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Silêncio<br />
Nasci no silêncio, um mundo de imagens<br />
sem sons, gestos a imitar palavras, uma<br />
dança simbólica plena de significado. Um<br />
silêncio eterno, etéreo, glorioso em todo<br />
o seu esplendor. Nasci no espaço, o meu<br />
silêncio, a mão que embalava o meu<br />
berço, em suaves ondas melancólicas de<br />
plena felicidade.No espaço não há cima ,<br />
ou baixo; não há frio ou calor, não há<br />
multidões, não há sons...<br />
Vejo minha mãe a dançar, ela<br />
dançava muito, no silêncio, com o meu<br />
pai, rodopiando nos corredores vazios, o<br />
meu pai ajudava-a a voar, e nós, eu e<br />
meus irmãos, seguíamos atrás. Às vezes i<br />
íamos lá para fora e, entre as altas velas,<br />
continuávamos a dançar, um ritual de<br />
adoração à eternidade.<br />
No espaço não há tempo, não é contado,<br />
não há pressa , não vamos a lado algum,<br />
não temos horário, seguimos o nosso ritmo,<br />
parado, lento, um ritmo cheio de<br />
descobertas, complementado com novos<br />
significados. No silêncio, não há espera, não<br />
há desejos, ansiedade, em tudo há uma paz<br />
inexplicável, uma união plena com o<br />
mistério do universo, a última grande<br />
fronteira.<br />
No espaço, não há outros, apenas nós.<br />
Um dia vieram outros. O mundo dos outros<br />
era diferente, não tinha velas, a ausência<br />
dos altos mastros era uma novidade para<br />
mim, o mundo deles era gigante, tão<br />
grande como uma pequena lua, ruidosa e<br />
frenética. Eles desconheciam o silêncio e eu<br />
lamentei-os, que estranha existência. A
nossa nave entrou no seu interior, o<br />
encontro estava marcado.<br />
- Vamos entregar os novos mapas e<br />
reabastecer. – explicou o meu pai. – Não<br />
te preocupes Natal, nós não vamos sair e<br />
eles não vão entrar.<br />
Não compreendi porque não podíamos<br />
entrar naquele mundo diferente do nosso.<br />
Aquele mundo não era assim tão grande<br />
tendo em conta o número de pessoas que ali<br />
viviam, compartilhando o mesmo espaço.<br />
Centenas delas, muito barulhentas, falavam<br />
muito, palavras sem sentido, frases inúteis,<br />
sem explicação. Porque precisavam de falar<br />
tanto? Eu não precisava de explicar a minha<br />
mãe o que precisava, ela sabia sempre o que<br />
e quando. Quando estava triste, quando<br />
estava contente, quando tinha fome, quando<br />
tinha sede, quando queria saber alguma<br />
coisa. No nosso mundo não precisávamos de<br />
todas aquelas palavras, sabíamos sempre o<br />
que fazer, quando, onde e como, bastava um<br />
olhar, um gesto, um sorriso, um toque, um<br />
rodopio nos corredores, uma festa entre os<br />
mastros, onde o único som era o nosso<br />
próprio riso de tanta felicidade. Aqueles<br />
sons todos eram uma novidade, uma<br />
tentação que desconhecia, como quando<br />
descobríamos uma nova estrela ou uma nova<br />
galáxia e era atraída por ela, para o<br />
desconhecido ainda para descobrir, e como<br />
uma nova descoberta qualquer, parti em<br />
busca dela, afundei-me naquele movimento<br />
frenético de gentes de falas rápidas, sempre<br />
a correr, tudo a mim me espantava. Então,<br />
algo quebrou o encanto, entre aquela cortina<br />
de corpos gritando, correndo, apanharamme,<br />
pegaram-me ao colo. Erguendo-me<br />
até aos seus olhos. Tinha uns olhos lindos,<br />
castanho-avelã, um rosto moreno, tão<br />
escuro, comparado com a cor da minha<br />
pele, muito rosada, limpa e imaculada.<br />
Sorria encantador.<br />
- Olá Natal! – Disse ele. – Que fazes<br />
aqui? Não devias ter saído do barco, este<br />
lugar não é muito bom para ti. Vamos<br />
