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Revista Curinga Edição 22

Revista Laboratorial do Curso de Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.

Revista Laboratorial do Curso de Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.

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Setembro de 2017 | Ano VII<br />

<strong>Revista</strong> Laboratório | Jornalismo | UFOP<br />

<strong>22</strong>


Expediente<br />

<strong>Curinga</strong> é uma publicação da disciplina Laboratório Impresso II.<br />

<strong>Revista</strong> produzida pelos alunos do curso de Jornalismo da Ufop.<br />

Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA).<br />

Departamento de Ciências Sociais, Jornalismo e Serviço Social (DECSO).<br />

Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).<br />

Professores Responsáveis<br />

Frederico Tavares - 11311/MG (Reportagem)<br />

André Luís Carvalho (Fotografia)<br />

Talita Aquino (Planejamento Visual)<br />

Editor de Texto<br />

Matheus Santiago<br />

Editora de Arte<br />

Mariana Viana<br />

Editor de Fotografia<br />

Samuel Consentino<br />

Editores de Multimídia<br />

Guilherme Oliveira<br />

Pedro Nigro<br />

Revisores<br />

Caroline Borges<br />

Ticiane Alves<br />

GOLP<br />

i<br />

Redatores<br />

Amanda Granado<br />

Amanda dos Santos Francisco<br />

Ana Paula Bitencourt<br />

Caio Franco<br />

Eric Costa<br />

Gabriela Vilhena<br />

Lorena Lima<br />

Luana Carvalho<br />

Priscila Santos<br />

como s<br />

tempos de p<br />

Diagramadores<br />

André Nascimento<br />

Carolina Carli<br />

Deborah Alves<br />

Fernanda Covalski<br />

Júlia Rocha<br />

Marina Lopes<br />

Matheus Gramigna<br />

P<br />

Fotógrafos<br />

Daniel Tulher<br />

Iara Campos<br />

Jéssica Avelar<br />

Laís Stefani<br />

Luccas Gabriel<br />

Mariana Brito<br />

Paula Locher<br />

g<br />

Monitor:<br />

Alex Galeno<br />

Endereço:<br />

Rua do Catete, 166 - Centro<br />

35420-000, Mariana - MG<br />

Setembro/2017<br />

g


34 REFORMA<br />

TRABALHISTA<br />

E DE MERCADO32<br />

29 fake news<br />

nconfidencia28<br />

obreviver em<br />

olarização?<br />

or que Dilma?<br />

24<br />

18<br />

26 cronologia<br />

dos glopes<br />

<strong>22</strong> comendo<br />

pelas beiradas<br />

14 trambiques<br />

olpe de AMOR12<br />

olpe de imagem 8<br />

10 golpe de sorte<br />

6<br />

jeitinho brasileiro


Foi a partir da ideia do imponderável que nossas pautas surgiram.<br />

O próprio mote da edição foi uma surpresa, proposto pelos<br />

professores, diferente do que era praticado antes, com temáticas<br />

vindas apenas pelas sugestões dos alunos. “Acontecimento<br />

repentino que deixa marcas”, definição genérica que pode ser<br />

atribuída a palavra golpe, tema desta edição da <strong>Curinga</strong>.<br />

As reportagens iniciais tratam de aspectos “miúdos”, mas<br />

substanciais. Será o Brasil a terra do homem cordial, dos Macunaímas?<br />

A pergunta nos conduz a reflexão sobre as artimanhas<br />

utilizadas por nós na lida diária - jeitinhos, trambiques, gambiarras<br />

- que recaem sobre aspectos éticos da nossa sociedade.<br />

Temos (ou somos) a solução?<br />

Pensar no tema golpe foi um desafio, na medida em que<br />

também procuramos tratar de assuntos que fugissem da literalidade<br />

atribuída à palavra. Nesse sentido, temos a matéria<br />

sobre como o amor nos capta e de que maneira ele pode se<br />

transformar num processo, muitas vezes, doloroso. Também<br />

trazemos uma reflexão do que é entendido por sorte, seja pelo<br />

viés mais científico ou religioso.<br />

Há também discussões contemporâneas mais latentes, referentes<br />

aos rumos da política e economia. Refletimos sobre os<br />

processos que temos assistido no Brasil com o intuito de entender<br />

o papel de cada peça no tabuleiro político nacional. Além<br />

disso, trouxemos um manual de sobrevivência bem humorado<br />

que pudesse sinalizar caminhos de saída em tempos de polarizações<br />

e mal entendidos cada vez mais constantes.<br />

Um ponto latente na construção da revista foi o questionamento<br />

sobre quem são os verdadeiros golpeados. No andar dos<br />

rumos escusos do poder político atual, afirmações do tipo foi<br />

golpe” ou “não foi golpe” inundam as timelines e matérias da<br />

imprensa, mas pouco se fala sobre quem sempre saiu solapado.<br />

Ao fim da edição, em ensaio fotográfico, trazemos os golpes<br />

diários sofridos pelos brasileiros, que não conseguem enxergar<br />

a sociedade como um ambiente de pleno exercício da cidadania,<br />

onde direitos básicos deveriam ser resguardados.<br />

No tempo acelerado em que vivemos, buscamos deixar<br />

nas páginas da <strong>Curinga</strong> um espaço de reflexão. Quem vai<br />

pagar realmente o pato? O que está em jogo? A presente crise<br />

no país é o momento propício para buscar novas visões do<br />

que parece ser um problema antigo.<br />

Editorial


Eu no<br />

Mundo


Identidade<br />

Jeitinho Nosso<br />

Criatividade e malandragem como ícones nacionais<br />

Texto: Eric Castro<br />

Foto: Jéssica Avelar e Mariana Brito<br />

Arte: Matheus Gramigna<br />

O Brasil é conhecido como o “país do jeito”.<br />

Na nossa cultura, para todos os problemas existem<br />

possibilidades de se contornar e resolver situações<br />

adversas. Essa destreza em superar as dificuldades<br />

da vida se mostra benéfica quando caminha pela<br />

espera do favor, em prestar ajuda ao outro ou ser<br />

ajudado. E isso se deve a inventividade do brasileiro,<br />

que consegue encontrar saídas criativas mesmo<br />

em meio a circunstâncias desfavoráveis.<br />

Por outro lado, esse subterfúgio pode estar relacionado<br />

a tomar vantagem ou a uma estratégia<br />

desonesta para conseguir o que se deseja. Pensando<br />

nisso, vem a mente a imagem do malandro, o sujeito<br />

que utiliza de uma série de artimanhas para se<br />

dar bem, e que com sua lábia e carisma consegue,<br />

por vezes, manipular pessoas e resultados.<br />

A figura do malandro foi representada através<br />

de diversos personagens na literatura e cinema,<br />

como o famoso Zé Carioca. Criação de Walt Disney,<br />

do início da década de 1940, “Zé” fazia uma ode<br />

à imagem do malandro carioca, na figura de um<br />

papagaio bem-humorado que vivia de pequenas espertezas.<br />

Embora um tanto romântica e caricatural,<br />

essa imagem aproxima-se do lado negativo do “jeitinho”,<br />

pautado pela ilegalidade e corrupção.<br />

No livro “Dando um jeito no jeitinho” (2000), o<br />

autor e especialista em ética, Lourenço Stelio Rega,<br />

explica que quando se fala em jeitinho brasileiro,<br />

logo se pensa em esperteza, em ludibriar alguém,<br />

pagar suborno e assim por diante. Para o autor, isto<br />

é uma espécie de jogo que demonstra a liberdade<br />

que o homem quer ter, não se prendendo às malhas<br />

da lei, mostrando-se, portanto, superior à própria<br />

norma. Essa flexibilidade de consciência, segundo<br />

ele, faz com que a pessoa que deseja dar um jeito<br />

não se preocupe com as leis ou regras.


Raíz histórica<br />

O professor de Sociologia da SEE-MG (Secretaria<br />

de Educação de Minas Gerais), Rodrigo Furtado<br />

Costa, explica que esse traço marcante do<br />

comportamento do brasileiro é histórico. Desde a<br />

colonização do Brasil por Portugal, tinha-se idéia<br />

que por essas terras, de alguma forma, alguém tentaria<br />

levar vantagem ou “roubar”, especialmente<br />

no que diz respeito a impostos. Tanto que a própria<br />

Derrama - imposto cobrado para complementar os<br />

débitos que os mineradores acumulavam junto à<br />

Coroa Portuguesa -, que tinha em torno de si a dureza<br />

da lei, previa quase por “intuição” que alguém<br />

não pagaria o imposto previsto.<br />

Outro exemplo lembrado pelo professor é a forma<br />

como se entende e vive os valores sociais: “Uma<br />

pessoa nos Estados Unidos ou Europa teria como<br />

palavra final um NÃO ou um SIM de um policial e<br />

isso seria suficiente para a maioria entender que a<br />

regra deve ser respeitada. Já entre nós, a percepção<br />

que se construiu nesse sentido é que a lei é lei mas<br />

pode ser descumprida”. “Somos um povo que gosta<br />

muito de relativizar e questionar, inclusive protocolos<br />

e regras”, sintetiza Costa.<br />

O questionamento do brasileiro em relação às<br />

regras, explica o professor, se dá sobretudo quando<br />

elas não o beneficiam diretamente. Rodrigo cita o<br />

que o historiador Sérgio Buarque de Holanda nomeou<br />

como o “homem cordial”. “Essa cordialidade<br />

não tem a ver com ser amável ou simpático, mas<br />

com a passionalidade. O mesmo homem dito honesto<br />

e trabalhador pode matar em uma situação<br />

de estresse em trânsito”, afirma. Ou, num ato passional,<br />

“descumprir regras que coloquem a todos<br />

em segurança, para se livrar de uma adversidade<br />

ou problema”, complementa.<br />

O especialista em ética, Lourenço Rega, propõe<br />

a existência de um círculo vicioso para o qual<br />

o brasileiro comum é empurrado. Ele diz que, em<br />

primeiro lugar, há um generalizado descaso das<br />

autoridades públicas em relação às necessidades<br />

do povo. Esse descaso alimenta o jeito, que<br />

é induzido pelo espírito livre e pela consciência<br />

“elástica”. O povo sente-se no direito de transgredir<br />

as normas, já que “os impostos são pagos e o<br />

governo faz pouco caso disso”.<br />

Depois, para não ser punido por causa da transgressão,<br />

novamente o brasileiro dá um jeito na situação<br />

- paga suborno. É o ato da corrupção. Por<br />

um lado, esse procedimento protege o transgressor,<br />

mas de outro, estimula o corrupto a continuar no<br />

erro, explica Lourenço. O pagamento do suborno<br />

gera a impunidade, fechando o ciclo com a continuidade<br />

do descaso e assim sucessivamente.<br />

Dilema Ético<br />

De fato, os artifícios do “jeitinho” estão inseridos<br />

na estrutura cultural do nosso povo. Mas é<br />

possível sobreviver a essa sociedade afeita ao jeito?<br />

Lourenço responde que sim. Segundo o autor, para<br />

subverter essa situação é necessário ter “decisão e<br />

caráter” diante das situações que provoquem alternativas<br />

dúbias. Seria essa conscientização moral<br />

que capacitaria o brasileiro comum a superar o dilema<br />

ético sobre escolher entre o fácil e o correto.<br />

O professor Rodrigo pontua: “Embora pareça<br />

uma estratégia de sobrevivência inofensiva, o ‘jeitinho’<br />

na verdade satisfaz os desejos pessoais em<br />

detrimento da maioria”. Questão a se pensar. Na<br />

terra onde para tudo há uma improvisação, o que<br />

está em jogo é a cidadania.<br />

Da criatividade à malandragem<br />

o povo brasileiro utiliza o<br />

seu jeitnho para transformar<br />

a realidade.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>22</strong><br />

7


Habitar<br />

Texto: Priscila Santos<br />

Foto: Jéssica Avelar<br />

Arte: Matheus Gramigna<br />

Qual imagem desejamos projetar de nós mesmos?<br />

Sou o que realmente aparento? Faço o que<br />

realmente desejo? Em tempos de internet, “textão”<br />

no Facebook e vídeos no Youtube, vivenciamos uma<br />

espécie de frenesi coletivo de culto à adoração da<br />

imagem. Nesta sociedade repleta de exigências,<br />

existem padrões de comportamento na vida real<br />

e online para estabelecermos nossas relações com<br />

o mundo. Pensando estritamente em nossos discursos<br />

na web, acabamos por projetar personagens<br />

para além de nossas identidades.<br />

A Psicologia chama esse fenômeno de “golpe<br />

da imagem” - pois, em muitos casos, uma imagem<br />

bem sucedida significa exercer um tipo de poder e<br />

status sobre outras pessoas. Para a psicóloga Carolina<br />

Ziviani, 32, vivemos em grupos desde o nascimento.<br />

Dessa forma, tudo o que aprendemos com<br />

outras pessoas, compõe nosso repertório de normas<br />

e padrões de convívio. “As regras morais são comportamentos<br />

validados pela sociedade, que nos ensina<br />

o que é certo ou errado. Porém, são modificadas<br />

ao longo do tempo e nem sempre são benéficas<br />

a todos”, afirma Ziviani. Para ela, precisamos ser<br />

críticos com relação a comportamentos padronizados,<br />

pois, muitas vezes, essa normatização nos leva<br />

a tentar ser ou aceitar algo que não somos.<br />

Assim, existem experiências (mesmo que negativas)<br />

nesse emaranhado de vivências que são<br />

cruciais para a construção de quem somos. A maneira<br />

com a qual iremos experienciar nossa existência,<br />

bem como o modo que iremos nos afetar<br />

diante dela, dependerá da individualidade de cada<br />

um. Maria Silva*, 28, apaixonou-se pelo professor<br />

de Física, na época cinco anos mais velho que ela.<br />

Inteligente, fã de Beatles e do diretor de cinema espanhol<br />

Pedro Almodóvar, ele parecia ser tudo aquilo<br />

que ela havia sonhado para si. Parecia. Em dois<br />

anos de relacionamento, Maria* vivenciou momentos<br />

de subjugação e violência, terminando a relação<br />

com uma ordem judicial de restrição. “Hoje, depois<br />

de muita terapia, tenho uma vida amorosa estável,<br />

mas tenho plena consciência de que nem tudo que<br />

reluz é ouro”, afirma Maria*.<br />

Ainda que experiências hostis possam se tornar<br />

traumas, algumas pessoas conseguem superar essas<br />

vivências negativas. Foi o que aconteceu com o<br />

fotógrafo Flávio Charchar, 31. Sua imagem pessoal<br />

era algo inimaginável. Durante a infância e adolescência,<br />

foi submetido a situações de vulnerabilidade<br />

e bullying pelos colegas de escola. Restrito a pou-<br />

Quem<br />

você<br />

pensa<br />

que é?


