, no liberalismo econômico clássico, essa oposição é contra a atuação<br />
do Estado. É nesse sentido, no Brasil, que é comum o uso político do termo<br />
liberalismo – associando-o, historicamente, ao capitalismo, à liberdade de<br />
mercado e ao famoso livro Riqueza das Nações, de Adam Smith. Os liberais<br />
clássicos consideram que todas as obrigações existentes, limitadoras de sua<br />
liberdade, devem advir de acordos voluntários:<br />
Assim, portanto, se removidos todos os sistemas de favorecimento ou de restrição,<br />
o óbvio e simples sistema de liberdade natural se estabelece por si mesmo.<br />
Cada homem, enquanto não infringir as leis da justiça, é deixado perfeitamente<br />
livre para perseguir seu próprio interesse a seu próprio modo, e a trazer tanto<br />
seu trabalho quanto seu capital para concorrer com os de qualquer outra pessoa<br />
ou categoria de pessoas. 13<br />
O liberalismo, entretanto, na medida em que se desenvolveu como<br />
ideologia mais ampla, promoveu (em seus posteriores desdobramentos, que,<br />
apesar de aparentes desvirtuações, guardam relação direta entre si) uma expansão<br />
de sua aplicação para todas as demais áreas da vida. Assim, o indivíduo<br />
autônomo do liberalismo deixou de se autodeterminar exclusivamente<br />
na esfera econômica e política, seguindo em busca de se libertar de todas as<br />
amarras existentes, construídas socialmente, segundo defendem. 14 Isso explica<br />
o acirramento do movimento feminista, que percebe na ação dos homens,<br />
quaisquer que sejam, uma tentativa de limitar a atuação da mulher enquanto<br />
mulher; explica o crescimento do movimento pró-aborto, com o seu famoso<br />
12 Ibid., p. 57.<br />
13 SMITH, Adam. A mão invisível. São Paulo: Penguin e Companhia das Letras, 2013, p. 120.<br />
14 Duas considerações precisam ser feitas sobre tal desenvolvimento liberal: (1) Como o próprio<br />
nome revela, essa ideologia idolatra também o ideal de liberdade, o que explica esse processo de evolução<br />
pelo qual passou. (2) No presente texto, estamos seguindo a interpretação de que existe um vínculo direto<br />
entre esses modelos de liberalismo, norteado pelas idolatrias apontadas. Entretanto, grandes expoentes<br />
do liberalismo clássico discordariam de tal perspectiva. No prefácio da edição norte-americana do livro<br />
Caminho da Servidão, F. A. Hayek afirma: “Há, porém, uma questão de terminologia sobre a qual devo<br />
aqui dar uma explicação, a fim de prevenir mal-entendidos. Uso, a todo momento, a palavra ‘liberal’ em<br />
seu sentido originário, do século XIX, que é ainda comumente empregado na Inglaterra. Na linguagem<br />
corrente nos Estados Unidos, seu significado é, com freqüência, quase o oposto, pois, para camuflar-se,<br />
movimentos esquerdistas deste país, auxiliados pela confusão mental de muitos que realmente acreditam<br />
na liberdade, fizeram com que ‘liberal’ passasse a indicar a defesa de quase todo tipo de controle<br />
governamental”. HAYEK, F. A. O caminho da servidão. Campinas: Vide Editorial, 2013, p. 17.<br />
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FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS<br />
mote “meu corpo, minhas regras”; explica o processo de privatização da fé,<br />
posto que as religiões, com suas visões absolutizantes, tendem a suprimir a<br />
liberdade do indivíduo, devendo, assim, ser expurgadas da esfera pública;<br />
explica a ideologia de gênero e sua visão de que o indivíduo, enquanto ser<br />
autônomo e plenamente livre, deve escolher por si só o seu próprio gênero,<br />
independentemente de sua constituição biológica. 15<br />
Em A Revolta de Atlas, uma das obras de ficção mais relevantes sobre a<br />
visão liberal – especialmente em sua linha mais libertária –, podemos perceber<br />
isso quando seu personagem mais importante, John Galt, discursa, já próximo<br />
do fim (do livro e dos Estados Unidos no contexto ficcional apresentado):<br />
O homem não possui nenhum código de sobrevivência automático. O que o<br />
distingue de todos os outros seres vivos é a necessidade de agir em face de<br />
alternativas por meio da escolha de sua vontade. Ele não possui conhecimento<br />
automático do que é bom ou mau para ele, de quais os valores em que se baseia<br />
sua vida, de que curso de ação tais valores precisam. 16<br />
Ayn Rand segue, pela voz do protagonista, com uma feroz ofensiva às<br />
instituições que cerceiam a liberdade do indivíduo, ao atacar, especialmente,<br />
sua inteligência (nesse ínterim, ela critica as religiões, o Estado e as próprias<br />
comunidades). Ao agir assim, idolatrando o indivíduo, o liberalismo desconsidera<br />
algumas verdades centrais: a realidade de que o homem é pecador 17 ; o fato de<br />
que somos dependentes, tanto do próximo quanto, fundamentalmente, de Deus; a<br />
necessidade do Estado enquanto autoridade instituída por Deus para promover<br />
a justiça; a existência de obrigações e restrições não decorrentes de acordos voluntários,<br />
mas da própria natureza conforme estruturada por Deus 18 (demonstrando<br />
15 Para nós, brasileiros, soa estranho associar o movimento liberal com essas perspectivas. Consideramos<br />
o liberalismo, via de regra, como uma bandeira de direita, associada ao conservadorismo.<br />
Consideramos essas perspectivas feministas, abortistas e da ideologia de gênero como características<br />
da esquerda e seu “progressismo”. Entretanto, como Koyzis trabalha em seu mencionado livro, existe<br />
uma correlação direta entre o liberalismo econômico e a perspectiva liberal em termos morais – sua raiz<br />
religiosa é a mesma. É interessante, nesse sentido, que nos Estados Unidos, os liberals são aqueles que<br />
possuem afinidade com o partido Democrata, que é o partido de esquerda.<br />
16 RAND, Ayn. A Revolta de Atlas. Vol. III. São Paulo: Arqueiro, 2010, p. 335. Apesar das inúmeras<br />
críticas possíveis ao livro e, especialmente ao discurso de John Galt cujo trecho cito, considero esse um<br />
livro de leitura fundamental. Parece-me que os romances têm a característica de explicar o mundo de<br />
uma forma que os demais livros não conseguem, razão pela qual faço várias referências a estes ao longo<br />
do texto.<br />
17 No livro, esse é um dos pontos que Ayn Rand critica de forma mais enfática, acusando o pecado<br />
original de ser um dos grandes males da concepção cristã do indivíduo.<br />
18 “Para viver essa vida, nenhum homem é auto-suficiente ou bastante provido pela natureza. Pois o<br />
homem nasce privado de toda assistência, desnudo e inerme, como se tivesse perdido todos os bens num<br />
naufrágio, fosse lançado nas desgraças dessa vida e não se sentisse capaz de, por seus próprios meios,<br />
alcançar o seio da mãe, suportar a inclemência do tempo, nem mover-se do lugar aonde foi arremessado”.<br />
ALTHUSIUS, Johannes. Política. Rio de Janeiro: Topbooks, 2013, p. 103.<br />
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FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44<br />
que a livre escolha do indivíduo soberano não é absoluta sobre tudo e todos); e<br />
a verdade de que a única fonte de redenção real é o Senhor Jesus Cristo, ao nos<br />
libertar das amarras do pecado e não do Estado 19 (e/ou outras coletividades).<br />
Nesse ponto, antes de partirmos para o próximo aspecto idolátrico, penso<br />
ser possível abordarmos a idolatria do indivíduo, não sobre o aspecto do eu,<br />
mas na visão do outro – mais especificamente, de “um outro”. A idolatria do<br />
indivíduo ocorre também, penso, quando se considera que determinado líder<br />
político é o detentor máximo de autoridade, personificando todas as virtudes<br />
fundamentais, na visão do idólatra, para que o caminho rumo à prosperidade, à<br />
paz, à segurança, à realização plena, etc., seja por ele pavimentado. Essa visão<br />
está, via de regra, associada à idolatria do Estado. Entretanto, não há dúvida<br />
de que determinadas figuras são vistas como (quase) deuses por seus seguidores,<br />
tornando-os inerrantes e justificando, assim, todas as suas ações como<br />
corretas – na realidade, as ações desses indivíduos transcendem as perspectivas<br />
tradicionais de bem e mal, não carecendo de justificativas.<br />
Lembro-me, nesse quesito, da grande disputa interna de Raskólnikov na<br />
obra Crime e Castigo, de Dostoiévski. Ao lidar com seu próprio crime, à luz<br />
da visão que possuía sobre a possibilidade de pessoas diferenciadas, indivíduos<br />
únicos e extraordinários, ignorarem as leis, sem que houvesse quaisquer prejuízos<br />
para eles, Raskólnikov se viu desolado pela percepção dolorosa de si<br />
mesmo como uma pessoa ordinária (ao contrário da autoimagem que possuía,<br />
destruída quando em choque com a realidade). O jovem estudante explica:<br />
Eu [Raskólnikov] aludi simplesmente a que uma pessoa “extraordinária” tinha<br />
o direito... não o direito oficial, é claro, mas o direito pessoal de permitir que<br />
sua consciência passasse por cima... de certos obstáculos, e unicamente naquele<br />
caso em que a realização de sua ideia (por vezes, salvadora para toda a<br />
humanidade, quem sabe) viesse a exigi-lo. [...] Apenas acredito na minha ideia<br />
essencial. Ela consiste notadamente em as pessoas serem, por lei da natureza,<br />
classificadas em duas categorias de modo geral: a categoria inferior (ordinária),<br />
ou seja, por assim dizer, o material que serve unicamente para a reprodução de<br />
seres similares, e a das pessoas propriamente ditas, das que possuem o dom ou<br />
talento para dizer, em seu meio, uma palavra nova. 20<br />
Além de muito do que foi dito aplicar-se a esse modelo de idolatria, talvez<br />
menos comum, 21 há que se acrescentar que as ideologias políticas, via de<br />
19 Curioso que no “liberalismo moral”, mais tardio, existe uma dependência e idolatria do Estado<br />
como aquele que deve assegurar ao indivíduo livre a possibilidade e, mais que isso, a garantia de que<br />
poderá agir conforme sua vontade – desde que, é claro, essa vontade seja nos termos progressistas da<br />
ideologia liberal.<br />
20 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. São Paulo: Martin Claret, 2013, p. 296-298.<br />
21 Essa postura é muito bem exemplificada em certas estampas de camisas com rostos de figuras<br />
“revolucionárias” muito difundidas nos movimentos políticos de esquerda.<br />
31
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS<br />
regra (e essa marcadamente), seguem a lógica maquiavélica de que “os fins<br />
justificam os meios”. Koyzis ataca de forma cirúrgica a questão: “O adepto<br />
de uma ideologia é possuído por um fim. [...] A justiça futura pode, portanto,<br />
ser vista como uma desculpa para a injustiça presente”. <strong>22</strong> A justiça, portanto, não<br />
é vista considerando as leis absolutas e estruturais determinadas por um Deus<br />
justo, como no cristianismo, mas como algo atrelado aos objetivos que se<br />
buscam – por mais que eles não se alcancem e, de fato, não sejam alcançáveis.<br />
2.2 Idolatria da comunidade<br />
No livro A Utopia, de Thomas More – um clássico tão significativo<br />
que a palavra utopia deixou meramente de ser o nome do livro e passou ao<br />
vocabulário comum, como sinônimo de algo ideal, inatingível (ou atingível a<br />
duras penas) –, o leitor é confrontado com uma nação ideal. Uma comunidade<br />
na qual impera perfeita paz e harmonia social. Uma sociedade que vive em<br />
sintonia plena. As pessoas vivem em um regime de certa igualdade, no qual<br />
suas roupas, seus lares e seus estilos de vida são indistintos entre si, em larga<br />
escala. Nessa sociedade, o indivíduo não existe por si só, mas em função e<br />
dentro da comunidade perfeita:<br />
Nenhuma criatura viva é gananciosa por natureza, a não ser por medo de<br />
carência – ou, no caso de seres humanos, por vaidade, a ideia de que alguém<br />
é melhor que as outras pessoas se puder exibir mais propriedade supérflua do<br />
que elas. Mas não há âmbito para esse tipo de coisa em Utopia. 23<br />
Esse livro é usualmente associado a uma espécie de ideal comunista,<br />
mesmo sendo cronologicamente anterior ao surgimento e expansão dessa<br />
ideologia. Apesar de o comunismo e o socialismo terem uma forte característica<br />
de idolatria da igualdade e do Estado, como será abordado, eles também<br />
possuem o viés da idolatria à comunidade, em detrimento do indivíduo. “Em<br />
linhas gerais”, assevera Koyzis, “o socialismo implica que as necessidades da<br />
sociedade como um todo tenham precedência sobre os desejos do indivíduo”. 24<br />
Nesse ponto, possui uma semelhança com outra perspectiva coletivista: o<br />
nacionalismo. 25<br />
<strong>22</strong> KOYZIS, Visões e ilusões políticas, p. 38.<br />
23 MORE, Thomas. A Utopia. São Paulo: Martin Claret, 2013, p. 76.<br />
24 KOYZIS, Visões e ilusões políticas, p. 183.<br />
25 Em certo sentido, o nacionalismo também idolatra o Estado, enquanto aquele a quem devemos<br />
lealdade por sermos membros em comum da mesma nação. Esse não será tanto o sentido abordado em<br />
torno da idolatria do Estado, mas, creio, seria uma afirmação acertada relacionar nacionalismo e socialismo<br />
nesses termos – apesar da imensa diferença em relação aos objetivos e à atuação estatal. Tal semelhança<br />
não é percebida à toa em uma das ideologias mais odiadas do século 20, o nacional-socialismo – mais<br />
conhecido como nazismo.<br />
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Diferentemente do liberalismo, que coloca o indivíduo como a unidade<br />
fundamental da sociedade, essas perspectivas o colocam em segundo plano,<br />
enfatizando o conjunto de pessoas (a nação ou uma comunidade de proletários,<br />
por exemplo) como o fator fundamental de sua existência, seu objeto<br />
último de lealdade, sua fonte de segurança, a pedra fundamental a partir da<br />
qual sua legislação será formada e a identidade dos que dela participam será<br />
definida. 26 Novamente, tratando mais especificamente sobre o nacionalismo,<br />
Koyzis afirma:<br />
O liberalismo tenta libertar o indivíduo das demais vontades que prejudicam<br />
a sua soberania; o nacionalismo, de forma análoga, tenta emancipar a nação<br />
do controle de quem se encontra fora de seus limites autodefinidos [étnicos ou<br />
políticos]. Implícita ou explicitamente, os nacionalistas identificam o mal, em<br />
última análise, com o domínio de quem é diferente deles, seja em matéria de<br />
raça, cultura, língua ou religião. 27<br />
Nessa absolutização do coletivo, podemos destacar também a própria democracia<br />
como uma ideologia de feições idolátricas, posto que coloca “o povo”<br />
como o ente soberano que governa o Estado. Grande problema ocorre quando<br />
o Estado, legítimo agente político, transcende sua esfera real de competência<br />
e se torna um tirano que busca aplicar o princípio democrático, da vontade<br />
da maioria, sobre todos os indivíduos, organizações e instituições – como se<br />
todos possuíssem a característica de ser dirigidos a partir desse princípio. 28<br />
A democracia, por melhor que seja – e tem-se dito que é a melhor forma<br />
de governo testada até hoje –, possui limitações e se manifesta idólatra sempre<br />
que a vontade da maioria for o instrumento último de validação da conduta<br />
do Estado e de seus cidadãos. O “povo”, de fato, não é soberano. Nem pode<br />
ser, haja vista que a característica de soberania, em si, só existe para algo ou<br />
alguém que seja absoluto em si – ao qual todos devam submissão, de forma<br />
total, inquestionável e completa.<br />
A perspectiva coletivista, ao colocar a comunidade, a nação ou o povo<br />
como o fim máximo e o único meio para a prosperidade, absolutiza o relati-<br />
26 “A ideologia da comunidade claramente conflita com o motivo bíblico da criação. Aqueles que<br />
levam a sério o motivo bíblico da criação nunca serão guiados pela ideia de um espírito nacional autônomo<br />
que, em sua individualidade absoluta, é sua própria lei e norma. Eles nunca verão uma comunidade<br />
temporal como a totalidade das relações humanas, das quais as outras esferas da sociedade são apenas<br />
partes dependentes”. DOOYEWEERD, Raízes da cultura ocidental, p. 202.<br />
27 KOYZIS, Visões e ilusões políticas, p. 128.<br />
28 Um exemplo é a comunidade mais básica da qual faz parte o indivíduo: a família. Caso a família<br />
fosse dirigida pelo princípio democrático, da maioria como determinante das diretrizes, poderíamos ter<br />
o absurdo caso de os filhos se unirem e decidirem desobedecer a seus pais, por mais novos que fossem.<br />
Certamente, em uma votação com várias crianças, contra seus pais, sobre a possibilidade de comer doces<br />
a qualquer momento ou assistir TV até tarde, os pais perderiam.<br />
33
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS<br />
vo e comete idolatria. Ela retira Deus de seu trono e o substitui por um falso<br />
soberano, que não consegue, de fato, entregar o que promete – ver todos os<br />
descalabros já cometidos em nome de vários regimes desse tipo, especialmente<br />
no século 20. 29<br />
Além disso, ao enfatizar demasiadamente o coletivo em detrimento do<br />
individual, tais ideologias esquecem o fato de que o ser humano, indivíduo, foi<br />
criado à imagem e semelhança de Deus, tendo um valor próprio, intrínseco,<br />
independente da comunidade em que se insere. Não existe, portanto, nacionalidade<br />
que, por si, torne alguém mais ou menos digno, posto que a dignidade<br />
é algo inerente à pessoalidade. Ignoram, ainda, a realidade de que Deus é,<br />
enquanto Trindade, um e três ao mesmo tempo – ou seja, é uma coletividade<br />
composta por três individualidades. Essa crítica, válida também para a idolatria<br />
individualista, nos indica o valor tanto do indivíduo quanto do grupo, posto o<br />
próprio Criador ter em si, em sua essência, essa mesma natureza de unidade<br />
e multiplicidade.<br />
2.3 Idolatria da tradição<br />
O indivíduo e a ideologia que tem grande apreço pela tradição, pela história<br />
e pelos costumes, via de regra, são denominados conservadores. Koyzis<br />
sumariza a perspectiva conservadora nos seguintes termos:<br />
Os conservadores atribuem grande valor àquilo que provavelmente os torna mais<br />
conhecidos: a tradição. Tradição é o que herdamos do passado, dos nossos predecessores.<br />
É algo que resistiu à prova do tempo e mostrou ser útil à sociedade.<br />
Uma tradição nem sempre pode ser explicada racionalmente, mas ainda assim é<br />
confirmada pela experiência humana. Para o conservador, a tradição representa<br />
a experiência acumulada e a sabedoria das gerações passadas. 30<br />
Numa primeira leitura, faz bastante sentido ter tal perspectiva, especialmente<br />
quando simplesmente nos lembramos da tradição ocidental “recente”,<br />
moldada, em grande medida, a partir de uma cosmovisão judaico-cristã.<br />
Entretanto, o que falar sobre as inúmeras tradições existentes que são absolutamente<br />
incoerentes entre si? Como discernir entre uma e outra sem cair no<br />
erro historicista? Sem relativizar toda a moral, ética, política, sociedade, etc.,<br />
a partir do argumento de que cada comunidade possui seu próprio senso de<br />
verdade, manifestado em sua realidade temporal e espacial – sendo que esse<br />
não deve ser criticado a partir de padrões contemporâneos (ou, muito menos,<br />
29 Nesse quesito, as seguintes leituras são recomendáveis: BESANÇON, Alain. A infelicidade do<br />
século: sobre o comunismo, o nazismo e a unicidade da shoah. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000;<br />
COURTOIS, Stéphane; WERTH, Nicolas et al. O livro negro do comunismo: crimes, terror e repressão.<br />
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015.<br />
30 KOYZIS, Visões e ilusões políticas, p. 95.<br />
34
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44<br />
transcendentais) do que é belo, verdadeiro, correto e bom? 31 Qual a tradição<br />
certa? Existiria uma? Qual o parâmetro para avaliar as normas tradicionais<br />
que devem permanecer e as que devem ser substituídas? 32 Dooyeweerd faz<br />
uma advertência válida:<br />
A tradição, em si, contudo, não é uma norma ou modelo para determinar qual<br />
deveria ser a atitude de alguém diante de um poder que chama a si mesmo de<br />
“progressista”. A tradição contém o bom e o mau, e assim ela própria está sujeita<br />
à norma histórica. 33<br />
Em um sentido, a perspectiva conservadora erra por sua imanência, ou<br />
seja, pela desconsideração de que a tradição, por mais válida que seja, é decorrente<br />
de formulações humanas (boas ou ruins), sujeitas ao agir pecaminoso do<br />
homem e da comunidade que as forma. O conservadorismo, portanto, perde<br />
ao não perceber os parâmetros transcendentais 34 e eternos estabelecidos por<br />
Deus como parte de sua criação – padrões do que é certo, do que é justo, do<br />
que deve ser feito e de como devemos viver. Sem esses padrões, o conservadorismo<br />
acaba por limitar-se em sua própria possibilidade de crítica. Acaba,<br />
31 Nesse sentido, é possível abordarmos que existe uma idolatria da tradição nas ideologias<br />
políticas que adotam uma perspectiva historicista, ao defenderem que as tradições de determinado povo,<br />
por mais que aparentem ser moralmente reprováveis, não podem ser, de fato, julgadas pelo nosso crivo<br />
cultural – o próprio conceito de crivo cultural é posto em xeque, na realidade. Analisando a evolução<br />
do historicismo, Dooyeweerd esclarece o entendimento historicista nesse quesito, revelando a idolatria<br />
em destaque: “Todas as nações têm sua própria mente individual, seu Volksgeist. A nação revela sua<br />
própria cultura em uma liberdade criativa autônoma, incluindo sua própria organização política, linguagem,<br />
cultura, ordem jurídica, belas-artes e assim por diante. Padrões gerais de constituições políticas e<br />
de leis, de padrões estéticos e morais, etc., adaptáveis a todas as pessoas em todos os tempos, segundo<br />
imaginava a filosofia racionalista da Revolução Francesa, não existem”. DOOYEWEERD, Herman. No<br />
crepúsculo do pensamento: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. São Paulo:<br />
Hagnos, 2010, p. 130.<br />
32 Os conservadores estão cientes dessa crítica. João Pereira Coutinho afirma: “Existe uma distinção<br />
crucial entre a afirmação de que sociedades distintas se organizam distintamente (o que parece ser<br />
uma evidência empírica que qualquer pessoa racional aceita e subscreve) e a afirmação radicalmente<br />
diferente de que algumas sociedades, para não dizer todas, podem viver e sobreviver dispensando certos<br />
valores básicos e fundacionais”. COUTINHO, João Pereira. As ideias conservadoras: explicadas a<br />
revolucionários e reacionários. São Paulo: Três Estrelas, 2014, p. 50 e 51.<br />
33 DOOYEWEERD, Raízes da cultura ocidental, p. 91.<br />
34 Como existe um grande número de cristãos conservadores, muitos captam essa crítica e lutam<br />
para superá-la, propondo um conservadorismo cristão. Entretanto, o alerta deve permanecer para todos<br />
nós cristãos: a tradição não é suficiente. Como alerta Gene Veith, ecoando Gênesis 2.15: “Tanto as<br />
funções tradicionalistas quanto as progressistas são extremamente importantes e valiosas. Embora elas<br />
pareçam ser opostas, na verdade são complementares. Elas existem em tensão, mas, ao mesmo tempo,<br />
em harmonia”. VEITH JR., Gene Edward. De todo o teu entendimento: pensando como cristão num<br />
mundo pós-moderno. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 59.<br />
35
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS<br />
assim, por ignorar o eterno em virtude do temporal, o que compromete sua<br />
própria temporalidade.<br />
Por outro lado, mas em sentido conectado ao ponto anterior, uma ideologia<br />
que idolatre a tradição falha em propor um sentido para o qual a sociedade deva<br />
caminhar. Ao, acertadamente, estimar as instituições e valores que existem e<br />
que foram deixados pelos formadores de determinado povo, muitas vezes o<br />
conservadorismo fornece pouco apoio concreto para direcionar os indivíduos<br />
frente às novidades que surgem no organismo social. 35 Assim, responde muito<br />
mais ao questionamento acerca dos caminhos a serem evitados do que sobre<br />
os caminhos a serem trilhados. 36<br />
2.4 Idolatria da igualdade<br />
Acerca da idolatria da igualdade, 37 especialmente no que concerne à<br />
igualdade material, a ideologia socialista 38 talvez seja a principal representante<br />
– apesar de a ideologia liberal, especialmente em sua versão esquerdista<br />
norte-americana contemporânea, também apresentar fortes traços de tal<br />
idolatria. Tendo em vista o fim supremo da igualdade material, o marxismo<br />
estabelece a propriedade privada como o grande mal da humanidade: “Neste<br />
sentido, os comunistas podem resumir sua teoria nesta fórmula única: abolição<br />
35 “O conservadorismo poderá ser assim apresentado como uma ‘ideologia de emergência’ – e no<br />
duplo sentido da expressão: porque emerge em face de uma ameaça específica de caráter radical; e porque<br />
o faz quando essa ameaça põe em risco os fundamentos institucionais da sociedade”. COUTINHO,<br />
As ideias conservadoras, p. 29. Essa citação, ao mesmo tempo, corrobora e contrapõe a crítica feita:<br />
corrobora por indicar um caminho mais de crítica e reação, do que propriamente de ação formadora a<br />
priori e imediata; e contrapõe por apresentar o fato de que os conservadores respondem às novidades no<br />
seio social a partir dos princípios direcionadores de sua ideologia.<br />
36 “Direi agora o que considero a objeção decisiva ao verdadeiro conservadorismo: por sua própria<br />
natureza, o conservadorismo não pode oferecer uma alternativa ao caminho que estamos seguindo.<br />
Por resistir às tendências atuais poderá frear desdobramentos indesejáveis, mas, como não indica outro<br />
caminho, não pode impedir sua evolução. Por esta razão, o destino do conservadorismo tem sido invariavelmente<br />
deixar-se arrastar por um caminho que não escolheu”. HAYEK, F. A. Por que não sou um<br />
conservador. Disponível em: http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2375. Acesso em: 23 ago. 2016.<br />
37 Será analisada a idolatria da igualdade sob o ponto de vista da igualdade de resultados, ou seja,<br />
da igualdade como consequência de processos (desiguais, se necessários) que deve ser almejada acima<br />
de todas as coisas – ela se distingue, portanto, da igualdade em termos de processos ou de direitos. Nesse<br />
quesito, podemos perceber a razão pela qual a idolatria da igualdade de resultados, via de regra, está<br />
atrelada a um modelo de idolatria de Estado, posto que seria essa a entidade que, através de seu controle<br />
político, possibilitaria uma real igualdade econômica última. Para uma discussão sobre essas diferentes<br />
visões de igualdade, ver o capítulo “Visões de Igualdade”, do livro: SOWELL, Thomas. Conflito de visões:<br />
Origens ideológicas das lutas políticas. São Paulo: É Realizações Editora, 2011, p. 143-164.<br />
38 Tendo em vista o forte acirramento dos ânimos na tratativa do tema do marxismo, socialismo<br />
e comunismo, bem como a existência de vertentes com distinções, reforço o lembrete acerca da limitação<br />
do escopo do presente trabalho. A análise reduzida ajuda na compreensão do ponto específico, e<br />
verdadeiro, a ser abordado.<br />
36
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44<br />
da propriedade privada”. 39 A redenção, portanto, estaria na coletivização da<br />
propriedade, posto esta pertencer, de fato, à humanidade e não a indivíduos. 40<br />
No marxismo, o conceito de propriedade estende-se para além de todo o viés<br />
meramente geográfico e expande-se para toda a capacidade produtiva do<br />
indivíduo – nesse quesito, o conceito de mais-valia é trabalhado por Marx<br />
justamente com o propósito de quantificar e qualificar a exploração existente<br />
nas relações humanas, reduzidas ao seu aspecto econômico.<br />
Existe, portanto, uma redução de toda a realidade humana a apenas uma<br />
área da existência, o aspecto econômico, que é absolutizada e colocada no<br />
lugar de Deus, sob um viés de adoração ao deus da igualdade, o único deus.<br />
O marxismo de viés mais contemporâneo, o chamado marxismo cultural,<br />
aplica essa lógica da exploração econômica a todas as áreas da vida, criando<br />
dualismos basicamente entre oprimidos e opressores – os explorados e exploradores.<br />
Assim, percebemos o acirramento do feminismo e sua luta contra<br />
a desigualdade entre homens e mulheres; a luta dos movimentos de direitos<br />
civis contra as desigualdades entre negros e brancos; a luta sobre a questão do<br />
gênero e as desigualdades entre os heterossexuais e homossexuais. Além disso,<br />
permanece a luta entre classes, no confronto entre a elite e os pobres – que,<br />
em algum sentido, está na base de tudo isso, posto ser o “macho heterossexual<br />
branco cristão de elite” o opressor máximo, o inimigo supremo a ser combatido.<br />
Koyzis analisa:<br />
O ídolo da igualdade se torna um deus zeloso, exigindo que seus adoradores<br />
sacrifiquem sobre o seu altar seus outros compromissos e lealdades menos<br />
igualitários. Afinal de contas, a própria constituição íntima da vida humana –<br />
ou, talvez, a própria ordem da criação – exige que as esposas específicas amem<br />
mais a seus maridos que aos outros homens; que um casal de pais ame mais a<br />
seus filhos que aos filhos dos outros; que os patrões remunerem os seus próprios<br />
funcionários, mas não aqueles que não são seus empregados. Qualquer ideologia<br />
que ignore ou negligencie essas responsabilidades específicas, na esperança de<br />
encorajar uma valorização igualitária abstrata da humanidade como um todo,<br />
será rapidamente confrontada pelo fato de que essa abstração não tem substância<br />
suficiente para substituir as fortes redes de compromissos e lealdades particulares<br />
que já existem e caracterizam o mundo real das pessoas humanas. 41 Os<br />
39 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Editora Escala,<br />
2009, p. 72.<br />
40 Ver a crítica coletivista já feita ao socialismo.<br />
41 “A associação simbiótica privada e natural é aquela em que as pessoas casadas, os parentes<br />
consanguíneos e os por afinidade, em resposta ao afeto e à necessidade naturais, concordam com uma<br />
comunicação definida entre eles. [...] essa associação é considerada a sociedade, a amizade, os relacionamentos<br />
e a unidade mais intensos, o canteiro para as sementes de todas as outras associações simbióticas;<br />
daí a razão de os aliados simbióticos serem chamados de parentes, afins e amigos”. ALTHUSIUS,<br />
Política, p. 121.<br />
37
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS<br />
seguidores de uma tal ideologia, serão tentados, assim, a compensar essa falta<br />
de substância com o uso da força coercitiva. 42<br />
Assim, a ideologia progressista 43 do marxismo possui disposição suficiente<br />
para sacrificar, no altar do deus da igualdade, a vida de milhões de<br />
pessoas – como fez ao longo de todo o século 20. Afinal de contas, “os fins<br />
justificam os meios”, como deixou claro o famoso historiador marxista Eric<br />
Hobsbawm 44 ao responder sim quando questionado se a morte de 15 a 20 milhões<br />
de pessoas por Stálin seria adequada se tivesse promovido a revolução<br />
mundial comunista.<br />
Com a finalidade de alcançar o estado redimido da humanidade, liberta<br />
do grande mal que é a desigualdade (materializada na propriedade privada),<br />
o homem (não no sentido de indivíduo para o comunismo) está autorizado a<br />
agir conforme seja mais adequado à consecução de seus objetivos.<br />
A adoração à igualdade ignora inúmeras verdades caras ao cristianismo.<br />
Deus criou os homens com características, qualidades e dons diferentes (ver<br />
1Co 12, por exemplo). Deus criou homens e mulheres com papéis diferentes,<br />
iguais em dignidade, distintos em atribuições (ver Gn 2). Conforme nos ensina<br />
o oitavo mandamento, a propriedade privada é uma realidade criada por Deus<br />
e por ele considerada como digna. Ao determinar “Não furtarás” (Êx 20.15), o<br />
próprio Criador apresenta a realidade de que os bens materiais possuem donos<br />
legítimos, indivíduos na maioria das vezes.<br />
Igualar a todos é reduzir o próprio significado de ser humano. 45 A desigualdade,<br />
portanto, faz parte da natureza do homem e de seus relacionamentos.<br />
O marxismo identifica o homem como sendo essencialmente bom (ver o mito<br />
do “bom selvagem”), mas corrompido pelo grande mal da propriedade privada<br />
(ou das desigualdades em sentido mais amplo), sendo que somente alcançará<br />
sua redenção com a destruição de toda espécie de distinção e desigualdade<br />
existente. 46 Ao fazer isso, substitui a narrativa da criação por Deus, da queda<br />
42 KOYZIS, Visões e ilusões políticas, p. 207.<br />
43 “Não devemos ser enganados pelo adjetivo ‘progressista’, um rótulo que qualquer movimento<br />
espiritual alegremente reclama para si. Uma árvore será conhecida pelos seus frutos”. DOOYEWEERD,<br />
Raízes da cultura ocidental, p. 99.<br />
44 Ver: http://www.dicta.com.br/hobsbawm-e-o-preco-da-utopia/. Acesso em: 20 abr. 2016.<br />
45 Uma breve ilustração profética desse ponto pode ser lida no breve texto de Kurt Vonnegut Jr.<br />
intitulado Harrison Bergeron, escrito em 1961, que começa com a seguinte frase: “The year was 2081,<br />
and everybody was finally equal”. Disponível em: https://archive.org/stream/HarrisonBergeron/Harrison%20<br />
Bergeron_djvu.txt. Acesso em: 24 out. 2016.<br />
46 Essa análise, em grande medida, foi provocada pelo livro Verdade Absoluta, de Nancy Pearcey.<br />
Ela afirma: “O correlativo de Marx ao jardim do Éden era o estado de comunismo primitivo. E como foi<br />
que a humanidade caiu deste estado de inocência para a escravidão e tirania? Pela criação da propriedade<br />
privada, Desta ‘queda’ econômica surgiram todos os males da exploração e luta de classes. A redenção<br />
38
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44<br />
no pecado e da redenção somente em Cristo por uma narrativa falsa 47 – e totalmente<br />
imanente, do princípio ao fim. Além disso, a religião socialista erra<br />
por absolutizar um único aspecto da vida humana, o aspecto econômico, e<br />
enxergar toda a grande complexidade da existência através dele. A ideologia<br />
igualitarista, assim, comete o pecado da idolatria ao substituir o verdadeiro<br />
Deus das Escrituras por um ídolo feito pelas mãos humanas.<br />
2.5 Imanência e idolatria do Estado<br />
Existem duas questões finais a serem respondidas neste tópico: há algo em<br />
comum em todas essas ideologias? Qual o papel do Estado nelas? Respondendo<br />
ao primeiro questionamento: sim. O aspecto da autonomia é um fator comum a<br />
todas elas. Todas essas visões buscam implementar seus respectivos programas,<br />
uns mais revolucionários que outros, é verdade, por meio de seus próprios princípios<br />
e considerando-os suficientes para o cumprimento dos seus objetivos<br />
estabelecidos por si mesmos como fundamentais. Desconsidera-se aquele<br />
que verdadeiramente é transcendente, o que faz com que aspectos imanentes<br />
da existência sejam “transcendentalizados” de forma indevida e idólatra pelas<br />
ideologias. 48 Franklin Ferreira assevera:<br />
Acreditamos que a ausência do “totalmente outro” (totaliter aliter) leva pessoas<br />
a adotar uma ideologia que ambiciona transcendência, a qual supostamente as<br />
auxilia a superar as contradições de uma sociedade existencialmente opressiva,<br />
ocorre pela inversão do pecado original – neste caso, destruindo a posse da propriedade privada. E o<br />
‘redentor’ é o proletariado, os trabalhadores de fábrica urbanos, que se revoltarão em revolução contra<br />
seus opressores capitalistas”. PEARCEY, Nancy. Verdade absoluta: libertando o cristianismo de seu<br />
cativeiro cultural. Rio de Janeiro: Editora CPAD, 2012, p. 152.<br />
47 O aspecto religioso dessa narrativa fica claro, também, no comentário que Ludwig Von Mises<br />
faz acerca dos comunistas, socialistas e intervencionistas: “O dogma fundamental dessa crença proclama<br />
que a pobreza é resultado de instituições sociais injustas. O pecado original, que privou a humanidade<br />
de uma vida feliz nos jardins do paraíso, foi o estabelecimento da propriedade privada e da empresa. O<br />
capitalismo atende apenas aos interesses egoístas dos ferozes exploradores, e condena as massas de homens<br />
íntegros ao empobrecimento e degradação progressivos. O que é necessário para tornar prósperas todas as<br />
pessoas é a submissão dos exploradores gananciosos ao grande deus chamado estado. O motivo ‘lucro’<br />
deve ser substituído pelo motivo ‘serviço’. Felizmente, dizem eles, nem as intrigas, nem a brutalidade<br />
provenientes dos infernais ‘monarquistas da economia’ conseguem dominar o movimento reformista.<br />
A chegada da era do planejamento central é inevitável. Haverá então fartura e abundância para todos”.<br />
MISES, Ludwig von. A mentalidade anticapitalista. Campinas, SP: Vide Editorial, 2013, p. 93-94.<br />
48 Essa imanência é vista, também, em sua visão acerca dos problemas culturais, sociais, econômicos<br />
e políticos a serem “combatidos”. Desconsidera-se a existência de qualquer problema que transcenda<br />
a ordem daquilo que é visível ou, eminentemente, natural – uma perspectiva do homem como pecador,<br />
decorrendo desse fato as misérias humanas, inconcebível, portanto, para muitas dessas visões. Thomas<br />
Sowell, comentando as visões de mundo que adotam tal noção, afirma: “Tendo em vista as possibilidades<br />
irrestritas do homem e da natureza, a pobreza ou outras fontes de insatisfação somente poderiam ser o<br />
resultado de intenções maldosas ou de cegueira diante de soluções rapidamente alcançáveis por meio<br />
da mudança das instituições existentes”. SOWELL, Conflito de visões, p. 37.<br />
39
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS<br />
satisfazendo a “preocupação suprema” de suas vidas, o sonho de “outro mundo<br />
possível”, a “realização da utopia”. 49<br />
O liberalismo econômico clássico, por exemplo, diz que se o Estado sair do<br />
meio do caminho (e aqui respondo uma parte da segunda pergunta), as relações<br />
voluntárias entre os indivíduos livres, serão suficientes para a autorregulação<br />
da vida. A democracia defende que se a soberania popular for devidamente<br />
utilizada ela irá conduzir a um consenso majoritário que garantirá a paz entre<br />
seus cidadãos. O conservadorismo ensina que se formos cuidadosos com as<br />
instituições e as tradições que nos têm servido, a sociedade caminhará, mesmo<br />
que de forma lenta, para aperfeiçoar-se – nunca será perfeita, mas irá melhorar.<br />
O socialismo aponta que um dia o capitalismo será substituído (seja por uma<br />
revolta proletária, seja por uma revolta cultural), o egoísmo deixará de existir, e<br />
todos viverão em uma sociedade igualitária, na qual a paz reinará eternamente.<br />
Os indivíduos, a coletividade, as instituições e/ou o Estado, autônomos,<br />
irão conduzir o mundo para um caminho melhor, declaram essas ideologias.<br />
Em última análise, portanto, revelam seu coração apóstata, que desconsidera<br />
a realidade bíblica de que em Cristo “vivemos, nos movemos e existimos”<br />
(At 17.28), que é Cristo que sustenta “todas as coisas pela palavra do seu poder”<br />
(Hb 1.3) e que por Cristo “todas as coisas foram feitas [...], e, sem ele, nada do<br />
que foi feito se fez” (Jo 1.3). Essas ideologias, assim, ignoram o fato de que<br />
toda a realidade é dependente e não autônoma. O homem é dependência. As<br />
ideologias, via de regra, partem da autonomia.<br />
Em resposta ao segundo questionamento, é possível destacarmos, por<br />
fim, uma das maiores tendências idolátricas do ocidente contemporâneo: a<br />
idolatria do Estado. É fácil, penso, percebermos isso nos modelos extremos<br />
de marxismo ou de liberalismo progressista – respectivamente muito bem<br />
captados, em minha percepção, nos clássicos de George Orwell, 1984, e de<br />
Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo. Entretanto, deixamos passar no dia<br />
a dia a tendência da nossa própria idolatria estatal.<br />
Todas as vezes que vemos problemas culturais, sociais ou políticos e,<br />
automaticamente, consideramos que é papel do Estado resolvê-los, revelamos<br />
uma confiança indevida nele. Todas as vezes que diante do sofrimento e das<br />
dores, nossas ou do próximo, nos questionamos meramente: “Onde estava o<br />
Estado?”, demonstramos que talvez não entendemos bem o seu papel. 50 Todas<br />
49 FERREIRA, Franklin. Contra a idolatria do Estado: o papel do cristão na política. São Paulo:<br />
Vida Nova, 2016, p. 142.<br />
50 É interessante observar a similitude entre esses questionamentos atuais e uma linguagem própria<br />
da religião, que, desde os Salmos, encara o sofrimento e os problemas questionando-se “Onde estava<br />
Deus?”. Franklin Ferreira alerta exatamente sobre isso ao afirmar: “O Estado tem assumido papel redentor<br />
– e a mistura dessas funções [do Estado e da Igreja] vem causando sérios problemas em ambas<br />
as esferas. Portanto, devemos desconfiar do uso de linguagem religiosa misturada às bandeiras políticas,<br />
partidárias ou ideológicas, pois a linguagem das duas esferas não pode se confundir”. Ibid., p. 82.<br />
40
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44<br />
as vezes que terceirizamos a educação dos nossos filhos ao Estado, achamos<br />
que é seu papel fornecer saúde universal gratuita, 51 consideramos que ele é o<br />
definidor do bem e do mal mediante a lei, seguimos uma tendência de idolatria<br />
do Estado. Sempre que fazemos isso, assimilamos a concepção pagã de<br />
Estado, que, conforme Dooyeweerd, rastreando o ensinamento de Aristóteles,<br />
considera:<br />
O Estado foi contado como parte do dito “terreno natural”, e a visão pagã,<br />
aristotélica, predominou. Tal visão se resumia a isto: o Estado é a forma mais<br />
elevada de comunidade. Todas as demais relações sociais, tais como casamento,<br />
família, relações de sangue, agremiações vocacionais e industriais, todos esses<br />
são meramente componentes subordinados que servem ao mais elevado. 52<br />
Ao fazermos isso, colocamos o Estado como o soberano, que rege todas<br />
as demais esferas da vida humana. Ele é o onipotente, onipresente e onicompetente<br />
Estado. O Estado-empresa-hospital-escola-definidor-do-bem-e-do-mal.<br />
Nessa perspectiva, o “Estado [...] adquire uma dimensão transcendente, agindo<br />
para estender seu domínio ideológico sobre todas as esferas da sociedade”. 53<br />
Entretanto, essa não é a visão cristã do Estado. Essa não é a visão cristã do<br />
soberano. Kuyper ensinou, em suas famosas palestras sobre calvinismo:<br />
O Calvinismo tem, por intermédio de sua profunda concepção de pecado, exposto<br />
a verdadeira raiz da vida do Estado, e nos tem ensinado duas coisas: primeira –<br />
que devemos agradecidamente receber da mão de Deus a instituição do Estado<br />
com seus magistrados como meio de preservação agora, de fato, indispensável.<br />
51 Há que se considerar a existência, muitas vezes, de um desejo legítimo atrelado a um pressuposto<br />
errado. O desejo legítimo seria a busca pelo bem-estar do próximo (ou mesmo de todos os indivíduos).<br />
O pressuposto incorreto seria ignorar a impossibilidade real de indivíduos e instituições imanentes resolverem<br />
problemas transcendentes. O indivíduo, diante da lacuna gigantesca entre sua capacidade de atuar<br />
de forma responsável e a necessidade imensa decorrente da queda humana, em todas as áreas, procura<br />
preencher esse vácuo com uma instituição que seria, dados a ela os devidos poderes, em sua visão que<br />
desconsidera o transcendental, capaz de atuar como ele não poderia por si. Assim, tal indivíduo terceiriza<br />
ao Estado uma responsabilidade que, sendo sua, percebe como sendo incapaz de cumprir, na esperança<br />
de que o Estado atue de forma redentiva. Para uma discussão sobre as formas distintas de perceber o<br />
conceito de justiça social e suas consequências: SOWELL, Conflito de visões, p. 219 e ss. Para uma<br />
discussão sobre a lacuna moral existente entre a possibilidade de atuação do homem e a sua necessidade<br />
de atuação: HARE, John. Por que ser bom? Uma reflexão sobre a filosofia moral. São Paulo: Editora<br />
Vida, 2004.<br />
52 DOOYEWEERD, Herman. Estado e soberania: ensaios sobre cristianismo e política. São Paulo:<br />
Vida Nova, 2014, p. 47.<br />
53 FERREIRA, Contra a idolatria do Estado, p. 91. Interessante que, para agir assim, conforme o<br />
próprio autor, “as igrejas tradicionais são pesadamente criticadas, pois o que se quer é debilitar a igreja<br />
em seu papel de contrabalancear o Estado. A família tradicional também é atacada, pois ela é um bastião<br />
de lealdade separado do Estado e, logo, uma inimiga do totalitarismo político”. Ibid., p. 119. Penso que<br />
o leitor atento irá exclamar em seu coração: “Eu já vi esse filme!”.<br />
41
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS<br />
E por outro lado também que, em virtude de nosso impulso natural, devemos<br />
sempre vigiar contra o perigo que está escondido no poder do Estado para nossa<br />
liberdade pessoal. 54<br />
O Estado, portanto, para o cristão, possui um papel bastante delimitado. 55<br />
Existem inúmeros textos das Escrituras Sagradas que nos auxiliam na tarefa<br />