voltar? A tua família deve estar preocupada.<br />
- Como te chamas? – Perguntei curiosa.<br />
- Raul.<br />
- Raul...-saboreia o nome. Um nome, não<br />
um número. No meu mundo tínhamos<br />
números, inventávamos os nomes quando<br />
queríamos uns dias chamava-me Ana,<br />
outros Diana, outros, Maria; naqueles dias,<br />
era Natal, porque diziam que era Dezembro<br />
e em Dezembro havia um dia chamado<br />
Natal.<br />
O meu mundo era um barco, fôra o que<br />
ele chamara. Mas não é um barco, é a<br />
Viper! O que é um barco?<br />
Enquanto me levava para a Viper, ele<br />
não explicava o que era um barco, porque é<br />
que não dizia? Não entendia a minha<br />
dúvida? Então compreendi, eles falavam<br />
muito porque tinham necessidade de<br />
comunicar, eram muitos cada um no seu<br />
próprio mundo. Interagiam como autómatos.<br />
- Lamento muito. – Disse triste.<br />
- O que lamentas?<br />
- Estares sozinho.<br />
-Eu não estou sozinho. Estou bem<br />
acompanhado, neste momento por ti. Olha,<br />
estamos a chegar!<br />
O barco. Minha mãe sabia o que era um<br />
barco, um mundo antigo construído pelos<br />
primeiros cartógrafos, navegadores de outro<br />
universo a que chamavam de mares e ela<br />
mostrou-me esses mares, um átomo<br />
comparado com o nosso. A Viper não era<br />
uma barco, assim que pude procurei outra<br />
vez Raul para lhe explicar o que era um
arco. Ele não devia saber, para ter usado esse<br />
termo de comparação.<br />
Desta vez fui eu que o encontrei, num lugar<br />
a que chamavam ginásio, onde estavam muitos<br />
homens a trabalhar com máquinas. Máquinas<br />
pesadas, suavam e faziam caretas enquanto os<br />
músculos do corpo protestavam com aquele<br />
esforço anormal. Porque faziam eles aquilo?<br />
Raul era um deles, deitado numa maca, mãos<br />
elevavam e baixavam uma barra com pesos nas<br />
pontas. Levantou a barra e eu peguei nela e<br />
pousei-a no descanso. Raul olhou para as mão<br />
vazias , voltou-se e viu-me. Confusão, surpresa.<br />
- Natal! Não te disseram para não saíres do<br />
barco?<br />
- Tu disseste. – Corrigi.<br />
- Não voltes a fazer isso!<br />
Limpou o suor da testa com uma toalha,<br />
peguei outra vez nos pesos, para os sentir. Não<br />
eram muito pesados, em alta aceleração<br />
suportava pesos maiores sem grande esforço.<br />
Voltei a coloca-lo no descanso.<br />
- Pensei que fosse mais pesado. – Disse.<br />
- Para ti pode não ser, para mim é.<br />
- Porquê?<br />
- És uma nascida no espaço, foste gerada e<br />
criada em alta gravidade. Por isso, és mais<br />
forte.<br />
- O que é ser mais forte?<br />
- Para nascida no espaço falas muito! –<br />
Exclamou.<br />
- Se eu não falar, não me compreende. É<br />
por isso que são tão barulhentos.<br />
- Barulhentos? Nós?<br />
- Ch... – fiz encostando um dedo aos lábios.<br />
– Ouve!<br />
Durante alguns segundos ele calou-se e<br />
ouviu com atenção. O som das máquinas, uma<br />
enchente a falar ao mesmo tempo, palavras<br />
soltas aqui e ali, ruído de fundo. Era isso,<br />
estática de um rádio mal sintonizado. Era isso<br />
o que eu ouvia.<br />
- Natal, não é ruído, é a maneira de nós<br />
comunicar-mos.<br />
- Se tens dor, precisas de dizer que sofres. -<br />
Lamentou<br />
- É verdade. Nós somos diferentes, por isso<br />
não nos misturarmos, por isso não podes sair<br />
do barco. Este mundo é mau para ti. Podes<br />
ficar doente.<br />
- Levas-me ao colo?<br />
- Levo.<br />
Lá voltei eu outra vez para o barco ao colo.<br />
Raul não foi logo embora, mostrei-lhe o meu<br />
mundo e dancei para ele como minha mãe<br />
dançava para o meu pai. Raul ria, os olhos dele<br />
riam, o seu riso era a minha música.<br />