É preciso refletir cada vez<br />

mais sobre nossa imagem<br />

pessoal e seus<br />

desdobramentos positivos<br />

e negativos na sociedade<br />

cos amigos e a diversos estereótipos como o de nerd<br />

e esquisito, conseguiu encontrar uma saída em seu<br />

processo de sociabilização. “Acredito que quando<br />

sofremos bullying, criamos um certo antagonismo<br />

ao grupo opressor. Assim, procurei me apoiar em<br />

pessoas parecidas comigo e fui formando e reafirmando<br />

minhas opiniões e gostos. Foi dessa forma<br />

que subverti meu sofrimento, me tornando quem<br />

hoje eu sou”, reflete Charchar.<br />

Imagem e influências<br />

O termo “influenciadores digitais” é utilizado<br />

para designar pessoas que trabalham sua imagem<br />

online em busca de fama, dinheiro ou reconhecimento<br />

de seus discursos. Com isso, muitos internautas<br />

têm como fontes de consumo de informações,<br />

blogueiras e youtubers. Marcas e eventos<br />

investem diretamente na imagem dessas pessoas,<br />

trocando alguns posts com menções em redes sociais<br />

por dinheiro ou produtos.<br />

Em julho de 2017, o canal de TV por assinatura,<br />

GNT, realizou um encontro chamado TEIA. A<br />

proposta do evento foi promover uma reflexão sobre<br />

novas perspectivas de vida em um mundo que<br />

está em constantes mudanças. Assim, webcelebridades,<br />

blogueiras, cantores, ativistas, jornalistas,<br />

vlogueiros e personagens da web, reuniram-se em<br />

São Paulo. O youtuber Cauê Moura possui mais de<br />

cinco milhões de inscritos em seu canal e participou<br />

dessa última edição. Moura fala abertamente<br />

que, em seu vlog, quem se apresenta é a sua persona,<br />

e os discursos ali colocados fazem parte apenas<br />

da personalidade do personagem. “O caos é o meu<br />

negócio. As maiores repercussões do que eu faço<br />

se propagam muito mais quando os assuntos são<br />

polêmicos ou controversos”, afirma Cauê durante<br />

uma entrevista ao canal de TV.<br />

Para Beatriz Polivanov, doutora em Estudos Culturais<br />

e Mídia e professora da Universidade Federal<br />

Fluminense (UFF), existem padrões estéticos de<br />

imagens que são propagados pela mídia (TV, Internet,<br />

revistas, jornais impressos e rádio), bem como<br />

pela publicidade e redes sociais mais pessoais, como<br />

Facebook e Instagram. Ela afirma que os influenciadores<br />

digitais são pouco questionados, já que o ato de<br />

assumir a opinião de outras pessoas sempre existiu.<br />

Além disso, pouco se sabe sobre essa “prática profissional”,<br />

pois muitas vezes a ideia de digital está<br />

ligada a construção de narrativas sem um grande<br />

suporte midiático por trás. Segundo Polivanov, é<br />

preciso refletir criticamente sobre o amadorismo<br />

característico dos canais de youtubers e blogueiros,<br />

que podem divulgar conteúdos de maneira simplista<br />

com valores questionáveis.<br />

*O nome foi modificado para proteger a identidade da personagem.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>22</strong><br />

9


Comum<br />

Golpe de sorte<br />

Texto: Luana Carvalho<br />

Foto: Iara Campos<br />

Arte: Fernanda Covalski<br />

A linha tênue entre acaso e eventualidade é definida<br />

pela interpretação de cada pessoa. Seria um jogo de<br />

variáveis ou uma mera questão de escolhas?<br />

Para os que acreditam, a sorte é como receber<br />

um presente inesperado e de grande valor. O<br />

filósofo Jonas de Oliveira afirma que, Aristóteles,<br />

já na Antiguidade, falava que a sorte é uma causa<br />

acidental das coisas. Tudo quanto se deve à sorte,<br />

se deve também à causalidade. Para Jonas, a sua<br />

concepção está ligada na crença de que algo afortunado<br />

nos foi oferecido como dádiva do destino ou<br />

dos deuses, como recompensa ou prêmio.<br />

Segundo Cleanil Bastos, monitora do Centro<br />

Espírita Cuiabá, nós estamos sujeitos às leis universais<br />

criadas por Deus e, quando as infringimos,<br />

temos que nos reajustar com elas. Assim, a sorte é o<br />

resultado de nossas escolhas e esforços e não existe<br />

acaso nas leis universais. Os efeitos do nosso livre<br />

arbítrio, contrários ou não à Lei Divina, são o que a<br />

religião chama de sorte ou azar.<br />

Apesar de não ver a fé como sorte, Jonathas Assis,<br />

<strong>22</strong>, diagnosticado com câncer na região mediastinal<br />

do tórax há cinco anos, foi agraciado por sua<br />

devoção. Ele conta que quando descobriu a doença<br />

não se abalou e sabia que seria curado. “Eu e minha<br />

família tínhamos muita fé na cura. Claro que<br />

a situação é difícil e no início tudo é muito obscuro<br />

e duvidoso. Mas eu nunca fiquei pensando que iria<br />

morrer. Então eu acredito que me segurei mais na<br />

fé do que na sorte”, afirma. Jonathas ainda diz que<br />

a sorte é supor que o destino pode ser alterado de<br />

A sorte e o azar andam juntos e estão<br />

ligados ao mundo material.<br />

Jonathas Assis


Com muito estudo e sorte,<br />

Bruno investe todos os dias na<br />

bolsa de valores.<br />

acordo com os acontecimentos aleatórios que ocorrem<br />

nas nossas vidas: “para mim, a sorte e o azar<br />

andam juntos e estão ligadas ao mundo material. A<br />

fé é a crença em algo muito maior que uma invenção<br />

humana”. Hoje, Jonathas está curado.<br />

Estudando a sorte<br />

Na sabedoria popular, quem ganha muito dinheiro<br />

de forma inesperada pode se considerar<br />

sortudo. Segundo o Doutor em Estatística pela<br />

Universidade de Harvard, Ivair Silva, a sorte para<br />

a ciência, até certo ponto, é uma questão matemática.<br />

Eventos como o sorteio da Mega-sena, que<br />

mobilizam a sorte, podem ser tão prováveis de ganho<br />

quanto quaisquer outros eventos sob condições<br />

aleatórias. A probabilidade daquele número<br />

ganhador ser sorteado é igual a probabilidade de<br />

qualquer outra sequência.<br />

No site “Dicas MegaSena”, o matemático<br />

Munir Niss relata que ganhou prêmios de loteria<br />

50 vezes, além da Mega-Sena. Niss conta que<br />

notou a existência de alguns padrões de resultado<br />

e sequências que costumavam sair mais nos<br />

sorteios. Com isso, começou a criar materiais<br />

ensinando como fazer um jogo da na Mega-Sena,<br />

tornando maiores as possibilidades de ganhar.<br />

Ele afirma, por isso, que se tivesse ganho apenas<br />

uma vez, seria sorte, mas foram 50. O estatístico<br />

Ivair confirma o raciocínio de que existem<br />

modelos de probabilidade, como as suposições de<br />

aleatoriedade e independência. “Elas podem ser<br />

úteis para mensurar se determinadas ocorrências<br />

são tão esperadas quanto outras possíveis<br />

realizações do mesmo fenômeno aleatório, ou se<br />

são atípicas”, complementa.<br />

Como o matemático Munir, o estudante de Direito<br />

Bruno Alvarenga, aos 19 anos, conseguiu obter<br />

lucros, investindo na Bolsa de Valores através do<br />

estudo. Ele conta que o aprendizado das estatísticas<br />

é fundamental para lucrar ou não levar prejuízo<br />

em um investimento, a fim de depender menos da<br />

sorte. Bruno conta que o estudo é uma segurança<br />

para operar no mercado sem crer em apostas,<br />

sem depender do acaso, servindo para maximizar<br />

o que ela pode te trazer e minimizar as<br />

perdas. Apenas quando se lucra além do esperado<br />

é sorte. ”Existem variáveis que são<br />

imprevisíveis, como se o executivo da empresa que<br />

você investiu morrer, e logo depois a empresa falir,<br />

você perde todo seu dinheiro”, completa. Para ele, a<br />

sorte é a interação entre nós e o acaso.<br />

Bruno, porém, considera-se sortudo por outras<br />

razões. Após sofrer um acidente de carro, no<br />

qual todos os passageiros se salvaram, sentiu-se<br />

grato por isso. “A falta de sorte que tira a saúde<br />

de alguém é uma falta bem pior do que de alguém<br />

que perdeu dinheiro”, afirma o investidor.<br />

Para ele, a sorte se tornou algo imensurável e,<br />

logo depois, começou a dar mais valor a coisas incalculáveis<br />

do que ao patrimônio.<br />

O estatístico Ivair explica que mesmo nas ocasiões<br />

atípicas como um acidente de carro, que fogem<br />

das explicações matemáticas, não se pode afirmar<br />

nada sobre a existência ou essência da sorte.<br />

“O oculto, o indisponível para avaliação, medição<br />

e replicação, está, por hipótese, ausente nos cálculos<br />

estatísticos”, conclui. A sorte, portanto, não<br />

é uma questão de probabilidade - mas há quem<br />

diga que ela tem suas razões.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>22</strong><br />