de compreender suas funções, seus limites, sua estrutura – tais como Rm 13,<br />
Pv 8.15-16, Dn 2.21,37-38, Is 41.2-4 – e nenhum deles atribui ao Estado o papel<br />
que atualmente muitos querem que ele tenha. 56 Existe somente um Soberano,<br />
que é o próprio Deus. Todas as instituições, seja o Estado, a igreja, as famílias,<br />
a escola, sujeitam-se a ele como o único detentor de soberania. Nesse quesito,<br />
novamente, cabe o alerta de Dooyeweerd:<br />
Nem uma única esfera diferenciada da vida – de acordo com sua verdadeira<br />
natureza – pode abarcar o homem em todos os relacionamentos culturais. A<br />
ciência é tão incapaz disso como o é a arte; o Estado não é mais adequado para<br />
fazer isso do que a igreja institucional, o mundo dos negócios, a escola, ou uma<br />
organização trabalhista. Por quê? Porque cada uma dessas esferas, de acordo<br />
com sua natureza interna, é limitada em sua esfera cultural de poder. A esfera<br />
de poder do Estado, por exemplo, é tipicamente caracterizada como o poder da<br />
espada. Esse poder é, indubitavelmente, atemorizador. Mas ele não pode abarcar<br />
o poder da igreja, ou das artes, ou das ciências. 57<br />
À luz de tudo o que fora dito, retomamos a pergunta inicial: Qual a melhor<br />
visão política para o cristão adotar? Acredito que não existe uma resposta<br />
exatamente direta a esse questionamento. Todas as ideologias políticas, por<br />
serem criações de homens caídos, possuem aspectos idolátricos – umas de<br />
forma mais acentuada, sem dúvida. Todas as ideologias políticas, por serem<br />
criações de homens criados à imagem e semelhança de Deus, possuem aspectos<br />
de verdade – umas bem menos que outras, isso é inquestionável. Nenhuma<br />
delas deve ser aceita de forma irrefletida pelos cristãos. O cristão precisa ser<br />
crítico a partir de uma cosmovisão biblicamente orientada, retendo aquilo<br />
que há de bom nelas e rejeitando o que há de mau. Mais que isso, precisamos<br />
54 KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 88.<br />
55 Wayne Grudem alerta: “Infelizmente, um estado maior implica também um indivíduo menor e<br />
um cidadão menor; um governo suficientemente grande para lhe dar tudo o que você quer é um governo<br />
suficientemente grande para tomar tudo o que você tem; a mão que ajuda quase sempre se torna a mão<br />
que controla”. GRUDEM, Wayne. Economia e política na cosmovisão cristã: contribuições para uma<br />
teologia evangélica. São Paulo: Vida Nova, 2016, p 95.<br />
56 Esses textos são apenas exemplificativos e não exaustivos da visão bíblica sobre o Estado. Não<br />
iremos abordá-los por não serem objeto da presente análise.<br />
57 DOOYEWEERD, Raízes da cultura ocidental, p. 98.<br />
42
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44<br />
desenvolver uma visão política que seja distintamente cristã, 58 para evitarmos<br />
cair no risco de pensar a política a partir de uma colcha de retalhos retirados<br />
das demais ideologias.<br />
CONCLUSÃO<br />
“O homem só será perfeitamente feliz quando for livre. O homem só<br />
será perfeitamente feliz quando todos forem iguais. O homem só será perfeitamente<br />
feliz quando existir harmonia em sua nação. O homem nunca será<br />
perfeitamente feliz, mas pode ser mais feliz ou permanecer feliz se preservar<br />
as tradições. O homem será mais feliz quando deixar de ser tão individualista.<br />
Somente em uma sociedade verdadeiramente democrática o homem pode ser<br />
verdadeiramente feliz. Para o homem ser mais feliz, precisamos preservar sua<br />
individualidade.”<br />
O que existe em comum em todas essas respostas, dadas pelas diferentes<br />
ideologias? O que isso nos diz sobre o fim principal do homem? A resposta é:<br />
a busca pela felicidade, por satisfação, por sentido, por significado, por descanso,<br />
por paz como fim último da existência. 59 No fim das contas, podemos<br />
traçar esse objetivo comum em todas as ideologias por corresponderem a um<br />
desejo profundo do coração do homem, conforme Agostinho de Hipona bela e<br />
brilhantemente afirmou: “Fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração,<br />
enquanto não repousa em ti”. 60 Somente em Deus alcançamos a felicidade que<br />
as ideologias, e seus ídolos, prometem.<br />
ABSTRACT<br />
The Christian involvement in the public arena, especially in the area of<br />
politics, is the subject of constant discussion. Numerous issues are raised in<br />
this field, such as those related to man’s ultimate purpose of glorifying God<br />
in every aspect of life. This article has in view to help Christians in the task<br />
58 Muitos materiais citados ao longo deste artigo tentam desenvolver tal paradigma, sendo, portanto,<br />
valiosos instrumentos para nós cristãos.<br />
59 Em certo sentido, essa busca é pela eternidade. Por aquilo que é pleno, que é cheio de significado,<br />
que é imperecível. Isso explica a razão de a percepção política, quando “tornada” em ideologia, ter um<br />
caráter religioso, idolátrico. A fé é o que conecta o tempo – nossa vida diária, a existência imanente –<br />
com a eternidade. E é pela fé que as ideologias se pautam, em última análise, ao elevarem ao status de<br />
divindade aspectos criados. Nesse sentido, Dooyeweerd afirma: “Como resultado da queda, a revelação<br />
de Deus na criação, especialmente sua revelação no coração da humanidade, assumiu o caráter de uma<br />
opinião. Onde o coração se fechou e se afastou de Deus, também a função da fé se fechou para a luz<br />
da Palavra de Deus. No entanto, a função de fé ainda permaneceu na posição limite entre o tempo e a<br />
eternidade. De acordo com sua própria natureza, permaneceu orientada para a base sólida da verdade e<br />
da vida, que se revelou na criação. Depois da queda, no entanto, a humanidade buscou essa base sólida<br />
dentro da própria criação, idolatrando e absolutizando o que é, na verdade, relativo e não autossuficiente”.<br />
DOOYEWEERD, Raízes da cultura ocidental, p. 118.<br />
60 AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Paulus, 1997, p. 19.<br />
43
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS<br />
of, from a Christian worldview, dialoguing with some of the main political<br />
ideologies of our time: liberalism, Marxism, conservatism, democracy, and<br />
nationalism. In order to achieve this purpose, the author initially relates the<br />
concepts of ideology and idolatry. Then, departing from the concept of idolatry,<br />
he analyzes the main political ideologies, which are organized in terms of the<br />
idols that stand in their altars: the individual, community, tradition, equality,<br />
and the State. Finally, two aspects are observed that bring together political<br />
ideologies, namely, the autonomous foundation and the search for satisfaction<br />
as an end, with the conclusion that the Christian must relate critically with the<br />
political ideologies.<br />
KEYWORDS<br />
Christian worldview; Idolatry; Politics; Political ideologies.<br />
44
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62<br />
A Morte de Jesus Cristo e a Oferta do Evangelho<br />
Paul Wells *<br />
RESUMO<br />
A fé reformada ou o calvinismo histórico abraça a convicção de que a<br />
redenção é particular, ou seja, de que Jesus Cristo morreu para salvar apenas o<br />
seu povo, as suas ovelhas, e não todos os homens indistintamente. Ao contrário<br />
do que se imagina, essa doutrina não contradiz a oferta universal do evangelho a<br />
todos, antes é um poderoso estímulo a ela. Na verdade, a “redenção particular”<br />
é o fundamento do anúncio geral das boas novas. Somente ela é coerente com<br />
o conteúdo do evangelho, ou seja, que todos os seres humanos são pecadores<br />
e incapazes de se salvar, que Cristo foi escolhido “no seu sangue, como propiciação,<br />
mediante a fé”, que a reconciliação é obra pessoal de Deus e que todo<br />
homem tem o dever de se arrepender e crer. **<br />
PALAVRAS-CHAVE<br />
Teologia reformada; Calvinismo; Pacto; Redenção particular; Arminianismo;<br />
Pregação do evangelho.<br />
INTRODUÇÃO<br />
Há mais ou menos vinte anos, a fé cristã era objeto de um blackout, porque<br />
Deus, julgado incongruente e ultrapassado, “estava morto”. Hoje, nossos<br />
* O autor nasceu em Liverpool, na Inglaterra, e reside no Sul daquele país. É professor emérito da<br />
Faculdade João Calvino, em Aix-en-Provence, na França, e editor-chefe da revista Unio cum Christo. Sua<br />
tese de doutorado (Th.D.) na Universidade Livre de Amsterdã, James Barr and the Bible: Critique of a<br />
New Liberalism (James Barr e a Bíblia: crítica de um novo liberalismo, 1980) foi novamente publicada<br />
em 2016 pela editora Wipf and Stock. Em 2010, recebeu um grau honorário (D.D. Honoris Causa) do<br />
Seminário Teológico Westminster, em Filadélfia.<br />
** Este artigo foi publicado originalmente em La Revue Reformée 194 (1997-3): 63-85. O texto<br />
reproduz uma conferência dada na “Pastorale” de Dijon em 1993. Tradutor: Paulo Sérgio Athayde Ribeiro.<br />
45
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO<br />
contemporâneos procuram novas formas de espiritualidade. Essa evolução,<br />
entretanto, não parece beneficiar a fé cristã tradicional. O retorno ao religioso<br />
não é um retorno nem à igreja, nem ao interesse pela doutrina cristã.<br />
O que desagrada no cristianismo é seu exclusivismo. Uma fé que pretende<br />
ser a única verdadeira só pode ser imperialista e, consequentemente, favorável<br />
à discriminação tanto na terra como no céu – ela é fundamentalmente intolerante.<br />
Seu Deus não é universal, mas sectário. Ousar afirmar que somente um<br />
caminho leva ao único Deus verdadeiro, passando por um homem historicamente<br />
distante e por uma cruz, na qual ele foi crucificado, é qualquer coisa<br />
de inaceitável. Para a maioria das pessoas, toda religião tem sua parcela de<br />
verdade e de erro, e o mundo todo sabe que muitos não cristãos fazem mais<br />
pelos pobres e infelizes do que muitos crentes.<br />
Há muitos cristãos que tropeçam nessa dificuldade para em seguida renunciar<br />
à ideia de que o cristianismo é uma religião única. Todas as religiões<br />
têm o mesmo Deus, “nós iremos todos para o paraíso”, porque o guarda-chuva<br />
de seu amor cobrirá a todos. Consequentemente, a evangelização torna-se uma<br />
empresa duvidosa. Esta concepção está longe de ser exceção no protestantismo<br />
contemporâneo, que é universalista de maneira explícita – o inferno não existe<br />
mais – ou implícita. Ainda que a Bíblia fale do julgamento, a salvação para<br />
todos é uma esperança.<br />
Nessas condições, é preciso que tenhamos sólidas convicções bíblicas<br />
para crer no que o calvinismo histórico afirma, ou seja, na doutrina da redenção<br />
particular: Jesus Cristo morreu com uma intenção precisa, isto é, para salvar<br />
apenas o seu povo, suas ovelhas, seus eleitos, e não todos os homens. Tal<br />
afirmação parece não somente estar no extremo oposto das atitudes modernas<br />
globalizantes, mas também para muitos evangélicos é motivo para abandonar a<br />
evangelização. Por isso na sequência do nosso estudo procuraremos demonstrar<br />
que, ao contrário do que aparenta, a noção de redenção particular é essencial<br />
e constitui um poderoso estímulo à oferta universal da boa nova a todos.<br />
1. A OFERTA UNIVERSAL E A “REDENÇÃO PARTICULAR”<br />
A questão da “redenção particular”, segundo R. L. Dabney, 1 é um dos<br />
pontos mais delicados da teologia calvinista, não em razão dela mesma, mas<br />
por causa das controvérsias que provoca. É sobre esse ponto, que faz parte dos<br />
Cânones de Dort, que se concentram os ataques dos defensores (arminianos)<br />
da “redenção universal”.<br />
1 DABNEY, R. L. Lectures in Systematic Theology. Reimpressão. Grand Rapids, MI: Zondervan,<br />
1972 (1878), p. 513ss. DABNEY, R. L. “God’s Indiscriminate Proposals of Mercy, as Related to<br />
his Power, Wisdom and Sincerity”. In: Discussions Evangelical and Theological. Edimburgo: Banner<br />
of Truth, 1967 (1890), p. 282-314. Robert Dabney, teólogo presbiteriano do século 19, foi capelão de<br />
Stonewall Jackson.<br />
46
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62<br />
Um primeiro problema está na imprecisão da linguagem. J. I. Packer,<br />
como Dabney, critica a expressão clássica redenção limitada. 2 A redenção não<br />
é limitada; Deus realizou, sem limitação, exatamente o que queria na salvação<br />
dos homens. Aliás, mesmo para a “redenção universal”, salvo se queremos<br />
afirmar que todos os homens serão salvos (universalismo puro e simples), a<br />
redenção é limitada não pela determinação de Deus, mas pela vontade humana.<br />
Para o calvinista, Deus salva pecadores. Cada palavra dessa afirmação tem<br />
seu devido peso.<br />
Ao levantarmos a questão sobre o conteúdo da redenção, nós nos colocamos<br />
no coração do Evangelho, no sentido não apenas teológico, mas<br />
também prático. A graça de Deus pode ser derrotada? Cristo morreu em vão?<br />
Um passo em falso nesse terreno muda todo o sentido do evangelho. A “redenção<br />
particular” é a mensagem de toda a Escritura; modificá-la, seria mudar<br />
toda a doutrina bíblica, tanto o sentido de “particular” ou “limitado”, como<br />
também o sentido de “redenção”. Se modificarmos o sentido da redenção<br />
adquirida na cruz, então os sentidos de eleição, de pecado, da graça e da<br />
perseverança dos santos serão igualmente modificados! Então teremos uma<br />
religião diferente! (Packer).<br />
1.1 A doutrina da “redenção particular”<br />
Cristo aceitou morrer por uma esposa que não conhecia? Ele se casará<br />
com quem quer que o escolha? Estas duas perguntas feitas por C. H. Spurgeon<br />
situam bem o assunto. A vontade de Cristo é salvar os seus, ou propor a salvação<br />
a uma hipotética vontade humana?<br />
A questão da “redenção particular” não se choca com:<br />
• A suficiência do sacrifício de Cristo: esse sacrificio é suficiente para<br />
toda criatura e até para aqueles que poderiam ter sido criados;<br />
• A adaptabilidade a todos: ela corresponde às necessidades de todos.<br />
Em um sentido objetivo, o sacrifício de Cristo atinge todos os homens<br />
da mesma maneira;<br />
• A oferta universal: a salvação é dada a conhecer tanto ao eleito como<br />
ao não eleito, quando ouvem o evangelho. 3<br />
Esta doutrina tem como único alvo especificar por quem o Pai entregou<br />
seu Filho à morte e por quem Cristo se deu com o propósito de libertá-lo. Em<br />
2 PACKER, J. I. Le salut biblique et l’annonce de l’Evangile. La Revue Réformée (1992:5), p. 1-20.<br />
Em inglês, Limited Atonement. Sua formulação clássica se encontra no terceiro cânone de Dort (1619).<br />
3 HODGE, A. A. “The Design or Intended Application of the Atonement”. In: The Atonement.<br />
Cherry Hill, NJ: Mack, sd., p. 199-247. A. A. Hodge (1823-1886) foi professor de teologia sistemática<br />
no Seminário de Princeton.<br />
47
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO<br />
geral, os reformados usam a frase de Agostinho sobre a redenção: “Suficiente<br />
para todos, eficaz para os eleitos”. Isto indica que a dignidade e o valor da<br />
cruz são suficientes para todos os homens, mas que, segundo a vontade divina,<br />
essa obra é concretamente aplicada somente ao povo de Deus. A suficiência<br />
da obra não implica que Deus queira salvar todos os homens.<br />
Se a redenção é particular, isso é devido à intenção de Deus quando estabeleceu<br />
a Cristo como o substituto para o pecado deles. Essa intenção implica<br />
as seguintes considerações:<br />
• A redenção é consequência da eleição e não o inverso;<br />
• O amor de Deus é específico e profundo e não geral;<br />
• A morte de Cristo é uma transação pactual e não um ato com objetivo<br />
impreciso;<br />
• O sacrifício de Cristo é eficaz para o seu povo e não para todos de<br />
maneira indefinida;<br />
• Os frutos da morte de Cristo são a fé e o arrependimento daqueles<br />
que creem nele e não uma fé eventual.<br />
A doutrina da “redenção particular” leva em conta a intenção de Deus<br />
e de Cristo, segundo a qual Jesus morreu por seu povo e unicamente por ele;<br />
cada indivíduo que faz parte desse povo será inevitavelmente salvo; fora desse<br />
povo ninguém receberá a bênção da graça especial.<br />
1.2 Essa doutrina depende da natureza da Aliança<br />
É no contexto da aliança divina que podemos compreender a origem, a<br />
natureza e as consequências da morte de Cristo. Desviando-se disso, o arminianismo<br />
4 opõe Deus ao homem quando se concentra sobre a questão da capacidade<br />
da vontade humana. Do lado reformado, igualmente, quando a doutrina<br />
da aliança não é bem compreendida, a relação entre a “redenção particular” e<br />
a oferta universal da salvação em Cristo é falsificada, resultando, de um lado,<br />
no universalismo hipotético de Amiraldo, e do outro, no hipercalvinismo. 5<br />
O pensamento reformado fez distinção, e ela nos parece bíblica, entre o<br />
pacto “da redenção”, que é eterno, feito entre o Pai e o Filho para salvar um povo<br />
4 O arminianismo, muito difundido no mundo “evangélico” a partir do avivamento de Wesley,<br />
é o ensino de Armínio (1560-1609) resumido em cinco pontos, respondidos pelos Cânones de Dort. A<br />
vondade do homem é indeterminada: ele é perfeitamente capaz de responder, por si mesmo, ao Evangelho.<br />
Os arminianos apenas retomaram, porém modificando-os, os argumentos de Erasmo contra Lutero ou<br />
de Pelágio contra Agostinho.<br />
5 M. Amyraut (1596-1664) ensinou que Deus idealiza, em sua vontade, salvar a todos, mas na<br />
prática esse desejo encontra a resistência do pecado do homem. O hipercalvinismo afirma que, uma<br />
vez que a eleição diz respeito unicamente a alguns, o Evangelho não é oferecido a todos através de<br />
um apelo geral.<br />
48
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62<br />
pela cruz, e o pacto “da graça”, que é o meio histórico de realização. Francisco<br />
Turretino 6 diz que são duas as condições da mediação de Cristo. Cristo foi dado<br />
como redentor dos homens e homens foram dados a Cristo. Estes dois atos<br />
alcançam as mesmas pessoas. Do contrário, Deus teria falhado. Para realizar o<br />
pacto de redenção, Jesus se empenha na realização de dois atos:<br />
• Sua morte, pela qual ele se deu como garantia e satisfação pelos pecados<br />
humanos (uma transação legal);<br />
• Sua ressurreição, pela qual ele é o cabeça da nova humanidade, da<br />
igreja, daqueles que lhe foram dados “como recompensa”.<br />
Segundo Turretino, a razão, o conteúdo e a eficácia desses dois atos de<br />
Cristo são os mesmos. No primeiro ato, Cristo se deu pelos homens; no segundo,<br />
ele lhes aplica sua salvação. Mas esta maneira de ver é bíblica? Certamente<br />
não é com os escritos do apóstolo João, em particular o capítulo 17 de seu<br />
evangelho, que se vai provar o contrário! Tudo isso é verdade sobre o pacto<br />
“de redenção”.<br />
Mas esse pacto “de redenção” se realizou historicamente. O pacto “de<br />
graça” é o modo de realização da redenção. Do ponto de vista de Deus, a graça<br />
de Cristo será aplicada aos eleitos. Mas, do ponto de vista do homem, esses<br />
eleitos fazem parte de uma massa de pecadores da qual devem ser retirados.<br />
Eles responderão e serão salvos? Sim, mas deverão ouvir a mesma mensagem<br />
que os outros, a fim de receber a salvação que foi realizada, por eles, em Cristo.<br />
Eles têm de ser chamados, receber a Cristo pela fé e entregar-se a ele. Para<br />
atingir esse objetivo, Deus escolheu o anúncio universal da boa nova de Cristo.<br />
1.3 A “redenção particular” e a oferta do evangelho<br />
O arminiano tem ao menos duas reações diante do exposto. Ele considera<br />
que há aí uma perversão da linguagem bíblica.<br />
(a) A Bíblia, de fato, não diz que Deus ama o mundo, que Cristo se deu por<br />
todos, que ele morreu para salvar a todos, etc.? O calvinista lhe parece culpado<br />
de fazer uma amputação bíblica. Essa opinião pode ser de uma simplicidade<br />
sedutora, mas é errada. A Bíblia diz que Deus ama a igreja, que Cristo se deu<br />
por muitos e que ele morreu por suas ovelhas. O arminiano explica então que<br />
se trata de dois tipos de amor, diferentes em grau. Nada é mais incorreto. Antes,<br />
é melhor reconhecer que, nos dois casos, trata-se do mesmo amor e dos<br />
mesmos beneficiários.<br />
6 TURRETIN, F. The Atonement of Christ. Grand Rapids, MI: Baker, 1978 (1859), p. 114 ss.<br />
François Turretin ou Francisco Turretino foi um teólogo de Genebra e sucessor de Calvino no século 17.<br />
49
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO<br />
Por isso é correto interpretar os termos gerais, os “todos” da Escritura,<br />
como restritivos, e não o inverso. É impossível, como notam W. Cunningham 7<br />
e A. A. Hodge, explicar em que consiste o amor específico de Deus pelos seus,<br />
se de início afirmarmos que esse amor é geral. Nesse caso, Deus não teria mais<br />
amor por uma ovelha de Cristo do que por um lobo que destrói o rebanho!<br />
2) Em segundo lugar, a “redenção particular” não desestimula o anúncio<br />
do evangelho? Ao contrário. Sem ela, nenhum anúncio do evangelho é possível.<br />
Dabney observa que esse problema é do mesmo tipo que o da soberania de Deus<br />
e da liberdade humana. Se Deus, em sua soberania, não tivesse feito o homem<br />
livre, este não seria nem livre, nem verdadeiramente responsável. Da mesma<br />
maneira, se Cristo não tivesse salvado os seus, a oferta do evangelho não seria<br />
a que encontramos na Escritura. Isto é certamente verdade, mas bastante teórico.<br />
Tentemos ser mais concretos. Por que a “redenção particular” exige uma<br />
oferta geral? “Eu não poderia pregar como um arminiano!”, disse Spurgeon.<br />
Ele dá três razões pelas quais a “redenção universal” dos arminianos, apesar<br />
da aparência, não permite um anúncio autêntico do evangelho:<br />
• Cristo morreu para salvar os perdidos, mas, de fato, ninguém ainda<br />
foi salvo pela cruz. Tudo ainda precisa ser aplicado:<br />
“Eu prefiro crer em uma redenção que seja eficaz para todos aqueles a<br />
quem foi destinada a crer em uma “redenção universal” que seja eficaz somente<br />
quando a vontade humana permitir”.<br />
• Se Cristo não morreu especificamente por alguns, o homem é o arquiteto<br />
de sua salvação. É o homem que, por sua resposta, a assegura.<br />
Essa resposta, quem poderá dá-la? Ninguém. Quem poderia?<br />
“Alguém dirá com insistência que Cristo morreu por todos. Mas, então,<br />
por que todos não são salvos? Porque todos não querem crer. Isso quer dizer<br />
que a fé seria necessária para que o sangue de Cristo seja eficaz para a redenção?<br />
Nós consideramos isso uma grande mentira.”<br />
• Deus quer que todos os homens sejam salvos, mas seu desejo é impotente.<br />
Ele espera a resposta do homem:<br />
“Se a intenção de Cristo era salvar todas as criaturas, oh!, como ele deve<br />
ter ficado decepcionado!”<br />
7 CUNNINGHAM, W. Historical Theology. Edimburgo: Banner of Truth, 1960 (1862), vol. II,<br />
p. 323-369; CUNNINGHAM, W. The Reformers and the Theology of the Reformation. Edimburgo:<br />
Banner of Truth, 1967 (1862), p. 413-470. William Cunningham (1805-1861), foi deão do New College,<br />
em Edimburgo, na Escócia.<br />
50
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62<br />
Diante da “redenção universal”, todo pregador deveria se aposentar ou<br />
procurar os meios mais poderosos para transmitir sua mensagem. Felizmente,<br />
as condições da pregação reformada são completamente outras. Por causa da<br />
“redenção particular”, os homens e as mulheres foram realmente salvos na<br />
cruz. A oferta geral por certo não implica, logicamente, em redenção universal.<br />
A oferta é geral, isto é, apresentada a todos aqueles que a ouvem, porque<br />
Cristo é o mediador entre Deus e os homens em geral (1Tm 2.5). O homem é<br />
“responsabilizado” pela oferta do evangelho, que lhe ensina que ele não pode<br />
pretender ser salvo por sua própria força e que lhe mostra o que ele deve fazer<br />
para ser salvo. Quando da oferta do evangelho, Deus chama de maneira eficaz<br />
e salva aqueles por quem Cristo morreu. Assim, na oferta geral do evangelho,<br />
Deus é colocado na posição de soberano em relação à sua criatura. Esta se<br />
encontra em uma posição normal em relação a Deus e aprende que seu dever<br />
é entregar-se a Deus pela fé.<br />
Por que Spurgeon não podia pregar como um arminiano? Porque o homem<br />
é o que manda, e não Deus. O arminianismo engana-se ao pressupor que<br />
a natureza pecadora é normal e que o homem tem capacidade de responder<br />
livremente; assim o homem chega à fé. O calvinismo, ao contrário, coloca o ser<br />
humano que ouve o evangelho diante da responsabilidade de crer e lhe mostra<br />
que ele depende de Deus para receber a fé como um dom.<br />
Agora vamos considerar os dois aspectos da mediação de Cristo segundo<br />
o evangelho: a apresentação de Cristo e o chamado dos homens e mulheres<br />
para Cristo.<br />
2. CRISTO É APRESENTADO AOS PECADORES NO EVANGELHO<br />
Quatro aspectos dessa questão devem ser considerados: o fundamento<br />
da oferta geral da redenção em Cristo, sua natureza, sua intenção e suas<br />
consequências.<br />
2.1 O fundamento da oferta do evangelho<br />
Na oferta do evangelho, Deus não limita sua soberania. Ele exige que<br />
todas as suas criaturas vivam pela fé. Portanto, é normal que o chamado do<br />
evangelho proceda de e encontre sua eficácia em Deus mesmo. Paulo diz<br />
que “vós sois [de Deus] em Cristo Jesus” e que foi o Pai que “nos libertou<br />
do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho do seu amor”<br />
(1Co 1.30 e Cl 1.13).<br />
Por que essa ação de Deus Pai? Ela tem como objetivo conduzir a Jesus os<br />
homens e mulheres que lhe foram dados como recompensa. Jesus mesmo diz:<br />
“Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim... Ninguém pode vir a mim se<br />
o Pai, que me enviou, não o trouxer” (Jo 6.37,44). Esse ato do Pai reflete seus<br />
atributos: sua soberania, sua liberdade, sua graça e seu amor. O evangelho, o<br />
instrumento por meio do qual os filhos de Deus vêm a Cristo, é a expressão da<br />
51
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO<br />
vontade de Deus em salvá-los em seu amor. John Murray afirma que o amor<br />
é a fonte de todos os dons que Deus dá aos ímpios. 8 Por trás da oferta geral de<br />
salvação está o amor de Deus; não um sentimento vago para com o pecador,<br />
mas uma disposição favorável e real que se concretiza no fato de que Deus lhe<br />
indica o caminho da salvação. “Acaso, tenho eu prazer na morte do perverso? ...<br />
não desejo eu, antes, que ele se converta dos seus caminhos e viva?” (Ez 18.23).<br />
A oferta do evangelho não tem como alvo revelar o amor de Deus aos<br />
homens. Ela é o instrumento dessa revelação. Seu objetivo é exibir os atributos<br />
de Deus: a glória do próprio Deus que é amor. A glória de Deus e a realidade de<br />
seu amor por suas criaturas, que se expressam na oferta geral, também devem<br />
determinar em que espírito a pregação do evangelho deve ser feita. Não somos<br />
frequentemente culpados de ter um amor frio para com Deus e por isso nosso<br />
desejo de ver o pecador vir a Cristo fica enfraquecido?<br />
2.2 A natureza da oferta geral<br />
Se Cristo não morreu senão somente pelos seus, como apresentar o Cristo<br />
do evangelho? Packer fala do evangelismo moderno, cuja estrutura é a seguinte:<br />
“Deus ama você e tem um plano maravilhoso para a sua vida; Cristo morreu<br />
por todos os homens; ele quer ser o seu Salvador; aceite-o no seu coração”.<br />
O arminiano pensa que o evangelho pregado pelo calvinista não é para<br />
todos os homens, uma vez que Cristo morreu somente pelos seus, e o calvinista<br />
acha que, no sistema arminiano, a redenção é limitada, ou seja, a morte de Cristo<br />
não é suficiente para ninguém; a vontade do Senhor de salvar é impotente e<br />
depende da suposta boa vontade do pecador.<br />
Qual é o problema colocado pelo arminianismo? Aproveitando uma distinção<br />
de Dabney, o problema repousa sobre uma confusão quanto à palavra<br />
“redenção”. Nesse sistema o sacrifício de Cristo não é objeto de nenhuma<br />
transação; ele é aplicado a todo indivíduo salvo. Se todos são eleitos, a natureza<br />
do sacrifício seria a mesma para todos. Dabney argumenta que, no Novo<br />
Testamento, se a expiação do pecado pelo sacrifício de Cristo é impessoal e<br />
jurídica, a reconciliação é pessoal. Assim, pela vocação eficaz, a expiação impessoal<br />
é aplicada de maneira pessoal e positiva e seu destinatário é reconciliado<br />
com Deus. Na mediação de Cristo, a expiação é um ato único e impessoal,<br />
enquanto que a reconciliação é múltipla e engloba os indivíduos reconciliados.<br />
Essa distinção, como destaca A. A. Hodge, é uma aplicação prática daquilo<br />
que distingue os pactos “da graça” e “da redenção”.<br />
Quando Cristo diz, em João 6:37, que os seus virão a ele e que não os<br />
deixará fora, Ele põe em evidência sua intenção de fazer o que o seu Pai quer.<br />
8 MURRAY, J. The Forgotten Spurgeon. Edimburgo: Banner of Truth, 1978, p. 69-116. MUR-<br />
RAY, J. “The Free Offer of the Gospel”. In: Collected Writings. Edimburgo: Banner of Truth, 1982,<br />
vol. IV, p. 113-132. John Murray foi professor no Seminário Westminster, em Filadélfia, de 1937-1966.<br />
52
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62<br />
Cristo conduz sua ação com a firme intenção de atrair a si todos aqueles que<br />
pertencem ao Pai. Ele é bastante poderoso para salvar; a mediação formalmente<br />
realizada na cruz se completa na aplicação da salvação e na intercessão<br />
em favor dos seus filhos. Todos os seus virão a ele e, como diz John Bunyan,<br />
“Cristo não encontrará neles nada que lhe desagrade”. 9<br />
Na oferta geral, existem duas aplicações dessa verdade. A expiação é<br />
apresentada e ofertada a todos, porque o sacrifício de Cristo é impessoal. Na<br />
pregação da cruz o amor de Deus é anunciado a todos, sem alusão à eleição<br />
ou à não eleição de uns e de outros. É a obra da cruz que é apresentada na<br />
pregação evangélica, porque é aí somente que o amor de Deus é conhecido.<br />
O pregador não tem nenhum mandato para ir além e acrescentar “Deus vos<br />
ama” e ainda menos para afirmar que “a graça de Deus é para todos, sem nenhuma<br />
condição”. Deus não exprime seu amor diretamente ao pecador, mas<br />
pela mediação da cruz. A relação entre Deus e o pecador é de julgamento e de<br />
graça, que ganha sentido somente na perspectiva do Calvário.<br />
O que sabemos, de fato, sobre o amor de Deus e de sua graça por X ou<br />
por Y, pecadores como nós diante de Deus? Nada. Um e outro têm, talvez, um<br />
câncer e podem morrer em seis meses e perder-se eternamente. O que lhes<br />
devemos dizer com urgência?<br />
Em segundo lugar, o pregador, como Deus mesmo faz, tem o dever, em<br />
suas declarações, de esconder-se atrás da cruz. Ele não está qualificado para<br />
administrar a graça de Deus. Por outro lado, está qualificado para proclamar<br />
o nome do Deus “rico em misericórdia”. O anúncio do evangelho tem como<br />
objetivo interpelar as pessoas, não oferecer-lhes uma graça pessoal. É Cristo<br />
quem lhes aplica individualmente sua graça; é sua tarefa, e não nossa, levar<br />
sua obra a bom termo. Sejamos, então, modestos, dependentes de Cristo, mais<br />
preocupados ainda que os arminianos em focar a cruz e mais desejosos em ver<br />
Cristo completar sua obra de reconciliação. Aí os pecadores dirão sim à causa<br />
de Cristo... apesar de nós!<br />
2.3 A intenção da oferta do evangelho<br />
Qual é a intenção de Deus quando deseja que o evangelho seja apresentado<br />
a todos os seres humanos, mesmo àqueles que jamais crerão? A quase<br />
totalidade dos ataques arminianos contra a posição calvinista se concentra aqui.<br />
Se Deus oferece sua misericórdia a todos, inclusive àqueles que ele sabe que<br />
não crerão, como evitar a conclusão de que lhe faltam sabedoria e poder, ou<br />
que sua sinceridade é duvidosa, perguntam eles?<br />
9 BUNYAN, John. Come and Welcome to Jesus Christ: A Discourse on John 6:37. Bunyan<br />
(1628-1688), um puritano reformado, é autor do célebre O Peregrino.<br />
53
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO<br />
K. Schilder 10 definiu com precisão o sentido da palavra “oferta”. Não se<br />
trata de uma interrogação que espera uma resposta indiferente, como “você quer<br />
outra xícara de café?”. A oferta do evangelho se efetua segundo os princípios<br />
da aliança e nenhum homem ou mulher tem algum direito de responder “não”.<br />
Vejamos isso em detalhe.<br />
Do lado divino, a oferta do evangelho não é condicionada por nada; ela<br />
é absoluta, séria e bem-intencionada. O que é proposto é preciso: Deus salva,<br />
ele salva por graça, realiza o que promete, sua Palavra é certa. Como diz<br />
Spurgeon, jamais uma pessoa que levou Deus a sério ficou sem o Salvador. O<br />
evangelho oferece uma salvação que depende de Deus e não do homem, que<br />
se realiza quando o homem reconhece o Senhor. Deus se engaja na criação<br />
de um novo coração, em dar a fé e regenerar todos aqueles que olham em sua<br />
direção para serem salvos.<br />
Do lado humano, como disse Bunyan, a promessa de Deus é condicional.<br />
Ela chama à obediência, ao arrependimento, a receber a mensagem e a se converter.<br />
A conversão humana é a expressão da regeneração operada por Deus. A<br />
resposta humana à aliança leva em conta os “se” e os “e”. “Se tu...” e “vinde e<br />
vede...” convidam a acolher a mensagem. Assim, a oferta geral, fundamentada<br />
sobre a capacidade absoluta de Deus em salvar, compreende uma exortação<br />
lançada ao homem para que ele receba o evangelho nas condições propostas.<br />
O homem, enquanto criatura, é chamado a aceitar essa palavra em obediência<br />
e fé. Assim, o caráter da oferta, nesse sentido, é universal. Cristo jamais rejeita<br />
uma pessoa que vem a ele em resposta ao evangelho.<br />
O arminiano objetará que, nessas condições, Deus zomba do pecador,<br />
porque este, segundo o esquema calvinista, não pode dar uma resposta positiva.<br />
E, é verdade, ele não pode dar. Mas essa incapacidade diminui o seu dever?<br />
Certamente que não. O homem não vem a Cristo, nem responde ao seu chamado,<br />
porque ele não quer. Por isso ele é responsável. Sua atitude em recusar<br />
a oferta de Deus não é normal, nem justificada. Ela é testemunha da gravidade<br />
e da anormalidade do pecado, que o impede de reconhecer a grandeza do amor<br />
de Deus apresentado no evangelho. Por isso Packer diz que a compaixão de<br />
Deus pelos pecadores os convida a ter compaixão deles mesmos.<br />
Se a oferta de Deus fosse assim, poderíamos perguntar se seria sincera,<br />
dirá o arminiano. Se Deus deseja mesmo a salvação dos pecadores,<br />
porque não a realizou em todos aqueles que ouvem a boa nova? Se ele não<br />
faz isso, é porque sua compaixão é apenas aparente. Ainda, a propósito de<br />
Mateus 23:37: “Jerusalém, Jerusalém... Quantas vezes quis eu reunir os teus<br />
filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não<br />
o quisestes!”, o arminiano acha que a compaixão de Deus é real, mas ela<br />
10 K. Schilder (1880-1952), teólogo e pregador holandês, foi autor de uma trilogia sobre os sofrimentos<br />
de Cristo.<br />
54
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62<br />
é contrariada pela resistência do homem. Alguns calvinistas não souberam<br />
responder bem a este argumento. Foi assim que Calvino e Turretino afirmaram<br />
que, nesse texto, a compaixão de Cristo, em razão de sua humanidade<br />
e suscitada pelo seu sofrimento, não tinha o propósito de permitir-lhe salvar<br />
os judeus, salvação que não estava nos planos de Deus. Entre outras, esta<br />
explicação nos parece frágil.<br />
Dabney propõe uma explicação mais próxima dos textos que, como 1 Timóteo<br />
2, evocam o desejo de Deus de salvar todos os homens e sua compaixão.<br />
A compaixão de Deus pelos perdidos é real, sincera e profunda. Deus pode, sem<br />
contradizer-se, desejar o que ele não decretou. Existem em Deus razões secretas<br />
que não conhecemos, que estão escondidas em seu conselho não revelado e que<br />
fazem com que sua compaixão não se manifeste concretamente. W. Cunningham<br />
e J. Murray adotam essa posição quando dizem que pode haver em Deus um<br />
desejo de realizar o que não decidiu em sua vontade secreta. Dabney dá uma<br />
ilustração disso: George Washington assinou a condenação à morte do espião<br />
André; ao fazer isso ele chorou de compaixão, mas esta teve que ceder diante<br />
das razões superiores que haviam motivado sua decisão.<br />
Na oferta de salvação pelo evangelho da cruz, Deus manifesta sua compaixão<br />
pelo pecador, exprime seu desejo de vê-lo arrependido e oferece sua graça<br />
de maneira autêntica e real. Há aí uma espécie de paradoxo. A expiação feita na<br />
cruz e o amor de Deus tornam-se motivos de perdição para o pecador. Como<br />
é grande a perversidade do pecado! O que há de mais dramático que desprezar<br />
o amor divino? “Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o<br />
mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele” (Jo 3.17).<br />
“Esse verso afirma que a condenação não era o objeto inicial da missão<br />
de Cristo... que era manifestar, pelo sacrifício de Cristo, a compaixão de Deus<br />
para com todos” (Dabney). Por isso o pregador do evangelho não pode ter<br />
outra intenção além daquela que o próprio Deus tem: a compaixão pelos perdidos,<br />
o amor que Deus manifestou por eles na cruz e seu desejo de que sejam<br />
salvos. O inimigo a enfrentar: a perversidade do pecado, que é a rebelião em<br />
face do amor de Deus. Utilizemos, então, todas as armas à nossa disposição<br />
para desmascarar esse inimigo, o destruidor do homem, e advertir aqueles que<br />
“preferem as trevas à luz”.<br />
2.4 Os efeitos da oferta geral do evangelho<br />
Cunningham afirma que a Escritura não estabelece elo de causalidade<br />
entre o valor infinito do sacrifício de Cristo e a oferta geral do evangelho. A<br />
“redenção particular”, que resulta da vontade divina, aplica e personaliza a<br />
oferta geral de salvação. Deus anuncia a salvação a todos em Cristo e projeta<br />
sua luz no coração de alguns indivíduos. Aqueles que, à luz de João 6, são<br />
dados a Cristo pelo Pai, virão a ele. Ao mesmo tempo, Cristo não negligencia<br />
55
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO<br />
a salvação daqueles que recebeu do Pai. Sua missão é comunicar sua graça aos<br />
seus e tornar efetiva sua vinda. A oferta do evangelho, que conduz à “vocação<br />
eficaz” do pecador, implementa, em seu caso, a razão de ser da cruz:<br />
• Ao dom do Filho sobre a cruz, corresponde o dom do Espírito que<br />
testemunha do Filho;<br />
• À compaixão manifestada publicamente dando o Filho pelos pecadores<br />
corresponde o amor indizível de Deus por seus eleitos;<br />
• À morte de Cristo que é bênção para toda a humanidade corresponde<br />
a morte de Cristo enquanto garantia da vida eterna para os<br />
filhos de Deus;<br />
• À morte de Cristo que provê um tempo de paciência divina corresponde,<br />
para os eleitos, a justificação, a propiciação e a fé.<br />
De um mesmo convite procedem dois resultados: a vocação eficaz<br />
de alguns pecadores e a perdição de outros. Mas o evangelho não é causa de<br />
perdição para ninguém: a perdição é um efeito indireto da mensagem da cruz,<br />
devido à terrível dureza do coração do homem natural. A missão do pregador<br />
é dramática. Está ele realmente consciente da gravidade da luta espiritual na<br />
qual está engajado, contra os poderes das trevas, que reinam não somente nos<br />
lugares celestiais, mas também nos corações de seus ouvintes?<br />
3. OS QUE VÊM A CRISTO<br />
Aquele que encontra Cristo encontra a vida. Como disse Bunyan, “há em<br />
Cristo tamanha glória que, uma vez descoberta, ela volta o coração para ele e o<br />
atrai”. A proclamação do evangelho toma a forma de uma promessa oferecida<br />
a todos. Foi assim que Cristo mesmo pregou. Pensemos nas sete afirmações<br />
que começam por “Eu sou”. Jesus revela que ele está em seu papel messiânico<br />
e acrescenta uma promessa àquele que o reconhece como tal. A proclamação<br />
geral do evangelho assume, então, a forma do pacto, como segue:<br />
• Anúncio feito a todos;<br />
• Promessa de recompensas como frutos da graça;<br />
• Convite a respeitar suas condições;<br />
• Ordem para se arrepender e crer.<br />
A pregação da boa nova deve conter esses aspectos. Por isso Paulo, após<br />
ter declarado que Deus quer que “todos os homens sejam salvos e cheguem<br />
ao pleno conhecimento da verdade”, ou seja, depois de evocar a compaixão<br />
de Deus e como ela se manifesta, afirma que foi estabelecido como pregador<br />
e apóstolo para proclamar o evangelho (1Tm 2.4-6).<br />
56
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62<br />
Quem, então, virá a Cristo? Aquele que foi tomado pelo que Cristo fez<br />
e que leva a sério a sua palavra. É necessário insistir sobre este ponto desde<br />
o início, porque toda posição teológica que o negligencia vai inevitavelmente<br />
admitir a capacidade do homem como sujeito da salvação. O Messias é todo-<br />
-poderoso, enquanto que o homem é incapaz.<br />
3.1 A incapacidade do homem<br />
O erro dos arminianos é fazer do arrependimento e do abrir do coração<br />
condições para o dom da graça. Dito de outra maneira, eles colocam a conversão<br />
antes da regeneração e confundem os dois. O homem teria tão pouco calor<br />
espiritual? Não. Ele tem a temperatura de um cadáver. Como disse Spurgeon,<br />
o milagre da graça foi Deus ter descido abaixo do grau zero da morte para dar<br />
vida ao pecador.<br />
Nenhum pecador pode, por natureza, entregar-se a Cristo. A tarefa dolorosa<br />
da pregação é dizer isso. O arminiano objetará dizendo que o homem<br />
certamente é pecador, mas isso não o impede de vir a Cristo. Exprimirmos<br />
isso em nossa prática homilética é uma tentação. Mas o evangelho adverte que<br />
o ser humano não pode vir a Cristo e aceitá-lo. Ele é inteiramente incapaz.<br />
Quanto a isso, sua situação espiritual não tem esperança. Ora, paradoxalmente<br />
é precisamente aí que o pecador consciente encontra sua esperança. Spurgeon<br />
insiste que devemos afogar nossa autossuficiência até que reconheçamos o<br />
desespero de nossa situação e nossa total incapacidade para sairmos disso.<br />
Quando alguém percebe claramente a tragédia que é ser pecador diante do Deus<br />
santo, o milagre da graça será crer que ele é perdoado e aceito pelo Senhor. O<br />
pecador depende somente de Deus para a sua salvação.<br />
Assim, a pregação do evangelho prende o pecador a Cristo, para que<br />
compreenda que não há nenhuma esperança, nenhum recurso, salvo em Cristo<br />
mesmo, e que ele venha a clamar: “Meu Deus, estou desesperado, salva-me por<br />
tua graça!” Ele se reconhece incapaz de salvar-se e sabe, psicologicamente, que<br />
sua salvação depende de Deus. Esse é o motor, a convicção que o impulsiona<br />
a Cristo. O carcereiro de Filipos, ao perguntar “Que devo fazer para que seja<br />
salvo?”, não tinha em mente fazer qualquer coisa em seu benefício. Ele se via<br />
perdido. Por isso Spurgeon afirma que há dez mil vezes mais esperança no<br />
calvinismo que no arminianismo, que afirma que todos podem ser salvos se ao<br />
menos o quiserem muito. No calvinismo é diferente: o pecador é um cadáver...<br />
mas Cristo é a ressurreição e a vida. O pecador que se vê como tal, não pode<br />
vir por si mesmo, mas Deus lhe dará a vontade; ele é cego, mas Deus diz:<br />
“Guiarei os cegos por um caminho que não conhecem” (Is 42.16).<br />
O Espírito Santo, ao suscitar a vida no homem morto pelos seus pecados,<br />
realiza o milagre da graça. De outro modo o pecador viria a Cristo? Não, ele<br />
não pode e nem mesmo quer. No entanto, ele virá. Ele receberá a vida, porque<br />
Deus realizará em seu coração o que ele é incapaz de fazer. Eis porque a dou-<br />
57
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO<br />
trina da “redenção particular” está no coração da oferta do evangelho, porque<br />
ela serve de fundamento para a esperança de que os homens virão a Cristo para<br />
receber a salvação. Se Cristo não salvar os pecadores, sua decisão ou nossa<br />
palavra não o fará. Se ele foi verdadeiramente morto por eles, então virão a<br />
Cristo! Quando ouvimos o chamado de Cristo para ir a ele, não queremos nem<br />
podemos; mas se esse chamado é acompanhado da seguinte precisão: esta<br />
palavra é para “aqueles que não têm dinheiro”, para “aqueles que têm sede”,<br />
para “aqueles que estão cansados e sobrecarregados”, então nos damos conta<br />
de que essa palavra é para nós e corresponde à nossa situação. Então não podemos<br />
fazer outra coisa senão correr para Cristo, cujo Espírito é vida e cujo<br />
convite é caloroso e constitui nosso único recurso.<br />
3.2 O mandamento de ir a Cristo<br />
Porque Deus é o soberano do pacto, ele pede ao pecador que acolha<br />
positivamente o evangelho. Trata-se mesmo de um mandamento, como demonstra,<br />
por exemplo, Isaías 55, com muitos de imperativos: “vinde... buscai...<br />
invocai... escutai...”.<br />
O arminiano diz que a tese calvinista não se sustenta se o pecador não<br />
puder ir livremente. Deus perderia seu tempo porque somente alguns, os seus<br />
eleitos, responderiam. Isso merece os seguintes comentários:<br />
