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Tanto em peças históricas como HENRIQUE V como em tragédias como REI LEAR, as voes do soldado, do coveiro, do bobo da corte erguem-se, às vezes em franca oposição aos poderosos, para dar testemunho de suas dores e angústias. Os personagens de Shakespeare são “a legítima prole da humanidade comum”, diria, no século XVIII, o arguto crítico Samuel Johnson. Um exemplo singelo mas eloquente da dignidade do homem simples encontra-se em A TEMPESTADE, a última peça que o autor escreveu sozinho (ainda colaboraria com o parceiro John Fletcher em mais duas), por volta de 1611. No navio que enfrenta a tempestade do título, aparece o desaforado contramestre – mais um desses personagens que, como os coveiros de HAMLET e o porteiro de MACBETH, são identificados só pela profissão. Temendo o naufrágio, o nobre Gonzalo recomenda que ele lembre quem está levando a bordo. O contramestre replica: “Ninguém a quem eu ame mais do que a mim próprio”. Afirmação corajosa: o plebeu diz que sua vida vale tanto ou até mais do que a dos passageiros nobres. ALMANAQUE LITERÁRIO O nobre e o plebeu, o elevado e o baixo, o erudito e o popular, o trágico e o cômico mesclam-se com liberdade inaudita na obra de Shakespeare. Nenhuma mistura similar se verificava no teatro grego estudado por Aristóteles em sua POÉTICA – e por isso espíritos classicistas teriam dificuldades com Shakespeare. Heróis como Hamlet, no entanto, têm uma individualidade e uma complexidade psicológica que não se encontrarão nos Orestes e Electras de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Em uma fórmula hiperbólica que ganhou justa popularidade, o crítico americano Harold Bloom diz que Shakespeare “inventou o humano”. Seu magistral domínio do solilóquio - “ser ou não ser, Leis a questão” é apenas o mais famoso – abriu, de fato, novas sendas para a alma dos personagens. De estilistas como Gustave Flaubert a best-sellers como Stephen King, todo escritor que jamais ensaiou a composição psicológica de um personagem é devedor do bardo. Isso vale até para quem professava desprezo por Shakespeare, como o russo Leon Tolstoi. Esse explorador pioneiro da nossa vida interior nada deixou que lançasse luz sobre a própria psicologia. Sim, biógrafos e especialistas sempre insistem: é um erro dizer que se sabe pouco sobre Shakespeare. Eis aí a minuciosa biografia de Park Honan (e há muitas outras) para atestar: com algumas lacunas, sua vida e carreira estão amplamente documentadas. Novas descobertas continuam vindo à tona – um recente exame com raios X e infravermelho no testamento do dramaturgo, por exemplo, mostrou que o documento não foi escrito de uma vez só, como se imaginava, mas teve adendos feitos em 1616, o ano da morte de Shakespeare. As teorias conspiratórias que atribuíam a outras figuras históricas - Francis Bacon ou o conde de Oxford – a autoria da obra shakesperiana hoje estão completamente desacreditadas. No entanto, fica sempre a incômoda sensação de insuficiência. Pois tudo o que se pode dizer sobre a personalidade do grande criador é especulativo. Já se aventou e já se inflou a hipótese de que Shakespeare e seu pai seriam católicos e um tempo em que o adjetivo “papista” era uma atribuição de crime. Provas efetivas? Nenhuma. A magnífica série de 154 sonetos de Shakespeare, publicada em livro em 1609, comporta um enredo erótico no qual figuram um jovem amigo (amante?) e uma misteriosa “senhora escura” (dark lady), e isso bastou para que se tentasse encontrar aí Create PDF in your applications with the Pdfcrowd HTML to PDF API PDFCROWD
elementos biográficos. O jovem seria o conde de Southampton, a quem Shakespeare dedicou outros poemas, e a dark lady seria a prostituta Lucy Negro. Novamente, é tudo um jogo de adivinhas erudito, e talvez totta a intrincada trama dos sonetos seja mero jogo ficcional. ALMANAQUE LITERÁRIO Lê-se em ORLANDO: Shakespeare, como os construtores de catedraia, “trabalhou anonimamente, sem precisar de reconhecimento ou agradecimento”. Nem sequer se preocupou com a edição de suas grandes peças. Algumas foram publicadas, às vezes com texto corrompido, quando ainda era vivo. Outras se perderam – caso de CARDENIO, em colaboração com Fletcher, que ofereceria uma inestimável ponte entre Shakespeare e o outro grande gênio literário de seu tempo: a trama baseava-se em um episódio de DOM QUIXOTE, de Cervantes. Foi só por iniciativa de dois colegas autores que, em 1623, aspeças do bardo foram afinal coligidas em um volume digno de seu talento, o chamado PRIMEIRO FÓLIO. Foi para essa edição que Ben Jonson escreveu o já mencionado poema em homenagem ao falecido rival. “Alma do tempo”!, diz o poema. Sim, William Shakespeare é, ainda e sempre, a alma do nosso tempo. A LIÇÃO TEATRAL James Shapiro publicou dois livros primorosos dedicados a esmiuçar anos fundamentais na vida de William Shakespeare: 1599 trata do ano em que foi construído o lendário Globe, o teatro da companhia do bardo, e 1606 enfoca o ano da criação de uma de suas tragédias mais densas, REI LEAR. Professor da Universidade de Columbia, Shapiro falou a VEJA sobre o autor ao qual devotou sua vida acadêmica. No ano passado, teve certa repercussão a carta escrita por uma professora de inglês ao The Washington Post em que dizia que não via sentido em ensinar Shakespeare aos seus alunos. Que resposta o senhor daria a essa professora? Há pouco tempo, acompanhei uma montagem de ROMEU E JULIETA promovida pelo Publlic Theater, de Nova York, em uma prisão feminina. Eu me emocionei com a reação das presidiárias. Havia ali uma intensidade e uma Create PDF in your applications with the Pdfcrowd HTML to PDF API PDFCROWD