11


Sensação<br />

Encontros e<br />

desencontros<br />

“Quem inventou o amor? Me explica por favor…”<br />

cantava Renato Russo em 1997. Até hoje<br />

estamos procurando uma explicação para entender<br />

como se dá esse sentimento que se reinventa, se<br />

modifica e ultrapassa o tempo. Entre tantas crises,<br />

ainda somos capazes de amar?<br />

No mesmo ano em que Renato Russo cantava<br />

aquela canção, o psicólogo social Arthur Aron, da<br />

Universidade Estadual de Nova Iorque, publicou<br />

um estudo que tinha como tese ser possível fazer<br />

com que duas pessoas desconhecidas se apaixonassem<br />

depois de responder a 36 perguntas. Na época,<br />

o teste foi submetido a um casal de desconhecidos,<br />

seis meses depois, eles se casaram. Teria o psicólogo<br />

Aron inventado o amor? Segundo ele, suas conclusões<br />

estavam longe desse sentimento, o que ele<br />

provara era apenas paixão fugaz.<br />

Em busca de um amor de verão, foliões fogem<br />

anualmente de suas rotinas para caminhar rumo ao<br />

carnaval. As cidades lotam de pessoas que esperam<br />

o ano inteiro para ter cinco dias de puro lazer. A<br />

cidade histórica de Diamantina, interior de Minas<br />

Gerais, famosa pelos carnavais nas ladeiras íngremes,<br />

foi palco da história de amor da Ana Paula del<br />

Bisogno e Leandro Franciscani Silveira, em 2009.<br />

Ana Paula, 27, viajou com mais três amigas<br />

para curtir o carnaval com a pretensão de se divertir<br />

e fazer amigos. Ao conhecer Leandro, 29, que por<br />

coincidência se hospedava na mesma casa que ela,<br />

enxergou uma potencial grande amizade. Leandro,<br />

por outro lado, já queria algo mais. E não foi Platão<br />

quem disse que o amor nasce da amizade?<br />

Não foi nos becos de Diamantina que essa história<br />

se concretizou. Porém, por outra coincidência<br />

do acaso, ou do amor, os dois moravam na mesma<br />

cidade, Belo Horizonte, e foi lá que eles se conheceram<br />

melhor e começaram a namorar.<br />

Em 2012, terminaram e seguiram caminhos<br />

diferentes. Mas o destino, ou a sorte, novamente<br />

pregou uma peça de amor no casal. Sete meses<br />

depois, houve o reencontro, novo namoro por<br />

mais um ano, até o noivado. Este que rendeu o<br />

casamento em agosto de 2016, um processo de<br />

aprendizado e carinho, segundo ela.<br />

Eterno enquanto dure<br />

Porém o amor nem sempre se manifesta como<br />

primavera. Em alguns momentos, projeções românticas<br />

e a realidade se chocam. Quando não há<br />

mais saída, o desgaste toma conta das relações e o<br />

que era amor vira outra coisa. Bernardo Amorim,<br />

professor de Literatura da Universidade Federal de<br />

Ouro Preto (Ufop) explica que a literatura, a partir<br />

da fase renascentista, contribuiu para constituir os<br />

valores e ideais em busca de um sentimento puro<br />

e verdadeiro. Romances avassaladores como os de


Texto: Amanda Santos e Marina Lopes<br />

Foto: Paula Locher<br />

Arte: Marina Lopes<br />

“Romeu e Julieta” e “Tristão e Isolda” fizeram parte<br />

da construção da imagem do amor romântico.<br />

Segundo Bernardo, fomos influenciados pela<br />

cultura judaico-cristã que associou o amor ao casamento<br />

para nos livrar do pecado. Assim, para a<br />

Igreja Católica, homem e mulher deveriam constituir<br />

uma família e ser um par para vida eterna.<br />

Esse modelo foi perpetuado até ultrapassar o<br />

tempo e atingir mulheres como Rosa*, 36. Quando<br />

criança sonhava em se casar e seguir em busca<br />

de um final feliz para se sentir completa. Na<br />

primeira tentativa não teve sorte, o namorado a<br />

abandonou após saber que ela estava grávida. Porém,<br />

Rosa* ainda tinha esperanças. No segundo<br />

relacionamento o seu sonho se realizou, se casou e<br />

recebeu as bênçãos da Igreja.<br />

A partir daí, Rosa* pensou que a sua felicidade<br />

estaria garantida e que conseguiria viver<br />

a história de uma família feliz. Ela engravidou,<br />

mas logo em seguida sofreu aborto<br />

espontâneo. Depois disso, seu médico disse que<br />

ela não poderia mais ter filhos.<br />

Jurandir Freire Costa, psicanalista, explica em<br />

seu livro, “Sem Fraude Nem Favor”, de 1998, que<br />

quando a projeção que temos não se realiza na realidade,<br />

a tendência é de um parceiro culpar o outro<br />

por não corresponder às suas expectativas. Ele explica<br />

que “quando não realizamos o ideal imaginário<br />

do amor, buscamos explicar a impossibilidade<br />

culpando a nós mesmos, aos outros ou ao mundo,<br />

mas nunca contestando as regras comportamentais,<br />

sentimentais ou cognitivas, que interiorizamos<br />

quando aprendemos a amar.”<br />

Assim se comportou o marido de Rosa*, desolado<br />

por não poder ter um filho, a trocou por<br />

outra e ela foi abandonada mais uma vez. Depois<br />

de se sentir traída, não contestou e nem<br />

teve tempo de culpar ninguém. Após a separação,<br />

descobriu que estava grávida, esperando uma<br />

menina, a quem decidiu amar.<br />

*O nome foi modificado para proteger a identidade da personagem.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>22</strong><br />

13


Habitar<br />

Trambique nosso<br />

de cada dia<br />

Desde pequenas trapaças a grandes esquemas de<br />

fraude, o ato de ludibriar está mais entranhado na<br />

nossa cultura do que imaginamos.


Texto: Caroline Borges e Lorena Lima<br />

Foto: Mariana Brito e Daniel Tulher<br />

Arte: Marina Lopes<br />

A história do Brasil é marcada por diversas<br />

situações nas quais alguém tenta levar vantagem<br />

sobre outra pessoa. Até mesmo o tipo de colonização<br />

contribuiu para que as pequenas trapaças<br />

do dia a dia fossem aderidas à nossa cultura. De<br />

acordo com o historiador Alessandro Augusto, em<br />

situações de exploração, a busca por soluções fáceis<br />

pode ser considerada uma fuga da realidade.<br />

Nesses casos, é retirado das pessoas aquilo que<br />

elas têm de melhor, sem se oferecer nada em troca.<br />

“É um processo tenso no Brasil, é preocupante,<br />

porque sinalizamos o brasileiro como aquele que<br />

sempre quer levar vantagem. Temos que tomar<br />

cuidado”, afirma Alessandro.<br />

Para a cientista social Giovanna Zandonade, a<br />

corrupção no nível macro, como na esfera política,<br />

é percebida com mais facilidade que a micro, muitas<br />

vezes desconsiderada. “Esse comportamento<br />

está disseminado igualmente nas atitudes individuais.<br />

Nem todos conseguem enxergar as suas<br />

decisões rotineiras como corrupção. A pessoa fura<br />

fila e se vangloria, pega o troco a mais e deixa o<br />

caixa pagar por isso”, explica. A cientista social<br />

defende, todavia, que essa conduta é cultural. “A<br />

cultura é modificada e construída o tempo inteiro”,<br />

explica Giovanna, mas também pode ser reproduzida<br />

a cada vez que um ato é praticado.<br />

Um exemplo são as confusões de Chicó e João<br />

Grilo na obra de Ariano Suassuna, o Auto da Compadecida.<br />

A dupla vive arranjando problemas enquanto<br />

tenta, a todo custo, melhorar suas condições<br />

de vida. Na maioria das vezes, são desonestos,<br />

como quando eles tentam lucrar com o enterro de<br />

uma cachorro no cemitério da Igreja ou vendendo<br />

uma gaita que faz qualquer um “desmorrer”.<br />

De qualquer forma, uma coisa fica clara ao longo<br />

das trambicagens dos personagens: nem todo<br />

trapaceiro faz o que faz por mal. No caso de Chicó<br />

e João Grilo, é apenas a forma que encontraram<br />

para driblar a fome e a pobreza. Em estudo sobre<br />

honestidade e violação de regras nas sociedades,<br />

publicado em 2016, o professor de Psicologia da<br />

Economia na Universidade de Nottingham, Simon<br />

Gächter, e o economista Jonathan F. Schulz, perceberam<br />

que indivíduos que residem em países com<br />

altos níveis de corrupção são mais propensos a atitudes<br />

desonestas do que as que convivem em um<br />

ambiente no qual a maioria dos indivíduos preza<br />

pelo cumprimento das normas.<br />

As pessoas consideram sua<br />

desonestidade justificada pela extensão da<br />

desonestidade que eles vêem em<br />

seu ambiente social<br />

Gächter e Schulz<br />

Os pesquisadores analisaram pessoas e contextos<br />

em 23 países com diferentes níveis de desenvolvimento<br />

socioeconômico. Na avaliação, foram considerados<br />

alguns parâmetros como as leis vigentes,<br />

níveis de criminalidade e fraudes políticas. “As pessoas<br />

consideram sua desonestidade justificada pela<br />

extensão da desonestidade que eles vêem em seu<br />

ambiente social”, concluem Gächter e Schulz.<br />

Quando a pimenta é no seu olho<br />

Há também aqueles que se apropriam da<br />

trambicagem e fazem dela um golpe de publicidade.<br />

Como é o caso de Arlindo Luiz Paiva, o Capelão,<br />

dono do bar Capelão em Viçosa (MG), que<br />

usa da grosseria e dos abusos de preços como<br />

forma de marketing. Um dos casos que contribuiu<br />

para sua fama aconteceu na noite em que a<br />

lei que proíbe qualquer estabelecimento de funcionar<br />

após as duas da manhã em Viçosa entrou<br />

em vigor. O comerciante fechou o bar na hora<br />

imposta, porém, poucos minutos depois, tornou<br />

a abrir as portas, alegando que o seu expediente<br />

iniciava a partir daquele horário.<br />

O que era apenas uma brincadeira com a polícia<br />

local ganhou destaque especialmente nas redes<br />

sociais. Apesar de não ter sido uma estratégia premeditada,<br />

o comerciante que trata a clientela como<br />

“um bando de inseto que gosta de ser explorado”,<br />

beneficiou-se da popularidade em sua página no<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>22</strong><br />

15


Facebook, na qual ele é seguido por mais de 90 mil<br />

pessoas. “Apenas comecei a agir dentro do bar da<br />

forma que agia no dia a dia. A fama veio como consequência.<br />

Não foi nada planejado”, conta.<br />

Infelizmente, nem toda situação pode ser vista<br />

pelo humor e pelas sátiras. Em levantamento feito<br />

pela Delegacia de Estelionato, em 2016, com registros<br />

de ocorrências na Polícia Civil Judiciária do<br />

Estado do Mato Grosso, os golpes mais aplicados<br />

por estelionatários são o falso sequestro, compra<br />

e venda de objetos em sites na internet, o bilhete<br />

premiado e gincana de programas de TV.<br />

O geólogo Sérgio Yngor, 28, quase caiu no golpe<br />

do sequestro em 2014. O trote é passado pelo<br />

telefone e o estelionatário espera a vítima fornecer<br />

informações para que possa prosseguir. “Era um<br />

dia normal quando o telefone tocou depois do almoço.<br />

O código da ligação era 21 e minha irmã,<br />

Iara, tinha ido ao Rio de Janeiro no dia anterior.<br />

A ligação estava ruim e na linha estava uma mulher<br />

chorando, então logo chamei pela Iara”, conta<br />

Sérgio. Assim que o mineiro chamou a irmã<br />

pelo nome, o golpista desligou e passou a ligar<br />

várias vezes com instruções, como enviar determinada<br />

quantia de dinheiro. O geólogo já estava<br />

pronto para enviar a quantia quando sua esposa<br />

conseguiu falar com Iara.<br />

Segundo o Tribunal de Justiça do Distrito Federal<br />

e dos Territórios, o crime de estelionato, art.<br />

171, consiste em atentado contra o patrimônio e<br />

exige quatro requisitos para sua caracterização:<br />

obtenção de vantagem ilícita; causar prejuízo a outra<br />

pessoa;​​uso​de​​artimanha;​​enganar alguém ou<br />

levá-lo ao erro. De acordo com Luiz Henrique Manoel<br />

da Costa, especialista em Direito Penal e Promotor<br />

de Justiça do MPMG, dificilmente alguém<br />

irá preso por causa desse crime, que é considerado<br />

de “médio potencial ofensivo”. “Sendo réu primário,<br />

o acusado tem direito de suspensão condicional<br />

do processo, desde que aceite condições,​​como​<br />

reparar​​o​​dano​​causado​​à​​vítima,”​​afirma.<br />

O caso do mineiro Guilherme Tardin evidencia<br />

essa brecha na lei brasileira. Guilherme mudouse<br />

para Belém, no Pará, em 2016. Devido ao aluguel<br />

superfaturado da cidade, decidiu colocar um<br />

anúncio na internet divulgando uma vaga em seu<br />

apartamento. “Um cara entrou em contato comigo,<br />

me contou uma história sobre ele, e mudou<br />

pra minha casa. No primeiro mês que dividimos<br />

o apartamento, paguei o aluguel e ele ficou de pagar<br />

as outras contas. Ele me enviou diversos comprovantes<br />

que logo se provaram falsos”, relata.<br />

Guilherme chegou a verificar com a síndica o que<br />

estava acontecendo, mas ela se confundiu dizendo<br />

que as contas estavam pagas. Ao descobrir que os<br />

comprovantes eram realmente frios, tudo na casa<br />

já estava para ser cortado. “Quando percebi o que<br />

estava acontecendo de fato, mandei o cara embora.<br />

Pouco tempo depois descobri que quatro pessoas já<br />

haviam feito B.O. contra ele, por roubo”, relembra.<br />

No caso de Guilherme, e de muitos outros brasileiros<br />

que sofreram o golpe do estelionato, não houve<br />

qualquer tipo de ressarcimento.<br />

Os índices de crimes de estelionato crescem a<br />

cada ano. De acordo com a estatística do Instituto<br />

de Segurança Pública (ISP), no Rio de Janeiro,<br />

apenas nos primeiros cinco meses de 2017, foram<br />

registrados 10.115 casos de estelionato pela<br />

Polícia Civil. O número equivale à totalidade de<br />

casos registrados em todo o ano de 2003. O historiador<br />

Alessandro Augusto ressalta que uma<br />

possível solução para os desvios de conduta seria<br />

a reeducação da sociedade. “Seria necessário uma<br />

mudança estrutural enorme e não seriam ações<br />

com resultado imediato”.