(a) Formalmente, como diz Dabney, o fato de Deus formular mandamentos<br />
não implica que o homem pecador tenha a capacidade de observá-los. Quem<br />
pode “amar o Senhor de todo o seu coração”? Ninguém. Mas é da natureza de<br />
Deus exigi-lo. John Owen insistiu sobre esse ponto. 11 O dever de todo pecador<br />
não regenerado é voltar-se para Cristo, em arrependimento e fé, para ser salvo.<br />
Ele deve crer que:<br />
• O evangelho é verdadeiro;<br />
• A salvação é somente pela fé em Cristo;<br />
• Todo pecador precisa de um Salvador;<br />
• Cristo salvará o pecador se este se entregar a ele, conforme as indicações<br />
do Evangelho.<br />
Na oferta arminiana falta a urgência da obrigação. Essa oferta está enquadrada<br />
numa possibilidade: “Permita-me ajudá-lo com esse tesouro” (Schilder).<br />
(b) Materialmente, a vontade regenerada necessita receber indicações<br />
claras sobre a maneira de se comportar ao escutar o chamado do evangelho.<br />
Como poderia ser de outra forma? Os eleitos estão no meio da humanidade<br />
perdida. Aliás, é por isso que o chamado só pode ser geral. O pacto da graça,<br />
11 OWEN, John. Works. Edimburgo: Banner of Truth, 1960 (1850-1853), vol. X. John Owen,<br />
grande teólogo puritano do século 17, foi autor prodigioso e capelão de Cromwell.<br />
58
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62<br />
diz C. Hodge, 12 é proposto a toda a humanidade e a condição para entrar nesse<br />
pacto é a fé. A fé não é a causa da salvação, mas sua condição. É dessa forma<br />
que Deus indica aos seus como eles podem responder ao chamado.<br />
(c) O homem é passivo no momento em que Deus o regenera, mas a regeneração<br />
reanima sua liberdade ao criar nele uma nova disposição, livre do<br />
domínio do pecado. Como Abraham Kuyper 13 constata, “nascido de novo e<br />
eficazmente chamado, o homem se converte”. Kuyper salienta que, no Novo<br />
Testamento, a conversão é considerada quase 140 vezes como um ato do<br />
homem, e somente 6 vezes como um ato do Espírito Santo! Assim, quando a<br />
Escritura exorta o homem a se converter, ela evoca uma resposta humana ao<br />
evangelho, resultante da regeneração. Essa resposta é possível porque Deus<br />
regenera aqueles por quem Cristo morreu e, ao restaurar sua liberdade, torna-<br />
-os capazes de dizer “sim”. Isto possibilita duas importantes consequências<br />
no que concerne à proclamação do evangelho:<br />
(a) Na oferta geral, não convém encorajar os ouvintes a nascer de<br />
novo, nem exortá-los a crer que Cristo morreu por todos e, portanto, por eles<br />
pessoalmente. Owen afirma que não é possível afirmar: “Creia, porque Cristo<br />
morreu por você pessoalmente”. A aplicação pessoal da morte de Cristo faz<br />
parte do dom divino da regeneração. Se a expiação é impessoal, a reconciliação<br />
é pessoal. Também a oferta do evangelho deve permanecer impessoal<br />
quando endereçada a cada pessoa. Nós temos que exortar quem quer que seja<br />
a arrepender-se e a crer, sem temer dar a essa exortação o imperativo de uma<br />
ordem sobre algo que tem que ser feito, porque a salvação exige essa condição.<br />
(b) A ortodoxia calvinista às vezes tem esquecido esse aspecto da pregação,<br />
que se apresenta frequentemente como uma descrição teológica, teórica e<br />
árida, sobre o que é arrependimento e fé. Por medo do arminianismo, chega-se a<br />
dispensar o homem de seu dever em voltar-se para Cristo, enquanto que é confiando<br />
radicalmente em Cristo que somos salvos e não se contentando apenas<br />
em tomar consciência intelectual da natureza da regeneração. Essa tomada de<br />
consciência é insuficiente, embora seja necessária. 14 Assim, a ortodoxia pode<br />
gerar a presunção, que resulta no formalismo, e nossas comunidades protestantes<br />
estão cheias de “cristãos” de fato irregenerados que se creem salvos porque<br />
podem repetir o Credo dos Apóstolos. No entanto, a salvação é abandonar-se<br />
a Cristo, que salva! O fantasma do arminianismo teria o poder de fazer nosso<br />
apelo à fé menos urgente que o de Cristo?<br />
12 Charles Hodge (1797-1878) foi professor no Seminário de Princeton e autor de uma excelente<br />
teologia sistemática.<br />
13 Abraham Kuyper (1837-1920), teólogo e primeiro ministro dos Países Baixos, escreveu, entre<br />
outras, uma obra notável sobre o Espírito Santo.<br />
14 Para os reformadores, a fé não é somente um conhecimento, mas antes de tudo confiança<br />
(fiducia).<br />
59
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO<br />
3.3 A promessa é para aqueles que vêm<br />
Packer observa que, na oferta do evangelho, nós não trazemos os homens<br />
a Cristo, mas trazemos Cristo aos homens. Isto pode surpreender, mas, se refletirmos,<br />
nada é mais exato. É a regeneração que faz o homem vir a Cristo;<br />
nosso papel é apresentar a boa nova com sua promessa.<br />
Deus dá o que ordena no evangelho. Ele sabe quem virá, ele o torna capaz<br />
em vir e, ao acrescentar sua promessa, o encoraja a receber a Cristo. Aquele<br />
que vem, será recebido. Mas como virão? Bunyan mostra que o movimento é<br />
espiritual; impulsionado pelo sentimento de incapacidade absoluta, pelo perigo<br />
que o pecado traz, o pecador corre para Cristo para obter socorro. A promessa<br />
de ser aceito, de ser bem-recebido, fortifica a vontade de abandonar tudo por<br />
ele (Lc 14.26,27).<br />
Podemos “nos decidir” por Cristo? Sermos salvos ao assinar um cartão de<br />
decisão? Levantar-nos para obter a salvação? Certamente não. Packer diz que<br />
essas manifestações modernas sugerem que podemos decidir por nós mesmos<br />
e que esse assunto é nosso. O ato de decidir implica uma automotivação. “Vir<br />
a Cristo”, ao contrário, é um ato que corresponde à renúncia de si mesmo e<br />
uma total confiança na promessa de Deus. Nós não vamos a Cristo porque<br />
somos capazes de “tomar uma decisão”, mas porque Cristo promete nos receber.<br />
É o engajamento de Cristo que motiva o pecador perdido e o traz para ser<br />
salvo. O evangelho moderno é umbilical: ele encoraja uma focalização sobre<br />
nós mesmos e não o olhar em direção a Cristo e seus méritos. Com um ponto<br />
de partida como esse, não surpreende que a vida cristã pareça ser uma série de<br />
experiências ou múltiplas conversões.<br />
O evangelho glorifica a imensidade do amor de Cristo, que promete receber<br />
aqueles que não “valem” nada. Não temos perdido aquele sentido tão rico<br />
do amor de Cristo, que recebe os cegos e coxos, aqueles que não são nada? Que<br />
maior privilégio pode haver para um vale-nada que sentar-se à mesa do Rei?<br />
O Rei da Glória, ele mesmo nos convida e promete nos saciar. Sua recepção<br />
real é pessoal, como da ovelha perdida, do filho pródigo, do pecador que se<br />
arrepende, fonte de alegria no céu. O chamado vem de Cristo e é orientado<br />
para ele. “O Espírito e a noiva dizem: Vem!” (Ap <strong>22</strong>.17). Esse chamado extrai<br />
toda sua força do fato de que Cristo recebe apenas aqueles por quem morreu.<br />
Cristo é glorificado em seu ofício de mediador, quando os pecadores vêm a<br />
ele. E ele “é rico em perdoar” (Is 55.7).<br />
3.4 Cristo, morto por mim também<br />
Turretino faz uma distinção clássica na teologia reformada, mas hoje<br />
esquecida, entre a fé formal e a fé consoladora. A fé formal conduz somente<br />
a Cristo para a salvação e implica um conhecimento de nossa miséria, uma<br />
resposta ao chamado divino e uma plena confiança na promessa de Cristo.<br />
60
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62<br />
Essa é a fé justificadora. A fé formal é direta, voltada para Cristo e encontra<br />
a salvação nele, isto é, ela não tem nada do homem. A fé consoladora é a<br />
consequência interior da fé formal; ela nos assegura que Cristo morreu por<br />
nós. Foi essa a grande experiência dos irmãos Wesley em 1738, ao lerem os<br />
textos de Martinho Lutero, e que Charles Wesley descreveu assim: “Eu custei,<br />
eu esperei e eu orei para sentir que Cristo me ama e que ele se deu por mim”.<br />
Packer diz que essa segurança está fundamentada no conhecimento do amor<br />
de Deus e não pode preceder a experiência da fé que salva. Normalmente, o<br />
cristão raciocinará assim:<br />
• Cristo morreu por todos aqueles que creem;<br />
• Eu vim a Cristo e creio;<br />
• Então Cristo morreu por mim também.<br />
A fé consoladora não pode ser apresentada como uma razão para crer;<br />
ela é apenas consequência do ato de fé. A inversão dessa ordem é o erro do<br />
arminiano. 15 Da mesma maneira que diz ao pecador “Deus o ama”, ele solicita<br />
sua fé pessoal e lhe pede para crer que Cristo morreu por ele pessoalmente.<br />
Ora, o evangelho não nos pede para crer que “Cristo morreu por você”, mas<br />
para crer em Cristo. Spurgeon, como sempre, foi ao ponto. Ao crer que Cristo<br />
morreu por você, diz ele, você pode crer naquilo que não é verdade. E assim<br />
podemos ir para o inferno por não termos vindo a Cristo conforme o evangelho,<br />
tendo crido simplesmente que Cristo morreu por nós! A essência da fé que<br />
salva não reside nessa segurança. A fé que salva é aquela que confia em Cristo<br />
e descansa nele para sua libertação. Estar seguro de que Cristo me salva é fruto<br />
da fé que salva, isto é, a confiança posta em Cristo para ser salvo.<br />
CONCLUSÃO<br />
A “redenção particular” é o fundamento do anúncio geral do evangelho.<br />
Somente ela é coerente com o conteúdo do evangelho, ou seja, que todos os<br />
seres humanos são pecadores e incapazes de se salvar, que Cristo foi escolhido<br />
“no seu sangue, como propiciação, mediante a fé” (Rm 3.25), que a reconciliação<br />
é obra pessoal de Deus e que todo homem tem o dever de se arrepender<br />
e crer. Essas verdades existem para satisfazer suas verdadeiras necessidades.<br />
A pregação de hoje, em vez de excitar o orgulho de seus ouvintes, deveria<br />
lembrá-los disso claramente. 16<br />
15 Erro infelizmente também cometido por Wesley. Ver: SCHLUCHTER, A. “Wesley e Whitefield,<br />
uma controvérsia sobre a evangelização”. La Revue Réformée 37 (1986:4), p. 177ss.<br />
16 Outras obras relevantes sobre o tema são: BLOCHER, H. “Le champ de la rédemption dans la<br />
théologie moderne”, Hokhma, n° 43, p. 25-48. HELM, P. “The Logic of Limited Atonement”. Scottish<br />
Bulletin of Evangelical Theology (1985:2), p. 47-54. JOHNER, M. “L’universalité et la particularité du<br />
61
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO<br />
ABSTRACT<br />
The Reformed faith or historical Calvinism embraces the conviction that<br />
redemption is particular, namely, that Jesus Christ died in order to save only<br />
his people, his sheep, not every man indiscriminately. Contrary to general perception,<br />
this doctrine does not contradict, rather it is a powerful incentive to,<br />
the universal offer of the gospel to all. In fact, “particular redemption” is the<br />
foundation for the general proclamation of the good news. Only this doctrine is<br />
coherent with the content of the gospel: that all human beings are sinners and<br />
unable to save themselves, that Christ was chosen “in his blood, as a sacrifice<br />
of atonement, through faith”, that reconciliation is a personal work of God,<br />
and that every man has the duty to repent and believe.<br />
KEYWORDS<br />
Reformed theology; Calvinism; Covenant; Particular redemption; Arminianism;<br />
Preaching of the gospel.<br />
salut chrétien”. La Revue réformée (1988:4), p. 17-40. DE JONG, A. C. The Well-Meant Gospel Offer.<br />
The Views of H. Hoeksema and K. Schilder. Franeker: Wever, 1954. NICOLE, R. “John Calvin’s View<br />
of the Extent of the Atonement”. Westminster Theological Journal (1985:2), p. 197-<strong>22</strong>5. WARFIELD,<br />
B. B. “God’s Immeasurable Love”. In: Biblical and Theological Studies. Filadélfia: P&R, 1952, p. 505-5<strong>22</strong>.<br />
WELLS, Paul. Entre ciel et terre. Lausanne: Ed. Contrastes, 1991, Apêndice II. WITSIUS, H. The Economy<br />
of the Covenants Between God and Man. Escondido, CA: P&R (distr.), 1990 (18<strong>22</strong>), vol. I, p. 255-270.<br />
62
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 63-70<br />
Educação Teológica para um Ministério<br />
Urbano Multicultural<br />
Valdeci S. Santos *<br />
RESUMO<br />
A urbanização é uma realidade em cada continente. Está ocorrendo em<br />
diferentes proporções e diferentes níveis, mas é inquestionável. Nesse processo,<br />
as nações (panta ta ethne) estão se mudando para as cidades. Todavia, a igreja<br />
ainda precisa fazer essa transição, intelectual, estratégica e teologicamente.<br />
De muitas maneiras, a igreja está despreparada para o ministério na cidade.<br />
Sua herança e treinamento teológico não a equiparam para as exigências da<br />
urbanização. Visto que o desafio urbano não irá desaparecer, os cristãos não<br />
podem continuar ficando fora da cidade. A igreja deve se tornar parte da cidade,<br />
integrada na cidade, a fim de conquistar a cidade para o reino de Deus.<br />
O que isso significa para a educação teológica? Existe algum tipo especial de<br />
educação teológica necessária para o ministério urbano? Precisamos reavaliar e<br />
repensar nossas próprias filosofias, estratégias e currículos à luz desse desafio<br />
à igreja? Não é papel da educação teológica equipar os futuros líderes da igreja<br />
para serem líderes em todos os sentidos? Essas são algumas das indagações<br />
que este artigo procura responder. 1<br />
PALAVRAS-CHAVE<br />
Urbanização; Ministério urbano; Educação teológica; Estratégia de missão<br />
urbana; Estratégia de missões; Globalização; Currículo teológico.<br />
* O autor tem mestrado em Teologia Sistemática (Th.M.) e doutorado em Estudos Interculturais<br />
(Ph.D.) pelo Reformed Theological Seminary, em Jackson, Mississipi. É vice-diretor, professor de teologia<br />
pastoral e coordenador do programa de Doutorado em Ministério (D.Min.) do CPAJ. É ministro<br />
presbiteriano e pastoreia a Igreja Presbiteriana do Campo Belo, em São Paulo.<br />
1 Este artigo foi publicado inicialmente na revista Vox Scripturae, sendo agora publicado com<br />
algumas correções e modificações.<br />
63
VALDECI S. SANTOS, EDUCAÇÃO TEOLÓGICA PARA UM MINISTÉRIO URBANO MULTICULTURAL<br />
INTRODUÇÃO<br />
A diversidade cultural e étnica parece estar sempre apresentando desafios<br />
teológicos e práticos aos cristãos. Entre esses desafios estão o reconhecimento<br />
e o convívio necessários provenientes da diversidade cultural, o respeito<br />
pelas diferenças e o estabelecimento de um fórum prático de comunicação e<br />
cooperação. 2 Uma sociedade multicultural ainda força a lembrança de que a<br />
imagem do Reino de Deus oferecida nas Escrituras é a de um reino multiétnico<br />
e multicultural, e não de uma realidade monofórmica. A igreja neotestamentária<br />
também ministrou e proclamou o evangelho em um contexto multicultural e,<br />
por sua vez, urbano (cf. At 2.5-12, 13.1-3). Tais fatores podem ser utilizados<br />
como combustível em prol do esforço por encontrar uma metodologia e elaborar<br />
um currículo de educação teológica que seja contextual e relevante aos<br />
desafios urbanos que cercam a igreja nas megacidades.<br />
1. EDUCAÇÃO DIRIGIDA AO MINISTÉRIO URBANO<br />
Os estudiosos geralmente concordam que a preparação para o ministério<br />
urbano deve ser uma forma especializada de educação teológica. Tal<br />
argumento é especialmente baseado em três fatores. Primeiro, o fato de que<br />
“no passado, grande parte do enfoque de cursos missiológicos recaiu sobre<br />
o trabalho missionário entre tribos e pessoas de vilas”. 3 O mundo urbano requer<br />
o uso de métodos diferentes e teorias complementares em evangelismo<br />
e educação teológica. Segundo, a complexidade da cidade. Como Greenway<br />
sugere, “a educação missiológica [e teológica] nas próximas décadas deve<br />
aguardar grandes exigências, pois será preciso oferecer respostas às questões<br />
complexas desse contexto urbano”. 4 E terceiro, os clamores vindos das igrejas<br />
e dos obreiros nos campos urbanos. Conn informa que durante os preparativos<br />
para os trabalhos do Conselho de Credenciamento da Educação Teológica<br />
na África (ACTEA) 5 em 1990, 69 das 80 respostas recebidas pelo comitê<br />
organizador defenderam o treinamento teológico para o ministério urbano<br />
como uma condição essencial para a igreja contemporânea. 6 Também, a falta<br />
de treinamento especializado para o ministério urbano tem se tornado uma<br />
fonte de tensão e atrito missionário em diferentes campos. Conn afirma que<br />
a reação natural do missionário que recebeu treinamento para a zona rural,<br />
quando chega na cidade, é dizer: “O campo eu conheço, mas a cidade parece<br />
2 SCHREITER, Robert J. The New Catholicity. New York: Maryknoll, 1999, p. 95.<br />
3 GREENWAY, Roger S. “Urbanization and Missions”. In: MCGAVRAN, Donald (Org.). Crucial<br />
Issues in Missions Tomorrow. Chicago: Moody Press, 1972, p. <strong>22</strong>7.<br />
4 Ibid., p. 230.<br />
5 Accrediting Council for Theological Education in Africa.<br />
6 CONN, Harvie M. “Theological education for the city”. Urban Mission, Dec. 1992, p. 3.<br />
64
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 63-70<br />
demasiadamente grande e proibida. Por onde começo?”. 7 Assim, a preparação<br />
missionária para esse mundo urbano precisa considerar os desafios e oportunidades<br />
da urbanização e do urbanismo.<br />
Na discussão sobre urbanização e educação teológica, deve-se ter cuidado<br />
para não se perder diante do grande número de sugestões existentes. Resistindo a<br />
algumas tentativas superficiais, Conn defende que a educação para o ministério<br />
urbano necessita ser mais do que meros “apêndices”, ou seja, cursos optativos<br />
no currículo de um seminário. 8 Ele insiste que tal educação precisa também<br />
ser mais que noções socioeconômicas ou um acúmulo de teorias acadêmicas.<br />
Sua sugestão é que uma educação teológica efetiva para um ministério urbano<br />
deve ensinar a “olhar demograficamente a vizinhança com os olhos de Cristo”. 9<br />
Desenvolvendo a sugestão de Conn, Sydney H. Rooy sustenta a ideia de<br />
que a educação para o ministério urbano deve enfatizar transformação, reconciliação<br />
e reavaliação do comportamento cristão nesses contextos, bem como<br />
programas que propaguem o amor e a justiça. 10 Sua opinião é que somente<br />
aplicando esses princípios o trabalho missionário contribuirá significantemente<br />
para a transformação dos contextos urbanos. Além do mais, a educação<br />
efetiva para um ministério urbano deveria consistir em uma mescla dos desenvolvimentos<br />
cognitivo, prático e pessoal, os quais deveriam ser empregados<br />
na formação de um ministério contextual. 11<br />
Uma análise da literatura sobre educação teológica no meio evangélico<br />
brasileiro evidencia dois aspectos básicos. Primeiro, uma preocupação com<br />
a proliferação de cursos teológicos, contando inclusive com a aprovação do<br />
Ministério da Educação e Cultura (MEC). 12 Segundo, a busca de uma filosofia<br />
de ensino que ofereça “subsídios para responder aos desafios sociais, políticos<br />
e religiosos de nossa realidade”. 13 Curiosamente, porém, vários seminários e<br />
institutos bíblicos no Brasil revelam uma falta de currículos adequadamente<br />
voltados para a formação de obreiros e missionários urbanos. O mais próximo<br />
que tais instituições chegam desse ideal é oferecer uma matéria de evangelismo<br />
e missões em seus currículos.<br />
7 Ibid.<br />
8 Ibid., p. 4.<br />
9 Ibid.<br />
10 ROOY, Sydney H. “Theological education for urban mission”. In: GREENWAY, Roger S.<br />
(Org.). Discipling the City. Grand Rapids, MI: Baker, 1992, p. <strong>22</strong>8-235.<br />
11 COMBLIN, José. Viver na cidade. São Paulo: Paulus, 1996.<br />
12 NUNES, Élton O. Reconhecimento do MEC para cursos de teologia. Jornal Soma, fev. 2001,<br />
p. 9.<br />
13 AMARAL FILHO, Wilson do. Educação teológica nos seminários da IPB. Revista Teológica,<br />
maio-agosto 1997, p. 67-73, e JUNTA DE EDUCAÇÃO TEOLÓGICA, Reforma da educação teológica<br />
da IPB. Brasil Presbiteriano, nov. 2000, p. 16.<br />
65
VALDECI S. SANTOS, EDUCAÇÃO TEOLÓGICA PARA UM MINISTÉRIO URBANO MULTICULTURAL<br />
2. A BUSCA DE UMA METODOLOGIA PRÓPRIA<br />
Devido à diversidade do contexto multicultural urbano, três aspectos<br />
devem ser cuidadosamente analisados na busca por uma metodologia correta<br />
a ser aplicada ao processo educacional para tal contexto. Esses aspectos são:<br />
(1) a natureza da educação teológica, (2) o propósito da educação teológica e<br />
(3) os paralelos metodológicos a serem adotados. Com respeito ao primeiro,<br />
deve-se observar que educação teológica é educação acerca do conhecimento<br />
de Deus, é educação voltada para o povo de Deus, é educação que equipa e<br />
prepara para o serviço a Deus. 14 Além do mais, de acordo com Efésios 4.11-16,<br />
esta é uma educação que capacita para o ministério de capacitadores. Neste<br />
sentido, a educação teológica difere da educação secular e mesmo da educação<br />
cristã em geral. Ainda que o Novo Testamento apresente a igreja com uma<br />
comunidade ministerial e ainda que, em certo sentido, a educação teológica<br />
seja uma educação para a igreja, 15 o principal objetivo da mesma é preparar<br />
para o ministério eclesiástico.<br />
A busca de uma metodologia própria ainda nos conduz a uma reflexão<br />
sobre o propósito da educação teológica. De acordo com Robert W. Ferris, “o<br />
processo da educação teológica inevitavelmente flui das percepções sobre<br />
o seu propósito e objetivo”. 16 Humanamente falando, o objetivo da educação<br />
teológica deve dirigir-se ao tipo de pessoas que esperamos que os estudantes<br />
se tornem. Então, se a conformidade com a imagem de Cristo é um dos principais<br />
alvos na vida do cristão, a educação teológica deve estar profundamente<br />
comprometida com a formação moral e espiritual dos que a recebem. Conforme<br />
expressa Nuñez: “A educação teológica não é um fim em si mesma. Ela<br />
é apenas um meio disponível para cumprirmos o mandato missionário dado<br />
pelo Senhor Jesus aos seus discípulos”. 17 Assim, a educação teológica deve ser<br />
sempre centralizada em Cristo e nas Sagradas Escrituras, e o currículo deve<br />
ser apenas um instrumento nesse processo educativo.<br />
A busca de uma metodologia própria ao contexto multicultural urbano<br />
deveria obedecer a alguns princípios que resultariam em uma “antropagogia”,<br />
e não apenas em uma “pedagogia”. 18 Tal ressalva visa distinguir entre homem<br />
e criança, maturidade e infância. Além do mais, a educação teológica para<br />
14 NOELLISTE, Dieumeme. “Toward a theology of theological education”. Evangelical Review<br />
of Theology (July 1995): 298-306.<br />
15 HUEBNER, Dwayne. “Can theological education be church educational”. Union Seminary<br />
Quarterly Review 47, 1993: 23-38.<br />
16 FERRIS, Robert W. “The future of the theological education”. Evangelical Review of Theology<br />
(July 1995): 251.<br />
17 NUÑEZ, Emilio A. “Accreditation and excellence”. Evangelical Review of Theology (July,<br />
1995): 270.<br />
18 FERRIS, “The future”, p. 252.<br />
66
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 63-70<br />
o contexto urbano deveria seguir alguns princípios de contextualização, ou<br />
seja, “um esforço para deixar que a mensagem fale de uma maneira relevante<br />
às necessidades das pessoas nessa cultura urbana”. 19 Tal forma de educação<br />
teológica deve ser sempre ativa no processo de oferecer oportunidades para<br />
essa comunicação contextual.<br />
Como modelo de educação para o contexto multicultural urbano brasileiro,<br />
a metodologia dialética de Paulo Freire apresenta vários aspectos positivos.<br />
Embora essa metodologia deva ser usada com certa cautela, por encontrar-se<br />
carregada de alguns princípios da teologia da libertação, a dialética de Freire<br />
traz importantes princípios de contextualização através de sua proposta de<br />
educação problematizadora, na qual a dialogicidade resulta em uma inserção<br />
crítica do homem na realidade. De acordo com Freire, “a educação problematizadora<br />
se faz, assim, um esforço permanente através do qual os homens vão<br />
percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo com que e em que se<br />
acham”. 20 Assim, o educador geralmente apresenta ou aponta um problema<br />
real que requer uma resposta de seus alunos. Nesse processo dialético, a educação<br />
é mais do que um processo que culmina em um acúmulo “bancário”<br />
de informações, o qual “sugere uma dicotomia inexistente homens-mundo”. 21<br />
Essa metodologia de ensino-aprendizado geralmente conduz à ação ao invés<br />
de mera reflexão teórica. <strong>22</strong> Tal metodologia considera que os alunos estão,<br />
frequentemente, mais prontos para participar no processo do seu aprendizado<br />
do que seus professores geralmente permitem. A teoria de Freire implica em<br />
que o educador atente para os tipos de experiências que seus alunos têm, quais<br />
os influenciam mais, como eles reagem às mesmas e como essas experiências<br />
poderiam ser usadas no processo educacional dessas mesmas pessoas.<br />
A importância da teoria educacional de Freire na educação teológica<br />
para um contexto urbano multicultural no Brasil baseia-se em dois fatores<br />
básicos. Primeiro, há um elemento de universalidade nessa teoria. 23 Segundo,<br />
ela enfatiza o elemento experimental, que é essencialmente necessário nos<br />
encontros interculturais. 24 Além do mais, a metodologia de Freire aponta para<br />
a existência de absolutos na existência humana, o que poderia ser propriamente<br />
usado na educação teológica daqueles que são equipados para o ministério<br />
19 NUÑEZ, “Accreditation”, p. 268.<br />
20 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1970, p. 72.<br />
21 Ibid., p. 62.<br />
<strong>22</strong> KENNEDY, William B. “Conversation with Paulo Freire”. Religious Education (Outono, 1984):<br />
511-<strong>22</strong>.<br />
23 BREWSTER, Kneen. “A book review of The Pedagogy of the Oppressed by Paulo Freire”.<br />
Lutheran World 1971, 18: 290.<br />
24 PAIGE, R. Michael (Org.). Education for the Intercultural Experience. Yarmouth: Intercultural<br />
Press, 1993, p. 1-18.<br />
67
VALDECI S. SANTOS, EDUCAÇÃO TEOLÓGICA PARA UM MINISTÉRIO URBANO MULTICULTURAL<br />
urbano multicultural. Dentre esses absolutos destacamos a realidade objetiva,<br />
a autenticidade e a verdade nas interações humanas. 25 Também, na concepção<br />
de Freire não há educação dialética sem as virtudes fundamentais do amor, da<br />
humildade, da confiança no próximo, da esperança e da verdade aplicada ao<br />
pensar. 26 Certamente o educador cristão cuidadoso saberá fazer bom uso dos<br />
princípios envolvidos nessa teoria educacional.<br />
3. A ATENÇÃO A UM CURRÍCULO<br />
Além de ser comprometida com a formação do caráter e com a contextualização,<br />
a educação teológica para um ministério urbano multicultural precisa<br />
estar enraizada em princípios relevantes para experiências interculturais. Ela<br />
precisa equipar pessoas para decifrar seu contexto social e comunicar a mensagem<br />
do evangelho tão eficientemente quanto possível nesse mesmo ambiente.<br />
Os missionários em contextos multiculturais precisam ser capazes de reconhecer<br />
como a cultura afeta a identidade, o comportamento, as crenças, o conhecimento<br />
e a comunicação das pessoas. 27 Paige sugere quatro fatores necessários<br />
para o desenvolvimento dessa sensibilidade: (1) conhecimento da cultura a<br />
ser abordada, (2) acesso a variados encontros multiculturais, (3) competência<br />
na comunicação e (4) elementos de conexão com a outra cultura. 28 Cada um<br />
desses fatores deve ser considerado na elaboração de um currículo dirigido à<br />
educação teológica para um ministério em um contexto multicultural urbano.<br />
Algumas características distintas dos contextos urbanos também pedem<br />
maior atenção a aspectos específicos na elaboração de currículos teológicos<br />
para os mesmos. Por exemplo, o caráter fragmentado das cidades requer elementos<br />
que promovam conexão e interações humanas. A dificuldade econômica<br />
presente nas cidades requer uma atenção à injustiça e às desigualdades sociais.<br />
Finalmente, o secularismo urbano convida a uma demonstração prática e sadia<br />
do relacionamento cristão.<br />
Sugerindo um currículo teológico para contextos urbanos, Greenway<br />
apresenta alguns pontos básicos que podem ser adaptados a diferentes realidades<br />
sociais. Segundo ele, tal currículo deveria conter:<br />
1. Uma teologia bíblica da cidade e do ministério urbano.<br />
2. Antropologia urbana, sociologia e estudos demográficos.<br />
3. Contextualização do evangelho em contextos urbanos.<br />
4. História dos ministérios e missões urbanas.<br />
25 FREIRE, Pedagogia, p. 68-75.<br />
26 Ibid., p. 80-82.<br />
27 DODD, Carley H. Dynamics of Intercultural Communication. Dubuque: Brown Publishers,<br />
1991, p. 3.<br />
28 PAIGE, Education, p. 171.<br />
68
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 63-70<br />
5. Natureza da miséria urbana e desenvolvimento comunitário.<br />
6. Estrutura política urbana, sistemas sociais e prática da justiça.<br />
7. Técnicas de pesquisas para evangelismo urbano e crescimento de<br />
igrejas.<br />
8. Métodos e modelos para evangelismo urbano.<br />
9. Saúde física e mental em ambientes urbanos.<br />
10. Utilização de mecanismos urbanos na pregação do evangelho.<br />
11. Desenvolvimento de liderança na diversidade dos contextos urbanos.<br />
12. Métodos de comunicação na cidade.<br />
13. Religiões não-cristãs, seitas e cosmovisões alternativas presentes na<br />
cidade.<br />
14. Princípios de educação e metodologias apropriadas a várias culturas<br />
e contextos sociais.<br />
15. Espiritualidade urbana. 29<br />
Em um contexto urbano altamente multicultural, deve ser dada uma ênfase<br />
particular ao décimo quinto tópico nesse currículo sugerido.<br />
CONCLUSÃO<br />
Este artigo não explorou todos os desafios e oportunidades encontradas<br />
em um contexto urbano multicultural. Ele apenas procurou analisar alguns<br />
aspectos dos desafios educacionais de tal contexto. Os aspectos aqui analisados<br />
apontam para as seguintes necessidades da educação teológica neste contexto:<br />
(1) conteúdos integrados, (2) formação do conhecimento e (3) metodologias<br />
flexíveis.<br />
Precisam ser feitos estudos aprofundados sobre áreas específicas da<br />
educação teológica em contextos urbanos multiculturais. Tem havido um certo<br />
temor entre missionários urbanos de que, “por mais bem-intencionados que os<br />
currículos tradicionais possam ser, eles são tão mal equipados para entender<br />
o complexo mundo urbano ou para treinar ministros e missionários para esses<br />
contextos que precisam ser urgentemente revistos. 30 Nesse sentido, o desenvolvimento<br />
de um currículo para educação teológica urbana é uma tarefa que<br />
exige coragem, imaginação e sabedoria oriunda do estudo da Palavra do Senhor.<br />
ABSTRACT<br />
Urbanization is a reality in every continent. It is happening at different<br />
rates and at different levels, but it is undeniable. Through this process, the nations,<br />
panta ta ethne, are moving to the cities. But the church has yet to make<br />
that move, intellectually, strategically, and theologically. In many ways, the<br />
29 GREENWAY, “Urbanization and missions”, p. <strong>22</strong>7-244.<br />
30 Ibid., p. 147.<br />
69
VALDECI S. SANTOS, EDUCAÇÃO TEOLÓGICA PARA UM MINISTÉRIO URBANO MULTICULTURAL<br />
church is unprepared for ministry in the city. Its heritage and its theological<br />
training have not equipped the church for the demands of urbanization. Since<br />
the urban challenge will not go away, Christians cannot continue to stand<br />
outside the city. The church must become part of the city, integrated into the<br />
city in order to capture the city for the kingdom of God. What does this mean<br />
for theological education? Is there some kind of special theological education<br />
needed for urban ministry? Do we need to re-evaluate and re-think our own<br />
philosophies, and strategies, and curriculums in light of this challenge to the<br />
church? It is not the role of theological education to equip the future leaders<br />
of the church to be leaders in every way? These are some of the questions this<br />
article intends to answer.<br />
KEYWORDS<br />
Urbanization; Urban ministry; Theological education; Urban mission<br />
strategy; Globalization; Theological curriculum.<br />
70
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102<br />
Os Hartlibianos e a Reforma Espiritual<br />
e Cultural da Inglaterra Seiscentista<br />
Vitor Albiero *<br />
RESUMO<br />
Dentre outros reformistas, o grupo de Hartlib, atraído pelos princípios<br />
da Reforma Protestante, figurou entre os que anelavam a reforma completa<br />
na Inglaterra do século 17. Seus integrantes estavam convictos de que a renovação<br />
espiritual e intelectual protestante ofereceria as bases para se implantar<br />
a nova visão cultural e social. Acreditavam que a reformulação do modelo<br />
educacional e filosófico vigente alavancaria a reforma geral inglesa, ou seja,<br />
a completa reforma da religião, da cultura, da política, da economia e das<br />
outras demandas sociais. Os hartlibianos se destacaram entre os que nutriam a<br />
expectativa de que a Inglaterra deveria ocupar o centro mundial da divulgação<br />
do conhecimento, bem como reunir a liderança protestante da Europa. Seus<br />
membros e apoiadores tencionaram, durante a efervescência puritana, promover<br />
um ambiente e ocasião favoráveis às inovações intelectuais e técnicas que<br />
pudessem desenvolver os avanços sociais desde a medicina até a mineração<br />
e a agricultura inglesa. Tudo indica que os trabalhos que empreenderam entre<br />
1640 e 1660 outorgaram parte do arranjo inicial de uma sistematização em<br />
ciência que a Inglaterra e o mundo desconheciam antes da década de 1640 e<br />
à qual, pela atividade que exerceram, a Royal Society de Londres pôde dar<br />
seguimento a partir de 1662.<br />
PALAVRAS-CHAVE<br />
Inglaterra; Reforma; Protestantismo; Hartlibianos; Educação; Ciência.<br />
* O autor é engenheiro civil, bacharel em Teologia pelo Seminário José Manoel da Conceição<br />
(JMC), mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutor em História<br />
da Ciência pela PUC-SP. É ministro presbiteriano e pastoreia a Igreja Presbiteriana de Peruíbe (SP).<br />
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VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...<br />
INTRODUÇÃO<br />
Como exemplo legítimo da cultura, da intelectualidade e da influência<br />
social protestante do século 17, os hartlibianos testemunharam as aspirações<br />
comuns a homens fascinados pelo conhecimento, insaciáveis pelo saber e<br />
incansáveis na luta por reformas que atingissem, quiçá, o mundo da época, a<br />
partir de uma Inglaterra renovada espiritualmente e intelectualmente.<br />
De fato, o grupo de Hartlib representou uma parte importante da força sociocultural<br />
que tencionava implantar, bem no auge do puritanismo (1640–1660),<br />
a reforma inglesa a partir dos pressupostos protestantes destinados a coparticipar<br />
da nova moldura intelectual e dos novos sustentáculos da formulação do<br />
conhecimento que visavam o desenvolvimento do novo conceito de educação,<br />
ciência e sociedade.<br />
Como protestantes, os hartlibianos viam na harmonia entre religião e<br />
educação, e entre fé e ciência, a real possibilidade de promover as desejadas<br />
melhorias sociais e econômicas que renovariam a Inglaterra a partir de uma<br />
visão cristã de mundo. Para isso elaboraram um programa que, não obstante ter<br />
obtido sucesso apenas no interregno inglês, enfrentou, por exemplo, os ditames<br />
aristotélicos e escolásticos presentes na educação e na ciência em meados do<br />
século 17, tendo, deste modo, revolucionado e viabilizado o experimento e a<br />
técnica no ambiente universitário.<br />
Com efeito, uma breve observação dos esforços empreendidos pelos hartlibianos,<br />
como se julga minimamente oferecer a seguir, parece proporcionar a<br />
rediscussão acerca da contribuição dada pelo protestantismo à prossecução do<br />
desenvolvimento educacional e da aplicabilidade da nova ciência na Inglaterra<br />
a partir de 1662, mais especificamente quando se tem em vista as atividades<br />
da recém fundada Royal Society de Londres.<br />
1. O ANSEIO INGLÊS PELA REFORMA COMPLETA<br />
1.1 O anseio geral<br />
Desde o transcurso do governo Tudor, a Inglaterra assistira ao constante<br />
processo ideológico de centralização – centralização do estado, da Igreja, da<br />
economia, da riqueza, da saúde, da educação, etc. Contudo, religiosos, parlamentares,<br />
membros da representação rural e da classe burguesa, bem como<br />
muitos pensadores, políticos e demais adeptos da causa reformista, desejavam<br />
a inversão desse processo a partir da descentralização da monarquia e de um<br />
novo encaminhamento das questões sociais vigentes.<br />
A partir da década de 1640, especialmente com as atuações oposicionistas<br />
do Longo Parlamento e de Oliver Cromwell perante a monarquia e o<br />
governo de Charles I, intensas reivindicações sociais, eclesiásticas, políticas<br />
e econômicas se fizeram presente na nação inglesa, notadamente entre grupos<br />
radicais e simpatizantes da reforma geral, a fim de combater significativamente<br />
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a estagnação dos condados, das cidades, das igrejas, do comércio, da saúde,<br />
da educação, etc.<br />
Envolvidos com os grupos defensores dos ideais reformistas, muitos<br />
protestantes – desde presbiterianos, erastianos e anglicanos não-prelatícios<br />
até os independentes e a ala esquerda destes últimos (quacres, batistas, partidários<br />
da Quinta Monarquia) 1 – atraídos por singulares valores da Reforma<br />
Protestante (como a ênfase no sacerdócio dos crentes e a regeneração teológica,<br />
litúrgica, intelectual e ética), além de se oporem à atuação da Igreja nacional<br />
e ao sistema educacional da época, anelavam pela redistribuição dos recursos<br />
entesourados, a designação para as igrejas de ministros úteis e piedosos e a<br />
criação de instituições municipais, de asilos e de escolas locais. 2<br />
Mas as vozes que evocavam o espírito reformista na década de 1640<br />
ecoavam também, sob o ponto de vista educacional e filosófico, as ideias<br />
de Francis Bacon, as quais instilavam o desejo pelas reformas múltiplas e a<br />
ruptura com a filosofia de Aristóteles, uma vez que Bacon havia desprezado<br />
a Antiguidade e seus filósofos. 3 Como se sabe, a Inglaterra seiscentista foi<br />
marcada pelo anelo de resgatar o sabor da filosofia natural, da natureza e<br />
das coisas, da experiência, dos corpos, enfim, de tudo o que havia se perdido<br />
desde que “a filosofia se voltou ela própria para o mundo interior em vez de<br />
para a natureza, para problemas de caráter moral e linguístico, abandonando<br />
a pesquisa severa das coisas naturais”. 4<br />
Como defensor da observação, da experiência e do estado laico, Bacon<br />
desejava reconstruir as universidades longe dos moldes aristotélicos, introduzir<br />
no ensino as ciências naturais, desenvolver a educação elementar, descentralizar<br />
a religião, levando-a aos cantos mais esquecidos do reino, descentralizar a<br />
assistência médica por meio da proliferação de hospitais regionais e redistribuir<br />
a riqueza através da indústria e do comércio. 5<br />
A Inglaterra do século 17 anelava intensamente por uma reforma geral e<br />
completa – do Estado, da Igreja nacional, da educação, da religião, da filosofia,<br />
etc. –, uma reforma que colocava os olhos no futuro e na possibilidade de o<br />
país trilhar novos caminhos rumo ao avanço do conhecimento e da melhoria<br />
das condições sociais. 6<br />
1 HOOYKAAS, Reijer. A religião e o desenvolvimento da ciência moderna. Brasília, DF: Editora<br />
Universidade de Brasília, 1988, p. 176.<br />
2 TREVOR-ROPER, Hugh R. Religião, reforma e transformação social. Lisboa: Editorial Presença/Martins<br />
Fontes, 1981, p. 180.<br />
3 Paolo Rossi ressalta que Bacon, ao fazer uso do Evangelho de João (5.43), aproximava a figura<br />
de Aristóteles à do anticristo. ROSSI, Paolo. A ciência e a filosofia dos modernos: aspectos da revolução<br />
científica. São Paulo: Editora Unesp, 1992, p. 26.<br />
4 Ibid., p. 26-27.<br />
5 TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 182.<br />
6 ROSSI, Paolo. Naufrágios sem espectador: a ideia de progresso. São Paulo: Unesp, 2000, p. 62-63.<br />
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Não se deve entender, no entanto, que apenas parlamentares e burgueses<br />
alinhados com a dinâmica resultante do discurso protestante associado à<br />
filosofia de Bacon se ressentiam da centralização imposta pela mentalidade<br />
governista. Muito menos se deve atribuir a exclusividade do anseio e das investidas<br />
reformistas a determinado grupo, fosse este religioso, ideológico ou<br />
político. Na verdade, deve-se observar que a Inglaterra respirava uma ampla<br />
esfera de instabilidade e insatisfação social, religiosa e política, que resultava<br />
em agudos conflitos entre homens rurais e fidalgos, entre parlamentares e<br />
a monarquia, entre conformistas e não-conformistas, etc. Por meio dessa<br />
instabilidade, deu-se a formação de muitos grupos radicais, cada um com<br />
sua base ideológica e política, como os Diggers, os Ranters, os Levellers, os<br />
Pentamonarquistas, etc., os quais, igualmente ansiosos por uma emergente<br />
reforma na sociedade, propunham diferentes soluções políticas e econômicas<br />
que acabavam incendiando ainda mais as demandas sociais. 7<br />
De igual modo, não se deve ter em mente que os reformistas do Parlamento<br />
se mostravam unânimes e somente interessados em dedicar seus esforços às<br />
causas da Igreja, como a implantação da reforma teológica e litúrgica de cunho<br />
calvinista 8 e das ideias milenaristas sobre a Nova Jerusalém. Muitos dentre<br />
os parlamentares estavam mais interessados nos projetos reformistas como<br />
um urgente e prioritário auxílio para corrigir, tanto quanto possível, os males<br />
financeiros e sociais do país.<br />
1.2 O anseio protestante<br />
Em que pese a relevância e as motivações de outros fatores sociais e<br />
econômicos, há de se considerar que a efervescência protestante da década<br />
de 1640 igualmente impulsionou e promoveu o espírito reformista, tornando-se<br />
uma importante força sociocultural na tentativa de implantar a reforma inglesa.<br />
Primeiro porque, no que se refere à nova moldura intelectual e aos sustentáculos<br />
da formulação do conhecimento, o protestantismo participou diretamente<br />
do desenvolvimento do novo conceito de ciência e de educação ao marcar a<br />
transição das ideias aristotélicas e escolásticas sobre filosofia natural e educação<br />
para as ideias pioneiras de Bacon e de Comenius, as quais destacavam<br />
a observação e a ênfase na experiência. 9 Segundo, por conta da contundente e<br />
conjugada oposição que a ala puritana interpôs aos desvios doutrinários difun-<br />
7 HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 30.<br />
8 Hooykaas comenta que enquanto no período elisabetano existiam muitos calvinistas nãopuritanos,<br />
durante a Commonwealth algumas seitas de esquerda não defendiam uma teologia calvinista.<br />
HOOYKAAS, A religião e o desenvolvimento da ciência moderna, p. 176-177.<br />
9 WEBSTER, Charles. Samuel Hartlib and the Advancement of Learning. Cambridge: Cambridge<br />
University Press, 1970, p. 7.<br />
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didos pelo arcebispo William Laud. 10 Terceiro, em razão dos questionamentos e<br />
críticas que suscitava em relação ao sistema de governo eclesiástico episcopal<br />
da Igreja nacional, o qual nutria fortes vínculos político-institucionais com a<br />
monarquia. 11<br />
1.2.1 Aspectos sociorreligiosos<br />
O protestantismo ocupou um papel sociorreligioso singular na aspiração<br />
inglesa por uma reforma geral a partir da crise da Igreja da Inglaterra. Com<br />
efeito, a crise prelatícia inglesa deve ser observada a partir da relação que o<br />
anglicanismo 12 mantinha com a realeza. As prerrogativas do rei preconizadas<br />
no Ato de Supremacia, que no sistema episcopal 13 fazia do soberano o cabeça<br />
da Igreja e dava-lhe autoridade sobre as questões doutrinais e sobre a ordem<br />
e a disciplina eclesiástica, possibilitaram aos monarcas conduzir, desde Henrique<br />
VIII, as mudanças constitucionais da Igreja. Tal condição, associada a<br />
10 Sobre a insatisfação gerada pelas doutrinas de William Laud, Morrill destaca a incerteza de se<br />
poder descrever plenamente como e em que medida a doutrina da graça de Laud afastou-se da herança<br />
calvinista cultivada por sucessivas gerações de bispos e teólogos desde 1559. Sabe-se que Laud assumiu<br />
a crença de que o homem, moral e intelectualmente depravado, só poderia ser reconciliado com Deus a<br />
partir da graça de uma fé salvadora, acrescida da graça sacramental mediada pela igreja. Deste modo,<br />
o programa de Charles e Laud se tornou profundamente ofensivo para a maioria dos leigos e muito<br />
clérigos. Tudo indica que Laud se baseou numa aplicação literal das observâncias e práticas do Livro<br />