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Tanto em peças históricas como HENRIQUE V como em tragédias como REI LEAR, as voes <strong>do</strong> solda<strong>do</strong>, <strong>do</strong><br />
coveiro, <strong>do</strong> bobo da corte erguem-se, às vezes em franca op<strong>os</strong>ição a<strong>os</strong> poder<strong>os</strong><strong>os</strong>, para dar testemunho de suas<br />
<strong>do</strong>res e angústias. Os personagens de Shakespeare são “a legítima prole da humanidade comum”, diria, no<br />
século XVIII, o arguto crítico Samuel Johnson. Um exemplo singelo mas eloquente da dignidade <strong>do</strong> homem<br />
simples encontra-se em A TEMPESTADE, a última peça que o autor escreveu sozinho (ainda colaboraria com o<br />
parceiro John Fletcher em mais duas), por volta de 1611. No navio que enfrenta a tempestade <strong>do</strong> título, aparece<br />
o desafora<strong>do</strong> contramestre – mais um desses personagens que, como <strong>os</strong> coveir<strong>os</strong> de HAMLET e o porteiro de<br />
MACBETH, são identificad<strong>os</strong> só pela profissão. Temen<strong>do</strong> o naufrágio, o nobre Gonzalo recomenda que ele<br />
lembre quem está levan<strong>do</strong> a bor<strong>do</strong>. O contramestre replica: “Ninguém a quem eu ame mais <strong>do</strong> que a mim<br />
próprio”. Afirmação coraj<strong>os</strong>a: o plebeu diz que sua vida vale tanto ou até mais <strong>do</strong> que a d<strong>os</strong> passageir<strong>os</strong> nobres.<br />
ALMANAQUE LITERÁRIO<br />
O nobre e o plebeu, o eleva<strong>do</strong> e o baixo, o erudito e o popular, o trágico e o cômico mesclam-se com liberdade<br />
inaudita na obra de Shakespeare. Nenhuma mistura similar se verificava no teatro grego estuda<strong>do</strong> por Aristóteles<br />
em sua POÉTICA – e por isso espírit<strong>os</strong> classicistas teriam dificuldades com Shakespeare. Heróis como Hamlet,<br />
no entanto, têm uma individualidade e uma complexidade psicológica que não se encontrarão n<strong>os</strong> Orestes e<br />
Electras de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Em uma fórmula hiperbólica que ganhou justa popularidade, o crítico<br />
americano Harold Bloom diz que Shakespeare “inventou o humano”. Seu magistral <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> solilóquio - “ser ou<br />
não ser, Leis a questão” é apenas o mais fam<strong>os</strong>o – abriu, de fato, novas sendas para a alma d<strong>os</strong> personagens.<br />
De estilistas como Gustave Flaubert a best-sellers como Stephen King, to<strong>do</strong> escritor que jamais ensaiou a<br />
comp<strong>os</strong>ição psicológica de um personagem é deve<strong>do</strong>r <strong>do</strong> bar<strong>do</strong>. Isso vale até para quem professava desprezo<br />
por Shakespeare, como o russo Leon Tolstoi.<br />
Esse explora<strong>do</strong>r pioneiro da n<strong>os</strong>sa vida interior nada deixou que lançasse luz sobre a própria psicologia. Sim,<br />
biógraf<strong>os</strong> e especialistas sempre insistem: é um erro dizer que se sabe pouco sobre Shakespeare. Eis aí a<br />
minuci<strong>os</strong>a biografia de Park Honan (e há muitas outras) para atestar: com algumas lacunas, sua vida e carreira<br />
estão amplamente <strong>do</strong>cumentadas. Novas descobertas continuam vin<strong>do</strong> à tona – um recente exame com rai<strong>os</strong> X<br />
e infravermelho no testamento <strong>do</strong> dramaturgo, por exemplo, m<strong>os</strong>trou que o <strong>do</strong>cumento não foi escrito de uma vez<br />
só, como se imaginava, mas teve adend<strong>os</strong> feit<strong>os</strong> em 1616, o ano da morte de Shakespeare. As teorias<br />
conspiratórias que atribuíam a outras figuras históricas - Francis Bacon ou o conde de Oxford – a autoria da obra<br />
shakesperiana hoje estão completamente desacreditadas. No entanto, fica sempre a incômoda sensação de<br />
insuficiência. Pois tu<strong>do</strong> o que se pode dizer sobre a personalidade <strong>do</strong> grande cria<strong>do</strong>r é especulativo. Já se<br />
aventou e já se inflou a hipótese de que Shakespeare e seu pai seriam católic<strong>os</strong> e um tempo em que o adjetivo<br />
“papista” era uma atribuição de crime. Provas efetivas? Nenhuma. A magnífica série de 154 so<strong>net</strong><strong>os</strong> de<br />
Shakespeare, publicada em livro em 1609, comporta um enre<strong>do</strong> erótico no qual figuram um jovem amigo<br />
(amante?) e uma misteri<strong>os</strong>a “senhora escura” (dark lady), e isso bastou para que se tentasse encontrar aí<br />
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