Travessia<br />

CURINGA | EDIÇÃO 17


Primavera<br />

Interrompida<br />

O impeachment de Dilma Rousseff impôs uma crise<br />

na democracia do país, invalidou os votos da maioria da<br />

população brasileira e inverteu questões constitucionais.<br />

Texto: Amanda Granado e Ana Paula Bitencourt<br />

Foto: Mariana Brito<br />

Arte: Fernanda Covalski<br />

Ilustração: Janaína Oliveira


“Por Deus, pelos meus filhos, pela minha família,<br />

pelos militares de 1964 e os de agora”. Com<br />

esses porquês, a Câmara dos Deputados aprovou a<br />

admissibilidade do processo de impeachment contra<br />

a presidenta Dilma Rousseff, em abril de 2016. Motivos<br />

que representavam desejos pessoais como forma<br />

de culpabilizar quem não compactuava com os<br />

seus ideais. Escolher Dilma para exercer esse papel<br />

significa entender os contextos aos quais o Brasil e<br />

sua primeira presidenta se submeteram.<br />

Para o cientista político e professor da Universidade<br />

Federal de Ouro Preto (Ufop), Antônio Ferreira<br />

da Silva, os cenários políticos e econômicos<br />

são cruciais para entender o processo deste impeachment.<br />

Um detalhe percebido por ele é que Dilma<br />

possuía uma imagem considerada intransigente<br />

pelos parlamentares, ou seja, havia uma dificuldade<br />

em negociar com ela. “O que faz a Dilma Rousseff<br />

perder o poder é que ela não teve uma base<br />

parlamentar”, argumenta o cientista político.<br />

Essa falta de apoio à presidenta eleita em 2014,<br />

começa quatro anos antes. No seu primeiro mandato,<br />

ela já era conhecida por se opor a esquemas<br />

de corrupção. Dilma iniciou seu segundo governo à<br />

frente de uma crise política, criada por uma oposição<br />

apoiada pela maioria do congresso. Em um país<br />

onde vigora o “presidencialismo de coalizão”, um<br />

arranjo político-institucional baseado em acordos<br />

entre partidos políticos que visam objetivos específicos,<br />

perder apoio é sinônimo de perder a governabilidade.<br />

A insatisfação parlamentar era tanta que,<br />

em 2014, no dia do anúncio de sua vitória para um<br />

segundo mandato, o PSDB e suas coligações já deixavam<br />

claro que não a deixariam governar.<br />

Um “mero detalhe” que também explica a força<br />

que esse tipo de presidencialismo possui, é que<br />

Dilma foi acusada de cometer um crime de responsabilidade<br />

por acionar um ato comum na presidência.<br />

As pedaladas fiscais, praticadas também por<br />

Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da<br />

Silva, só se tornaram impróprias quando Rousseff<br />

as realizou. Logo após o impeachment voltaram a ser<br />

permitidas, tanto que atualmente, Temer as realiza.<br />

“O mesmo Congresso que aprovou os créditos<br />

da Dilma também fomentou a ideia de que era um<br />

crime, isso que é o mais interessante”, afirma Alexandre<br />

Melo Bahia, professor de Direito da Ufop.<br />

Segundo Bahia, as pedaladas fiscais acontecem<br />

para garantir o cumprimento de determinados programas<br />

sociais. Elas ocorrem em um momento que<br />

não há caixa para pagar as contas. Para não atrasar<br />

esses pagamentos, como quem paga esses benefícios<br />

são a Caixa Econômica Federal ou o Banco<br />

do Brasil, os bancos públicos adiantam o dinheiro,<br />

pagam a dívida e depois o governo cobre os gastos.<br />

Ele explica também que o Tribunal de Contas<br />

da União (TCU), órgão que autoriza todos esses<br />

gastos, aprovou todas as despesas relacionadas ao<br />

governo Dilma e ao atual governo Temer. Porém,<br />

naquele momento em que a ideia de impedimento<br />

estava sendo instaurada, o TCU mudou a lei como<br />

forma de legitimar o pedido de impeachment.<br />

O grande problema desse processo foi de caracterização<br />

da pedalada fiscal, pois, segundo o<br />

professor Alexandre, não há encaixes neste procedimento<br />

que caracterizem crimes de responsabilidade<br />

fiscal. “Eles fizeram uma coisa que, no<br />

Direito, se chama analogia. Pegaram uma hipótese<br />

prevista e uma não prevista e fizeram uma comparação”,<br />

afirmando ser ilegítimo. Como se não<br />

bastasse criar uma crise política, a crise econômica<br />

vem por consequência como forma de desestabilizar<br />

o governo Dilma. Na medida em que havia essa<br />

instabilidade, as empresas e o capital estrangeiro<br />

retiraram os investimentos no Brasil. “Ninguém<br />

investe em um país de crise de política”, complementa<br />

o professor Antônio da Silva.<br />

O golpe<br />

Coloca-se, então, uma questão: se não houve<br />

crime, o que significa retirar da Presidência da<br />

República alguém que teve 54,5 milhões de votos<br />

em um processo eleitoral transparente e legítimo?<br />

Para a professora de Jornalismo Econômico e Político<br />

da Ufop, Hila Rodrigues, “embora o processo<br />

do impeachment tenha sido aparentemente legal, foi<br />

O mesmo Congresso que<br />

aprovou os créditos da Dilma também<br />

fomentou a ideia de que era um<br />

crime, isso é que é o mais interessante<br />

Alexandre Melo Bahia<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>22</strong><br />

19


certamente sustentado por ações que se desviaram<br />

das regras legais do país – e foi isso que comprometeu<br />

completamente o funcionamento do regime<br />

democrático”. As pedaladas fiscais foram utilizadas<br />

como forma de explicar o impeachment mas validaram<br />

algo não previsto legalmente.<br />

Chamar o processo de impeachment de golpe não<br />

é um erro. O professor Alexandre o caracteriza, no<br />

âmbito jurídico, como um golpe parlamentar. “Ele é<br />

um golpe em uma forma moderna de falar. A única<br />

razão pelo impeachment ter acontecido é o fato de a<br />

então presidente ter perdido o apoio do Congresso”.<br />

Apesar de áudios de Michel Temer, que comprovam<br />

atos passíveis de investigação, terem sido veiculados<br />

na mídia e o seu índice<br />

de reprovação ser de<br />

95%, conforme pesquisa<br />

publicada pelo Vox Populi<br />

em 2017, nenhum dos oito<br />

processos de impeachment<br />

contra Temer foi acatado<br />

pelo Congresso. Em contraposição, quando Dilma<br />

foi impedida de governar, seu índice de reprovação<br />

era de 65%, de acordo com o Instituto de Pesquisas<br />

Datafolha. “Ouçam bem: eles pensam que nos<br />

venceram, mas estão enganados. Sei que todos vamos<br />

lutar. Haverá contra eles a mais firme, incansável<br />

e enérgica oposição que um governo golpista<br />

pode ter”, disse Dilma no discurso proferido após<br />

sua destituição, em agosto de 2016.<br />

PresidentA<br />

A falta de apoio parlamentar foi um dos principais<br />

motivos para a saída de Dilma, mas outras<br />

questões, como a de gênero, tiveram seus pesos nesse<br />

processo. Dilma, a primeira presidenta do Brasil,<br />

sofreu diversos tipos de agressões pelo simples fato<br />

de ser mulher e estar no poder. Por um lado, segundo<br />

Daniela Borges, professora especializada em<br />

Gênero e Políticas Sociais da Ufop, “a questão de<br />

gênero influenciou em grande parte a opinião pública,<br />

a sociedade brasileira, mas também não foi o<br />

suficiente para explicar o impeachment .” Para ela, o<br />

processo poderia ter acontecido com um homem,<br />

porque o impeachment é admissível pela Constituição,<br />

mas certamente não seria tão agressivo. “Se<br />

a gente for observar a subida da Dilma no poder,<br />

desde o primeiro até o último dia, o processo foi<br />

muito violento. Como exemplo, temos a polêmica<br />

de quando ela disse que queria ser chamada de presidenta,<br />

foi uma repercussão tamanha.”<br />

Quando o Senado votou a admissibilidade do<br />

impeachment, Dilma, torturada na ditadura, passou<br />

15 horas em frente a defensores de militares<br />

e da “boa família”, sofrendo outra “tortura”: foi<br />

sabatinada por acusações destemperadas, em sua<br />

maioria de homens que pareciam não aceitar uma<br />

mulher no poder. “A questão de gênero também foi<br />

decisiva, em especial porque a sociedade brasileira<br />

– além da herança escravocrata<br />

e oligárquica que<br />

carrega – é extremamente<br />

machista”, afirma Hila.<br />

A imagem da presidenta<br />

foi difundida pelo país<br />

Hila Rodrigues<br />

como a mulher histérica<br />

que não sabia governar. Na capa da revista ISTOÉ,<br />

publicada em abril de 2016, Dilma aparece gritando.<br />

A foto original correspondia a um momento de<br />

euforia da presidenta eleita durante jogo da seleção<br />

brasileira de futebol na Copa do Mundo de 2014.<br />

Mas a revista transformou-a em sinônimo de fúria,<br />

deturpando contextos, o que ilustra bem o preconceito<br />

de gênero nesse processo. “É uma capa sexista,<br />

que só faz comprovar que o machismo é a regra<br />

para aqueles que querem as mulheres fora da política”,<br />

esclarece a professora de jornalismo.<br />

Estereotipar a mulher como alguém que só<br />

detém poder dentro de casa e possui tendência à<br />

masculinidade, quando é autoritária, é um dos<br />

exemplos que confirmam o machismo presente<br />

neste episódio da história do Brasil. Dilma também<br />

foi estampada com as pernas abertas, em adesivos<br />

colados no reservatório de combustível de carros,<br />

quando o preço da gasolina aumentou, em julho de<br />

2015. Dois anos depois, novo aumento de preços<br />

aconteceu no governo Temer, mas nada foi feito.<br />

A comparação feita entre Marcela Temer e Dilma<br />

é outro caso. A primeira é chamada pela revista<br />

Veja de “Bela, Recatada e do Lar”, em uma<br />

A questão de gênero [...] foi<br />

decisiva [...] porque a sociedade brasileira<br />

é extremamente machista


mistura de personalidade e forma de agir. A segunda,<br />

é por vezes considerada machona e histérica,<br />

que não sabia falar em público ou articular<br />

perante os congressistas. “A Marcela é boa, do lar,<br />

da casa, ela é uma representação boa da mulher. A<br />

imagem dela não pode ser violentada, porque ela<br />

não ousa sair daquele lugar que a sociedade separou<br />

para ela. A outra não, a outra ousou sair”,<br />

complementa a professora Daniela.<br />

Outra leitura de como a mídia foi crucial para<br />

estabelecer essa relação misógina foi a expressão<br />

nacionalmente conhecida por “tchau, querida”.<br />

Apesar da expressão possuir uma entonação amigável,<br />

neste caso ela foi utilizada em tom pejorativo.<br />

Segundo Daniela, “todo mundo que a chamou<br />

de querida não a tratava como uma pessoa querida,<br />

não era essa a mensagem verdadeira. A mensagem<br />

verdadeira era um tchau a mulher no poder<br />

e um viva aos interesses da elite.”<br />

A professora Hila acrescenta que a palavra pronunciada<br />

pelos deputados soou como deboche: “na<br />

boca deles, tinha esse sentido de atribuir à figura da<br />

Dilma a incompetência e inadequação para o cargo<br />

que ocupava. Não acredito que diriam “tchau, querido”<br />

para um homem, fosse ele o Lula, o Fernando<br />

Henrique, o Fernando Collor ou o José Sarney – só<br />

para citar alguns dos homens que já ocuparam a<br />

cadeira presidencial antes dela”, enfatiza.<br />

Forças desiguais<br />

Falar de impeachment significa falar da<br />

influência que os meios de comunicação tiveram<br />

na reprodução de notícias que envolviam o governo<br />

Dilma e como isso interferiu na formação de<br />

opinião pública. Apesar do contexto existente, os<br />

veículos de comunicação nacionais corroboraram<br />

a imagem de crise e instabilidade. Além de<br />

insatisfação, isso provocou no público a ideia de<br />

que Dilma era culpada por todos os problemas que<br />

o Brasil passava. Como aponta a professora Hila, o<br />

comportamento da mídia convencional brasileira foi<br />

decisivo para a queda de Dilma Rousseff. “Os meios<br />

de comunicação mais tradicionais – a Rede Globo e<br />

as demais emissoras de TV aberta, assim como os<br />

jornais Folha de S. Paulo, o Estado de S. Paulo, as revistas<br />

ISTOÉ, Veja, Época e Exame, entre outros meios de<br />

comunicação (muitos deles, aliás, pertencentes<br />

a um mesmo grupo empresarial) – apoiaram<br />

claramente todo esse processo de sucateamento<br />

do Estado”. Embora atualmente a mídia impressa<br />

e eletrônica estejam enfrentando uma crise de<br />

credibilidade, ainda é muito expressivo o número de<br />

pessoas que se informam pela televisão.<br />

Segundo pesquisa sobre hábitos de consumo<br />

de mídia no Brasil, realizada pelo Ibope em 2016,<br />

mais de 60% dos brasileiros ainda preferem se informar<br />

pela TV quando querem acompanhar o que<br />

está acontecendo no país. Para a professora Hila,<br />

se tivéssemos uma mídia democrática, com diversidade<br />

e pluralidade de informações, teríamos uma<br />

opinião pública autônoma e talvez a ex-presidenta<br />

Dilma Rousseff “não teria sido derrotada pelas forças<br />

obscuras que atualmente conduzem o país”.<br />

Além disso, outra análise que esclarece o poder<br />

midiático perante a população é a pesquisa<br />

publicada em dezembro de 2016, coordenada pelo<br />

professor Nemézio Amaral Filho, professor da Universidade<br />

Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Nela,<br />

comprova-se que os veículos O Globo, Folha de S. Paulo<br />

e Estado de S. Paulo contribuíram para a instauração<br />

do processo de impeachment. Foram verificadas<br />

143 matérias, considerando se eram neutras, contra<br />

ou favor do então governo. O resultado mostrou<br />

que as notícias foram majoritariamente contra: O<br />

Globo com 77%; Folha de S. Paulo, 61%; e Estado de S.<br />

Paulo, 78%. A mídia se fez uma das grandes forças<br />

de desestabilização política e econômica, junto às<br />

manifestações conservadoras nas ruas que tiveram<br />

comandos midiáticos ativos na intenção de criar<br />

um ambiente para legitimar o impeachment.<br />

Como exemplificado pela pesquisa, do mesmo<br />

modo que a mídia “derrubou” Dilma e deu força<br />

ao impeachment, ela também age de forma aliada<br />

ao governo vigente. Manifestações contra Michel<br />

Temer não são disseminadas, ao contrário do que<br />

acontecia na outra gestão. Um exemplo são os panelaços,<br />

protestos que grupos anti-Dilma organizavam<br />

para dar estímulo à queda da presidenta eleita.<br />

Na atual conjuntura política do país, com todos<br />

os cortes na educação, saúde e programas sociais,<br />

além das reformas que prejudicam o trabalhador,<br />

as panelas estão mudas e as flores murcharam.