de Oração Comum. MORRILL, John. “The Religious Context of the English Civil War”. Transactions<br />
of the Royal Historical Society 34 (1984), p. 163.<br />
11 Por exemplo, a maioria dos puritanos radicais opunha-se à forma de governo episcopal da Igreja<br />
da Inglaterra. Afirmava que os bispos, nos moldes do anglicanismo da época, eram uma invenção à<br />
parte do que a Bíblia ensinava, uma vez que, no sistema episcopal, prevalecia a aliança entre os bispos<br />
e a coroa, que garantia que tanto os clérigos como os reis exercessem suas funções por direito divino.<br />
Dentre os puritanos moderados, dizia-se que a Bíblia indicava diversas formas de governo da igreja e,<br />
portanto, o episcopado poderia ser mantido desde que voltasse à ortodoxia bíblico-reformada, como fora<br />
nos dias de Crammer, Ridley, Hooper, Latimer e Jewell. GONZÁLEZ, Justo L. História do pensamento<br />
cristão. 3 vol. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 277-278.<br />
12 O rei Henrique VIII introduziu uma revolução político-eclesiástica em solo inglês quando<br />
rompeu, em 1534, com a Igreja Católica e organizou a Igreja da Inglaterra, também conhecida como<br />
Igreja Anglicana, da qual tornou-se chefe supremo e passou a governá-la por meio do episcopado, que<br />
contava, ao menos inicialmente, com fortes tendências ao protestantismo reformado. Vale observar<br />
que o rei não era essencialmente afeiçoado ao protestantismo, mas, aproveitando-se igualmente da esfera<br />
em que muitos criam e desejavam reformar a Igreja, Henrique VIII fez de Tomás Cranmer um dos principais<br />
propulsores da reforma da Igreja, o arcebispo de Cantuária, responsável, portanto, por encabeçar<br />
o prelado. NOLL, Mark A. Momentos decisivos na história do cristianismo. São Paulo: Cultura Cristã,<br />
2000, p. 182-204.<br />
13 Alguns protestantes insistiam que a Igreja deveria ser governada por meio de presbitérios. Outros<br />
afirmavam ainda a independência de cada congregação, passando a ser chamados de independentes.<br />
Todavia, ainda que houvesse a divergência quanto à forma de governo da Igreja, os protestantes oriundos<br />
das mais variadas denominações que compuseram a Assembleia de Westminster inspiravam-se teologicamente<br />
nas ideias de Calvino, Zuínglio e dos demais reformadores suíços. GONZÁLEZ, História do<br />
pensamento cristão, vol. 3, p. 278.<br />
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uma hierarquia aristocrática, transformou-se, aos poucos, em um instrumento<br />
de repressão e restrição tanto da liberdade religiosa quanto da liberdade civil<br />
do povo.<br />
Assim, por meio de contínuas insatisfações, a gradual luta entre grupos<br />
protestantes e a corte acabou tornando-se mais intensa a partir do período do<br />
reinado de James I e, principalmente, de Charles I. 14 A conjugação de fatores<br />
como o abandono, por parte de William Laud, do calvinismo dos fundadores da<br />
Igreja, 15 a repressão para com todo dissentimento, a inexistência de liberdade<br />
religiosa, a afluência de medidas arbitrárias, os constantes atos de violência<br />
promovidos pela monarquia e, por fim, o governo autônomo de Charles I, sem<br />
convocar o Parlamento, 16 resultou em uma intensa e crescente insatisfação por<br />
parte do povo, da burguesia, da classe rural, dos parlamentares, dos puritanos<br />
e demais radicais. 17<br />
Porém, forçado pelas condições financeiras que afetavam o reino, 18<br />
Charles I teve que convocar o Parlamento, em novembro de 1640, após onze<br />
anos sem nenhuma convocação ordinária. Sem prever as consequências futuras<br />
para o seu governo e, consequentemente, para a Igreja do Estado, 19 tal medida<br />
14 GONZÁLEZ, História do pensamento cristão, vol. 3, p. 281. HULSE, Erroll. Quem foram os<br />
puritanos? São Paulo: PES, 2004, p. 58.<br />
15 A Igreja da Inglaterra contou, inicialmente, com reformadores como Cranmer, Ridley, Hooper,<br />
Latimer e Jewell. Eram homens apegados à teologia calvinista e em plena harmonia e correspondência<br />
com teólogos e pastores genebrinos e germânicos. Disso são prova os seus escritos registrados nos<br />
Quarenta e Dois Artigos de Eduardo VI (1551), os artigos de doutrina da Igreja da Inglaterra (1562)<br />
e ainda os Artigos de Lambeth, concebidos pelo arcebispo Whitgift (1595). HODGE, A. A. Confissão<br />
de Fé Westminster comentada por A. A. Hodge. São Paulo: Os Puritanos, 1999, p. 39; HOOYKAAS,<br />
A religião e o desenvolvimento da ciência moderna, p. 175.<br />
16 Charles I governou a Inglaterra sem o Parlamento de 1629 a 1640. A administração do país foi<br />
mantida através da corte e dos condados, enquanto o poder político encontrava-se, principalmente, nas<br />
mãos de 60 nobres, fidalgos e aristocratas ricos que eram donos de muitas terras. HULSE, Quem foram<br />
os puritanos?, p. 59.<br />
17 HODGE, Confissão de Fé Westminster, p. 40.<br />
18 Com a intenção de obter recursos financeiros, Charles I fazia concessões aos poderosos. Outrossim,<br />
as parcas medidas de ordem social, política e econômica impetradas pelo rei causavam também<br />
a crescente insatisfação da classe rural e burguesa. Assim, cada vez mais nas regiões com potencial<br />
comercial e industrial, o rei e os bispos, que respaldavam sua causa dando-lhe aquiescência religiosa,<br />
eram vistos como adversários e inimigos do povo. GONZÁLEZ, História do pensamento cristão, 3 vol.,<br />
p. 282.<br />
19 Comentando a intervenção direta do Parlamento na atuação de Charles I e do arcebispo Laud,<br />
Morrill ressalta que a anulação dos cânones de convocação (cânones que davam plena força ao programa<br />
de Laud) foi a primeira conquista positiva realizada pelos parlamentários. Nesse processo, Laud foi<br />
acusado de promover heresias que davam arrimo às ações arbitrárias do rei, bem como de abusar da sua<br />
própria jurisdição e de outros tribunais para impor ilegal observância ao silêncio dos professores da<br />
verdadeira religião. MORRILL, “The Religious Context of the English Civil War”. Transactions of the<br />
Royal Historical Society, p. 164.<br />
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do rei resultou, a partir do ano seguinte, no fato histórico-político que se tornou<br />
conhecido como o Longo Parlamento.<br />
Uma das primeiras medidas do Longo Parlamento foi abolir a Corte da<br />
Alta Comissão e a Star Chamber, e, em novembro de 1642, com intenção de<br />
reformar o sistema de administração eclesiástica, ordenou “que, depois de 5<br />
de novembro de 1643, o ofício de arcebispo e de bispo e toda a estrutura do<br />
governo do prelado fossem abolidos”. 20<br />
Um dos atos mais significativos do Parlamento, na tentativa de reformar<br />
a Igreja e, consequentemente, promover a pureza bíblica e a simplificação<br />
litúrgica contra as divergências teológicas e eclesiásticas encontradas no sistema<br />
episcopal, foi a sanção, em 12 de junho de 1643, do decreto conhecido<br />
como Convocação dos Lordes e Comuns do Parlamento. Tal decreto resultou<br />
na conhecida Assembleia de Teólogos de Westminster, 21 que se reuniu de 1º<br />
de julho de 1643 a <strong>22</strong> de fevereiro de 1648, da qual, inclusive, participaram<br />
alguns puritanos <strong>22</strong> que integravam o grupo de Hartlib, como John Dury, Thomas<br />
Goodwin, Jeremiah Burroughes e Philip Nye. 23 Nesse caso, o propósito<br />
do Parlamento em reunir uma assembleia de caráter exclusivamente religioso<br />
visava a estabelecer o novo governo e liturgia da Igreja da Inglaterra, bem<br />
como purificar sua doutrina por meio da composição de uma confissão de fé<br />
que exprimisse a base teológica calvinista. 24<br />
Deve-se ter em mente também que, ainda sob o viés religioso, a Inglaterra<br />
seiscentista respirava ares que igualmente renovavam as esperanças de paz e<br />
felicidade mundial proporcionadas pela expectativa milenarista. O sonho da<br />
humanidade de voltar ao domínio sobre a natureza e ao livre relacionamento com<br />
a criação – como fora no molde edênico, antes da queda –, bem como desfrutar<br />
20 HODGE, Confissão de Fé de Westminster, p. 41.<br />
21 Integraram a lista dos participantes da Assembleia de Westminster 10 Lordes, 20 membros da<br />
Câmara dos Comuns e 121 teólogos, dentre os episcopais, independentes, presbiterianos e erastianos.<br />
Todos, não obstante divergirem quanto à forma de governo da Igreja, apresentaram a teologia calvinista<br />
em todos os documentos solicitados pelo Parlamento para que escrevessem, a saber: a Confissão de<br />
Fé, o Catecismo Maior, o Breve Catecismo e o Diretório do Culto Público. HODGE, Confissão de Fé<br />
Westminster, p. 41. HULSE, Quem foram os puritanos?, p. 66.<br />
<strong>22</strong> Apesar de haver puritanos no grupo de Hartlib, parece incorrer em certo exagero a ideia de<br />
que, como afirma Trevor-Roper, Comenius, Hartlib e Dury foram “os filósofos da revolução puritana”.<br />
TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 177. De fato, tudo leva a crer que<br />
Dury, por compor uma das cadeiras da Assembleia de Teólogos de Westminster, fosse fortemente vinculado<br />
aos calvinistas puritanos. Todavia, afigura-se certa impropriedade atribuir tal rótulo a Comenius<br />
e, provavelmente, a Hartlib. HOOYKAAS, A religião e o desenvolvimento da ciência moderna, p. 178.<br />
23 WEBSTER, Charles. Samuel Hartlib and the Advancement of Learning, p. 39; HODGE, Confissão<br />
de Fé Westminster, p. 42; HULSE, Quem foram os puritanos?, p. 102-103.<br />
24 A comissão responsável por elaborar e organizar as principais proposições calvinistas da Confissão<br />
de Fé de Westminster era encabeçada por nomes como Dr. Hoyle, Dr. Gouge e Srs. Herle, Gataker,<br />
Tuckney, Reynolds e Vines. HODGE, Confissão de Fé Westminster, p. 43.<br />
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da paz da Nova Jerusalém e da prosperidade e justiça social do reino messiânico,<br />
era fortemente encorajado entre os protestantes através dos sermões escatológicos<br />
pregados em inúmeros púlpitos e reuniões. Diversos escritos e pregações,<br />
como as de John Stoughton, Jeremiah Burroughes e John Dury, 25 proliferaram<br />
no país e passaram a nutrir uma esfera de esperança, conforto e “segurança de<br />
que a catastrófica destruição da Guerra dos Trinta Anos poderia chegar ao fim<br />
com a queda da Babilônia e o estabelecimento do estado milenar”. 26<br />
A assimilação e divulgação de textos bíblicos apocalípticos que apontam<br />
para a restauração do reino de Deus e do estado da graça e justiça eterna emolduraram<br />
e fortaleceram a esperança de que uma nova era estava a caminho.<br />
Um tempo não apenas de paz com o fim das guerras, mas de plena harmonia<br />
entre as coisas da terra e as celestes, em que o conhecimento das coisas<br />
terrenas e físicas estaria em plena sintonia com o conhecimento e a verdade<br />
divina. Esse período de ouro era intensamente desejado por conta dos inúmeros<br />
conflitos religiosos, da beligerância entre os reis e monarquias, das injustiças<br />
sociais e do desejo de libertar-se das amarras e erros filosóficos e teológicos.<br />
Um tempo milenar que deveria ser abreviado pelas conquistas simultâneas do<br />
conhecimento da natureza, do conhecimento universal, da paz entre os protestantes<br />
e da conversão dos judeus – conquistas que antecederiam e acelerariam<br />
o milênio por meio da incipiente harmonia entre Deus e o homem, entre as<br />
nações e entre os reinos. 27<br />
Desse modo, inúmeros estudos e pregações escatológicas dos evangelhos,<br />
do Apocalipse e do livro de Daniel sedimentaram o cenário inglês da esperança<br />
em acelerar a vinda do reino milenar de Cristo. Baseados nas profecias de<br />
Daniel, muitos protestantes empenhavam-se na renovação intelectual e espiritual,<br />
sob a esperança de que as palavras do profeta estavam se cumprindo em<br />
seus dias: “Tu, porém, Daniel, encerra as palavras e sela o livro, até ao tempo<br />
do fim; muitos o esquadrinharão, e o saber se multiplicará” (12.4).<br />
Assim, o livro de Daniel era aplicado às vicissitudes e mazelas promovidas<br />
pela Guerra dos Trinta Anos, com vistas a decifrar o tempo do fim, a<br />
vinda da bonança, da paz, da multiplicação do saber e do conhecimento, em<br />
que o acúmulo do saber universal tornaria clara e manifesta evidência de que<br />
o período milenar estaria se aproximando.<br />
Tal anseio pelo saber e pela busca da renovação do conhecimento e da<br />
filosofia natural transcendeu, evidentemente, os limites da Inglaterra, pois, no<br />
25 TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 196-200.<br />
26 WEBSTER, Charles. The Great Instauration: Science, Medicine and Reform 1626-1660. Oxford:<br />
Peter Lang, 2002, p. 17.<br />
27 Para saber mais sobre algumas das correntes milenaristas na Inglaterra do século 17, ver artigo:<br />
Milenarismo e ciência no Via Lucis de Jan Amos Comenius. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/<br />
index.php/hcensino/ article/view/26098.<br />
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século 17, a aspiração pelo renascimento intelectual espalhou-se pela Europa<br />
por conta do avanço na comunicação, uma vez que, na sequência das melhorias<br />
promovidas pelas artes e pela técnica, “se dava a ascensão da filosofia<br />
experimental e, de acordo com a profecia de Daniel, a comunicação tinha sido<br />
melhorada em todos os aspectos, criando assim as condições para o aumento<br />
sensível do conhecimento”. 28<br />
1.2.2 Aspectos socioculturais<br />
Ao mesmo tempo em que, sob o ponto de vista religioso e ético, diversas<br />
denominações protestantes insurgiram-se com a esperança de promover<br />
o sucesso conclusivo na reforma da Igreja, filosoficamente o protestantismo<br />
associava-se ao baconismo, por entender que este oferecia a base teórica para<br />
vindicar e estabelecer a reforma na educação e, consequentemente, na ciência.<br />
Os escritos de Bacon assumiram uma influência quase canônica para clérigos<br />
protestantes como Stoughton, Hakewill e Twisse, 29 este último nomeado pelo<br />
Parlamento para ser o primeiro moderador ou presidente da Assembleia de<br />
Westminster. 30 Tal influência fez com que Bacon se tornasse a mais importante<br />
autoridade filosófica e científica para os protestantes, a ponto de o avanço<br />
da piedade e da fé reformada estar ligado coexistentemente com o avanço do<br />
aprendizado e do conhecimento.<br />
Os protestantes buscaram a liberdade e, ao mesmo tempo, o dever de<br />
relacionar a fé cristã às questões culturais e sociais. A partir dos pressupostos<br />
bíblicos, eles articulavam de forma monolítica e unificada ideias sobre religião,<br />
sociedade e mundo natural com vistas à glória de Deus. No caso da nova<br />
filosofia, enxergavam a ciência como um meio para a glorificação de Deus,<br />
pois ela deveria estar a serviço do Criador e, ao mesmo tempo, da sociedade,<br />
na medida em que a nova ciência (que viria ser chamada posteriormente de<br />
ciência moderna) era vista como um caminho para o bem social, sobretudo<br />
em relação aos esforços que deveriam engendrar em favor dos fins utilitários.<br />
Com efeito, os protestantes relutavam contra as antigas autoridades<br />
intelectuais, sobretudo no tocante à maneira grega de ver o mundo, a natureza,<br />
o Universo, a existência humana e, especialmente, o Criador. Assim, confrontando<br />
o contexto intelectual e social de seus dias, eles se tornaram grandes<br />
defensores da ciência e da nova filosofia nela contida, insuflando um clima<br />
fértil, no século 17, para os seus desdobramentos e evoluções no campo do<br />
saber, bem como para a aplicação e transformação do conhecimento. 31<br />
28 WEBSTER, The Great Instauration, p. 19.<br />
29 Ibid., p. 25.<br />
30 HODGE, Confissão de Fé Westminster, p. 42.<br />
31 HOOYKAAS, A religião e o desenvolvimento da ciência moderna, p. 179-182.<br />
79
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...<br />
Com o crivo firme na ortodoxia bíblica, o protestantismo na Inglaterra<br />
tornou-se interessado em explorar e difundir as novas ideias, desde que estas<br />
correspondessem às suas premissas teológicas. Comprometeu-se com o ideal<br />
da reforma geral da sociedade inglesa com uma nova modelagem intelectual,<br />
oriunda do avivamento e da renovação espiritual, a ponto de “não deixar dúvidas<br />
de que, ao impulsionar o conhecimento na direção de novas fronteiras,<br />
os seus integrantes estavam convencidos de que sua missão fora santificada<br />
pelo Deus de Israel”. 32<br />
Em outras palavras, pode-se dizer que o protestantismo foi marcado pelo<br />
singular esforço em buscar reorientar as questões socioculturais de sua época e<br />
dedicar especial atenção aos assuntos voltados à educação, à ciência e às artes<br />
por meio da sua capacidade em articular as questões de fé com as demandas<br />
sociais. Assim, relacionava seus dogmas à busca de um novo método educacional<br />
e do conhecimento do mundo natural, objetivando extrair o máximo do<br />
aproveitamento dos recursos e habilidades humanas.<br />
Tal visão de fé aplicada ao mundo físico e à sociedade fez com que os<br />
protestantes, a partir do princípio bíblico de vocação e sacerdócio universal,<br />
se concentrassem no desenvolvimento do serviço e do bem público como<br />
expressão sincera e prática da devoção que prestavam a Deus. Por meio da<br />
consagração de esforços com vistas ao louvor do Criador, seus adeptos mostraram-se<br />
insatisfeitos com os padrões sociais e filosóficos anteriores. Colocavam-<br />
-se dispostos a alcançar novas alternativas que tangessem o aprimoramento da<br />
educação e a busca da melhoria social através do desenvolvimento de uma<br />
ciência utilitária, originada do avanço científico associado à valorização das<br />
virtudes do trabalho manual.<br />
Por ser também crítico dos ditames escolásticos e, ao mesmo tempo,<br />
inclinado ao avivamento intelectual e ao desenvolvimento da ordem material,<br />
o protestantismo contribuiu para semear uma atmosfera favorável à troca de<br />
conhecimentos, ideias e destrezas entre classes sociais. Isso ajudou a cultivar a<br />
produção intelectual e a união entre artesãos e homens de ciência, que acabaram<br />
cooperando com a criação de novas técnicas e áreas do conhecimento, como a<br />
agricultura e aquilo que viria ser, posteriormente, a química, e a metalurgia. 33<br />
Desse modo, o protestantismo, muito mais do que preocupado em apenas<br />
desenvolver uma nova ética, estava interessado em romper com qualquer<br />
perspectiva passiva perante a natureza e as questões sociais e culturais. Pelo<br />
fato de relacionarem e articularem suas ideias em um campo unificado do conhecimento,<br />
ou seja, nas Escrituras, e terem como objetivo principal promover<br />
a glória de Deus em todas as esferas do saber, do fazer e do relacionamento<br />
32 WEBSTER, The Great Instauration, p. 15.<br />
33 WEBSTER, “Conclusions to The Great Instauration”, apud COHEN, I. B., Puritanism and the<br />
Rise of Modern Science, p. 280-283.<br />
80
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102<br />
humano, os protestantes viam-se responsabilizados em testemunhar o poder, a<br />
sabedoria e a graça de Deus em todas as áreas. Em termos práticos e científicos,<br />
isso se daria através do acúmulo do conhecimento e por meio da busca da<br />
verdade impingida nas obras da criação, as quais, potencializadas por meio<br />
das ciências e das artes, deveriam abençoar a humanidade e favorecer o seu<br />
desenvolvimento social e bem-estar.<br />
Assim, o fervor pelos novos acontecimentos e pela nova dispensação do<br />
saber ocupou um caráter singular na Inglaterra seiscentista. De um modo particular,<br />
a associação do ideário protestante ao ideal baconiano da divulgação do<br />
conhecimento fomentou a expectativa de que o país recebera a capacitação e a<br />
honra divina de hastear o estandarte da verdade e do conhecimento ao mundo. 34<br />
Fatores como a atuação do Longo Parlamento, o puritanismo, os apoios<br />
da ala burguesa e da classe rural, a paz com a Escócia, em 1641, e o surgimento<br />
da liderança de Cromwell, etc. parecem ter assinalado de modo especial a<br />
esperança da abertura para o tratamento dos males da Inglaterra e o início de<br />
uma nova era de reforma completa, devidamente instilada pelas novas ideias.<br />
Exemplo disso é o impacto de Comenius ao se deparar com a efervescência<br />
puritana, como se observa na carta, coletada por Robert F. Young, que Comenius<br />
escreve de Londres, em outubro de 1641, relatando aos amigos na Polônia a<br />
primeira impressão que tivera do país:<br />
Este canto do mundo em muito difere dos outros países e é digno de admiração.<br />
O que mais me interessou foram as questões relativas à glória de Deus e o<br />
florescimento do estado das igrejas e das escolas (...). O anseio com que uma<br />
multidão de pessoas se dirige ao culto aos domingos é inacreditável. Londres<br />
tem 120 igrejas e, em todas que eu visitei, posso afirmar como um fato insofismável,<br />
há tanta gente que não há espaço suficiente para todos. Um grande<br />
número de homens e jovens copiam os sermões com suas canetas. Há cerca de<br />
30 anos, no reinado do rei James, eles descobriram uma arte que agora é moda<br />
até entre os camponeses, ou seja, a arte da escrita rápida, a qual eles chamam<br />
de estenografia (...). Quase todos aprendem a arte da escrita rápida assim que<br />
aprendem a ler na escola as Escrituras no vernáculo (...). Eles têm um número<br />
enorme de livros sobre todos os assuntos em seu próprio idioma (...). Realmente<br />
não existem mais livrarias em Francfort na época da feira do que há aqui todos<br />
os dias. A obra de Bacon De Scientiarum Augmentis apareceu recentemente<br />
em inglês. Eles estão ansiosamente debatendo sobre a reforma das escolas em<br />
todo o reino de uma forma semelhante à que, como vocês sabem, meus desejos<br />
tendem, ou seja, que todos os jovens devem ser, sem negligência, instruídos. 35<br />
34 COMENIUS, John A. The Way of Light. Liverpool: The University Press London, 1938,<br />
p. 172-173.<br />
35 YOUNG, Robert F. Comenius in England. Oxford: Oxford University Press; London: H. Milford,<br />
1932, p. 65.<br />
81
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...<br />
No início da década de 1640, os temores do passado pareciam ter-se convertido<br />
na esperança de alcançar, em um futuro próximo, a prosperidade cultural<br />
e social. Os recursos materiais e humanos para alavancar as mudanças necessárias<br />
ganhavam novas disposições e muitos se colocaram como promotores da<br />
nova educação e da nova ciência a partir da produção, do avanço e da difusão<br />
do conhecimento. Criou-se, assim, uma esfera de otimismo, em que homens<br />
de ciência, teólogos, pensadores, parlamentares e eruditos estavam convictos de<br />
que a Inglaterra se tornaria, em breve, uma espécie de centro de concentração<br />
mundial da informação e da divulgação do conhecimento universal.<br />
Entre esses homens encontravam-se os protestantes Samuel Hartlib<br />
(1600-1662), John Dury (1596-1680) e Jan Amos Comenius (1592-1670) que,<br />
como estrangeiros e refugiados da Guerra dos Trina Anos, haviam se apropriado<br />
dos princípios da Reforma Protestante para tentar alavancar os ditames da<br />
grande reforma inglesa a partir de um círculo fomentador do conhecimento.<br />
2. OS HARTLIBIANOS<br />
2.1 O Grupo de Hartlib<br />
Hartlib, Dury e Comenius estavam convictos de que não poderia haver<br />
a mínima contradição entre fé e ciência, entre religião e educação, entre suas<br />
premissas teológicas e as ideias filosóficas sobre a natureza. Um exemplo disso<br />
é que eles acreditavam que a astronomia e a filosofia natural corroborariam de<br />
forma contundente as verdades básicas do cristianismo, como os dogmas da<br />
Criação e da Queda, os atributos comunicáveis de Deus, a revelação divina na<br />
natureza e as expectativas escatológicas. Além disso, viam na harmonia entre<br />
religião e ciência a real e emergente possibilidade de melhorias socioculturais<br />
e da formação de uma sociedade com fundamentos pautados na verdade e em<br />
uma visão cristã de mundo. 36<br />
Em termos da cultura, da intelectualidade e da influência social protestante<br />
do século 17, há de se notar que Samuel Hartlib tornou-se um dos mais distintos<br />
estrangeiros a residirem na Inglaterra. Por meio de sua articulação, Hartlib<br />
ocupou um lugar central na vida intelectual inglesa durante a efervescência<br />
reformista, a ponto de o primeiro governador de Connecticut, John Winthrop,<br />
referir-se a ele como “The Great Intelligencer of Europe”. 37<br />
Nascido em Elbing, na Prússia, Hartlib era de uma família com fortes<br />
vínculos com a Inglaterra. Sua mãe era inglesa e seu pai e avô ocuparam um<br />
importante papel comercial na Inglaterra (uma espécie de Comunidade de<br />
Comerciantes), com base em Danzing e Elbing. Entre 1625 e 1626, visitou<br />
a Inglaterra pela primeira vez, com vistas a completar seus estudos em<br />
36 WESTFALL, Richard S. The Construction of Modern Science: Mechanisms and Mechanics.<br />
London: Cambridge University Press, 1995, p. 32.<br />
37 “O grande intelectual da Europa”. WEBSTER, Advancement of Learning, p. 2.<br />
82
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102<br />
Cambridge. Em solo inglês, ficou convencido de que o movimento de renovação<br />
espiritual oferecia a esfera ideal para o patronato, para a luz religiosa,<br />
bem como a simpatia necessária para que a ideia da nova educação fosse desenvolvida.<br />
Assim, em virtude dos dissabores da Guerra dos Trinta Anos, que<br />
muito dificultaram sua vida em Elbing, Hartlib decidiu retornar à Inglaterra<br />
em 1628, fixando moradia em Londres.<br />
Residindo em Duke’s Place, passou a corresponder-se com estrangeiros, a<br />
apoiar jovens acadêmicos e a hospedar pastores exilados. Assim, rapidamente<br />
familiarizou-se com as questões religiosas da Inglaterra e com reformadores<br />
intelectuais, o que lhe despertou ainda mais os esforços para coordenar suas<br />
aspirações de cunho sociorreligioso. Como fruto do seu envolvimento com<br />
as demandas socioeducacionais, assim que chegou à Inglaterra, Hartlib estabeleceu<br />
em Chichester uma pequena academia para a educação da pequena<br />
nobreza inglesa com vistas ao avanço da piedade, do aprendizado e do ensino,<br />
da moralidade e de outros exercícios de virtudes. 38<br />
Hartlib acreditava no potencial do conhecimento útil e estava convicto<br />
de que o Estado progrediria nas reformas somente se engendrasse esforços na<br />
aplicação do mesmo. Entendia que seria a partir do acúmulo e organização<br />
do conhecimento e de informações de cunho econômico, mecânico, agrícola,<br />
etc. que as autoridades que presidiam os desígnios públicos deveriam almejar<br />
o desenvolvimento e o avanço do bem comum. Com isso em vista, Hartlib<br />
insistia que somente na Inglaterra ele teria a oportunidade de desempenhar a<br />
tarefa de reunir, divulgar, solicitar e coordenar as informações necessárias para<br />
articular o pensamento de Bacon em associação com os ideais protestantes.<br />
Foi a partir dessa visão que Hartlib tornou-se um grande correspondente<br />
da Europa. Mantinha constante contato com pensadores ingleses e estrangeiros<br />
e colocava-se como intermediário das correspondências com os membros da<br />
dispersão protestante. Grande parte dos seus contatos e amizades enfatizava<br />
o zelo pela nova filosofia e o apoio pelo novo método do conhecimento, bem<br />
como cultivava a unidade protestante e a profecia apocalíptica. 39<br />
Com vistas a divulgar e implantar a expressiva reforma na Inglaterra,<br />
Hartlib, com sua abissal faculdade articuladora, passou a organizar um círculo<br />
de pensadores que se tornaria conhecido como o grupo hartlibiano. Este<br />
grupo, composto por homens de ciência, políticos, teólogos e educadores que<br />
contavam com a admiração de grande parte do Parlamento inglês, 40 unia-se<br />
em torno do ideal reformista com seu característico anseio pelo conhecimento<br />
e divulgação universal da verdade.<br />
38 Ibid., p. 7.<br />
39 TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 187.<br />
40 HILL, O mundo de ponta-cabeça, p. 278.<br />
83
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...<br />
Também conhecidos como o grupo de Hartlib, seus membros, em vez<br />
de comporem uma vertente de natureza política, 41 tornaram-se, na verdade,<br />
mais dedicados em arregimentar, publicar e difundir o conhecimento entre<br />
os países da Europa a partir dos seus pressupostos ideológicos, não obstante<br />
contarem com expressivos subsídios de parlamentares simpatizantes da causa<br />
reformista. 42<br />
Dentre os promotores e membros do círculo hatlibiano passaram a atuar,<br />
além de Comenius e Dury, nomes como Theodore Haak, Cyprian Kinner,<br />
Joachim Hübner, Thomas Goodwin, Jeremiah Burroughes e Philip Nye. 43<br />
Além dos membros que compunham diretamente o círculo hartlibiano, outros<br />
nomes de expressão passaram a figurar como apoiadores e patronos dos esforços<br />
reformistas do grupo. Entre estes estavam membros do clero igualmente<br />
desejosos de ver mudanças e transformações sociais e a reforma da Igreja na<br />
Inglaterra, como John Williams, Ussher de Ermagh, Davenant de Salisbúria,<br />
Hall de Exeter e Morton de Durham, entre outros. Havia também a adesão de<br />
patronos e aliados diplomáticos, como Sir William Boswell e Sir Thomas Roe.<br />
Outros, dentre os parlamentares que forçaram o rei a convocar o Parlamento,<br />
em 1640, com vistas às mudanças e ao avanço da causa reformista. Dentre esses<br />
figuravam alguns protestantes como o conde de Pembroke, John Selden e Sir<br />
Benjamim Rudyerd; o conde Bedford, John Pym e Oliver St. John; o conde<br />
de Warwick, Lord Brooke, Lord Mandeville, Sir Nathaniel Rich, Sir Thomas<br />
Barrington e Sir John Clotworth. O sonho da nova Igreja, da nova educação, da<br />
nova ciência e da causa geral reformista era ainda apoiado por representantes<br />
da força rural, como Sir Justinian Isham de Lamport, Sir Chistopher Hatton<br />
de Holmby, Sir Cheney Culpeper de Leeds Castle e Nicholas Stoughton. 44<br />
Certos pressupostos davam a tônica e emolduravam a identidade do grupo<br />
de Hartlib. Nesse aspecto, seus membros acreditavam que a renovação espiritual<br />
e intelectual protestante ofereceria as bases para se implantar a nova visão<br />
41 Sobre a peculiaridade espiritual do grupo, Webster ressalta que, através de Hartlib e de seus<br />
amigos, a santificação na missão de propagar um programa social e religioso foi revigorada. Com esse<br />
propósito, o círculo de Hartlib operou mais como uma irmandade espiritual internacional do que como<br />
uma associação ou grupo político. WEBSTER, Advancement of Learning, p. 9.<br />
42 WEBSTER, The Great Instauration, p. 42-43. Em que pese o grupo de Hartlib não se configurar<br />
em um grupo político, aparenta certo exagero relacionar o interesse de seus membros apenas às<br />
causas práticas e religiosas. Tal impropriedade parece ficar mais evidente ao se considerar a provável<br />
motivação do ideário político-revolucionário encontrada entre alguns dos integrantes e apoiadores do<br />
grupo ligados ao puritanismo. Baskerville, ao referir-se ao puritanismo, entende que o mesmo não se<br />
constituiu simplesmente em uma afluência religiosa dissidente, cuja ebulição alastrou-se como um<br />
‘subproduto acidental’ em conflito político, mas sim uma verdadeira ideologia política revolucionária.<br />
Ver: BASKERVILLE, S. K. “Puritans, Revisionists and the English Revolution”. Huntington Library<br />
Quarterly 61, nº 2 (1998), p. 154.<br />
43 WEBSTER, Advancement of Learning, p. 33.<br />
44 TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 190-191.<br />
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FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102<br />
da religião e da sociedade. Por conta disso, pensavam na reforma do modelo<br />
educacional vigente como premissa para alcançar a reforma geral na Inglaterra,<br />
pois tinham em alta conta que a educação era o aspecto fundamental para se<br />
iniciar a completa reforma da religião, da cultura, da política, da economia e<br />
das demais demandas sociais e governamentais. Igualmente, seus membros<br />
e apoiadores figuravam nas fileiras daqueles que nutriam a expectativa de que<br />
a Inglaterra deveria ocupar o centro mundial da divulgação do conhecimento,<br />
bem como reunir a liderança protestante da Europa.<br />
Os hartlibianos tinham como base filosófica o ideal de Bacon de dominar<br />
o conhecimento do mundo natural em busca da verdade, da transformação<br />
social e da divulgação do conhecimento universal. Nesse sentido, uniam-se na<br />
visão da Queda 45 e no aproveitamento amenizador potencializado pela filosofia<br />
natural, que, para eles, era um ofício sagrado no processo de restauração. 46<br />
Também se uniam a Bacon acerca da relevância das Escrituras como fonte de<br />
revelação e orientação para o conhecimento e para a ciência, pois viam nos<br />
oráculos sagrados a legitimação bíblica para o desenvolvimento das potencialidades<br />
humanas. 47 Do mesmo modo, estavam convictos de que a ciência<br />
deveria orientar o aprimoramento das condições da vida humana, atribuindo<br />
uma vocação de forte cunho social à nova filosofia natural. 48<br />
Enfim, a partir da associação entre suas premissas religiosas, seus ideais<br />
de fé, da visão filosófica que postulavam e do ideal da conquista do avanço<br />
social e do bem-estar público, Hartlib e seus amigos tencionavam atingir a<br />
revitalização do ensino e da saúde e ainda aumentar o nível de emprego da<br />
classe pobre. Num nível mais profundo de conquistas práticas e reais em favor<br />
da sociedade – e isso muito por conta da concepção protestante de liberdade<br />
cristã –, estavam ainda convictos do direito geral à liberdade. Desse modo,<br />
defendiam e evocavam a liberdade na religião, na comunicação, na imprensa e<br />
na consciência individual e coletiva, bem como incentivavam o livre comércio,<br />
45 O termo Queda refere-se à transgressão de Adão e Eva quando pecaram contra Deus (Gênesis 3).<br />
Por conta da desobediência, Deus sujeitou a terra aos efeitos deletérios do pecado. Logo, a partir da<br />
narrativa bíblica da Queda, tanto Bacon como os protestantes entendiam que as artes liberais, a filosofia<br />
natural e a ciência útil deveriam desempenhar o papel reparador de grande parte dos efeitos destrutivos<br />
do pecado. Desse modo, o avanço do conhecimento universal era visto como mandato de Deus, que<br />
outorgaria melhorias nas condições da vida humana. Ao usar o avanço do conhecimento para auxiliar<br />
a restauração do seu domínio sobre a criação no estágio pós-Queda, o ser humano aliviaria, em certa<br />
medida, o sofrimento originado pelo pecado. Ver: ROSSI, A ciência e a filosofia dos modernos, p. 79;<br />
ver também: PEARCEY, Nancy R. & THAXTON, Charles B. A alma da ciência. São Paulo: Editora<br />
Cultura Cristã, 2005, p. 37-38.<br />
46 BACON, Francis. O progresso do conhecimento. São Paulo: Editora Unesp, 2007, livro primeiro,<br />
p. 89.<br />
47 Ibid., p. 71.<br />
48 Ibid., livro segundo, p. 117.<br />
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VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...<br />
a reforma do monopólio das práticas profissionais, a reorientação e socialização<br />
da medicina, da educação e da lei. 49 Um exemplo desse empenho era a intenção<br />
de levarem a cabo a ideia de Bacon de implantar o Colégio Universal, uma<br />
vez que este deveria favorecer e orientar as conquistas socioeducacionais, a<br />
começar pelos intercâmbios destinados à fomentação do saber e da produção<br />
utilitária das artes. 50<br />
Portanto, a partir de pressupostos e esforços como esses, o grupo de Hartlib<br />
e seus apoiadores tencionavam promover um ambiente e ocasião favoráveis<br />
às inovações técnicas que pudessem desenvolver a mineração e a agricultura<br />
na Inglaterra, com vistas ao progresso do comércio e da indústria. Porém, para<br />
que isso ocorresse, era necessária a resolução prévia dos entraves religiosos<br />
e filosóficos, bem como o investimento adequado na nova ciência e nas artes<br />
utilitárias, a fim de que fossem viabilizadas gradativamente e conjuntamente<br />
as questões teóricas e práticas, as quais promoveriam o avanço e a conquista<br />
do desenvolvimento social, econômico e científico.<br />
Hartlib e seus companheiros estavam cônscios dos problemas sociorreligiosos<br />
que se apresentavam no país, que se interpunham como obstáculos para<br />
que a reforma na educação e a nova ciência fluíssem. Assim, era convicção<br />
do grupo que uma nova educação deveria aflorar com vistas a reorientar as<br />
demandas sociais e as controvérsias religiosas. Seus membros viam de modo<br />
inequívoco a educação como a chave para a reforma da religião e da sociedade.<br />
Ao mesmo tempo em que Hartlib afirmava que, por meio da institucionalização<br />
de um novo método educacional, seria preparado o caminho para a reforma da<br />
Igreja, do Estado e da implantação da tão desejada melhoria das condições de<br />
vida, Dury, de modo semelhante, dizia que sem a reforma do modelo de educação<br />
e ensino nas escolas seria impossível trazer qualquer espécie de reforma<br />
social, econômica, política e religiosa, com vistas à Commonwealth. 51 Assim<br />
sendo, a nova educação pretendida pelos hartlibianos deveria, além de ocupar<br />
a gênese da solução dos entraves sociais, ser regida por princípios espirituais<br />
registrados nas Escrituras e pela prática de uma ciência baseada na experiência,<br />
uma vez que esses dois elementos seriam guias para o comportamento moral<br />
e para o bem-estar material. 52<br />
Logo, motivados pelos princípios da fé protestante e com a proposta da<br />
nova educação sendo aplicados à cultura, à sociedade e à natureza, e igualmente<br />
animados pelo apoio recebido no início da década de 1640 de patronos<br />
e de parte da liderança política do país, Hartlib e seus companheiros estavam<br />
49 WEBSTER, Advancement of Learning, p. 41.<br />
50 COMENIUS, The Way of Light, p. 172.<br />
51 WEBSTER, Advancement of Learning, p. 5.<br />
52 WEBSTER, The Great Instauration, p. 32-35.<br />
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FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102<br />
convencidos de que a Inglaterra outorgava as condições favoráveis para uma<br />
especial dispensação que unisse fé cristã, filosofia natural e desenvolvimento<br />
social e econômico. Desse modo, para que tal dispensação fosse estabelecida e<br />
engendrasse os frutos esperados da reforma geral, o grupo e seus apoiadores não<br />
hesitavam em que a reforma de cunho filosófico-religioso na educação seria o<br />
ponto de partida para que outras reformas viessem a ser realizadas. Sobre isso,<br />
não tinham dúvidas de que ninguém melhor do que Comenius deveria aplicar<br />
seus princípios educacionais, a começar pela reforma das escolas da Inglaterra.<br />
Como já foi mencionado, a Inglaterra seiscentista respirava de forma singular<br />
os ares da expectativa milenarista – ares que acabaram dando um fôlego<br />
especial ao programa reformista. Tal esperança foi particularmente nutrida e<br />
difundida durante mais de vinte anos pelos integrantes do grupo de Hartlib,<br />
uma vez que, no âmago do intenso anseio de seus membros pela reforma geral<br />
e pela “era da luz” residia a associação das fortes motivações messiânicas e<br />
milenaristas. 53<br />
Dury, por exemplo, acreditava que era chegada a hora em que os protestantes<br />
poderiam trabalhar unidos pela expansão do reino de Deus e auxiliar<br />
os judeus no processo de conversão, sem o qual, como acreditava o próprio<br />
Hartlib, o mundo não poderia esperar a “era de ouro” e de felicidade universal.<br />
54 Registrou parte de sua expectativa com a nova aurora de esperança e<br />
transformação social e religiosa em sua obra Englands Thankfulnesse, or, An<br />
Humble Remembrance presented to the Committee for Religion in the High<br />
Court of Parliament (“A gratidão da Inglaterra ou Uma humildade recordação<br />
apresentada à Comissão de Religião na Alta Corte do Parlamento”). Ali expôs<br />
que o objetivo de Deus era provocar o renascimento dos estados da Europa e<br />
reafirmou sua crença de que o reino de Cristo estava para chegar, a Babilônia<br />
para cair e que a igreja estava às vésperas das dores de parto ao contemplar<br />
o iminente retorno de Cristo. Animado com a convocação parlamentar para<br />
a realização da Assembleia de Westminster, 55 Dury passou a acreditar ainda<br />
53 Hartlib difundiu na Inglaterra, durante vinte anos, um programa de reforma social, religiosa e<br />
educacional que chegou a influenciar homens como Boyle e Petty. Esse programa, desenvolvido em meio<br />
à euforia escatológica que marcou o começo da década de 1640 e que contava com a bênção de certos<br />
líderes do Parlamento, contribuiu, segundo Hill, com o entusiasmo milenarista em criar a expectativa<br />
de que a utopia era iminente na Inglaterra. HILL, O mundo de ponta-cabeça, p. 279.<br />
54 Dury entendia que a chegada a Londres de Johann Stefan Rittangel era a forte evidência de que<br />
a reforma geral lograria seus frutos e que o caminho para a volta do Messias, face à conversão prévia dos<br />
judeus, seria definitivamente inaugurado. Rittangel, erudito professor de línguas orientais em Konigsberg,<br />
vivera entre os judeus da Europa, Ásia e África durante vinte anos, tempo em que angariou sensível<br />
experiência para ser, agora em Londres, um instrumento de conversão dos mesmos ao cristianismo.<br />
TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 200.<br />
55 WEBSTER, Advancement of Learning, p. 39; HODGE, Confissão de Fé Westminster, p. 42;<br />
HULSE, Quem foram os puritanos?, p. 102-103.<br />
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VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...<br />
mais que o Parlamento inglês seria como que uma parteira dessas mudanças e<br />
que os olhos das igrejas, especialmente algumas da comunidade germânica, 56<br />
estavam fixos nos parlamentares ingleses da década de 1640. 57<br />
Com isso em vista, o círculo hartlibiano acreditava que o tempo adequado<br />
para colocar em prática o projeto reformista havia chegado. Para seus membros,<br />
um sinal evidente da providência divina era a chegada à Inglaterra dos<br />
agentes essenciais da reforma a partir do início da década de 1640. Dury, por<br />
exemplo, havia mudado da Suécia para Londres a convite de Hartlib, enquanto<br />
que Comenius, que seria o responsável pela reforma educacional, acabaria<br />
chegando a Londres em 1641.<br />
Com efeito, os dias que antecederam a chegada de Comenius foram marcados<br />
por um momento especial de esperança e de busca de renovação espiritual,<br />
educacional, filosófica e, consequentemente, de novas conquistas. Escrevendo<br />
a Hartlib em 7 de fevereiro de 1641, ou seja, pouco antes de mudar-se para<br />
Londres, Comenius deixa transparecer a euforia que contagiava seus planos<br />
em face ao iminente descortinar de um novo e promissor tempo de avanços<br />
na educação, no conhecimento e nas ciências, pois dizia:<br />
Agora, com o prazer de cumprimentá-lo, uso a ocasião do relatório que chegou<br />
a nós, referente aos acontecimentos em seu país até dia 9 de janeiro. Peço incessantemente<br />
a Deus que o instrua com espírito de sabedoria, através do qual<br />
o teu bom discernimento não esteja indiferente a essas grandes oportunidades.<br />
O que nos impede de compartilhar nossos pensamentos e desejos em comum,<br />
anteriormente concebidos, nos quais meditamos até hoje? Ó amigos, ou é agora<br />
o momento certo, ou teremos que esperar um tempo escasso e apropriado,<br />
um tempo que seja capaz tanto para ouvir os conselhos como para alcançar os<br />
desejos do grande Verulano, os quais visavam um fruto feliz (...). Para este objetivo,<br />
sua Majestade pode, com facilidade, promover o seu início fornecendo<br />
simplesmente os meios. Meios pelos quais os trabalhos realizados por muitos,<br />
que estão com sucesso produzindo os desejados avanços no conhecimento e<br />
nas ciências, possam ser completados em sua totalidade, quer pela plenitude<br />
das recompensas, quer pelo prudente e sensato conselho, ou, finalmente, pelo<br />
compartilhar dos seus trabalhos. 58<br />
Assim, contando com o incentivo e com a boa vontade do Parlamento<br />
em apoiar a proposta de reconstrução social e animado pela publicação de seu<br />
Macaria logo após um mês da chegada de Comenius a Londres, Hartlib não<br />
56 A referência às igrejas germânicas se dá por conta das esperanças nutridas pelas igrejas da<br />
região da Boêmia e da Morávia de que as pesarosas consequências advindas da Guerra dos Trinta Anos<br />
pudessem cessar a partir da inauguração de um novo tempo de paz e prosperidade no qual a Inglaterra,<br />
a partir do Parlamento, teria uma participação singular.<br />
57 TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 200.<br />
58 HARTLIB PAPERS, document [7/84/2A].<br />
88
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102<br />
disfarçava seu entusiasmo quanto à possibilidade iminente de se iniciar a tão<br />
anelada reforma na Inglaterra, pois dizia:<br />
Eis que agora vivemos, em vez de desolação, os reparos das violações antigas; em<br />