Não voltei a sair do barco. Raul voltou para<br />
me ver dançar . No barco não precisávamos de<br />
falar, eu compreendia-o e ele compreendia-me.<br />
Às vezes pegava-me ao colo e rodopiava<br />
comigo, era feliz e eu era feliz com ele. Mas o<br />
dia da partida estava próximo , meus pais<br />
acabavam os últimos mapas, Raul veio para se<br />
despedir mas eu não estava lá para ele.<br />
Tinha doze anos e vivia o meu primeiro<br />
amor. Meu coração chorava e minha mãe, no<br />
meu quarto, embalava-me ternamente,<br />
beijava-me o rosto molhado pelas lágrimas ,<br />
num silêncio que nunca poderia compartilhar<br />
com Raul.<br />
Os anos passaram, com o tempo, voltei a<br />
dançar, encontramos-nos com outros como<br />
nós, meus irmãos mudaram para outros<br />
mundos, só deles, com as suas mulheres e às<br />
vezes vinham visitar-nos, com os filhos, meus<br />
sobrinhos, doces presentes em todos os meus<br />
aniversários.<br />
No silêncio, os outros voltaram.<br />
Um gigante fechado. Grandes buracos no<br />
casco, faltava-lhe a proa, como uma ferida<br />
enorme, e o gigante estava parado no vazio,
um cadáver em decomposição, uma nave<br />
abandonada. Não. Uma nave assassinada.<br />
Restos de uma supernova nas redondezas,<br />
foram apanhados pela onda e ali ficaram.<br />
Através da janela, imaginei todos aqueles sons<br />
a desintegrarem-se num micro segundo. As<br />
idas e vindas, as pressas em chegar a lado<br />
algum, a terrível solidão por detrás de todo<br />
aquele ruído de fundo, estática de um rádio<br />
mal sintonizado. Como eu tinha pena deles,<br />
tão fechados dentro do seu próprio mundo que<br />
já não conseguiam entrar no mundo dos<br />
outros.<br />
- Mãe, pode haver sobreviventes?<br />
Ela não respondeu, não era preciso, um<br />
gesto e já estava. O escafandro, como uma boa<br />
filha, abandonou o interior da progenitora<br />
connosco no interior. De perto, a devastação<br />
era ainda maior. Parte do casco estava<br />
literalmente derretido, todo o seu interior fora<br />
exposto às mais altas temperaturas e à fúria<br />
tremenda de uma supernova. Procurávamos o<br />
frigorífico. Todas as naves tinham um lugar<br />
mais protegido do que os outros, albergando<br />
uma grande quantidade de casulos de<br />
hibersono. Um seguro de precaução em caso de<br />
acidente.<br />
Chegámos. Centenas de casulos expostos na<br />
vertical em gravidade zero. Alguns tinham-se<br />
avariado e transformaram-se em caixões onde<br />
os restos mortais repousavam já no seu sono<br />
eterno. Homens, mulheres e crianças. Chorei ao<br />
imaginar todas aquelas vidas, que não eram<br />
números , aterrorizadas, com medo, com dor,<br />
procurando a salvação do hibersono , correndo<br />
para a morte. Havia sobreviventes, oito, entre<br />
centenas, que rebocámos para o barco. Entre<br />
eles, através da tampa de vidro, reconheci Raul,<br />
exactamente como o tinha deixado. Um jovem<br />
de dezoito anos ainda em fase de crescimento.<br />
Não se tinham afastado muito, apenas dois<br />
dias do ponto do nosso encontro, onde nos<br />
tínhamos separado, muito tempo atrás. Pensei<br />
no tempo, algo que não fazia uso. Tinha<br />
sobrinhos já homens. Trinta anos? Talvez, mais<br />
um menos um.<br />
Nós sabíamos, vigiávamos aquela estrela<br />
quando a aproximação, depois disso,<br />
fotografámos e estudamos o acontecimento<br />
durante muito tempo, foi tudo registado, mas,<br />
no nosso silêncio, não nos lembrámos que os<br />
outros não tinham como saber, não estavam ali<br />
para estudar o comportamento das estrelas,<br />
apenas para morrer por causa de uma delas.<br />
Sofia Guilherme Lobo
ESTREMECE O CONVENTO, COM<br />
VENTO NAS ENTRANHAS<br />