Comendo pelas<br />

beiradas<br />

De​​grão​​em​​grão​, ​a​raposa​​encheu​​o papo.​​<br />

O​​político​​retratado​​neste​​perfil​​que​​o​​diga.<br />

Sorrateiro, entrou na vida de todos, a contragosto<br />

de muitos. Considera-se cidadão de bem. Há<br />

quem diga que use do poder para conquistar benefícios<br />

próprios. Há quem lhe dê a tarefa de um<br />

messias, que veio para salvar a população dos tropeços<br />

causados por seus colegas de ofício. Quando<br />

precisa se expressar por meio da escrita, opta por<br />

protocolos, documentos e pelo português elegante,<br />

ao menos no entendimento dele.<br />

Em 2015, escreveu uma carta com a seguinte<br />

previsão para o futuro do Brasil: “passados estes<br />

momentos críticos, tenho certeza de que o país<br />

terá tranquilidade para crescer e consolidar as conquistas<br />

sociais”. Era o gatilho, juntamente com<br />

outras revelações políticas, para o golpe à democracia<br />

vivido atualmente. Recapitulando esse episódio<br />

de grande burburinho midiático, vê-se que<br />

os rumos pensados são outros.<br />

Mais legalista que legal, assumiu ilegítimo<br />

papel de destaque. Elaborou discursos prolixos.<br />

Alçou um importante posto por meio de recursos<br />

não muito éticos. Com cautela, fez promessas às<br />

elites. Trouxe à tona, com seu protagonismo, opiniões<br />

conservadoras. Alinhado com nomes poderosos<br />

e controversos, gosta de conversas de bastidores,<br />

noturnas. No dia 27 de junho de 2017,<br />

reuniu-se na casa de Gilmar Mendes, junto com<br />

os amigos Moreira Franco e Eliseu Padilha. A ocasião<br />

foi tratada com desconfiança, pois a reunião<br />

não estava em sua agenda oficial.<br />

A lista das 60 pessoas mais poderosas do Brasil,<br />

eleitas pelo portal Último Segundo em 2013, o define<br />

como “protocolar, litúrgico, e um dos poucos<br />

políticos que, em vez da voz alta, usa os ouvidos<br />

para tomar decisões”. Os adjetivos usados para caracterizá-lo<br />

seguem sempre a ideia de que se trata<br />

de um homem comedido.<br />

Passado à limpo<br />

Formou-se em Direito pela Universidade de São<br />

Paulo (USP) em 1963, seguiu os estudos até concluir<br />

o doutorado pela Pontifícia Universidade Católica<br />

de São Paulo (PUC-SP) em 1974, instituição<br />

na qual ministrou aulas de Direito Constitucional e<br />

coordenou pós-graduações na área jurídica. De sua<br />

formação surtiram alguns frutos: livros.<br />

O primeiro deles é de 1982, sobre Direito<br />

Constitucional, e colaborou para torná-lo uma<br />

referência bibliográfica. Escreveu outra obra em<br />

2006 sobre política e democracia, e recentemente,<br />

em 2012, um livro sobre poesias. Ironicamente,<br />

obteve sucesso enquanto jurista há 35 anos e<br />

atualmente sua literatura vive às sombras de poesias<br />

transformadas em piadas.<br />

Exerceu o ofício da advocacia por sete anos e<br />

foi também Procurador do Estado de São Paulo –<br />

cargo esse que conseguiu por indicação do então<br />

governador Franco Montoro - entre 1983 e 1984.<br />

Na esteira das nomeações foi responsável pela segurança<br />

do estado paulista de 1984 a 1986. Defendeu<br />

posições conservadoras, dentre elas o aumento<br />

da estrutura da Polícia Militar e a legalização das<br />

empresas de segurança privada. À época, o estado<br />

enfrentava uma onda de violência.<br />

Em 1993, voltou à Secretaria de Segurança Pública<br />

do Estado de São Paulo. Nesta época ocorreu<br />

o Massacre do Carandiru, resultando em um grave<br />

dilema ético após 111 presos terem sido assassinados<br />

em uma rebelião com a Tropa de Choque da<br />

Polícia Militar. O então Secretário buscou dialogar<br />

com órgãos dos direitos humanos, e como medida<br />

para a situação, exigiu que os policiais envolvidos<br />

no caso buscassem tratamentos psiquiátricos.<br />

Em 1992, ocupou o cargo de Procurador do Estado<br />

tendo se licenciado da reeleição como Depu-


tado Federal após dois dias de mandato para isso.<br />

Esteve à frente de outras Secretarias também.<br />

Ocupou o cargo de Deputado Federal em 1987<br />

como suplente, participando da Assembleia Constituinte.<br />

Votou contra a pena de morte, a favor<br />

da legalização do aborto e a favor do presidencialismo.<br />

Posições isoladas, perdidas no tempo. Sua<br />

história hoje evidencia que é de seu agrado misturar<br />

mercado, política e moral cristã.<br />

Um discurso do ano de 2016, deixa isso claro:<br />

“Peço a Deus que nos abençoe a todos. A mim, aos<br />

congressistas, aos membros do Poder Judiciário e<br />

ao povo brasileiro para estarmos sempre à altura<br />

dos desafios. E aos brasileiros, para que em breve<br />

tempo, possamos agradecer a Ele pelo trabalho<br />

que, a partir de agora, será feito”.<br />

Texto: Caio Franco<br />

Foto: Samuel Consentino<br />

Arte: Júlia Rocha<br />

Ilustre impopular<br />

Durante dois anos comandou a Presidência<br />

da Câmara, fase em que procurou benefícios<br />

para o grupo partidário ao qual pertencia. Era<br />

1997. Foi eleito para presidir a cadeira novamente<br />

em 1999. Nesse mandato negou o impeachment de<br />

Fernando Henrique Cardoso.<br />

Entre 2009 e 2010, voltou a assumir o cargo.<br />

Tornou-se próximo do governo petista, do qual se<br />

afastou ao perceber que seus interesses não eram<br />

acatados, como informou na carta mencionada no<br />

início deste texto: “Perdi todo protagonismo político<br />

que tivera no passado e que poderia ter sido<br />

usado pelo governo. Só era chamado para resolver<br />

as votações do PMDB e as crises políticas”.<br />

O destaque que afirma ter alcançado perante<br />

a sociedade pode ser questionado. Afinal, justo<br />

quando chegou ao momento de maior visibilidade,<br />

sua popularidade caiu. De acordo com pesquisa<br />

divulgada em julho de 2017 pelo Instituto Brasileiro<br />

de Opinião Pública e Estatística (IBOPE),<br />

apenas 5% da população aprova as decisões que<br />

tem tomado junto à sua equipe.<br />

Segundo a BBC Brasil , “aos 75 anos, o paulista<br />

de Tietê teve uma trajetória discreta, mesmo acumulando,<br />

até pouco tempo atrás, quase 15 anos no<br />

comando do PMDB”. É coerente afirmar que conseguiu<br />

fama como autor de um dos livros mais estudados<br />

sobre direito constitucional.<br />

Porém, seus predicados acadêmicos e profissionais<br />

não podem ser endeusados, já que defende<br />

reformas trabalhistas e previdenciárias não<br />

democráticas. Mais ainda, é intrigante saber que<br />

um dos livros sobre Direito mais estudados no país<br />

seja de autoria de alguém que toma posições consideradas<br />

inconstitucionais.<br />

Instável como o Brasil, o personagem retratado<br />

neste perfil tem procurado de todas as maneiras<br />

continuar onde está, mesmo que o custo das manipulações<br />

feitas em nome do poder seja sua impopularidade<br />

e a ruptura de direitos adquiridos pela<br />

sociedade. Temê-lo? Não! É preciso buscar soluções<br />

enquanto as conquistas sociais vão se esvaindo.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>22</strong> 23


como sobreviver em tempos de polarização<br />

A <strong>Curinga</strong> resolveu listar algumas<br />

dicas bem humoradas e de eficácia<br />

duvidosa para lidar com as tretas<br />

ideológicas do cotidiano.<br />

Texto: Caio Franco<br />

Foto: Luccas Gabriel<br />

Arte: Júlia Rocha<br />

Se sua família é completamente<br />

inadequada a seus princípios crie a<br />

seguinte regra: “esses assuntos não<br />

serão falados na minha presença, é<br />

uma questão de respeito”.<br />

ATENçÃO<br />

O ambiente de trabalho, por si<br />

só, já é complexo. Várias pessoas,<br />

queridas, não queridas. Em épocas<br />

de turbulência política, a tendência<br />

é que isso interfira, especialmente<br />

quinta-feira, naquele happy hour.<br />

Entre uma cerveja e outra os ânimos<br />

ficam exaltados, tudo propício para<br />

descontar a raiva que se tem de um<br />

colega e dizer que é por conta das<br />

opiniões dele. Atenção: não caia<br />

nessa! Sabe por quê? A discussão<br />

tem hora para acabar, a raiva não.<br />

Entra presidente, sai presidenta.<br />

Na escola, um aluno amigo seu<br />

comentou: “gente de esquerda é<br />

vagabundo”. Você ficou com raiva.<br />

Mas, entenda, a melhor saída é ignorar.<br />

Não é interessante brigar com<br />

os amigos.<br />

Se no dia a dia já é complicado,<br />

imagine em data especial. Sim, é no<br />

natal, no aniversário do filho da prima<br />

da avó, na festa de batizado que<br />

mora o maior perigo dessas épocas<br />

de polarização. É amigo da família,<br />

é primo homofóbico, é tia-avó que<br />

veio especialmente para a ocasião<br />

e que há vinte anos não aparecia.<br />

Olha, para esses casos, a dica é: focar<br />

na comida, na bebida e se a festa for<br />

sua, nos presentes!<br />

Essa dica vale para todas as ocasiões<br />

da sua vida online: caso você<br />

seja um pouco estressado e tenha<br />

vontade de brigar muito na internet,<br />

escrever “textão”, fazer comentário<br />

na página alheia, bloquear familiar<br />

de rede social, repense esse desejo.<br />

As polêmicas da internet têm sucesso<br />

curto e, pouco depois, tudo vai sumir<br />

entre os algoritmos.<br />

Caso você se sinta muito politizado<br />

e pense que é seu dever conscientizar<br />

as outras pessoas, saiba<br />

que, às vezes, não vale a pena a briga.<br />

Não é todo mundo que está disposto<br />

a entender opiniões alheias e<br />

nem sempre o correto está só de um<br />

lado da discussão.<br />

Não acredite em todas as informações.<br />

É importante pesquisar os<br />

fatos. Crie sua própria opinião, mas<br />

estude! História, inclusive. Os boatos<br />

estão por aí.


O Mundo<br />

em Mim


Comum<br />

democracia sem memória<br />

Texto: Matheus Santiago e Pedro Nigro<br />

Arte: Deborah Alves<br />

Desde a sua independência, o Brasil vive<br />

momentos de instabilidade, que culminam em<br />

reviravoltas no campo político. O cenário social<br />

instável não é exclusividade nossa. Países latinoamericanos<br />

também experimentaram momentos<br />

de crise e consequentes golpes de estado. Uma<br />

realidade une essas nações: a desigualdade social.<br />

André Freixo, doutor em História Social pela<br />

UFRJ, afirma que a democracia, considerada<br />

como regra, se fez exceção na história brasileira. O<br />

professor explica que as decisões políticas estiveram<br />

nas mãos de grupos reduzidos, que se revezaram<br />

no poder nacional. Assim, os projetos para o Estado<br />

tendiam a ser motivados por pontos que não se<br />

referiam necessariamente à vontade democrática.<br />

Ele explica: “O Brasil figura entre essas sociedades<br />

democraticamente inseguras, incipientes. As<br />

questões que ficam para nós hoje são ainda as<br />

análogas, não direi idênticas às que emergiam na<br />

fundação da República”.<br />

O conceito de golpe de Estado é impreciso e se<br />

modificou com o tempo, conforme novos regimes<br />

políticos surgiram. André explica: “em geral, golpes<br />

são conduzidos em nome de um projeto ou plano<br />

de governo alternativo ou diametralmente oposto<br />

ao que está no poder; para o qual a ideia de uma<br />

‘transição’ política, tutelada, é necessária”. O<br />

professor comenta que muitas vezes são aplicadas<br />

medidas impopulares como “suspensão de leis ou<br />

direitos básicos dos cidadãos em nome de uma<br />

reorganização política e econômica”. Porém, não há<br />

nenhuma qualidade intrínseca a golpes de estado a<br />

que podemos afirmar serem somente progressistas<br />

ou conservadoras. É preciso analisar o contexto em<br />

que eles são aplicados.<br />

Acompanhe agora alguns momentos de<br />

inconstância política dos quais o Brasil passou em<br />

sua história recente, comentados pelo professor:<br />

1840| Golpe da Maioridade<br />

Os primeiros anos de nossa República são marcados<br />

pela instabilidade política. Desde que D. Pedro I<br />

abdicou do cargo, o país se viu sem um comandante<br />

do Império. Anos se passaram, até os oligarcas da<br />

época, preocupados com as revoltas em diversos locais<br />

do país, colocarem o Príncipe Regente Pedro II, ainda<br />

menino, no cargo de Imperador.<br />

“A preocupação máxima dos Regentes<br />

era manter ‘a ordem’, sufocando as<br />

revoltas populares (como a da Cabanagem,<br />

no Pará; a Farroupilha, no Rio<br />

Grande do Sul; Revolta dos Malês, na<br />

Bahia; entre outras) e mantendo um<br />

mínimo consenso na administração”.<br />

1889 | Proclamação da república<br />

Outro golpe deu fim ao segundo Reinado. A insatisfação<br />

de setores do exército brasileiro culminou<br />

com medidas propostas pelo Visconde de Ouro Preto,<br />

então Ministro do Império, que iam de encontro ao<br />

prestígio dos militares. A Coroa não apresentou qualquer<br />

resistência à investida militar, tendo se exilado<br />

em Portugal depois da tomada do poder.<br />

“O cientificismo e o positivismo foram<br />

balizas fundamentais na construção<br />

de um sentimento de superioridade<br />

moral e identificação entre os jovens da<br />

‘mocidade militar’ já bastante avançada<br />

em termos de ideais republicanos”.