vez de confusão, o lançamento das bases para muitas gerações construírem<br />
em cima; em vez de temor, uma grande porta aberta, onde devemos nos manter<br />
firmes e totalmente dedicados em toda a abundância de paz e de verdade. 59<br />
O próprio Parlamento esperava nomear uma comissão para examinar os<br />
esquemas de Hartlib, Dury e Comenius, tencionando promover um espaço<br />
adequado para o uso desse colegiado, que, por fim, deu-se inicialmente no<br />
Chelsea College, em Londres. 60<br />
2.2 O “Office of Address”: a agência do avanço da aprendizagem<br />
universal<br />
A associação das convicções teológicas do círculo de Hartlib à filosofia de<br />
Bacon e à pansofia de Comenius contribuiu para o fortalecimento do ideário<br />
de uma ciência útil, ou seja, uma ciência que correspondesse aos anseios de<br />
uma reforma social, cujo objetivo visasse o bem-comum. 61<br />
Logo, era da convicção do círculo de Hartlib que a compreensão ordenada<br />
de todas as coisas naturais e artificiais existentes no mundo deveria conduzir<br />
a ciência, dedicada à sociedade, a um fim mais proveitoso, como seriam as<br />
ciências para explorar as riquezas da terra ou voltadas à saúde.<br />
Parece, portanto, que foi por meio desta convicção que se deu início ao<br />
abandono do conhecimento estritamente teórico – ou, como se dizia na época,<br />
mais “especulativo” – de alguns dos pensadores clássicos. Ao mesmo tempo,<br />
como afirmou Dury em suas obras The Reformed School (1650) e Some<br />
Proposalls (1653), novos protagonistas do conhecimento passaram a ser selecionados<br />
em virtude de pressupostos mais práticos e menos especulativos. 62<br />
59 Ver: Englands Thankfulnesse, or An Humble Remembrance Presented to the Committee for<br />
Religion in High Court of Parliament (London 1642, p. 2 e 92). WEBSTER, Advancement of Learning,<br />
p. 35.<br />
60 Ibid., p. 36.<br />
61 Em defesa do caráter útil da ciência, Bacon dizia: “O uso da história mecânica é de todos o mais<br />
primário e fundamental para a filosofia natural: para uma filosofia natural, isto é, que não se dissipe<br />
em vapores de especulação sutil, sublime ou deleitável, mas que seja operativa para o enriquecimento e<br />
benefício da vida humana; pois não só ministrará e sugerirá para o presente muitas práticas engenhosas<br />
em todas as indústrias, mediante a conexão e transferência das observações de uma arte à prática de<br />
outra (...), mas que, além disso, dará uma iluminação mais verdadeira e real sobre as causas e axiomas<br />
que até agora se alcançou”. BACON, O progresso do conhecimento, livro segundo, p. 117.<br />
62 Webster baseia-se nessas obras de Dury para fazer tal afirmação. Ver: WEBSTER, Advancement<br />
of Learning, p. 54.<br />
89
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...<br />
Comenius, Hartlib, Dury e demais membros do grupo eram altamente<br />
resistentes e críticos do sistema educacional existente, uma vez que este ainda<br />
seguia uma estrutura bastante escolástica, como presente nas universidades de<br />
Oxford e Cambridge. Assim, na contramão da situação vigente, os hartlibianos<br />
acreditavam que uma ciência cujos pressupostos incluíssem um lado mais<br />
prático e útil pudesse oferecer uma espécie de ponte entre a cultura intelectual<br />
e a artesã.<br />
Com efeito, Comenius combatia, segundo ele mesmo afirmava, o retrógrado<br />
sistema educacional e o diminuto caráter experimental das universidades.<br />
63 Defensor que era de um conhecimento que não excluísse um lado mais<br />
proveitoso, entendia que as universidades deveriam primar pelo caráter da<br />
inquestionável eficiência no ensino e no aproveitamento social. 64 Para ele, as<br />
universidades deveriam difundir o conhecimento universal e os frutos mais<br />
úteis da ciência, a partir do intercâmbio entre universidades dos mais diferentes<br />
lugares. 65<br />
Com isso em mente, Comenius buscou, juntamente com Hartlib, dar início<br />
à realização do projeto do Colégio Universal, no qual seus membros deveriam<br />
se empenhar no exercício da filosofia baconiana e nas ideias comenianas com<br />
vistas, dentre outros objetivos, a promover a vocação social e prática da nova<br />
ciência. Nesse sentido, sobre o trabalho dos mestres do Colégio que teriam<br />
seu foco nas ciências, Comenius dizia:<br />
Que o trabalho deles tenda a aprofundar cada vez mais os fundamentos das<br />
ciências para purificar e difundir entre o gênero humano, e com maior sucesso,<br />
a luz do saber, e para que as coisas humanas progridam com novas e utilíssimas<br />
invenções. De fato, quem não quiser trilhar sempre velhos caminhos, ou<br />
mesmo retroceder, precisará pensar no progresso das coisas iniciadas. Para<br />
isso, não é suficiente um homem ou uma época, mas é necessário que as obras<br />
empreendidas sejam continuadas por muitos, simultânea e sucessivamente. Tal<br />
Colégio Universal será para as outras escolas aquilo que o estômago é para os<br />
membros do corpo, ou seja, uma oficina vital que fornece sempre aos outros<br />
órgãos linfa, vida, força. 66<br />
Vale ressaltar que a possibilidade de organizar o Colégio Universal foi<br />
determinante para que Comenius decidisse mudar-se para a Inglaterra, conforme<br />
convite feito por Hartlib. Na carta enviada a Hartlib, datada de 7 de fevereiro<br />
de 1641, ou seja, pouco tempo antes de sua ida para Londres, Comenius<br />
63 COMENIUS, The Way of Light, p. 162.<br />
64 COMENIUS, João A. Didática Magna de Comenius. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 238.<br />
65 COMENIUS, The Way of Light, p. 167-177.<br />
66 COMENIUS, Didática Magna, p. 358-359.<br />
90
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102<br />
expressava sua esperança em organizar o Colégio Universal naquela cidade,<br />
pois dizia ao amigo:<br />
Reconhecemos a exigência de se ter um Colégio Universal, e estamos convencidos<br />
de que o mundo não pode prescindir dele por mais tempo, a não ser em<br />
seu detrimento (...). Se agora temos nas mãos o mais alto nível, o sétimo, da<br />
luz divina, que gradualmente é compartilhado com o mundo, então o destino<br />
encontrará o caminho adequado para fundar esse Colégio em algum lugar<br />
do mundo. Mas, seria o caso que isso fosse tirado da Inglaterra? (...). Então,<br />
finalmente, o Soberano Rei, mais sábio de seus Senhores, poderá coroar suas<br />
ações, caso desejem colocar este diadema, esta joia – o Colégio da Luz – em<br />
suas florescentes escolas, universidades, igrejas e conselhos. 67<br />
De fato, a proposta inicial de Bacon sobre a implantação de um colégio<br />
dedicado ao livre e universal estudo das artes e da ciência sempre contagiou<br />
Comenius, especialmente por este acreditar que, por meio do Colégio Universal,<br />
a reforma educacional seria viabilizada, bem como as sementes para as ciências<br />
de eras futuras estariam sendo plantadas. Logo, Comenius estava convicto de<br />
que, na medida em que a associação da ideia do colégio de Bacon com suas<br />
ideias educacionais fosse levada adiante, não apenas a reforma educacional<br />
inglesa lograria êxito, mas a reforma universal da educação daria seus primeiros<br />
e determinantes passos. Foi com essa perspectiva que Comenius planejou pôr<br />
em ação a organização de um colégio pansófico central (Collegium Lucis ou<br />
Colégio da Luz, como também chegou a ser chamado), durante os meses em<br />
que ficou com Hartlib e seus colaboradores, entre 1641 e 1642, por entender que<br />
não havia melhor ocasião e lugar para iniciar seu plano. 68<br />
Destarte, Comenius e os demais hatlibianos, que anelavam pela proposta<br />
comeniana de Reforma Universal, 69 esperavam organizar, em Londres, o<br />
67 HARTLIB PAPERS, ver documentos [7/84/2A], [7/84/2B], [7/84/3A], [7/84/3B]. Ademais, praticamente<br />
um ano antes de sua morte, em seu Continuatio admonitionis fraternae de temperando charitate<br />
zelo ad S. Maresium (1669), Comenius revelou a esperança que nutria de que o Colégio Universal fosse<br />
organizado no tempo em que esteve entre os hartlibianos, pois também escreveu: “Consequentemente,<br />
teria sido fundado, neste momento, o Colégio como o ilustre Bacon havia desejado, dedicado a todos os<br />
estudos sobre o mundo dos homens cujo zelo seria trazer acréscimos valorosos para a raça humana nas<br />
ciências e nas artes. YOUNG, Comenius in England, p. 36.<br />
68 Sobre a intenção dos hartlibianos em organizar o Colégio Universal, Narodowski ressalta que<br />
Comenius não teve dúvidas em dirigir-se a Londres, em 1641, com a esperança de conseguir instalar o<br />
colégio pansófico, uma vez que muitos homens de letras e de ciências estavam imbuídos do propósito de<br />
fundar um colégio semelhante à “Casa de Salomão” (que Bacon havia planejado em sua Nova Atlântida),<br />
e, ainda, porque esse projeto parecia poder contar com o apoio do Parlamento no provimento dos fundos<br />
necessários. NARODOWSKI, Mariano. Comenius e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p. <strong>22</strong>.<br />
69 Tendo em vista que Comenius considerava a ciência como um organismo vivo de todos os<br />
conhecimentos, Cauly chega a afirmar que Hartlib e os demais membros do Colégio Invisível encontraram,<br />
no pensamento comeniano, os princípios éticos e científicos da sua própria atividade reformadora.<br />
CAULY, Olivier. Comenius o pai da pedagogia moderna. Lisboa: Piaget, 1995, p. 211.<br />
91
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...<br />
Colégio Universal devidamente assistido por um colegiado de acadêmicos e<br />
pensadores envolvidos no empreendimento pansófico. 70 Todos os integrantes do<br />
Colégio deveriam se dispor a assimilar e a divulgar o máximo possível de cada<br />
esfera do conhecimento entre os sábios e eruditos de diversas partes da Europa<br />
e além-mar. Na esteira das ideias de Johnann Heinrich Alsted (1588-1638), as<br />
contribuições dos acadêmicos e estudiosos deveriam resultar em um entendimento<br />
enciclopédico sobre o material do mundo. Seus esforços deveriam, ao<br />
mesmo tempo, corresponder ao anseio de Dury em promover as soluções para<br />
as controvérsias entre os protestantes, bem como assistir e orientar as bases da<br />
reforma da igreja e da educação inglesa. 71<br />
Mas deve-se ter em mente que além dos esforços em organizar o Colégio<br />
Universal, Comenius, no tempo em que esteve em Londres, escreveu e entregou<br />
aos hartlibianos seus estudos que visavam alcançar a Reforma Universal, ou<br />
seja, estudos que transcendiam as demandas e vicissitudes sociais, eclesiásticas<br />
e educacionais inglesas da época. 72 Para esse propósito mais amplo, considerava<br />
que os primeiros passos desse programa pansófico se dariam a partir<br />
da tentativa de reformar a educação e as escolas da Inglaterra, como de fato<br />
pretendia fazer através da participação no grupo de Hartlib.<br />
Entretanto, por conta das comoções políticas e dos sobressaltos da guerra<br />
civil de 1642, ocasião em que houve o choque entre as forças leais ao rei<br />
Charles I e as leais ao Parlamento, 73 Comenius não conseguiu publicar seus<br />
estudos enquanto esteve na Inglaterra. Com efeito, somente em 1668 conseguiu<br />
publicá-los e, na ocasião, dedicou-os, cheio de esperança, à Royal Society<br />
sob o título Via Lucis 74 – nome que havia dado na década de 1640, conforme<br />
70 COMENIUS, The Way of Light, p. 173-174.<br />
71 WEBSTER, Advancement of Learning, p. 29. Ver também: WEBSTER, The Great Instauration,<br />
p. 67-69.<br />
72 As ideias de Comenius transcendiam as demandas educacionais na medida em que revelavam<br />
uma nova concepção sistemática e orgânica das ciências. Tudo indica que o saber pansófico, cujo objetivo<br />
mirava a instrução e a utilidade universal (pancresia) do conhecimento, legitimava as aspirações dos<br />
radicais por uma popularização do saber. CAULY, Comenius o pai da pedagogia moderna, p. 212.<br />
73 Em 4 de janeiro de 1642, o rei Charles I intentou, sem sucesso, investir contra a Câmara dos<br />
Comuns, a fim de prender seu líder, John Pym. Esse episódio serviu como prelúdio para a guerra civil,<br />
cuja primeira batalha entre as forças do rei e as do Parlamento teve lugar em Edgehill, em outubro de<br />
1642. Também conhecida como a guerra entre os Royalists e os Roundheads, a mesma fora motivada<br />
por fortes questões político-religiosas. Ver: HULSE, Quem foram os puritanos?, p. 59-61; GONZÁLEZ,<br />
História do pensamento cristão, vol. 3, p. 288.<br />
74 Por meio do Via Lucis, Comenius desenvolveu aquilo que chamou de Pan-Harmonia, conceito<br />
no qual depositava a confiança de que se poderia atingir a Grande Reforma através da reunião e da<br />
organização dos livros universais, das escolas universais, do Colégio Universal (College) e da língua<br />
universal. Sobre o Via Lucis, Cauly defende a ideia de que era intenção do grupo de Hartlib apresentá-lo<br />
ao Parlamento, na década de 1640, como sendo a pedra de toque para a difusão do pensamento pansófico<br />
e o caminho para se alcançar a Reforma Universal a partir da Inglaterra. CAULY, Comenius o pai da<br />
pedagogia moderna, p. 234.<br />
92
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102<br />
compartilhou com a própria Royal Society, ao escrever: “[Por causa da crise<br />
política] tive que ir embora deixando para trás parte dos meus estudos que havia<br />
escrito sob o título de Via Lucis vestigata et vestiganda (The Way of Light,<br />
traced and to be traced)”. 75<br />
Com a intensificação dos conflitos entre a Coroa e o Parlamento, profundas<br />
divisões oriundas da guerra interromperam, ainda que por breve tempo,<br />
o zeloso projeto de reforma estabelecido em anos anteriores por Hartlib e<br />
seus companheiros. Com as vicissitudes da crise civil, o Parlamento voltou a<br />
atenção para as implicações e consequências da peleja, fazendo com que momentaneamente<br />
o grupo de Hartlib ficasse fragilizado em seus recursos e apoio<br />
e sensivelmente empobrecido pela saída inevitável de Dury e de Comenius 76 –<br />
embora Hartlib e Cheney Culpeper (1601-1663) alimentassem a esperança de<br />
que a beligerância fosse solucionada em breve.<br />
Mas ainda que a aura do otimismo reformista tenha sido temporariamente<br />
anuviada pela guerra civil, o grupo de Hartlib conseguiu superar esse difícil<br />
período sem perder as esperanças quanto ao sonho da reforma geral. Com o<br />
Parlamento impondo-se sobre a monarquia em 1645, Hartlib, infelizmente<br />
sem poder contar com a presença de Comenius, 77 mas animado com o retorno<br />
de Dury e com a participação de Culpeper, recuperou fôlego tão logo o arrefecimento<br />
da agitação político-militar interna se iniciara. De fato, Dury, que<br />
retornara a Londres para em seguida assumir uma cadeira na Assembleia de<br />
Westminster, 78 e os outros integrantes do grupo voltaram a engendrar esforços<br />
com vistas à implantação da reforma geral inglesa até o final da década de 1660.<br />
75 COMENIUS, The Way of Light, p. 5D.<br />
76 Dury foi temporariamente servir como capelão de Maria, princesa do rei de Orange, enquanto<br />
que Comenius, em 21 de junho de 1642, contando com a aquiescência de seus patronos, Lord Brooke,<br />
John Pym e outros, deixou Londres ao aceitar o convite de Louis de Geer para introduzir a reforma<br />
escolar na Suécia. TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 202. Ver também:<br />
COVELLO, Sérgio C. Comenius: a construção da pedagogia. São Paulo: SEJAC Comenius, 1991,<br />
p. 58-59; WEBSTER, Advancement of Learning, p. 38.<br />
77 Era da intenção de Comenius retornar à Inglaterra tão logo a paz fosse restaurada no reino, o<br />
que, como se sabe, acabou não acontecendo, não obstante Comenius ter compartilhado posteriormente<br />
tal desejo com a Royal Society por meio das seguintes palavras: “Como se viu, as comoções políticas<br />
que se apossaram do país naquele período impediram os esquemas (pansóficos) de serem levados à<br />
realização e eu fui novamente enviado de volta, mas sob a promessa de não declinar da possibilidade de<br />
retornar, caso Deus restaurasse a paz”. COMENIUS, The Way of Light, p. 5D.<br />
78 Acerca do retorno de Dury à Inglaterra e ao grupo de Hartlib, Webster ressalta que Dury havia<br />
retornando gradualmente ao cenário inglês, em 1645. Em Londres, Dury tornou-se proeminente ao tomar<br />
parte ativa na Assembleia de Teólogos de Westminster. Também pregou perante o Parlamento, em<br />
26 de novembro de 1645, um sermão intitulado: “Chamada a Israel para que Marche da Babilônia para<br />
Jerusalém”. Por meio desta exposição, Dury parece ter evocado o paralelo entre a Inglaterra e Israel –<br />
ou seja, duas sociedades destinadas a testemunhar, cada uma em sua época, a queda da Babilônia, uma<br />
vez que tinha no Parlamento inglês um símbolo escatológico da providência divina. Vide: WEBSTER,<br />
Advancement of Learning, p. 39.<br />
93
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...<br />
Nesses dias mais favoráveis, o grupo de Hartlib recebeu significativa ajuda<br />
do protetorado de Oliver Cromwell, 79 que, como puritano, igualmente defendia<br />
e patrocinava o espírito e as reivindicações da reforma geral. 80 Contando com a<br />
empatia de Cromwell, 81 os hartlibianos deram importantes passos durante parte<br />
do interregno inglês, sobretudo quando se tem em mente a produção religiosa<br />
e intelectual. Neste contexto, o grupo revigorou suas pretensões reformistas<br />
reavendo os ambiciosos planos que postulavam, dentre os quais, a retomada do<br />
Colégio Universal de Comenius, ainda que parcial, ocupava um lugar central. 82<br />
Vale registrar que, mesmo com a saída de Comenius da Inglaterra, Hartlib<br />
e seus amigos continuaram a divulgar as ideias comenianas sobre a reforma<br />
educacional. 83 Exemplo disso é que enquanto se dedicavam ao desenvolvimento<br />
das bases do Colégio, divulgavam, ao mesmo tempo, o conteúdo da obra comeniana<br />
A Reformation of Schooles. Igualmente, Charles Hoole (1610-1667),<br />
renomado escritor inglês de prática escolar, passou a recomendar os textos latinos<br />
de Comenius, que foram utilizados por longo tempo nas escolas inglesas. 84<br />
Assim, por conta do melhor momento político do país, Hartlib, ainda que<br />
de forma mais modesta do que o programa inicial para o Colégio Universal,<br />
canalizou juntamente com Dury e Culpeper, em 1646, sensíveis modificações<br />
na proposta do Colégio de Comenius. 85 Tais adaptações e ajustes buscaram<br />
79 GONZÁLEZ, História do pensamento cristão, vol. 3, p. 292-293; HULSE, Quem foram os<br />
puritanos?, p. 67-70.<br />
80 Sobre o apoio de Oliver Cromwell à causa reformista, especialmente no que dizia respeito a<br />
Samuel Hartlib, Trevor-Roper afirma que ele recebia uma pensão de Cromwell, assim como a recebera<br />
de Pym e St. John. Ver: TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 208-209.<br />
81 GONZÁLEZ, História do pensamento cristão, vol. 3, p. 286; HULSE, Quem foram os puritanos?,<br />
p. 59-63.<br />
82 Comenius teria escrito a Hartlib, em 1646, perguntando se haveria alguma chance de o<br />
Collegium Lucis ser, naquele novo momento, estabelecido na Inglaterra. Ver: TURNBULL, G. H.<br />
Hartlib, Dury and Comenius. London: University Press of Liverpool, Hodder & Stoughton, 1947, p. 372.<br />
83 Prova da aceitação e interesse dos ingleses pela pansofia de Comenius, mesmo após ele ter deixado<br />
a Inglaterra, foi a publicação que Hartlib organizou, em Londres, das obras comenianas Pansophiae<br />
diatyposis (em 1643) e A Continuation of Mr. J. A. Comenius school endeavours (em 1648). Mesmo<br />
as inúmeras viagens e estadas em países da Europa que Comenius efetuou a partir de 1642 devem ser<br />
consideradas, em grande medida, em função da recepção que suas teorias tiveram na Inglaterra. Ver:<br />
CAULY, Comenius o Pai da Pedagogia Moderna, p. <strong>22</strong>3-239, 211.<br />
84 COVELLO, Comenius: a construção da pedagogia, p. 56.<br />
85 Vale registrar que, mesmo depois da saída de Comenius da Inglaterra, isso não implicou necessariamente<br />
no seu distanciamento dos hartlibianos. Prova disso é a carta que Comenius enviou a Hartlib<br />
em 19 de julho de 1654 da cidade de Leszno, relatando: “Você me pergunta e deseja saber o que estou<br />
fazendo ou o que estou prestes a fazer? Respondo primeiramente que só agora estou começando a me<br />
acostumar com nossa separação; e também que os grandes trabalhos são realizados de forma melhor no<br />
profundo silêncio, pois o ruído perturba e distrai. Não foi sem razão, acredite em mim, que me debrucei<br />
nesses pensamentos, nos quais eu deveria agir como um imitador de Deus e dos homens sábios, como<br />
alguém que está acostumado a lançar os seus trabalhos antes mesmo que os outros sintam que estes<br />
estejam sendo liberados”. HARTLIB PAPERS, document [7/72/1A].<br />
94
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102<br />
lançar as bases para um singular projeto pansófico, a saber, o Office of Address<br />
for Communications.<br />
Este projeto, que teve relevante produção durante o protetorado de Oliver<br />
Cromwell, fora criado em grande medida a partir de uma evidente associação<br />
de ideias entre o College, de Bacon, e o Collegium Lucis, de Comenius. Conhecido<br />
como Office of Address, tornou-se uma tentativa dos hartlibianos de<br />
dispor, a partir da Inglaterra, de um centro de fomentação intelectual e cultural.<br />
Um centro que pudesse desenvolver e aperfeiçoar de modo objetivo uma nova<br />
disposição para a comunicação internacional com vistas a promover a informação<br />
e atualização do conhecimento útil, a educação e instrução religiosa e<br />
cultural, e o desenvolvimento e progresso social.<br />
Vale ressaltar que, no processo de adaptação que Hartlib implantou na proposta<br />
central e em algumas das funções do Colégio pretendido por Comenius,<br />
o Bureau d’Adresse, de Theóphraste Renaudot, prestou sensível contribuição<br />
e inspiração ao grupo. O modelo de atuação e os esforços bem-sucedidos que<br />
o escritório parisiense dedicava em sua proposta de difusão da informação serviram<br />
de referência inicial para os incipientes trabalhos do Office of Address. 86<br />
Levando-se em consideração alguns aspectos do modelo de operação do<br />
Bureau, o Office of Address 87 passou a moldar e a estruturar os detalhes da sua<br />
atuação tornando-se uma espécie de núcleo em que boa parte dos pressupostos<br />
protestantes voltados à sociedade e à cultura pudessem ser direcionados à<br />
educação, à ciência e à técnica.<br />
Assim, por estar comprometido em promover a divulgação e difusão<br />
universal do conhecimento e da verdade, o Office apresentou-se como uma<br />
conveniente e oportuna plataforma de recrutamento de novos associados,<br />
aliados políticos e acadêmicos que, por meio do convencimento do apoio de<br />
patronos, conseguiu empenhar-se em diversos empreendimentos humanitários<br />
que visavam à melhoria das condições de vida do homem e da sociedade. 88<br />
Semelhantemente ao que deveria ter acontecido com o Colégio Universal<br />
de Comenius, o Office of Address fora concebido, pelo menos inicialmente,<br />
para ser uma instituição regulamentada e patrocinada pelo Estado, a fim de<br />
86 O Bureau d’Adresse destacava-se por operar como uma agência difusora da comunicação<br />
erudita e intelectual, bem como na promoção de intercâmbio de informações sobre o comércio, sobre<br />
produtos manufaturados e até mesmo sobre empregos. Ver: CLUCAS, S. “In Search of the True Logick:<br />
Methodological Eclecticism among the Baconian Reformers”. In: GREENGRASS, M. Samuel Hartlib<br />
and Universal Reformation: Studies in Intellectual Communication. Cambridge: Cambridge University<br />
Press, 1994, p. 52-53. Ver também: WEBSTER, The Great Instauration, p. 68.<br />
87 Registre-se ainda que o Office of Address teve duas repartições. A primeira, conhecida como<br />
Office of Address for Accommodations, acabou seguindo mais detidamente o padrão do Bureau de Renaudot,<br />
enquanto que a segunda, na qual o grupo de Hartlib se envolveu mais efetivamente, era denominada<br />
Office of Address of Communications. WEBSTER, The Great Instauration, p. 68-69.<br />
88 HILL, O mundo de ponta-cabeça, p. 279.<br />
95
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...<br />
se concentrar no interesse público e na produção utilitária da ciência. Desde o<br />
início da sua operação, Hartlib passou a dedicar-se profundamente às reformas<br />
econômicas propostas em Macaria, 89 obra de que foi o editor. Assim, junto com<br />
seus companheiros, buscava concretizar as reformas necessárias a partir do<br />
estabelecimento desse novo centro de capitação e difusão do conhecimento e<br />
da cultura – centro que, conforme almejavam os hartlibianos, deveria assegurar<br />
a realização de ambiciosos planos sociais e a comunicação, em todo o reino,<br />
de tudo o que fosse socialmente bom, louvável e desejável.<br />
O Office of Address fora planejado inicialmente para atuar em dois objetivos<br />
predominantes. Primeiro, desejava-se que o Office atuasse como um<br />
centro de informações e correspondências destinadas a promover o avanço do<br />
conhecimento universal, o progresso das ciências nos moldes baconianos e o<br />
avanço na difusão e implantação do conceito educacional comeniano, por todo<br />
o mundo. Segundo, este centro deveria direcionar os esforços dos inventores<br />
e idealizadores conforme as prioridades descritas pelas linhas de Gabriel<br />
Plattes (1600-1644) e, posteriormente, divulgadas através das correspondências<br />
expedidas por Culpeper. 90<br />
Com isso em vista, o Office of Address tornou-se, mesmo que de maneira<br />
informal e sem endereço oficial, uma espécie de gabinete designado para,<br />
dentre as atividades que visavam a Commonwealth, 91 arregimentar e difundir<br />
informações que tangessem a esfera religiosa e a educacional, bem como<br />
para viabilizar melhorias das condições técnicas que proporcionassem novas<br />
espécies e tipos de invenções, criações e descobertas. 92 Foi assim que o Office<br />
iniciou sua atuação com três principais divisões internas de informação, a saber:<br />
Religião, Ensino e Engenho (Invenções). Dury assumiu, informalmente,<br />
a primeira divisão, onde ocupou-se das correspondências de teor religioso e<br />
teológico. A segunda divisão dedicou-se a promover a filosofia de Bacon<br />
e a de Comenius, enquanto que a terceira destinou-se a buscar recursos para<br />
tornar viáveis os objetivos do College of Experience, esboçado por Plattes. 93<br />
89 Hartlib fora influenciado pelas ideias de fraternidade e irmandade cristã de Johann Valentin<br />
Andreae a ponto de encomendar e publicar, em 1641, a obra Macaria. Essa obra indicava as possibilidades<br />
de reformar o estado inglês e as benesses que isto traria para toda a sociedade. Ver: TREVOR-<br />
-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 186. Ver também: WEBSTER, Advancement of<br />
Learning, p. 35.<br />
90 WEBSTER, The Great Instauration, p. 68.<br />
91 GREENGRASS, M.; LEISLIE, M.; TAYLOR, T. (Orgs.). Samuel Hartlib and Universal Reformation:<br />
Studies in Intellectual Communication. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 11.<br />
92 DUNN, K., “Milton among the monopolists: Areopagitica, intelectual property and the Hartlib<br />
circle”. In: GREENGRASS, M. Samuel Hartlib and Universal Reformation: Studies in Intellectual<br />
Communication. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 178-182.<br />
93 Para mais informações sobre as divisões internas do Office of Address, ver: WEBSTER, The<br />
Great Instauration, p. 69.<br />
96
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102<br />
Comentando em seu Englands Reformations alguns objetivos que as divisões<br />
internas do Office deveriam alcançar, Dury escreveu:<br />
Em matéria de ciências humanas, o objetivo deveria ser: primeiro, colocar em<br />
prática o que fora designado pelo Lord Verulano em seu De Augmentis Scientiarum<br />
acerca do ensino. Segundo, auxiliar o empreendimento de Comenius,<br />
principalmente quanto ao método de ensino, linguagem e ciências, e a encomendar<br />
escolas para todas as idades e a zelar pela qualidade dos acadêmicos. Em<br />
terceiro lugar, em matéria de invenções e suas finalidades, deveria ser oferecida<br />
a mais rentável criação capaz de beneficiar o Estado, a fim de que o público<br />
fizesse uso conforme o próprio Estado achasse mais conveniente. 94<br />
Portanto, baseado parcialmente no ideário do Colégio de Comenius, o<br />
Office of Address foi designado para atuar como uma espécie de lugar que<br />
inicialmente funcionaria como um centro de encontros e debates onde se<br />
discutiriam e promoveriam propostas e tratados de cunho social e religioso e<br />
questões que fomentassem o engenho intelectual. Dessa forma, mesmo com<br />
poucos recursos próprios, no tempo em que atuou graças aos esforços especiais<br />
de Hartlib e Dury, o Office buscou encorajar eruditos ingleses, envolver<br />
pensadores visitantes e manter em vigor as correspondências internacionais.<br />
Em sua operação, o grupo publicou 65 títulos 95 sobre as mais variadas áreas do<br />
conhecimento, além de organizar um grande número de livros, cartas, manuscritos<br />
e documentos, visando dar forma a uma expressiva biblioteca que fosse<br />
capaz de difundir o conhecimento por meio dos seus volumes e coleções. Antes<br />
mesmo da guerra civil, Comenius, Dury, Pell, Hübner e Hartlib haviam dado<br />
início à produção de uma série de quinze livros destinados às necessidades<br />
educacionais da infância e da adolescência, os quais se tornaram um “ambicioso<br />
projeto divulgado no Englands Thankfulnesse (1642), no Motion Tending to the<br />
Publick Good de Dury (1642) e nos manuscritos de Hartlib Peace and Long<br />
Enjoyed Serenity of State, todos escritos depois da chegada de Comenius”. 96<br />
Mesmo longe do grupo, Comenius entusiasmava-se com os trabalhos do<br />
Office of Address. Na missiva de 1654, revelou seu desejo de publicar seus<br />
estudos a partir desta agência, pois escreveu a Hartlib:<br />
Em suma, porque Deus me tem mantido até este momento (um tempo tão desejado<br />
e perto do grande ponto da virada das eras) e porque, em grande parte,<br />
os documentos das minhas coletas de mais de vinte anos de exercício mental<br />
me foram restaurados, estou disposto, durante os meses deste verão, outono e<br />
94 Ibid.<br />
95 Sobre as 65 obras publicadas pelos hartlibianos e seus respectivos títulos, ver: TURNBULL,<br />
G. H. Hartlib, Dury and Comenius, p. 88ss.<br />
96 WEBSTER, Advancement of Learning, p. 38.<br />
97
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...<br />
inverno, a rever e a colocar tudo junto numa tela inteiramente subordinada à<br />
grande obra divina, a qual mostra que tudo deve estar sob a mão da providência<br />
eterna. Então (que o Altíssimo me faça prosperar!), tudo vai direto para você. Se<br />
você, e os que com você aí conhecem e temem a Deus, bem como se o próprio<br />
Deus, der sinais de sua boa vontade, meu trabalho deverá ser publicado por sua<br />
agência. Esta é a minha decisão, nisto coloquei minha mente e, por isso, peço<br />
a Deus que o assunto prossiga desta forma. 97<br />
Por essas e outras razões, o Office passou a ser conhecido ainda como a<br />
Agência do Avanço da Aprendizagem Universal, sendo comum ser chamado<br />
também de Colégio, numa referência aos projetos de Bacon e Comenius. 98<br />
Essa espécie de agência em que se tornou o Office dividiu-se internamente<br />
em escritórios ou repartições lideradas por professores designados. Por exemplo,<br />
Dury seria designado para ocupar a Repartição de Divindade; Robert Boyle<br />
(1627-1691) para a Repartição de Mecânica; Benjamin Worsley (1618-1673)<br />
e Culpeper para a Repartição de Agricultura e Transporte; Worsley, Thomas<br />
Coxe (1615-1685) e Boyle para a Repartição de Filosofia Experimental; Gaspar<br />
Godeman para a Câmara das Raridades, e ainda, Gerard Boate (1604-1650),<br />
Worsley e Justin van Ascher para a Repartição de Medicina. 99<br />
Uma vez obtidas as condições mínimas de funcionamento, o Office of<br />
Address tornou-se também uma espécie de centro informal para desenvolver e<br />
aperfeiçoar a visão cristã de mundo e sociedade, ou seja, um núcleo em que boa<br />
parte dos pressupostos protestantes voltados à sociedade e à cultura pudessem<br />
ser direcionados à educação, à ciência e à técnica. Também atraiu e incentivou<br />
o recrutamento de novos associados, aliados políticos e acadêmicos, os<br />
quais, por meio do apoio de patronos, conseguiram empenhar-se em diversos<br />
empreendimentos humanitários e educacionais, sempre visando uma reforma<br />
em prol da melhoria das condições de vida do homem e da sociedade. 100<br />
Nesse sentido, mesmo sem contar com dotação pública, o grupo de Hartlib<br />
apresentou ao Parlamento uma coleção de exposições sobre cada aspecto da<br />
reforma educacional. Trata-se de obras e ensaios de Hartlib, Dury, Cyprian<br />
Kinner (-1649), George Snell (-1701), John Hall (1627-1656), William Petty<br />
(1623-1687), Cressy Dymock (1629-1660) e Benjamin Worsley, quase todas<br />
elaboradas entre 1648 e 1650, que apresentavam o entusiasmo da reforma<br />
educacional. 101<br />
97 HARTLIB PAPERS, document [7/72/1A].<br />
98 WEBSTER, The Great Instauration, p. 70.<br />
99 Ibid., p. 72.<br />
100 HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça, p. 279.<br />
101 WEBSTER, Advancement of Learning, p. 51.<br />
98
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102<br />
Todavia, com as novas agitações políticas que se seguiram na Inglaterra,<br />
especialmente depois da morte de Oliver Cromwell (1658) e do declínio do<br />
puritanismo e de outros movimentos reformistas radicais, Hartlib não conseguiu<br />
dar sequência ao seu ambicioso programa social e religioso, o que resultou no<br />
drástico enfraquecimento do círculo hartlibiano.<br />
Com a perda de apoio e, principalmente, com o Parlamento agora descomprometido<br />
com a moção reformista, o grupo de Hartlib viu-se envolto no mais<br />
implacável desapontamento para com o plano de reforma geral. De fato, com o<br />
inevitável restabelecimento da monarquia, em 1660, ocasião em que a dinastia<br />
Stuart voltou ao trono, as aspirações da Commonwealth esvaneceram-se significativamente<br />
e já não havia mais como evitar a dispersão dos hartlibianos.<br />
Assim, os últimos dias de Hartlib foram marcados pelo isolamento da<br />
vida pública, acarretado, sobretudo, pela perda da pensão que recebia do Parlamento<br />
e pelas constantes complicações de sua saúde. 102 Entretanto, até sua<br />
morte, em 1662, Hartlib não deixou de acreditar no projeto universal instilado<br />
pela fé protestante. Igualmente, acreditou, até o fim, que as ideias presentes em<br />
Macaria poderiam ser desenvolvidas em outro local, 103 tendo em vista a nova<br />
configuração política assumida com a ascensão de Charles II ao trono inglês.<br />
Nesse tempo, marcado pelo declive do ideário reformista e pela ascensão<br />
da coroa e do governo episcopal da Igreja da Inglaterra, Comenius encontrava-<br />
-se em Amsterdã, gozando de paz e estabilidade, ainda que frustrado por jamais<br />
ter visto o renascimento de sua pátria, a Morávia, e por não ter conseguido<br />
implantar o seu programa pansófico.<br />
Porém, a partir de 1662, ao tomar conhecimento das conquistas da então<br />
recém-fundada Royal Society, de Londres, Comenius, ainda muito ligado ao<br />
ideário do grupo de Hartlib, voltou a alimentar esperanças na realização da<br />
anelada Reforma Universal. Foi com essa expectativa que retomou os esforços<br />
para publicar seu programa pan-harmônico, escrito entre 1641 e 1642, ou seja,<br />
seu Via Lucis e, sem hesitar, dedicou e enviou quatro exemplares do mesmo,<br />
em 1668, à Royal Society, dois anos antes de sua morte. 104<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Não é difícil perceber que o legado dos hartlibianos não tem, ao longo<br />
do tempo, despertado grande interesse de estudiosos, teólogos, educadores e<br />
historiadores modernos e contemporâneos. Tal desinteresse parte, ao que parece,<br />
de uma difusa tendência dos historiadores em selecionar suas leituras de acordo<br />
102 Ibid., p. 63.<br />
103 TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 215.<br />
104 HALL, Rupert A.; BOAS, Marie. The Correspondence of Henry Oldenburg. Vol. IV (1667-1668).<br />
Madson e Milwaukee: The University of Wisconsin Press, 1965, p. 389.<br />
99
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...<br />
com a entonação do diapasão e dos sensórios modernos. 105 Tal tipótono tem<br />
soado em correntes historiográficas que insistem em ignorar a coexistência de<br />
elementos em períodos de transição, azo em que estudiosos modernos rejeitam<br />
o antigo (ainda que este não tenha se desvanecido totalmente) e elegem o novo<br />
(ainda que este não tenha aflorado plenamente). Em correntes que perseveram<br />
em não perceber que rupturas e continuidades acontecem de forma simultânea<br />
na história, ocasião em que muitos estudiosos passam abruptamente do<br />
inamovível, improgressivo e inalterável para suas antíteses. E ainda, quando<br />
historiografias evitam ao máximo as implicações metafísicas, morais e religiosas,<br />
oportunidade em que muitos justificam suas abordagens tendo como<br />
pressuposto a ruptura da anterior confiança em Deus.<br />
Nesse sentido, é provável, infelizmente, que alguns concluam que o curto<br />
sucesso do grupo de Hartlib (apenas durante o auge do puritanismo) prova a<br />
presença de uma espécie de incomensurabilidade entre culturas plenamente<br />
distintas.<br />
É verdade que, se por um lado, deve-se manter distância da incauta pretensão<br />
de atribuir ao protestantismo a exclusividade tanto da origem como das<br />
vindimas da nova educação e, sobretudo, da “Ciência Moderna”, por outro,<br />
parece ser de bom alvitre considerar seu envolvimento nos ditames conceituais<br />
que definiam o desígnio cultural e intelectual numa Inglaterra seiscentista.<br />
Assim, apesar de o programa hartlibiano não ter sido adotado na integra<br />
pela Royal Society e de que nem todos os ideais do grupo de Hartlib tiveram<br />
seguimento após a Restauração, uma releitura do protestantismo permitirá<br />
observar algumas franjas conceituais da década de 1640 que sinalizam a<br />
continuidade de certos princípios que alicerçavam a nova cultura. Permitirá,<br />
por exemplo, analisar que o corpus teórico da nova filosofia, utilizado pelos<br />
primeiros membros da Royal Society, ainda abrigava princípios protestantes<br />
que coparticipavam da concepção de ciência.<br />
Não obstante a vigilância dos eruditos modernos em manter distantes<br />
certos aspectos religiosos das discussões filosóficas e históricas, há de se perceber<br />
que certos dutos conceituais transmitiam alguns valores, dentre esses os<br />
teológicos, que estavam na base da nova ciência inglesa. Neste caso, permanecia<br />
a convicção de que a natureza é regida por leis inteligíveis, uma vez que fora<br />
criada por um Deus racional e onisciente. Conservava-se o princípio de que a<br />
ciência é um instrumento legitimado pelas Escrituras com vistas a amenizar os<br />
efeitos deletérios do pecado. Mantinha-se ainda a firme motivação do estudo<br />
das ciências naturais no propósito de perscrutar a glória do poder e da sabedoria<br />
do Criador. Disto são testemunhas alguns protestantes fundadores da<br />
105 ALFONSO-GOLDFARB, Ana M. A magia das máquinas: John Wilkins e a origem da mecânica<br />
moderna. São Paulo: Experimento, 1994, p. 27-28.<br />
100
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102<br />
Royal Society, como John Wilkins, Theodore Haak, Robert Boyle, John Pell,<br />
Jonathan Goddard e Christopher Wren, dentre outros.<br />
De fato, longe de qualquer pretensão de esgotar o assunto, vale lembrar<br />
que a ideia do mandato cultural divino parece ter dado uma motivação redentiva<br />
para que a filosofia natural conhecesse e extraísse a essência das coisas, uma<br />
vez que as ciências deveriam visar os fins proveitosos destinados a mitigar o<br />
sofrimento. De igual modo, com base nesse mesmo mandato, os novos filósofos<br />
tiveram a liberdade de associar a filosofia de Bacon com a visão bíblica da<br />
Queda, o que, tudo indica, contribuiu para que o conhecimento experimental<br />
abrisse as portas para uma ciência frutífera. 106<br />
Ademais, não perece ser coerente conceber como irrelevantes os esforços<br />
do grupo de Hartlib sob a consideração pragmática de que seus intentos não<br />
prosperaram a partir do período da Restauração. Nesse caso, talvez seja válido<br />
considerar o quinhão outorgado pelo círculo de Hartlib no enfrentamento do<br />
aristotelismo e do escolasticismo, ainda bastante presentes na educação e na<br />
ciência em meados do século 17. Pois, neste aspecto, parece crível a contribuição<br />
que deram para introduzir, na Inglaterra, a aplicabilidade da ciência, tendo<br />
em vista que insistiram em viabilizar o experimento e a técnica no ambiente<br />
acadêmico.<br />
Igualmente, afigura-se pertinente considerar os esforços que a geração<br />
de 1640 canalizou para alavancar a filosofia baconiana, para promover a reforma<br />
na educação e nas ciências, para impulsionar uma ciência frutífera, para<br />
difundir o conhecimento, etc. Nesse sentido, parece oportuno conceber que<br />
os hartlibianos outorgaram um legado articulado de seus trabalhos universais,<br />
ou seja, delinearam uma amostra de propostas envolvendo a organização do<br />
conhecimento, a distribuição de laborações e ações, a conexão e divulgação<br />
das produções técnicas e da ciência, etc.<br />
E ainda talvez seja justo avaliar que os trabalhos e diligências empreendidos<br />
ajudaram a proporcionar parte do condicionamento inicial de uma<br />
organização em ciência que a Inglaterra não tinha antes de 1640 e a que, pela<br />
atividade que desempenharam, a geração de 1660 pôde dar prossecução.<br />
Por fim, não é difícil alguém perguntar se a eclosão da nova ciência<br />
poderia ter acontecido sem o engajamento dos hartlibianos ou até mesmo do<br />
protestantismo, tendo em vista a modernidade sustentar o divórcio entre fé<br />
cristã e ciência. É provável que, sob o ponto de vista lógico, alguém se interesse<br />
em responder. Todavia, para a História, não faz muito sentido empenhar-se em<br />
reconstituir uma história diferente da que aconteceu.<br />
106 Nesse sentido, vale lembrar também que a união da ideia baconiana acerca do poder material da<br />
natureza com a visão protestante de regeneração espiritual, intelectual e social colaborou com a afinidade<br />
entre o protestantismo e a ciência.<br />
101
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...<br />
ABSTRACT<br />
Among other reformers, Hartlib’s group, attracted by the principles of the<br />
Protestant Reformation, was among those who wished for a complete reform<br />
in seventeenth-century England. Its members were convinced that Protestant<br />
spiritual and intellectual renewal would provide the basis for a new cultural and<br />
social vision. They believed that the reformulation of the prevailing educational<br />
and philosophical model would leverage English general reform, that is, the<br />
complete reform of religion, culture, politics, economics, and other social demands.<br />
The hartlibians stood out among those who hoped that England should<br />
occupy the world center of the dissemination of knowledge, as well as bring<br />
together the Protestant leadership of Europe. During their Puritan effervescence,<br />
its members and supporters intended to foster an environment and occasion<br />
favorable to the intellectual and technical innovations that could advance social<br />
achievements from medicine to mining to agriculture in England. It appears<br />
that the work undertaken between 1640 and 1660 provided part of the initial<br />
arrangement of a systematization in science which England and the world did<br />
not know before the 1640s, and which, by their activity, the Royal Society of<br />
London was able to undertake after 1662.<br />
KEYWORDS<br />
England; Reform; Protestantism; Hartlibians; Education; Science.<br />
102
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118<br />
The Meaning of Mυστήρια in 1 Corinthians 14:2<br />
João Paulo Thomaz de Aquino *<br />
ABSTRACT<br />
Mystery (μυστήριον) is a quasi-technical, very important theme in the<br />
New Testament. This article aims to shed some light on the meaning of this<br />
concept in 1Co 14:2. The author defines mystery as “a part of the wise and<br />
sovereign plan of God about the eschaton, which is partially present in the<br />
Old Testament but still hidden, being revealed according to the will of God<br />
only through special revelation.” After presenting four dissonant interpretations<br />
on the subject, the author contends for the concept above in 1 Co 14:2.<br />
The novelty in the article is the concept of mystery as being revealed through<br />
tongues, while at the same time its content remains veiled when the discourse<br />
is not interpreted.<br />
KEYWORDS<br />
1 Corinthians 12-14; Mystery; Gift of tongues.<br />
INTRODUCTION<br />
Benjamin Gladd, in his doctoral dissertation on μυστήριον in 1 Corinthians,<br />
says that “any scholar who has attempted a systematic treatment of the Pauline<br />