José de Matos-Cruz<br />
19 de Fevereiro de 1918<br />
A um canto do compartimento austero,<br />
ténue, Grael estava com o corpo estendido<br />
sobre o catre. Dorido, a tiritar, desfeito.<br />
Sem o aperceber. Num plano latente ao<br />
sofrimento, a sua mente flutuava, porém<br />
transida ao tormento carnal. Afinal, o<br />
padecer etéreo transcendia-o. O martírio<br />
físico de Grael, as partes que o supliciavam,<br />
eram as incompletas. As suas costas, com<br />
dois buracos, negros coágulos encobertos<br />
por um lençol de linho, ensanguentado e<br />
descomposto. Grael tentava não se mexer,<br />
fazer esforço, com receio de abrir de novo<br />
as feridas. Há pouco ainda na condição<br />
humana, porém sabia muito bem como<br />
esta era débil e vulnerável. Como poderia,<br />
mesmo, sucumbir. O olhar vítreo de Grael<br />
permitia-lhe enxergar, vagamente, as<br />
pontas dos pés sujos, macerados, e as<br />
unhas desfeitas de tanto se arrastar até<br />
àquele lugar. Quando os braços haviam já<br />
desfalecido, em flacidez, num inútil e<br />
defraudado anseio alado. Fora a última,<br />
desesperada tentativa de Grael - ao<br />
menos, para se manter erguido. Ele que<br />
estava habituado a pairar, gracioso. Num<br />
ritmo harmónico das suas asas, que lhe<br />
tinham sido extraídas. E Grael sentira, em<br />
cada instante, o ímpeto dos músculos, dos<br />
tendões, das veias a desenraizar-se, de<br />
dentro dele cá para fora, até ter diante<br />
de si um despojo caótico de penas<br />
murchas e filamentos rasgados. Grael<br />
era, até então, um ser por essência -<br />
sem projecto ou impacto, e que portanto<br />
não oferecia resistência. Infortunado em<br />
destino. Assim. Inconformado à<br />
existência? Não nascido, virtual, imaturo<br />
àquele turbilhão de inclemência e<br />
desagregação, sobre o qual não possuía<br />
matriz, tudo para ele pareceria virgem e<br />
final, horrendo e terreno. Ninguém e a<br />
alternidade. O seu invólucro frágil,<br />
espírito apenas, ali jazia - devastado,<br />
entretanto, pelas crescentes emoções<br />
primordiais. Por tal fenómeno<br />
extraordinário, também Grael só ia<br />
agora adquirindo consciência de haver<br />
chegado a um edifício imponente,<br />
recôndito. Pedras em ruínas, de um<br />
tempo e de um templo ao abandono.<br />
Algo de um culto que se lhe assemelhava<br />
- destruído e espoliado. Refúgio?<br />
Sepulcro? No seu interior, como tudo o
marciais. Conventos por quartéis. Aqui, em<br />
Portugal, na opção inversa aos guerreiros<br />
que se converteram em Sagrados. A espada<br />
de fogo em contraste ao espectáculo da<br />
morte. Forjando o afã de liberdade, num<br />
mundo consumido pelas labaredas do<br />
aniquilamento. Exércitos que um dia, ainda<br />
ontem, fenderam o vão entre as alturas e<br />
as profundezas. Preenchendo tal vazio com<br />
o urro da animalidade, o pavor avulso, os<br />
combatentes estropiados, os cadáveres em<br />
putrefacção, os esqueletos ávidos da sua<br />
argamassa palpitante. Agora, tudo em Grael<br />
se confundia e distinguia, se definia e<br />
deprimia. Com um gemido, ampliava o<br />
silêncio coral que ia assombrando este país<br />
em decomposição - petrificado quanto ao<br />
signo astral e ancestral, exacerbado pelo<br />
ritual necrofílico. Gerando monstros,<br />
despovoado, exultando com a mutilação,<br />
exaltando ao precipício a sua própria<br />
mística. Um cálice sublimado, corrupto pela<br />
sede da ressurreição. Atraído e dissecado,<br />
eis Grael perante a normalidade.<br />
Despedaçado. Implícito. O fluido da vida era<br />
o sopro que o transformara. O homem,<br />
entre anjo e besta.<br />
Os SobreNaturais
Renato Abreu