1930| Vargas<br />

O período em que o Presidente gaúcho esteve no<br />

poder foi marcado por instabilidade. Em 1930, Vargas<br />

e aliados denunciaram o sistema de oligarquias, que<br />

tinha como prática instituída a compra de votos. A<br />

partir daí a Velha República eclodiu. Em 1935, o presidente<br />

foi forçado a convocar uma nova constituição<br />

frente a uma iminente “ameaça comunista” que pairava<br />

pelo país. Em 1937, deu-se início à ditadura do<br />

Estado Novo, com a ajuda de militares. Por fim, em<br />

1945, seu poder teve fim com a perda do apoio dos exaliados<br />

militares que o destituíram.<br />

“Derrotado nas urnas, Vargas e os<br />

opositores a Júlio Prestes conduziram<br />

uma campanha conspiratória que<br />

denun ciava a fraude eleitoral”.<br />

1964| Golpe civil-militar<br />

Na volta da jovem democracia, a renúncia de Jânio<br />

Quadros trouxe novamente o tema crise ao país. Conspirações<br />

e a Guerra Fria deixaram em xeque a posse do<br />

vice João Goulart, que estava na China. A classe política<br />

buscou sobrevida no parlamentarismo comandado<br />

por Tancredo Neves, e um plebiscito selou a volta de<br />

Jango ao poder. O suficiente para a alta elite política,<br />

militar e intelectual apoiar de forma massiva o golpe<br />

contra o presidente.<br />

“Interesses de uma nova burguesia,<br />

vinculada ao capital multinacional<br />

impulsionou tantos outros segmentos<br />

da sociedade civil a apoiar a tomada<br />

do poder”.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>22</strong> 27


Comum<br />

Modernização<br />

para quem?<br />

Após aprovação de novas legislações trabalhistas,<br />

o futuro do trabalhador brasileiro é incerto.<br />

Texto: Priscila Santos e Ticiane Alves<br />

Foto: Paula Locher<br />

Arte: Fred Alves


B* trabalha como funcionário terceirizado há<br />

mais de 10 anos para empresas que prestam serviços<br />

à Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).<br />

Segundo ele, é comum que essas empresas decretem<br />

falência, deixando os funcionários sem receber<br />

seus direitos. B* sente-se prejudicado por não ter<br />

estabilidade em seu trabalho, por não possuir diálogo<br />

direto com a empresa e por trabalhar em condições<br />

precarizadas, sem equipamentos adequados.<br />

Além disso, conta que em sua última contratação<br />

teve seu cargo rebaixado, diminuindo, assim, o seu<br />

salário. “Me mudaram de cargo, meu salário caiu.<br />

Falaram que se eu quisesse continuar ia ser assim,<br />

porque tem muita gente lá fora para pegar minha<br />

vaga”. A doula Laura Muller se viu obrigada a pedir<br />

demissão de uma empresa no sul do Brasil, na qual<br />

trabalhou por quatro anos, após a instituição não<br />

concordar em flexibilizar os horários dela quando<br />

voltou da licença maternidade. Laura precisava ficar<br />

com o filho e não podia trabalhar em horários<br />

noturnos, nos quais não havia funcionamento de<br />

creches, direito que lhe foi vetado usufruir.<br />

Essas são situações que todo mundo conhece.<br />

Desde o impeachment que afastou a presidenta<br />

eleita Dilma Rousseff, em 2016, algumas medidas<br />

controversas foram aprovadas pelo Congresso Nacional,<br />

danificando direitos e legalizando práticas<br />

já muito presentes no nosso cotidiano, que beneficiam<br />

os patrões e, consequentemente, prejudicam<br />

o trabalhador. As perspectivas de trabalho dos brasileiros<br />

sofreram grandes mudanças em 2017 com<br />

a aprovação da Lei da Terceirização e do Projeto de<br />

Lei da Câmara da Reforma Trabalhista, em março e<br />

julho respectivamente. As informações disponibilizadas<br />

na página do Planalto mostram que as modificações<br />

proporcionadas por essas reformas mexem<br />

com pontos históricos da Consolidação das Leis do<br />

Trabalho (CLT) referentes à contratos, férias, horas<br />

de trabalho, e criam medidas para regulamentar as<br />

atividades dos trabalhadores terceirizados.<br />

Antes, as empresas só podiam terceirizar as<br />

funções que não representassem as principais atividades<br />

da instituição, de acordo com a lei brasileira.<br />

Agora todas as atividades de uma empresa privada<br />

e algumas atividades do setor público poderão<br />

ser terceirizadas. O 10º. artigo da lei determina que<br />

“qualquer que seja o ramo da empresa tomadora de<br />

serviços, não existe vínculo de emprego entre ela<br />

e os trabalhadores contratados pelas empresas de<br />

trabalho temporário”. Portanto, a previsão é que<br />

uma enorme parcela dos trabalhadores perca o vínculo<br />

empregatício direto e passe a exercer suas funções<br />

sob um novo regime sem estabilidade. Os parágrafos<br />

desse artigo explicam que os contratos de<br />

trabalho temporário com um mesmo empregador<br />

poderão ser estabelecidos pelo prazo de 180 dias,<br />

com possibilidade de renovação, substituindo o limite<br />

de 90 dias da lei anterior. A condição de inexistência<br />

de vínculo empregatício entre a empresa<br />

tomadora de serviço e o empregado terceirizado colocará<br />

este em situação de vulnerabilidade quanto<br />

às responsabilidades trabalhistas do contratante.<br />

A aprovação da Reforma Trabalhista seguiu<br />

discursos que defendem a modernização da CLT,<br />

bem como a garantia de seguridade jurídica para<br />

os empregadores. Órgãos como a Federação Brasileira<br />

dos Bancos (FEBRABAN) e Federação das<br />

Indústrias de São Paulo (FIESP) criaram cartilhas<br />

e notas oficias nomeando a Reforma de “modernização<br />

trabalhista”. O advogado da Federação das<br />

Indústrias de Minas Gerais (FIEMG), Gustavo Lemos,<br />

acredita nisso: “Nós temos a posição de que<br />

ela é muito positiva, esperada e necessária, porque<br />

as relações trabalhistas já vêm engessadas há muitos<br />

anos. A CLT é de 1943, de uma época em que<br />

os trabalhadores eram de âmbito rural e hoje isso<br />

mudou”. O advogado acredita, também, que existia<br />

a necessidade de tornar as relações de trabalho benéficas<br />

para as duas partes, além de fazer com que<br />

os empresários se interessem mais em investir: “As<br />

relações não podem ser boas só para um lado. Hoje<br />

não tem mais isso de empregado que não sabe das<br />

leis, patrões que massacram os empregados. A lei<br />

trabalhista antiga é muito rígida e não flexibiliza<br />

nada. Essa flexibilização vai estimular empresas a<br />

quererem investir aqui, consequentemente haverá<br />

empregos. Hoje o empresariado tem medo de investir<br />

na economia brasileira”, ele afirma.<br />

Uma das críticas feitas a todas essas mudanças<br />

na legislação trabalhista brasileira é a falta de diálogo<br />

com a população. Na consulta pública realizada<br />

na página oficial do Senado, o PL da Reforma<br />

foi rejeitado por mais de 172.168 brasileiros, contra<br />

16.791 que disseram sim a ele. A Lei da Terceirização<br />

foi aprovada pelo congresso, mesmo tendo<br />

obtido apenas 8.894 votos populares a favor, contra<br />

49.621 que votaram não.<br />

Me mudaram de cargo,<br />

meu salário caiu. Falaram que se eu<br />

quisesse continuar ia ser assim<br />

porque tem muita gente lá fora para<br />

pegar minha vaga.<br />

B*<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>22</strong><br />

29


O que muda para o trabalhador<br />

Durante uma reunião convocada pelo Conselho<br />

Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)<br />

em 26 de abril de 2017, mais de vinte instituições<br />

e órgãos do trabalho identificaram diversas inconstitucionalidades<br />

na Reforma aprovada. Exemplo<br />

disso é a compensação de jornada de trabalho sem<br />

negociação coletiva, prevista no Artigo 58-A, 5º<br />

parágrafo da CLT. Os patrões agora contarão com<br />

a possibilidade de decidir junto ao seu empregado<br />

sobre o banco de horas. Antes, esse banco deveria<br />

ser ajustado pelo sindicato. Agora o patrão passará<br />

a decidir sobre isso, podendo descontar as horas extras<br />

de trabalho de sua carga horária em um prazo<br />

máximo de seis meses.<br />

Outra mudança é a possibilidade da jornada de<br />

12h de trabalho (previsto do Artigo 59-A da CLT),<br />

com 36 horas de descanso. Isso já acontecia em<br />

categorias como vigilantes, profissionais de saúde,<br />

entre outros, sob negociação sindical coletiva.<br />

Com a Reforma, não é preciso uma mediação do sindicato,<br />

e pode ser aplicada a qualquer profissional.<br />

O Conselho Federal da OAB aponta que essa medida<br />

viola o artigo 7º, XIII, da Constituição Federal,<br />

que prevê “duração do trabalho normal não<br />

superior a oito horas diárias e quarenta e quatro<br />

semanais, facultada a compensação de horários e a<br />

redução da jornada, mediante acordo ou convenção<br />

coletiva de trabalho”.<br />

O Ministério Público do Trabalho destaca que<br />

os trabalhadores autônomos e a figura do freelancer<br />

entram na reforma por meio dos contratos intermitentes.<br />

A proposta (prevista no artigo 442-B)<br />

pretende assegurar que esse grupo tenha maior liberdade<br />

de atuação, podendo prestar serviços para<br />

duas ou mais empresas com carteira assinada, porém<br />

com salário e carga horária zero. Em nota de 26<br />

de junho de 2017, o Procurador-Geral do Trabalho,<br />

Ronaldo Fleury, prevê que o trabalho intermitente<br />

incentivaria a fraude à relação de emprego pelo<br />

desvirtuamento do trabalho autônomo, com severos<br />

prejuízos aos trabalhadores, que serão excluídos<br />

de todo o sistema de proteção trabalhista, e à Previdência<br />

Social, em razão da ausência de recolhimento<br />

das devidas contribuições .<br />

A Lei também prevê, ainda, o recibo de quitação<br />

anual, que será um documento expedido pelos<br />

sindicatos, com o consentimento do empregado,<br />

declarando que o patrão está em dia com os direitos<br />

trabalhistas. Para o Conselho Federal da OAB, o<br />

documento vem como tentativa de diminuir ações<br />

trabalhistas, pois uma vez assinado esse termo, o<br />

trabalhador enfrentará dificuldades em buscar seus<br />

direitos junto à Justiça do Trabalho.<br />

Outras duas questões muito importantes destacadas<br />

pelas duas entidades são a redução do tempo<br />

da hora de almoço e o parcelamento das férias.<br />

O que antes era estipulado em até 1h, em 8h diárias<br />

de trabalho, agora poderá ser negociado com<br />

o patrão e ser de apenas 30 minutos, em jornadas<br />

de até 12h. As férias poderão ser parceladas em até<br />

três períodos. Um dos períodos não pode ser inferior<br />

a 14 dias. Os outros dois períodos não poderão<br />

ser inferiores a cinco dias corridos, sob o critério<br />

do que empregador combinar com seu empregado.<br />

Gustavo Lemos, advogado da FIEMG, acredita<br />

que o parcelamento de férias dá mais liberdade<br />

ao trabalhador. Além disso, ele destaca que a nova<br />

Lei prevê que este período não pode anteceder feriados<br />

ou folgas semanais, o que não acontecia na<br />

regulamentação trabalhista anterior.<br />

Um ponto que atinge especificamente as<br />

mulheres é o fato de que, após a sanção da Reforma,<br />

gestante ou lactantes poderão trabalhar<br />

em atividades consideradas insalubres<br />

em grau médio ou mínimo. Elas necessitarão<br />

de um atestado médico para poderem se afastar<br />

de suas atividades por tempo determinado.<br />

Laura Muller acredita que a medida prejudicará<br />

muitas mulheres, pois poderá criar um conflito entre<br />

o patrão e a futura empregada, gerando discriminação<br />

em processos de contratação de mulheres,<br />

em benefício da contratação de homens. “Sempre<br />

que se revoga um tipo de direito, as primeiras atingidas<br />

são as mulheres, porque com as leis a gente<br />

já sofre um ônus, imagina sem elas. Na entrevista<br />

de emprego, ninguém pergunta para o homem com<br />

quem ficará o filho dele “, ela alerta.<br />

*O nome foi modificado para proteger a identidade da personagem.<br />

Enquanto discursos políticos<br />

deformam leis, as carteiras de<br />

trabalho são esquecidas nas<br />

gavetas.