μυστήριον stumbles at 1 Cor 13:2 and then really begins to falter around 14:2.” 1<br />
Raymond Brown called 1 Cor 14:2 “a very difficult passage”, but also says<br />
that it is “not very important for the Pauline mysterion”. 2 G. K. Barker, after<br />
* Ph.D. candidate in Theological Studies, with concentration in New Testament, at Trinity Evangelical<br />
Divinity School, Deerfield, Illinois. This article was initially submitted as an academic paper in<br />
October 2015.<br />
1 Benjamin L. Gladd, Revealing the Mysterion: The Use of Mystery in Daniel and Second Temple<br />
Judaism with Its Bearing on First Corinthians (Berlin: Walter de Gruyter, 2009), 191.<br />
2 Raymond E. Brown, The Semitic Background of the Term “Mystery” in the New Testament<br />
(Philadelphia: Fortress Press, 1968), 47. Also quoted in Gladd, Revealing the Mysterion, 191.<br />
103
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2<br />
commenting other occurrences 1 Cor, says that “it is even more difficult to determine<br />
the force of mystery in 14:2.” 3 The meaning of μυστήρια in 1 Cor 14:2<br />
is laconic, indeed. Mystery appears in the plural, it is not defined, and relates<br />
to a phenomenon that is a colossal matter of dispute itself, the gift of tongues.<br />
The fact that the sense of mystery is elusive did not prevent scholars<br />
from proposing variegated meanings for mystery in 1 Cor 14:2. A. E. Harvey,<br />
for example, defends that mysterion in the New Testament is used sometimes<br />
with the Semitic background of raz/sôd and in other instances with influence<br />
of the Greek concept linked to the religions of mystery. The Semitic mystery,<br />
in Harvey’s conception has the idea of a mystery destined to be revealed, while<br />
the Greek conception involves something never to be spoken about or showed,<br />
but to initiates. 4 Among the Semitic uses in the NT, Harvey lists Rom 16:25;<br />
1 Cor 2:1-10; 15:51; Eph 1:9; 3:3, 4, 9; 6:19; Col 1:26; Thess 2:7, and the<br />
instances in Revelation (1:20; 17:5, 7). Among the NT uses of mystery with<br />
at least a little influence (“some echo”) of the Greek notion Harvey presents<br />
the use in the gospels (Matt 13:2; Mark 4:11; Luke 8:10); 1 Cor 4:1; 14:2; Eph<br />
5:32, and 1 Tim 3:9, 10.<br />
About 1 Cor 14, after considering that the Corinthian “hearers and readers<br />
may have been particularly well placed to pick up allusions to pagan institutions,”<br />
Harvey affirms that there are Greek overtones in this instance because<br />
the mysteries referred in the text are spoken in tongues, making impossible the<br />
public understanding. 5 G. W. Barker seems to agree with Harvey since he<br />
affirms that 1 Corinthians 14:2, together with 4:1 and 13:2 presents a polemical<br />
use, “against certain developments within the Christian assembly.” 6<br />
Another position is that Paul is using a non-technical aspect of mystery.<br />
Thiselton, for example, says: “Elsewhere Paul often uses this Greek word to<br />
denote what was once hidden but has now been disclosed in the era of eschatological<br />
fulfillment (cf. 2:1, 7; 4:1; 15:51). However, every writer uses termi-<br />
3 G. W. Barker, “Mystery,” in Bromiley, G. W. The International Standard Bible Encyclopedia<br />
(Grand Rapids: Eerdmans, 1979), 453.<br />
4 A. E. Harvey, “The Use of Mystery Language in the Bible,” JTS (1980) 31, 330. In another<br />
page Harvey defines the Semitic concept as “a secret design, known only to God, which is due to be<br />
revealed to certain privileged individuals” (329).<br />
5 Harvey proposes the following translation for 1 Cor 14:2: “he speaks only to God, for no one<br />
(else) hears (understands), even though in the spirit he is divulging mysteries!” Harvey, “The use of<br />
mystery,” 332.<br />
6 G. W. Barker, “Mystery,” in G. W. Bromiley, The International Standard Bible Encyclopedia<br />
(Grand Rapids: Eerdmans, 1979), 453. Barker contends that the New Testamental use of mystery is a<br />
kind of development of the Hellenistic usage. He defines mysterion in the NT as “the secret thoughts,<br />
plans, and dispensations of God, which, though hidden from human reason, are being disclosed by<br />
God’s revealing act to those for whom such knowledge is intended.” He also emphasizes that, although<br />
revealed, mystery keeps being a mystery because of its dependence on God’s act of disclosing it. (452)<br />
104
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118<br />
nology in context-dependent ways that may modify a more usual meaning, and<br />
Paul’s usual meaning cannot make sense here without undermining his own<br />
argument.” 7 Thus, he agrees with Blomberg that mysteries in 1 Cor 14:2 simply<br />
refer to something that “no one understands.” 8 Fee also agrees and presents<br />
the argument that mysteries in the common sense “would scarcely need to be<br />
spoken back to God”. 9 Ciampa aligns himself with this understanding making<br />
clear that mysteries in 1 Cor 14 are the result of revelation, but the person who<br />
speaks them does not understand:<br />
In marked contrast, those who speak in tongues are not given any special<br />
understanding of mysteries (at least not as part of that particular gift), but the<br />
ability to speak them to God... In fact, not only are they expressing content,<br />
but it is Spirit-inspired content of the type that a prophet could only dream of<br />
comprehending! 10<br />
Finally, a very specific interpretation is defended by Gladd who says that<br />
1 Cor 14:2 “probably refers to an individual participating in angelic worship,<br />
similar to the situation at Qumran in the songs of sabbath sacrifice”. 11 Bockmuehl<br />
defends this same interpretation. 12<br />
There are, therefore, different ways to understand mysteries 1 Corinthians<br />
14:2: (1) a Greek conception of mysteries as secrets related to pagan religions;<br />
(2) the non-technical use of mystery referring to something not understandable;<br />
7 Anthony C. Thiselton, The First Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text<br />
(Grand Rapids, Eerdmans, 2000), 1085.<br />
8 Craig Blomberg, 1 Corinthians (Grand Rapids: Zondervan, 1994), 236. See also C. K. Barrett,<br />
A Commentary on the First Epistle to the Corinthians (New York: Harper & Row, 1968), 100; Ben<br />
Witherington III, Conflict and Community in Corinth: A Socio-Rhetorical Commentary on 1 and 2<br />
Corinthians (Grand Rapids: Eerdmans, 1995), 281. D. A. Carson, Showing the Spirit: A Theological<br />
Exposition of 1 Corinthians 12-14 (Grand Rapids: Baker, 1987), 101-102.<br />
9 Gordon D. Fee, The First Epistle to the Corinthians (Grand Rapids: Eerdmans, 1987), 656.<br />
Calderón also agrees with this interpretation: “Sin embargo, en armonía com el uso mas general del<br />
término por Pablo, quizá deba entenderse como verdades o realidades profundas que la persona solo<br />
comparte com Diós y que otros, incluso cristianos, no entienden.” Carlos Calderón, “Comentário Exegético<br />
a 1 Coríntios 14 (Primera de dos partes),” Kairós 43 (2008), 47.<br />
10 Roy E. Ciampa and Brian S. Rosner, The First Letter to the Corinthians (Grand Rapids: Eerdmans,<br />
2010), 671.<br />
11 Gladd, Revealing the Mysterion, 2009, 265.<br />
12 “But if Paul in 1 Cor 14:2 refers to the charismatic worshipper conversant in ‘tongues of angels’<br />
(13:2) as one who ‘speaks mysteries’ to God in his spirit, it seems a reasonable working hypothesis to<br />
locate such notions – at least in Paul’s mind – in the realm of Jewish apocalyptic and early mysticism<br />
(cf. on 2 Cor 12:1ff. bellow). The apostle is asking those who gaze upon the heavenly mysteries<br />
to respect the edification of the church and to limit their use of this gift in corporate worship to those<br />
instances when the meaning can be intelligibly communicated (and thus fully revealed) to all congregation.”<br />
Markus N. A. Bockmuehl, Revelation and Mystery in Ancient Judaism and Pauline Christianity<br />
(Grand Rapids: Eerdmans, 1997), 170.<br />
105
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2<br />
(3) mysteries as things hidden but now revealed just to the one who speaks;<br />
and (4) mysteries as the content of the angelic worship.<br />
Thus, in what follows, I aim to clarify the use of mystery in 1 Cor 14:2 in<br />
the following steps: (1) I will investigate the Pauline use of the term mystery<br />
in all its occurrences; (2) and analyze 1 Cor 14:1-5 with special reference to<br />
the relation between mystery and the phenomenon of speaking in tongues. Because<br />
of restraints of space I will proceed with this analysis in an introductory<br />
manner and keep my focus solely on Paul.<br />
1. MYSTERY IN PAUL<br />
The first occurrence of mystery in the Pauline letters in canonical order<br />
is in Romans 11:25: “Lest you be wise in your own sight, I do not want you<br />
to be unaware of this mystery, brothers: a partial hardening has come upon<br />
Israel, until the fullness of the Gentiles has come in”. 13 Beale and Gladd affirm<br />
that the mystery here is the reversion of the expectation that Gentiles would<br />
come to the Lord through the Jews. 14 This position is exaggeratedly narrow.<br />
There are more hidden things than the order of salvation in Romans 11. I agree<br />
with Schreiner that “the partial hardening and future salvation of Israel are<br />
part of the content of the mystery that has previously been hidden but is now<br />
revealed” (italics mine). 15<br />
Rom 11:25 opens a concluding paragraph to the section that started in<br />
chapter 9. Paul deals with the hardening of the Jews, God’s anger, rejection,<br />
and sovereignty, the salvation of the Gentiles through Christ because of the<br />
hardening of the Jews, and finally the salvation of the Jews through Christ<br />
because of the jealousy of the Gentiles. Paul presents all as God’s intended<br />
and hidden-for-long-time plan, i.e., the mystery of Rom 11:25. 16<br />
In Rom 16:25-26 Paul again uses the mystery in a concluding statement<br />
and a very compact one. The revelation of the mystery is used as a measure<br />
in which God will strengthen the Romans. Firstly, mystery is equalized in a<br />
13 All biblical quotations are from the English Standard Version (ESV), unless informed otherwise.<br />
14 G. K. Beale and Benjamin L. Gladd, Hidden but Now Revealed: A Biblical Theology of Mystery<br />
(Downers Grove: IVP Academic, 2014), 88.<br />
15 Thomas R. Schreiner, Romans (Grand Rapids: Baker, 1998), 821.<br />
16 Santos sums it up by saying: “In this passage, the mystery is that: a) Israel has experienced a<br />
hardening in part until the full number of Gentiles has come in, and b) all Israel (i.e. the remnant and<br />
the Gentiles) will be saved.” Daniel Santos, “The Meaning of Mystery in Romans 11:25,” <strong>Fides</strong><br />
Reformata 17 (2012): 45-59. I think Santos is right in his reading of the text, but in the interpretation of<br />
“all Israel” as referring to the church. With Murray I think it refers to ethnic Israel: “Both elements are<br />
clearly expressed: the hardening of Israel is partial not total, temporary not final, ‘in part’ indicating the<br />
former, ‘untill the fullness of the Gentiles be come in’ the latter. The restoration of Israel was implied<br />
in verse 24 but not categorically stated. Now we have express assurance. The word ‘mystery’ is itself<br />
certification of the assurance which divine revelation imparts”. John Murray, Romans (Grand Rapids:<br />
Eerdmans, 1997), 92-93.<br />
106
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118<br />
parallelistic way with “my gospel and the preaching of Jesus Christ.” Secondly,<br />
it is said that it was kept secret for long ages. Thirdly, it has been disclosed,<br />
and fourthly is has been made known to all nations. 17<br />
In Romans, then, mystery is a summarized way to speak about God’s<br />
sovereign plan in the history of salvation as it has its fulfillment in Jesus<br />
Christ, its centripetal center. This plan is both revealed and concealed in the<br />
Old Testament and is exposed by God through Paul. It can refer specifically<br />
to God’s plan of hardening the Jews, followed by the salvation of Gentiles,<br />
followed by the salvation of the Jews or more broadly to the gospel that Paul<br />
preaches (the great subject of Romans).<br />
There are five occurrences of mystery in 1 Corinthians (2:7; 4:1; 13:2;<br />
14:2, and 15:51) and one which is text-critically disputed (2:1). 18 My literal<br />
translation for 1 Cor 2.1-2 is “And even I, when I went to you, brothers, I went<br />
not according to superiority of word or of wisdom, proclaiming to you the<br />
mystery of God. For I judged not to know anything among you, except Jesus<br />
Christ and this one crucified”. 19 Here, Paul qualifies the mystery as being “of<br />
God,” opposes it to “superiority of word or of [human] wisdom” and, then,<br />
explains it in verse two as Jesus crucified.<br />
The next occurrence happens in 1 Cor 2:7. The main concept of 2 Cor<br />
2:6-10 is not mystery, but wisdom. 20 Paul opposes the concept of wisdom<br />
of his age with “θεοῦ σοφίαν ἐν μυστηρίῳ τὴν ἀποκεκρυμμένην.” The ESV<br />
translates it as “hidden wisdom of God in a secret” and the NIV as “God’s<br />
wisdom, a mystery”. 21 Gladd favors the interpretation “wisdom of God, hidden<br />
in a mystery” (NET). <strong>22</strong> Bockmuehl understands this occurrence in the light of<br />
Qumran as referring to “God’s eschatological design for the salvation of His<br />
people.” 23 He also says that this mystery is related to salvation through the<br />
17 See Grant R. Osborne, Romans (Downers Grove: InterVarsity Press, 2010), 417.<br />
18 We will consider 1 Cor 2:1 as having a reference to mystery based in the defense present in<br />
Gladd, Revealing the Mysterion, 123-126. See also Raymond F. Collins and Daniel J. Harrington, First<br />
Corinthians (Collegeville: Liturgical Press, 1999), 118.<br />
19 My literal translation of GNT, 4 th ed.: Κἀγὼ ἐλθὼν πρὸς ὑμᾶς, ἀδελφοί, ἦλθον οὐ καθʼ ὑπεροχὴν<br />
λόγου ἢ σοφίας καταγγέλλων ὑμῖν τὸ μυστήριον τοῦ θεοῦ. οὐ γὰρ ἔκρινά τι εἰδέναι ἐν ὑμῖν εἰ μὴ Ἰησοῦν<br />
Χριστὸν καὶ τοῦτον ἐσταυρωμένον.<br />
20 15 occurrences in 1:17—2:13.<br />
21 See commentaries on the text and translations in Anthony C. Thiselton, The First Epistle to the<br />
Corinthians: A Commentary on the Greek Text (Grand Rapids: Eerdmans, 2000), 241ss.<br />
<strong>22</strong> Gladd, Revealing the Mysterion, 123-133. “The mystery is the exalted, kingly Messiah affixed<br />
to the cross” (156). Carson also defends that “ἐν μυστηρίῳ” is qualifying “σοφίαν” instead of “τὴν<br />
ἀποκεκρυμμένην”. D. A. Carson, “Mystery and Fulfillment: Toward a More Comprehensive Paradigm<br />
of Paul’s Understanding of the Old and the New”. In D. A. Carson, Peter Thomas O’Brien, and Mark<br />
A. Seifrid. Justification and Variegated Nomism. Vol. 2 (Tübigen: Mohr Siebeck, 2001), 417.<br />
23 Bockmuehl, Revelation and Mystery, 161.<br />
107
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2<br />
cross still to be completed. 24 Mystery, I think, is the way in which the wisdom<br />
of God is hidden. This wisdom in mystery was foreordained before the ages,<br />
was related to Christ as Savior, and was revealed by the Spirit. What is mystery,<br />
then, in Corinthians 2? I agree with Gladd that in this chapter mystery is<br />
a specific reference to the crucifixion of the king Jesus. 25<br />
Many commentators see the meaning of mystery in the next occurrence,<br />
1 Cor 4:1, in which Paul presents himself as οἰκονόμους μυστηρίων θεοῦ,<br />
as referring to the gospel revealed in Jesus Christ. 26 But these judgements<br />
are based more on the content of mystery in 1 Corinthians 2 than on the text<br />
itself. That is the problem with the occurrences of mystery in 1 Cor 4:1; 13:2<br />
and 14:2. They are the only Pauline occurrences in the plural and they do not<br />
have much in the context to explain their content. In the next section we will<br />
deal with these instances.<br />
First Corinthians 15:51-52 is another instance which has a clear definition<br />
of a specific mystery. “Behold! I tell you a mystery. We shall not all sleep, but we<br />
shall all be changed, in a moment, in the twinkling of an eye, at the last trumpet.<br />
For the trumpet will sound, and the dead will be raised imperishable, and we<br />
shall be changed.” Garland says correctly that in this text “the mystery is not<br />
that the living and the dead will be on a pair with one another at the parousia,<br />
but that both the living and the dead will undergo the prerequisite transformation<br />
so that they can attain incorruptibility and immortality.” 27 Gladd presents<br />
as an error the proposal that just the transformation of the living without the<br />
dead is the mystery referred by Paul. 28<br />
Mystery appears six times in Ephesians. O’Brien defends the first (1:9)<br />
as being the most important. 29 In this text Paul defines the revelation of the<br />
mystery as the way in which God lavished upon the Ephesians the riches of<br />
his grace “in all wisdom and insight”. This mystery made known according<br />
to the purpose set forth in Christ was a plan for the fullness of time. This plan<br />
and will was the unification of all things in heaven and earth in Christ. 30<br />
24 Ibid., 165-166.<br />
25 Gladd, Revealing the Mysterion, 123-153.<br />
26 C. K. Barrett, A Commentary on the First Epistle to the Corinthians (New York: Harper & Row,<br />
1968), 100; Richard L. Pratt and Max E. Anders, I & II Corinthians (Nashville: Broadman & Holman,<br />
2000), 60; Roy E. Ciampa and Brian S. Rosner, The First Letter to the Corinthians (Grand Rapids:<br />
Eerdmans, 2010), 170; Craig Blomberg, 1 Corinthians (Grand Rapids: Zondervan, 1994), 29.<br />
27 Garland, 1 Corinthians, 743.<br />
28 Gladd, Revealing the Mysterion, 249-254.<br />
29 Peter Thomas O’Brien, The Letter to the Ephesians (Grand Rapids: Eerdmans, 1999), 110.<br />
30 “The mystery which God has graciously made known refers to the summing up and bringing<br />
together of the fragmented and alienated elements of the universe (‘all things’) in Christ as the focal<br />
point.” O’Brien, Ephesians, 112. In this same tone, Hoehner comments: “In summary, believers have<br />
experienced the abundance of God’s grace in the redemption of Chirst and in provision of all insight<br />
108
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118<br />
Ephesians 3 presents one of the clearest texts about the mystery in Paul.<br />
The revelation of the mystery is equalized with the stewardship of God’s<br />
grace. The way Paul gained knowledge of the mystery was through revelation<br />
and because of that Paul has insight into the mystery of Christ (Christ as content).<br />
This mystery was kept hidden from the prior generations, “but now” was<br />
revealed to the apostles and prophets through the Holy Spirit. Finally, in verse<br />
6 Paul explicits what is the mystery: “the Gentiles are fellow heirs, members<br />
of the same body, and partakers of the promise in Christ Jesus through the<br />
gospel”. Note that considering what Paul said about the mystery in Eph 1:9,<br />
this definition is only part of the whole mystery.<br />
Hoehner, after presenting an encyclopedia-like explanation of the term,<br />
says that “in Ephesians the mystery is that believing Jews and Gentiles now are<br />
one in the body of Christ”. He contends the use in 5:32 is different from other<br />
instances in the letter. 31 Beale and Gladd affirm that the mystery in Eph 5:32<br />
is that the union of the first couple in marriage typologically represents Christ<br />
and the church. 32 This is too narrow. Although this idea is part of the mystery,<br />
mystery in Eph 5:32 points to the fact that all marital union is made to reflect<br />
Christ and the church and only in doing that it finds real unity. In sum, in line<br />
with Eph 1.9, Christ is the one who sums up man and woman in marriage.<br />
The last instance of mystery in Ephesians is in 6:19-20: “and [pray]<br />
also for me, that words may be given to me in opening my mouth boldly to<br />
proclaim the mystery of the gospel, for which I am an ambassador in chains,<br />
that I may declare it boldly, as I ought to speak.” After defining mystery in<br />
3:6, Paul says: “Of this gospel I was made a minister”. Although he does not<br />
use the term gospel in chapter one, he uses mystery in the context of defining<br />
redemption (1:7). Therefore, mystery of the gospel here refers to the same<br />
concept of chapter 3.<br />
Mystery is a broad concept in Ephesians which speaks a about the unification<br />
of everything in and with Christ in the fullness of time: heavenly and<br />
earthly things, Jews and Gentiles, husband and wife, and Christ and the church.<br />
The mystery is well explained by Thielmann who affirms that in the due time<br />
“Christ will emerge as the organizing principle of all creation”. 33<br />
and wisdom. This wisdom and insight have made known to them the secret plan of God, namely, that at<br />
the fullness of time God will unite in his dear Son Christ all the things in heaven and on earth.” Harold<br />
W. Hoehner, Ephesians: An Exegetical Commentary (Grand Rapids: Baker Academic, 2002), <strong>22</strong>5.<br />
31 Hoehner, Ephesians, 432-433.<br />
32 Beale and Gladd, Hidden but Now Revealed, 181.<br />
33 Frank Thielman, Ephesians (Grand Rapids: Baker Academic, 2010), 67. Beale and Gladd put<br />
it nicely also: “The main focus of the revelation of the mystery is that Christ is the point of reintegration<br />
and restaurantion of the original cosmic unity and harmony that had been lost at the fall of humanity, a<br />
fragmentation that had affected not only earthly but also the heavenly realm.” Beale and Gladd, Hidden<br />
but Now Revealed, 150.<br />
109
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2<br />
There is a double occurrence of mystery in Colossians 1. In the context<br />
Paul is again speaking about his ministry (stewardship from God that was given<br />
to me). Mystery in Col 1:26 is an explanation for the “complete understanding<br />
of the word of God” in the prior verse. 34 This mystery was “hidden for ages<br />
and generations but now is revealed to his saints”. In Col 1:27 Paul defines<br />
mystery: “Christ in you, the hope of glory.” Dunn incurs in illegitimate totality<br />
transfer when he affirms that in this text “the mystery of how the cosmos was<br />
created and holds together is personalized: ‘Christ in (each of) you’.” 35 As the<br />
context makes clear, Paul is highlighting the Gentiles as the ones to whom<br />
Christ became the hope of glory. Thus, mystery here is the salvation of the<br />
Gentiles through union with Christ. 36<br />
In Col 2:2-3, Christ is the mystery: “to reach all the riches of full assurance<br />
of understanding and the knowledge of God’s mystery, which is Christ, in<br />
whom are hidden all the treasures of wisdom and knowledge.” Witherington<br />
III is partially right in his assessment: “So, the secret is less a set of ideas than<br />
a person and what God has done, is doing and will do through that person,<br />
Jesus Christ.” 37 The secret is both.<br />
Similar to the last occurrence in Ephesians, Paul asks the Colossians<br />
(4.3-4) to pray that God open a door for the word, which would be an opportunity<br />
to declare the mystery of Christ. There is here, again, an intimate relationship<br />
between the mystery, the word of God, and Paul’s ministry.<br />
Hence, in Colossians the mystery is the full comprehension of the Word<br />
of God that was hidden but is now revealed to the saints, being both a concept<br />
that Paul wants to preach and an existential relationship with Christ, the hope,<br />
and the personified mystery. 38<br />
There is only one instance of mystery in 2 Thess (2:7): “For the mystery<br />
of lawlessness is already at work. Only he who now restrains it will do so<br />
until he is out of the way.” Paul’s focus is still the end of time, but now he<br />
34 Not just for the word of God. Contra Margaret Y. MacDonald and Daniel J. Harrington,<br />
Colossians and Ephesians (Collegeville: Liturgical Press, 2000), 80, and Douglas J. Moo, The Letters<br />
to the Colossians and to Philemon (Grand Rapids: Eerdmans, 2008), 155.<br />
35 James D. G. Dunn, The Epistles to the Colossians and to Philemon: A Commentary on the Greek<br />
Text (Grand Rapids: Eerdmans, 1996), 1<strong>22</strong>.<br />
36 Bockmuehl prefers the translation “Christ among you” instead of “Christ in you”. He sees two<br />
levels of identification of mystery in Collosians 1–2: (a) the word of God, meaning the gospel and its<br />
proclamation, and (b) the salvation of the Gentiles. Markus N. A. Bockmuehl, Revelation and Mystery<br />
in Ancient Judaism and Pauline Christianity (Grand Rapids: Eerdmans, 1997), 185-186.<br />
37 Ben Witherington III, The Letters to Philemon, the Colossians, and the Ephesians: A Socio-<br />
Rhetorical Commentary on the Captivity Epistles (Grand Rapids: Eerdmans, 2007), 147.<br />
38 “Full knowledge of ‘the mystery of God’ i.e., the sum of God’s salvific purposes, is equivalent<br />
to full knowledge of Christ who resides in heaven and with whom the believer’s future life of glory is<br />
already stored up.” Bockmuehl, Revelation and Mystery, 193.<br />
110
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118<br />
presents a negative aspect of it. 39 Again, the explanation of Beale and Gladd<br />
is more narrow than it should be: “the revealed mystery is that the prophecy of<br />
Daniel is beginning unexpectedly because the latter day foe has not yet come<br />
in bodily form, yet he is already inspiring his ‘lawless’ works of deception and<br />
persecution.” 40 Green, on another hand, completely misses the point when he<br />
says that mystery is related with “secret and sacred rites of various religions<br />
of that era, and it is likely that Paul had some such cult in mind”. 41 Weima<br />
interprets the text as “the mystery which is lawlessness” and adheres to the<br />
interpretation of mystery as something that was secret but it is now revealed. He<br />
stresses that even revealed, it is still hidden in his operation and not completely<br />
possible of understanding, even for those who have access to the revelation. 42<br />
There are two instances of mystery in 1 Timothy, both in chapter 3. The<br />
first (1 Tim 3.9) is a laconic one affirming that the deacons are supposed to<br />
“hold the mystery of the faith with a clear conscience.” The second is in 1 Tim<br />
3.16 and is called “μέγα… εὐσεβείας μυστήριον”, which should be confessed.<br />
The creedal statement that follows is the definition of this mystery of godliness:<br />
“He was manifested in the flesh, vindicated by the Spirit, seen by angels,<br />
proclaimed among the nations, believed in the world, taken up in glory.” Beale<br />
and Gladd point that exist two parts in the mystery as presented in 1 Timothy.<br />
First, “that Christ functions as God and is now the object of personal faith and<br />
trust.” 43 The second part of the mystery is that “Christ’s resurrected existence<br />
would not assume the body of old earthly existence, but would be fashioned<br />
after a new body far more glorious.” 44 This conception, although bringing important<br />
insights to aspects of the mystery in 1 Timothy, is not exactly how Paul<br />
uses the term. Tower is nearer of the Pauline use when he defines: “Here the<br />
term mystery describes the apostolic faith in Pauline terms as the revelation of<br />
salvation in Christ as proclaimed in his gospel.” 45 Broader still is the definition<br />
of Knight III: “the revealed truth of the Christian faith”. 46 About the second<br />
reference to mystery he says that it means “the revelation of Jesus Christ in<br />
which Christian existence has its origin.” 47<br />
39 Beale and Gladd, Hidden but Now Revealed, 215.<br />
40 Ibid.<br />
41 Gene L. Green, The Letters to the Thessalonians (Grand Rapids: Eerdmans, 2002), 317.<br />
42 Jeffrey A. D. Weima, 1-2 Thessalonians (Grand Rapids: Baker, 2014), Kindle edition, 13041.<br />
Weima quotes Witherington III on this. Ben Witherington III, 1 and 2 Thessalonians: A Socio-Rhetorical<br />
Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 2006), <strong>22</strong>2.<br />
43 Beale and Gladd, Hidden but Now Revealed, 249. Italics original.<br />
44 Ibid., 255.<br />
45 Philip H. Towner, The Letters to Timothy and Titus (Grand Rapids, Eerdmans, 2006), 264.<br />
46 George W. Knight, The Pastoral Epistles: A Commentary on the Greek Text (Grand Rapids:<br />
Eerdmans, 1992), 169.<br />
47 Towner, The Letters to Timothy and Titus, 277.<br />
111
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2<br />
What is the result of this introductory analysis?<br />
Mystery receives a few complements in Paul, being defined as “τὸ<br />
μυστήριον τοῦ θεοῦ” (1Cor 2:1), “μυστηρίων θεοῦ” (1 Cor 4:1), “τὸ μυστήριον<br />
τοῦ θελήματος αὐτοῦ” (Eph 1:9), “τῷ μυστηρίῳ τοῦ Χριστοῦ” (Eph 3:4),<br />
“μέγα” (Eph 5:32), “μυστήριον τοῦ εὐαγγελίου” (Eph 6:19), “τοῦ μυστηρίου<br />
τοῦ θεοῦ” (Col 2:2), “τὸ μυστήριον τοῦ Χριστοῦ” (Col 4:3), “μυστήριον…<br />
τῆς ἀνομίας” (2 Thess 2:7), “τὸ μυστήριον τῆς πίστεως” (1 Tim 3:9) and “μέγα<br />
ἐστὶν τὸ τῆς εὐσεβείας μυστήριον” (1 Tim 3:16).<br />
Besides that, that are times in which Paul clearly presents the content of<br />
the mystery. In Rom 11:25 the mystery is that “a partial hardening has come upon<br />
Israel, until the fullness of the Gentiles has come in”. In 1 Cor 15:51-52, “We<br />
shall not all sleep, but we shall all be changed, in a moment, in the twinkling<br />
of an eye, at the last trumpet. For the trumpet will sound, and the dead will be<br />
raised imperishable, and we shall be changed.” In Eph 1.9-10 the mystery is<br />
defined as “to unite all things in him, things in heaven and things on earth”,<br />
in Eph 3:6 as “the Gentiles are fellow heirs, members of the same body, and<br />
partakers of the promise in Christ Jesus through the gospel” and in 5:32 as<br />
“Χριστὸν καὶ εἰς τὴν ἐκκλησίαν”. In Col the mystery is defined as “Christ in<br />
you, the hope of glory” (Col 1:27) and in 2:2 just as “Christ”. The last direct<br />
definition we have of the mystery in Paul is in 1 Tim 3:16: “He was manifested<br />
in the flesh, vindicated by the Spirit, seen by angels, proclaimed among the<br />
nations, believed on in the world, taken up in glory.” These definitions should<br />
prevent us from defining mystery as only the hidden part of the revealed knowledge,<br />
as does Beale and Gladd, although the exercise is valid.<br />
Carson presents the characteristics of mystery in Paul as being related<br />
to revelation, hidden in the Torah, dealing with theodicy, focusing “primarily<br />
on the justification of God in the gospel of a crucified Messiah (1 Cor 2:6-10;<br />
cf. 2 Cor 4:3-18), but also in revelation concerning the divine reasoning behind<br />
the hard-heartedness of Israel (Rom 9–11),” and with an eschatological dimension.<br />
48<br />
Mystery is a technical term in Paul. The standard definition of mystery as<br />
hidden but now revealed is not precise. Since the context speaks many times<br />
about the revelation of the mystery, this means that for Paul the revelation is<br />
not part of the concept of mystery, but what God can make to make the knowledge<br />
of the mystery available to his saints. Without revelation the mystery<br />
is wrapped in hiddenness and ignorance. 49 Even present in the Old Testament<br />
48 Cason, “Mystery and Fulfillment”, 414-415.<br />
49 The terms used by Paul to speak about revelation of the mystery are: ἀποκάλυψις (Rom 16:25;<br />
Eph 3:3), φανερόω (Rom 16:25; Col 1:26; Col 4:4), and γνωρίζω (Rom 16:25; Eph 1:9; 3:3; Col 1:27),<br />
γινώσκω (1 Cor 2:8), ἀποκαλύπτω (1 Cor 2:10; Eph 3:5; 2 Thess 2:6, 8), λέγω (1 Cor 15:51; Col 4:3-4),<br />
φωτίζω (Eph 3:9). The expression Paul uses in Colossians is worthy noticing as the result of the revela-<br />
112
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118<br />
and revealed in the New Testament, the mystery still carries the idea of continuous<br />
hiddenness. 50 The mystery is part of the eschatological plan of God. 51<br />
The work of Christ is the center of the mystery. 52 The Spirit is the main person<br />
responsible for its revelation. 53 The mystery is connected with the wisdom of<br />
tion of the mystery: “εἰς πᾶν πλοῦτος τῆς πληροφορίας τῆς συνέσεως, εἰς ἐπίγνωσιν τοῦ μυστηρίου τοῦ<br />
θεοῦ”. In Rom 16:25 the target of this revelation are “πάντα τὰ ἔθνη”. The recipients of this revelation<br />
in Ephesians 3:5 are “τοῖς ἁγίοις ἀποστόλοις αὐτοῦ καὶ προφήταις ἐν πνεύματι” and in Eph 3:10-11 the<br />
church is the medium through which the wisdom of God is publicized “ταῖς ἀρχαῖς καὶ ταῖς ἐξουσίαις<br />
ἐν τοῖς ἐπουρανίοις”. In Col 1:26 the mystery is revealed “τοῖς ἁγίοις αὐτοῦ”. In other ocurrences,<br />
the mystery is revealed to those brothers ans sisters. The expressions used to speak about hiddenness<br />
and ignorance are: ἀγνοέω (Rom 11:25); “χρόνοις αἰωνίοις σεσιγημένου” (Rom 16:25); ἀποκρύπτω<br />
(1 Cor 2:7; Eph 3:9; Col 1:26); “ἣν οὐδεὶς τῶν ἀρχόντων τοῦ αἰῶνος τούτου ἔγνωκεν” (1 Cor 2:8); “Ἃ<br />
ὀφθαλμὸς οὐκ εἶδεν καὶ οὖς οὐκ ἤκουσεν καὶ ἐπὶ καρδίαν ἀνθρώπου οὐκ ἀνέβη, ἃ ἡτοίμασεν ὁ θεὸς τοῖς<br />
ἀγαπῶσιν αὐτόν Ἃ ὀφθαλμὸς οὐκ εἶδεν καὶ οὖς οὐκ ἤκουσεν καὶ ἐπὶ καρδίαν ἀνθρώπου οὐκ ἀνέβη, ἃ<br />
ἡτοίμασεν ὁ θεὸς τοῖς ἀγαπῶσιν αὐτόν” (1 Cor 2:9); and “ὃ ἑτέραις γενεαῖς οὐκ ἐγνωρίσθη τοῖς υἱοῖς<br />
τῶν ἀνθρώπων” (Eph 3:5).<br />
50 Revealed in the Old Testament: in Rom 11:25-27 Paul connects the mystery to Isa 59:20-21 and<br />
Jer 31:33-34 using the formula “καθὼς γέγραπται”. In Rom 16.25-27 Paul says that now the mystery<br />
has been revealed through the “γραφῶν προφητικῶν”. In the context of 1 Cor 15.51, Paul quotes Isa<br />
25:8 and Hos 13:14 introducing it formally with “τότε γενήσεται ὁ λόγος ὁ γεγραμμένος” (cf. 1 Cor<br />
15:54-55). For a deeper view on this matter and more occurrences, see Beale and Gladd, Hidden but<br />
Now Revealed. On the aspect of the mystery as being still hidden even after revealed, Beale and Gladd<br />
comment: “The term mystery appears to possess two levels of hiddenness: ‘temporary hiddenness’ and<br />
‘permanent hiddenness.’ By ‘temporary hiddenness’ we mean the partially hidden nature of revelation<br />
that is undisclosed over a period of time that eventually gives way to a final, more complete form of<br />
revelation. ‘Permanent hiddenness,’ on the other hand, is more concerned with the ongoing hidden nature<br />
of mystery. Even when the revelation has reached its completed state of disclosure, the fuller meaning<br />
of the revelation remains elusive to some individuals.” Beale and Gladd, Hidden but Now Revealed, 60.<br />
See also Carson, “Mystery and Fulfillment,” 432.<br />
51 The aspects of the mystery related to eschatology and God’s sovereignty are commonly interconnected:<br />
Rom 11:25-27 shows this characteristic in the context, but also in the use of the expression<br />
“πλήρωμα τῶν ἐθνῶν”. Rom 16:25 uses the expression “φανερωθέντος δὲ νῦν”. 1 Cor 2:7 focuses more<br />
on the sovereignty: “ἣν προώρισεν ὁ θεὸς πρὸ τῶν αἰώνων εἰς δόξαν ἡμῶν”. Eph 1:9-10 presents both<br />
aspects: “κατὰ τὴν εὐδοκίαν αὐτοῦ ἣν προέθετο ἐν αὐτῷ εἰς οἰκονομίαν τοῦ πληρώματος τῶν καιρῶν”,<br />
3:5 uses the eschatological “ὡς νῦν ἀπεκαλύφθη” and 3:9-11 “μυστηρίου τοῦ ἀποκεκρυμμένου ἀπὸ τῶν<br />
αἰώνων ἐν τῷ θεῷ τῷ τὰ πάντα κτίσαντι… κατὰ πρόθεσιν τῶν αἰώνων ἣν ἐποίησεν ἐν τῷ Χριστῷ Ἰησοῦ<br />
τῷ κυρίῳ ἡμῶν”. In Col 3:25-26, “τὸ μυστήριον”is an appositive to “τὸν λόγον τοῦ θεοῦ” and God is<br />
the one who reveals it “νῦν δὲ”. For this reason, the mystery is called mystery of God a few times.<br />
52 It is evident that Christ is the center of the concept of mystery in the definitions and when<br />
the mystery is defined as mystery of Christ. There are other evidences also: In Rom 11:25 Christ is “ὁ<br />
ῥυόμενος”. In 2 Cor 2 the crucifixion has a special focus (1 Cor 2:2; 8). In 1 Cor 15 Christ is the one<br />
in whom believers have victory (1 Cor 15:57). Ephesians affirms that the purpose of the ages was<br />
made in Jesus Christ (Eph 3.11). In Col 2:3, after being defined as the content of the mystery, Christ is<br />
presented as the one “ἐν ᾧ εἰσιν πάντες οἱ θησαυροὶ τῆς σοφίας καὶ γνώσεως ἀπόκρυφοι”. Christ is the<br />
one who “ἀνελεῖ τῷ πνεύματι τοῦ στόματος αὐτοῦ καὶ καταργήσει τῇ ἐπιφανείᾳ τῆς παρουσίας αὐτοῦ”.<br />
53 1 Cor 2.1-10; 13–14; and Eph 3:5 make this point clear.<br />
113
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2<br />
God which he wants to share with his servants. 54 It is in this sense that Paul<br />
connects himself to the mystery of God. 55<br />
Therefore, mystery in Paul is a part of the wise and sovereign plan of<br />
God about the eschaton, which is present in part in the Old Testament but still<br />
hidden, being revealed according to the will of God only through special revelation.<br />
In the next section we will analyze how this definition can help our<br />
understanding of mysteries in 1 Cor 14:1-2 and how this text can illuminate<br />
our comprehension of mystery.<br />
2. FIRST CORINTHIANS 14:1-5 56<br />
Paul starts this pericope with an imperative that connects it with the<br />
prior chapter, in which love is presented as a καθʼ ὑπερβολὴν ὁδὸν (far excelling<br />
way, 1 Cor 12:31). 1 Corinthians 12–14 forms a section that uses the<br />
ABA structure, which is very common in 1 Corinthians. 57 This first verse<br />
of chapter 14, indeed, connects the whole section presenting “pursue the<br />
love” (chapter 13) and “eagerly desire the spiritual [gifts]” (chapter 12) as<br />
parallel ideas. 58 The μᾶλλον δὲ (but specially) introduces what Paul mainly<br />
54 In 1 Cor 2 there is a clear opposition between the “σοφίᾳ ἀνθρώπων” (1Cor 2:5) on one side and<br />
“θεοῦ σοφίαν ἐν μυστηρίῳ τὴν ἀποκεκρυμμένην” (1 Cor 2:7) and “σοφίαν δὲ οὐ τοῦ αἰῶνος τούτου,”<br />
on the other (1 Cor 2:6). In Eph 3:10 mystery appears related to “πολυποίκιλος σοφία τοῦ θεοῦ”. On<br />
the other hand, Rom 11:25-27 presents the opposite side of the wisdom of God as “ἑαυτοῖς φρόνιμοι”.<br />
55 In Rom 16:25, Paul equates mystery with “εὐαγγέλιόν μου”. In 1 Cor 4:1 he calls himself an<br />
“οἰκονόμους μυστηρίων θεοῦ”. In Eph 3:2 Paul quotes “τὴν οἰκονομίαν τῆς χάριτος τοῦ θεοῦ τῆς δοθείσης<br />
μοι εἰς ὑμᾶς, [ὅτι] κατὰ ἀποκάλυψιν ἐγνωρίσθη μοι τὸ μυστήριον”. In Eph 6:19-20 Paul presents himself<br />
as an “πρεσβεύω ἐν ἁλύσει” of “τὸ μυστήριον τοῦ εὐαγγελίου”. In Col 1:25, Paul is the “διάκονος κατὰ<br />
τὴν οἰκονομίαν τοῦ θεοῦ” and in 4:2 he asks the Colossians to pray that he can “λαλῆσαι τὸ μυστήριον<br />
τοῦ Χριστοῦ”.<br />
56 My literal translation of the text is: “1 Pursue the love, eagerly desire the spiritual [gifts], but<br />
specially in order that you might prophesy 2 for the one who speaks in tongue does not speak to men,<br />
but to God, for no one listens, but in spirit he speaks mysteries. 3 But the one who prophesies to men<br />
speaks edification, exhortation and consolation. 4 The one who speaks in tongues edifies himself, but<br />
the one who prophesies edifies the church. 5 But I want that all of you speak in tongues, but even more<br />
that you prophesy. But greater is the one who prophesies than the one who speaks in tongues unless he<br />
interprets in order that the church receives edification.”<br />
57 José Enrique Aguilar Chiu, 1 Cor 12-14: Literary Structure and Theology (Roma: Pontificio<br />
Istituto Biblico, 2007). It is also worth noting that 12.31 and 14.1 form an inclusio to chapter 13. See<br />
Gordon D. Fee. The First Epistle to the Corinthians (Grand Rapids, Mich: Eerdmans, 1987), 654. See also<br />
Camille Focant, “1 Corinthiens 13: Analyse Rhétorique et Analyse de Structures,” in R. Bieringer, The<br />
Corinthian Correspondence (Leuven: University Press, 1996), 199-245.<br />
58 Speaking about the second imperative of the text, Fee comments: “What must be emphasized<br />
is that this imperative is now to be understood singularly in light of the exhortation to love that has<br />
preceded it. If the two imperatives are not kept together, the point of the entire succeeding argument is<br />
missed.” He also defines “τὰ πνευματικά” as different from “τὰ χαρίσματα” in the sense that the last<br />
is more generic and the first applies specifically to “utterances inspired by the Spirit”. Fee, The First<br />
Epistle to the Corinthians, 654-655.<br />
114
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118<br />
wants to tackle, that the spiritual gift of prophecy should be preferred to the<br />
gift of speaking in tongues.<br />
This chapter clearly concerns the public worship and values the edification<br />
of all members. 59 In this context, the gift of prophecy should be preferred to<br />
tongues. The problem is that both these gifts have a hotly debated meaning.<br />
The Pentecostal view of prophecy is that it comprehends “spontaneous,<br />
Spirit-inspired, intelligible messages, orally delivered in the gathered assembly,<br />
intended for the edification or encouragement of the people.” 60 The Reformed<br />
position affirms that prophecy is “healthy preaching, proclamation, or teaching<br />
pastorally applied for the appropriation of gospel truth and gospel promise, in<br />
their own context of situation, to help others.” 61 There are more views in the<br />
middle positions. 62 In general I agree with Grudem’s proposal, which affirms<br />
that the New Testament prophecy was different from the Old Testament<br />
prophecy in the level of authority, being a message from God interpreted and<br />
announced by human and fallible efforts. 63 It is worth noticing that Paul starts<br />
1 Corinthians 13 speaking about tongues and prophecy and it is impossible that<br />
he is using them there in a way completely disconnected with the realities of<br />
these spiritual gifts. He is using them hyperbolically, but even in his hyperbole<br />
it is possible to learn more about these gifts. Thus, we can understand 1 Cor<br />
13 as teaching that the gift of prophecy in its full capacity (hyperbole) gives<br />
to the receiver understanding of all mysteries and all knowledge. It is possible,<br />
then, to imply that a partial gift of prophecy gives to the receiver some unders-<br />
59 Maybe exaggerating a little, Conzelmann says: “Thus, the gifts are evaluated in Corinth<br />
according to the intensity of the ecstatic outburst; in fact, even according to the degree of unintelligibility.<br />
The latter is considered to be an indication of the working of supernatural power. Hans Conzelmann,<br />
1 Corinthians: A commentary on the First Epistle to the Corinthians (Philadelphia: Fortress Press, 1975),<br />
233-234.<br />
60 Fee, The First Epistle to the Corinthians, 505. See also Ben Witherington, Conflict and Community<br />
in Corinth: A Socio-Rhetorical Commentary on 1 and 2 Corinthians (Grand Rapids, Mich: Eerdmans,<br />
1995), 280.<br />
61 Anthony C. Thiselton, The First Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text<br />
(Grand Rapids, Mich: Eerdmans, 2000), 1084. See also Simon Kistemaker, 1 Corinthians (Grand Rapids:<br />
Baker, 1993), 479-480.<br />
62 “New Testament prophecy therefore included both conventional preaching, when the preacher<br />
had the sense of being gripped and convicted by the Spirit about his or her message, and more spontaneous,<br />
unpremeditated utterances.” Craig Blomberg, 1 Corinthians (Grand Rapids, Mich: Zondervan,<br />
1994), 212.<br />
63 “But the prophecy we find in 1 Corinthians is more like the phenomena we saw in extra-Biblical<br />
Jewish literature: it is based on some type of supernatural ‘revelation,’ but that revelation only gives it<br />
a kind of divine authority of general content. The prophet could err, could misinterpret, and could be<br />
questioned or challenged at any point. He had a minor kind of ‘divine’ authority, but it certainly was<br />
not absolute.” Wayne A. Grudem, The Gift of Prophecy in 1 Corinthians (Washington, D.C.: University<br />
Press of America, 1982), 74.<br />
115
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2<br />
tanding of mysteries and/or knowledge. Paul also presents in 1 Cor 13:8-9 the<br />
temporary character of both prophesying and speaking in tongues.<br />
It essential to understand the phenomenon of speaking in tongues in order<br />
to make sense of mysteries in 1 Cor 14. Spiritual gifts are a manifestation of<br />
empowerment of the Spirit on the believer (12:4, 7, 11) that happens under the<br />
supervision of the Lord Jesus (12:5). The source of the power is God (12:6).<br />
Spiritual gifts are given for the edification of the whole body of Christ. Therefore,<br />
nobody should feel shame or pride because of his or her gifts (12:14-26).<br />
There is a gradation of gifts and the higher ones are those which edify the<br />
church the most. Those should be eagerly desired (12:31; 14:1). Spiritual gifts<br />
should be evaluated and used in a context of love (1 Cor 13). 64<br />
Variety of tongues (ἑτέρῳ γένη γλωσσῶν) is a spiritual gift along with<br />
the interpretation of tongues (ἄλλῳ δὲ ἑρμηνεία γλωσσῶν) (12:10). What Paul<br />
speaks about tongues? Tongues do not communicate to men because no one<br />
can understand and their content are mysteries (14:2). The one who speaks in<br />
tongues builds up himself (14:4) and it would be desirable that all speak in tongues<br />
(14:5). 65 The content of what is spoken in tongues, if translated, would build<br />
