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Revista Curinga Edição 21

Revista Laboratorial do Curso de Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.

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RC: Como foi a construção da democracia<br />

no Brasil?<br />

A: Desde meados do século XIX temos vários<br />

pensadores dizendo que nossa sociedade é complicada.<br />

Ou rompemos com isso de uma maneira<br />

que só pode ser brutal, ou nunca vamos ter<br />

democracia. Primeiro problema da sociedade<br />

brasileira: é uma sociedade forjada a partir de<br />

relações escravistas, que nunca terá uma opinião<br />

pública. Temos o segundo problema, muito<br />

grave, que quase inviabiliza a democracia no<br />

Brasil: o racismo. Racismo e relações escravistas<br />

não são sinônimos. Relações escravistas são relações<br />

de poder, de hierarquia. Racismo é enraizado.<br />

Aí te pergunto, a democracia é possível no<br />

Brasil? Para responder vou citar Sérgio Buarque<br />

de Holanda, “a democracia no Brasil nunca passou<br />

de um lamentável mal entendido”. É impossível<br />

numa sociedade como a nossa ter uma<br />

democracia. Tavares Bastos, precursor do federalismo,<br />

escreve que nossa sociedade tem esse<br />

problema (a escravidão), que não têm opinião<br />

pública, e os deputados provinciais, que seriam<br />

os deputados federais hoje, teriam que tomar<br />

decisões, mas esses deputados são frutos dessa<br />

sociedade que não têm opinião. Tavares então<br />

questiona que a única solução para o Brasil é<br />

uma ditadura. Porque apenas ditatorialmente,<br />

apenas com uma imposição, você vai conseguir<br />

resolver o problema. Olha a dimensão do<br />

desastre. Se a sociedade funcionar espontaneamente,<br />

vai dar errado. A única maneira de corrigi-la<br />

seria através de meios tirânicos. E se há<br />

da tirania, está errado.<br />

RC: É possível falar de um colapso da democracia<br />

na atualidade?<br />

A: Se pararmos pra pensar, todos os conceitos<br />

sociais são construções históricas. Não existe<br />

uma ontologia em nenhum desses termos, ou<br />

seja, não há uma verdade previamente estabelecida.<br />

Se temos uma situação em que todos esses<br />

valores sociais são construções históricas, temos<br />

então essa coisa chamada democracia, ou pelo<br />

menos aquilo que entendemos como a democracia<br />

contemporânea. A definição de democracia<br />

contemporânea é uma definição moderna, do<br />

final do século XX pra cá, onde os valores individuais<br />

e grupos sociais são respeitados, assim<br />

como a ideia do direito das minorias. Essa<br />

ideia de democracia, mesmo a contemporânea,<br />

é muito nova. E por ser muito nova, significa<br />

que as barreiras que ela enfrenta são gigantescas.<br />

Essas barreiras são de valores que estão presentes,<br />

mais ou menos cristalizados, há muitos<br />

séculos na sociedade. Não sei se estamos num<br />

desmoronamento, numa fragilização da democracia,<br />

porque ela mal foi colocada em pauta no<br />

seu sentido mais amplo. A democracia ainda<br />

está tentando se consolidar.<br />

RC: Pode-se dizer que a democracia no<br />

Brasil passa por uma crise? Por quê?<br />

A: A origem da nossa atual crise foi a mudança<br />

na distribuição de renda, o que alterou as relações<br />

de consumo. Com isso, há um furo na sociedade<br />

hierarquizada, aristocrática, proveniente<br />

das relações escravistas. Você não teve uma<br />

elite apoiando o golpe da Dilma, você teve um<br />

povão apoiando o impeachment. Isso é importante<br />

de ser lembrado. Não teve só classe média,<br />

rico, teve gente do povo. Mas por que o pobre<br />

apoia o golpe? Ele não sabe explicar. Na verdade<br />

ele não se sente bem com pobres mais pobres<br />

que ele consumindo as mesmas coisas. É muito<br />

legal as pessoas lutarem pelos seus direitos,<br />

até a hora em que a empregada que trabalha na<br />

sua casa começa a andar de avião. O escravo tá<br />

ficando igual a você, e isso não pode. O cara que<br />

é pobre anda de avião, ele conseguiu ter uma TV<br />

Ou rompemos isso de<br />

uma maneira que só pode ser brutal,<br />

ou nunca vamos ter<br />

uma democracia<br />

por assinatura e de repente o cara que é mais pobre<br />

que ele conseguiu ter a mesma coisa. “Opa,<br />

como quem tem menos que eu pode ter acesso<br />

às mesmas coisas?” A hierarquia se quebra.<br />

Como admitir que um sujeito simplório, uma<br />

pessoa que mal tem o primeiro grau, possa se<br />

candidatar a alguma coisa? Isso é inadmissível<br />

em uma sociedade que se organiza em relações<br />

de poder em relação a ela mesma. Algo que muita<br />

gente critica: o próprio Lula. Por que se criticou<br />

tanto e se critica até hoje? Porque não se<br />

admite um sujeito que não tem o primeiro grau<br />

ter chegado a Presidência da República. Na cabeça<br />

de uma sociedade hierarquizada isso é um<br />

absurdo, quase um estupro.<br />

RC: Qual o papel das palavras de ordem<br />

dentro de um sistema democrático?<br />

A: Acho que a frase de Montesquieu [filósofo<br />

francês criador da teoria da separação dos<br />

três poderes] sempre vai ser a regra pra mim:<br />

“Quem tem o poder tende a abusar dele”. Se eu<br />

não tenho uma definição clara do que é democracia,<br />

e eu sei que existe uma série de problemas<br />

que podem surgir, essa é a frase chave. E<br />

sendo essa a chave frase, como transformo isso<br />

em uma bandeira, em uma palavra de ordem?<br />

Eu diria: sem vigilância plena de todos em relação<br />

a todos é impossível termos uma democracia.<br />

Estou falando de uma vigilância saudável,<br />

institucional, dos poderes se vigiarem, de todos<br />

aqueles que detém o poder. É a única forma da<br />

democracia sobreviver.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>21</strong> 17

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