Entrevista com Amauri César Alves, professor do Departamento de Direito da<br />

Universidade Federal de Ouro Preto e Doutor em Direito do Trabalho.<br />

RC: Como o senhor avalia o conjunto de reformas<br />

trabalhistas propostas pelo governo<br />

Temer?<br />

A: No conjunto, o que há é prejuízo, porque a Reforma<br />

Trabalhista foi feita pelos patrões. A Confederação<br />

Nacional das Indústrias (CNI) apresentou<br />

um documento em 2013 para a presidente Dilma,<br />

propondo vários pontos que estão na Reforma. A<br />

Presidente, obviamente, não acatou nada. E vários<br />

desses pontos estão hoje na lei. A Reforma precarizou<br />

demais as relações de trabalho.<br />

RC: Por que o governo quer fazer uma Reforma<br />

Trabalhista?<br />

A: Porque viu o momento de uma ruptura do espaço<br />

democrático. A Reforma veio nesse momento<br />

de aproveitamento da situação política e da inércia,<br />

infelizmente, da maioria da população que não<br />

consegue se organizar para impor sua vontade. Está<br />

todo mundo atordoado. Temer quer fazer uma Reforma<br />

Trabalhista para privilegiar os patrões, pois<br />

foram eles que deram o golpe. O governo está pagando<br />

a conta. Esse governo não tem compromisso<br />

com a população. Qualquer outro governo compromissado<br />

com a população não faria isso.<br />

A: Empobrecimento. É o resultado de quem já fez<br />

isso, como, por exemplo, a Espanha, a Grécia e a<br />

Itália. Alguns pontos da Reforma são pontos malfeitos<br />

inspirados em outros países, que têm sistemas<br />

trabalhistas mais protetivos do que o nosso.<br />

Os países em que essas propostas foram aplicadas<br />

empobreceram a população. Quando se empobrece<br />

a população, quem sente, em um segundo momento,<br />

também é o patrão. Essa reforma em um médio<br />

prazo é ruim para os dois lados, porque, se o trabalhador<br />

não tem dinheiro para comprar, para quem o<br />

patrão vai vender? Se o sujeito não tem salário digno,<br />

se trabalha 12h por dia, se tem as férias parceladas,<br />

se ele não tem o emprego dele garantido, como<br />

é que ele vai gastar? Se ele não gastar, a economia<br />

não se desenvolve. Se a economia não se desenvolve,<br />

não gera lucro, e aí o patrão não ganha. Historicamente,<br />

no Brasil, quando se retirou direitos não<br />

se gerou empregos, e no mundo todo é assim.<br />

RC: Qual o perfil do trabalhador que mais<br />

deve ser prejudicado com a Reforma? Por quê?<br />

A: Todos serão prejudicados, uns mais, outros menos.<br />

Esse trabalho intermitente destrói o sonho do<br />

trabalhador de ter uma casa, viajar no final do ano,<br />

ter um carro e estudar os filhos. Se eu tenho um<br />

salário padronizado, mês a mês, eu faço as minhas<br />

contas, mas se eu não tiver a menor ideia do quanto<br />

eu vou ganhar é um absurdo. Quem escreveu essa<br />

regra nunca pensou no que é passar dificuldade.<br />

Quem ganha salário mínimo, consegue saber até<br />

onde vai. Se ele parte do zero, com jornada zero e<br />

salário zero, sem saber se vai ser chamado para trabalhar<br />

ou não, não consegue saber até onde pode ir.<br />

Imagine, por exemplo, as Pousadas de Ouro Preto,<br />

se elas tiverem reservas numa semana, chamarão<br />

RC: A lei fala em modernização da CLT, entretanto,<br />

vários órgãos e frentes de resistência<br />

falam em perda de direitos. Qual é a sua<br />

opinião a respeito?<br />

A: A CLT é de 1943, mas ela vem sendo atualizada<br />

e modernizada desde então. Contudo, os temas<br />

que necessitavam ser efetivamente modernizados,<br />

questões técnicas, não foram. Então, a Reforma<br />

não é de modernização, é de precarização, pois<br />

ela atinge aquilo que o patrão quer atingir. Não é<br />

para modernizar no sentido de melhorar a técnica<br />

ou aspectos conceituais que evoluíram ao longo<br />

do tempo, eles se preocuparam com pontos que<br />

vão resultar em dinheiro para o empregador. O que<br />

se tem é uma facilitação da precarização, que gera<br />

lucro. Até a Reforma, havia mudanças pequenas.<br />

RC: Que consequências essa perda de direitos<br />

pode trazer para o Brasil?<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>22</strong> 31


os funcionários para trabalhar, se não tiver reservas,<br />

não chamarão. “Se eu tiver turista na semana<br />

que vem, eu te chamo”. É como se o trabalhador<br />

fosse objeto. Eu pego aquele objeto e uso, se eu não<br />

tenho mais utilidade para ele, eu não o contrato.<br />

RC: O que você destacaria como um dos pontos<br />

mais prejudiciais na nova Lei?<br />

A: Na regra anterior, por exemplo, a mulher grávida<br />

não poderia trabalhar em ambiente insalubre. Se<br />

no ambiente de trabalho houvesse insalubridade, o<br />

empregador tinha que arcar com os custos e deixála<br />

em casa. Com a Reforma, se a insalubridade for<br />

mínima, ela pode mostrar um laudo dizendo que<br />

poderá ficar naquele lugar. Se o potencial agressivo<br />

for grande, a trabalhadora deverá ser afastada<br />

pela Previdência, que passará a arcar com os custos<br />

do afastamento. Essa regra, que era protetiva,<br />

vai servir de discriminação da contratação, porque<br />

o empregador pode agir preconceituosamente e<br />

não contratar mulheres. Além de ser uma regra de<br />

precarização, pode acarretar em preconceito. Estão<br />

dizendo que a Previdência precisa de uma reforma,<br />

mas estão dando mais ônus para este Seguro Social.<br />

RC: O que você acha dos Acordos Coletivos<br />

previsto na Reforma?<br />

A: Sempre foi possível fazer acordo coletivo, mesmo<br />

com a CLT, sem muitas restrições. As restrições<br />

eram referentes à saúde, à segurança do trabalhador<br />

e ao que a gente chama de patamar civilizatório<br />

mínimo, que significa ter carteira assinada,<br />

fundo de garantia, INSS, férias e décimo terceiro.<br />

O discurso é de privilegiar acordos coletivos, mas<br />

eles não podem ser feitos sem limites. O sindicato<br />

não pode ser um instrumento de precarização dos<br />

direitos, senão ele perde o sentido. O sindicato não<br />

pode criar regras em prejuízo do representado. Se<br />

isso acontecer, tem que haver atuação do poder judiciário.<br />

Mas o sindicato perde sua força agora que<br />

o patrão pode fazer acordos diretos com o empregado.<br />

O discurso foi de fortalecimento, mas na prática<br />

foi de enfraquecimento do sindicato, por exemplo,<br />

na prática da negociação individual em vários temas,<br />

mas não em todos. Alguns ainda estão restritos<br />

a negociação coletiva. Alguns estão postos para<br />

a negociação individual. São eles: banco de horas<br />

(12h por 36h), trocar de contrato presencial para<br />

o teletrabalho, que é o home office, parcelamento<br />

das féria em três períodos. Esses temas, que não são<br />

muitos, podem ser negociados individualmente. Os<br />

que trazem impactos coletivos ficam sujeitos a negociações<br />

coletivas.<br />

RC: Como fica o trabalhador rural depois dessa<br />

reconfiguração dos direitos trabalhistas?<br />

A: Vai vir ainda uma Reforma trabalhista Rural.<br />

Esses trabalhadores têm uma lei própria que não<br />

é a CLT. Tramita na Câmara um Projeto de Lei para<br />

tratar especificamente de uma Reforma para o trabalho<br />

rural. Hoje, do jeito que está, as modificações<br />

já se aplicam a esse trabalhador. Mas, segundo<br />

parte da bancada ruralista, é necessária outra. Há<br />

uma proposta de um deputado que autorizaria,<br />

por exemplo, a possibilidade do trabalhador rural<br />

trabalhar em troca de comida e moradia. Além de<br />

ser inconstitucional, essa possibilidade demandaria<br />

uma reforma trabalhista rural específica.<br />

RC: Por que há forte resistência das centrais<br />

sindicais?<br />

A: Por princípio e por ver o que acontece no resto<br />

no mundo, o imposto sindical acabou prejudicando<br />

o sindicalismo brasileiro, pois o dinheiro que vem<br />

fácil para o cofre do sindicato o deixou acomodado.<br />

Num universo de mais ou menos 15 mil sindicatos,<br />

conseguimos nomear uns poucos que são bons, a<br />

maioria vive de impostos e representa mal o povo.<br />

Com o fim do imposto, talvez haja uma melhora na<br />

qualidade da representação. Quem vive do sindicalismo<br />

para se aproveitar do dinheiro será afastado.<br />

As boas centrais vão resistir contra a Reforma.<br />

RC: Você acredita que essa reforma pretende<br />

atrair empresas estrangeiras, devido o seu caráter<br />

de benefício para os patrões?<br />

A: Pode atrair mais empresas, mas o ambiente de<br />

incertezas que essa legislação vai trazer vai desincentivar.<br />

Estamos com uma lei nova que vai entrar<br />

em novembro e que precisa ser primeiramente interpretada<br />

pelo empregador, pelos seus advogados,<br />

pelo trabalhador, pelo sindicato e pelo Juiz do Trabalho.<br />

Dependendo do Juiz, a Lei vai ser interpretada<br />

de um jeito. Isso vai para o Tribunal Regional do<br />

Trabalho. Para consolidar um entendimento dessa<br />

matéria, vai demorar uns três anos, no mínimo. Depois,<br />

no Tribunal Superior do Trabalho, vai demorar<br />

uns cinco anos para isso. Eu sempre vou interpretar<br />

a lei a favor do trabalhador. A CNI vai interpretar a<br />

favor dela. Haverá um choque de interpretação. O<br />

judiciário vai determinar quem tem razão. Vão ser<br />

dez anos de incertezas. Os investidores não querem<br />

viver sob esses riscos. Como você atrai uma empresa<br />

estrangeira para um país empobrecido? Só se ela<br />

vier para explorar mão-de-obra, sem se preocupar<br />

em vender no mercado interno.<br />

RC: O que pode ser feito para conter essa<br />

onda de retrocessos?<br />

A: Espero que haja eleições em 2018. O Presidente<br />

terá que mandar um Projeto de Lei para o Congresso<br />

Nacional, revendo ou excluindo o que foi feito. O<br />

nosso Congresso sempre foi a cara da elite branca e<br />

masculina do Brasil. Agora é evangélica e ruralista<br />

também. Se não mudarmos ele, não adianta mudar<br />

o Presidente.


Traição premiada<br />

Opinião<br />

No século XVIII, a chamada Inconfidência Mineira<br />

teve como objetivo a libertação dos abusos políticos<br />

e econômicos feitos por Portugal ao Brasil. Sua<br />

história se assemelha muito aos tempos atuais<br />

que vivemos no nosso país.<br />

Segundo o diretor do Museu da In confidência<br />

de Ouro Preto, Rui Mourão, os<br />

Inconfidentes eram pessoas do alto escalão<br />

da sociedade, como padres, advogados e<br />

militares, e que apenas entraram no<br />

movimento porque, com a libertação<br />

do Brasil, deixariam de pagar<br />

impostos à matriz portuguesa.<br />

Além disso, estes principais<br />

arti culadores eram alguns dos<br />

maiores devedores da Coroa<br />

portuguesa e com essa<br />

separação teriam dívidas<br />

canceladas.<br />

Como explica o diretor, Tiradentes era o mediador<br />

entre a elite e os pobres de Minas Gerais, e foi até<br />

o Rio de Janeiro para encontrar adeptos para o<br />

movimento. Mas ao chegar lá, foi preso. Segundo ele:<br />

“Tiradentes não acreditava na conspiração, ele achava<br />

que precisava levantar o povo e fazer uma revolução<br />

verdadeira, implantar a independência”<br />

Na história, um dos integrantes dos Inconfidentes<br />

delatou o movimento, em troca do perdão da sua<br />

dívida. A partir disso, outras denúncias e delações<br />

foram feitas. Os delatores queriam salvar a própria<br />

pele. O historiador e professor da Universidade Federal<br />

de Ouro Preto (Ufop), Francisco Andrade, afirma<br />

que quando há interesse político, conflitos e lutas<br />

de classe, sempre haverá delações. ”O momento que<br />

vivemos hoje é um espelho envolvendo toda a história<br />

que moveu o Brasil”, diz o historiador.<br />

Numa primeira sentença, Portugal condenou 11<br />

pessoas à forca, todas de alto escalão. No dia seguinte,<br />

apareceu outra sentença, que revogava a anterior,<br />

levando os 11 condenados para o exílio na África.<br />

No dia 21 de abril de 1792, o único levado à forca foi<br />

Tiradentes, tendo partes do seu corpo expostas no<br />

caminho para o Rio de Janeiro.<br />

O momento que vivemos hoje<br />

é um espelho envolvendo toda<br />

a história que moveu o Brasil<br />

Francisco Andrade<br />

Segundo Francisco, o fato destes Inconfidentes<br />

estarem ligados a elite, e alguns terem estudado<br />

magistério na Universidade de Coimbra, possuindo<br />

laços diretos com Portugal, foi possível terem as<br />

penas mais brandas. Já Tiradentes não possuía esses<br />

laços de apadrinhamento.<br />

No Brasil de 2017, há também delações, agora explicitamente<br />

premiadas. Os que possuem poder saem<br />

ilesos, exilados em seus próprios domicílios. A conspiração<br />

é iniciada por uma elite e os delatores são vistos<br />

como heróis. Já sabemos quem será o enforcado.<br />

Texto: Luana Carvalho<br />

Foto: Jéssica Avelar<br />

Arte: Deborah Alves<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>22</strong> 33