up the church (14:5). On the other hand, without interpretation, tongues are not<br />
intelligible, being like speaking in the air (14:9). Thus, the one who speaks in<br />
tongues should pray to receive also the gift of interpretation (14:13). Tongues<br />
is prayer in the Spirit without the use of the mind (14:14) and expressing gratitude<br />
(14:16-17). Paul speaks in tongues more than all Corinthians (14:18),<br />
but in the church he does not use it (14:19). Tongues are related to foreign<br />
languages (14:10, 21), but can also be related to the language of angels (13.1). 66<br />
Tongues are a sign for unbelievers (14:<strong>22</strong>). They can be used in worship with<br />
64 “With love as their aim, it will prevent them from being zealous only for those gifts that will<br />
enable them to steal the show and outshine others”. David E. Garland, 1 Corinthians (Grand Rapids:<br />
Baker Academic, 2003), 631-632.<br />
65 Speaking about the self-building up of the one who speaks in tongues, Grosheide affirms that<br />
this edification is not related to understanding the contents, “but rather that the fact of speaking in tongues<br />
is edifying in itself” and he assumes that the reason is the assurance that the person has the Spirit. F. W.<br />
Grosheide, Commentary on the First Epistle to the Corinthians (Grand Rapids: Eerdmans, 1953), 319.<br />
Kistemaker shows wisdom in his counsel about this subject: “Hence, no one is free to invade another’s<br />
religious privacy; prayer, whether spoken or unspoken, is a two-way street. God receives praise and<br />
thanks from the speaker and at the same time grants him or her comfort and encouragement”. Kistemaker,<br />
1 Corinthians, 480-481. That is no solid basis to defend that Paul’s remark about self-edification<br />
is derogatory. Contra Joseph A. Fitzmyer, First Corinthians: A New Translation with Introduction and<br />
Commentary (New Haven: Yale University Press, 2008), 510.<br />
66 “On balance, then, the evidence favors the view that Paul thought the gifts of tongues was a gift<br />
of real languages, that is, languages that were cognitive, whether of men or of angels.” D. A. Carson,<br />
Showing the Spirit: A Theological Exposition of 1 Corinthians 12-14 (Grand Rapids: Baker, 1987),<br />
83. Fitzmyer’s opinion that “the phemomenon cannot mean speaking in foreign tongues” is ill-defended.<br />
Fitzmyer, First Corinthians, 510. Conzelmann interprets tongues in relation to phenomena that happened<br />
in a few Greek religions. See Conzelmann, 1 Corinthians, 234.<br />
116
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118<br />
orderliness (not everyone at the same time), by a few people (two or three)<br />
and only with interpretation (14:27-28). It is speaking with God (14:28) and<br />
should not be forbidden (14:30).<br />
The teaching of our text, then, can be summarized in the following statement:<br />
The one who prophesies speaks in a clear way mysteries or knowledge<br />
to edify, exhort, and console the church. The one who speaks in tongues speaks<br />
mysteries, prays, and expresses thanksgiving to the Lord in a manner that edifies<br />
only himself, in spirit but not in mind, and without translation does not have<br />
utility for the edification of the church. Thus, prophecy should be preferred to<br />
speaking in tongues in the public worship. 67<br />
CONCLUSION<br />
My definition of mystery in Paul is that it is a part of the wise and sovereign<br />
plan of God about the eschaton, which is present in part in the Old<br />
Testament but still hidden, being revealed according to the will of God only<br />
through special revelation. Mystery can be used to refer to the whole eschatological<br />
plan of God or just to parts of it. 68 It is to refer to those parts of the<br />
eschatological plan of God (hardening of the Jews, fullness of the Gentiles,<br />
revelation of the lawless, marriage) and other parts of the plan not revealed in<br />
the New Testament that the plural “mysteries” is used in 1Cor 4.1; 13.2 and<br />
14.2. Instead of using a Greek concept, or simply meaning something secret,<br />
Paul is consistently using mystery in 1 Cor 14:2 (and 13:2).<br />
Another important conclusion that we reach is that the spiritual gifts of<br />
prophecy and speaking in tongues at least sometimes can have the same content,<br />
i.e., mysteries, with the difference that in the first one those mysteries are<br />
expressed in a way that the whole community understands.<br />
Our analysis of the text also contributes to our understanding of mystery.<br />
Specially considering the gift of tongues, we learn that God will not necessarily<br />
reveal the content of his mysteries, even when these are verbalized.<br />
67 I do not think that there is enough basis in the text to propose a participation of the community in<br />
the worship of the angels, although I consider this an important subject for further studies. See footnotes<br />
11 and 12.<br />
68 This idea agrees with Bockmuehl concept of mystery: “(i)‘Mystery’ or ‘mysteries’ can refer<br />
collectively to the saving purposes of God, specially as these are summed up in the message of the<br />
gospel of Christ. This usage occurs in 1 Cor and more fully in Col; it is further developed in Eph and<br />
later writings. (ii) A mystery can at the same time denote one particular (sometimes detailed) aspect of<br />
God’s plan of salvation, especially as this relates to the eschaton.” Other uses would include particular<br />
doctrines (carefully con Bockmuehl, sidered because of being later writings) and mystical revelation of<br />
mysteries and angelic worship. Markus N. A. Bockmuehl, Revelation and Mystery in Ancient Judaism<br />
and Pauline Christianity (Grand Rapids: Eerdmans, 1997), <strong>22</strong>6-<strong>22</strong>7. The definition of Beale and Gladd<br />
is good, but still puts too much emphasis on the revelation of the mystery: “The revelation of God’s<br />
partially hidden wisdom, particularly as it concerns events occurring in the “ latter days”. Beale and<br />
Gladd, Hidden but Now Revealed, 20.<br />
117
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2<br />
It is possible to infer, therefore, that there are other mysteries in the sovereign<br />
plan of God he did not reveal to his church. Mystery in Paul, therefore, is not<br />
necessarily something hidden that is revealed.<br />
RESUMO<br />
“Mistério” (μυστήριον) é um tema quase técnico e muito importante do<br />
Novo Testamento. Este artigo visa a lançar alguma luz sobre o significado desse<br />
conceito em 1 Coríntios 14.2. O autor define mistério como “uma parte do<br />
plano sábio e soberano de Deus acerca do eschaton, o qual está parcialmente<br />
presente no Antigo Testamento, mas ainda oculto, sendo revelado segundo a<br />
vontade de Deus somente por meio de revelação especial”. Após apresentar<br />
quatro interpretações dissonantes acerca do assunto, o autor defende o conceito<br />
acima em 1 Co 4.2. A novidade do artigo é o conceito de mistério como sendo<br />
revelado através de línguas, enquanto que ao mesmo tempo o seu conteúdo<br />
permanece velado quando o discurso não é interpretado.<br />
PALAVRAS-CHAVE<br />
1 Coríntios 12-14; Mistério; Dom de línguas.<br />
118
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 119-128<br />
Resenha<br />
André Leonardo Venâncio *<br />
WALTON, John. O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre<br />
a origem da humanidade e a leitura de Gênesis. Viçosa: Ultimato, 2016.<br />
1. RESUMO<br />
John Walton, professor de Antigo Testamento no Wheaton College,<br />
oferece neste livro uma leitura bastante acessível para o leigo sem deixar de<br />
apresentar muitas informações interessantes para o teólogo. A edição brasileira<br />
é parte da série “Ciência e Fé Cristã”, elaborada pela Associação Brasileira<br />
Cristãos na Ciência (ABC 2 ), que é uma iniciativa da Associação Kuyper para<br />
Estudos Transdisciplinares (AKET) apoiada pela Templeton World Charity<br />
Foundation (TWCF). Dividido em 21 capítulos (um dos quais em colaboração<br />
com N. T. Wright), o livro se distingue pela atenção dada à literatura extrabíblica<br />
do Antigo Oriente Próximo, especialidade do autor, e por usar os resultados de<br />
sua exegese para lidar com questões motivadas pela ciência moderna quanto<br />
ao significado do texto bíblico. Porém, embora dialogue com a ciência na formulação<br />
de perguntas ao texto, Walton não pretende permitir que ela determine<br />
as respostas. Ele se compromete com a inspiração das Escrituras, e o escopo<br />
do livro é teológico e exegético. Seu objetivo é o resgate da intenção do autor<br />
bíblico, situado no Oriente Próximo do segundo milênio a.C.<br />
Nada disso impede, entretanto, que as conclusões de Walton divirjam com<br />
frequência da visão predominante na tradição teológica conservadora. Citando<br />
apenas alguns dos exemplos mais importantes, ele sustenta: que o relato<br />
de Gênesis não se refere a uma criação ex nihilo, e sim apenas à ordenação e<br />
atribuição de funções ao que já existia 1 (p. 23-42); que Adão não foi formado<br />
* O autor é graduado em engenharia física pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar),<br />
mestre em física aplicada pela USP e atua como engenheiro de petróleo. É membro da Igreja Presbiteriana<br />
do Pirangi, em Natal, RN.<br />
1 Mas Walton crê que a criação ex nihilo é ensinada em outras partes da Bíblia (p. 31, 154).<br />
119
O MUNDO PERDIDO DE ADÃO E EVA<br />
do pó, nem Eva de sua costela (p. 65-75); que Adão e Eva não foram necessariamente<br />
os primeiros seres humanos ou ancestrais de todos os que vieram<br />
depois (p. 106-7, 173-80); que eles nunca foram imortais (p. 137, 142); que,<br />
embora tenham sido figuras históricas, só é importante sua função enquanto<br />
arquétipos da humanidade 2 (p. 191-4); que a serpente em Gênesis 3 é uma<br />
criatura amoral, e não positivamente má (p. 121-31); que o pecado original<br />
decorre de uma “condição humana […] subdesenvolvida” (p. 137) antes que<br />
de uma rebelião moral; que o texto bíblico não faz objeção alguma à ideia de<br />
que a espécie humana passou centenas de milhares de anos mergulhada em<br />
miséria, violência e morte antes que Deus colocasse aqueles dois indivíduos<br />
no jardim (p. 150-1, 168-9).<br />
Walton defende, em suma, que a recuperação do “ambiente cognitivo” do<br />
Antigo Oriente Próximo, necessária a um entendimento apropriado do relato da<br />
criação e da queda, leva à revisão de uma série de pressupostos que têm sido<br />
majoritariamente adotados pela tradição hermenêutica ocidental pelo menos<br />
desde Agostinho. No centro do problema estaria uma compreensão equivocada<br />
da queda, que Walton não vê como a perda de alguma perfeição original, e<br />
sim como agravamento, mediante a rebelião consciente contra Deus, de uma<br />
desordem preexistente: onde havia apenas uma desordem amoral (que Walton<br />
chama de “não ordem”), passou a haver também uma desordem imoral. O Éden<br />
foi, na verdade, um projeto divino de eliminação da não ordem a ser iniciado<br />
pela mediação sacerdotal de Adão.<br />
2. PROBLEMAS QUANTO À CIÊNCIA MODERNA<br />
É fácil perceber que uma das consequências do livro é a admissão de uma<br />
perspectiva evolucionária como interpretação biblicamente legítima. Walton<br />
reconhece e aceita isso com naturalidade na conclusão, atribuindo grande<br />
importância a esse resultado:<br />
O tema mais significativo que temos examinado é se a Bíblia e a ciência fazem<br />
afirmações mutuamente excludentes sobre as origens humanas. O consenso<br />
científico corrente é de que os humanos compartilham um ancestral comum com<br />
outras espécies baseado na evidência de continuidade material (filogenética).<br />
Nossa leitura atenta do texto bíblico e os estudos teológicos indicam que eles<br />
permitiriam tal continuidade material e ancestralidade comum (p. 196).<br />
Além disso, três das quatro aplicações pastorais finais (p. 197-200)<br />
enfatizam a importância de não obrigar as pessoas a escolher entre a ciência<br />
(conforme o entendimento acima) e a fé cristã. A despeito do enfoque exegético,<br />
portanto, a questão da relação entre fé e ciência é central na obra, o que<br />
justifica que a discussão se inicie por esse ponto.<br />
2 Walton se refere a isso como a “proposta central deste livro” (p. 69).<br />
120
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 119-128<br />
O texto editorial da contracapa felicita o autor por criar “espaço para uma<br />
leitura fiel das Escrituras aliada a um compromisso com a ciência”. À primeira<br />
vista, a sugestão desse compromisso pode parecer estranha, pois Walton com<br />
frequência enfatiza a importância de formular juízos exegéticos independentes<br />
das descobertas da ciência (e.g., p. 13-14), e quase sempre se abstém de opinar<br />
sobre temas alheios à sua especialidade.<br />
Um exame mais atento, porém, revela um quadro diferente. Em primeiro<br />
lugar, Walton não é sempre consistente nessa abstenção quanto ao mérito de<br />
hipóteses científicas. Ele afirma, por exemplo, que a evidência das similaridades<br />
genômicas em favor da ancestralidade comum “é convincente, e seria<br />
prontamente aceita, não fora pela crença de alguns de que, se tal história<br />
realmente ocorrera, isso contradiria afirmações bíblicas” (p. 174). Além de<br />
conter uma opinião do autor sobre um tema bem distante de sua especialidade<br />
acadêmica, 3 esse trecho levanta dois problemas: primeiro, se o posicionamento<br />
teológico pode influenciar tão profundamente os juízos científicos de alguém,<br />
nada permite descartar a priori o risco de serem os evolucionistas (cristãos ou<br />
não) os maus intérpretes da evidência. E, segundo, nesse caso a ciência deixa<br />
de ser um empreendimento independente e autônomo dentro do qual os fatos<br />
da natureza falam por si. 4<br />
Walton não lida com essas questões em parte alguma do livro, nem<br />
chega a perceber sua existência. Ele constantemente volta a se referir a um<br />
“consenso” representativo da ciência moderna, o qual não só exclui qualquer<br />
crítico da evolução biológica, mas também exclui qualquer possibilidade de<br />
a ciência estar equivocada. É justo dizer que, na prática, o autor não se isenta<br />
de tomar partido em tais questões. Embora afirme várias vezes que devemos<br />
nos opor “à ciência” se a Bíblia assim o exigir, essa possibilidade jamais se<br />
concretiza, e ele, de modo explícito e repetido, aponta esse fato como uma<br />
grande vantagem de sua proposta exegética. A razão disso é dada na conclusão:<br />
“Tínhamos a expectativa de que Gênesis, lido de forma apropriada, fosse<br />
compatível com as verdades sobre nosso mundo que os cientistas descobrem,<br />
porque tanto nosso mundo quanto a Palavra emanam de Deus” (p. 189). Essa<br />
formulação deixa pouco ou nenhum espaço para uma visão da ciência como<br />
construção interpretativa humana e, em especial, para o risco de essa inter-<br />
3 Walton demonstra seu despreparo científico quando atribui aos criacionistas a sugestão de que<br />
“a história que a genômica comparada testifica nunca ocorreu de fato” (p. 174). Essa formulação contém<br />
uma petição de princípio, pois pressupõe que há um processo histórico que pode ser objetivamente<br />
inferido dos dados genômicos, restando definir apenas se essa história é real ou fictícia. Mas o que os<br />
criacionistas afirmam é que essa inferência de uma história pregressa já é fruto de um olhar enviesado<br />
por parte dos evolucionistas.<br />
4 Usando um conceito da sociologia do conhecimento, poderíamos dizer que as convicções<br />
teológicas influenciam profundamente a estrutura de plausibilidade com base na qual o cientista julga<br />
a evidência disponível em sua área de especialidade.<br />
121
O MUNDO PERDIDO DE ADÃO E EVA<br />
pretação conter erros graves. Mas é nessa minimização falaciosa da distância<br />
entre o consenso científico (real ou imaginário) e a verdade sobre a natureza<br />
que está a raiz do problema da exegese de Walton.<br />
Não é, pois, despropositado dar razão ao texto da contracapa quanto<br />
à presença de um forte “compromisso com a ciência” a orientar o livro. Tal<br />
fato traz problemas na medida em que o autor demonstra compreender pouco<br />
sobre o que é de fato a atividade científica e o grande espaço para interpretações<br />
equivocadas que ela comporta. A ciência moderna é uma pluralidade<br />
de métodos e um conjunto de conhecimentos adquiridos através (ou apesar)<br />
deles, mas é também uma grande quantidade tanto de interpretações arriscadas<br />
(muitas das quais equivocadas em alguma medida), que podem permanecer por<br />
muito tempo, quanto de divergências internas, sempre maiores do que supõe o<br />
leigo. É ainda uma instituição, com cultura, valores, subjetividades e relações<br />
políticas e sociais que estão longe de ser as melhores possíveis. Da mesma<br />
forma, para não poucos de seus praticantes, é parte importante de um projeto<br />
idólatra de redenção da humanidade, submisso em linhas gerais aos ideais do<br />
iluminismo. Walton ignora tudo isso, e o quadro que se pode discernir em suas<br />
constantes referências à ciência revela uma concepção simplista e ingênua<br />
desse grande empreendimento. 5 O panorama que se descortina é o de um teólogo<br />
indevidamente impressionado com a autoridade da ciência e predisposto<br />
a não contrariá-la de forma alguma; suas repetidas alegações de indiferença<br />
coexistem com asseverações também frequentes de que é sempre melhor não<br />
se opor a ela, o que produz um resultado deveras ambíguo. Esse compromisso<br />
lamentável e seus resultados afetam profundamente a estrutura da obra.<br />
É importante não criticar o autor pelos motivos errados: Walton não<br />
pode ser considerado um teólogo liberal, e é sincero (embora equivocado)<br />
na pretensão de que os resultados de sua exegese representam tão somente<br />
a intenção do autor bíblico. Ele também dá mostras de se incomodar de fato<br />
com o cientificismo, como se vê em seu constante esforço de resguardar a autonomia<br />
da teologia enquanto disciplina. Mas não considera os efeitos noéticos<br />
do pecado e não leva a sério a possibilidade de a ciência moderna estar errada<br />
em alguma coisa importante. Resulta daí sua falta de ânimo para confrontar<br />
de fato a autoridade da ciência.<br />
Decorre de tudo isso uma tensão que condiciona fortemente as conclusões<br />
do livro, que tendem sempre a evitar o conflito com a autoridade científica,<br />
embora sem admiti-lo. Sua solução, declarada em muitos momentos, consiste<br />
em dizer que o texto bíblico não faz afirmações sobre origem material que<br />
tenham alguma intersecção com temas acessíveis à investigação científica.<br />
5 Mesmo no âmbito secular há diversas tradições já consolidadas de estudos em filosofia, história<br />
e sociologia das ciências que apontam na direção que busquei delinear em pouquíssimas palavras neste<br />
parágrafo. Walton não dá sinais de conhecer tais discussões.<br />
1<strong>22</strong>
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 119-128<br />
Trata-se de uma separação de tendência claramente neo-ortodoxa que seu esforço<br />
exegético se dedica a manter, elaborar e justificar sempre que necessário.<br />
3. PROBLEMAS FILOSÓFICOS E METODOLÓGICOS<br />
Uma parte central e constantemente proclamada da tese de Walton consiste<br />
na afirmação de que o relato de Gênesis precisa ser lido segundo o ambiente<br />
cognitivo do Antigo Oriente Próximo e que, lido dessa forma, o texto trata de<br />
questões relativas a “ordem e função”, e não a origens materiais. O autor se<br />
vale dessa percepção não só para introduzir várias percepções diferentes da<br />
visão tradicional quanto ao significado do relato bíblico, mas também para<br />
manter bem separados os domínios da teologia e das ciências naturais – que<br />
revelariam a verdade nas esferas funcional e material, respectivamente, sem<br />
interferência mútua. Essa estrutura também fundamenta a crítica e rejeição de<br />
exegeses cujas conclusões “invadem” a esfera da ciência ao tratar de enunciados<br />
de origem material (se Adão veio do pó, se Eva veio de sua costela,<br />
há quanto tempo há seres humanos no mundo etc.); tais leituras são denunciadas<br />
como de inspiração modernista, alheias ao ambiente cognitivo antigo<br />
e à intenção autoral.<br />
No entanto, essa ideia possui três problemas básicos. O primeiro é a inconsistência<br />
conceitual e lógica: o ato de ordenar o mundo e atribuir funções às<br />
criaturas não é inteligível à parte de modificações materiais correspondentes.<br />
O autor tenta explicar como isso se dá através da seguinte ilustração (p. 31):<br />
Os antigos donos de nossa casa utilizavam um cômodo como sala de jantar. Porém,<br />
minha família decidiu que não o queria como sala de jantar, então demos a<br />
ele o nome de “recanto”, colocamos nele a mobília de um recanto e começamos<br />
a utilizá-lo dessa maneira. Por seu nome e função ele foi diferenciado dos outros<br />
cômodos da casa, e então um recanto foi criado.<br />
Walton afirma que há nisso uma boa analogia com o conceito de criação<br />
em Gênesis: ordenar, atribuir função e dar nome a algo que já existia materialmente.<br />
No entanto, a comparação prova o oposto: embora paredes, chão e teto<br />
já existissem, o cômodo só pôde receber a nova função em virtude da nova<br />
mobília; e isso constitui, sem dúvida, uma modificação material. Toda mudança<br />
na esfera das funções precisa acarretar uma adequação material. A tentativa de<br />
fazer com que o relato bíblico mantenha intocada a esfera acessível à ciência<br />
padece, pois, de um problema filosófico básico, com o qual o autor jamais lida<br />
e que sequer chega a identificar. Sua disjunção soa como mero artifício verbal.<br />
O segundo problema é mais sutil, e diz respeito ao uso equívoco dos termos<br />
“matéria” e “material”. Walton erroneamente pressupõe que a “matéria”<br />
desconsiderada no Antigo Oriente Próximo é a mesma de que trata a ciência<br />
moderna. No entanto, embora a mesma palavra seja usada, os dois conceitos<br />
123
O MUNDO PERDIDO DE ADÃO E EVA<br />
são bastante distintos e, na verdade, incompatívei. 6 O filósofo neocalvinista<br />
holandês Herman Dooyeweerd descreveu a cultura grecorromana como uma<br />
tensão entre dois “motivos” básicos, entendidos respectivamente como a<br />
“forma, medida e harmonia” e a “corrente vital cíclica e sem forma” – simplificando,<br />
“forma” e “matéria”. 7 Embora Walton ignore essa discussão, o<br />
leitor informado sobre ela pode ler seu livro e concluir que essas categorias<br />
descrevem bem a estrutura de pensamento de egípcios, sumérios, babilônios e<br />
outros povos do Antigo Oriente Próximo. Nos termos de Dooyeweerd, pode-se<br />
dizer que Walton descreve o relato bíblico da criação (e, na verdade, toda a<br />
história da salvação revelada na Bíblia) como um triunfo do motivo “forma”<br />
sobre o motivo “matéria”. Essa matéria, porém, não é a da ciência moderna,<br />
e isso torna falacioso o uso que Walton faz do conceito. 8 Portanto, provar que<br />
Gênesis não trata da matéria (no sentido antigo) não ajudaria a saber se ele<br />
diz algo sobre a matéria (no sentido moderno). Assim, deixa de fazer sentido<br />
a ideia de estabelecer em tais bases exegéticas a existência de uma esfera de<br />
competência exclusiva da ciência.<br />
O terceiro problema é ainda mais profundo, e também pode ser discernido<br />
com o auxílio de categorias dooyeweerdianas. Segundo o holandês, a raiz<br />
dos motivos básicos vai além da dimensão cognitiva: os motivos são religiosos,<br />
i.e., ligados de modo direto à nossa postura diante do Deus verdadeiro e dos<br />
ídolos. Dooyeweerd descreve os motivos pagãos “forma” e “matéria” como<br />
inerentemente idólatras e incompatíveis com os motivos bíblicos, pois resultam<br />
de distorções na interpretação do mundo criado que decorrem da rebeldia do<br />
coração. Ainda usando termos de Dooyeweerd, a formação de uma cosmovisão<br />
radicalmente cristã requer que mantenhamos a consciência dessa “antítese”<br />
entre motivos bíblicos e apóstatas, evitando “sínteses” entre eles.<br />
Se Dooyeweerd estiver correto em sua descrição dos motivos bíblicos<br />
e apóstatas, 9 o que Walton propõe é nada menos que uma síntese na qual o<br />
relato bíblico é interpretado segundo categorias pagãs. Não se trata de censurar<br />
Walton por (aparentemente) desconhecer a obra de Dooyeweerd, ou por não<br />
tomar sua teoria dos motivos religiosos básicos como pressuposto de sua<br />
exegese. Trata-se, porém, de reconhecer que o uso de textos pagãos antigos<br />
como auxílios na exegese bíblica traz o risco de uma importação inadvertida<br />
de categorias pagãs. Walton não demonstra consciência desse risco e sequer o<br />
menciona. Ele fala em diferenças entre a mensagem de Gênesis e a de textos<br />
6 Esse fato é bem estabelecido na literatura filosófica. Por exemplo, o filósofo inglês R. G.<br />
Collingwood dedicou todo o livro The Idea of Nature (New York: Oxford University Press, 1960) à<br />
discussão das concepções de matéria e natureza e suas mutações ao longo do tempo.<br />
7 Roots of Western Culture: Pagan, Secular, and Christian Options. Toronto: Wedge, 1979, p. 15-21.<br />
8 Dooyeweerd explica sucintamente a diferença em ibid., p. 150-151.<br />
9 Aqui não é necessário endossar ou mesmo discutir a totalidade de seu vasto sistema filosófico.<br />
124
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 119-128<br />
extrabíblicos do mesmo período, mas isso não chega a produzir uma discussão<br />
metodológica. Com frequência o autor apenas pressupõe que o leitor hebreu<br />
original entenderia o texto exatamente da mesma maneira que o pagão de<br />
sua época, e nenhuma problematização ou defesa dessa hipótese é tentada.<br />
Não há no livro nenhuma consciência da antítese e, em consequência disso,<br />
não há nenhuma cautela contra o risco das sínteses (com ou sem o uso desses<br />
termos). Walton utiliza conceitos pagãos na exegese de Gênesis com a mesma<br />
ingenuidade e inconsciência com que cede sem perceber à autoridade da<br />
ciência moderna.<br />
4. PROBLEMAS EXEGÉTICOS<br />
Nesta seção, mediante a breve discussão de quatro casos específicos, serão<br />
apontadas as consequências dos problemas discutidos nas seções anteriores<br />
sobre a exegese bíblica do livro.<br />
A discussão sobre o sentido dos verbos bara e asa 10 (p. 27-31) conclui<br />
que eles não “refletem intrinsecamente uma produção material”, com base em<br />
dois argumentos. Primeiro, “os objetos diretos não são materiais”. Porém, ao<br />
inventariar o uso desses verbos no restante da Bíblia, Walton considera imateriais<br />
objetos como as estações do ano e o vento. O argumento se baseia em<br />
um critério de classificação que, além de ser criticável de um ponto de vista<br />
filosófico, não foi inferido com base em exegese. A conceituação do que é ou<br />
não “material” é obscura e ambígua, e esse é um problema recorrente no livro.<br />
O argumento talvez prove que o campo semântico desses verbos é amplo e<br />
pode se aplicar a objetos imateriais; mas nada no livro prova que esse é o caso<br />
em Gênesis 1-2. O segundo argumento diz que “os verbos não apresentam<br />
qualquer tipo de entendimento que adotamos como cientificamente viável”,<br />
indicando que, apesar de suas frequentes afirmações em contrário, Walton<br />
usa seu entendimento da viabilidade científica como critério exegético para<br />
determinar o que o texto diz.<br />
Walton defende que o relato da formação do homem a partir do pó da<br />
terra é arquetípico, e não material (p. 66-67), mas sua argumentação baseada<br />
nos usos do verbo ysr 11 apresenta problemas semelhantes aos citados acima<br />
quanto aos verbos bara e asa. Ele também sustenta que Adão foi criado mortal,<br />
e que o texto alude a isso quando relaciona sua origem com o pó da terra.<br />
O autor defende isso citando, por exemplo, o Salmo 103.14 12 e comentando:<br />
“É possível que um ser humano seja nascido de mulher e ainda assim seja<br />
formado do pó; todos nós somos” (p. 70-71). Porém, todos somos pó apenas<br />
10 Com frequência traduzidos em Gênesis 1 como “criar” e “fazer”, respectivamente.<br />
11 Traduzido como “formar” em Gênesis 2.<br />
12 “Pois ele conhece a nossa estrutura e sabe que somos pó” (ARA, aqui e nas citações seguintes).<br />
125
O MUNDO PERDIDO DE ADÃO E EVA<br />
porque herdamos nossa natureza de Adão; se ele não foi formado do pó literalmente,<br />
não há sentido algum em que se possa dizer que todos o fomos. De<br />
fato é possível associar a ideia de mortalidade ao pó sem falar em uma origem<br />
material, já que viramos pó após a morte; mas jamais se seguiria daí o “tornar”<br />
ao pó (Gn 3.19), pois não poderíamos voltar a algo de que não viemos. De fato,<br />
“Adão é um arquétipo, não apenas um protótipo” (p. 70), mas é também um<br />
protótipo; embora possamos distinguir abstratamente as duas coisas, a Bíblia<br />
não legitima a ideia de uma independência entre elas. Buscando sustentar o<br />
contrário, Walton compara o relato de Gênesis 2 ao da vocação de Jeremias 13<br />
e diz: “Essas afirmações têm relação com o destino e a identidade de alguém,<br />
não com sua origem material” (p. 71). Segundo esse princípio, seria falacioso<br />
concluir de Jeremias 1.5 que o profeta veio do ventre de sua mãe. Mas o texto<br />
fala tanto da função de Jeremias quanto de sua origem material, assim como<br />
Gênesis 2 fala tanto do que Adão faria no jardim quanto da formação de seu<br />
corpo a partir de um material preexistente. Vem de Walton, mas não do texto<br />
bíblico, a sugestão de que devemos escolher entre as duas coisas.<br />
Igualmente lamentável é a discussão sobre as causas do pecado e da<br />
morte (p. 145-151). Walton sugere que, embora antes de Adão já existissem<br />
homens praticando violência entre si, Romanos 5.13 permite inferir que “onde<br />
não havia lei ou revelação, não existia pecado” (p. 146-147). Tal aplicação não<br />
apenas retira a passagem do contexto, 14 mas também nega a primeira parte do<br />
mesmo versículo: “Porque até ao regime da lei havia pecado no mundo”. Ele<br />
também sugere à igreja que reconsidere “como o pecado original é formulado<br />
e entendido”, pois “Quanto mais aprendemos sobre biologia e genética,<br />
menor se torna a probabilidade do modelo de Agostinho” 15 (p. 148). Aqui o<br />
autor não apenas propõe que a ciência tenha um papel determinante em nossas<br />
formulações teológicas sobre o pecado, mas também admite implicitamente<br />
a visão cientificista de que só a biologia pode nos dizer o que pode ou não<br />
ser transmitido de modo hereditário. Ele também endossa um confinamento<br />
dos efeitos da queda à esfera sociológica que é, em última análise, pelagiano<br />
e romântico (p. 150).<br />
Ao discutir a historicidade de Adão (p. 191-194), embora a admita, Walton<br />
diz que é insuficiente o fato de os autores bíblicos crerem nisso e o declararem<br />
13 “Antes que eu te formasse no ventre materno, eu te conheci, e, antes que saísses da madre, te<br />
consagrei, e te constituí profeta às nações” (Jr 1.5).<br />
14 Está em discussão desde Romanos 1 a situação dos gentios que não receberam a revelação<br />
especial, em contraste com os judeus. Se o entendimento de Walton fosse correto, isso implicaria que<br />
os pagãos não são pecadores. Mas o contrário é afirmado repetidamente (Rm 1.20,28-31; 2.9,12,14;<br />
3.9,30).<br />
15 Ele se refere à ideia de que “o pecado é passado de geração em geração na medida em que<br />
nascemos”.<br />
126
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 119-128<br />
no texto; para ele, é necessário demonstrar também que “o ensinamento bíblico<br />
incorporou este entendimento em sua mensagem autoritativa”. Ele prossegue<br />
argumentando que não é o caso, pois “nenhuma teologia é construída” com<br />
base nisso. O argumento é estranho, pois, embora haja muitas afirmações bíblicas<br />
sobre as quais nunca se construiu uma teologia, 16 espera-se claramente<br />
que creiamos nelas, junto com as outras. Ademais, não é congruente defender<br />
a irrelevância de certas proposições bíblicas, criar critérios para estabelecer<br />
um cânon dentro do cânon e declarar, ao mesmo tempo, que a rejeição dessas<br />
afirmações é de importância fundamental para uma correta elaboração teológica<br />
sobre as origens humanas.<br />
O padrão que emerge, desses exemplos e de muitos outros casos, é que<br />
a pretensão de Walton de ser fiel apenas ao texto bíblico é ilusória. Quando<br />
o texto o contradiz, ele estabelece restrições artificiais sobre seu escopo com<br />
base em disjunções impostas de fora, ou na decisão arbitrária de que só importa<br />
o que constitui a mensagem central do texto, ou ainda na relevância da<br />
proposição para uma elaboração teológica; ou, em casos extremos, afirma sem<br />
rodeios que determinada ideia não está no texto – ou que, embora esteja, deve<br />
ser rejeitada – porque é contradita pela ciência moderna.<br />
5. VALOR DA OBRA<br />
A argumentação exegética de Walton é extensa e bastante sofisticada, o<br />
que torna impossível, neste espaço, fazer plena justiça às suas posições, tanto<br />
às boas quanto às más. Embora ele pareça não pensar assim, suas melhores<br />
percepções são perfeitamente compatíveis com a interpretação conservadora<br />
tradicional. Dessa forma, o livro pode contribuir para nossa compreensão da real<br />
mensagem de Gênesis, uma vez purificado de seus compromissos sintéticos.<br />
A despeito de várias de suas conclusões e aplicações serem infelizes, o<br />
caminho até elas está repleto de considerações proveitosas. A obra apresenta<br />
grande quantidade de informações úteis ao exegeta, e os fundamentos em que<br />
se pretende basear cada conclusão são expostos com clareza; é graças a essa<br />
qualidade, aliás, que seus erros podem ser identificados com maior facilidade.<br />
Os méritos de Walton se destacam sobretudo em sua profunda familiaridade<br />
com os escritos extrabíblicos do Antigo Oriente Próximo e na sua refutação<br />
implícita a várias abordagens críticas que remontam às velhas tradições<br />
teológicas liberais. 17 Também merecem menção suas discussões meticulosas<br />
sobre o campo semântico dos termos hebraicos utilizados no relato bíblico e<br />
sua atenção a detalhes e conexões pertinentes frequentemente ignorados. Em<br />
16 Exemplos citados a esmo: o fariseu que visitou Jesus se chamava Nicodemos; João estava em<br />
Patmos quando teve as visões do Apocalipse; Salomão teve setecentas esposas e trezentas concubinas.<br />
17 O livro apresenta, por exemplo, dados que contradizem a velha teoria liberal de uma origem<br />
tardia para o relato da criação.<br />
127
O MUNDO PERDIDO DE ADÃO E EVA<br />
inúmeros pontos, Walton de fato nos auxilia a recuperar algo da cosmovisão do<br />
hebreu do segundo milênio a.C.; exemplos disso são sua exposição do mundo<br />
criado como um espaço sagrado, da função sacerdotal de Adão e do simbolismo<br />
do jardim.<br />
Por todos esses motivos, O Mundo Perdido de Adão e Eva pode promover<br />
um aumento do interesse pela mensagem de Gênesis e fomentar uma leitura<br />
bíblica que faça mais justiça à intenção autoral e seja mais livre dos condicionamentos<br />
da cultura moderna. Embora manifestamente imperfeita, a incursão<br />
de Walton pelo mundo antigo é mais rica que a de muitos que possuem uma<br />
cosmovisão mais bíblica nos pontos essenciais. Apesar de seus compromissos<br />
não assumidos, ele de fato fornece alguns bons subsídios para uma abordagem<br />
menos contaminada pelo positivismo científico.<br />
Para muitos de nós, o texto de Gênesis faz pouco além de dar motivos<br />
para a rejeição de abordagens evolucionárias. Walton erra em não ver que o<br />
texto de fato traz essa implicação, mas acerta em mostrar que há muito mais<br />
a extrair dali. Em suma, o livro nos desafia de duas maneiras: nos incentiva<br />
a elaborar boas respostas aos pontos problemáticos de sua abordagem e a<br />
aprimorar uma leitura dos primeiros capítulos de Gênesis que faça justiça às<br />
suas percepções mais preciosas. Na medida em que isso ocorrer, o livro terá<br />
minimizado seu potencial de dano a uma cosmovisão cristã sadia e se tornará<br />
semente de bênçãos para a igreja.<br />
128
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 129-135<br />
Resenha<br />
Alan Rennê Alexandrino Lima *<br />
BEEKE, Joel R.; JONES, Mark. Teologia puritana: doutrina para a<br />
vida. São Paulo: Vida Nova, 2016. 1524p.<br />
Não é exagero afirmar que se tornou proverbial o dito de J. I. Packer<br />
quando afirma que “os puritanos eram gigantes em comparação a nós, gigantes<br />
de cuja ajuda carecemos, se quisermos crescer”. 1 A afirmação é justificada a<br />
partir de diversas contribuições dos puritanos elencadas pelo próprio Packer,<br />
entre as quais merece destaque a seguinte: “Os puritanos me fizeram perceber<br />
que toda teologia também é espiritualidade, no sentido de exercer influência,<br />
boa ou má, positiva ou negativa, no relacionamento ou na falta de relacionamento<br />
das pessoas com Deus”. 2<br />
A prova da afirmação de Packer pode ser vista naquela que, muito provavelmente,<br />
foi a maior publicação das editoras evangélicas brasileiras em 2016:<br />
Teologia Puritana: Doutrina para a Vida, de Joel R. Beeke e Mark Jones, dois<br />
dos maiores especialistas contemporâneos sobre os puritanos. Joel Beeke, já<br />
bastante conhecido do público brasileiro, é presidente e professor de Teologia<br />
Sistemática e Homilética do Puritan Reformed Theological Seminary, além<br />
de pastor na Heritage Reformed Congregation, em Grand Rapids, Michigan.<br />
Obteve seu doutorado (Ph.D.), em Teologia da Reforma e da Pós-Reforma, pelo<br />
* O autor é bacharel em teologia pelo Seminário Teológico do Nordeste (STNe), em Teresina – PI,<br />
e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. É mestre (S.T.M.), com concentração em<br />
Estudos Históricos e Teológicos e linha de pesquisa em Teologia Sistemática, pelo Centro Presbiteriano<br />
de Pós-Graduação Andrew Jumper (São Paulo). É professor visitante de Teologia Sistemática no Seminário<br />
Presbiteriano do Norte (Recife) e no Seminário Teológico do Nordeste, além de orientador na<br />
Faculdade Internacional de Teologia Reformada (FITRef). É pastor-efetivo na Igreja Presbiteriana do<br />
Cruzeiro do Anil, em São Luís – MA.<br />
1 PACKER, J. I. Entre os Gigantes de Deus: uma visão puritana da vida cristã. 2.ed. São José<br />
dos Campos: Fiel, 2016. p. <strong>22</strong>.<br />
2 Ibid., p. 20.<br />
129
TEOLOGIA PURITANA: DOUTRINA PARA A VIDA<br />
Westminster Theological Seminary, em Filadélfia, na Pensilvânia. Nas palavras<br />
do seu coautor: “Ele é um puritano contemporâneo tanto no conhecimento<br />
quanto na piedade” (p. 21). Mark Jones, por sua vez, é ministro presbiteriano,<br />
pastor da Faith Presbyterian Church, uma congregação filiada à Presbyterian<br />
Church in America, em Vancouver, Colúmbia Britânica, no Canadá. É pesquisador<br />
associado da Faculdade de Teologia da University of the Free State, em<br />
Bloemfontein, na África do Sul, e obteve o seu doutorado (Ph.D.) pela Leiden<br />
Universiteit, na Holanda. Interessantemente, sua tese de doutoramento tratou<br />
da cristologia do puritano Thomas Goodwin.<br />
Teologia Puritana nada mais é do que uma teologia sistemática elaborada<br />
a partir dos escritos dos puritanos: “Este livro trata de teologia puritana.<br />
Seus capítulos examinam várias áreas da teologia sistemática do puritanismo”<br />
(p. 23). Possui um total de oito loci (Prolegômenos, Teontologia, Antropologia e<br />
Teologia do Pacto, Cristologia, Soteriologia, Eclesiologia, Escatologia e Teologia<br />
na Prática), que compreendem 60 capítulos. É importante destacar algo<br />
da metodologia dos autores, a saber, o fato de que muitos dos capítulos lidam<br />
com temas teológicos clássicos, como, por exemplo, teologia natural, hermenêutica<br />
e exegese, a Trindade, a providência, a pecaminosidade do homem,<br />
as alianças das obras, da redenção e da graça, lei e evangelho e a regeneração.<br />
Outros capítulos apresentam a maneira como um puritano em específico lidou<br />
com determinado tema, como: “Stephen Charnock e os atributos de Deus”,<br />
“Thomas Goodwin e Johannes Maccovius e a justificação desde a eternidade”,<br />
“Anthony Burgess e a intercessão de Cristo por nós”, “Thomas Goodwin e o<br />
amoroso coração de Cristo” e “Christopher Love e as glórias do céu e os pavores<br />
do inferno”. Os capítulos que abordam temas teológicos “apresentam um quadro<br />
daquilo que se pode chamar de ‘posição puritana’ ou ‘consenso puritano’”<br />
(p. 29). Já os capítulos que se concentram num único puritano possuem o<br />
objetivo de “oferecer uma ideia razoavelmente abrangente acerca do que um<br />
teólogo específico pensava sobre uma doutrina específica” (p. 29).<br />
Logo na Introdução os autores fazem questão de destacar que o movimento<br />
não era caracterizado por uniformidade em termos de linha teológica.<br />
Nem todos eram reformados ou calvinistas, como se supõe (p. 24). Richard<br />
Baxter (1615-1691), por exemplo, era neonomiano; John Goodwin (1594-1665),<br />
arminiano; John Milton (1608-1674), provavelmente ariano; e John Eaton<br />
(c. 1575-c. 1631), antinomiano. Não obstante, “a imensa maioria dos puritanos<br />
fazia parte do movimento teológico mais amplo denominado ortodoxia<br />
reformada” (p. 25).<br />
Em razão da vastidão da obra, torna-se contraproducente uma apresentação<br />
exaustiva do seu conteúdo. Ainda assim, alguns destaques devem ser<br />
feitos, como, por exemplo, sua dupla “estrutura arquitetônica”: 1. A teologia<br />
do pacto, e 2. Seu caráter trinitariano. Logo no primeiro capítulo, ao tratarem<br />
da revelação, os autores destacam o caráter pactual do conhecimento de<br />
130
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 129-135<br />
Deus em Cristo. De acordo com eles, a revelação de Deus a Adão se deu no<br />
contexto de um pacto denominado “pacto das obras”. Se assim foi necessário<br />
com Adão no jardim no Éden, quanto mais o seria no contexto da Aliança da<br />
Graça: “A doutrina da aliança foi importante para os teólogos reformados do<br />
século 17, pois permitia que expressassem a natureza relacional da teologia,<br />
que é o propósito da revelação” (p. 55). A doutrina do Pacto estabelece a ponte<br />
que transpõe o abismo ontológico entre o Criador infinito e onipotente, de<br />
um lado, e a criação finita e dependente, de outro. Essa revelação, todavia, é<br />
cristológica, ou seja, ela é dada em Cristo e, por meio dele, através das várias<br />
alianças pós-queda, alcançando o seu ápice na Nova Aliança.<br />
A teologia do pacto como estrutura arquitetônica do pensamento puritano<br />
também se faz evidente quando os autores analisam a hermenêutica e a exegese<br />
puritanas. Tanto o pacto das obras quanto o pacto da graça funcionam como<br />
categorias hermenêuticas do pensamento puritano. Toda a Escritura é interpretada<br />
em termos dos dois pactos e os puritanos se esforçavam por destacar as<br />
semelhanças e distinções entre ambos. Beeke e Jones destacam como, em seu<br />
método interpretativo, os puritanos ressaltavam a maneira pela qual a revelação<br />
acerca de Jesus Cristo progredia em cada administração pactual:<br />
Thomas Adams (1583-1652) comenta que Cristo é a “soma de toda a Bíblia,<br />
profetizado, tipificado, prefigurado, exibido, demonstrado, a ser encontrado em<br />
cada página, quase em cada linha [...] Cristo é a parte principal, o centro para<br />
onde todas essas linhas conduzem”. De modo semelhante, ao comentar sobre<br />
como Cristo é o alvo e a extensão das Escrituras, Richard Sibbes (1577-1635)<br />
observa: “Cristo é a perola daquele anel, Cristo é o tema, o centro em que convergem<br />
todas aquelas linhas: remova Cristo e o que sobra? Portanto, em todas as<br />
Escrituras cuidemos para que Cristo não nos escape; sem Cristo, tudo é nada”.<br />
Isaac Ambrose (1604-1664) afirma que antes da encarnação Cristo vinha sendo<br />
apresentado em “cerimônias, rituais, símbolos, tipos, promessas [e] alianças” [...]<br />
Em cada dispensação da revelação de Deus a seu povo, mais e mais de Cristo<br />
é apresentado por meio dos vários meios relacionados por Ambrose (p. 63-64).<br />
Beeke e Jones demonstram como, além de pactual, a teologia puritana<br />
possui uma forte ênfase trinitária. Em todos os loci teológicos o enfoque trinitário<br />
dos puritanos pode ser percebido. Explicitando a eclesiologia de John<br />
Owen e Thomas Goodwin, os autores dizem o seguinte: “À semelhança de<br />
John Owen, Thomas Goodwin insistia numa teologia totalmente trinitária, não<br />
apenas uma doutrina trinitária da salvação” (p. 909). Três conceitos específicos<br />
a respeito das opera ad extra trinitatis são mencionados em conexão com<br />
diversas doutrinas – imanentes, transientes e aplicadas:<br />
1. Imanentes em Deus em seu relacionamento conosco, conforme seu amor<br />
eterno estabeleceu e nos concedeu, sendo que Deus, por causa desse amor,<br />
nos escolheu e determinou que recebêssemos essa e todas as demais bênçãos;<br />
131
TEOLOGIA PURITANA: DOUTRINA PARA A VIDA<br />
2. Transientes em Cristo naquilo que fez por nós, em tudo que fez ou sofreu ao<br />
nos representar e ao tomar o nosso lugar;<br />
3. Aplicadas, isto é, operadas em nós e por nós, todas aquelas bênçãos que o<br />
Espírito nos outorga, como chamado, justificação, santificação, glorificação<br />
(p. 210).<br />
Tais conceitos podem ser vistos como estando relacionados com diversas<br />
doutrinas, como, por exemplo, os atributos de Deus, especialmente<br />
o seu amor (p. 130), a justificação (p. 210-<strong>22</strong>9), a eleição (p. 235), a ordem<br />
dos decretos (p. 240), o Pacto da Redenção (p. 361) e a união mística com<br />
Cristo (p. 690). O gênio da teologia dos puritanos está justamente na maneira<br />
coesa como todos os loci teológicos são unidos, possuindo a teologia<br />
do pacto como a sua estrutura arquitetônica e a doutrina da Trindade como<br />
seu elemento norteador.<br />
Dentre os 60 capítulos da obra, alguns podem ser destacados, uma vez<br />
que apresentam conceitos e detalhes bastante interessantes a respeito do<br />
pensamento teológico dos puritanos ou de algum deles, especificamente. Em<br />
primeiro lugar, o capítulo 9, que discute o supralapsarianismo cristológico de<br />
Thomas Goodwin. Essa designação advém do fato de Goodwin fundamentar<br />
o seu supralapsarianismo em sua cristologia, tendo em mente “a glória do<br />
Deus-homem, Jesus Cristo, que une a igreja consigo” (p. 233). O diferencial da<br />
posição de Goodwin está em como ele apresenta a glória de Cristo, e o desejo<br />
do Pai de agradar o seu Filho, como o propósito supremo e principal da eleição.<br />
Na discussão acerca do infralapsarianismo versus o supralapsarianismo é<br />
comum entender a reconciliação com Deus como sendo o propósito principal<br />
da eleição. A ideia por trás deste pensamento é que Jesus Cristo foi dado pela<br />
igreja, ou ainda, que ele foi entregue para, acima de todas as coisas, operar a<br />
reconciliação entre Deus e o homem. Ainda que a obra de Cristo tenha tido tal<br />
propósito, Goodwin entendia que não se tratava do fim supremo nem da obra<br />
vicária de Cristo nem da eleição.<br />
Beeke e Jones sublinham que, para Goodwin, “Cristo é o objetivo da<br />
eleição e de todas as outras coisas” (p. 238). Isto quer dizer que o principal<br />
motivo da predestinação de Cristo para ser o Redentor, não foi que os pecadores<br />
pudessem ser salvos pelos benefícios da sua obra. Antes, o motivo primário foi<br />
que a suprema excelência da sua pessoa fosse contemplada pelos pecadores.<br />
Todos os benefícios advindos da obra redentora de Cristo possuem um valor<br />
bem inferior à dádiva da sua pessoa. No Conselho da Redenção, que teve lugar<br />
na eternidade, ao decretar que o Filho assumisse a natureza humana, Deus, o<br />
Pai, não levou em consideração apenas a necessidade do ser humano de um<br />
redentor. Ele levou em consideração, acima de tudo, nas palavras do próprio<br />
Goodwin, citadas pelos autores:<br />
132
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 129-135<br />
[...] aquela glória infinita da segunda pessoa a ser manifesta naquela natureza<br />
mediante essa apropriação. Os dois objetivos o levaram a agir, e, dos dois, a<br />
glória da pessoa de Cristo naquela união e por meio daquela união teve maior<br />
peso na eleição, de modo que até mesmo a própria redenção esteve subordinada<br />
à glória da sua pessoa (p. 239).<br />
Desse modo, o esquema supralapsariano adquire um fundamento mais<br />
forte, uma vez que o foco é mudado de Cristo sendo dado aos pecadores,<br />
para estes sendo levados pelo Pai àquele, a fim de que a sua glória seja mais<br />
plenamente exibida. Decretar a encarnação apenas para que pecadores fossem<br />
salvos, ainda que um objetivo belo, seria diminuir e rebaixar a pessoa do Filho.<br />
A glória de Cristo é mais preciosa que a salvação dos eleitos.<br />
No capítulo 25 os autores abordam outro aspecto do pensamento de<br />
Thomas Goodwin, mais especificamente, o amoroso coração de Cristo para<br />
com o seu povo. Em 1645, ele publicou a obra The Heart of Christ in Heaven<br />
Towards Sinners on Earth (“O coração de Cristo no céu voltado para os pecadores<br />
na terra”). Nessa obra Goodwin teve o propósito de refutar a ideia<br />
bastante divulgada de que os cristãos do período pós-apostólico viviam em<br />
desvantagem em relação aos cristãos que conheceram a Cristo aqui na terra.<br />
O argumento que apoiava tal ideia era que, uma vez que, agora, Cristo está<br />
glorificado, ele é menos afetado por sua humanidade. De acordo com Beeke e<br />
Jones, “Goodwin afirmou que, com base nas Sagradas Escrituras, Cristo tem<br />
sentimentos fortes, compaixão profunda e empatia cheia de emoções por seu<br />
povo sofredor, mesmo quando já está assentado à direita de Deus” (p. 563).<br />
O argumento é que a exaltação de Cristo, diferentemente do que era crido por<br />
muitos, não diminuiu as suas emoções, mas, ao contrário, as aumentou. O<br />
problema enfrentado por Goodwin era que, se<br />
Cristo “depois de ter se livrado de sua fragilidade aqui na carne e depois de ter<br />
vestido sua natureza humana com uma glória tão magnífica” se lembra de nós<br />
no céu, “ele é incapaz de se compadecer de nós da mesma maneira que fazia<br />
quando habitou conosco aqui embaixo; tampouco podem seus sentimentos ser<br />
afetados e tocados pelas nossas fraquezas”. Com certeza, ele deixou para trás<br />
todas as lembranças de fraqueza e dor (p. 564).<br />
Uma vez que as Escrituras afirmam, de modo inequívoco, que “não<br />
temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas”<br />
(Hb 4.15), é legítimo e correto inferir que as fraquezas do seu povo inspiram<br />
a compaixão de Cristo. Esclareça-se que, o termo “fraquezas” envolve tanto as<br />
dificuldades de cunho geral quanto pecados específicos: “Até mesmo nossa<br />
tolice e nossas escolhas pecaminosas despertam a compaixão de Cristo” (p. 565).<br />
As palavras de Goodwin citadas pelos autores são belas:<br />
133
TEOLOGIA PURITANA: DOUTRINA PARA A VIDA<br />
Vossos próprios pecados levam [Cristo] mais à compaixão do que à ira [...] da<br />
mesma maneira como acontece com o coração de um pai para com o filho que<br />
tem alguma doença repugnante. Ou, de semelhante maneira, a atitude de alguém<br />
que tem uma parte do corpo com lepra não é odiar aquela parte, pois é sua carne,<br />
mas a doença, e isso o leva a ter ainda mais compaixão da parte afetada (p. 565).<br />
O compassivo coração de Cristo o leva a se inclinar com bondade em<br />
direção ao seu povo, ainda que sentindo repulsa pela imundícia inerente a<br />
tais pecados. Deve ser compreendido, porém, que o fato de Cristo reagir com<br />
compaixão aos pecados do seu povo não implica em que ele ainda experimente<br />
qualquer tipo de sofrimento, visto a sua humilhação ter se completado na crucificação<br />
e no sepultamento. Ao questionamento sobre como é possível, então,<br />
que ele se sinta tocado pelos sentimentos gerados pelas debilidades humanas,<br />
Goodwin respondia que esse não é um ato de fraqueza, mas do poder do amor<br />
celestial. Embora Cristo não esteja mais sujeito a nenhum tipo de fragilidade,<br />
ele continua sendo alguém plenamente humano, com emoções, corpo e alma<br />
humanos: “Assim, nossos sofrimentos não ferem a Cristo, mas sua alma humana<br />
reage a nossos sofrimentos com ternura gloriosa e admirável” (p. 567).<br />
Por fim, é importante destacar o capítulo 57, que aborda a casuística<br />
puritana. Primeiramente, o termo casuística, conforme definido pelos puritanos,<br />
não trata da “técnica desenvolvida pelos jesuítas para encontrar pretextos<br />
para não fazer o que você deve fazer” (p. 1309). Antes, para os puritanos, a<br />
casuística era a arte da teologia moral aplicada com integridade bíblica a diversos<br />
casos de consciência. Em outras palavras, a casuística puritana tratava<br />
de como casos de consciência eram tratados de acordo com as Sagradas Escrituras,<br />
algo bem próximo do que hoje é chamado de aconselhamento bíblico e<br />
pastoral. O capítulo é dividido em: 1. O início da casuística puritana, ainda no<br />
século 16, com Richard Greenham (1542-1594). Nesse período, as anotações<br />
dos casos de consciência tratados eram abundantes, indo “desde se as pessoas<br />
podiam deixar de ir ao culto de sua igreja para ouvir um pastor pregar em uma<br />
igreja vizinha até se alguém que havia admitido ter mentido aos amigos sobre<br />
um pecado de ordem pessoal devia agora confessá-lo em público” (p. 1312).<br />
2. Uma apresentação de William Perkins como o pai da casuística puritana,<br />
visto ter ele estabelecido o “padrão para toda a obra posterior de teologia moral<br />
protestante” (p. 1315). 3. O florescimento da casuística puritana, nas obras de<br />
William Gouge (1575-1653), William Whately (1583-1639), Robert Bolton<br />
(1572-1631) e o discípulo mais famoso de Perkins, William Ames (1576-1633),<br />
que escreveu uma das mais importantes obras da casuística puritana: Conscience,<br />
with the Power and Cases Thereof (“A consciência, seu poder e seus casos”),<br />
publicada primeiramente em latim (1630) e posteriormente em inglês (1639).<br />
4. O apogeu da casuística puritana, com destaque para o trabalho de Thomas<br />
Brooks (1608-1680). 5. O desaparecimento da casuística puritana durante as<br />
134
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 129-135<br />
últimas duas décadas do século 17. De acordo com Beeke e Jones, isso aconteceu<br />
em virtude do surgimento do deísmo, do embate com o socinianismo e com o<br />
arminianismo, e dos ataques de Thomas Hobbes e John Locke à validade da<br />
ideia de consciência.<br />
Não há dúvida de que Teologia Puritana foi o grande lançamento editorial<br />
do ano de 2016. Numa época de redescobrimento do pensamento dos teólogos<br />
puritanos, uma teologia sistemática que apresenta o seu pensamento teológico é<br />
bem-vinda. Certamente, todos os amantes dos puritanos devem ler essa obra.<br />
Além disso, o livro é uma ferramenta indispensável para todos aqueles que<br />
desejam compreender, de fato, o que era ensinado pelos puritanos. Pesquisadores<br />
e estudantes de teologia sistemática muito se beneficiarão dessa obra.<br />
Algo interessante é que os autores deixaram de fora temas considerados difíceis<br />
em nossos dias, como o princípio regulador do culto e a salmódia exclusiva.<br />
Por fim, destaca-se o caráter devocional com que as doutrinas e os tópicos são<br />
apresentados pelos autores.<br />
135
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 137-143<br />
Resenha<br />
Emilio Garofalo Neto *<br />
CARSON, D. A. (Org). A verdade: como comunicar o evangelho a um<br />
mundo pós-moderno. São Paulo: Vida Nova, 2015.<br />
Todo crente que vive no século 21 já sofreu a perplexidade que acompanha<br />
nossas interações com descrentes pós-modernos. Uma ânsia por desmascarar<br />
todo argumento como sendo uma mera tentativa de controlar; uma enfatuada<br />
negação de verdades que vinculem a tudo e a todos; um desejo de relegar<br />
matérias de fé à esfera da vida privada.<br />
Nosso tempo tem suas peculiaridades, de fato. Mas vale notar que, como<br />
o faz em qualquer outra época, o homem pós-moderno no final das contas cria<br />
falsos discursos para deter a verdade pela injustiça (Rm 1.18-25). 1 A mentalidade<br />
da era vigente é, em última análise, apenas mais uma tentativa de se<br />
rebelar contra o Deus que se revela de maneira abundante nas coisas que foram<br />
criadas, e que julgará vivos e mortos por meio do varão a quem ressuscitou<br />
dentre os mortos (At. 17.31). O pós-modernismo será derrotado pelo Cordeiro<br />
de Deus. Mas, já que vivemos aqui e agora, é bom entendermos nosso tempo<br />
a fim de sermos melhor equipados para a parte que nos cabe na peregrinação.<br />
Aqui temos uma boa ferramenta. O livro A Verdade: Como Comunicar o Evangelho<br />
a um Mundo Pós-Moderno busca ser um manual que ajude cristãos, em<br />
particular aqueles em posição de liderança, a navegarem as águas traiçoeiras<br />
da contemporaneidade.<br />
* O autor tem Ph.D. em Estudos Interculturais pelo Reformed Theological Seminary, em Jackson,<br />
Mississipi. Leciona teologia sistemática no Seminário Presbiteriano de Brasília. É professor visitante no<br />
CPAJ, na área de teologia pastoral, devendo em 2018 assumir a posição de professor residente. Pastoreia<br />
a Igreja Presbiteriana Semear, em Brasília.<br />
1 As citações que Mark Dever apresenta de Aldous Huxley são excelentes em mostrar o descrente<br />
e seu jogo de esconder a verdade (ver p. 155-157).<br />
137
A VERDADE: COMO COMUNICAR O EVANGELHO A UM MUNDO PÓS-MODERNO<br />
A obra reúne uma ampla coletânea de artigos buscando lidar com facetas<br />
diversas da árdua tarefa de comunicar a verdade do evangelho num tempo em<br />
que a própria ideia de verdade parece perdida. O teólogo D. A. Carson é o<br />
organizador do livro e a gama de autores é bem variada, indo de acadêmicos<br />
a pastores em tempo integral e passando por obreiros em sociedades para-<br />
-eclesiásticas labutando no território estudantil. O livro é resultado de uma<br />
conferência sobre o assunto realizada em 1998 na Trinity Evangelical Divinity<br />
School, em Chicago. As palestras foram convertidas para o formato de livro e<br />
publicadas na língua inglesa em 2000. São cerca de 30 colaboradores. Alguns<br />
artigos são longos, com mais de 20 páginas, enquanto que outros não chegam<br />
nem a 10.<br />
A obra já é um tanto antiga, relativamente falando, é claro. Palestras<br />
produzidas quando o mundo eclesiástico estava ainda acordando para o pós-<br />
-modernismo, e, embora isso não a invalide ou inutilize, é curioso ver algumas<br />
referências culturais que foram utilizadas e que hoje não são mais tão conhecidas,<br />
como as diversas menções a filmes como “Titanic”. Boa parte do que era<br />
novidade em termos de relativismo cultural hoje já é lugar comum. Algumas<br />
estatísticas agora já têm quase vinte anos. Além disso, alguns autores falam<br />
sobre estarmos numa encruzilhada urgente e decisiva. 2 É claro, se a encruzilhada<br />
era decisiva quase vinte anos atrás, será que já mudou a situação? Além disso,<br />
algumas ideias que eram bem novas na época do evento agora já se tornaram<br />
lugar comuns e bem reconhecidas de quase todo crente ocidental. Nada que<br />
prejudique demasiadamente a leitura, mas a obra fica um pouco datada. O leitor<br />
pode comprar o livro com a impressão de se tratar de um livro mais atual,<br />
contendo as últimas ideias e investigações sobre o assunto, quando na verdade<br />
é um retrato do termômetro teológico utilizado há quase vinte anos. Grandes<br />
eventos como a intensificação global do terrorismo islâmico, a massificação<br />
de internet de alta velocidade e outros fatos recentes por certo mudaram alguns<br />
elementos importantes no nosso entendimento de como ministrar no mundo<br />
contemporâneo. De qualquer maneira, há uma grande quantidade de informação<br />
útil e perspicaz.<br />
O âmago do livro é ajudar o leitor a se tornar mais equipado e atento na<br />
hora de comunicar a palavra de Deus num tempo em que até mesmo a existência<br />
da verdade não se dá mais como certa. A obra é organizada em oito partes,<br />
com artigos que cobrem razoavelmente bem cada sub-tópico e apontam onde<br />
encontrar mais recursos.<br />
A Primeira Parte contém as palestras plenárias de Ravi Zacharias, que<br />
lidam com o assunto de uma forma introdutória e bastante útil. Na primeira<br />
palestra ele trata de algumas das grandes mudanças culturais advindas com a<br />
2 Num artigo que discute o ministério entre asiáticos na América do Norte, o autor fala sobre<br />
estarem num limiar cultural (p. 261). O quanto mudou nessas quase duas décadas?<br />
138
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 137-143<br />
pós-modernidade. Na sua segunda palestra/artigo, Zacharias lida com Atos 24<br />
e busca paralelos sobre a situação do apóstolo Paulo diante de Félix e a nossa<br />
diante de um mundo incrédulo. Vale a leitura: Zacharias é um teólogo astuto<br />
e um bom observador da cultural global. O texto é permeado de referências a<br />
pensadores como Os Guinness e C. S. Lewis.<br />
A Segunda Parte lida mais com a filosofia e a história do pós-modernismo<br />
(abordando Rorty e Foucalt, por exemplo), sendo um belo lugar para a orientação<br />
do novato quanto ao tema. O linguajar é acessível e mesmo as discussões<br />
um pouco mais técnicas são tratadas com propriedade. Mesmos os leitores que,<br />
como eu, não tenham educação formal em filosofia perceberão com tranquilidade<br />
as mudanças epistemológicas envolvidas na cosmovisão pós-moderna.<br />
Talvez seja esse o maior valor do livro: tomar um tema denso e fazê-lo palatável<br />
e útil para o crente comum. Para quem já é versado em estudos de filosofia ou<br />
cosmovisão, algumas discussões serão relativamente repetitivas, mas ainda<br />
assim as partes de implementação ministerial tornam o livro valioso.<br />
A Terceira Parte envolve o que se chama de “tópicos críticos”. São seis<br />
artigos que tratam de questões como epistemologia (James Sire), a singularidade<br />
de Cristo (Ajith Fernando) e a importância e dificuldade de tratar do<br />
pecado no mundo pós-moderno (Mark Dever). Aliás, o texto de Dever é um<br />
dos melhores do livro, e ainda aponta ótimas informações bibliográficas para<br />
quem quiser saber mais.<br />
Os artigos dessa seção são em geral bastante úteis. Por vezes, entretanto,<br />
um artigo começa de forma promissora e depois desaponta. É o caso de Philip<br />
Jensen e Tony Payne, que lidam com a teologia bíblica e a maneira como a<br />
pregação fortemente enraizada nela pode ser particularmente útil no nosso<br />
tempo que tem forte suspeita contra metanarrativas. A ideia do artigo é boa<br />
a princípio, mas os autores tentam ser práticos em exemplificar e acabam se<br />
perdendo um pouco, no final das contas apenas descrevendo o método que têm<br />
utilizado em seu contexto australiano. Já Colin Smith lida bem com o tema da<br />
pregação cristocêntrica, inclusive utilizando João Calvino e a noção do duplo<br />
conhecimento. Smith afirma que a pregação precisa expor ao pecador sua real<br />
situação antes que ele sequer entenda sua necessidade de Cristo.<br />
A Quarta Parte é curta e se compõe de dois artigos que abordam passagens<br />
bíblicas cruciais para o assunto. O primeiro deles trata de Romanos 3.21-26.<br />
O autor, John Nyquist, lida com a doutrina da justificação no contexto pós-<br />
-moderno, mostrando a importância de continuarmos a tratar da salvação em<br />
categorias bíblicas ao invés de ceder às pressões do nosso tempo. De fato,<br />
uma teologia bíblica de transformação pessoal, que coloca no lugar certo a<br />
justificação e a santificação, é algo que boa parte da geração pós-moderna<br />
jamais ouviu. Muitos cresceram em meio ao legalismo e moralismo farisaico<br />
de parte da igreja evangélica, e nunca conheceram a liberdade oferecida pela<br />
justificação pela fé somente.<br />
139
A VERDADE: COMO COMUNICAR O EVANGELHO A UM MUNDO PÓS-MODERNO<br />
Colin Smith lida então com 2 Coríntios 5.1-11 e a ideia do pregador como<br />
embaixador. O artigo é bem útil e nos lembra que somos representantes de<br />
outro país. Estejamos vivendo num país moderno ou pós-moderno, é normal que<br />
estranhemos e que nos estranhem. Precisamos é representar bem os interesses<br />
de nosso reino. Smith compara o pregador a um embaixador que recebe um<br />
comunicado de seu governo (Escritura) e tem de encontrar a melhor forma de<br />
transmitir a mensagem à cultura em que ele habita (contextualização): “Ele lê<br />
o texto com duas questões em mente: primeira, o que o governo está dizendo?<br />
E, segunda, como expresso isso de maneira que essas pessoas compreendam”<br />
(p. 200).<br />
A Quinta Parte lida com o tema “igreja, universidade, etnia”. Autores<br />
diversos tratam de como o evangelho está conectado à unidade racial e à diversidade<br />
étnica, e como essas discussões são relevantes em nosso tempo. Essa<br />
seção tem material relevante, mas algumas discussões são mais relevantes para<br />
o contexto imediato norte-americano.<br />
No primeiro artigo da seção, Philip Jensen e Tony Payne tentam apresentar<br />
um modelo que conecte o alcance evangelístico da igreja com trabalhos<br />
realizados na universidade. Há algumas boas ideias, e os autores entram na<br />
espinhosa discussão sobre trabalho da igreja versus trabalho paraeclesiástico.<br />
Eles advogam ousadamente que paremos de chamar tais ministérios de paraeclesiásticos,<br />
sugerindo que eles são tão igreja quanto as denominações em<br />
si. 3 Sugerem que essa separação é danosa, insistindo que movimentos como<br />
Navegadores 4 e Cruzada Estudantil têm natureza tão eclesiástica como as diferentes<br />
denominações, com membros fieis e ativos na vida cristã. Os autores<br />
do artigo sugerem que esses grupos deveriam começar a se reunir também aos<br />
domingos e assumir de vez sua identidade eclesiástica.<br />
Penso que eles detectaram aqui uma situação real; mas não entenderam<br />
corretamente qual é o problema. De fato, há pessoas que se envolvem mais com<br />
sua missão ou grupo paraeclesiástico do que com suas igrejas locais. E isso é<br />
ruim. Conheço gente que passou mais de uma década num desses grupos, onde<br />
foi convertido. Mas não ia além dessas reuniões semanais. Não se juntava à<br />
igreja visível, nem mesmo recebera o batismo. Passava o dia do Senhor longe<br />
do povo de Deus. Não estava debaixo de autoridade nem sujeito à disciplina.<br />
Se os grupos paraeclesiásticos querem funcionar na prática como igreja, que<br />
3 “Encontramo-nos na infeliz posição de negar o que somos em essência devido à política eclesiástica.<br />
É hora de confessar tudo—a organização paraeclesiástica tem em si bem pouco de ‘para-’. Ela<br />
é um movimento eclesiástico. Participa da assembleia celestial de Jesus Cristo e se reúne localmente<br />
como sua expressão para ouvir e responder à Palavra de Deus. Ela é uma igreja” (p. <strong>22</strong>0).<br />
4 Aliás, parece que os tradutores não estão cientes de que o grupo Navigators já existe no Brasil,<br />
pois consistentemente utilizam a terminologia em inglês, enquanto geralmente traduzem os nomes de<br />
outros grupos.<br />
140
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 137-143<br />
se organizem como tal e obedeçam às ordens bíblicas que Cristo deu à igreja,<br />
por exemplo, no que diz respeito a liderança organizada nos moldes bíblicos<br />
e ministração dos sacramentos. Os autores desse artigo têm má eclesiologia,<br />
bem longe do entendimento reformado. Eles pretendem ainda, por exemplo,<br />
dissociar adoração da assembleia solene. Confundem o fato de que devemos<br />
adorar em todo lugar e situação, com o desfazer-se das formas históricas de<br />
adoração como se fossem mera invencionice humana.<br />
A Sexta Parte lida principalmente com o aspecto relacional da apresentação<br />
do evangelho. Defendendo a ideia de que os pós-modernos serão ganhos<br />
pelo aspecto relacional mais do que pelo apelo proposicional e intelectual,<br />
diversos autores apontam caminhos possíveis para que isso ocorra. São três<br />
artigos e eles acabam sendo um pouco repetitivos, há grande sobreposição da<br />
temática. De qualquer forma, são ideias em geral sadias e bíblicas. Por vezes<br />
a teologia dos autores se mostra um pouco problemática. Por exemplo, Ron<br />
Bennett, em seu artigo “Evangelização autêntica na igreja local em uma era<br />
relacional”, acaba aceitando categorias impostas pelo movimento seeker-<br />
-sensitive e vendo-o como uma alternativa viável (p. 296). 5 Novamente, vale<br />
dizer que o autor tem boas ideias também. A comparação que ele faz entre<br />
viver no vale e viver na montanha, por exemplo, é boa e interessante. Há boas<br />
discussões, mas algumas delas não passam de conselhos práticos baseados na<br />
experiência do autor, o que pode ser útil ou não.<br />
A Sétima Parte tem sete artigos que tratam de estratégias e experiências<br />
diversas de implementação de trabalhos que buscam atingir a geração atual.<br />
Há forte ênfase em lidar com o tema de evangelismo e discipulado no contexto<br />
universitário. Embora haja boas ideias, penso que um modelo melhor é um<br />
que não está no livro, aquele desenvolvido nos Estados Unidos pela Reformed<br />
University Fellowship (RUF), um braço da Igreja Presbiteriana da América<br />
(PCA) que não compete ou concorre com a igreja, mas é um braço da igreja<br />
que atua nos campi universitários do país.<br />
Mais uma vez surge o problema do relacionamento entre igreja e ministérios<br />
diversos. Um exemplo é Mike Tilley em seu artigo que diz que cabe a<br />
eles da Cruzada Estudantil, ainda que não exclusivamente, cumprir o mandato<br />
da Grande Comissão e de Atos 1.8 (p. 367). Ora, mais uma vez aparece o problema<br />
do paraeclesiástico querendo ser igreja. Querem uma suposta leveza de<br />
seguir sem muita estrutura formal e sem uma confissão de fé, mas acabam<br />
de certa forma tomando para si prerrogativas eclesiásticas. Se desejam seguir<br />
o conselho do artigo de Jensen e Payne, então precisam levar a sério ordens<br />
bíblicas como batismo e disciplina eclesiástica. Mais uma vez há confusão<br />
5 Sobre o assunto, ofereço humildemente meu artigo “Antes só do que mal acompanhada: o<br />
risco de casar-se com o espírito de seu tempo—uma análise das propostas de revitalização de igreja dos<br />
movimentos seeker-sensitive e emergente”. <strong>Fides</strong> Reformata, vol. XX, nº 2, 2015, p. 41-69.<br />
141
A VERDADE: COMO COMUNICAR O EVANGELHO A UM MUNDO PÓS-MODERNO<br />
entre objetivo e método da missão. Acabam, ainda que implicitamente, tratando<br />
ordenanças eclesiásticas (liderança formal escolhida pela membresia,<br />
sacramentos, disciplina, interconectividade e interdependência) como se fossem<br />
meros estorvos que prejudicam a agilidade da missão. É um pouco cansativo<br />
ver líderes paraeclesiásticos se colocando como a linha de frente da missão e<br />
reclamando da suposta burocracia e inércia da igreja, enquanto eles mesmos<br />
veem a missão de maneira muito restrita e não sujam as mãos com as longas<br />
horas de pastoreio, discipulado e disciplina.<br />
De qualquer maneira, há ideias boas e proveitosas nessa sétima parte,<br />
inclusive o entendimento de que a comunidade cristã como um todo deve se<br />
envolver no evangelismo e no modelar da vida. Há grande dificuldade em<br />
abandonar não somente as ideias rebeldes a Cristo, mas o próprio estilo de vida<br />
e comunidade associados à rebeldia. No livro Pensamentos Secretos de uma<br />
Convertida Improvável, 6 Rosaria Butterfield insiste nesse aspecto. Tendo ela<br />
mesma saído do homossexualismo e do ativismo feminista, mostra como foi<br />
duro deixar a comunidade em que encontrava tanto significado. Embora a<br />
seção seja benéfica, o livro acaba ficando demasiadamente enviesado em direção<br />
ao ministério no campus e na academia universitária. É claro, o evento<br />
que originou esse livro teve esse foco, mas faz falta o pensar do assunto em<br />
outros contextos.<br />
A Oitava e última parte tem duas plenárias de encerramento, sendo que<br />
a de Carson é particularmente útil, tratando de Paulo em Atenas (Atos 17) e<br />
sua aplicabilidade para nossos dias. Carson se sai bem, mas ainda prefiro o<br />
tratamento de Cornelius Van Til e de Scott Oliphint sobre o assunto. 7<br />
Como livro composto de artigos diversos, a qualidade varia. Há alguns<br />
artigos excelentes como os de Carson. Outros são bem fracos ou rasos. Há<br />
outros que não são ruins, mas apenas não estão no mesmo nível. Há textos de<br />
cunho mais acadêmico e outros intencionalmente planejados para serem mais<br />
parecidos com uma conversa informal. Como fruto de uma conferência, talvez<br />
fosse inevitável haver certa sobreposição de assuntos, mas ainda assim fica<br />
por vezes um tanto cansativo.<br />
Enfim, embora todo cristão possa tirar benefício desse útil livro, ele é<br />
especialmente indicado para os que labutam na arena da comunicação formal<br />
da palavra de Deus, sejam eles pregadores, professores ou mesmo aqueles<br />
envolvidos em discipular e formar a mente de um mundo que se rebela conta o<br />
conhecimento de Deus. A obra se junta a diversos outros títulos em português<br />
6 BUTTERFIELD, Rosaria. Pensamentos secretos de uma convertida improvável. Brasília, DF:<br />
Monergismo, 2013.<br />
7 VAN TIL, Cornelius. Paulo em Atenas. Brasília, DF: Monergismo, 2016; OLIPHINT, Scott.<br />
A batalha pertence ao Senhor: o poder da Escritura na defesa da nossa fé. Brasília, DF: Monergismo,<br />
2013.<br />
142
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 137-143<br />
que ajudam o cristão a lidar com a pós-modernidade. Dentre os ainda não<br />
traduzidos, penso que o livro de James K. A. Smith, How (Not) to Be Secular,<br />
seja particularmente útil. 8<br />
A encadernação é boa e resistiu bem a minha leitura e marcações diversas.<br />
Capa bonita e livro prazeroso de manusear. Não notei grandes problemas<br />
na tradução e revisão. A editora Vida Nova está de parabéns pela publicação.<br />
A Verdade é um livro útil, ainda que tenha partes bem mais fortes que outras.<br />
Recomendado!<br />
8 Grand Rapids: Eerdmans, 2014.<br />
143
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 145-147<br />
Resenha<br />
Alderi Souza de Matos *<br />
SOUZA, José Roberto de. Presbiterianos x pentecostais: a reação da<br />
Igreja Presbiteriana do Brasil ao advento do pentecostalismo em Pernambuco<br />
(1920-1930). São Paulo: Fonte Editorial, 2016. 164p.<br />
José Roberto de Souza é professor e coordenador do Departamento de<br />
História da Igreja no Seminário Presbiteriano do Norte (SPN), em Recife.<br />
Bacharelou-se em teologia no SPN e na Universidade Católica de Pernambuco<br />
(UNICAP) e é especialista em História da Religião e da Arte pela Universidade<br />
Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). É mestre em Teologia e História<br />
(SPN), mestre em Ciências da Religião (UNICAP) e doutorando em Ciências<br />
da Religião (UNICAP). Integra o grupo de pesquisa Religiões, Identidades<br />
e Diálogos, da mesma universidade. O livro Presbiterianos x Pentecostais é<br />
fruto de sua dissertação de mestrado, defendida em 2013.<br />
O autor começa por lembrar a esmagadora superioridade numérica e a<br />
grande influência do pentecostalismo no cenário protestante brasileiro (p. 21).<br />
Observa que os pesquisadores têm se debruçado prioritariamente sobre o pentecostalismo<br />
da segunda metade do século 20, e mais especialmente sobre o<br />
neopentecostalismo, mas ainda existem relativamente poucos estudos sobre<br />
as primeiras décadas do movimento no Brasil. Adota como fundamentação<br />
teórica conceitos de autores como Pierre Bourdieu e Antonio Gouvêa Mendonça<br />
(p. 25). As principais fontes primárias consultadas foram atas do Presbitério<br />
de Pernambuco, de algumas de suas igrejas locais e matérias publicadas em<br />
periódicos denominacionais, principalmente o Norte Evangélico.<br />
O objetivo da pesquisa é analisar como uma denominação histórica, no<br />
caso a Igreja Presbiteriana do Brasil, reagiu ao advento do pentecostalismo<br />
numa das regiões em que atuava, o Estado de Pernambuco. O 1º capítulo,<br />
* Professor de Teologia Histórica e coordenador do S.T.M. no Centro Presbiteriano de Pós-<br />
-Graduação Andrew Jumper. Historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil.<br />
145
PRESBITERIANOS X PENTECOSTAIS<br />
“Mapeamento histórico do(s) protestantismo(s) em terras Brasilis” (p. 29),<br />
volta-se para o estudo do protestantismo de missão e a contribuição do pioneiro<br />
Ashbel Green Simonton. Aborda tópicos como o presbiterianismo norte-<br />
-americano, a chegada do protestantismo ao Brasil, o trabalho pioneiro de<br />
Simonton e o seu legado. Conclui com uma breve descrição das fases históricas<br />
do presbiterianismo no país (p. 53): implantação, consolidação, dissensão,<br />
reconstituição, cooperação, organização, polarização e período atual.<br />
O 2º capítulo, intitulado “Um retrospecto do(s) pentecostalismo(s) e o<br />
seu resultado em solo brasileiro”, começa com um levantamento dos precursores<br />
do movimento pentecostal, ou seja, fenômenos de natureza carismática<br />
ou entusiástica que surgiram ao longo da história da igreja (p. 67-83). Aborda<br />
grupos como montanistas, cátaros, anabatistas, camisardos, quacres e shakers.<br />
Também considera movimentos que, embora não fossem entusiásticos em si,<br />
continham elementos que iriam ser importantes para essa cosmovisão. É o caso<br />
dos pietistas, com sua ênfase na experiência pessoal, colocada acima da doutrina<br />
ou do ritualismo (p. 75); do primeiro Grande Despertamento norte-americano,<br />
com seu célebre personagem central, Jonathan Edwards, e do Segundo Despertamento,<br />
com seu controvertido líder Charles Finney. Essa seção termina<br />
com três outros precursores: o pastor presbiteriano escocês Edward Irving, o<br />
fundador do metodismo João Wesley e o movimento de Santidade (Holiness).<br />
A seção seguinte desse capítulo trata do surgimento do pentecostalismo<br />
moderno nos Estados Unidos, com seus principais personagens iniciais e suas<br />
tensões (p. 83). Destaca as contribuições de três fundadores: Charles F. Parham,<br />
dirigente da escola bíblica em Topeka, no Kansas, onde ocorreram as primeiras<br />
manifestações pentecostais; William J. Seymour, o líder do Avivamento da<br />
Rua Azusa, em Los Angeles, e William Durham, o pastor de Chicago que foi<br />
o principal responsável pela difusão internacional do movimento.<br />
As últimas seções do 2º capítulo analisam a chegada do pentecostalismo<br />
ao Brasil, a partir de 1910, embora tenha existindo anteriormente uma curiosa<br />
manifestação de entusiasmo religioso no país. Na década de 1870, o engenheiro<br />
e presbítero Dr. Miguel Vieira Ferreira causou uma divisão na Igreja Presbiteriana<br />
do Rio de Janeiro e criou a chamada Igreja Evangélica Brasileira, que<br />
subsiste até os dias atuais (p. 89). O autor utiliza a conhecida análise de Paul<br />
Freston, que propõe três fases distintas na implantação do pentecostalismo<br />
no Brasil. A primeira fase teve início com a fundação da Congregação Cristã no<br />
Brasil no Sul do país (1910), pelo italiano Luigi Francescon, e a fundação das<br />
Assembleias de Deus no Norte/Nordeste (1911), pelos suecos Gunnar Vingren<br />
e Daniel Berg. Tendo surgido inicialmente em Belém do Pará, as Assembleias<br />
de Deus brasileiras logo chegaram ao Nordeste e em particular a Pernambuco.<br />
O terceiro e último capítulo do livro analisa a reação dos presbiterianos<br />
aos pentecostais, começando por uma exposição das diferenças doutrinárias entre<br />
os dois grupos. Os primeiros têm sua confessionalidade apoiada nas Escrituras<br />
146
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 145-147<br />
e nos símbolos de fé de Westminster, ao passo que os pentecostais priorizam<br />
a experiência com o Espírito Santo (p. 105). O autor sustenta essa afirmação<br />
com base no diário do pioneiro Vingren e em documentos oficiais das Assembleias<br />
de Deus.<br />
Após narrar a implantação do presbiterianismo em Pernambuco, na década<br />
de 1870, pelo missionário John Rockwell Smith, o autor observa que o<br />
trabalho da Assembleia de Deus teve início nesse estado em 1916, por meio de<br />
Adriano Nobre, um ex-presbiteriano procedente de Belém (p. 119). Todavia,<br />
a atuação desse obreiro foi breve e quem realmente expandiu e consolidou<br />
o trabalho foi o missionário Joel Carlson, a partir de 1918, considerado por<br />
muitos o verdadeiro fundador dessa igreja em Pernambuco (p. 123).<br />
A partir de 19<strong>22</strong>, o novo grupo religioso passou a inquietar a liderança<br />
presbiteriana do estado. Numa reunião do Presbitério de Pernambuco, os Revs.<br />
Jerônimo Gueiros e Antônio Vitalino de Melo manifestaram a sua preocupação<br />
com o crescimento de diferentes “heresias”, principalmente o sabatismo e<br />
o “pentecostismo”, solicitando aos colegas que escrevessem matérias sobre o<br />
assunto, a serem publicadas no Norte Evangélico, periódico oficial daquele<br />
concílio (p. 129). Merece destaque uma série de artigos de Jerônimo Gueiros<br />
intitulada “A Seita Pentecostal”, publicada no referido jornal entre 31 de<br />
dezembro de 1923 e 30 de junho de 1924. Os cinco artigos abordaram os<br />
seguintes temas: uma heresia dos últimos tempos, o Pentecostes e a profecia<br />
de Joel, o Pentecostes e o dom de línguas, o batismo com o Espírito Santo na<br />
visão reformada, e os milagres, seu desígnio e sua oportunidade. Em 1924, o<br />
Rev. Gueiros publicou esses artigos em forma de livreto, com o título A Heresia<br />
Pentecostal (p. 137).<br />
O autor conclui o livro mencionando o ressurgimento recente dessa<br />
preocupação na IPB, motivada pelas inquietações de muitos concílios acerca<br />
de questões litúrgicas e da chamada contemporaneidade dos dons do Espírito.<br />
Em 1995, o Supremo Concílio formou uma Comissão Permanente de Doutrina,<br />
que elaborou uma Carta Pastoral tratando da doutrina do Espírito Santo e dos<br />
dons de línguas e profecia, acompanhada de várias recomendações (p. 141).<br />
Na conclusão, José Roberto de Souza declara que a intenção primária da<br />
pesquisa foi resgatar os fatos históricos e apresentá-los de maneira objetiva,<br />
sem maiores juízos de valor, algo que poderá ser feito por outros estudos sobre<br />
o tema. Lembra que uma reação como essa, conforme as análises de Bourdieu<br />
e outros, é parte dos mecanismos de autopreservação de uma organização que<br />
perde adeptos para outros grupos e se vê compelida a defender a sua própria<br />
identidade e convicções. Esse livro é uma contribuição valiosa para a melhor<br />
compreensão de um momento histórico importante na trajetória tanto das<br />
denominações tradicionais como do pentecostalismo nascente em território<br />
brasileiro.<br />
147
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 149-150<br />
Resenha<br />
Robson Rosa Santana *<br />
QURESHI, Nabeel. Procurei Alá, encontrei Jesus: um muçulmano<br />
piedoso abraça o evangelho. São Paulo: Cultura Cristã, 2016. 253p.<br />
Esse livro relata a conversão de um muçulmano de nascença e tradição<br />
histórica à fé em Cristo. Nabeel Qureshi é da mesma tribo de Maomé. Cresceu<br />
num ambiente cultural familiar em que os líderes são obedecidos sem questionamentos<br />
e onde abdicar da fé islâmica é passível de morte. A trajetória de<br />
sua conversão é dramática e nos apresenta o arcabouço cultural e religioso da<br />
cosmovisão islâmica.<br />
Qureshi nasceu no Paquistão e teve uma infância muito solitária. Sua<br />
família foi para os Estados Unidos quando ele era jovem. Seu pai foi da Marinha<br />
Americana e mudou-se algumas vezes dentro do país. Também morou por<br />
algum tempo na Escócia. Nesses países os muçulmanos eram minoria. Isso o<br />
fazia ser diferente e o impendia de ter amigos fora do contexto muçulmano.<br />
As culturas ocidentais eram vistas com maus olhos, levando a família<br />
Qureshi a evitar contatos com não islâmicos e gastar tempo na doutrinação dos<br />
dois filhos – Nabeel e sua irmã mais velha – nas sendas do islã.<br />
Estudou numa universidade perto de sua casa. Lá conheceu David<br />
Wood, um jovem comprometido com Cristo e a evangelização. Os diálogos a<br />
respeito da fé tiveram início. A primeira questão de Nabeel era a respeito da<br />
fidedignidade do Novo Testamento, uma vez que, segundo ele, foi alterado e<br />
reescrito várias vezes.<br />
Seu amigo Wood tinha conhecimento suficiente para dar razão da confiabilidade<br />
da Bíblia. Ao fazer isso, desafiou Qureshi sobre a história do Alcorão.<br />
Este disse que o Alcorão não havia sido alterado. Mas seu amigo disse que<br />
quando Maomé morreu não havia uniformidade dos textos do Alcorão, que havia<br />
versões diferentes e que a uniformidade só veio quando se decidiu padronizar<br />
* O autor é bacharel em teologia pelo Seminário Presbiteriano Brasil Central e mestre em teologia<br />
(M.Div.), com habilitação em Missões Urbanas, pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.<br />
149
PROCUREI ALÁ, ENCONTREI JESUS: UM MUÇULMANO PIEDOSO ABRAÇA O EVANGELHO<br />
o Alcorão, destruindo versículos e até suratas inteiras, que alguns próximos a<br />
Maomé consideravam verdadeiras.<br />
O que Nabeel aprendeu de seus pais foi que ele deveria aprender a defender<br />
sua fé, apenas reconhecendo que o que eles criam era a verdade. No<br />
entanto, na sua educação acadêmica aprendeu a ser crítico. A cultura ocidental<br />
dizia que era necessário questionar para alcançar a verdade. Isso era o contrário<br />
da cosmovisão islâmica. Essa cultura ensinava que sempre haveria respostas<br />
adequadas para afirmar sua fé. Entretanto, as respostas dos mestres muçulmanos<br />
não foram suficientes.<br />
Wood lhe deu livros do apologista cristão Josh McDowell. Este o convencia<br />
da divindade de Cristo, enquanto a doutrina central do Islã é a “unicidade<br />
de Deus”. Estudos científicos concorriam para a defesa da fé em um Deus<br />
Trino. Qureshi também ficou abalado quando começou a estudar a vida de<br />
Maomé nas próprias fontes muçulmanas. Descobriu que ele foi violento, matou<br />
sem provocação. Seus soldados estupravam mulheres cativas e casavam com<br />
crianças de apenas nove anos.<br />
A tensão crescia em seu coração, principalmente o receio de machucar seus<br />
pais, caso se tornasse cristão, e romper o relacionamento com eles. Cada vez<br />
mais ele se convencia acerca da veracidade da fé bíblica. Wood o aconselhou<br />
a pedir essa convicção a Deus. Ele afirma ter tido três sonhos que serviram de<br />
testemunho para a fé cristã. Ele foi convencido por Deus, mas o maior desafio<br />
foi dizer isso aos seus pais. Ao contar, o relacionamento ficou abalado, mas o<br />
amor paterno-filial foi maior. Porém, quando disse que abandonaria a medicina<br />
para servir no ministério cristão, os laços se romperam por cerca de um ano.<br />
Na introdução desse livro autobiográfico e apologético, Qureshi mostra<br />
as três finalidades que teve em mente ao escrevê-lo: (1) derrubar paredes,<br />
dando aos leitores uma perspectiva do coração de um muçulmano; (2) equipar<br />
os leitores com fatos e conhecimentos que demonstram o contraste entre<br />
as duas crenças, mostrando a veracidade do cristianismo; e (3) mostrar a luta<br />
interior dos muçulmanos ao converter-se à fé cristã, descrevendo suas dúvidas<br />
e sacrifícios. Esses objetivos foram alcançados. Assim, através da descrição<br />
passo a passo da sua conversão, Nabeel Qureshi mune os leitores interessados<br />
na conversão de muçulmanos, tornando-os mais eficazes na evangelização.<br />
Qureshi alcança esses objetivos poderosamente. Ele explica a mentalidade<br />
islâmica, algo que qualquer um que testemunha a muçulmanos deve entender<br />
se deseja ser um apologista eficaz. Ao levar o leitor através de seu próprio<br />
processo de conversão, passo a passo, ele descreve os argumentos que foram<br />
mais convincentes para ele e que outros podem aplicar em seus próprios ministérios<br />
com muçulmanos. Como apêndices, o autor inclui no final de cada<br />
capítulo um ensaio de um renomado apologista. 1<br />
1 No final de agosto de 2016, aos 33 anos, Nabeel Qureshi anunciou que estava com um câncer<br />
no estômago. Desde então, ele vem lutando contra essa grave enfermidade.<br />
150
Excelência e Piedade a Serviço do Reino de Deus<br />
CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO<br />
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atualizado e informatizado.<br />
Especialização à Distância (EAD)<br />
São três cursos totalmente online: Especialização em Estudos Teológicos (EET), Especialização<br />
em Teologia Bíblica (ETB) e Especialização em Teologia Prática (ETP).<br />
Revitalização e Multiplicação de Igrejas (RMI)<br />
O RMI objetiva capacitar pastores e líderes na condução do processo de restauração<br />
do ministério pastoral, da oração e da expansão da igreja por meio de missões, usando<br />
ferramentas bíblico-teológicas e de outras áreas das ciências.<br />
Mestrado em Divindade (Magister Divinitatis – MDiv)<br />
Trata-se do mestrado eclesiástico do CPAJ. É análogo aos já tradicionais mestrados<br />
profissionalizantes, diferindo, entretanto, do Master of Divinity norte-americano<br />
apenas no fato de que não constitui e nem pretende oferecer a formação básica para<br />
o ministério pastoral. O MDiv do CPAJ não é submetido à avaliação e não possui<br />
credenciamento da CAPES.<br />
Mestrado em Teologia (Sacrae Theologiae Magister – STM)<br />
Esse mestrado acadêmico difere do Magister Divinitatis por sua ênfase na pesquisa<br />
e sua harmonização com os mestrados acadêmicos em teologia oferecidos em universidades<br />
e escolas de teologia internacionais. O STM do CPAJ não é submetido à<br />
avaliação e não possui credenciamento da CAPES.<br />
Doutorado em Ministério (DMin)<br />
O Doutorado em Ministério (DMin) é um curso oferecido em parceria com o Reformed<br />
Theological Seminary (RTS), de Jackson, Mississippi. O programa possui o reconhecimento<br />
da JET/IPB e da Association of Theological Schools (ATS), nos Estados Unidos.<br />
O corpo docente inclui acadêmicos brasileiros, americanos e de outras nacionalidades,<br />
com sólida formação em suas respectivas áreas.<br />
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