Comum<br />

Paraíso<br />

de<br />

Papel<br />

Ambicionados com a possibilidade de enriquecer, muitas<br />

pessoas caem em golpes com promessas de lucro que<br />

seriam muito vantajosos... Se fossem verdade...<br />

Uma empresa. Dois irmãos. Um império em ascensão<br />

que inicia sua ruína. Essa é a história que<br />

os empresários Wesley e Joesley Batista começaram<br />

a escrever na fatídica data de 17 de maio de<br />

2017. Neste dia, implodiu na mídia a divulgação de<br />

uma fita onde os donos da JBS revelavam o enorme<br />

esquema de corrupção do qual participavam. As<br />

gravações entregues ao Ministério Público Federal<br />

(MPF) registravam ainda pedidos de propina do<br />

Presidente da República, Michel Temer, e do então<br />

Presidente do PSDB, Aécio Neves, licenciado do<br />

cargo logo após os registros.<br />

O resultado dessas investigações já é de conhecimento<br />

de todos. No entanto, um novo processo<br />

contra a empresa ainda se arrasta. Os irmãos Batista<br />

seguem, até a presente edição dessa revista,<br />

investigados pela Comissão de Valores Mobiliários<br />

(CVM) - órgão que regula o mercado de capitais<br />

- por terem se aproveitado de informações privilegiadas<br />

da delação para se beneficiarem do impacto<br />

na economia do mercado.<br />

A jornalista financeira Carolina Sandler explica:<br />

“Os executivos da JBS foram informados que<br />

o acordo de delação premiada e os áudios com o<br />

Presidente da República seriam vazados para a imprensa<br />

com antecedência. Eles buscaram se aproveitar<br />

da informação privilegiada e compraram dólares<br />

antes do terremoto que abalou os mercados<br />

financeiros”. A cotação do dólar disparou e a JBS<br />

conseguiu lucrar com a operação. “Antes da divulgação,<br />

o dólar havia fechado a R$ 3,13 na venda e<br />

chegou a superar o patamar de R$ 3,40 no dia seguinte<br />

- uma alta de mais de 8%”, esclarece.<br />

O golpe feito com uso de informações privilegiadas<br />

tem o nome de insider trading e, segundo a<br />

CVM, ocorre quando alguém faz uso de dados relevantes<br />

que ainda não tenham sidos levados em<br />

conta, com o fim de obter, para si ou para outro,<br />

vantagens na negociação de valores mobiliários. “O<br />

papel da CVM é de disciplinar e fiscalizar o mercado.<br />

Entre outras prioridades, busca garantir que a<br />

compra e venda de ações com base em insider trading<br />

seja punida”, acrescenta Sandler.<br />

Quando a esmola é grande<br />

A advogada Gabrielle Delmutti explica que<br />

existem outros tipos do que consideramos como<br />

“golpes de mercado”. Exemplo são as pirâmides financeiras,<br />

esquemas previsivelmente não sustentáveis<br />

que prometem ganhos milagrosos e dependem<br />

de uma contínua inserção de novos membros.<br />

Segundo a advogada, o que caracteriza um investimento<br />

ilegitimo é a obscuridade na forma de<br />

como são distribuídos os lucros. “Esse recrutamento<br />

incessante de novos adeptos é a base do negócio<br />

das pirâmides financeiras”. O esquema de pirâmide<br />

é considerado crime contra a economia popular,<br />

pela Lei 1.521/51 da Constituição, com pena de 6<br />

meses a 2 anos de detenção, além de multa.<br />

Delmutti ressalta também a importância de verificar<br />

anteriormente a empresa ou produto no qual<br />

se pretende investir. “Uma breve pesquisa pode dar<br />

um novo panorama ao possível investidor sobre a<br />

legalidade ou não desse investimento”. Ela conclui:<br />

“Desconfie, não existe dinheiro fácil”.


Texto: Eric Castro e Lorena Lima<br />

Foto: Iara Campos<br />

Arte: Carolina Carli<br />

Clube BR<br />

Fazenda boi gordo<br />

Wall Street<br />

Avestruz Master<br />

Esquema de Ponzi<br />

A corretora de<br />

câmbio passou a vender<br />

em 2006 clubes<br />

de investimento sem<br />

o registro da CVM.<br />

Comandada por Túlio<br />

Vinícius Vertullo,<br />

a empresa prometia<br />

um lucro mínimo de<br />

5% ao mês com a aplicação<br />

em clubes virtuais.<br />

Apesar da CVM<br />

ter emitido uma nota<br />

oficial contra as ações<br />

da corretora, ela continuou<br />

funcionando<br />

até 2009 quando foi<br />

interceptada pelo<br />

Banco Central. Cerca<br />

de três mil pessoas<br />

foram prejudicadas.<br />

Elas teriam perdido<br />

aproximadamente<br />

cem milhões de reais.<br />

Considerado o<br />

maior golpe de pirâmide<br />

financeira no<br />

Brasil, a Fazendas<br />

Reunidas Boi Gordo<br />

prometia aos investidores<br />

um lucro<br />

mínimo de 42% em<br />

um ano e meio com<br />

a engorda de bois e<br />

criação de bezerros.<br />

A empresa emitia<br />

falsos certificados<br />

das transações. Logo<br />

ficou claro o esquema<br />

de pirâmide no<br />

qual os investidores<br />

mais antigos eram<br />

pagos com a inserção<br />

de novos investidores.<br />

A empresa faliu<br />

em 2004, deixando<br />

em prejuízo mais de<br />

37 mil pessoas.<br />

O maior esquema<br />

de pirâmide já<br />

visto foi arquitetado<br />

por Bernard Madoff.<br />

Condenado a 150<br />

anos de prisão, ele era<br />

considerado um dos<br />

melhores gerentes<br />

de investimento de<br />

Nova Iorque. A boa<br />

fama aliada à proposta<br />

de lucro de 1% ao<br />

mês garantia a inserção<br />

de novos clientes.<br />

Madoff controlava<br />

os fundos de 16 mil<br />

vítimas, desde instituições<br />

financeiras à<br />

tubarões do mercado.<br />

Ele foi condenado em<br />

2008 por onze crimes<br />

entre eles, lavagem<br />

de dinheiro e fraude.<br />

A empresa de<br />

Goiânia lidava com<br />

a venda e abate de<br />

filhotes de avestruz,<br />

prometendo aos investidores<br />

lucro de<br />

10% com a exportação<br />

das aves. A<br />

Avestruz Master teria<br />

vendido mais de seiscentos<br />

mil animais,<br />

porém só possuíam<br />

trinta e oito mil. A<br />

empresa ruiu em<br />

2005 e foi condenada<br />

pela Justiça Federal<br />

de Goiás a indenizar<br />

os afetados em cem<br />

milhões de reais. Entretanto,<br />

os prejuízos<br />

dos investidores<br />

estão estipulados na<br />

casa de um bilhão.<br />

Charles Ponzi fez<br />

sucesso no Estados<br />

Unidos, em 1920, ao<br />

garantir rentabilidade<br />

de 50% em 45 dias<br />

na compra de cartões<br />

postais estrangeiros<br />

e trocá-los por um<br />

preço mais alto. O<br />

problema é que os<br />

prazos de entrega e<br />

taxas de conversão<br />

de moeda acabaram<br />

com qualquer possibilidade<br />

de ganho extra.<br />

Ao fim do esquema,<br />

descobriu-se que<br />

para manter qualquer<br />

possibilidade de lucro<br />

eram necessários<br />

160 milhões de postais,<br />

mas só haviam<br />

27 mil disponíveis<br />

em circulação.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>22</strong><br />

35


A verdade sobre mentiras<br />

Comum<br />

Texto: Amanda Santos e Gabriela Vilhena<br />

Foto: Daniel Tulher<br />

Arte: Carolina Carli


A propagação de notícias falsas tem aumentado de forma<br />

proporcional ao ritmo acelerado da internet.<br />

Nesse ambiente, a atenção do leitor para não cair em<br />

armadilhas deve ser redobrada.<br />

Segundo o Instituto Verificador de Comunicação<br />

(IVC), a circulação dos cinco maiores jornais<br />

impressos do país diminuiu entre 8 e 15%, de janeiro<br />

de 2015 ao mesmo mês do ano seguinte. E se<br />

antes a produção tinha um dia inteiro para acontecer,<br />

agora a corrida é para entregar a manchete<br />

mesmo com pouca apuração. As versões online<br />

dos veículos jornalísticos se adequam à nova maneira<br />

de informar e aceleram o rendimento, com<br />

pouca checagem de informação.<br />

De acordo com o gerente de marketing da empresa<br />

Usemobile, Matheus Guerra, (26) “o fato de<br />

haver a possibilidade de postar informações anonimamente<br />

colabora muito [para a propagação de<br />

falsas informações], ​tanto para que pessoas mal<br />

intencionadas façam isso, quanto para que pessoas<br />

possam publicar ou compartilhar esse tipo de notícia<br />

sem prejudicar sua ‘reputação’.”<br />

Nos meios impressos e nos digitas, as fake news<br />

[notícias falsas] têm forte impacto sobre os envolvidos,<br />

pela dificuldade de retratação. Segundo estudo<br />

produzido pela empresa americana Socialflow, apresentado<br />

em Harvard em 2017, a correção não tem<br />

o mesmo efeito da notícia falsa sobre os usuários.<br />

Durante a análise, eles acompanharam a audiência<br />

de um tweet errado da rede NBC e em seguida uma<br />

publicação do mesmo gênero e veículo que corrigia<br />

a informação passada anteriormente. Ao fim,<br />

concluiu-se que o post que desmente a notícia falsa<br />

tende a alcançar cerca de seis vezes menos pessoas<br />

que a primeira notícia publicada.<br />

Com a expansão das redes sociais, as fake news<br />

ultrapassam os limites jornalísticos e se tornam<br />

também posts diários e instantâneos na internet.<br />

Segundo o gerente Matheus, o que reforça a propagação<br />

desse tipo de notícia é a necessidade de sustentar<br />

determinado ponto de vista pessoal. Quando<br />

a notícia expõe algo em que a pessoa acredita, ela<br />

compartilha sem o fact-checking para ratificar seu<br />

pensamento. “As pessoas não gostam de estar erradas<br />

e, muitas vezes, não conseguem aceitar opiniões<br />

diferentes [...] No Brasil atual, com toda a polarização<br />

que está acontecendo, principalmente na política,<br />

isso se acentua ainda mais.”<br />

Para saber mais sobre como identificar e<br />

não repassar uma notícia falsa, acesse:<br />

www.jornalismo.ufop.br/revistacuringa<br />

Um conceito atual<br />

A Universidade de Oxford acrescentou em seu<br />

dicionário anual, em 2015, o conceito de pós-verdade,<br />

o qual representa a desvalorização dos fatos<br />

objetivos. O leitor passa a moldar a sua opinião<br />

através do apelo emocional e das crenças pessoais.<br />

Como ocorreu com a falsa notícia de que o Papa<br />

Francisco estaria apoiando a candidatura a presidência<br />

de Donald Trump. Ainda que desmentida,<br />

a manchete se espalhou nas redes sociais e serviu<br />

para alcançar eleitores cristãos e associar a imagem<br />

de Trump aos valores do Papa.<br />

A palavra “pós-verdade” foi eleita, pelo mesmo<br />

Dicionário Oxford, a mais importante do ano<br />

de 2016, indicando seu uso comum e frequente na<br />

sociedade. Apesar de ser um conceito, ela se destacou<br />

no ano passado por descrever de maneira mais<br />

próxima o momento atual.<br />

Devido à inversão de valores sobre o que deve<br />

ser relevante, quando algum veículo se retrata, a<br />

maior parte dos usuários que compartilharam a<br />

primeira notícia falsa tem uma tendência a não<br />

compartilhar a correção que poderia descredibilizar<br />

determinado ponto de vista. Com o conceito da<br />

pós-verdade tão presente, estes boatos se tornam<br />

parcialmente reais, já que no imaginário popular<br />

adquirem credibilidade.<br />

Aqui no Brasil, a Câmara dos Deputados tramita<br />

uma proposta de lei que prevê a criminalização<br />

de quem divulga e compartilha notícias falsas ou<br />

“prejudicialmente incompletas”. A pena estipulada<br />

é de 2 a 8 meses, porque, segundo o deputado<br />

Luiz Carlos Hauly (PSDB), “Esses atos causam<br />

sérios prejuízos, muitas vezes irreparáveis, tanto<br />

para pessoas físicas ou jurídicas, as quais não<br />

têm garantido o direito de defesa sobre os fatos<br />

falsamente divulgados”.<br />

No entanto, há quem não concorde com a lei<br />

em votação, por se tratar de uma medida genérica<br />

e, em alguns casos, pouco efetiva. A contraproposta<br />

é educar a população e os usuários assíduos<br />

da internet, para que a propagação destas notícias<br />

através das redes sociais diminua. Uma ideia é que<br />

o governo realize campanhas contra sites especializados<br />

em fake news, já que esses normalmente não<br />

desmentem os boatos por falta de vigilância.<br />

O segundo projeto pode prejudicar determinadas<br />

ações políticas, de maneira que a primeira pode<br />

ser manejada de acordo com os interesses de certos<br />

grupos. A contraproposta prevê disseminar todas as<br />

formas de fake news possíveis.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>22</strong><br />

37


Habitar<br />

Todo dia<br />

Fotos: Laís Stefani e Luccas Gabriel<br />

Arte: André Nascimento<br />

Texto: André Nascimento e Laís Stefani


CURINGA | EDIÇÃO 17<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>22</strong> 39


Levantar às quatro da manhã e pegar<br />

um ônibus lotado. Golpe! Sair à procura<br />

de um mísero trabalho pelas ruas esburacadas.<br />

Golpe! Nas calçadas, o lixo que<br />

atrapalha o caminhar. Golpe! O trânsito<br />

perde sua sinalização, faixas de pedestre<br />

somem com a falta de estrutura. Golpe! O<br />

desemprego impede o sono tranquilo de<br />

muitos e o chão das ruas se torna a casa de<br />

outros. Golpe! Não estão sendo dias bons.<br />

Todos os dias, um golpe diferente.<br />

Os golpes estão na democracia inoperante,<br />

na justiça seletiva, nas desigualdades<br />

que sustentam violências, misérias e<br />

mortes. Não há direitos, tampouco avanços.<br />

O que se vive é o atual movimento<br />

desta nação desenfreada que continua<br />

esmurrando pontas de facas, gritando em<br />

silêncio seus ais e trabalhando, trabalhando...<br />

sempre tratada como entulho pelos<br />

seus representantes.<br />

Eis que a tinta no muro quebra o vazio<br />

das vozes e diz aquilo que é vontade<br />

de muitos, não houvesse tantos medos. É<br />

chegada a hora de explodir e pôr para fora<br />

– à força – os temores. Se o que sustenta o<br />

Brasil são os golpes, que estes venham do<br />

povo. Unido em sua diferença, armado de<br />

sofrimento, força. E atinja toda herança<br />

colonial que condiciona as cabeças baixas,<br />

as bocas fechadas.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>22</strong> 43

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